Sombras, Um Filme Sonâmbulo Por João Trabulo
Sombras, Um Filme Sonâmbulo Por João Trabulo
Sombras, Um Filme Sonâmbulo Por João Trabulo
SINOPSE
Um homem silencioso, de instinto vulcânico e visionário,
habita num velho casarão com a sua empregada e o seu motorista.
Acordado de um longo sono sai de casa
e percorre num automóvel estradas e caminhos.
O espírito desse homem, acossado por vultos e fantasmas,
vagueia sonâmbulo e disperso por entre a densa bruma de uma floresta.
Projectada na paisagem magnética, a sua sombra vai imaginando
personagens, espectros desgrenhados que passam fantasmagoricamente
pelo mundo, e vivem, para sempre, nos seus actos e palavras.
TEIXEIRA DE PASCOAES
Este filme é a história de uma obsessão pessoal. Pascoaes é, para mim, um
autor sagrado, uma espécie de animal raro, lunático e febril, rasgado por
um destino alucinado e uma dedicação obsessiva aos assuntos do espírito,
própria dos loucos e dos génios. Um anarquista, romântico, ansioso e
delirante que passava as noites e os dias a invocar fantasmas. Ele é o irmão
espiritual de Homéro e Cervantes, companheiro de viagem de Quixote neste
túmulo ibérico. Vi em Pascoaes um exemplo grandioso e épico do instinto
de queda. Amo-o, porque se entregou todo à sua obra, ávido de arder ou de
viver. Não há na nossa literatura escritor maior, mais perturbador e
incandescente. Pascoaes é o verdadeiro aventureiro, espécie de Lusíadas
sem outro herói que ele mesmo.
TENTAÇÃO DE EXISTIR
Gostaria que o filme fosse visto como uma viagem, sem mapas nem
itinerários definidos.
É um filme que pretende deixar inscrições fortes para que o espectador
construa nele a sua própria experiência. Sombras apenas sugere, não
promete nada. Revela o mundo de Pascoaes através de fragmentos e
estilhaços da sua obra. A dificuldade está em ordenar esses estilhaços e
dar-lhes uma unidade temporal, fílmica. Seria um trabalho árduo,
infindável, querer mostrar toda a fúria criadora de Pascoaes, através das
possibilidades de um texto, e num só filme. Porque o que dele temos a dizer
é indizível. E porque a sua obra também é indizível. É um mundo saturado
na imensidão da língua portuguesa, numa fusão com o seu próprio criador.
Essa figura de alucinação que se misturava com as sombras e que se
julgava, ele mesmo, sombra, porque no seu espírito já não distinguia
mortos e vivos, claridade e treva, sonhos e figuras de um real palpável. O
mundo de Pascoaes é um mundo místico, poético, cinematográfico.
Numa primeira leitura, a estrutura do filme pode revelar-se estranha.
Sequências curtas, conversas soltas, ausência de centro, tudo aponta para
uma certa incoerência. Na realidade esta desordem é intencional e tem
como principio uma certa atmosfera circular, minimal, como se o filme
apontasse para múltiplas direcções.
Tal como Pascoaes, nenhum dos seus personagens biografados (S. Paulo, S.
Jerónimo, Camilo...) gozou de boa reputação. Demoliram
revolucionariamente, com a simples força da sua mensagem, um tipo de
sociedade fundada sobre a violência de classe, o imperialismo e, sobretudo,
a escravatura das ideias e dos corpos. Sombras trata dessa impossibilidade,
procurando diluir ao máximo o que é ficção e documentário num só corpo.
Trabalhar num território de eleição onde essas diferenças não se colocam e
deixam de ser importantes. Por isso, quis que este filme mexesse em certas
feridas mal saradas. Porque acho que um filme deve ser um perigo, uma
provocação. Deve saber transformar as cinzas depois do incêndio em fonte
de vida. Acredito profundamente nisso. Vivemos num tempo de comércio
entre as pessoas, sem qualquer espécie de fraternidade. O filme também
trata desse imenso vazio espiritual
APONTAMENTOS SOBRE A RODAGEM
Filmei em absoluta liberdade, com uma equipa mínima, ao longo de vários
meses. Com dois ou três técnicos e os actores que iam chegando e partindo
mediante as necessidades. Todos compreendemos a vertigem instalada.
Íamos ajustando, corrigindo, à medida que as dúvidas se dissipavam. Na
rodagem privilegiei os planos sequência, não para tentar mostrar planos
bonitos, mas para estar o mais próximo possível do que se filma. Todos
líamos obras de Pascoaes nas horas vagas. À noite, no solar de Gatão onde
ficámos alojados, as impressões do dia evadia-nos o espírito. Depois da
matéria filmada, precipitávamo-nos na acção dramática e amorosa das
palavras deste idealista sensual.
Fiz o filme como se Pascoaes estivesse vivo. Vagueei vezes sem conta nos
corredores de sua casa em Gatão. Horas e horas passadas no seu escritório,
que ainda hoje se mantém como o Poeta o deixou há mais de 50 anos.
Livros nas estantes, livros empilhados no chão, folhas em cima das
secretárias, tinteiros, cartas abertas, o tabaco de enrolar espalhado, estava
tudo ali à minha disposição. Segui-lhe o rasto e imaginei-lhe os gestos
repetidos dos seus dias. Estar simplesmente. Anular-me e esquecer que
estava apenas a fabricar um filme. Como um passageiro assediado que
revisita o mundo das sombras quis mostrar tudo sem impor nada.
Guilherme Pinto, actor sem qualquer experiência de cinema e que faz de
Pascoaes compreendeu muito bem as minhas intenções. Penetrar no próprio
cenário natural do filme (o Solar de Gatão) e permanecer em silêncio até ao
fim da aventura. Sentir e apalpar a transcêndencia, pois ela estava ali, nos
objectos, nas paredes da casa, na paisagem. Reduzir a acção ao essencial,
evitando os estereotipos e os tiques nervosos do cinema moderno. Queria
muito voltar à tradição de um cinema feito na urgência, inspirado em
cineastas que admiro profundamente: Pasolini, Bresson, Ozu. Inspirei-me
muito no Evangelho Segundo Mateus de Pasolini. Mostrar o mesmo
idealismo, a mesma força poética das palavras, a marginalidade daqueles
que adoram o caminho pelo caminho. A viagem enquanto fonte inesgotável
de aprendizagem.
João Trabulo