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LIVRO: Pintura em Distensão
Zalinda Cartaxo
Prefácio: Complexa distensão
Paulo Venancio Filho
A tentativa de compreender a atualidade da pintura é também um
necessário exercício de esclarecimento; é que esta se tornou matéria excessivamente complexa. Aquilo que na famosa definição era antes de tudo apenas tinta sobre tela não pode mais ser definido com tanta simplicidade. Seja mantendo seu prestígio tradicional ou experimentando novas possibilidades, a categoria 'pintura' vem hoje saturada de um prolongado discurso teórico. Nem todos, hoje, diante de um quadro, percebem que naquele momento se concentram muito mais questões que um simples olhar pode dar conta.
O duplo, porém inverso, sentido do verbo 'distender', com muita
propriedade vem aqui se aplicar à trajetória contemporânea da pintura que este conciso e preciso ensaio pretende tratar. Se não, este sentido serve mais ainda para enfatizar o ambíguo estatuto da pintura nos últimos 40 anos, pois 'distensão' tanto pode significar aumento como diminuição da tensão.
Assim é definido o movimento da pintura na contemporaneidade, a
distensão continuam ente amplia e volatiza o sentido do que é definido. Trata-se de uma expansão que problematiza sua definição; quanto mais a pintura dispensa aqueles termos tradicionais, mais difícil e ambíguo é defini- la. E ela os tem dispensado de m aneira sistem ática nestes tem pos recentes. Por outro lado, podemos entender o estado de tensão como aquele estabelecido pela manutenção dos elementos pictóricos tradicionais, os quais a modernidade procurou ainda com mais precisão determinar: a planaridade e a bidimensionalidade da tela, a recusa da figuração e a exclusão de qualquer recurso ilusionista.
Se assim for, a contemporaneidade, o período histórico que se inicia em
torno dos anos 1960, é m arcada pelo afrouxamento desta tensão, não só pela suspensão da categoria tradicional da pintura como também pela relativização daquela estrita autodeterminação m oderna. Então, a pintura ingressa irrem ediavelmente num processo de distensão, extravasando para além dos tensos limites determinados pela teoria greenberghiana, indo para além da moldura, da superfície bidimensional da tela, da materialidade da tinta. Confunde-se com o objeto, com a escultura e com a arquitetura. E ainda, dispensando tela e tinta, desm onta, examina e expõe criteriosamente todos os seus elementos componentes - chassi, tela, tinta. Acompanhando este processo, o jargão especializado vai produzir toda uma variada terminologia para diferenciar os diversos procedimentos: color-field, hard-edge, support/surface, bad painting, entre outras. Procedimentos que não se instauram mais como aquelas 'estruturas de experimentar o mundo', como foram o impressionismo, o cubismo, o expressionismo, mas como uma voraz inteligência que procede a um implacável auto-exame. E isto desde que as constatações de Donald Judd indicaram um momento da expansão do suporte, não da indefinição entre tri ou bidimensionalidade, mas da híbrida tri e bidimensionalidade. E, assim, mais e mais a acelerada análise sistemática de seus meios leva à tão famosa e insolúvel discussão sobre a "morte da pintura" a um impasse sem fim.
Este ensaio é, por assim dizer, um "sintoma" da complexidade do assunto,
ainda em questão. A linha de força aqui assinalada vai se definindo ao longo do texto, e, creio, isto se deve à fronteira da prática artística e teórica da autora e à orientação de seu trabalho. Evitando infrutíferas controvérsias pós-m odernas, o ensaio pretende acompanhar com bastante clareza certa trajetória recente do que poderíamos denominar "campo ampliado da pintura". Mais especificam ente aquela que, neste novo contexto, por paradoxal, carrega, ainda que transformados, elem entos da problem ática experiência da visualidade abstrata moderna. Daí a menor atenção - creio, deliberada - a toda um a linhagem pictórica que surge a partir dos anos 1980 e que vai de David Salle, Julian Schnabel, Basquiat, a transvanguarda, Anselm Kieffer, Gerhard Richter até figuras mais recentes como Luc Tuysmans, Peter Doig, Marlene Dum as, entre outras. Entendido aí, de modo geral através destes artistas, todo o retorno à figura e à figuração, ao comentário da vida e do cotidiano. E, tam bém, o uso constante e indiscriminado da paródia, da citação, da alegoria, numa regressão rebelde e conservadora, acima de tudo, pela manutenção do prestígio cultural da pintura de cavalete, do tradicional objeto pictural a que chamamos 'quadro'.
Muito distinta é a tentativa de dar seqüência ao sublime abstrato da pintura
de Barnett Newman e Mark Rothko, conferir contemporaneidade àquela aspiração de uma experiência autônoma, auto-referente, contemplativa e extática, em que a escala de Newman e o impressionismo abstrato de Rothko reduzidos ainda pela minimal a uma essencialidade radical que, anulando a subjetividade invasiva do artista, sugeria que uma grandiosidade autentica, coletiva e pública é plausível e possível.
Assim, uma outra seqüência é perseguida neste ensaio e encontra como um
dos indícios iniciais, entre outros, a pintura analítico-experimental, monocromática de Robert Rymann e sua oscilação entre plano e objeto, a presença insistente de Cézanne, e ainda sua dualidade subjétil, para usar um dos termos chave deste ensaio. Ou a pura e simples aplicação estritamente planar e instrumental no elemento arquitetônico 'parede' de Sol Le Witt; ou a intransigente escolha de um padrão único por Daniel Buren; até se chegar aos dois artistas que ampliaram para a escala da arquitetura e até da natureza a trajetória de espacialização e desmaterialização da pintura ou (nos termos ali propostos) da sua distensão espacial e material talvez mais essencialista: James Turrel e Robert Irwin.
Resumindo, esta é a muito especial seqüência que este ensaio privilegia e
acompanha, e que corresponde, creio, a uma pressão ainda vigente dos impulsos modernos. De certa forma, estaríamos diante de uma continuidade em expansão e não de uma ruptura divergente no modo como se prolonga a insistência em uma reivindicação do estritamente pictural.
É afinal à relação contemporânea entre pintura e arquitetura a que se vai
chegar - uma das relações decisivas da contemporaneidade. Fato que não deixa de ser curioso, quase irônico, considerando que a inextrincabilidade da pintura e arquitetura modernas vêm desde o cubismo. Nesta redução da arquitetura cubista ao estritamente planar, do espaço ao plano, da tridimensionalidade à bidimensionalidade, do material ao espiritual, inescapáveis são os nomes de Malevich e Mondrian. Pois será que agora não estariam se realizando aspectos daquela utopia que estes artistas pretendiam ?
Se a pintura moderna é tributária da arquitetura, por que então agora a
pintura não se desdobraria para o próprio espaço arquitetônico? Se o cubismo deve sua formulação do espaço às proposições arquitetônicas modernas, por que não a pintura se desdobrar no próprio espaço arquitetônico? De m odo que, com o diz Zalinda Cartaxo, "a característica fundam ental desta nova etapa esteja na distensão da obra no espaço, endossando de form a marcada a sua presença no mundo". Ou seja, a própria construção do espaço como experiência pictórica.
A permanente crise e o estado de iminente "morte" da pintura que este
ensaio tão bem resumiu em sua complexidade não parecem ter invalidado para a contemporaneidade aquilo que Mondrian afirmou para a modernidade da pintura: "a crescente profundidade da vida moderna em sua totalidade pode ser puramente refletida na pintura."