Felipe Borring - Juizados Especiais Civeis

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JUIZADOS ESPECIAIS CVEIS

Novos Desafios

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FERNANDO GAMA DE MIRANDA NETTO


FELIPPE BORRING ROCHA
- Organizadores -

JUIZADOS ESPECIAIS CVEIS


Novos Desafios

EDITORA LUMEN JURIS


Rio de Janeiro
2010

Copyright 2010 by Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.


Categoria: Processo Civil
Produo Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.


no se responsabiliza pela originalidade desta obra
nem pelas opinies nela manifestadas por seus Autores.

proibida a reproduo total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive


quanto s caractersticas grficas e/ou editoriais. A violao de direitos autorais
constitui crime (Cdigo Penal, art. 184 e , e Lei no 10.695, de 1o/07/2003),
sujeitando-se busca e apreenso e indenizaes diversas (Lei no 9.610/98).

Todos os direitos desta edio reservados


Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
Impresso no Brasil

Printed in Brazil

CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
-------------------------------------------------------------------------------J87
Juizados especiais cveis : novos desafios / Fernando Gama de Miranda Netto,
Felippe Borring Rocha, organizadores. - Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2010.
ISBN 978-85-375-0735-3
1. Juizados especiais cveis - Brasil. I. Miranda Netto, Fernando Gama de, 1977-.
II. Rocha, Felippe Borring, 1974-.
10-0228.
15.01.10

19.01.10

CDU: 343.197(81)
017175

Sumrio
Colaboradores ..........................................................................................................

vii

Apresentao ...........................................................................................................
Alexandre Freitas Cmara

xi

I - JUIZADOS ESPECIAIS CVEIS:


SEGURANA, EFICCIA E PROCESSO JUSTO
1. Desmistificando os Fantasmas: Formalismo, Idealismo e Pragmatismo nos
Juizados Especiais Cveis Estaduais .................................................................
Felippe Borring Rocha

2. Garantias do Processo Justo nos Juizados Especiais Cveis ............................


Fernando Gama de Miranda Netto

49

3. Os Juizados Especiais, a Insegurana Jurdica e o Direito Medieval .............


Gustavo Santana Nogueira

71

4. Conciliao, Juzes Leigos e Uniformizao de Jurisprudncia: Instrumentos


para o Enfrentamento da Demanda nos Juizados Especiais Cveis ...............
Jos Guilherme Vasi Werner

93

II - AO E COMPETNCIA NOS JUIZADOS ESPECIAIS CVEIS


5. Consideraes em Torno de Algumas Questes Polmicas no mbito dos
Juizados Especiais .............................................................................................
Aluisio Gonalves de Castro Mendes
Joo Bosco Won Held Gonalves de Freitas Filho
6. A Demanda no Sistema dos Juizados Especiais Cveis: o Pedido e a Causa de
Pedir ..................................................................................................................
Mario Cunha Olinto Filho

107

133

III - RECURSOS NOS JUIZADOS ESPECIAIS CVEIS


7. Aspectos Relevantes do Sistema Recursal dos Juizados Especiais .................
Gustavo Quintanilha Telles de Menezes

169

vi

Sumrio

8. Da Recorribilidade das Decises Interlocutrias nos Juizados Especiais Cveis


Federais e Estaduais..........................................................................................
Bruno Garcia Redondo

181

IV - PROCESSO ELETRNICO NOS JUIZADOS ESPECIAIS CVEIS


9. Os Juizados Especiais Cveis e o E-Process: O Exame das Garantias Processuais na Esfera Virtual......................................................................................
Humberto Dalla Bernardina de Pinho
Mrcia Michele Garcia Duarte
10. Reflexes sobre o Processo Eletrnico nos Juizados Especiais Cveis...........
Erick Linhares

209

233

V - DIREITO DO CONSUMIDOR E JUIZADOS ESPECIAIS CVEIS


11. Tutela do Consumidor: Por que os Juizados Especiais? .................................
Delton Ricardo Soares Meirelles
Marcelo Pereira de Mello
12. Tutela do Consumidor Superendividado no mbito dos Juizados Especiais
Cveis Estaduais e Federais ..............................................................................
Roberta Barcellos Danemberg

247

281

VI - JUIZADOS ESPECIAIS CVEIS E O PODER PBLICO


13. Da Criao de Juizados Especiais para as Causas que Envolvam Estados, Distrito Federal e Municpios ...............................................................................
Marcia Cristina Xavier de Souza
14. Os Juizados Especiais Federais Cveis sob a tica do Acesso Justia .........
Andr da Silva Ordacgy

vi

321

347

Colaboradores
Aluisio Gon
naalves de Caastro Men
ndes
([email protected])
Ps-Doutor em Direito pela Universidade de Regensburg, Alemanha. Doutor em
Direito pela Universidade Federal do Paran (UFPR). Mestre em Direito pela
Johann Wolfgang Goethe Universitt (Frankfurt, Alemanha). Mestre em Direito
pela Universidade Federal do Paran (UFPR). Especialista em Direito pela Universidade de Braslia (UnB). Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Estcio de S (Unesa). Juiz Federal no Rio de Janeiro.
Principais obras: Teoria Geral do Processo, Lumen Juris, 2009; Competncia Cvel
na Justia Federal, 2 ed., RT, 2006; Aes Coletivas, RT, 2002, 2 ed., 2009.
Andr daa Silvaa Ordaacggy
Doutorando em Cincias Jurdicas e Sociais em Buenos Aires (AR). Mestre
em Estado, Direito e Justia. Ps-Graduado em Direito Civil. Professor da
FESUDEPERJ (Fundao Escola Superior da Defensoria Pblica do Estado do
Rio de Janeiro) e dos cursos de Ps-Graduao da Universidade Estcio de S
UNESA Defensor Pblico da Unio, titular do Ofcio de Direitos Humanos
e Tutela Coletiva no Rio de Janeiro. Coordenador Regional Sudeste do IBAP
(Instituto Brasileiro de Advogados Pblicos).
Brun
no Gaarciaa Redon
ndo
([email protected])
Especializando em Direito Processual Civil pela PUC-Rio. Ps-Graduado em
Direito pela EMERJ e pela ESAP. Professor Auxiliar da PUC-Rio e Professor
Substituto de Direito Processual da UFF. Membro do IBDP. Advogado.
Principal obra: Penhora, Ed. Mtodo, 2007 (em co-autoria com Mrio Vitor
Suarez Lojo).
Delton
n Ricaardo Soaares Meirelles
([email protected])
Doutorando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Professor Assistente de Direito Processual da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisador do Grupo Sociedade, Direito e Justia (UFF),
cadastrado no CNPq. Vice-coordenador de Graduao em Direito da UFF.

vii

viii

Colaboradores

Erick Lin
nhaares
([email protected])
Doutorando em Relaes Internacionais - UFRR/UnB. Coordenador do PROJUDI TJRR. Juiz de Direito. Principais obras: Manual Prtico do Juizado
Especial Cvel, 2 ed., Juru, 2007; Juizados Especiais Cveis: Comentrios aos
Enunciados do FONAJE, 3 ed., Juru, 2008.
Felippe Borrin
ng Rochaa
([email protected])
Doutorando e Mestre em Direito. Professor de ps-graduao em Direito na
Universidade Candido Mendes, na Universidade Gama Filho, na Escola da
Magistratura do Estado do Rio de Janeiro e na Escola Superior da Advocacia
do Rio de Janeiro. Defensor Pblico do Estado do Rio de Janeiro. Principais
obras: Juizados Especiais Cveis: Aspectos Polmicos da Lei n 9.099, de
26/9/95, 5 ed., Lumen Juris, 2009; Teoria Geral dos Recursos Cveis, Campus,
2008.
Fern
nando Gaama de Miraandaa Netto
(www.professores.uff.br/fernandogama)
Doutor em Direito pela Universidade Gama Filho (RJ), com perodo de pesquisa de um ano junto Deutsche Hochschule fr Verwaltungswissenschaften
de Speyer (Alemanha) e junto ao Max-Planck-Institut (Heidelberg) com bolsa CAPES/DAAD. Professor Adjunto de Direito Processual da UFF (2009).
Pesquisador do Grupo Observatrio da Justia Brasileira (FND/UFRJ). Advogado. Principais obras: nus da Prova no Direito Processual Pblico, Lumen
Juris, 2009; A ponderao de interesses na tutela de urgncia irreversvel,
Lumen Juris, 2005.
Gustaavo Quin
ntaanilhaa Telles de Men
nezes
([email protected])
Mestrando em Direito Processual pela Universidade do Rio de Janeiro.
Professor da Fundao Escola Superior da Defensoria Pblica do Estado do
Rio de Janeiro. Juiz de Direito no Rio de Janeiro.
Gustaavo Saantaana Noggueiraa
([email protected])
Mestrando em Direito pela UNESA/RJ. Professor licenciado de Direito
Processual Civil na UCAM/RJ. Professor da Ps-Graduao na Universidade
Federal da Bahia UFBA. Promotor de Justia no Estado do Rio de Janeiro.
Principal obra: Curso Bsico de Processo Civil: Teoria Geral do Processo,
Lumen Juris, 2004, Tomo I.

viii

Colaboradores

ix

Hum
mberto Daallaa Bern
nardin
na de Pin
nho
(www.humbertodalla.pro.br)
Ps-Doutor em Direito (University of Connecticut). Doutor e Mestre em Direito (UERJ). Professor Adjunto de Direito Processual Civil da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Estcio de S
(UNESA/RJ). Promotor de Justia Titular/RJ. Principais obras: Teoria Geral
do Processo Civil Contemporneo, 2 ed., Lumen Juris, 2009; Teoria Geral da
Mediao, organizador, Lumen Juris, 2008.
Joo Bosco Won
n Held Gon
naalves de Freitaas Filho
Advogado no Rio de Janeiro; Ex-Procurador do Municpio de Mesquita no
Estado do Rio de Janeiro; Mestre em Direito pela Universidade Estcio de S
(UNESA); Professor Auxiliar na UNESA; Professor Visitante dos Programas
de Ps-Graduao em Direito na Universidade Candido Mendes (UCAM), na
Universidade Gama Filho (UGF) e na VRB; Professor na Escola Superior de
Advocacia - ESA (OAB/RJ 24 Subseo); Professor no Centro de Estudos
Jurdicos 11 de agosto CEJ.
Jos Guilherm
me Vaasi Wern
ner
([email protected])
Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Professor da Ps-Graduao de Processo Civil da Fundao Getlio Vargas.
Juiz de Direito (Titular do XX Juizado Especial Cvel da Comarca da Capital
do Estado do Rio de Janeiro). Principal obra: A formao, o controle e a extino dos contratos de consumo, Renovar, 2006.
Maarcelo Pereiraa de Mello
Doutor em Cincia Poltica (IUPERJ). Professor Adjunto da UFF, vinculado
ao Departamento de Sociologia e ao Grupo de Pesquisa Sociedade, Direito e
Justia. Coordenador do PPGSD/UFF. Obras organizadas: Sociologia e
Direito: explorando as intersees, Niteri: PPGSD, 2007; Justia e Sociedade:
temas e perspectivas, LTr, 2001.
Maarciaa Cristin
na Xaavier de Souzaa
([email protected])
Doutora em Direito pela UGF. Professora Adjunta de Direito Processual Civil
da UCAM/Centro, da Faculdade de Direito do IBMEC/RJ e da FND/UFRJ.

ix

Colaboradores

Mrciaa Michele Gaarciaa Duaarte


(www.mmgarciaduarte.com.br)
Mestre em Direito Pblico pela UNESA/RJ (ex-bolsista do PROSUP-CAPES).
Ps-Graduada em Direito e em Didtica do Ensino Superior. Professora
Universitria e Advogada.
Maario Cun
nhaa Olin
nto Filho
([email protected])
Mestre em Direito pela UGF/RJ. Professor de Direito Processual Civil da
UCAM/RJ (Centro). Ex-Professor de Direito Processual Civil da UFRJ. Juiz de
Direito no Rio de Janeiro.
Robertaa Baarcellos Daanem
mbergg
(www.direitoemdebate.com)
Bacharel em Direito pela PUC-Rio. Editora do Portal Direito em Debate.
Vencedora do 35 concurso de monografias da OAB/RJ (Prmio Jurdico
Paulo Fontenelle categoria: advogados) sobre o tema A tutela do consumidor superendividado. Advogada.

Apresentao

Sempre tive uma relao complicada com os Juizados Especiais Cveis.


Como jurista, dedicado ao estudo do direito processual civil, a ideia de um
sistema processual rpido, barato, informal, oral e eficiente sempre foi
motivo de encantamento. Como advogado que fui por quase vinte anos
sempre tive verdadeiro horror do que via na prtica. Afinal, nos Juizados
Especiais da vida real encontrei demandantes aventureiros, conciliadores
sem treinamento adequado, juzes que interpretavam as normas de regncia do sistema sem qualquer embasamento terico, fazendo com que cada
Juizado tivesse uma lei prpria.
Em razo dessa relao de amor e dio, resolvi, h alguns anos, tentar mostrar como os Juizados Especiais deveriam, na minha viso, ser compreendidos. Isto me levou a escrever um livro, Juizados Especiais Cveis
Estaduais e Federais uma abordagem crtica, j em quinta edio. Naquele
livro tive a elevada honra de contar com o prefcio-provocao escrito
pelo meu querido e agora saudoso amigo e mestre J. J. Calmon de Passos.
Agora, alguns anos depois, pedem-me meu amigo e ex-aluno Felippe
Borring Rocha e seu colaborador Fernando Gama de Miranda Netto que
escreva uma apresentao para o livro coletivo sobre os Juizados Especiais
que organizaram.
O livro, que agora apresento, uma coletnea de textos escritos por
jovens (alguns j consagrados) juristas. Trata-se de uma espcie de retrato
dos Juizados Especiais pintado por uma nova gerao.
Processualistas conhecidos e admirados, como Aluisio Gonalves de
Castro Mendes e Humberto Dalla Bernardina de Pinho, ambos professoresdoutores da UERJ, e Gustavo Santana Nogueira, respeitado professor e
membro do Ministrio Pblico do Rio de Janeiro, unem-se a juzes que
dedicaram boa parte de sua atividade judicante aos Juizados, como Jos
xi

xii

Apresentao

Guilherme Vasi Werner e Mrio Cunha Olinto Filho, para apresentar suas
vises, tericas e prticas, dos Juizados Especiais.
Temas tradicionais, como o sistema recursal, so abordados por talentosos processualistas, como Bruno Garcia Redondo. Temas modernssimos,
como a utilizao dos meios eletrnicos, so enfrentados com talento, como
no trabalho do juiz Erick Linhares, que apresenta para todo o Brasil a experincia do acolhedor Estado de Roraima, onde exerce sua funo de julgador.
A enumerao que fao, aqui, de autores e temas, meramente exemplificativa. O leitor saber perceber, ao percorrer as deliciosas pginas deste
livro, toda a riqueza de seu contedo.
Tudo isso se d sob a batuta de dois conhecidos e respeitados jovens
processualistas: Fernando Gama de Miranda Netto, professor universitrio,
doutor em direito, e Felippe Borring Rocha, mestre em direito, professor
universitrio e defensor pblico, os quais so, alm de organizadores do
livro, autores de textos instigantes.
A leitura de textos como os reunidos na obra que tenho a honra de
apresentar serve para mostrar que aquela conturbada relao que sempre
mantive com os Juizados Especiais pode se modificar. Para minha felicidade, essa relao, de trato sucessivo, pode ser modificada pelo surgimento de
novas circunstncias, como o aparecimento deste livro. A transformao
em realidade do que sustentam os jovens autores desta obra certamente ser
capaz de apagar no da memria, pois o esquecimento leva repetio do
que ruim mas da vista dos observadores todos os graves problemas que
os Juizados Especiais enfrentam, permitindo-lhes exercer a contento a
nobre misso para a qual foram criados: ampliar o acesso ordem jurdica
justa, algo que nos foi prometido pela Constituio da Repblica, e que precisa, urgentemente, se tornar realidade.
ALEXANDRE FREITAS CMARA
Desembargador no Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro.
Professor de direito processual civil da EMERJ
(Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro).
Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual,
da Academia Brasileira de Direito Processual Civil,
do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual
e da International Association of Procedural Law.

xii

I
Juizados Especiais Cveis:
Segurana, Eficcia e Processo Justo

men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora


men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
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men Juris
Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora

1
Desmistificando os Fantasmas:
Formalismo, Idealismo e Pragmatismo
nos Juizados Especiais Cveis Estaduais
Felippe Borring Rocha
SUMRIO: 1. Introduo. 2. O panorama atual dos Juizados Especiais. 2.1. Justia injusta?.
2.2. A exceo que se tornou a regra. 3. Os fantasmas dos Juizados Especiais. 3.1. A opcionalidade do procedimento. 3.2. A reformulao estrutural da fase de conhecimento do procedimento da Lei n 9.099/95. 3.3. A necessidade de utilizao do agravo de instrumento.
3.4. A competncia para julgar o mandado de segurana contra atos dos juzes dos Juizados
Especiais. 3.5. A competncia para julgar mandado de segurana contra atos das Turmas
Recursais. 3.6. Teoria dualista: a possibilidade de tramitao de causas com valor acima de
40 salrios mnimos. 3.7. A natureza relativa da incompetncia territorial. 3.8. A inconstitucionalidade da atuao judicante do juiz leigo. 3.9. A inconstitucionalidade da dispensa
do advogado. 3.10. A amplitude da assistncia judiciria gratuita. 3.11. A natureza da interveno da Defensoria Pblica. 3.12. A possibilidade da representao das partes nas audincias. 3.13. A importncia da gravao da audincia. 3.14. A possibilidade de produo da
prova pericial. 3.15. A natureza incidental dos embargos execuo. 3.16. A rescindibilidade da coisa julgada. 4. Concluses. 5. Referncias bibliogrficas.

uma questo muito sria a da efetividade de leis novas que se


implantam no pas quando portadoras de alteraes substanciais ou
mesmo rupturas mais ou menos profundas em relao ordem preexistente. Quando despregadas das tradies culturais da nao, elas tm a sua
eficcia bastante dificultada pelas naturais resistncias de todos, correndo
o risco de permanecerem como letra-morta. (Cndido Rangel Dinamarco, A nova lei e os fantasmas da velha, in: Fundamentos do Processo
Civil Moderno, vol. II, p. 1429)

1. Introduo
Como se sabe, o costume uma prtica que deixa marcas muito fortes
no Direito. Tal qual pegadas num caminho, incute na conscincia do operador uma srie de concepes e comportamentos que, por vezes, so dif3

Felippe Borring Rocha

ceis de serem abandonados, ainda que desprovidos de embasamento legal


ou mesmo lgica jurdica. Neste contexto, as pessoas repetem determinada
conduta porque a entendem como correta ou mais adequada (ou simplesmente porque no querem conhecer uma nova) e lhe atribuem uma importncia a ser defendida. Tal processo se torna mais evidente nos momentos
de transformao legislativa, quando a norma velha se mantm viva, apesar das novas regras introduzidas. So os fantasmas mencionados pelo
Professor Dinamarco, na citao que abre este texto.
Por certo, existem fantasmas em todas as reas do Direito, mas, a
toda evidncia, no mbito processual que eles se apresentam com maior
freqncia. O Direito Processual, tambm conhecido como Disciplina dos
Ritos, possui uma srie de formalidades procedimentais que se prendem
fortemente razo coletiva. De fato, o processo representa um sistema
coordenado de trajetos a serem percorridos para atender s pretenses
deduzidas em juzo. Assim, nada mais natural do que a resistncia em se
percorrer novos e desconhecidos caminhos na seara processual.
Alm disso, preciso reconhecer que nos ltimos anos o Direito
Processual Brasileiro foi sacudido por uma torrente de modificaes que
alteraram ou at mesmo aboliram tradies jurdicas seculares, gerando
insegurana para os atores jurdicos. Diante da profuso de alteraes, o
conservadorismo mngua, mas no desaparece, porque se torna um elemento de estabilidade para a atuao do Direito, enquanto as novidades no so
sedimentadas.
Neste contexto, no basta bradar com a lei para espantar os fantasmas
de nosso ordenamento processual. necessrio difundir os valores agregados s inovaes, atravs da formao de uma ideologia jurdica prpria,
capaz de melhorar a qualidade da prestao jurisdicional no apenas no
plano terico, mas tambm no plano prtico, principalmente para o melhor
proveito dos jurisdicionados. A novidade deve ser estudada, de forma pragmtica, no dia-a-dia do foro, cotejada com o conjunto de elementos que
compem a dinmica daquele instituto.
Pois bem, o objetivo deste texto reunir breves reflexes sobre alguns
dos fantasmas que rondam os Juizados Especiais, atormentando seus operadores. So temas que, pelo menos sob a tica do autor deste ensaio, vm
4

Desmistificando os Fantasmas: Formalismo, Idealismo


e Pragmatismo nos Juizados Especiais Cveis Estaduais

sendo tratados de forma inadequada principalmente em razo de uma srie


de distores provocadas pelo choque de ideologias oriundas do novo sistema (Juizados Especiais) e do velho sistema (CPC).
preciso desde logo reconhecer que se em alguns momentos as solues aventadas tendem para a primazia do novo, no raras vezes, rumam
em sentido oposto. So situaes onde as novas diretrizes no apenas deixaram de produzir o resultado que lhes era esperado, mas tambm se chocaram com preceitos e regras constitucionais. No preciso dizer que se trata
de uma empreitada no mnimo arriscada. Defender o velho normalmente associado ao anacronismo. Soa ultrapassado. Mas no se pode partir da
premissa de que tudo que novo bom. Ademais, o formalismo, mesmo
nos Juizados Especiais, pode ser empregado com uma nova ideologia, comprometida no apenas com os seus princpios informativos, mas tambm
com a segurana jurdica e a qualidade da prestao jurisdicional. Com efeito, se no houver um equilbrio, as maiores virtudes dos Juizados Especiais
podem se transformar nos seus maiores defeitos.

2. O panorama atual dos Juizados Especiais


2.1. Justia injusta?
Primeiramente, necessrio reconhecer que nos ltimos anos a qualidade da tutela jurisdicional prestada nos Juizados Especiais sofreu significativa piora. Por um lado, se certo que se verificam situaes criticveis do
ponto de vista qualitativo em todos os rgos judiciais (aspecto inerente
nossa condio humana de falibilidade), por outro, no se pode negar que
tais situaes se avolumam de forma impressionante e sistemtica nos
Juizados Especiais, muitas vezes incorporadas ao seu cotidiano.
Pouco tem se falado a respeito, mas os reflexos desta crise tm sido
cada vez mais visveis. Muito advogados olham com desprezo para os
Juizados Especiais, preferindo trabalhar nas varas cveis, mesmo quando
podem lanar mo do procedimento especial. Alguns julgadores, aproveitando-se da liberdade proporcionada pela Lei, implementam posturas
irreais, ilegais e, mesmo, autoritrias. Diversas partes, especialmente as mais
5

Felippe Borring Rocha

simplrias, so frustradas na suas expectativas de verem seus direitos adequadamente tutelados, seja porque no foram orientados adequadamente
quando ingressaram nos Juizados, seja porque no foram acompanhados ao
longo do procedimento. Pior: as causas nos Juizados tm durado tanto ou
mais tempo do que as aforadas nas varas cveis.
preciso com urgncia reconhecer a importncia e os riscos que esta
situao gera para o Poder Judicirio e para a sociedade de um modo geral.
De uma forma bastante resumida, pode-se dizer que estes problemas
tm quatro causas principais: a elevada e crescente demanda pelos servios
judiciais; a limitada estrutura material e humana disponvel; a falta de uma
postura instrumental legtima dos operadores do Direito; e a falta de um
controle mais rgido sobre o que feito nestes rgos.
Consoante, a liberdade propiciada pela malha principiolgica, a irrecorribilidade das decises interlocutrias, a exigncia de custas para
recorrer, a inexistncia de ao rescisria, a falta de um mecanismo de
uniformizao da jurisprudncia na seara estadual, dentre outras caractersticas, quando mal utilizadas, tm permitido a distoro do funcionamento dos Juizados.
Neste passo preciso deixar bem claro que no se est defendendo a
abolio destas e de outras caractersticas da Lei n 9.099/95, muitas delas
evidentemente positivas e necessrias ao funcionamento do sistema. Mas
preciso adotar medidas que permitam que estas caractersticas produzam os
resultados que dela se esperam e, ao mesmo tempo, minimizem os efeitos
colaterais que se tem observado. Neste contexto, algumas experincias
vm sendo implantadas por todo o Pas com resultados animadores. Eis
algumas delas: oferecer uma melhor estrutura material e humana, com
nfase no treinamento para atendimento da populao e na promoo dos
meios auto-compositivos dos conflitos (RS, MS, DF); prestao dos servios
da Defensoria Pblica junto aos Juizados (RJ); investimento macio em
informtica, preferencialmente, com a implantao dos processos eletrnicos, filmagem das audincias, atendimento via internet, leiles virtuais etc
(Juizados Especiais Federais, PR, RR); maior integrao com a sociedade
divulgao pblica das decises, debate sobre as questes que mais atingem
os jurisdicionados, interveno em universidades e escolas etc. (PR, RS, SP,
6

Desmistificando os Fantasmas: Formalismo, Idealismo


e Pragmatismo nos Juizados Especiais Cveis Estaduais

PE); atuao mais intensa e rgida da Corregedoria Geral de Justia (SP);


uniformizao da jurisprudncia e dos procedimentos a serem adotados nos
Juizados (Juizados Especiais Federais); divulgao da jurisprudncia formada nos Juizados (RJ, RS, PR); e, reviso do sistema recursal, especialmente
com introduo do agravo de instrumento (SP).
Os Juizados Especiais so uma realidade incontestvel. No se pode
mais pensar no Poder Judicirio sem estes rgos. Por isso, preciso urgentemente arregaar as mangas e abraar a sua causa. Os operadores do
Direito tm que assumir o compromisso de buscar melhorar o quadro existente, atravs do debate de idias, da articulao entre a sociedade civil e o
governo, da implantao de novas prticas que possam aprimorar a qualidade da tutela jurisdicional prestada.

2.2. A exceo que se tornou a regra


Os Juizados Especiais, cujo funcionamento se deu no incio de 1996
(sucedendo os Juizados de Pequenas Causas, implantado em 1984), j respondem atualmente por, no mnimo, a metade do total de processos que
tramitam na rea cvel das Justias Estadual e Federal. No Rio Grande do
Norte e no Amap, por exemplo, a participao dos Juizados Especiais j
representa mais de 60% das demandas propostas. Com isso, possvel afirmar que os Juizados Especiais deixaram de ser uma exceo para se tornarem a regra em nosso sistema judicirio. De fato, hoje, especial, no sentido
quantitativo, aquilo que vai para uma vara cvel, empresarial ou orfanolgica, por exemplo.
A respeito dessa inverso, duas indagaes merecem destaque: ser
que realmente mais da metade das causas em nosso Pas so de menor complexidade? Ser que os Juizados podem e devem ser a regra em no Poder
Judicirio ptrio?
A primeira pergunta a mais difcil de responder, uma vez que no
h no Brasil um banco de dados slido e analtico sobre o perfil das causas
propostas em nossos tribunais. Embora sejam louvveis os esforos envidados pelo Ministrio da Justia e pelo Conselho Nacional de Justia em
reverter esse quadro, a verdade que ainda hoje pouco se sabe sobre os
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Felippe Borring Rocha

temas que mais causas tm gerado processos, quais os recursos que tm sido
utilizados para julg-los, quais os resultados obtidos etc. As dimenses continentais do Pas, com seus contrastes internos, tambm dificultam a fixao de diretrizes comuns, capazes de embasar concluses mais seguras.
No obstante, ainda que lanando mo de uma boa dose de subjetivismo, parece correto afirmar que os Juizados Especiais esto recebendo causas que deveriam ser direcionadas para o juzo ordinrio. Se por um lado
certo que boa parte do crescimento da procura pelos Juizados foi originado
por demandas reprimidas, que, naturalmente, possuem reduzida complexidade, por outro, o engajamento da classe mdia, aliado ao adensamento das
relaes de consumo e falta de controle pela Administrao Pblica das
atividades comerciais, trouxe s barras dos Juizados causas que teriam
melhor colocao no juzo ordinrio.1 So questes como as relativas aos
planos econmicos, s coberturas mdicas, s revises contratuais, dentre
outras, que exigem um maior aprofundamento instrutrio e acompanhamento tcnico para serem adequadamente apreciadas.2
Consoante, se as caractersticas dos Juizados so a razo para se levar as
causas para l, porque est na hora (ou j passou muito da hora) de dotar
o juzo ordinrio destas mesmas caractersticas. Em outras palavras, para
melhorar a qualidade da atividade judicial nos Juizados, evitando a sua ordinarizao, preciso implantar os seus aspectos bem-sucedidos nos demais
rgos julgadores, tornando seu acesso possvel e atrativo para a maioria da
populao.
A segunda pergunta mais fcil de responder. Com efeito, a legitimidade dos Juizados Especiais, como uma estrutura especial que , repousa
justamente na excepcionalidade das questes a eles sujeitas. A sua existncia se vincula s causas que normalmente no seriam levadas apreciao

Note-se ainda que um dos fatores que mais contribuem para o direcionamento de causas complexas aos
Juizados Especiais a iseno de encargos e nus sucumbenciais previstos na Lei n 9.099/95 (art. 54 e
55). Assim, uma forma de atenuar o problema seria promover a eliminao da obrigao de pagamento de custas e taxas ou a reduo no seu valor na esfera ordinria, alm de reverter a acentuada tendncia de rejeio dos pedidos de gratuidade de Justia legitimamente formulados, gerado pelo intento
arrecadador de alguns tribunais.
Imprescindvel destacar que as causas enumeradas no esto, ab initio, de maior complexidade, mas, via
de regra, elas se afastam do perfil necessrio para serem julgadas nos Juizados Especiais, pois envolvem
discusses jurdicas e demandam maior anlise probatria.

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do Poder Judicirio, em razo da sua pequena repercusso ou reduzido


valor econmico. Transform-los em vias ordinrias, embora possa parecer
coerente com nosso estgio de desenvolvimento social e econmico, est
comprometendo as suas qualidades e o prprio papel do Poder Judicirio.
preciso reconhecer tambm que em todos os lugares do mundo onde
existem Juizados, nos moldes do sistema brasileiro, eles representam um
nicho, um setor delimitado da atividade judicial. No se tem notcia de
qualquer Pas que tenha promovido uma concentrao de suas atividades
judicantes em modelos como o previsto pela Lei n 9.099/95.3
Destarte, a situao atual est gerando um processo de elitizao da
Justia Ordinria. Assim, quem tem recursos econmicos ou causas vultosas, passa a receber um tratamento diferenciado em juzo, pautado pela
segurana jurdica, contraditrio pleno, atuao tcnica etc., enquanto que
o restante dos jurisdicionados so encaminhados para Juizados, onde as
questes so resolvidas com celeridade (pressa) e informalidade (atecnicalidade). Isso fere o princpio da igualdade material, pois d tratamento
desigual aos desiguais no apenas pelos seus aspectos tericos ou prticos,
mas principalmente pelos aspectos econmicos.

3. Os fantasmas dos Juizados Especiais


3.1. A opcionalidade do procedimento
Quando da entrada em vigor da Lei n 9.099/95, a primeira reao da
doutrina foi defender a obrigatoriedade do procedimento especial, quando
a causa estivesse enquadrada no conceito legal de menor complexidade.4
Isto porque o novo Diploma no reproduziu a regra contida no art. 1 da Lei
dos Juizados de Pequenas Causas (Lei n 7.244/84), que dizia expressamen-

Esta afirmao tem que ser feita com uma srie de cautelas, dadas as peculiaridades dos sistemas judiciais estrangeiros. Existem pases, como a China, onde alguns rgos judiciais podem ter seus nomes traduzidos como juizados ou pequenas cortes, apesar de representarem estruturas mais similares s varas
judiciais brasileiras.
Horcio Wanderlei Rodrigues, Lei n 9.099/95: A Obrigatoriedade da Competncia e do Rito, e J. S.
Fagundes Cunha, A Competncia Absoluta e a Ausncia do Limite do Valor da Causa nos Juizados
Especiais Cveis.

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te que o ingresso nos Juizados era uma faculdade do autor.5 Outros autores
assinalavam ainda que a obrigatoriedade dos Juizados decorreria da natureza da Lei n 9.099/95, que teria criado um novo componente dentro da
Justia Ordinria.6 Alguns autores, por seu turno, sustentaram posio
intermediria, segundo a qual a obrigatoriedade se limitaria s competncias ratione materiae do art. 3 da Lei (incisos II e III), por serem absolutas,
no ocorrendo o mesmo em relao s competncias ratione valoris do
mesmo dispositivo (incisos I e IV). Estas posies, entretanto, foram se
retraindo e perdendo espao para a corrente de pensamento que defendia a
faculdade do titular do direito material em ajuizar a demanda perante os
Juizados Especiais.
Atualmente, doutrina7 e jurisprudncia8 dominantes so no sentido de
que o ajuizamento da demanda nos Juizados Especiais uma opo do
autor. Os que ainda hoje refutam a possibilidade de escolha pelo ingresso
nos Juizados Especiais, aduzem, em geral, no ser possvel s partes escolherem o juzo em que vo demandar e que as normas sobre procedimentos
especiais so de ordem pblica.
Na verdade, o que est na esfera de disponibilidade das partes no a
competncia judicial, mas o procedimento mais adequado s suas pretenses. perfeitamente possvel conferir s partes esta escolha, pois ela decorre do reconhecimento de que o sistema da Lei n 9.099/95 restringe de

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Dizia o art. 1 da Lei n 7.244/84: Os Juizados Especiais de Pequenas Causas, rgos da Justia ordinria, podero ser criados nos Estados, no Distrito Federal e nos Territrios, para processo e julgamento,
por opo do autor, das causas de reduzido valor econmico. Neste sentido, veja-se Mais refora,
ainda, o argumento da obrigatoriedade funcional, o fato de ter constado do art. 1o da revogada Lei no
7.244/84, que aqueles Juizados Especiais de Pequenas Causas seriam adotados por opo do autor, das
causas de reduzido valor econmico, o que no ocorre, sob pena de se infringir dispositivos constitucionais. Intuitivo, portanto, tenha a nova lei (Lei 9.099/95) omitido a inconstitucionalidade anterior da
facultatividade, o que faz prevalecer a regra da obrigatoriedade, atendendo o fim supremo que dela
emerge e que se ajusta aos princpios da Lei Maior (TJSP Ap. Sumria 814.776/4-SP Rel. Juiz
Antnio de Pdua F. Nogueira, j. em 28/1/1999).
Assim, Theotnio Negro, Cdigo de Processo Civil e Legislao Complementar, p. 990, Weber Martins
Batista e Luiz Fux, Juizados Especiais Cveis e Criminais e Suspenso Condicional do Processo Penal, p.
103, e Lus Felipe Salomo, Roteiro dos Juizados Especiais Cveis, p. 36.
Nesta corrente, dentre outros, temos Humberto Theodoro Jnior, Curso de Direito Processual Civil,
vol. III, p. 470, Alexandre Freitas Cmara, Juizados Especiais Cveis Estaduais e Federais: Uma
Abordagem Crtica, p. 27, e Joo Carlos Pestana de Aguiar, Juizados Especiais Cveis e Criminais: Teoria
e Prtica, p. 37.
Neste sentido, veja-se o Enunciado 1 do FONAJE O exerccio do direito de ao no Juizado Especial
Cvel facultativo para o autor.

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forma marcante garantias fundamentais, tais como, a imposio da produo de todas as provas em audincia, ainda que no requeridas previamente, a limitao ao nmero de testemunhas, a percia tcnica informal, o
curto perodo em que se desenrolam as etapas, a impossibilidade de ao
rescisria, dentre outras.9 Assim, o demandante, ciente destas regras, abre
mo da segurana jurdica em nome de outros benefcios, tais como a celeridade, a iseno de custas, a concentrao dos atos etc.10
preciso lembrar, ainda, que existe nos Juizados um procedimento
para a execuo dos ttulos extrajudiciais no valor de at 40 salrios mnimos (arts. 3, 1, II, e 53) e, at o presente momento, no se tem notcia
de qualquer autor ou deciso que tenha sustentado a sua obrigatoriedade.
Nenhuma vara cvel logrou extinguir um procedimento executivo fundado
em ttulo extrajudicial at 40 salrios mnimos, por ser ele cabvel, em tese,
nos Juizados Especiais. Isso ressalta a incoerncia dos defensores da tese da
obrigatoriedade, pois, se houvesse obrigatoriedade, ela ali tambm teria que
ser aplicada.11
Outro aspecto a se destacar que, conforme a prtica forense j
demonstrou, existem casos em que a escolha pelos Juizados Especiais pode
representar uma maior demora na prestao jurisdicional. o que ocorre,
por exemplo, quando se pretende ajuizar uma demanda em face de uma
pessoa que , notria e sabidamente, especialista em fugir das citaes que

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Neste sentido, veja-se Os Juizados Especiais Cveis se colocam como uma via alternativa posta disposio do autor para deduzir seu pedido, forma de facilitar o acesso Justia. A facultatividade quanto
ao uso do regime institudo pela Lei, instituidora dos Juizados Especiais Cveis, decorre da previso contida no prprio diploma, quando alude que a opo por ele implicar renncia ao crdito excedente ao
limite previsto (Lei n 9.099/95, art. 3, 3). Ademais, a faculdade de opo quanto ao autor poder
optar por regime diverso daquele normalmente previsto para a hiptese da essncia do direito processual civil brasileiro (CPC, art. 292, 2). Proposta a demanda perante o Juzo Comum, exercendo o
autor a faculdade de escolha do regime processual, no era dado ao juiz declinar da competncia em
favor do Juizado Especial Cvel, tendo-o por competente em razo da a pretenso envolver valor inferior a quarenta vezes o salrio mnimo (TJRS Conflito de Competncia 21384-3-PA Rel. Des.
Moacir Adiers, j. em 05/12/1996).
Note-se, ainda, que no direito comparado os Juizados Especiais, via de regra, so colocados como uma
opo para o autor.
A nica hiptese em que corretamente no h opcionalidade no caso do inciso I do 1 do art. 3, que
trata da competncia para executar as decises proferidas pelos Juizados. Neste caso, a competncia
absoluta e improrrogvel (competncia funcional). Assim, competentes para executar as sentenas dos
Juizados Especiais so os prprios Juizados Especiais, no apenas porque o autor j fez a sua opo quando escolheu o procedimento da Lei n 9.099/95 para deflagrar a fase cognitiva, mas tambm pelas caractersticas especiais que estas sentenas possuem (art. 38 e 52).

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lhe so feitas. Desta forma, no sendo possvel a citao editalcia do ru


(art. 18, 2), o procedimento poder ser encerrado, sem resoluo do
mrito (art. 51, caput, c/c art. 267, IV, CPC), e ser necessrio ajuizar uma
nova demanda perante o juzo ordinrio.12 No h a menor dvida que o
procedimento dos Juizados Especiais mais clere do que o procedimento
tradicional, mas isto no significa que ele detenha o monoplio da efetividade. No exemplo apresentado, o procedimento mais efetivo (mais apto a
materializar a tutela jurisdicional) o realizado perante o juzo ordinrio.
No obstante, foroso reconhecer que novamente tem crescido nos
meios jurdicos a corrente de pensamento que defende a obrigatoriedade
dos Juizados Especiais. Alm dos argumentos j apresentados, esta linha de
pensamento impulsionada, sobretudo, pela regra introduzida pela Lei dos
Juizados Especiais Federais, que diz que onde houver Juizado instalado no
haver opo (art. 3, 3, da Lei n 10.259/01).13 A origem de tal determinao foi a idia, concebida durante a elaborao do anteprojeto de lei que
instituiu os Juizados Especiais Federais, de que o novo sistema era mais
benfico para o demandante que o tradicional e que a opcionalidade poderia comprometer seu pleno desenvolvimento.14
Registre-se, ainda, que existem no Congresso Nacional diversos projetos de lei estabelecendo a obrigatoriedade dos Juizados Especiais Estaduais.
So pelo menos doze propostas, sendo que a mais antiga delas o Projeto
de Lei da Cmara n 3.947/97.
Por isso, importante reafirmar: a) a norma que determina a obrigatoriedade dos Juizados Especiais Federais inconstitucional, assim como seria se
norma idntica fosse includa nos Juizados Especiais Estaduais; b) ao contrrio
do que ocorre nos Juizados Especiais Federais (onde a Unio r em todos os

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Neste sentido, veja-se: A Lei 9.099/95 assegura ao autor o direito de escolha pelo Juizado Especial.
Concluso, ademais, recomendada pelo fato de encontrar-se o ru em lugar incerto e no sabido, pois
no se permite a citao por edital no Juizado Especial, a teor do art. 18, 2, da Lei 9.099/95 (2
TACSP Ap. Cvel 471699 Rel. Juiz Paulo Hungria, j. em 11/12/96).
Diz o 3 do art. 3 da Lei n 10.259/01: No foro onde estiver instalada Vara do Juizado Especial, a sua
competncia absoluta.
Exposio de motivos do projeto de lei que institui os Juizados Especiais Cveis e Criminais no mbito
da Justia Federal, elaborado no seio do Superior Tribunal de Justia, foi publicada no Dirio da Justia
da Unio de 12 de janeiro de 2001, p. 221.

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processos), nos Juizados Especiais Estaduais o litgio envolve, basicamente,


interesses privados, o que tornaria ainda mais irrazovel a sua imposio.
Com efeito, o ideal seria que a Lei n 9.099/95 tivesse uma previso no
seu artigo primeiro, semelhante outrora existente na Lei dos Juizados de
Pequenas Causas, asseverando expressamente que a propositura da demanda naquele juzo uma opo do autor.

3.2. A reformulao estrutural da fase de conhecimento do


procedimento da Lei n 9.099/95
Pode parecer difcil de acreditar, mas de acordo com a Lei n 9.099/95,
toda fase cognitiva do procedimento dos Juizados Especiais, da propositura
da demanda at a prolao da sentena, deveria se encerrar em menos de 15
dias. De fato, estabelece o Diploma que a audincia de conciliao deve ser
marcada nos 15 dias subseqentes propositura da demanda (art. 16). Aps
esta audincia, se no for possvel a composio dos interesses, deve ser realizada imediatamente a audincia de instruo e julgamento (art. 27), onde
o juiz tem o dever de proferir a sentena (art. 28).
No plano prtico, entretanto, a observao das determinaes legais
muito difcil. Em primeiro lugar, at recomendvel que as audincias de
conciliao sejam marcadas para alm dos 15 dias previstos no art. 16, caso
contrrio, corre-se o risco do no se lograr citar o ru num espao to curto
de tempo, obrigando a remarcao do ato. Sublinhe-se, ainda, que ao ru
garantido o prazo de 5 dias antes da audincia para arrolar suas testemunhas,
quando quiser que elas sejam intimadas (art. 34, 1). Ademais, a orientao
jurisprudencial tem sido no sentido de que o demandado tem direito a ser
citado com pelo menos 10 dias de antecedncia em relao data de realizao da audincia conciliatria, por aplicao analgica ao art. 277 do CPC.15

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Neste sentido, Eduardo Oberg, Os Juizados Especiais Cveis: Enfrentamentos e a sua Real Efetividade
com a Construo da Cidadania, in: Revista da EMERJ, vol. VII, n 25, 2004, p. 182. Na jurisprudncia,
veja-se a Ementa 222 do ETRJECERJ Audincia. Intimao. Cerceamento de defesa. Necessidade de
que se faa a intimao com antecedncia mnima de 10 dias, para que se possibilite parte r comparecimento produzindo ampla defesa, inclusive com a presena de testemunha. Aplicao analgica do
art. 277 do CPC. Art. 34 da Lei n 9099/95. Recurso provido e Cerceamento de defesa. Prazo mnimo

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Da mesma forma, a previso de que todas as audincias de conciliao,


que no obtenham um acordo entre as partes, sejam convoladas em audincias de instruo e julgamento, no dia-a-dia forense, capaz de inviabilizar
a pauta de julgamentos. Isso porque o juiz nunca vai poder saber ao certo
quantas audincias de instruo e julgamento ter que realizar. Imagine-se
um juiz que marca 10 audincias de conciliao para um mesmo dia. Se em
todas houver acordos, ele passar o dia sem realizar uma nica AIJ; se, ao
revs, em todas elas no houver acordo, ele ter que realizar 10 audincias.
No obstante, mesmo que o juiz limite o nmero de AIJ a serem realizadas
por dias, ele tambm no ter como precisar quanto tempo cada audincia
ir tomar para ser realizada, pois no sabe quais provas sero produzidas, j
que a Lei dispensa o seu requerimento (art. 33).
Por fim, dada a enorme concentrao de atos em audincia, pode tornar-se invivel a prolao imediata da sentena, especialmente diante de
uma pauta sobrecarregada. Assim, os juzes tm preferido por marcar data
para a leitura de sentena, na prpria AIJ, tornando desnecessria nova intimao.16 Por certo, trata-se de um desvirtuamento da Lei n 9.099/95,17 que
ressuscita antiga norma do pargrafo nico do art. 271 do CPC de 1939, que
previa a realizao de uma audincia de publicao da sentena quando o
magistrado no se sentisse apto a julgar no final da AIJ.18 Na verso atual,
entretanto, no haver uma audincia para publicar a sentena, mas apenas
a liberao dos autos, na prpria secretaria do Juizado, para que as partes
possam realizar a sua leitura.

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entre a data da citao e a audincia. Aplicvel o artigo 277, do CPC aos processos dos Juizados Especiais
Cveis, devendo ser observado o prazo mnimo de 10 (dez) dias. Nulidade da sentena. Provimento do
recurso (TJRJ Turmas Recursais Cveis Ap. 1999.700.005656-4, Rel. Mrio dos Santos Paulo).
Neste sentido, Eduardo Oberg, op. cit., p. 186. Na jurisprudncia, veja-se o Enunciado 10.4.1 da
Consolidao dos Enunciados Jurdicos Cveis e Administrativos em Vigor Resultantes das Discusses
dos Encontros de Juzes de Juizados Especiais Cveis e Turmas Recursais do Estado do Rio de Janeiro
CEJCA O Juiz que realizar a Audincia de Instruo e Julgamento e no proferir sentena de imediato,
dever fixar na assentada, a data da leitura de sentena, o Enunciado 95 do Encontro Nacional de
Coordenadores de Juizados Especiais do Brasil FONAJE Finda a audincia de instruo, conduzida por
Juiz Leigo, dever ser apresentada a proposta de sentena ao Juiz Togado em at dez dias, intimadas as
partes no prprio termo da audincia para a data da leitura da sentena e a Proposio 11 do 2 Encontro
de Juzes de Juizados Especiais Cveis da Capital e da Grande So Paulo EJJEEP Quando o Juiz no
prolatar a sentena na audincia dever designar dia e hora para leitura e publicao da mesma.
Por todos, Humberto Theodoro Jnior, Curso, vol. III, p. 483.
Pargrafo nico do art. 271 do CPC de 1939: Se no se julgar habilitado a decidir a causa, designar,
desde logo, outra audincia, que se realizar dentro de dez (10) dias, afim de publicar a sentena.

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Por estes motivos, o procedimento que, no plano ideal, foi concebido


para ser realizado num nico momento, na prtica, foi distendido e passou
a ser pontuado por trs momentos diferentes: a audincia de conciliao, a
AIJ e a leitura (intimao) da sentena. Tal situao tem feito com que o
tempo de durao do processo nos Juizados seja igual ou maior que as causas similares propostas no juzo ordinrio.
Para tentar minimizar os efeitos da distoro procedimental, algumas
alteraes legislativas poderiam ser tomadas em relao Lei n 9.099/95.
Em primeiro lugar, o art. 16 deveria ser modificado, para suprimir a referencia ao prazo de 15 dias para realizao da audincia conciliatria e
incluir a previso de que o ru seja citado com antecedncia mnima de 10
dias da sesso de conciliao, na qual dever obrigatoriamente apresentar
sua resposta, sob pena de revelia.
Em segundo lugar, deveria ser feita uma incluso no art. 24, para prever a possibilidade de realizao de uma espcie de audincia preliminar,
sob a presidncia do juiz leigo.19 Assim, ao trmino da audincia de conciliao frustrada, seria realizada uma segunda audincia com as partes, voltada exclusivamente para receber a resposta do ru, fixar os pontos controvertidos e definir quais as provas que devero ser produzidas na audincia
de instruo e julgamento, que se no puder ser realizada imediatamente
dever ser designada no prazo mximo de 30 dias. Na audincia preliminar,
a par de nova tentativa de conciliao, o juiz leigo poderia orientar as partes sobre os riscos e conseqncias do litgio (art. 21), bem como a convenincia de buscar uma assistncia tcnica (art. 9, 2). Alm disso, poderia orientar a parte desassistida de advogado sobre as provas que lhe caberiam produzir, a possibilidade de obteno de tutelas de urgncia, a tramitao do procedimento etc. Por fim, o juiz leigo poderia fazer um relatrio
sobre a causa e sobre os fatos ocorridos nas audincias, indicando os pontos
controvertidos a serem apreciados, as provas que deveriam ser produzidas
(inclusive a percia informal), a possibilidade de convolao imediata em
AIJ, dentre outras medidas. Este relatrio poderia integrar a sentena, faci-

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Como ser exposto mais adiante (item 3.8), a atuao judicante dos juzes leigos, aos moldes do que estabelecem os arts. 37 e 40 da Lei n 9.099/95, inconstitucional.

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litando a sua prolao em audincia. Destarte, a audincia preliminar, aproveitando a presena das partes no Juizado para a conciliao, serviria como
um sistema de filtragem e preparao para o julgamento da causa.
Em terceiro lugar, deveriam ser abolidas as regras sobre a arbitragem nos
Juizados Especiais (arts. 24 a 26). Como j se sabe, a arbitragem deve ser feita
fora da esfera judicial, nos termos da Lei n 9.307/96 (Lei de Arbitragem), ou,
dentro do Poder Judicirio, atravs de rgos especializados para tanto. A
previso atual inadequada e ineficiente, como eram dos dispositivos que tratavam da arbitragem no CPC (art. 1.072 a 1.102). No por acaso, at a presente data no se tem notcia de uma nica arbitragem que tenha sido realizada
nos Juizados Especiais, seguindo os ditames da Lei n 9.099/95.
Em suma, o art. 28 deveria estabelecer que o juiz togado somente
poderia marcar data para a leitura de sentena em casos excepcionais ou
quando a AIJ tenha sido fruto de uma convolao da audincia conciliatria. Com efeito, no lgico, aps a sesso de conciliao e a citada audincia preliminar, marcar data para a realizao da AIJ e no proferir sentena naquele momento. Importante tambm que a nova redao do mencionado artigo determinasse a necessidade de constar o relatrio nas sentenas proferidas fora de audincia, excepcionando a regra contida na parte
final do art. 38.

3.3. A necessidade de utilizao do agravo de instrumento


Ao contrrio do que se difundiu nos meios jurdicos, no existe na Lei
n 9.099/95 qualquer regra proibindo expressamente a utilizao de recurso em face das decises interlocutrias proferidas no primeiro grau. Na verdade, o entendimento de que o agravo20 no cabvel nos Juizados Especiais tem, basicamente, dois fundamentos: de um lado, a taxatividade do sis-

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Importante esclarecer que a palavra agravo pode ser identificada com trs espcies diferentes de recursos na esfera cvel: o recurso contra as decises interlocutrias proferidas no primeiro grau (arts. 522 a
529 do CPC), o recurso contra a deciso que inadmite os recursos excepcionais (art. 544 do CPC) e o
recurso contra a deciso monocrtica (por exemplo, art. 557, 1, do CPC). No texto, nos limitamos a
tratar da primeira espcie de recurso, sem certo que as duas outras vm sendo admitidas na maioria dos
Juizados Especiais do Pas, como se pode vislumbrar do Enunciado 15 do FONAJE Nos Juizados
Especiais no cabvel o recurso de agravo, exceto nas hipteses dos artigos 544 e 557 do CPC.

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tema recursal, que seria composto somente pelo recurso inominado (art. 41)
e pelos embargos de declarao (arts. 48 a 50)21 e, de outro, a adoo do
princpio da oralidade (art. 2), que pressupe a irrecorribilidade das decises interlocutrias.22 Dentro desta orientao, sem um recurso para atacar
as decises interlocutrias em separado, as decises proferidas ao longo do
processo no sofrem os efeitos da precluso23 e, uma vez proferida sentena, passam a ser impugnveis pelo recurso inominado.
A questo, entretanto, tem gerado muitas controvrsias, pois, como se
sabe, existem decises interlocutrias que inegavelmente causam graves e
imediatos danos s partes, que o recurso inominado no capaz de sanar. O
problema se avolumou na mesma proporo em que a demanda pelos servios judicirios cresceu, fazendo com que os processos tivessem uma tramitao muito mais longa.
Destarte, a maioria absoluta da doutrina e jurisprudncia sempre sustentou que em face das decises interlocutrias proferidas nos Juizados
Especiais caberia o mandado de segurana,24 quando presentes os requisitos

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Advogando a tese da taxatividade dos recursos cabveis nos Juizados Especiais, por todos, veja-se Lus
Felipe Salomo, op. cit., p. 40. Da jurisprudncia prevalente, pode-se destacar o seguinte aresto:
Juizados Especiais Cveis. Agravo de instrumento. Inadmissibilidade. Recurso que no se conhece por
falta de previso na Lei n 9099/95, inadmissvel a aplicao subsidiria do Cdigo de Processo Civil,
em matria recursal. Rejeio liminar (TJRJ, 1 Turma Recursal Cvel, AI 2001.700.000360-3, Rel. Ana
Maria Pereira de Oliveira).
Na doutrina, identificando a oralidade com a irrecorribilidade das decises interlocutrias, tem-se Jos
Manoel de Arruda Alvim Netto, Curso de Direito Processual Civil, vol. I, p. 27, Nelson Nery Jnior,
Princpios Fundamentais: Teoria Geral dos Recursos, p. 150, e Cndido Rangel Dinamarco, Instituies
de Direito Processual Civil Moderno, v. III, p. 811.
Sobre a questo, confira-se Frente ao sistema da Lei no 9.099/95, no h precluso da matria processual dirimida no curso do procedimento, sendo as decises interlocutrias irrecorrveis, devendo, em
qualquer caso, serem reexaminadas pela via do recurso prprio ali previsto, em face da adoo plena do
princpio da oralidade (TJSC AI 320-7 Guarami, Rel. Des. Pedro Manoel de Abreu, pub. no DJ de
03/06/96).
Com este pensamento, Lus Felipe Salomo, op. cit., p. 75, Mantovanni Colares Cavalcante, Recursos
nos Juizados Especiais, p. 59, Eduardo Oberg, op. cit., p. 184. Na jurisprudncia, merecem destaque a
Ementa 71 do Encontro de Juzes de Juizados Especiais Cveis e de Turmas Recursais do Estado do Rio
de Janeiro ETRJECERJ Mandado de segurana contra deciso concessiva de liminar. Possibilidade
diante da falta de recurso contra decises interlocutrias na Lei 9.099/95. Interpretao a contrrio
senso da smula 267 do STF. Segurana concedida para anular a deciso atacada. Inviabilidade de concesso de liminar no rito da Lei no 9.099/95 por falta de previso legal expressa a permiti-lo, a Ementa
80 do ETRJECERJ Mandado de Segurana contra ato judicial, que limitou a multa, por atraso na execuo do julgado, a 20 salrios mnimos. Provimento, bem como o Enunciado 14.1.1 da CEJCA
admissvel mandado de segurana somente contra ato ilegal e abusivo praticado por Juiz de Juizado
Especial.

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legais.25 A razo a prpria Lei do Mandado de Segurana (Lei n 1.533/51),


que, em seu art. 5, II, dispe que no caber mandado de segurana de
despacho ou deciso judicial, quando haja recurso previsto nas leis processuais ou possa ser modificado por via de correio.26 Ento, a contrrio
senso, a concluso que se chega que em face de ato judicial desprovido de
meio impugnativo prprio possvel a utilizao do mandado de segurana. Ademais, no se poderia mitigar o alcance do writ of mandamus, dado
o status constitucional que esse procedimento desfruta em no ordenamento jurdico brasileiro (art. 5, LXIX, da CF).
Ocorre que, com o passar dos anos, foi possvel perceber a existncia
de decises interlocutrias que no devem ficar sem um controle recursal
prprio, principalmente no que toca sua justia (error in iudicando).
Nestes casos, o mandado de segurana no o meio apropriado para atender a pretenso revisional do interessado. Por outro lado, muito pouco eficaz e coerente com o sistema recursal do CPC (art. 522) a corrente de pensamento que defende a utilizao do agravo retido.27 Assim, a nica modalidade de recurso que se apresenta adequada para remediar o problema o
agravo na sua forma instrumental.28
Com efeito, pode-se identificar cinco situaes onde o manejo do agravo de instrumento seria necessrio nos Juizados Especiais: nas decises
sobre medidas liminares (tutelas de urgncia antecipatria, inibitria e cautelar); nas decises que comprometem o andamento do processo, proferidas
fora da audincia de instruo e julgamento; na deciso que deixa de receber o recurso inominado; na deciso sobre os efeitos atribudos ao recurso
inominado; nas decises proferidas ao longo da fase executiva.29 Nestas

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Neste sentido, veja-se o Enunciado 14.1.1 da CEJCA admissvel mandado de segurana somente contra ato ilegal e abusivo praticado por Juiz de Juizado Especial e o Enunciado 14.1.3 da CEJCA No
havendo direito liquido e certo afervel de plano na inicial do Mandado de Segurana, dever o mesmo
ser apresentado para julgamento em mesa, indeferindo-se a inicial na forma do art. 8, da Lei 1.533/51.
Referendando o dispositivo legal, temos a Smula 267 do STF: No cabe mandado de segurana contra ato judicial passvel de recurso ou correio.
Neste sentido, afirmam Weber Martins Batista e Luiz Fux, op. cit., p. 238 e Dinamarco, Instituies,
vol. III, p. 811.
Frise-se que o agravo de instrumento j vem sendo admitido em alguns Juizados, como em So Paulo,
e nos Juizados Federais, por conta da regra contida no art. 5 da Lei n 10.259/09.
Se uma das razes para inadmitir o agravo a oralidade, preciso reconhecer que a fase executiva nos
Juizados Especiais basicamente formal e escrita, galgada que no sistema executivo do CPC.

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hipteses, o agravo de instrumento poderia ser utilizado sem abalar a estrutura principiolgica do procedimento, substituindo no apenas o mandado
de segurana, mas tambm, no caso da deciso que julga os embargos execuo, o prprio recurso inominado.30
Sublinhe-se que o agravo teria que ter um cabimento restrito s situaes acima apontadas,31 submetido ao procedimento previsto no CPC, sempre firmado por advogado e dirigido s Turmas Recursais.32 As demais
situaes observadas ao longo do procedimento, entretanto, permaneceriam sujeitas ao mandado de segurana, tal qual ocorre no juzo singular.
Assim, por exemplo, se o juiz no permite a vista dos autos pelo advogado,
pode ser impetrado o writ of mandamus para sanar a ilegalidade.
Necessrio ressaltar que, alm da importncia terica dar efetividade
tutela jurisdicional pungida pelo risco de leso ao direito deduzido em
juzo o agravo cumpriria, ainda, um papel prtico muito importante: controlar a atividade judicial. Com efeito, a falta de um recurso contra as decises interlocutrias tem gerado significativa insegurana jurdica para os
Juizados Especiais, que a utilizao do mandado de segurana no tem sido
capaz de elidir.
Neste sentido, poderia ser includo um novo artigo na Lei n 9.099/95, logo
aps as regras que tratam do recurso inominado (preferencialmente, como o
art. 43-A), prevendo expressamente a utilizao do agravo de instrumento, suas
hipteses de cabimento e seu procedimento perante a Turma Recursal.
Por certo, como bem assinalam os crticos da proposta, a introduo do
agravo no sistema recursal dos Juizados Especiais trar um aumento de tra-

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32

No sistema dos Juizados Especiais inegvel reconhecer que os embargos execuo tm natureza de
instrumento de impugnao, incidental ao processo executrio. Sobre o tema, veja-se o item 3.15 deste
texto.
Pela sistemtica atual do CPC, o agravo de instrumento s cabvel quando a deciso for suscetvel de
causar parte leso grave e de difcil reparao, nos casos de inadmisso da apelao, nos relativos aos
efeitos em que a apelao recebida (art. 522), no julgamento da liquidao de sentena (art. 475-H) e
no julgamento da impugnao execuo (art. 475-M, 3). A lista apresentada, portanto, nada mais
do que uma adaptao das hipteses de cabimento do agravo de instrumento no CPC, excluda quela
relativa liquidao de sentena, por no ser compatvel com o regime especial da Lei n 9.099/95 (art.
38, pargrafo nico)
Dentre os autores que defendem a aplicao do agravo de instrumento nos Juizados, com base no CPC,
somente Pestana de Aguiar, op. cit., p. 38, o dirige ao Tribunal de Justia.

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balho para as Turmas Recursais, alm de efetivamente contribuir para o


retardo na concluso dos processos em algumas hipteses. Alm disso, a
tendncia legislativa observada nos ltimos anos , indubitavelmente, no
sentindo de restringir as hipteses de cabimento de recursos e no amplilas. Entretanto, parece claro que, no contexto atual, onde os Juizados cresceram enormemente e perderam muitas de suas caractersticas originais, os
ganhos promovidos pela introduo do agravo no sistema superam em
muito os prejuzos que eventualmente venham a ocorrer.

3.4. A competncia para julgar o mandado de segurana contra


atos dos juzes dos Juizados Especiais
Como dito, tem sido amplamente aceito a utilizao do mandado de
segurana contra decises interlocutrias proferidas no primeiro grau dos
Juizados Especiais. O problema que o entendimento prevalente em todo
o Brasil que este mandado de segurana deve ser impetrado perante a
Turma Recursal correspondente.33 O prprio STJ, aderindo a este entendimento, editou recentemente a Smula 376, que diz que compete turma
recursal processar e julgar o mandado de segurana contra ato de juizado
especial.34 No entanto, apesar da prevalncia, tal entendimento merece
veemente censura, porque:

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No Rio de Janeiro esse o entendimento prevalente. A Resoluo n 02/98 do Tribunal de Justia do


Rio de Janeiro alterou o regimento interno para estabelecer que as Cmaras Cveis no tm competncia para julgar mandado de segurana impetrado contra ato de juiz dos Juizados Especiais (art. 6, a).
Por outro lado, a Resoluo n 07/06, do Conselho da Magistratura, estabelece que Art. 1 Haver, na
Comarca da Capital, seis Turmas Recursais, quatro Cveis e duas Criminais, com competncia para julgamento de Mandados de Segurana, Habeas-Corpus e recursos das decises proferidas pelos Juizados
Especiais de todas as Comarcas do Estado do Rio de Janeiro, bem como de outras aes e recursos a que
a lei lhes atribuir a competncia. Na doutrina, confira-se Luiz Felipe Salomo, op. cit., p. 75, Pestana
de Aguiar, op. cit., p. 39, Athos Gusmo Carneiro, Os Recursos nos Juizados Especiais Cveis, in
Aspectos Polmicos e Atuais dos Recursos Cveis de Acordo com a Lei n 9.756/98, p. 103. Na jurisprudncia, veja-se o Enunciado 62 do FONAJE Cabe exclusivamente s Turmas Recursais conhecer e julgar o mandado de segurana e o habeas corpus impetrados em face de atos judiciais oriundos dos
Juizados Especiais.
Apesar do predomnio da citada orientao, possvel identificar decises isoladas no STJ e no STF
refutando tal entendimento. Neste sentido, veja-se luz do art. 101, da Lei Complementar no 35/79,
o mandado de segurana contra juiz de direito deve ser processado e julgado por rgo composto por
duas ou mais turmas ou cmaras isoladas. Nulidade do acrdo decretada de ofcio (STJ 2 Turma,
RMS 5.581-GO, Rel. Min. Adhemar Maciel, j. em 05.02.98) e os integrantes dos Juizados Especiais esto

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a) a Lei Orgnica Nacional da Magistratura (Lei Complementar


n 35/79), em seu art. 101, 3, d, estabelece que o mandado de segurana contra ato de Juiz de Direito deve ser julgado nos Tribunais de Justia, dentre outras razes, em observncia ao princpio da hierarquia;
b) as Turmas Recursais no tm competncias originrias,
podendo somente julgar recursos;35
c) o mandado de segurana tem rito especial, incompatvel
com o procedimento previsto na Lei n 9.099/95;
d) o mandado de segurana ajuizado em face de ente pblico,
o que incompatvel com regra contida no art. 3, 2, da
Lei n 9.099/95;
e) o mandado de segurana, contra ato judicial, sempre uma
causa de maior complexidade, que no pode tramitar nos
Juizados Especiais, sob pena de violao da Constituio
Federal (art. 98, I) e da prpria Lei n 9.099/95 (art. 3).
Assim, afigura-se como mais adequado que o mandado de segurana
contra ato de Juiz dos Juizados Especiais seja dirigido para o tribunal correspondente (Tribunal de Justia, Distrital ou Regional Federal).36 De fato, so
estes tribunais que, em ltima anlise, devem fazer o controle dos atos de
seus juzes de primeira instncia. Tal controle no deve ser alado esfera

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sujeitos aos Tribunais de Justia, nos crimes comuns e de responsabilidade, conforme prev a Constituio Federal no inc. III do art. 96. A deciso tambm tem por base o art. 21, VI, da Lei Complementar
35/79 Lei Orgnica da Magistratura Nacional. O dispositivo prev que compete originariamente aos
tribunais julgar os Mandados de Segurana contra seus atos, os dos respectivos presidentes e os de suas
Cmaras, Turmas ou Sees (STF Pleno MS 24.318 Min. Rel. Marco Aurlio, j. em 02/08/2002).
Neste sentido, Mantovanni Colares Cavalcante, op. cit., p. 91: No vejo como possa a Turma Recursal
ter competncia para julgar mandado de segurana impetrado contra ato do juiz do juizado especial.
Primeiro, porque a lei s previu para anlise pela Turma Recursal o recurso cvel, a apelao criminal
e os embargos de declarao (...) Em segundo lugar, atente-se para o fato de que os membros das Turmas
Recursais so, tal qual os juzes dos juizados especiais, magistrados de primeiro grau. Assim, como admitir que uma autoridade (membro da Turma Recursal) tenha competncia para rever ato de outra (juiz
do juizado especial do mesmo grau? (...) Ora, sabe-se que, sendo o ato judicial originado de um juiz de
primeiro grau, a competncia para julgamento do mandado de segurana contra si atacado do
Tribunal ao qual est vinculado o juiz.
Neste sentido, Alexandre Cmara, op. cit., p. 165.

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superior (STJ ou STF), nem deve ficar confinado dentro de uma estrutura de
primeira instncia (Turmas Recursais), que no foi concebida para esse fim.

3.5. A competncia para julgar mandado de segurana contra atos


das Turmas Recursais
A competncia para o julgamento do mandado de segurana contra ato
da Turma Recursal uma questo bastante controvertida, que comporta, no
mnimo, quatro orientaes diferentes. A primeira corrente, que apresenta
o maior nmero de adeptos, defende que um grupo de juzes formado a partir das prprias Turmas Recursais deva julgar este remdio constitucional.37
A segunda corrente afirma que das decises das Turmas Recursais cabe
mandado de segurana para o respectivo tribunal. Como j dito, este posicionamento parece ser o mais correto do ponto de vista tcnico.38 O recomendvel seria, inclusive, que o mandado de segurana contra ato de juiz
fosse da competncia das Cmaras Cveis e, contra atos da Turma Recursal,
do rgo Especial, em observncia ao princpio da hierarquia.
A terceira corrente propugna pelo envio do mandado de segurana ao
Superior Tribunal de Justia, que, nesse caso, faria as vezes de tribunal revisor e uniformizador das decises proferidas pelas Turmas Recursais.39 O
prprio STJ, entretanto, j deixou assente que no lhe toca tal competncia
por falta de previso legal, uma vez que a Turma Recursal no pode ser
equipara a um tribunal. Sobre este tema, importante esclarecer que o STJ
somente tem aceito julgar mandados de segurana contra atos das Turmas
Recursais quando o tema a ser decidido seja a prpria competncia daquele rgo para apreciar a causa.40

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No Rio de Janeiro, a competncia para julgar o mandado de segurana impetrado em face de ato praticado pelas Turmas Recursais de um grupo dos 5 juzes mais antigos das duas Turmas subseqentes
Turma impetrada (art. 19 da Resoluo n 07/06, do Conselho da Magistratura).
Veja-se, sobre a questo relativa competncia para julgamento do mandado de segurana, os comentrios ao item 3.4 deste texto.
Nesse sentido, veja-se: O STJ competente para dirimir conflito de competncia suscitado entre juzo
de Turma Recursal e o Tribunal local (de Justia ou de Alada), em razo de no haver vinculao jurisdicional entre esses, a despeito da inegvel hierarquia administrativo-funcional (STJ CC 38.513/MG,
Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 13/8/2003).
Nesse sentido, veja-se: Processo civil. Recurso em Mandado de Segurana. Mandamus impetrado, perante Tribunal de Justia, visando promover controle de competncia de deciso proferida por Juizado

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A quarta e ltima corrente sustenta que o mandado de segurana contra ato das Turmas Recursais deve ser julgado pelo Supremo Tribunal
Federal, a quem j cabe julgar o recurso extraordinrio contra estas decises. Na realidade, da mesma forma que no caso da terceira corrente, carece a proposio de um suporte legal. No obstante, o STF vem reiteradamente admitindo a sua competncia para julgar habeas corpus contra ato
das Turmas Recursais Criminais.41 Assim, sabendo-se que o mandado de
segurana e o habeas corpus so aes da mesma natureza, seria lgico
deduzir que ambos devessem ser julgados no mesmo tribunal. O Excelso
Pretrio, entretanto, tem inmeras decises afirmando no ser competente para julgar o mandado de segurana contra atos das Turmas Recursais.42

3.6. Teoria dualista: a possibilidade de tramitao de causas com


valor acima de 40 salrios mnimos
Quando a Lei n 9.099/95 entrou em vigor, surgiu uma grande discusso nos meios jurdicos: seriam estes os novos Juizados Especiais ou os
conhecidos Juizados de Pequenas Causas?
Na verdade, parece claro que a referida Lei representou a unio dos
dois institutos, ou seja, o legislador criou uma nica estrutura com caractersticas tanto de Juizados Especiais (competncia em razo da matria)
como de Juizados de Pequenas Causas (competncia em razo do valor).43
Tratar-se-iam, portanto, de um nico Juizado, esquematizado para receber

41

42

43

Especial Cvel. Possibilidade. Ausncia de confronto com a jurisprudncia consolidada do STJ, que veda
apenas a impetrao de mandado de segurana para o controle do mrito das decises proferidas pelos
Juizados Especiais (STJ Corte Especial RMS 17524/BA rel. Min. Nancy Andrighi, j. em
02/08/2006).
Consoante, editou o Excelso Pretrio a Smula 690, com o seguinte teor: Compete ao Supremo
Tribunal Federal o julgamento do habeas corpus contra deciso de turma recursal de juizados especiais
criminais.
Neste sentido, veja-se: Competncia. Originria. Mandado de segurana. Ato judicial. Impetrao contra deciso de juiz de Colgio Recursal. Feito da competncia da turma de origem. Incompetncia absoluta do STF. Reconhecimento. Interpretao do art. 102, I, d, da CF. Precedentes. O Supremo
Tribunal Federal no competente para conhecer originariamente de mandado de segurana contra
deciso de juiz de Colgio Recursal (STF Pleno MS-AgR 24858/SP Min. Cesar Peluso, j. em
30/08/2007).
Perfilando este entendimento, Alexandre Cmara, op. cit., p. 31.

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dois tipos de causas diferentes: as de menor complexidade e as de pequeno


valor. Est concluso a essncia da teoria dualista.
Pela teoria dualista, o nome correto do rgo criado pela Lei n
9.099/95 seria Juizados Especiais e de Pequenas Causas. Nele, seria possvel
o julgamento de causas de menor complexidade, fixadas exclusivamente
pela matria (art. 3, II e III), e de pequenas causas, determinadas apenas
pelo valor (art. 3, I e 3 c/c art. 53) ou pelo valor e pela matria (art. 3,
IV). O resultado prtico que seria possvel a tramitao nos Juizados
Especiais de causas excedendo o valor de 40 salrios mnimos, quando a
competncia for determinada exclusivamente em razo da matria, nos
casos previstos nos incisos II (art. 275, II, do CPC) e III (despejo para uso
prprio) do caput do art. 3.44 As demais causas (art. 3, I e IV) ficariam submetidas ao teto de 40 salrios mnimos.
Ainda assim, cumpre destacar que em todo o Brasil vem predominando
o entendimento de que todas as causas, inclusive as dos incisos II e III do art.
3, devam se submeter ao limite de 40 salrios mnimos.45 Com isso, todo o
Juizados Especiais seria, na verdade, um Juizado de Pequenas Causas (teoria
unitria). Argumentam os adeptos deste pensamento, numa mo, que a parte

44

45

24

Seguindo esta linha de pensamento temos Luiz Fux, op. cit., p. 48, Humberto Theodoro Jnior, Curso,
vol. III, p. 470, Cndido Dinamarco, Instituies, vol. III, p. 777, Eduardo Arruda Alvim, Direito
Processual Civil, p. 581, e Lus Felipe Salomo, op. cit., p. 51. Na jurisprudncia, veja-se, As causas
compreendidas no art. 3, II e III, da Lei n 9.099/95, no se submetem ao limite de at 40 salrios mnimos, definido no inc. I, do mesmo preceito (oitava concluso da Seo Civil do TJSC, em face da Lei no
9.099/95). Idntico entendimento prevalecia ao tempo da vigncia da Lei estadual 1.141/93, em se tratando de causas enumeradas nos art. 275, II, do CPC. Logo inarredvel a competncia do Juizado
Especial (TJSC Ap. Cv. 632-Cricima, Rel. Juiz Jnio de Souza Machado, DJ 12/6/1996), As aes
de reparao de danos decorrente de acidente de trnsito de veculo terrestre so consideradas de
menor complexidade pela Lei n 9.099/95, independentemente do seu valor, de tal sorte que os recurso delas oriundos so da competncia das Colendas Turmas de Recursos Cveis (TJSC Ap. Cv. 52269Palhoa, Rel. Des. Carlos Prudncia, DJ 6/6/1997) e o Enunciado, 2.3.1 da CEJCA Todas as causas da
competncia dos Juizados Especiais Cveis esto limitadas a 40 salrios mnimos. Em sentido contrrio, a Ementa 179 do ETRJECERJ O Juizado Especial no tem competncia para apreciar causas em que
o valor supera o limite expresso no artigo 3 da Lei n 9.099/95 e naquelas de maior complexidade, a
exigir produo de prova incompatvel com seus princpios norteadores. Se a lide desatende a tais pressupostos, impe-se a extino do processo, sem exame do mrito.
Neste sentido, confira-se Pestana de Aguiar, op. cit., p. 10, Paulo Lcio Nogueira, Juizados Especiais
Cveis e Criminais, p. 11, Alfeu Bisaque Pereira, Juizados Especiais Cveis: Uma Escolha do Autor em
Demandas Limitadas pelo Valor do Pedido, ou da Causa, Lus Felipe Salomo, op. cit., p. 30, e Humberto Theodoro Jnior, Curso, vol. III, p. 465. Na jurisprudncia, por todos, veja-se o Enunciado 2.3.1
da CEJCA Todas as causas da competncia dos Juizados Especiais Cveis esto limitadas a 40 salrios
mnimos.

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cvel da Lei n 9.099/95 uma cpia da Lei dos Juizados de Pequenas Causas
(Lei n 7.244/84), e, na outra mo, que a interpretao conjugada do art. 3
com os art. 15, 21 e 39, serviria para sustentar que todas as causas teriam que
estar necessariamente sujeitas ao patamar de 40 salrios mnimos.
Apesar de significativos, os fundamentos apresentados pela posio
dominante tm que ser analisados de forma crtica. Efetivamente, a parte
cvel da Lei n 9.099/95 uma cpia, quase que integral, da Lei n 7.244/84.
Ocorre que, nos dispositivos referentes competncia, a Lei nova significativamente diferente. O limite valorativo saiu do caput do art. 1 da Lei
antiga para integrar o inciso I do art. 3 da Lei vigente. No obstante, cabe
indagar: por que os incisos IV do caput e II do 1, ambos do art. 3, fazem
referncia expressa ao teto de 40 salrios mnimos? por que o inciso II faz
referncia ao inciso II do art. 275 do CPC, que diz nas causas, qualquer que
seja o valor?
A resposta que o legislador fez a sua opo pelo sistema dualista.46 O
problema que no foram feitas as adaptaes necessrias no texto da Lei n
9.099/95 para diferenciar as regras dirigidas s pequenas causas, das relativas
s causas de menor complexidade. Isso, no entanto, no representa empecilho incontornvel, mas, to-somente, demanda um esforo hermenutico.
Desta forma, todas as normas relativas ao limite de 40 salrios mnimos s
deveriam ser aplicadas em relao s pequenas causas (art. 3, I e IV).
Em suma, o art. 15 (cpia do art. 16 da Lei n 7.244/84), que diz que se
houver pedidos conexos a soma de ambos no pode ultrapassar 40 salrios
mnimos, o art. 21 (cpia do art. 22 da Lei n 7.244/84), que determina que
as partes sejam alertadas sobre a possibilidade de renunciar parcela que
exceder ao teto de 40 salrios mnimos, e o art. 39 (cpia do art. 39 da Lei
n 7.244/84), que taxa de ineficaz a sentena que ultrapassar o valor de 40
salrios mnimos, devem ser direcionados exclusivamente s causas previstas nos incisos I e IV do art. 3 (pequenas causas). Para que isso ficasse claro,

46

Note-se que o legislador, na Lei dos Juizados Especiais Federais, fez exatamente o contrrio, adotando
a teoria unitria. Com efeito, diz o caput do art. 3 da Lei n 10.259/01: Compete ao Juizado Especial
Federal Cvel processar, conciliar e julgar causas de competncia da Justia Federal at o valor de sessenta salrios mnimos, bem como executar as suas sentenas.

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seria recomendvel que o caput do art. 3, repetindo a estrutura j aplicada


ao procedimento sumrio (art. 275 do CPC), dividisse as competncias em
duas reparties diferentes, uma para as pequenas causas e outra para as
causas de menor complexidade.

3.7. A natureza relativa da incompetncia territorial


Trata o art. 4 dos critrios para fixao da competncia em razo do territrio (ratione loci) de forma similar ao regramento contido no CPC. De fato,
em ambos os Diplomas, a regra geral que a competncia definida pelo
domiclio do ru (art. 94 do CPC e art. 4, I, da Lei n 9.099/95). O art. 4 ainda
contm duas regras especiais, nos seus incisos II e III. A primeira delas, determina que a competncia pode ser fixada no local onde a obrigao deva ser
satisfeita, reproduzindo a determinao contida no art. 100, IV, d, do CPC. A
segunda, estabelece como critrio fixador o domiclio do autor ou do local do
ato ou fato nos casos de indenizao de qualquer natureza. Completando o
regramento, o pargrafo nico do art. 4 assinala que, em qualquer hiptese,
poder a ao ser proposta no foro previsto no inciso I deste artigo.
Na disciplina estabelecida pelo CPC, a incompetncia territorial tida,
na maioria das vezes, como relativa, ou seja, passvel de convalidao se no
impugnada em momento oportuno pelas partes (art. 114 do CPC) e insuscetvel de declarao ex officio pelo juiz (Smula 33 do STJ). Somente em casos
excepcionais, quando fixada por critrios de ordem pblica, que a incompetncia territorial gera a nulidade absoluta, como ocorre, por exemplo, no
art. 95 do CPC (forum rei sitae). Nos Juizados Especiais, entretanto, o reconhecimento da incompetncia territorial tem uma particularidade: provoca o
encerramento do procedimento sem resoluo do mrito (art. 51, III).
Embora possa causar estranheza primeira vista, a determinao legal possui
dois fundamentos: de um lado, a sede constitucional do instituto (art. 98, I,
da CF), e, de outro, a natureza especialssima do procedimento, que, na maioria dos casos, inviabiliza o seu deslocamento para o juzo territorialmente
competente, em razo de suas peculiaridades.47 Essa regra, ressalte-se, deve-

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Neste sentido, Dinamarco, Instituies, vol. III, p. 784, e Eduardo Oberg, op. cit., p. 177.

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ria ser temperada, somente gerando o encerramento do procedimento quando o juzo territorialmente competente for em outra unidade da federao ou
onde no houver Juizado Especial. De modo que, havendo a incompetncia
territorial, se for possvel remeter os autos ao Juizado situado no foro competente, dentro da mesma unidade, no parece razovel por termo ao feito.
No obstante, por conta da regra contida no art. 51, III, a poro majoritria da doutrina e jurisprudencia48 tem defendido que a incompetncia
territorial no sistema da Lei n 9.099/95 gera nulidade absoluta, passvel de
reconhecimento de ofcio, em qualquer tempo ou grau de jurisdio.49
Com o devido respeito, mas o citado entendimento afigura-se como equivocado, pois as normas sobre a fixao da competncia territorial nos Juizados
Especiais so evidentemente de natureza dispositiva.50 Para comprovar isso,
basta analisar o teor do citado pargrafo nico do art. 4. O inciso I do mesmo
artigo, por sua vez, fala expressamente em critrio do autor. De forma que a
violao a tais regras s pode ser conhecida mediante provocao das partes.
Alis, no h qualquer inconveniente que uma causa de encerramento do procedimento no possa ser conhecida de ofcio. No CPC, por exemplo, a conveno de arbitragem no pode ser conhecida de ofcio, embora enseje o fim do
procedimento (arts. 267, VII, c/c 301, IX e 4). Consoante, se o ru no
arguir, na contestao, a incompetncia territorial, a questo restar superada.
Para solver esta discusso, deveria o inciso III do art. 51 afirmar que a
incompetncia territorial, suscitada pela parte, levaria ao encerramento do
procedimento sem resoluo do mrito quando a causa tiver como juzo
competente rgo judicial no submetido Lei n 9.099/95 ou pertencente
territorialmente outra unidade da federao.

48
49

50

Neste sentido, por todos, Eduardo Oberg, op. cit., p. 175, com significativa citao jurisprudencial.
Neste sentido, Theotnio Negro, op. cit., p. 903. Na jurisprudncia, confira-se o Enunciado 2.2.4 da
CEJCA A incompetncia territorial pode ser reconhecida de ofcio no sistema dos Juizados Especiais
Cveis e o Enunciado 89 do FONAJE A incompetncia territorial pode ser reconhecida de ofcio no
sistema de juizados especiais cveis.
Neste sentido, Alexandre Cmara, op. cit., p. 45 e Dinamarco, Instituies, vol. III, p. 803. Na jurisprudncia, veja-se A competncia prevista no art. 4 da Lei dos Juizados Especiais segue a regra geral, qual
seja, a do foro do domiclio do ru, seguindo os moldes tradicionais do Cdigo de Processo Civil, prorrogando-se, todavia, quando no argida incompetncia pela parte contrria. III A incompetncia relativa no pode ser declarada de oficio (Smula no 33 desta Corte). IV Conflito de competncia conhecido para declarar competente o Juzo de Direito do Juizado Especial Cvel da Comarca de Tubaro/SC, suscitado (STJ 2 Seo CC 30692-RS, Rel. Min. Antnio de Pdua Ribeiro, j. em 27/11/2002).

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3.8. A inconstitucionalidade da atuao judicante do juiz leigo


Uma das novidades apresentadas pela Lei n 9.099/95 foi a incluso de
uma nova figura no rol de auxiliares da Justia, para atuao exclusiva nos
Juizados Especiais: o juiz leigo. De acordo com o art. 7, os juzes leigos so
escolhidos entre advogados, com no mnimo cinco anos de experincia51
Do ponto de vista funcional, os juzes leigos tm atribuio de dirigir a sesso de conciliao (art. 22), atuar como rbitros (art. 24, 2), conduzir a
audincia de instruo e julgamento (art. 37) e proferir deciso sobre a
causa (projeto de sentena), sujeita homologao pelo juiz togado (art. 40).
O problema que, a toda evidncia, as funes previstas nos arts. 37 e
40 da Lei n 9.099/95 retratam atividade tipicamente judicante, pois permitem que os juzes leigos instruam e analisem a causa. De acordo com os
defensores da determinao legal, tal iniciativa estaria calada no inciso I
do art. 98 da Constituio Federal, que dispe sobre a criao de juizados
especiais, providos por juzes togados, ou togados e leigos, competentes para
a conciliao, o julgamento e a execuo de causas cveis de menor complexidade. Destarte, aduzem que na citada norma haveria um comando estabelecendo que o juiz leigo seria, junto com o juiz togado, competente para
praticar atos de conciliao, instruo e julgamento. Acrescem, ainda, que
a atuao dos juzes leigos estaria em consonncia com os preceitos democrticos e participativos do processo, alm de densificar os comandos de
celeridade e informalidade da Lei n 9.099/95. Este o entendimento
amplamente majoriatrio na doutrina52 e jurisprudncia.53
51

52

53

28

O prazo exigido pelo diploma parece ser muito longo, j que a disponibilidade dos advogados para tal
exerccio, gratuito na maioria das vezes, muito maior nos primeiros anos da vida profissional. Alm
disso, via de regra, o advogado precisa de apenas 3 anos de formado para poder se tornar juiz togado.
No deixa de ser uma incoerncia que algum possa ser juiz togado e no leigo.
Defendendo a atuao dos juzes leigos, veja-se Cndido Dinamarco, Instituies, vol. III, p. 811,
Alexandre Cmara, op. cit., p. 56, Nagib Slaibi Filho, Luiz Cludio Silva e William Douglas Resinente
dos Santos, Manual do Conciliador e do Juiz Leigo: Juizados Especiais Cveis, p. 6, e Felipe Machado
Caldeira, Consideraes Sobre a Funo do Juiz Leigo e a Lei (Estadual) 4.578/05: Contribuies para a
Acelerao do Processo.
No Rio de Janeiro, o entendimento que prevaleceu foi o da validade da atuao dos juzes leigos. Foi,
inclusive, rejeitada a representao por inconstitucionalidade interposta pela OAB/RJ em face da Lei
Estadual n 4.578/05, que regulamentou a atuao dos juzes leigos neste Estado (TJRJ rgo Especial
Representao por Inconstitucionalidade n 219/05 Rel. Des. Leila Mariano, j. em 17/12/07 ainda
no transitada em julgado). Bem verdade que a representao versava, to-somente, sobre o processo
seletivo dos juzes leigos, mas inegvel o apoio do Poder Judicirio fluminenses aos juzes leigos.

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Data venia, mas a previso contida nos art. 37 e 40 afigura-se como


inconstitucional.54 Em primeiro lugar, o inciso I do art. 98 da CF no tem
o condo de atribuir atividades judicantes aos juzes leigos. Na verdade, o
plural no adjetivo competentes faz concordncia com juizados e no
com juzes togados e leigos. Tanto verdade que o dispositivo do inciso
I do art. 98 da CF reproduzido no art. 1 da Lei n 9.099/95, sem referncia aos juzes (leigos ou togados), para definir a competncia dos Juizados.
De fato, somente o juiz togado pode dirigir a audincia de instruo e julgamento, no apenas em decorrncia dos princpios da imediaticidade e da
oralidade, mas especialmente em razo dos princpios constitucionais da
inafastabilidade da apreciao pelo Poder Judicirio de leso ou ameaa de
leso e do juiz natural (art. 5, XXXV e LIII, da CF). Consoante, no ordenamento jurdico brasileiro apenas membros do Poder Judicirio podem
exercer diretamente a atividade jurisdicional. As excees, como no caso
dos jurados no tribunal do jri e do Senado Federal, no julgamento de crimes de responsabilidade do presidente e a eles conexos, no so inconstitucionais porque esto previstos na prpria Constituio (arts. 5,
XXXVIII, e 86, respectivamente).55
Importante frisar que a legitimidade da jurisdio advm essencialmente da investidura de um juiz imparcial. Por isso, o simples fato do trabalho do juiz leigo ser supervisionado e controlado pelo juiz togado (art. 40)
no se presta a legitimar a sua atuao. O que pode ocorrer que o juiz
leigo, sem concurso pblico, sem garantias e prerrogativas,56 realize a ins-

54

55

56

Acolhendo essa posio, Vicente Greco Filho, Processo Penal, p. 138. Conforme assinala com toda propriedade Maurcio Antnio Ribeiro Lopes, Lei dos Juizados Especiais Cveis e Criminais: Lei 9.099, de
26 de Setembro de 1995, p. 22: A previso de Juzes leigos, conquanto suas funes estejam referidas
no texto constitucional (art. 98, I), ofende ao princpio da jurisdio estabelecido ao longo da Carta de
1988 e sua constitucionalidade , no mnimo, duvidosa. Em posio intermediria, afirmando que os
juzes leigos no so capazes de tornar mais clere a tramitao do procedimento especial, veja-se
Ricardo Cunha Chimenti, Teoria e prtica dos Juizados Especiais Cveis Estaduais e federais, p. 209.
Os meios alternativos de composio dos conflitos (conciliao, mediao e arbitragem), chamados por
muitos de sucedneos da jurisdio, dependem de um ato de liberalidade das partes, que a eles se submetem. No caso do procedimento realizado por juiz leigo, as partes no so indagadas se aceitam tal
conduo, o que retira o carter de constitucionalidade da medida.
O entendimento jurisprudencial que no se aplicam ao juiz leigo as regras que envolvem a atuao do
magistrado. Neste sentido, veja-se: Indenizao. Acidente de trnsito. Princpio da identidade fsica do
juiz. No nula a sentena proferida por juiz leigo diverso daquele que presidiu a audincia de instruo, tendo em vista que no Juizado Especial Cvel o princpio da identidade fsica do juiz somente aplic-

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truo e o julgamento da causa e o juiz togado apenas leia o que foi escrito
e assine, em detrimento a tudo que foi construdo pela cincia processual
nos ltimos sculos.
Note-se, como j dito,57 que a Lei poderia atribuir ao juiz leigo outras
funes, de forma legtima e relevante, alm da realizao da conciliao e
da arbitragem. Assim, tem-se que os arts. 37 e 40 da Lei n 9.099/95 deveriam ser revogados.

3.9. A inconstitucionalidade da dispensa do advogado


A Lei n 9.099/95, com a justificativa de ampliar o acesso Justia, permitiu que as partes, nas causas de valor at 20 salrios mnimos, possam exercer diretamente a capacidade postulatria, mesmo que no tenham formao
tcnica jurdica (art. 9). Assim, sem a assistncia de um advogado, as partes
teriam maior e mais efetiva na participao no processo, facilitando a conciliao e a apreciao das questes da causa, sem embates tcnicos e com menores custos. Ademais, se os Juizados Especiais so voltados para o julgamento de
causas de menor complexidade e pequeno valor, a importncia da atuao do
advogado seria proporcionalmente menor e, portanto, dispensvel.
A regra contida no art. 9 da Lei tem produzido acalorados debates,
especialmente no que tange sua constitucionalidade. Consoante, o entendimento amplamente majoritrio, capitaneado pelo STF,58 tem sido no sentido de que a lei ordinria pode dispensar a atuao do advogado em situaes excepcionais. Assim, a Lei dos Juizados Especiais, norma especial e

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58

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vel em relao ao juiz togado e no no que diz respeito aos juzes leigos. Prova produzida que corrobora a verso do autor, demonstrando que o ru, condutor do veculo envolvido no acidente, adentrou
demais na pista, chocando-se com o veculo do autor. Recurso desprovido (TJRS 2. Turma Recursal
Cvel Recurso Cvel 71001811264, Rel. Juiz Afif Jorge Simes Neto, j. em 18/02/2009).
Veja-se o item 3.2 deste texto.
Sobre o tema, veja-se Afastando a alegada violao ao art. 133 da CF (O advogado indispensvel
administrao da justia), o Tribunal julgou improcedente o pedido formulado em ao direta ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados e declarou a constitucionalidade da primeira parte
do art. 9o da Lei 9.099/95 (Nas causas de valor at vinte salrios mnimos, as partes comparecero pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado; nas de valor superior, a assistncia obrigatria).
Considerou-se que a assistncia compulsria dos advogados no absoluta, podendo a lei conferir s
partes, em situaes excepcionais, o exerccio do jus postulandi perante o Poder Judicirio. Precedentes
citados: ADI (MC) 1.127-DF (RTJ 178/67); RvC 4886-SP (RTJ 146/49); HC 67.390-PR (RTJ 131/610)
(STF Pleno ADI 1.539-DF, Rel. Min. Maurcio Corra, j. em 24/4/2003).

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posterior ao Estatuto dos Advogados do Brasil (Lei n 8.906/94), poderia


prescindir da atuao do advogado, em razo das suas peculiaridades.59
No obstante, apesar da robustez da opinio prevalente, parece inevitvel reconhecer que o citado dispositivo viola o texto constitucional.60 Em
primeiro lugar, no h como negar que o caput do art. 9 da Lei n 9.099/95
contraria o art. 133 da Carta Magna,61 que dispe que o advogado indispensvel administrao da Justia.62 Os partidrios da corrente oposta, no
entanto, alegam que a expresso nos limites da lei, contida no mesmo art.
133, permitiria que a presena do advogado fosse dispensada por lei ordinria. Ocorre que, quando a Constituio Federal diz nos limites de lei, ela
est se referindo forma de atuao do advogado e no a sua pertinncia.
A referncia aos limites de lei, indubitavelmente, em relao Lei n
8.906/94 (Estatuto da Advocacia).
Em segundo lugar, preciso reconhecer que a presena do advogado
deveria ser obrigatria, inclusive nos Juizados Especiais, porque a maioria
das pessoas no tem condies de promover adequadamente seus interesses
em juzo. preciso salientar que a interveno do advogado representa no
apenas um direito ou uma faculdade das partes, mas uma obrigao do
Estado-Juiz na prestao da tutela jurisdicional. a garantia de que o indivduo estar recebendo tudo aquilo e exatamente aquilo a que tem direito.
Dispensar o advogado o mesmo que garantir remdios populao, mas
tornar facultativa a sua prescrio por mdicos. O exerccio de um direito,
assim como a ingesto de um medicamento, compreende o conhecimento
do seu contedo, em suas causas e efeitos.
Por fim, tem-se que o caput do art. 9 inconstitucional por ferir o
princpio da razoabilidade, reconhecido como inerente a todas as cartas

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60
61
62

Neste sentido, Lus Felipe Salomo, op. cit., p. 62, Humberto Theodoro Jnior, Curso, vol. III, p. 477, e
Dinamarco, Instituies, vol. III, p. 785. Indo mais alm e defendendo a possibilidade de qualquer
parte, em qualquer juzo, atuar sem advogado, com ampla pesquisa doutrinria, confira Fernando
Antnio de Souza e Silva, O Direito de Litigar sem Advogado, em especial nas p. 19 e seguintes.
Neste sentido, Maurcio Antnio Ribeiro Lopes, op. cit., p. 25, e Alexandre Cmara, op. cit., p. 66.
Sobre o tema, ver, de Rubens Approbato Machado, Indispensabilidade do Advogado.
De fato, a distino reduz o espectro de efetividade de uma norma constitucional de ndole protetiva.
Sobre a busca da mxima efetividade na interpretao constitucional, Willis Santiago Guerra Filho,
Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, p. 58.

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constitucionais63 e que toda lei deve observar. Destarte, imagine-se, apenas


a ttulo de argumentao, que fosse possvel excluir a atuao do advogado
em determinadas causas perante os Juizados. Pelo bvio, tal distino
somente poderia fundar-se na complexidade da matria. Em vez disso, a Lei
baseou-se no valor da causa para criar a diferenciao. De modo que se duas
causas tm a mesma complexidade, mas uma tem o valor de 19 salrios
mnimos e a outra, 21 salrios mnimos, esta ter que ser acompanhada por
advogado e aquela, no. Isto absolutamente irrazovel.
Por todos esses motivos, tem-se que a atuao do advogado necessria em todas as causas submetidas aos procedimentos da Lei n 9.099/95.64
Com isso, o citado art. 9 deveria ser alterado para excluir a possibilidade de
dispensa da assistncia tcnica.
Uma forma de resolver o problema seria criar rgos de atuao da
Defensoria Pblica junto aos Juizados Especiais. Com um custo proporcionalmente baixo, seria possvel colocar defensores pblicos patrocinando os
interesses de todos os demandantes e demandados, que no queiram ou no
possam constituir um advogado. Tal diretriz j se encontra plasmada na Lei,
atravs do comando contido no seu art. 56, que diz que, institudos os
Juizados, sero implantadas as curadorias necessrias e o servio de assistncia judiciria.

3.10. A amplitude da assistncia judiciria gratuita


O 1 do art. 9 da Lei n 9.099/95 deixa claro que o legislador pretendeu garantir parte o direito assistncia judiciria gratuita, quando, no
plo oposto da demanda, houver uma parte patrocinada por advogado ou
uma pessoa jurdica ou firma individual.65 Trata-se de aplicao do princ-

63

64
65

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Ver, sobre este princpio, Carlos Roberto de Siqueira Castro, O Devido Processo Legal e a Razoabilidade
das Leis na Nova Constituio, e Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, Direito Processual
Penal em face da Constituio, p. 71.
Em alguns Estados, como em Alagoas, os juzes s fazem audincia de instruo e julgamento com a
presena de um advogado ou defensor pblico, qualquer que seja o valor da causa.
Neste sentido, confira-se a Ementa n 29 do ETRJECERJ Assistncia por advogado. Comparecendo
uma das partes audincia de instruo e julgamento, assistida por advogado, incumbe ao juiz observar o art. 9, 1, da Lei n 9.099/95.

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pio da isonomia dentro da lgica criada pelo regime de exceo dos Juizados
Especiais. Como visto, nestes rgos, as partes podem atuar sem o auxlio de
um advogado nas causas com valor at 20 salrios mnimos. Por isso, no
sendo possvel proibir que uma das partes tenha advogado, a sada foi deferir outra, que esteja desacompanhada, a assistncia judiciria gratuita. No
caso especfico da parte que litiga em face de uma firma individual ou pessoa jurdica, a assistncia judiciria tem o objetivo de atenuar a presumida
hipossuficincia existente nestes tipos de litgios. Nos demais casos, entretanto, tem prevalecido o entendimento de que a assistncia judiciria gratuita somente ser cabvel quando a parte se enquadrar na condio de
hipossuficincia econmica ou jurdica.
Esta interpretao, com o devido respeito, no parece ser a mais adequada. Com efeito, nos Juizados Especiais as partes no esto sujeitas ao
pagamento de honorrios advocatcios, exceto nos casos de litigncia de
m-f (art. 55). Desse modo, o correto que, tendo afastado a incidncia
de nus sucumbenciais para facilitar o acesso Justia, deva o Estado
suportar com os custos da atuao judicial das partes.66 Por essas razes,
resta claro que todos aqueles que podem ser autores nos Juizados Especiais
(art. 8, 1), estejam ocupando o plo ativo ou no plo passivo da demanda, independentemente da condio econmica, tm direito assistncia
judiciria gratuita. A presuno legal que as partes que possuem causas
de menor complexidade so hipossuficientes jurdicos e, por isso, merecedores da assistncia gratuita.67 Por certo, as partes que no podem ser autores nos Juizados Especiais, tais como as grandes empresas, no tero direito assistncia judiciria e tero que arcar com os custos da atuao tcnica que necessitarem.
Destarte, deveria ser modificada a redao do pargrafo primeiro do
art. 9, para que ficasse determinada a oferta de assistncia judiciria em
favor de todas as partes que, no tendo outra forma de patrocnio,
preencham os requisitos legais para serem demandantes nos Juizados
Especiais.

66
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Dinamarco, Instituies, vol. III, p. 785.


Neste sentido, Alexandre Cmara, op. cit., p. 67.

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3.11. A natureza da interveno da Defensoria Pblica


Inicialmente, cabe ressaltar que, seguindo o comando constitucional
(art. 5, LXXIV, c/c art. 134), tem-se que o desempenho de atividade de
prestao da assistncia judiciria, prevista no art. 56 da Lei n 9.099/95,
deve ser atribudo com exclusividade Defensoria Pblica, nas Unidades
onde ela se encontra organizada.68 Note-se que o termo exclusividade,
aqui empregado, significa que onde houver Defensoria Pblica organizada
institucionalmente, a atuao oficial do Estado na prestao da assistncia
judiciria deve ser realizada por meio deste ente. No h, portanto, qualquer vedao ao patrocnio feito por advogados dativos ou instituies prestadoras de assistncia jurdica (escritrios modelos, associaes civis, centros de atendimento jurdico etc.), desde que elas no sejam remuneradas
pelos cofres pblicos para exercer tal munus.
Importante lembrar, por outro lado, que a Defensoria Pblica tem funes tpicas (relacionadas hipossuficincia econmica do interessado) e atpicas (independentes da condio econmica dos interessados). A atuao em
favor do acusado criminal, da criana, do adolescente, do idoso, da mulher
vtima de violncia domstica, dos direitos coletivos, dentre outros, so
exemplos de atribuies que esto desvinculadas dos aspectos econmicos
envolvidos. Por isso, a referncia especfica atuao junto aos Juizados
Especiais, prevista na Lei Orgnica Nacional da Defensoria Pblica (art. 4, X
e XI, da Lei Complementar n 80/94), afigura-se como mais uma funo atpica deferida a esta Instituio. Alis, se no fosse uma funo atpica, a referncia seria absolutamente desnecessria. Alm disso, permitir que o autor ou
o ru, mesmo que com condies econmicas, disponham do patrocnio da
Defensoria Pblica nos Juizados, alm de promover o acesso Justia, reduz
a incidncia das chamadas demandas economicamente indenfensveis, onde
o custo para se defender mais alto do que o valor do pedido.69

68

69

34

Assim se posicionam Cndido Dinamarco, Instituies, vol. III, p. 796, e Humberto Theodoro Jnior,
Curso, vol. III., p. 477, que diz: Para assegurar o equilbrio entre as partes, a lei d ao autor que comparece pessoalmente o direito, se esse quiser, assistncia judiciria (defensoria pblica), quando o ru
for pessoa jurdica ou firma individual.
Em sentido contrrio, defendendo que a atuao da Defensoria Pblica nos Juizados Especiais depende
da concorrncia de outras condies, tais como a hipossuficincia econmica ou a natureza consumei-

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Para que no paire dvida sobre a questo, o recomendvel seria que o


art. 56 da Lei n 9.099/95 passasse a ostentar a referncia expressa
Defensoria Pblica.

3.12. A possibilidade da representao das partes nas audincias


A maioria dos autores tem atribudo ao caput do art. 9 o condo de
exigir, nos Juizados Especiais, a presena pessoal das partes s audincias,
no admitindo, por conseguinte, a sua representao por interposta pessoa.70 Em outras palavras, o entendimento prevalente que a parte no
pode nomear um procurador para represent-la nos Juizados Especiais.
Caso o faa, ser considerada ausente, ensejando o encerramento do procedimento, sendo autor (art. 51, I), ou a revelia, sendo ru (art. 20). A razo
de tal leitura seria, de um lado, a ideologia participativa do instituto, e, de
outro, a meno no texto do art. 9 expresso pessoalmente.
Com o devido respeito, mas tal interpretao parece ser equivocada.71
preciso ponderar, inicialmente, que o entendimento dominante tem
como efeito prtico a cassao do direito de acesso aos Juizados Especiais de
um grande nmero de pessoas. Pense-se em pessoas com deficincia fsica,
com problemas de locomoo, que residem distante do foro da causa, que
no podem deixar o trabalho durante o expediente forense etc.72 Ademais,

70

71

72

rista da causa, temos o parecer do defensor pblico do Rio de Janeiro Carlos Martins, mencionado por
Guilherme Braga Pea de Moraes, Assistncia Jurdica, Defensoria Pblica e o Acesso Jurisdio no
Estado Democrtico de Direito, pp. XVI e XVII.
Humberto Theodoro Jnior, op. cit., p. 477, Oberg, op. cit., p. 178, Cmara, op. cit., p. 102, e Dinamarco, Instituies, vol. III, p. 806. Na jurisprudncia, veja-se o Enunciado 8.1 da CEJCA A presena das
partes pessoas fsicas e/ou pessoas jurdicas, representadas por preposto obrigatria nas audincias
de conciliao e/ou julgamento, a Ementa 48 do ETRJECERJ O comparecimento pessoal das partes
litigantes nas audincias obrigatrio, permitindo a lei especial, contudo, que o ru, sendo pessoa jurdica ou titular de firma individual, seja representado por preposto credenciado, desde que mantenha
vnculo empregatcio com a representada. Nos termos do 4 do artigo 9 da Lei n 9.099/95, o que
facultativo a representao e no o comparecimento das partes litigantes. Aplicao do artigo 20 da
Lei n 9.099/95. Improvimento do recurso.
Em sentido paliativo, veja-se a Ementa 271 do ETRJECERJ Autorizao do Juzo, com aquiescncia da
autora, para que o filho do ru represente o pai em audincia, por se encontrar aquele impossibilitado de
comparecer ao ato, de acordo com atestado mdico apresentado. Audincia vlida porque no prejudicado o direito de defesa do ru, o qual implicitamente concordou com a atuao do filho no ato judicial.
Neste sentido, Erick Linhares, Juizados Especiais Cveis: Comentrios aos Enunciados do Fonaje (Frum
Nacional de Juizados Especiais), p. 62.

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a Lei apenas fala da necessidade da presena das partes nas causas at 20


salrios mnimos, quando ela poderia, em tese, dispensar o acompanhamento tcnico do advogado. Assim, o mais razovel seria concluir que a presena da parte s ser obrigatria quando ela quiser dispensar a assistncia do
advogado. Consoante, a nica razo plausvel para se exigir a presena das
partes o fato delas estarem exercendo a capacidade postulatria direta.
Agora, se a parte tem advogado e quer nomear o procurador para represent-la, no h qualquer razo plausvel para no faz-lo.
Note-se, neste passo, que a Lei n 10.259/01 (Lei dos Juizados Especiais
Federais) tratou especificamente do tema, permitindo s partes a possibilidade de nomear por escrito, representantes para a causa, advogado ou no
(art. 10). Neste sentido, o pargrafo quarto do art. 9 da Lei n 9.099/95
deveria ser alterado para estabelecer que as partes podem nomear, por
escrito, representantes para a causa, advogados ou no.

3.13. A importncia da gravao da audincia


No caso dos Juizados Especiais, em decorrncia da adoo dos princpios da celeridade e da oralidade (art. 2), no h a obrigatoriedade dos atos
processuais praticados na audincia de instruo e julgamento serem reduzidos a termo. Basta que eles sejam mencionados no corpo da assentada (art.
13, 2). Esta peculiaridade da Lei, embora justificvel no plano dos princpios citados, cria uma situao, em tese, de falta de controle da atividade
judicial. De fato, com o registro superficial dos atos, a deciso judicial poderia eventualmente deles se distanciar sem oferecer s partes subsdios para
uma eventual impugnao. Ciente de que esta situao poderia, em ltima
anlise, comprometer a aplicao dos princpios do contraditrio, da ampla
defesa, da publicidade e do duplo grau de jurisdio nos Juizados Especiais,
previu o legislador a possibilidade de gravao das audincias. Assim, sem
comprometer a estrutura oral do procedimento, seria possvel o registro da
audincia, para conhecimento das Turmas Recursais, na eventualidade de
ser interposto um recurso inominado (art. 43).
preciso deixar assente que a Lei, ao estabelecer que os atos podero ser
gravados, quis deixar claro que esta medida no retrata um comando geral pa36

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ra todos os processos, mas uma regra de exceo para casos especficos (de outra
forma, teria dito sero gravados). Realmente, seria desnecessrio, por exemplo, gravar uma audincia onde no houvesse prova oral a ser produzida e a
contestao fosse apresentada por escrito, ou uma audincia onde a questo
fosse meramente de direito. Por isso, devem as partes provocar fundamentadamente o juzo, antes do incio da AIJ ou no seu curso, a proceder gravao.
Nada impede, igualmente, que o juiz, de ofcio, determine o registro da
audincia, j que a questo est relacionada a aspectos de ordem pblica.
Apesar de sua importncia, praticamente nenhum Juizado tem cumprido a determinao de gravar as suas audincias.73 Isto poderia ser feito de
forma bastante simples e com custo reduzido, caso fosse ligada uma cmera
(webcam) ao computador do juiz. Em Tribunais como o do Rio de Janeiro,
onde todas as serventias so informatizadas e existe um sistema de intranet,
as gravaes seriam simultaneamente registradas pelo setor de informtica,
ao mesmo tempo em que ocorrem. Assim, quando a Turma Recursal fosse julgar o recurso inominado, bastaria o relator acessar a intranet do seu computador e localizar a gravao daquela audincia. A Turma pode, assim, assistir
audincia e julgar com base no que efetivamente ocorreu nela, fazendo-se
respeitar o princpio da oralidade e identidade fsica na fase recursal.
Alm da utilidade no julgamento do recurso, a mera cincia da gravao da audincia certamente faria com que todos os envolvidos no processo perante o Juizado tivessem maior comprometimento com seus escopos
fundamentais, coibindo os desvios e os abusos.

3.14. A possibilidade de produo da prova pericial


Ao contrrio do que muito freqentemente se costuma ouvir e at ler, a
Lei n 9.099/95 admite a produo da prova pericial em seu procedimento.
Quem afirma em sentido contrrio, dizendo que a oitiva do assistente tcnico

73

Por certo existem diversas iniciativas no sentido de implantar a gravao das audincias nos Juizados
Especiais. Desde maro de 2004, por exemplo, todas as audincias realizadas pelo 2 Juizado Especial
Cvel de Boa Vista, Roraima, so filmadas por meio digital e podem ser acompanhadas, por meio de
acesso restrito, pela internet (Projeto de Registro Eletrnico de Audincia apresentado ao III Prmio
Innovare pelo Juiz Estadual Erick Cavalcanti Linhares Lima).

37

38

Felippe Borring Rocha

regulada pelo art. 35 no uma percia, na verdade, confunde a natureza da


prova com a sua forma de produo. O fato que a percia existe, mas possui
uma estrutura bastante diferente daquela prevista no CPC (arts. 420 a 439).74
Com efeito, o legislador adotou o modelo americano, mais precisamente o
nova-iorquino, onde o perito ou tcnico de confiana do juiz apresenta seu
laudo e responde aos quesitos oralmente, em audincia, como se fosse uma testemunha. Assim, as principais concluses do tcnico so mencionadas resumidamente no corpo da sentena, ao lado das demais provas orais colhidas na
audincia. Registre-se que na hiptese do juiz, ao trmino da percia, entender que o ponto controverso no ficou sanado, no sendo possvel a realizao
de nova percia de imediato, dever concluir a instruo, no que for possvel,
antes de marcar a audincia onde a questo ser elucidada. Por outro lado, se
o tema se apresentar como mais complexo do que inicialmente aparentava,
poder o juiz encerrar o feito sem resoluo do mrito (art. 51, II).
Na prtica, muito rara a realizao do procedimento pericial nos
Juizados Especiais por trs razes. Em primeiro lugar, o perito no remunerado por sua atividade (art. 54).75 Em segundo lugar, como o deferimento da prova pericial deve ocorrer em audincia, o perito teria que estar disponvel, junto ao Juizado, no momento da realizao da audincia (art.
35).76 Por fim, o perito tem que analisar a questo e apresentar o seu laudo
imediatamente, na prpria audincia (art. 28).
Com efeito, na maioria das vezes, os juzes no tm realizado o procedimento pericial, preferindo por encerrar o procedimento, se no for pos-

74

75

76

38

Neste sentido, veja-se a Ementa 106 do ETRJECERJ A avaliao tcnica facultada ao Juiz pelo art. 35 da
Lei n 9.099/95 no segue a sistemtica da expertise ordinria prevista no Cdigo de Processo Civil. O
Tcnico a que se refere o aludido art. 35 designado livremente pelo Juiz, podendo as partes contraditar
as concluses do especialista, mediante pareceres de outros expertos. falta de contra-argumentao tcnica, prevalece a opinativa do especialista eleito pelo magistrado, se este ao avaliar a prova, prestigia a opinio daquele, Enunciado 9.3 da CEJCA No cabvel percia judicial tradicional em sede de Juizado
Especial. A avaliao tcnica a que se refere o Art. 35, da Lei n 9.099/95, feita por profissional da livre
escolha do Juiz, facultado s partes inquiri-lo em audincia ou no caso de concordncia das partes e o
Enunciado 12 de FONAJE A percia informal admissvel na hiptese do art. 35 da Lei 9.099/1995.
Humberto Theodoro Jnior, Curso, vol. III, p. 485, anota que alguns Juizados tm facultado s partes a
possibilidade de pagar a percia, para que a prova pericial possa ser realizada. Na sua viso, seria melhor exigir tal pagamento do que remeter s partes s vias ordinrias, onde, provavelmente, teriam que
arcar com estes e outros custos.
Alexandre Cmara, op. cit., p. 120, entretanto, entende que o juiz dever sempre suspender a AIJ quando deferir a produo da prova pericial. Assim, as partes tm condies de formular quesitos e indicarem assistentes tcnicos e o perito escolhido pelo juiz tem oportunidade de analisar o objeto da percia.

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svel julgar a causa sem a produo da prova tcnica. Alguns juzes, por
outro lado, tm nomeado funcionrios pblicos com formao tcnica para
realizar a percia e comparecer na audincia de instruo e julgamento.
Destarte, parece evidente que a prova pericial precisa, urgentemente,
ser melhor estruturada, para viabilizar a sua realizao nos Juizados especiais. Neste sentido, afigura-se que a melhor soluo foi a adotada pelos
Juizados Especiais Federais. Neles, a percia feita por escrito e apresentada at cinco dias antes da audincia (art. 12 da Lei n 10.259/01). Os honorrios periciais, por sua vez, so pagos pelo Tribunal Regional Federal, que
somente cobrar da parte r se a causa for julgada procedente ou da parte
autora, no caso de litigncia de m-f. Caso contrrio, o prprio Tribunal
arcar com o custo da percia (art. 12, 1, da Lei n 10.259/01).
Portanto, seria necessria a alterao do art. 35 da Lei n 9.099/95, para
que incorporasse as regras previstas na Lei n 10.259/01. Outra iniciativa
importante seria, como j defendido, a realizao de uma audincia preliminar com o juiz leigo, que pudesse identificar a necessidade e a viabilidade da realizao da percia informal, antes da AIJ.77

3.15. A natureza incidental dos embargos execuo


Na sistemtica anterior reforma do CPC operada no ano de 2005, a
maioria da doutrina defendia que os embargos execuo fundada em ttulo executivo judicial (sentena) nos Juizados Especiais representavam uma
ao autnoma de impugnao, apesar de o sistema executivo previsto no
art. 52 da Lei n 9.099/95 ser sincrtico desde sua origem.78 Na esteira deste
pensamento, firmou-se a concepo de que a deciso que julgava os embargos era identificada como uma sentena,79 que poderia ser impugnada por
meio do recurso inominado.
Ocorre que com a edio da Lei n 11.232/05 parece claro que os
embargos execuo passaram a representar um incidente processual. De

77
78
79

Veja-se o item 3.2 deste texto.


Neste sentido, defendendo a autonomia dos embargos execuo, dentre outros, Araken de Assis,
Execuo Civil nos Juizados Especiais, p. 167, e Eduardo Oberg, op. cit., p. 193.
Neste sentido, por todos, veja-se Araken de Assis, op. cit., p. 167.

39

40

Felippe Borring Rocha

fato, preciso reconhecer que a Lei n 9.099/95 no criou um modelo executivo prprio, mas determinou a aplicao dos modelos existentes no CPC,
com as alteraes previstas no seu art. 52. De modo que, atualmente, no h
como sustentar a manuteno da natureza autnoma dos embargos execues, pois o seu referencial legal , sem sobra de dvida, o regramento
nos art. 475-J e seguintes do CPC.80 Assim, a deciso que julga os embargos
execuo tem natureza interlocutria, impugnvel por agravo de instrumento,81 salvo se encerrar o procedimento executivo, quando passa a desafiar recurso inominado (art. 475-M, 3, do CPC).
Destarte, seria importante que o todo o inciso IX do art. 52 da Lei n
9.099/95 fosse revogado, abrindo espao para a aplicao plena dos arts.
475-L e 475-M do CPC. Aproveitando o ensejo, poderia ser alterado o pargrafo primeiro do art. 53, que trata dos embargos execuo fundada em
ttulo executivo extrajudicial, para fazer referncia ao regramento atual
(arts. 736 e seg. do CPC). Na verdade, o ideal mesmo seria que todos os
pargrafos do art. 53 fossem revogados, pois o procedimento nele previsto
ineficiente e anacrnico. Bastaria ao art. 53 dizer que a execuo dos ttulos executivos extrajudiciais, no valor de at quarenta salrios mnimos,
obedecer ao disposto no Cdigo de Processo Civil.

3.16. A rescindibilidade da coisa julgada


Um tema que tem despertado pouqussima ateno a previso contida
na Lei n 9.099/95 de que as decises proferidas nos Juizados Especiais no
esto sujeitas a ao rescisria (art. 59).82 Para se ver o absurdo desta situao,
basta imaginar ao julgada por juiz impedido, suspeito ou corrupto, ou que
ofenda a coisa julgada, a lei etc. na sistemtica atual esta deciso atingiria ime-

80
81

82

40

Sobre o cabimento do agravo de instrumento nos Juizados Especiais, veja-se o item 3.4 deste texto.
Na maior parte do Brasil prevalece o entendimento de que, apesar de aplicvel a sistemtica do CPC aos
embargos execuo dos Juizados, o recurso cabvel contra a deciso que o julgar ser sempre o recurso inominado. Neste sentido, veja-se o Enunciado 12.2.1 da CEJCA Na execuo por ttulo judicial o
prazo para oferecimento de embargos ser de 15 (quinze) dias e fluir da intimao da penhora. Da sentena que julgar os embargos caber o recurso inominado previsto no art. 42 da Lei 9.099/95.
Neste sentido, defendendo a autonomia dos embargos execuo, dentre outros, Araken de Assis, op.
cit., p. 167, e Eduardo Oberg, op. cit., p. 193.

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diatamente imediatamente aps o trnsito em julgado o grau mximo de imutabilidade como coisa soberanamente julgada. Note-se que se a mesma deciso for levada ao STF, por meio de recurso extraordinrio, e l transitar em
julgado, no haver qualquer bice ao ajuizamento da ao rescisria naquele Tribunal, que no alcanado pela proibio contida no art. 59 da Lei.83
Por isso, a proibio prevista no art. 59 completamente absurda. Muito mais
razovel seria, por exemplo, diminuir o prazo da ao rescisria ou seu campo
de abrangncia nos Juizados Especiais, mas no suprimi-la.
Por isso, foroso reconhecer que tal dispositivo inconstitucional e
incapaz de afastar a utilizao da ao rescisria, nos termos do art. 485 do
CPC, a ser julgada pelo Tribunal de Justia.84 Com efeito, o art. 59 da Lei n
9.099/95 deveria ser revogado.
A tese da inconstitucionalidade do art. 59, entretanto, no tem encontrado eco na doutrina e jurisprudncia nacional que, como dito, tem passado ao
largo do problema. Deste modo, preciso perquirir qual seria a soluo mais
adequada para atacar as decises viciadas que tenham transitado em julgado
nos Juizados Especiais. Humberto Theodoro Jnior85 e Alexandre Cmara86
defendem a interposio de ao anulatria, para o juzo comum, quando configurada a sentena nula ipso iure ou a sentena inexistente. Esta posio,
entretanto, no parece solucionar o problema. De fato, a ao anulatria
somente ser possvel em face de atos judiciais que no dependem de sentena ou em que esta for meramente homologatria (art. 486 do CPC). Assim, os
temas relacionados ao julgador, por exemplo, permaneceriam inatacveis.
83
84

85
86

Neste sentido, Alexandre Cmara, Juizados, p. 162.


Neste sentido, Jlia N. Cintra, Cabimento da ao rescisria no juizado especial de pequenas causas: respeito isonomia. Pestana de Aguiar, op. cit., p. 13, defende, na eventualidade de uma causa de maior complexidade ser julgada perante os Juizados Especiais, que seria possvel o ajuizamento de ao rescisria,
dirigida para o Grupo de Turmas Recursais ou par as Turmas Recursais Reunidas. Nos Juizados Especiais
Federais tem crescido o entendimento de que cabvel ao rescisria, perante as Turmas Recursais, por
inaplicabilidade do art. 59 da Lei n 9.099/95 ao sistema federal. Neste sentido, Daniele Carvalho Carlotto,
O cabimento da ao rescisria nos Juizados Especiais Federais frente Constituio Federal de 1988. Na
jurisprudncia, veja-se A presena do interesse pblico, em ltima anlise, da prpria Unio, elemento essencialmente diferenciador entre os sistemas dos Juizados Estaduais e dos Juizados Federais, tornando-os incompatveis quanto s disposies normativas que limitem o emprego de instrumento processual
destinado proteo ou realizao daquele - hiptese do art. 59, da Lei n 9.099/95. Assim entendendo,
admito a presente ao rescisria. (TRF 4 Regio Turma Recursal Federal Ao Rescisria
2008.40.00.706986-2 Rel. Juiz Federal Derivaldo de Figueiredo Bezerra Filho, j. em 02/10/08).
Op. cit., p. 494.
Op. cit., p. 163.

41

42

Felippe Borring Rocha

Preferimos, assim, defender a utilizao do mandado de segurana,


dirigido ao Tribunal de Justia,87 para atacar as decises transitadas em julgado nos Juizados Especiais.88 Importante sublinhar que, neste caso, no
haver a incidncia da Smula 268 do STF, que diz: No cabe mandado de
segurana contra deciso judicial com trnsito em julgado. Tal enunciado
somente aplicvel no juzo ordinrio, onde as sentenas transitadas em
julgado podem ser objeto de ao rescisria.

4. Concluses
De tudo o que foi exposto, possvel concatenar algumas concluses:
a) nos ltimos anos a qualidade da tutela jurisdicional prestada nos
Juizados Especiais sofreu significativa piora causada pela elevada e crescente demanda pelos servios judiciais, pela limitada
estrutura material e humana disponvel, pela falta de uma postura instrumental legtima dos operadores do Direito; e pela falta
de um controle mais rgido sobre o que feito nestes rgos;
b) preciso adotar medidas que permitam que as qualidades
dos Juizados Especiais produzam os resultados que dela se
esperam e, ao mesmo tempo, minimizem os efeitos colaterais que se tem observado;
c) os operadores do Direito tm que assumir o compromisso de
buscar melhorar o quadro existente, atravs do debate de
idias, da articulao entre a sociedade civil e o governo, da
implantao de novas prticas que possam aprimorar a qualidade da tutela jurisdicional prestada;
87

88

42

Em sentido contrrio, veja-se a Ementa 408 do ETRJECERJ Mandado de segurana. Invivel a impetrao para modificar sentena com trnsito em julgado. Inocorrncia de ilegalidade ou abuso de poder
por parte da autoridade impetrada, que indeferiu pedido para que fosse considerado como termo inicial
para incidncia da multa a data da intimao do trnsito em julgado da sentena e no a da intimao
da sentena, como determinado pelo juiz monocrtico. Denegada a ordem e Ementa 411 do ETRJECERJ O Mandado de Segurana no meio prprio para impugnar sentena, acobertada pelo manto
da coisa julgada ut Smula n 268, do Supremo Tribunal Federal.
Veja-se os comentrios ao art. 41 da Lei.

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43

d) os Juizados Especiais esto recebendo causas que deveriam


ser direcionadas para o juzo ordinrio;
e) transformar os Juizados Especiais em vias ordinrias est
comprometendo as suas qualidades e o prprio papel do
Poder Judicirio;
f) a interposio da demanda perante os Juizados Especiais
deve ser uma faculdade do autor e no uma imposio legal;
g) a atual estrutura da fase cognitiva do procedimento dos
Juizados Especiais irreal e deve ser reformulada;
h) o agravo de instrumento deve ser admitido nos Juizados
Especiais, restrito a determinadas situaes, submetido ao
procedimento previsto no CPC, firmado por advogado e
dirigido s Turmas Recursais;
i) o mandado de segurana contra decises interlocutrias nos
Juizados Especiais deve ser dirigido para o tribunal correspondente e no para a Turma Recursal;
j) as causas de menor complexidade, fixadas exclusivamente
pela matria (art. 3, II e III), no se submetem ao teto de 40
salrios mnimos;
k) a incompetncia territorial no sistema da Lei n 9.099/95
relativa e no pode ser conhecida de ofcio;
l) as funes judicantes dos juzes leigos previstas nos arts. 37
e 40 da Lei n 9.099/95 so inconstitucionais;
m)o juiz leigo poderia ficar responsvel pela conduo de uma
audincia preliminar, posterior sesso de conciliao e preparatria AIJ;
n) a dispensa da atuao do advogado inconstitucional;
o) todos os Juizados Especiais deveriam ter rgos de atuao
da Defensoria Pblica;
p) todos aqueles que podem ser autores nos Juizados Especiais
(art. 8, 1), estejam ocupando o plo ativo ou no plo passivo da demanda, independentemente da condio econmica, tm direito assistncia judiciria gratuita;
43

44

Felippe Borring Rocha

q) a Defensoria Pblica, nas Unidades onde ela se encontra


organizada, tem a prerrogativa exclusiva para o desempenho
de atividade de prestao da assistncia judiciria nos
Juizados Especiais;
r) as partes podem nomear, por escrito, representantes para a
causa em curso nos Juizados Especiais;
s) a gravao da audincia de instruo e julgamento deve ser
implementada pelo Juizado Especial, quando necessria ao
registros dos atos;
t) a Lei n 9.099/95 admite a produo da prova pericial em seu
procedimento;
u) a prova pericial precisa ser melhor estruturada, para viabilizar a sua realizao nos Juizados Especiais;
v) os embargos execuo passaram a representar um incidente processual;
w) a deciso que julga os embargos execuo tem natureza
interlocutria, impugnvel por agravo de instrumento,89 salvo se encerrar o procedimento executivo, quando passa a
desafiar recurso inominado;
x) o art. 59 da Lei n 9.099/95, que probe a utilizao da ao
rescisria nos Juizados Especiais inconstitucional.

5. Referncias bibliogrficas
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89

44

Na maior parte do Brasil prevalece o entendimento de que, apesar de aplicvel a sistemtica do CPC aos
embargos execuo dos Juizados, o recurso cabvel contra a deciso que o julgar ser sempre o recurso inominado. Neste sentido, veja-se o Enunciado 12.2.1 da CEJCA Na execuo por ttulo judicial o
prazo para oferecimento de embargos ser de 15 (quinze) dias e fluir da intimao da penhora. Da sentena que julgar os embargos caber o recurso inominado previsto no art. 42 da Lei 9.099/95.

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C) Congressos, enunciados e ementrios
1 Ementrio das Turmas Recursais dos Juizados Especiais Cveis do Estado
do Rio de Janeiro 1 ETRJECERJ.
2 Ementrio das Turmas Recursais dos Juizados Especiais Cveis do Estado
do Rio de Janeiro 2 ETRJECERJ.
1 Encontro de Juzes de Juizados Especiais Cveis e de Turmas Recursais do
Estado do Rio de Janeiro, realizado em Angra dos Reis, nos dias 29 a 31
de outubro de 1999 1 EJECTRERJ.
1 Encontro de Juzes de Juizados Especiais Cveis da Capital e da Grande
So Paulo 1 EJJEC.
Consolidao dos Enunciados Jurdicos Cveis e Administrativos em Vigor
Resultantes das Discusses dos Encontros de Juzes de Juizados Especiais
Cveis e Turmas Recursais do Estado do Rio de Janeiro CEJCA.
Encontro Nacional de Coordenadores de Juizados Especiais do Brasil
FONAJE
Fruns Nacionais dos Juizados Especiais, organizados pela Associao dos
Juzes Federais do Brasil FONAJEF.
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men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora

2
Garantias do Processo Justo nos
Juizados Especiais Cveis
Fernando Gama de Miranda Netto

SUMRIO: 1. Introduo. 2. Blindagem garantstica para o cidado. 3. Garantia da efetividade do processo para o autor. 4. Garantias do ru nos juizados especiais. 5. Procedimento
sumarssimo entre garantismo e autoritarismo. 6. Concluses. 7. Referncias bibliograficas.
8. Referncias eletrnicas.

1. Introduo
No se pode ignorar a fama alcanada pelos juizados especiais cveis
perante a populao brasileira. As razes apontadas geralmente recaem
sobre a celeridade, informalidade e gratuidade desse juzo na composio
de conflitos. Na trilha do sucesso da Lei n 9.099/95, que regula o procedimento sumarssimo na esfera estadual, editou-se a Lei n 10.259/01, com o
objetivo de cuidar de litgios no mbito federal. Tais leis formam, em conjunto, o Estatuto dos Juizados Especiais Cveis, e devem ser interpretadas
harmonicamente.1
Observe-se, no entanto, que o procedimento dos Juizados Especiais
gera a crena de que os problemas do alto custo do processo e a demora
excessiva na entrega da prestao jurisdicional so completamente afastados em relao ao procedimento ordinrio, mas, simultaneamente, esconde
os problemas gerados na busca de um processo ideal de resultados, que
melhor seria aqui denominado estatstico, em face de seu compromisso
com o esvaziamento de prateleiras, com a demonstrao pblica de que algo
est sendo feito para desafogar a justia.

CMARA, Alexandre. Juizados Especiais Cveis Estaduais e Federais: uma abordagem crtica, passim.

49

50

Fernando Gama de Miranda Netto

Tal preocupao , sem dvida, das mais louvveis e afinadas com a


crescente demanda pelo servio pblico justia, mas impe-se considerar
a que preo os resultados colimados sero atingidos. Em outras palavras,
deve-se indagar at que ponto se pode, em benefcio da celeridade e da efetividade, descurar-se de outras garantias processuais, que igualmente compem o modelo constitucional de processo justo.
A idia perfilhada esta: quem desampara os meios desampara tambm os fins. Ora, a obteno de um resultado reconhecidamente justo pressupe a construo de um meio justo, sob pena de retornarmos mxima
maquiavlica os fins justificam os meios.
O processo garantstico almeja a preservar todas as garantias de um processo justo. Nesse contexto, esto inseridos os fenmenos da constitucionalizao e internacionalizao dos direitos fundamentais e garantias processuais,
portadores de um significado nitidamente ideolgico: as naes perceberam
que, se o direito no imutvel, deve ao menos possuir componentes mnimos, regras estveis referidas a valores, capazes de refletir na administrao
da justia.2 Como se v, processo estatstico e processo garantstico no se
excluem mutuamente. O que no se deve perder de vista, no entanto, que
um processo meramente estatstico ser, por natureza, antigarantista.
No estamos panfletando o fim dos juizados especiais. Ao revs, este
exame dos juizados especiais cveis, luz das garantias constitucionais do
processo, alveja a contribuir para o aperfeioamento dessa via alternativa
para resoluo de conflitos.
Nosso pequeno estudo pretende investigar: a) at que ponto pode a
efetividade retirar das partes as garantias que elas teriam no procedimento ordinrio?; b) quais as garantias renunciveis e quais as garantias mnimas de um processo justo?; c) h paridade de armas nos juizados especiais
cveis? d) quais os principais defeitos do microssistema dos juizados especiais? e) pode o magistrado retirar das partes mais garantias processuais,
alm das que o legislador expressamente subtraiu? f) a idia de um processo garantstico incompatvel com o procedimento sumarssimo, j que
necessita ser clere?

50

CAPPELLETTI, Mauro. Fundamental Guarantees of the Parties in Civil Litigation, p. 766-768.

Garantias do Processo Justo nos Juizados Especiais Cveis

51

2. Blindagem garantstica para o cidado


Uma concepo garantista do Direito impe a sujeio de todos os
poderes Constituio, especificamente na proteo dos direitos fundamentais, e isto tem especial relevncia para o processo.
Pensar na blindagem garantstica das partes no processo significa que
existe um conjunto de garantias mnimas a serem respeitadas na realizao de
um processo justo. Isso no diz respeito ao formalismo, que deve ser evitado.3
Nessa linha de raciocnio, o garantismo um modelo normativo
(dever-ser) imposto funo judicante do Estado para assegurar os direitos
processuais dos cidados, como o devido processo legal, a paridade de armas
o contraditrio.4 Ao mesmo tempo, constitui uma teoria jurdica que
exige dos juristas o esprito crtico e a incerteza permanente sobre a validade das leis vigentes quando examinadas luz do modelo constitucional de
processo justo.5
Transportar para o procedimento sumarssimo dos juizados especiais
todas as garantias dispostas no Cdigo de Processo Civil poderia significar a
sua transformao em um procedimento ordinrio. Por essa razo, em
nome da celeridade e da economia processual, subtraem-se, no procedimento sumarssimo, algumas garantias dos sujeitos processuais, como a possibilidade de uma das partes provocar a interveno de terceiro (art. 10 da
Lei n 9.099/95), propor ao rescisria (art. 59) e, no mbito dos Juizados
Especiais Federais, interpor recursos de sentenas terminativas (art. 5 da
Lei n 10.259/2001).

3
4

Cf. DINAMARCO, Cndido Rangel. Os juizados especiais e os fantasmas que os assombram. In:
Fundamentos do Processo Civil Moderno, tomo II, p. 1.427 et seq.
Vittorio Denti, em Il ruolo del giudice nel processo civile tra vecchio e nuovo garantismo (in: Sistemi e
Riformi: Studi sulla Giustizia Civile), um dos autores que mais se dedicou ao tema do garantismo, j havia
consignado em 1984 que la funzione garantistica del giudice pu essere vista in due modi: um primo, che
potremmo definire vetero-garantistico, e risponde ad uma conzecione meramente formale della ugualianza delle parti nel processo; il secondo, che potremmo definire neo-garantistico, e risponde ad uma esigenza di ugualianza reale e sostanziale tra l parti stesse. [...] La definizione di vetero-garantismo non vuole
avere conotati negativi, ma soltanto essere indicativa del fatto che si tratta della concezione affermattasi
com le codificazioni ottocentesche, almeno sino alla Zivilprozessordnung austraca de 1895 (alla quale,
com noto, si ispir Chiovenda nella sua opera riformatrice). La seconda conzecione affida al giudice um
ruolo di promozione della effetiva parit delle armi nel processo [...] (p. 176).
Cf. FERRAJOLI, Luigi. Teoria do Garantismo Penal, p. 684-685.

51

52

Fernando Gama de Miranda Netto

Tais vedaes no ocorrem sem algum arranho ao devido processo


legal. Com efeito, embora se justifiquem em nome da garantia da efetividade, acabam por vulnerar outras garantias. A propsito, observe-se a lio de
Jos Carlos Barbosa Moreira:
Se uma Justia lenta demais decerto uma Justia m, da
no se segue que uma Justia muito rpida seja necessariamente uma Justia boa. O que todos devemos querer que a prestao jurisdicional venha a ser melhor do que . Se para torn-la
melhor preciso aceler-la, muito bem: no, contudo, a qualquer preo.6
Como pondera Humberto Theodoro Jr.,7 na justa soluo do conflito
levado a juzo, duas foras opostas atuam sobre o processo: A que exige
soluo rpida para o litgio e a que impe delonga atividade jurisdicional
para a efetivao do contraditrio e da ampla defesa.
Se a cincia processual hodierna traz consigo o contraste estabelecido
entre a garantia de efetividade do processo para o autor e as garantias de
defesa para o ru, cumpre indagar at que ponto se justifica a supresso de
determinadas garantias em nome da efetividade.

3. Garantia da efetividade do processo para o autor


Para Leonardo Greco, a tutela jurisdicional efetiva um direito fundamental, cuja eficcia irrestrita preciso assegurar, em respeito prpria
dignidade humana.8
Segundo Luigi Comoglio9 efetividade significa que todos devem ter
pleno acesso atividade estatal, sem qualquer bice (effetivit soggetiva);10

6
7
8
9
10

52

MOREIRA, Jos Carlos Barbosa. O futuro da justia: alguns mitos. Revista Forense, vol. 352, p. 118.
THEODORO JR., Humberto. Tutela de emergncia: antecipao de tutela e medidas cautelares. In: O
processo civil brasileiro no limiar do novo sculo, p. 76.
GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. Revista Jurdica, v. 305, p. 89.
COMOGLIO, Luigi. Giurisdizione e processo nel quadro delle garanzie constituzionali, p. 1.070.
O Ato Normativo Conjunto n 1/2005 do Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro dispe sobre
a eliminao de processos nos juizados especiais cveis. Art. 1 Os autos processuais findos dos Juizados

Garantias do Processo Justo nos Juizados Especiais Cveis

53

devem ter a seu dispor meios adequados (effetivit tecnica) para a obteno
de um resultado til (effetivit qualitativa) e suficiente para assegurar aquela determinada situao da vida reconhecida pelo ordenamento jurdico
material (effetivit oggetiva).11
H de se reconhecer que o acesso ao procedimento sumarssimo est
longe do ideal. Com efeito, o art. 51, I, da Lei n 9.099/95 exige o comparecimento pessoal do autor audincia, sob pena de extino do processo.
Para se desenvolver uma tutela efetiva nos juizados especiais, preciso relativizar esse mandamento, de modo que a pessoa fsica portadora de
deficincia fsica ou impossibilitada de locomoo12 possa se fazer representar por preposto, como ocorre nos procedimentos sumrio (art. 277, 3) e
ordinrio (art. 331, do CPC).13
No entanto, h mais razes que recomendam a permisso de que qualquer pessoa possa se fazer representar por preposto. muito comum, no
mbito dos juizados especiais estaduais, a pessoa fsica demandar em face de
pessoa jurdica. Nesse caso, a pessoa fsica litigante eventual (possui uma
ou poucas causas nos juizados especiais) e precisa paralisar todas as suas atividades do dia em funo da audincia; enquanto a pessoa jurdica que, em
regra, litigante contumaz, est preparada para indicar qualquer pessoa
para atuar como preposto.14 A justificativa para que o autor comparea pessoalmente parece estar presa ao depoimento pessoal, mas muitas vezes um
empregado do autor ou mesmo um administrador de um imvel pode
conhecer muito melhor os fatos que o prprio titular do direito. Em uma
ao de responsabilidade civil por dano a veculo, o proprietrio do bem

11
12

13
14

Especiais Cveis sero eliminados aps o prazo de 180 dias da data do arquivamento definitivo. No
clara esta regra do arquivamento definitivo (existe o provisrio?). Pior que o risco de os autos serem
destrudos aps sentena condenatria (antes de consumado o prazo prescricional) o desinteresse estatal em conservar a histria dos processos, que poderiam ser objeto de pesquisa futuramente.
Cf. MOREIRA, Jos Carlos Barbosa. Efetividade do processo e tcnica processual. In: Temas de Direito
Processual, Sexta Srie, p. 17 et seq.
Estabelece o Estatuto do Idoso (L. 10.741-2003) que o idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes pessoa humana (art. 2) e que obrigao do Poder Pblico assegurar ao idoso, com absoluta
prioridade, a efetivao de seus direitos (art. 3).
Tema bem explorado por Mrcia Cristina Xavier de Souza, em Acesso Justia e Representao das
Partes nos Juizados Especiais Cveis, in: Direito Processual e Direitos Fundamentais, p. 161 et seq.
No sentido do texto, Mrcia Cristina Xavier de Souza, op. cit., p. 181.

53

54

Fernando Gama de Miranda Netto

pode nada conhecer em comparao ao seu filho ou ao motorista. H de se


acrescentar que essa barreira da representao por preposto inexiste nos
juizados especiais federais, em razo do art. 10 da Lei n 10.259/2001.15
Outro ponto inexplicvel a manuteno do art. 8 da Lei n 9.099/95,
na parte em que o cidado fica impedido de litigar contra estado ou municpio. Deveras, no se compreende porque o cidado pode litigar contra a
Unio no procedimento sumarssimo, mas est impedido de litigar contra
outros entes pblicos.16 No faz sentido discutir uma multa de trnsito no
valor de meio salrio mnimo, quando se sabe que s as custas do procedimento sumrio ultrapassam este valor. Resta contentar-se com as lacnicas
fundamentaes dos rgos administrativos, evidentemente desprovidos de
independncia para realizar um julgamento justo.17
Nem se lance o esdrxulo argumento de que isso poderia inviabilizar
os Juizados Especiais por conta da enchente de demandas proveniente da
litigiosidade contida,18 o que no pode servir de desculpa eterna para os
entes municipais e estaduais ignorarem os direitos dos cidados. Nada obsta
a criao de um juizado especial especializado na matria.19

4. Garantias do ru nos juizados especiais


At que ponto pode a efetividade retirar das partes as garantias que elas
teriam no procedimento ordinrio? E ainda: h paridade de armas nos juizados especiais cveis? Afinal, quais as garantias renunciveis?

15
16
17
18

19

54

Art. 10. As partes podero designar, por escrito, representantes para a causa, advogado ou no.
No mesmo sentido: CMARA, op. cit., p. 22-23.
Tais rgos administrativos so as juntas administrativas de recursos de infraes JARI (cf. <http://
www.denatran.gov.br/jaris.htm>).
Parece-nos que a expresso litigiosidade contida introduzida no direito ptrio por Kazuo Watanabe,
em Filosofia e Caractersticas Bsicas do Juizado Especial de Pequenas Causas (in: Juizado Especial de
Pequenas Causas, p. 2).
Tendo em vista essa possibilidade, j houve at a alterao do valor do teto dos Juizados Especiais para
os municpios pela Emenda Constitucional n 37/2002: Art. 87. Para efeito do que dispem o 3 do
art. 100 da Constituio Federal e o art. 78 deste Ato das Disposies Constitucionais Transitrias sero
considerados de pequeno valor, at que se d a publicao oficial das respectivas leis definidoras pelos
entes da Federao, observado o disposto no 4 do art. 100 da Constituio Federal, os dbitos ou obrigaes consignados em precatrio judicirio, que tenham valor igual ou inferior a: I - quarenta salriosmnimos, perante a Fazenda dos Estados e do Distrito Federal; II - trinta salrios-mnimos, perante a
Fazenda dos Municpios.

Garantias do Processo Justo nos Juizados Especiais Cveis

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Quem vivencia os juizados especiais cveis na atualidade pode constatar a violao flagrante do princpio da igualdade. No seria exagero dizer
que o ru j entra derrotado no procedimento sumarssimo, criando-se um
verdadeiro processo civil do autor.
Jos Igncio Botelho Mesquita sustenta a inconstitucionalidade de se
atribuir somente ao autor a opo de escolher entre o procedimento da
Justia Comum e o do Juizado Especial, porque este no se submete lei
(art. 5, II, CF), nem ao devido processo legal (art. 5, LIV e LV), mas jurisdio de eqidade (art. 6, Lei n 9.099/95).20
interessante notar que Alexandre Cmara considera que, pela mesma
razo, o procedimento sumarssimo no pode ser obrigatrio para o autor.21
Cndido Rangel Dinamarco defende esta posio, ao asseverar que no se
pode impor ao demandante uma espcie processual que, se de um lado lhe
oferece vantagens, de outro impe restries cognitivas que talvez no lhe
convenham. O demandante o nico rbitro dessa convenincia.22 No
entanto, ignorado o fato de que, uma vez eleita a via pelo demandante, o
ru acaba sendo obrigado a aceit-la. Cabe perguntar: por que no se pode
impor ao demandante determinado procedimento, mas o ru deve curvarse escolha do autor?
Ou seja: o autor, ao escolher o procedimento sumarssimo, promove,
em decorrncia da lei, um verdadeiro desequilbrio de foras, j que o ru
ter algumas garantias suas desprezadas. Assim, se o ru devedor solidrio, no poder promover o chamamento ao processo dos demais co-devedores no procedimento dos Juizados Especiais (art. 10 da Lei n 9.099/95),
garantia que lhe seria assegurada se demandado pelo procedimento ordinrio (art. 77, III, CPC). Pior: impede que este mesmo devedor ajuze uma
ao cautelar de arresto, caso os demais co-devedores estejam dando sumio aos bens, j que no ter ainda fundamento legal para propor uma
demanda principal. So esclarecedoras as palavras de Joel Dias Figueira

20
21
22

MESQUITA, Jos Igncio Botelho. O Juizado Especial em face das garantias constitucionais. Revista
Jurdica, v. 330, p. 9 e 13.
CMARA, op. cit., p. 28.
DINAMARCO, Cndido Rangel. Instituies de Direito Processual Civil, vol. III, p. 775.

55

56

Fernando Gama de Miranda Netto

Jnior: no se pode perder de vista que o objetivo do legislador em excluir


a possibilidade de interveno de terceiros foi apenas o de evitar que se
verificasse a procrastinao da demanda, em desfavor do autor.23
Explica Ftima Nancy Andrighi: no obstante se respeite a redao
legal, h que se ponderar sobre a possibilidade de pessoa no integrante
da lide necessitar intervir, na qualidade de terceiro prejudicado, mediante interposio de recurso de molde a evitar lhe seja causado algum dano
decorrente do julgado.24 Para Alexandre Cmara, as vedaes do art. 10
no se justificam em relao ao chamamento ao processo, ao recurso de
terceiro e nomeao autoria.25 Nesta linha de raciocnio, sugere
Felipe Borring Rocha que a lei seja alterada para se permitirem algumas
intervenes.26
H outras vedaes no mbito do procedimento sumarssimo automaticamente impostas ao ru, tranquilamente aceitas pela jurisprudncia,
como o uso de recurso especial para o Superior Tribunal de Justia27 e a utilizao de mais de trs testemunhas (art. 34 da Lei n 9.099/95).
O processo civil do autor dos Juizados Especiais autoriza, ainda, com
fundamento no Enunciado n 53 do Frum Permanente de Juzes Coordenadores dos Juizados Especiais Cveis e Criminais do Brasil, que a inverso do
nus da prova ocorra a qualquer momento, desde que essa possibilidade aparea no mandado de citao: Dever constar da citao a advertncia, em
termos claros, da possibilidade de inverso do nus da prova.28

23
24
25
26
27

28

56

FIGUEIRA JR., Joel Dias. Primeira Parte: Juizados Especiais Cveis. In: Comentrios Lei dos Juizados
Especiais Cveis e Criminais, p. 217.
ANDRIGHI, Ftima Nancy. Parte I: Juizados Especiais Cveis. In: Juizados Especiais Cveis e Criminais,
p. 31.
CMARA, op. cit., p. 22-23.
ROCHA, Felipe Borring. Juizados Especiais Cveis, p. 84.
Tal entendimento teve por base a interpretao literal do art. 105, III, da Constituio Federal, que trata
do cabimento do recurso especial contra as decises proferidas, em nica ou ltima instncia, pelos
Tribunais Regionais e pelos Tribunais dos Estados e do Distrito Federal. No possuindo as Turmas
Recursais status de Tribunal, cristalizou-se o entendimento na Smula n 203, do STJ: No cabe recurso especial contra deciso proferida por rgo de segundo grau dos juizados especiais. H de se mencionar a sugesto feita, com razo, por Alexandre Freitas Cmara (op. cit., p. 159), para a Lei n 9.099/95,
no sentido de ser institudo um recurso de divergncia sempre que a Turma Recursal conferir lei interpretao divergente da que lhe houver atribudo outra Turma Recursal do mesmo Estado da Federao.
Cf. http://www.fonaje.org.br/.

Garantias do Processo Justo nos Juizados Especiais Cveis

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A doutrina mais autorizada obviamente repudia tal construo, por


violar a garantia do contraditrio, embora seja praticada sem maiores constrangimentos nos Juizados Especiais do Rio de Janeiro. Com a publicao do
Enunciado n 3 (D.O. de 30/5/2005, Parte III, p. 1-3 do Aviso n 17 do
Encontro de Desembargadores de Cmaras Cveis do Tribunal de Justia do
Estado do Rio de Janeiro), A inverso do nus da prova, prevista na legislao consumerista, no pode ser determinada na sentena, tal proceder
poderia ter sido revisto. Todavia, o Aviso n 23 do TJRJ, de 02.07.2008, estabelece no item 9.1.2 que: A inverso do nus da prova nas relaes de consumo direito do consumidor (art. 6, caput, CDC), no sendo necessrio
que o Juiz advirta o fornecedor de tal inverso, devendo este comparecer
audincia munido, desde logo, de todas as provas com que pretenda
demonstrar a excluso de sua responsabilidade objetiva.
Tal enunciado viola o modelo constitucional de processo justo, porque
impede que a parte apresente defesa e influencie o convencimento do
magistrado. No se pode simplesmente supor que a lei tenha imposto
parte o nus de adivinhar o critrio que o juiz ir utilizar na sentena.29
Diferentemente do procedimento ordinrio (art. 331, 2, CPC), no h,
nos Juizados Especiais, uma oportunidade para a deciso de saneamento
antes da audincia de instruo e julgamento. Por esta razo, se o juiz, na
audincia de instruo e julgamento, constata a necessidade de inverso do
nus da prova, deve conferir parte prejudicada pela inverso a oportunidade de apresentar a contraprova, podendo marcar nova audincia para que
a prova seja submetida ao contraditrio.30
Tambm a gratuidade anunciada pela lei problemtica para o ru nos
Juizados Especiais. A permisso de se propor uma demanda sem que seja
cobrado um nico centavo do autor acaba estimulando a litigiosidade
pode-se falar em uma litigiosidade exacerbada.31 O autor franco atirador, pois no tem nada a perder no precisa, muitas vezes, sequer gastar

29
30
31

JOS MARIA ROSA TESHEINER, Sobre o nus da prova, in: Estudos de Direito Processual Civil:
homenagem ao Prof. Egas Dirceu Moniz de Arago, p. 359.
Cf. MIRANDA NETTO, Fernando Gama de. nus da Prova no Direito Processual Pblico, item 5.3.4.
CMARA, op. cit., p. 9-10.

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58

Fernando Gama de Miranda Netto

com advogado.32 J o ru, temeroso de ter algum prejuzo no caso de procedncia do pedido do autor, v-se obrigado a contratar um advogado, que
ter de ser pago, ainda que saia vitorioso em primeiro grau. Assim, ousamos
afirmar que a gratuidade dos juizados especiais s existe para o autor.33
Parece que a nica vantagem para o ru de estar no procedimento
sumarssimo refere-se ao momento de apresentar a contestao, na audincia de instruo e julgamento. Mas tal vantagem configura um privilgio
injustificvel. Ora, a apresentao da contestao na audincia de instruo
e julgamento no s dificulta que a parte autora rebata adequadamente os
argumentos da parte r, como tambm impede que o conciliador fixe os
pontos controversos j na audincia de conciliao.34 Isso parece violar
tambm a garantia do contraditrio, no que se refere congruidade dos
prazos.35 No se compreende, portanto, o porqu de o ru ter o privilgio
de meses para apresentar uma simples contestao e de o autor ter de rebat-la imediatamente aps conhecer o seu teor.
Outras garantias que o ru teria fora dos Juizados Especiais lhe foram
retiradas, como prazos diferenciados (art. 9 da Lei n 10.259-01) e remessa
necessria (art. 13), no que se refere s pessoas jurdicas de direito pblico.

32

33

34

35

58

Na reportagem de Laura Antunes A m-f que est por trs de aes que chegam aos juizados especiais (O Globo, 4/5/2005, p. 21), h o relato de que um cidado acabou preso, depois de tentar processar a mesma empresa de nibus 93 vezes. Em outro caso, conta-se que o dono de um gato pediu indenizao por danos morais em face de seu condomnio, pelo fato de seu animal ter se machucado ao cair
da varanda, fundamentando que deveria haver uma rede de proteo. Encontra-se ainda na mesma
reportagem a notcia de que, no XXI Juizado Especial da cidade do Rio de Janeiro, um rapaz pedia indenizao em face do motel, em virtude de ter falhado com a namorada, constrangido ao verificar que
o local no possua todo o conforto que dizia ter na propaganda.
de se observar que alguns Estados, como o de Santa Catarina e o de Mato Grosso, estabeleceram o
recolhimento de custas para as diligncias com Oficial de Justia. O Conselho Nacional de Justia tem,
no entanto, impedido tal cobrana (http://www.conjur.com.br/2007-jun-07/cobranca_taxa_juizados_especiais_ contraria_lei, consultado em 28 de maro de 2009).
O conciliador , muitas vezes, jogado nos juizados especiais sem um mnimo de preparo, com a misso de cumprir uma estatstica pr-determinada de acordos. No Rio de Janeiro, no h um curso prvio
para o conciliador aprender como tratar as partes. O seu preparo ocorre s avessas: primeiro analisado o seu desempenho estatstico: se for bom, far jus ao curso de instruo do conciliador; se for ruim,
ser descartado. A propsito, noticia Kazuo Watanabe em Relevncia poltico-social dos Juizados
Especiais Cveis (sua finalidade maior): Os conciliadores no esto recebendo, em vrios Estados, a
formao e o aperfeioamento necessrios, atravs de cursos, treinamentos e trocas de experincias (in:
Temas Atuais de Direito Processual Civil, p. 207).
Cf. GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. In: Revista Jurdica, v.
305, p. 72.

Garantias do Processo Justo nos Juizados Especiais Cveis

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Aqui andou bem o legislador, porque tais garantias so insustentveis em


qualquer tipo de procedimento.36
Permitir que a parte autora renuncie a determinadas garantias processuais em nome da efetividade parece razovel. O que soa estranho impor a
renncia de inmeras garantias pela parte r sem que haja nisso uma compensao. Se o que se pretendia era evitar que o ru se utilizasse do processo como
instrumento de procrastinao, caiu-se no extremo oposto: ao autor, tudo!

5. Procedimento sumarssimo entre garantismo e autoritarismo


O Poder Judicirio tem prestado um grande servio populao por
meio dos juizados especiais, no obstante a lei ter defeitos em inmeros
pontos, como ocorre, por exemplo, com a supresso de instrumentos processuais, como a ao rescisria (art. 59 da Lei n 9.099/95) e o recurso contra sentena terminativa nos juizados especiais federais (art. 5 da Lei n
10.259/2001).
Vejamos um dos problemas provocados pela proibio da ao rescisria. Se houver duas sentenas transitadas em julgado envolvendo o mesmo
objeto, qual ter validade nos juizados especiais cveis? Tal coliso, em virtude do art. 59, s poder ser resolvida com a prevalncia da segunda, diferentemente do que ocorre com os procedimentos do Cdigo de Processo
Civil (art. 485, IV). No deixa de ser uma incoerncia, j que nos Juizados
Especiais podemos ter demandas com valor superior a 40 salrios mnimos
quando a competncia for fixada em razo da matria.37 Por que esse tratamento diferente, mormente quando isso ocorrer em prejuzo do ru?
Afinal, ser que cabe ao autor decidir quais garantias integraro o processo? A nosso ver, a imparcialidade e a garantia do contraditrio e da

36

37

Contrrios, sustentando a necessidade da manuteno dos privilgios da Fazenda Pblica, em virtude


da supremacia do interesse pblico sobre o particular esto Elysngela Pinheiro e Osrio Barbosa,
Acesso justia e a preservao das prerrogativas essenciais da Fazenda Pblica (in: Juizados Especiais
Federais, p. 201 et seq).
No h limite de valor nas causas cveis de menor complexidade fixadas em razo da matria, enumeradas no art. 3, II e III, da Lei n 9.099/95 c/c 275, II, do CPC. Neste sentido: Alexandre Cmara (op.
cit., p. 37); contra: Joel Dias Figueira Jnior (op. cit., p. 99 et seq.), que o admite apenas em relao
demanda de despejo para uso prprio a inexistncia de limite valorativo.

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60

Fernando Gama de Miranda Netto

ampla defesa compem o ncleo mnimo irrenuncivel do processo justo.


Nem mesmo o autor pode renunciar a tais garantias.
No que tange imparcialidade, o problema poderia ser mitigado se houvesse a possibilidade de se responsabilizar o Estado nos casos em que esta
garantia no fosse observada. Assim, o autor deve ter direito indenizao
contra o Estado caso descubra que seu julgamento foi realizado por juiz parcial, j que no pode propor ao rescisria. O mesmo vale para o ru.
No que se refere ampla defesa e ao contraditrio, seria recomendvel
a alterao da lei para, ao lado da defesa baseada na complexidade da causa
(art. 3 c/c 51, II, da L. 9.099/95), estabelecer outra exceo processual para
o caso de o ru pretender exercer determinada faculdade processual que s
lhe seria conferida em outro procedimento, faculdade imprescindvel para
vencer a causa. No bastaria, por exemplo, a mera alegao do ru de que
precisam ser ouvidas mais de trs testemunhas, mas este deveria apontar
concretamente a necessidade da oitiva de mais de trs pessoas. Tal exceo
poderia ser utilizada tambm quando o demandado fosse devedor solidrio
e quisesse fazer uso do chamamento ao processo.
A boa inteno do art. 5 da Lei n 10.259/2001 gera algumas perplexidades. Como ir o advogado explicar para o seu cliente uma sentena terminativa irrecorrvel, proferida depois de alguns meses aps a realizao da
audincia de instruo e julgamento? Tal dispositivo nos parece inconstitucional, pois viola a garantia de isonomia. Com efeito, o cidado, quando litiga contra um particular no procedimento sumarssimo do mbito estadual,
pode recorrer da sentena terminativa; no, porm, quando litiga contra a
Unio nos juizados especiais federais! Acrescente-se que uma sentena terminativa proferida aps a realizao de audincia de instruo e julgamento,
quando a causa j est madura, significa no s admitir o desperdcio dos atos
processuais praticados com atentado economia processual dever-se-ia
aplicar subsidiariamente o art. 515, 3, do CPC , mas tambm aceitar a
indiferena do Estado em relao ao dano marginal que o tempo pode causar
esfera jurdica do litigante. J tivemos notcia de pedidos de reconsiderao
acolhidos em virtude de o prprio magistrado ter reconhecido seu erro.
60

Garantias do Processo Justo nos Juizados Especiais Cveis

61

Ao lado desses problemas de ordem legislativa, poderia o magistrado


retirar das partes mais garantias processuais, alm das que o legislador
expressamente retirou?
Nos juizados especiais federais do Rio de Janeiro, j se resolveu tornar
exceo o princpio da oralidade, por conta do Enunciado n 12 das Turmas
Recursais: Embora seja regra geral a realizao de audincia no mbito do
JEF, a no realizao da mesma, a critrio do Juiz, no induz em princpio
nulidade. O autoritarismo reside na expresso a critrio do juiz, que parece
ignorar o princpio da oralidade, mesmo contra a vontade das partes.38
Um princpio precisa orientar nossas consideraes: as proibies
devem ser expressas. Quando o legislador pretendeu excluir certas garantias o fez expressamente, o que j propicia no s algumas perplexidades,
mas tambm inconstitucionalidades. Esta a razo que anima Calmon de
Passos a disparar: no consigo colocar os Juizados Especiais no abrigo protetor da Constituio, pensada e aplicada democraticamente.39
Assim, os direitos processuais que no forem expressamente vedados
pelo Estatuto dos Juizados Especiais no podem ser simplesmente suprimidos pelo magistrado, sob a alegao genrica de incompatibilidade. A aplicao subsidiria do CPC decorre de sua natureza de lei ordinria, geral, do
Direito Processual Civil: deve o juiz, para afast-la, explicitar as razes da
incompatibilidade.
De que adianta suprimir o recurso de agravo, agora expressamente
admitido para atacar deciso que (in)defere uma tutela de urgncia (art. 4

38

39

Em So Paulo, a Resoluo n 259/2005, da lavra do presidente do Conselho da Justia Federal da 3


Regio, estabelece: Art. 19. A Secretaria de cada Juizado, quando da apresentao do pedido no atendimento, independentemente de autuao ou distribuio a magistrado, designar as datas de percias
e de audincia de conciliao, instruo e julgamento, essa ltima respeitando o prazo de trinta dias a
contar da citao, nos termos do art. 9 da Lei n 10.259/01. [...] 4 No caso de sentenas por lote ou
de matria exclusivamente de direito, sem audincia ou clculo, o processo ser distribudo e publicada a sentena, em Secretaria, em at trinta dias da apresentao da contestao ou, quando sujeita a clculo prvio, a sentena ser publicada, em Secretaria, em at trinta dias da apresentao do clculo submetido ao juiz. Vemos aqui duas distores. A primeira diz respeito possibilidade de a audincia de
instruo e julgamento ser marcada sem que o juiz e as partes se manifestem, o que viola a independncia do magistrado e o direito processual das partes oralidade e ao contraditrio participativo. Em
segundo lugar, a fiscalizao das sentenas por lote parece ser deficiente. O fato de o INSS concordar
em receber sentenas ilquidas nas aes de reviso de benefcio e a prpria autarquia efetuar o clculo parece promover um desequilbrio de foras entre as partes.
In: CMARA, op. cit. Prefcio, p. xiv.

61

62

Fernando Gama de Miranda Netto

c/c 5 da Lei n 10.259/2001) se nos casos de dano irreparvel ou de difcil


reparao a parte acaba utilizando o mandado de segurana? Tambm no
vemos razo para se proibir a utilizao do recurso adesivo, que acrescentaria, no mximo, mais dez dias na cadeia procedimental.40
Dir-se- que estamos querendo transformar o procedimento sumarssimo em procedimento ordinrio. Isto simplesmente impossvel pela
cadeia procedimental traada pela lei, que impe a concentrao dos atos
processuais. Uma vez proposta a demanda, a parte autora j sabe de pronto
a data da audincia de conciliao,41 e pode a audincia de instruo e julgamento ocorrer no mesmo dia. Abreviar o procedimento no sinnimo
de suprimir as garantias do processo justo. O que deve haver no procedimento sumarssimo to-somente a concentrao dos atos processuais, e
no a supresso do ncleo mnimo do processo justo. O respeito s garantias apenas tornaria o procedimento sumarssimo mais justo, na perspectiva
dos consumidores de justia as partes. Ensina Jos Carlos Barbosa
Moreira: Um processo de empenho garantstico por fora um processo
menos clere. Dois proveitos no cabem num saco, reza a sabedoria popular. pretenso desmedida querer desfrutar ao mesmo tempo o melhor de
dois mundos. Nada mais sumrio e rpido que o linchamento do ru.42
Todavia, o caso mais grave, nocivo concepo de processo justo nos
Juizados Especiais, refere-se ao preparo insuficiente.43 No que a lei seja
rigorosa; mas que alguns juzes optam por interpret-la contra o cidado,
preferindo parar a marcha processual, em razo de vcio sanvel, com a eli-

40

41

42
43

62

A compatibilidade do recurso adesivo com o processo do trabalho, no qual os juizados especiais cveis se
inspiraram, aps alguma vacilao da jurisprudncia, est pacificada pela Smula n 283, do TST: O
recurso adesivo compatvel com o processo do trabalho e cabe, no prazo de 8 (oito) dias, nas hipteses
de interposio de recurso ordinrio, de agravo de petio, de revista e de embargos, sendo desnecessrio que a matria nele veiculada esteja relacionada com a do recurso interposto pela parte contrria.
Nos Juizados Especiais Federais do Rio de Janeiro isso no ocorre: a audincia exceo. Os autos do
processo recebem apenas uma numerao. Verificamos, em setembro de 2005, que o tempo de espera
para a petio inicial ser distribuda de quatro meses.
MOREIRA, Jos Carlos Barbosa. O futuro da justia: alguns mitos. Revista Forense, v. 352, p. 117.
O preparo um pressuposto de admissibilidade recursal e consiste no pagamento prvio das despesas
relativas ao processamento do recurso e das demais custas judiciais. O preparo, segundo Alexandre
Cmara (op. cit., p. 200), inibe a classe mdia de interpor recurso, mas no o pobre (que pode recorrer
gratuitamente), nem as empresas. Isto parece ser confirmado pela pesquisa de Paulo Cezar Pinheiro
Carneiro, Acesso Justia (p. 155), que observa ser a maioria dos recursos interposta pelas pessoas jurdicas, patrocinadas por advogados.

Garantias do Processo Justo nos Juizados Especiais Cveis

63

minao imediata dos autos o que afronta, sem d, o princpio da informalidade.44 Deve-se insistir na pergunta: por que no se pode intimar a
parte para completar o valor faltante? Basta que o 1 do art. 42 da Lei dos
Juizados Especiais seja combinado com o 2 do art. 511 do CPC, que ,
alis, norma posterior. No se venha com a exegese formal de que a Lei n
9.099/95 especial em relao ao Cdigo.45 As turmas recursais parecem
ignorar a doutrina.
Assim, resume Leandro Ribeiro da Silva o debate:
No mbito dos Juizados, existem duas interpretaes. A
primeira reside no fato de que pago a menos, no surte os efeitos devidos e o preparo se torna inexistente, considerando-se
deserto o recurso. Essa interpretao vem sendo mantida pelo
Conselho Recursal, tendo como suporte o Enunciado n 3, de
agosto de 1997, segundo o qual o no recolhimento integral do
preparo do recurso inominado, previsto no artigo 42, pargrafo
1, da Lei 9.099/95, importa desero. De acordo com a segunda interpretao, conserva-se o recolhimento, entendendo-se
como erro material e, como tal podendo ser retificado, assinalando-se o prazo de 48 horas para que o recorrente possa complement-lo. Se no o fizer, o recurso ser considerado deserto.
Entendemos que a segunda interpretao mais coerente e
justa, vez que possibilita que a deciso seja apreciada pelo rgo
recursal, tornando-se juridicamente mais consistente. Alm
disso, encontra agasalho no artigo 511, 2, do Cdigo de
Processo Civil.46 (grifo nosso)

44

45
46

O princpio da informalidade parece ser o mais maltratado nos juizados especiais. Em nossa experincia forense, no Rio de Janeiro, j nos foi exigido pelo escrevente, para ajuizar a demanda, o comprovante do endereo do autor, sob pena de indeferimento da inicial havia o comprovante do endereo do
ru, que ficava no mesmo bairro do autor! Em outro caso, o escrevente afirmou que s com a apresentao de uma petio de juntada que se poderia anexar a procurao assinada pela parte. Solicitei,
ento, que ele me fornecesse uma folha em branco e, de punho prprio, requeri a juntada...
Partilham do mesmo inconformismo do texto: Alexandre Cmara (op. cit., p. 145-146) e Felipe Borring
Rocha (op. cit., p. 185).
SILVA, Leandro Ribeiro da. Comentrios aos artigos 41 a 59. In: Lei dos Juizados Especiais Cveis e
Criminais comentada e anotada, p. 143.

63

64

Fernando Gama de Miranda Netto

Embora tambm favorvel tese da intimao do recorrente para


complementar o recolhimento, Luiz Cludio Silva afirma que o clculo das custas processuais simples.47 Ousamos discordar. Muitos advogados, cientes da rigorosssima sistemtica dos juizados especiais com
referncia ao preparo buscam informaes no s na OAB, mas tambm
no prprio cartrio responsvel pelo processo, com o objetivo de que
nenhum erro ocorra em seu recolhimento. Muitos serventurios ajudam
no preenchimento da guia, ditando, um a um, os valores e contas a
serem pagos.
Mas todo esse esmero de nada vale para os juzes do procedimento
sumarssimo se houver a falta de apenas um centavo. Em alguns procedimentos do Cdigo de Processo Civil, a parte precisa promover o recolhimento das custas dos ofcios em guias separadas. Nos processos de inventrio, por exemplo, o advogado deve saber que os fruns regionais do Rio
de Janeiro exigem o recolhimento antecipado das custas. Aquele patrono
que busca incessantemente compreender todos os estratagemas criados
para o pagamento das custas judiciais, ir constatar que o prprio modelo
de preenchimento disponvel no portal dos Tribunais capaz de gerar
alguma dvida.48
Ademais, natural que, diante de tantos nmeros de contas consignados na Guia de Recolhimento do Estado do Rio de Janeiro (Grerj), surjam
problemas e confuses na hora do recolhimento. Parece que pretendem
criar, em breve, uma disciplina para ensinar a Teoria Geral das Custas
Judiciais nas faculdades de Direito!
Embora criados com base no modelo da Justia do Trabalho regida pelos mesmos princpios da informalidade e da celeridade , que

47
48

64

SILVA, Luiz Cludio. Os Juizados Especiais Cveis na doutrina e na prtica forense, p. 66.
Assim, quando se tentou no ano de 2005 obter informao no portal do Tribunal de Justia do Rio de
Janeiro, no item que indicava o modelo de recolhimento de custas do Recurso Inominado no Juizado
Especial, aparecia o seguinte: Nos casos de ofcios expedidos, necessrio preencher outra GRERJ,
observando o modelo citao, notificao, intimao e encaminhamento de ofcios via postal (exceto
em juizado especial). Era de se estranhar que no modelo especfico de Recurso Inominado no Juizado
Especial estivesse escrito exceto em Juizado Especial. O caminho para o arquivo, dentro do da pgina principal do tribunal, era: Dvida sobre custas <preencha o sua GRERJ> Recurso inominado no juizado especial. Disponvel em: <http://www.tj.rj.gov.br>. Acesso em 15 jun. 2005.

Garantias do Processo Justo nos Juizados Especiais Cveis

65

estabelece ao final de toda sentena o valor a ser pago com a eventual


interposio de recurso, os juizados especiais cveis preferem afastar-se
desse modelo simplificado de pagamento das custas judiciais para adotar um modelo autoritrio, que no condiz com os escopos do processo
garantstico.49
Ora, quem recolhe uma quantia de R$ 300,00, quando deveria recolher
mais alguns centavos, no pode, evidentemente, estar de m-f. evidente
que o preparo insuficiente nada mais que um erro comum (humano!),
facilmente sanvel.
Outra atitude estatal autoritria consiste em no devolver o valor recolhido,50 pois aos olhos do tribunal quem recorreu com valor insuficiente,
ainda que estivesse de boa-f, deve perder tudo; j quem interps recurso
sem juntar a guia de recolhimento (no recolheu absolutamente nada) est
perdoado, uma vez declarada a desero.
Inacreditvel, porm, o caso de sucumbncia recproca: se tanto o
autor como o ru recorrerem da sentena de procedncia parcial, ocorrer
o pagamento em dobro dos atos do processo (ex.: ofcios expedidos, atos dos
oficiais, etc.) por meio do preparo, e no a diviso das despesas.
Por derradeiro, registre-se que uma posio rgida em relao a este
tema, concluindo pela desero at mesmo quando faltar um nico centavo no recolhimento, significa um retrocesso em tema de juizados especiais,
fazendo com que o patrono da parte recorrente a aconselhe a recolher sempre uma quantia superior ao valor em tese, por medo. A justia que se dizia
gratuita converte-se em justia arrecadatria.

49

50

Da porque no nos parece excessivamente rigorosa, no mbito do processo do trabalho, a Orientao


Jurisprudencial n 140 da SBDI-1 do TST, segundo a qual: Ocorre desero do recurso pelo recolhimento insuficiente das custas e do depsito recursal, ainda que a diferena em relao ao quantum devido seja nfima, referente a centavos.
H notcias de que, em outros estados, devolv-se o valor recolhido em recurso no conhecido pelo fato
de o preparo ter sido insuficiente. No entanto, nos juizados especiais cveis do Rio de Janeiro, por fora
do Enunciado Administrativo n 24, do Tribunal de Justia (contido no Aviso n 40/2004, publicado no
DO em 22/12/2004), aplica-se a seguinte regra: No dispensa o pagamento das custas, nem autoriza a
restituio daquelas j pagas: a) a extino do processo em qualquer fase, por abandono, transao ou
desistncia, mesmo antes da citao do ru, nos termos do art. 20 da Lei n 3.350/99; b) a desistncia de
recurso interposto; c) o recurso declarado deserto, seja por intempestividade ou por irregularidade no
preparo, falta de preparo ou preparo insuficiente; d) o cancelamento da distribuio inicial, por falta de
pagamento do preparo no prazo devido. (grifo nosso)

65

66

Fernando Gama de Miranda Netto

6. Concluses
Nosso pequeno estudo pretendeu enfrentar as seguintes questes: a)
at que ponto a busca de efetividade, trao marcante dos juizados especiais,
pode justificar o sacrifcio das garantias processuais das partes inerentes ao
procedimento ordinrio?; b) quais as garantias renunciveis pelas partes e
quais as garantias mnimas de um processo justo?; c) h paridade de armas
nos juizados especiais cveis? d) quais os principais defeitos do microssistema dos juizados especiais? e) pode o magistrado retirar das partes garantias
processuais, alm das que o legislador expressamente subtraiu? f) A idia de
um processo garantstico incompatvel com o procedimento sumarssimo,
j que necessita ser clere?
a) exceo da imparcialidade, do contraditrio e da ampla
defesa, pode o legislador subtrair todas as garantias do autor,
j que este pode optar pelo procedimento sumarssimo. Em
relao ao ru, nenhuma garantia prevista no procedimento
ordinrio lhe pode ser subtrada, pois ele no pode escolher
um procedimento mais garantstico;
b) todas as garantias podem, em tese, ser renunciadas, a no ser
as da imparcialidade, do contraditrio e da ampla defesa, que
constituem o ncleo mnimo do processo justo;
c) o princpio da paridade de armas no respeitado nos
Juizados Especiais podendo sustentar-se a existncia de um
verdadeiro processo civil do autor;
d) o microssistema dos Juizados Especiais apresenta defeitos em
inmeros pontos, como ocorre, por exemplo, com a supresso de instrumentos processuais, como a ao rescisria (art.
59 da Lei n 9.099/95) e o recurso contra sentena definitiva
nos Juizados Especiais Federais (art. 5 da Lei n 10.259/2001);
e) os direitos processuais que no forem expressamente proibidos pelo Estatuto dos Juizados Especiais no podem ser
suprimidos pelo magistrado no procedimento sumarssimo,
sob a alegao genrica de que h incompatibilidade. A apli66

Garantias do Processo Justo nos Juizados Especiais Cveis

67

cao subsidiria do CPC deve ocorrer, em especial no que


diz respeito ao preparo, de modo a se compatibilizar com os
escopos de um processo garantstico;
f) para haver um procedimento sumarssimo justo, deve-se,
evidentemente, respeitar um mnimo de garantias processuais. Mas isso no significa transformar o procedimento
sumarssimo em procedimento ordinrio. Abreviar o procedimento no sinnimo de suprimir as garantias do processo justo: o que deve haver no procedimento sumarssimo
to-somente a concentrao dos atos processuais, e no a
supresso das garantias de imparcialidade, contraditrio,
ampla defesa e isonomia processual. Afinal, quem desampara os meios desampara os fins.

7. Referncias bibliograficas
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http://www.denatran.gov.br/
http://www.fonaje.org.br/
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men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora


men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora
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3
Os Juizados Especiais, a Insegurana
Jurdica e o Direito Medieval
Gustavo Santana Nogueira
SUMRIO: 1. Introduo. 2. Acesso justia. 3. Os Juizados Especiais e a insegurana jurdica. 3.1. A ausncia de controle de legalidade das decises dos Juizados. 3.2. Consequncias da falta de controle. 3.3. Os enunciados e os encontros. 4. O direito medieval. 5. Concluso. 6. Bibliografia.

ESCALO Saldastes com o cu a dvida de vossas funes e com o prisioneiro a do vosso ministrio. Tenho-me esforado a favor do pobre gentil-homem at
onde minha modstia o permite, mas o meu irmo juiz estava to severo, que me
forou concluso de que ele , de fato, o Direito.
(William Shakespeare, Medida por medida)

1. Introduo
Institudos por fora das Leis ns 9.099/951 e 10.257/01, os Juizados
Especiais Estaduais e Federais, respectivamente, foram criados como
importantes mecanismos de facilitao do acesso justia.
Em que pese a ida do cidado a um sistema judicial mais simples e
informal ter sido de fato facilitado, somos cticos a respeito do tipo de justia que o Estado entrega a esse cidado no mbito dos Juizados Especiais.
No se pretende aqui, de forma alguma, criticar a idia inicial dos Juizados
Especiais, muito menos os seus juzes, que dia-a-dia deparam-se com uma
quantidade absurda de causas, mas sim criticar a total insegurana jurdica
provocada pela atual forma de pensar o Juizado e no Juizado, a edio

No objeto deste ensaio a anlise do sistema dos Juizados Especiais antes das citadas leis, em especial,
o Juizado de Pequenas Causas da Lei n 7.244/84.

71

72

Gustavo Santana Nogueira

de centenas de enunciados que objetivam interpretar a lei federal com a


pretensa idia de uniformizar o entendimento nos Juizados, bem como a
loteria judiciria em que eles se transformaram.
Como podemos manter entusiasmo com um sistema onde no h controle de legalidade das decises? Como podemos manter o entusiasmo com
um sistema onde cada juiz, de cada Juizado, possui um entendimento diferente para questes de direito que so iguais? A nossa inteno expor
abertamente o problema para que no final possamos ao menos fazer um
juzo crtico dos Juizados, sem cair na vala comum daqueles que os consideram um sistema perfeito, uma conquista do cidado comum, vido por
uma justia informal e clere, mas que na verdade uma ofensa ao direito
constitucional do cidado de receber tratamento igualitrio. E a reside a
nossa principal ressalva: de que adianta uma justia clere e informal se na
verdade o que se faz uma injustia? Como nos ensina Leonardo Greco,
com o brilho que lhe inerente:
Isso no significa que os fins justifiquem os meios. Como
relao jurdica plurissubjetiva, complexa e dinmica, o processo em si mesmo deve formar-se e desenvolver-se com absoluto
respeito dignidade humana de todos os cidados, especialmente das partes, de tal modo que a justia do seu resultado
esteja de antemo assegurada pela adoo das regras mais propcias ampla e equilibrada participao dos interessados,
isenta e adequada cognio do juiz e apurao da verdade
objetiva: um meio justo para um fim justo.2
Afinal de contas justifica-se o sacrifcio de valores constitucionais
como a segurana jurdica, a igualdade, e at mesmo o princpio da legalidade em prol de outros como celeridade e economia processual?

72

GRECO, Leonardo. Garantias constitucionais do processo: o processo justo. <http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=429>. Acesso em 06.02.09. No mesmo sentido so as lies de
Fernando Gama de Miranda Netto: deve-se indagar at que ponto se pode, em benefcio da celeridade e da efetividade, descurar-se de outras garantias processuais, que igualmente compem o modelo
constitucional de processo justo. NETTO, Fernando Gama de Miranda. Juizados Especiais Cveis entre
autoritarismo e garantismo. Revista de Processo 165. So Paulo: RT, 2008, p. 186.

Os Juizados Especiais, a Insegurana Jurdica e o Direito Medieval

73

As crticas, ressaltamos, so dirigidas especificamente aos Juizados


Especiais Estaduais, visto que a pesquisa que fizemos limitou-se a analisar
as divergncias que sero expostas mais adiante.

2. Acesso justia
Como dito, os Juizados Especiais foram criados com objetivo de ampliar o acesso justia, de garantir ao cidado comum uma Justia clere e
informal, onde ele poderia ir sem advogado dependendo do valor da causa,
poderia narrar a sua pretenso oralmente ao serventurio, e acompanhar
seu processo gratuitamente. Porm isso no o suficiente para garantir o
acesso justia e concretizar o princpio previsto no art. 5, XXXV, da
Constituio do Brasil.
Acesso justia, na concepo tradicional de Mauro Cappelletti e
Bryant Garth, implica em se ter um sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litgios sob os auspcios do Estado
que, primeiro deve ser realmente acessvel a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos.3 Aps ressaltarem
que a obra limita-se ao primeiro aspecto (acessibilidade) e exporem as barreiras que impedem o acesso justia, os autores tratam das solues prticas do problema do acesso justia, propondo trs solues, que so chamadas de ondas: assistncia judiciria para os pobres (primeira onda); representao dos interesses difusos (segunda onda); e um conjunto geral de instituies e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e
mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas (terceira onda).4
Defendem os festejados autores a criao de procedimentos especiais
para as pequenas causas (reflexo da terceira onda), mas eles tambm falam
que garantir o acesso justia significa ter um processo justo. E o que vem
a ser um processo justo? aquele onde as garantias constitucionais so respeitadas, onde h condies necessrias e suficientes para uma justa resolu-

3
4

CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso justia. Traduo e reviso: Ellen Gracie
Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998.
CAPPELLETTI e GARTH, ob. cit.

73

74

Gustavo Santana Nogueira

o dos conflitos.5 A idia de processo justo inseparvel do princpio do


devido processo legal,6 de modo que o processo nos Juizados, para ter legitimidade constitucional, precisa respeitar todos esses valores, o que infelizmente no vem ocorrendo.

3. Os Juizados Especiais e a insegurana jurdica


3.1. A ausncia de controle de legalidade das decises dos Juizados
Diversas questes de direito apresentadas no mbito dos Juizados Especiais
so controvertidas, e s vezes essas controvrsias s existem nos Juizados, estando pacificadas na doutrina e no prprio Superior Tribunal de Justia.
Alis o Superior Tribunal de Justia j demonstrou sua preocupao
com a ausncia de um controle de legalidade das decises proferidas em
sede de Juizados. Como cedio, no cabe Recurso Especial contra decises
proferidas pelas Turmas Recursais dos Juizados porque elas no so exatamente aquilo que podemos chamar de Tribunais, e a Constituio do Brasil
exige, no inciso III do seu art. 105, que a deciso a ser impugnada com o
Recurso Especial seja prolatada por um Tribunal.7
A questo foi resumida a um enunciado sumular, de nmero 203, cuja
redao originria era: no cabe recurso especial contra deciso proferida,
nos limites de sua competncia, por rgo de segundo grau dos Juizados
Especiais. Ocorre que esta smula podia ser interpretada de uma forma
que se conclusse que era sim possvel interpor Recurso Especial contra
decises do Juizado. Inicialmente preciso registrar a total desnecessidade
de se editar uma smula quando a matria clara e objetivamente retratada pelo supra citado artigo da Constituio do Brasil. Se o art. 105, III, da

5
6

74

COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie costituzionali e giusto processo (modelli a confronto). Revista de
Processo 90. So Paulo: RT, 1998, p. 101.
... procedural due process issues arise when an individual or group is claiming a right to a fair process
in connection with their suffering a deprivation of life, liberty, or property. CHEMERINSKY, Erwin.
Constitutional law principles and policies, 3 edio. New York: Aspen Publishers, 2006, p. 579.
Dispe a Constituio que compete ao Superior Tribunal de Justia julgar, em recurso especial, as causas decididas, em nica ou ltima instncia, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos
Estados, do Distrito Federal e Territrios.

Os Juizados Especiais, a Insegurana Jurdica e o Direito Medieval

75

Constituio claro, por qu uma smula? Agora, como pode uma smula
ser possivelmente interpretada de modo a admitir a interposio de Recurso
Especial contra acrdo de Turma Recursal se a Constituio no admite
recurso contra deciso que no seja de Tribunal?
De qualquer forma a interpretao perigosa era a seguinte: como a
Smula dispe que no cabe Recurso Especial contra deciso proferida por
Turma Recursal apenas nos limites de sua competncia, quando a deciso
proferida fosse fora dos limites da sua competncia, ou seja, ilegal, ela poderia ser impugnada por Recurso Especial. Em outras palavras, se o Juizado
Especial julgasse uma causa expressamente vedada por lei, como um divrcio, e a Turma Recursal confirmasse a referida deciso, seria possvel o
Recurso Especial. Por qu? Porque a deciso no est nos limites da competncia dos Juizados Especiais.
A nova redao suprimiu a expresso nos limites de sua competncia,
com o objetivo de deixar mais claro ainda que no possvel a utilizao de
Recurso Especial contra deciso de Turma Recursal, em hiptese alguma.8
A deciso de alterar a smula foi tomada em 23 de maio de 2002 quando do
julgamento, pela Corte Especial, do AgRg no Ag 400.076/BA, que teve
como Relator o Ministro Ari Pargendler. O Agravo Regimental em tela
impugnava uma deciso monocrtica proferida em um Agravo de
Instrumento. Essa deciso monocrtica, por sua vez, no conhecia do
Agravo de Instrumento interposto contra deciso que tambm no conheceu Recurso Especial interposto contra deciso de Turma Recursal. A deciso da Turma Recursal, que deu origem a todos esses recursos, extrapolou
o mbito da competncia estabelecida pela Lei n 9.099/95, vez que se trata
de causa de grande complexidade, envolvendo direito societrio e comercial e de reflexos patrimoniais de grande e imensurvel vulto.
No voto condutor o Ministro Ari Pargendler ressaltou expressamente
a possibilidade de uma m exegese concluir pela possibilidade de interposio de Recurso Especial contra deciso de Turma Recursal fora dos limites de sua competncia, razo pela qual votou pela reviso da smula, no

Nova redao da smula 203 do STJ: no cabe recurso especial contra deciso proferida, nos limites de
sua competncia, por rgo de segundo grau dos Juizados Especiais.

75

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Gustavo Santana Nogueira

que foi seguido pela maioria. O voto vencido, do Ministro Jos Delgado
revela sua preocupao com o fato das decises das Turmas Recursais ficarem sem nenhum tipo de controle de legalidade. Eis a ntegra do voto, que
merece a transcrio:
Sr. Presidente, minha preocupao que estamos tentando criar alguns aspectos burocrticos, processuais e recursais
para os juizados especiais. Devemos ter o mximo de cuidado
para no fugirmos da filosofia que orientou a criao do juizado especial: celeridade, desburocratizao e acessibilidade do
constituinte para a soluo dos litgios. A smula surgiu em
boa hora apregoando que quando os juizados especiais proferem as suas decises dentro dos limites de sua competncia no
cabe recurso especial, porque a inteno foi se esgotar no mbito dos juizados especiais a discusso sobre a potencialidade econmica da demanda. Eis a questo: e se a deciso dos juizados
especiais for proferida alm dos limites de sua competncia?
Nesse caso, teramos uma situao extravagante. Na verdade,
deve-se examinar caso a caso, apreciando de acordo com a
manifestao da parte, em situao concreta.
Penso que, no momento atual, foi aventada aqui, e creio
que com bons propsitos e com boa coerncia, a possibilidade
do mandado de segurana, porque, se o juizado especial se pronunciou alm de sua competncia, da competncia fixada,
trata-se de deciso teratolgica. uma deciso inexistente.
Sabemos, hoje, que o direito processual civil configura essa
catalogao do ato processual inexistente, em decorrncia de
quem, absolutamente, profere uma deciso. No temos nada a
modificar. Devemos manter a smula, como ela se encontra,
para valorizar a funo dos juizados especiais, e aguardarmos
cada situao concreta para a sua deciso.
Sr. Presidente, dou provimento ao agravo regimental.
Voto pela manuteno da smula.
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Os Juizados Especiais, a Insegurana Jurdica e o Direito Medieval

77

Percebe-se que o referido Ministro defende expressamente a impetrao de mandado de segurana, em que pese no explicitar de quem seria a
competncia para o seu julgamento, porm o ponto que nos interessa exatamente este: no pode uma deciso da Turma Recursal que extrapola os
limites de sua competncia, portanto uma deciso ilegal, ficar sem nenhum
tipo de controle. O Ministro Vicente Leal foi ainda mais direto ao expor,
tambm em voto vencido, que quando o juizado especial decide fora da sua
competncia, est ferindo, literalmente, a Lei n 9.099. Nesse caso, h de
prevalecer, nessa antinomia, o sentido maior de realizao da melhor
Justia, que o de dar ao cidado a garantia de que o seu direito seja preservado. Se assim no se decidir, os juizados especiais e as turmas recursais
ficaro livres de qualquer controle, porque no haver debate sobre questo constitucional. Ora, se o tribunal prprio para apreciar o controle da
dignidade da lei federal no toma conhecimento da matria por uma exegese restritiva, o cidado ficar sem Justia.9
Posteriormente, em 2006, a Corte Especial do STJ apreciou novamente a questo. Julgou o Recurso Ordinrio em Mandado de Segurana RMS
n 17524/BA em 02 de agosto do citado ano, e a concluso a que chegou a
maioria foi compatvel com a minoria do julgamento de 2002. O relatrio
traz o histrico do caso concreto: um cidado ajuizou, em um dos Juizados
Especiais de Salvador, uma ao de conhecimento em face de uma pessoa
jurdica, objetivando a resciso contratual de compromisso de compra e
venda de bens imveis e a devoluo dos valores pagos a esse ttulo. O pedido foi julgado procedente e, em sede de execuo, foram penhorados dois
imveis de outra empresa que no era parte no processo. Essa empresa props embargos de terceiro perante o Juizado Especial que processou a causa,
mas o pedido fora rejeitado.
Interps ento apelao sustentando a incompetncia do Juizado
Especial para julgar os embargos porque o valor da execuo era de R$
176.994,97 (na poca o valor correspondia a 20 vezes o teto dos Juizados
Estaduais), e requereu a remessa do recurso para o Tribunal de Justia da
Bahia, mas ao recurso foi negado provimento, de modo que a sentena dos

Ao final a smula foi mesmo revista pela Corte Especial, por 15 votos a 3.

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Gustavo Santana Nogueira

embargos de terceiro foi confirmada e foi ainda determinado o prosseguimento da execuo. Foi ento impetrado mandado de segurana contra o
acrdo da Turma Recursal no Tribunal de Justia da Bahia, e o Tribunal
denegou a ordem ao argumento de que falece competncia a ele para rever
decises prolatadas pelos Juizados Especiais. Essa deciso foi impugnada
com o Recurso Ordinrio, que foi relatado pela Ministra Nancy Andrighi.
Em seu voto ela distingue o caso que estava julgando dos demais que costumam/costumavam chegar ao STJ, dizendo que no pretendia o recorrente
discutir o mrito da deciso dos Juizados, mas sim a competncia dos
Juizados para apreciar a causa.10 O Superior Tribunal de Justia aceitou a
impetrao de mandado de segurana para discutir a competncia dos
Juizados, ao argumento, trazido no voto condutor, de que as decises que
fixam a competncia dos Juizados Especiais no podem restar absolutamente desprovidas de controle, seja pelos Tribunais dos Estados (ou Federais,
conforme o caso), seja por parte desta Corte. Estender o entendimento de
que no possvel o controle das decises proferidas pelos Juzes e Turmas
Recursais dos Juizados Especiais s hipteses de fixao de sua competncia
conduziria a uma situao teratolgica e extremamente perigosa. Com efeito, um Juiz, atuando no mbito do Juizado Especial, poderia, equivocadamente, considerar-se competente para julgar uma causa que escapa de sua
alada e, caso tal deciso fosse confirmada pela Turma Recursal, parte prejudicada restaria apenas a opo de discutir a questo no Supremo Tribunal
Federal, por meio de Recurso Extraordinrio. Dadas as severas restries
constitucionais e regimentais ao cabimento desse recurso, em muitos casos
a distoro no seria passvel de correo, em prejuzo de todo o sistema
jurdico-processual.
Assim, na ementa, o STJ estabeleceu que:
A autonomia dos juizados especiais, todavia, no pode
prevalecer para a deciso acerca de sua prpria competncia
para conhecer das causas que lhe so submetidas. necessrio

10

78

Trecho do voto: ...o controle que se procura fazer no da deciso, propriamente, mas da possibilidade de ela ser proferida por um membro dos Juizados Especiais.

Os Juizados Especiais, a Insegurana Jurdica e o Direito Medieval

79

estabelecer um mecanismo de controle da competncia dos


Juizados, sob pena de lhes conferir um poder desproporcional:
o de decidir, em carter definitivo, inclusive as causas para as
quais so absolutamente incompetentes, nos termos da lei civil.
.....
Embora haja outras formas de promover referido controle,
a forma mais adequada a do mandado de segurana, por dois
motivos: em primeiro lugar, porque haveria dificuldade de utilizao, em alguns casos, da Reclamao ou da Querela
Nullitatis; em segundo lugar, porque o mandado de segurana
tem historicamente sido utilizado nas hipteses em que no
existe, no ordenamento jurdico, outra forma de reparar leso
ou prevenir ameaa de leso a direito.
Ficou tambm esclarecida a impossibilidade de reviso do mrito das
decises dos Juizados Especiais, mas apenas a reviso da prpria competncia dos Juizados sobre causas que, por lei, no so da sua alada.
Mais recentemente o Superior Tribunal de Justia julgou um emblemtico Agravo Regimental em sede de Reclamao.11 O Juizado Especial
Cvel da Comarca de Aparecida e o Colgio Recursal de Guaratinguet,
ambos de So Paulo, julgaram uma ao onde se discutia a legalidade da
cobrana da tarifa das assinaturas bsicas. Como se sabe a jurisprudncia do
Superior Tribunal de Justia pacfica no sentido de que a cobrana legtima,12 e a deciso da Turma Recursal concluiu pela ilegalidade da cobrana. O STJ no admitiu a Reclamao e no admitiu o Agravo Regimental
nessa Reclamao, por unanimidade, mas o Ministro Relator Teori Zavascki
externou sua preocupao com a ausncia de controle de legalidade das
decises dos Juizados Especiais, nos seguintes termos:
Tem toda a razo a reclamante ao apontar a grave deficincia do sistema normativo vigente que no oferece acesso ao

11
12

1 Seo, AgRg na Rcl 2704/SP, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJe 31.03.2008.
Consulte-se, por todos, o acrdo do Recurso Especial 1036589/MG, 1 Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJe
05.06.2008.

79

80

Gustavo Santana Nogueira

STJ para controlar as decises de Juizados Estaduais sobre a aplicao de direito federal. Isso faz com que tais Juizados, no mbito da sua competncia, representem a palavra final sobre a interpretao de lei federal, mesmo quando contrria jurisprudncia do STJ, tribunal nacional com atribuio constitucional de
manter a integridade e a uniformidade do sistema normativo
federal. No mbito dos Juizados Especiais Federais foi criado
mecanismo prprio para evitar tal deformao. o incidente de
uniformizao de jurisprudncia previsto no artigo 14, 4, da
Lei 10.259/01. No mbito Estadual, todavia, enquanto no houver normatizao especfica, pode-se imaginar que soluo
semelhante seja adotada, ainda que por aplicao analgica, no
mbito dos Juizados Estaduais da Lei 10.259/01, como meio de
preservar a uniformidade da aplicao do direito federal, exigncia no apenas da segurana jurdica, mas sobretudo do postulado constitucional da igualdade de todos perante a lei.
Verifica-se claramente que a questo tormentosa, em que pese a
deciso de 2006 da Corte Especial. Neste julgado mais recente certo que
no se fez a reviso do mrito da deciso dos Juizados, mas um bvio descontentamento com a situao foi externado. Se esse desconforto vai ficar
no campo das palavras s o tempo poder dizer, e nos estreitos limites deste
trabalho no nos cabe fazer qualquer prognstico.

3.2. Consequncias da falta de controle


O fato que no Superior Tribunal de Justia prevalece hoje o entendimento de que no h mesmo nenhum mecanismo para se rever o mrito das
decises emanadas dos Juizados Especiais no que tange sua legalidade. Isso
faz com que os Juizados Especiais ignorem a jurisprudncia dos Tribunais
Superiores, em especial do STJ, criando uma verdadeira desigualdade de
tratamento de casos semelhantes. No se discute aqui se a cobrana da assinatura dos contratos de telefonia legtima ou no, mas a partir do momento em que o STJ decidiu, e vem decidindo, pela legitimidade, lcito inda80

Os Juizados Especiais, a Insegurana Jurdica e o Direito Medieval

81

gar: por qu os cidados em geral tm que pagar e uma pessoa especificamente, aquela parte no AgRg na Rcl 2704/SP, est isenta do pagamento? Os
malefcios da falta de controle vo alm, atingindo at os casos julgados
pelos prprios Juizados, sem que se faa necessria uma comparao externa (Juizados x Justia comum), para percebermos que o propagado acesso
justia vem sendo sistematicamente negado nos Juizados Especiais.
Um caso emblemtico e comum nos Juizados diz respeito multa
(astreinte), imposta para compelir o devedor a cumprir uma obrigao de
fazer. Est ela ou no sujeita ao teto de 40 salrios mnimos dos Juizados
Especiais Estaduais? Independentemente do caso concreto, da condio
econmica do credor e do devedor, da obrigao a ser cumprida, do tempo
em que a multa incidiu etc., trata-se de matria de direito. Podem mudar os
detalhes do caso concreto, mas a matria continuar sendo de direito e a
soluo a ser dada a ela, deve/deveria ser uniforme. Isso acesso justia
tambm. Infelizmente o que se v so decises completamente discrepantes, mesmo que a multa esteja prevista em lei desde 1990 (Cdigo de Defesa
do Consumidor, art. 84) e 1994 (Cdigo de Processo Civil art. 461), provocando insegurana jurdica no jurisdicionado e violao ao princpio constitucional da igualdade.
Assim, se em uma ao de obrigao de fazer a multa diria acumulada de Jos, um autor fictcio, ultrapassa o teto de 40 salrios mnimos, como
explicar para Joo, outro autor fictcio, que no seu caso o Juiz determinou a
reduo da multa que j incidiu exatamente porque ultrapassou o teto de 40
salrios mnimos? O problema que essa desigualdade de tratamento ocorre todos os dias nos diversos Juizados espalhados pelo Brasil, quando a lei
que pretende dar a resposta a essa questo federal e, portanto deve (ou
deveria) ter aplicao uniforme.
O Superior Tribunal de Justia j se pronunciou sobre a questo, decidindo que o valor da multa cominatria pode ultrapassar o valor da obrigao a ser prestada, porque a sua natureza no compensatria, no objetiva ressarcir, mas persuadir o devedor a realizar a prestao devida.13 De
fato, se a multa coercitiva, ou seja, serve para pressionar o devedor ao

13

STJ, 1 Turma, REsp 770.753/RS, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 15.03.2007.

81

82

Gustavo Santana Nogueira

cumprimento da obrigao especfica (fazer, no fazer ou entregar coisa),


ela no pode ter limite mximo. Se o devedor souber que o valor da multa
no vai ultrapassar o valor da obrigao ele ter a opo de no cumprir a
obrigao especfica, pois ter cincia, com antecedncia, do limite mximo
da multa. Da mesma forma, se o devedor souber que a multa diria acumulada no vai ultrapassar os 40 salrios mnimos, ele poder escolher entre
cumprir a obrigao sem ter que pagar a multa ou no cumprir a obrigao,
assumindo o pagamento da multa, que ele seguramente saber que no vai
ultrapassar o teto dos Juizados.
Como a multa imposta para forar o devedor a cumprir a obrigao
especfica, parece claro que ela no pode ter um limite mximo que pelo
menos seja de conhecimento do devedor, sob pena de inutilizarmos um eficaz mecanismo da execuo. claro que a multa no pode ser elevada, nem
muito reduzida, devendo ser fixada em patamar razovel, mas suficiente
para pressionar o devedor, o que certamente far com que o Juiz leve em
considerao a sua capacidade econmica.14 O problema maior diz respeito
acumulao do valor da multa, o que ocorre porque o devedor ignora a
ordem judicial para o cumprimento da obrigao, bem como o direito do
credor em ver a obrigao sendo cumprida. Nesse caso a multa deve incidir
at o Juiz verificar que ela no est mais cumprindo sua finalidade coercitiva, ocasio em que dever fazer a multa parar de incidir, aumentar seu
valor ou at mesmo diminuir o seu valor (art. 461, pargrafos 5 e 6, do
CPC), porm essa deciso dever sempre ter efeitos ex nunc.
Reduzir o valor da multa acumulada porque ela atingiu um valor elevado um prmio ao devedor, um estmulo ao desrespeito s ordens judiciais, enfim, absolutamente equivocado. Se a multa j incidiu e seu valor
acumulado ficou elevado porque algo ocasionou essa situao, e esse algo
se chama inrcia do devedor. Se o devedor no cumpre a obrigao
imposta pelo Juiz (sob pena de multa...), ele que arque com as consequncias da inrcia. O que no pode acontecer, em hiptese alguma, o Juiz

14

82

A fundamentao das decises judiciais, em que pese ser obrigatria por fora da Constituio, nem
sempre respeitada, e nas decises que fixam o valor da multa muito menos, o que lamentvel, j que
pela fundamentao que o Juiz explica a todos a razo pela qual fixou a multa em X, e no em 2X.

Os Juizados Especiais, a Insegurana Jurdica e o Direito Medieval

83

dizer-lhe algo como: voc no cumpriu a obrigao, desrespeitou a ordem


judicial e o direito do credor, razo pela qual a multa acumulou-se... No
tem problema. Vamos reduzir o valor da multa e voc ser beneficiado.
Para ns isso no Justia, isso no dar a cada um aquilo que seu. Isso
no efetividade, e esse no o compromisso do Estado. A partir do
momento em que a sentena (ou o ttulo extrajudicial) reconhece o direito
do credor, o Estado se obriga a utilizar mecanismos que faam o credor ser
satisfeito, at porque em tempos remotos o Estado lhe proibiu de fazer justia com as prprias mos exatamente com esse argumento. Assim sendo,
consideramos insuficiente o rotineiro argumento do enriquecimento sem
causa do credor. Primeiro porque a multa no objetiva enriquec-lo, mas
sim pressionar o devedor ao cumprimento da obrigao; segundo porque o
credor no ter direito a um msero centavo da multa se a obrigao for
cumprida dentro do prazo fixado pelo Juiz; terceiro porque se a multa ficou
elevada porque (a) o devedor desrespeitou a ordem judicial ao longo do
tempo ou (b) o Juiz falhou ao no fiscalizar o cumprimento, ou no, da obrigao; quarto porque se por acaso o credor enriquecer, h uma causa. E
uma causa muito justa! E a causa dada pelo devedor ao ignorar sua obrigao e a deciso judicial que a reconhece. Portanto, temos como fraco esse
argumento, e que, repetimos, um prmio ao descumprimento.15
O que se espera que os Juizados Especiais, aplicando a lei federal,
tenham um entendimento uniforme, que em tese deve ser aquele fixado
pelo STJ em mais de um julgado, no sentido de que a multa no tem limite
mximo, podendo ultrapassar o valor da obrigao (e logicamente o teto de
40 salrios mnimos). E a liberdade do Juiz em julgar cada caso concreto que
lhe submetido? Eduardo de Albuquerque Parente tem a resposta que nos
parece ser a ideal:

15

E viva o no cumprimento das decises judiciais e das obrigaes! Com a complacncia desse argumento... Segundo Augusto Mario Morello no es, por ende, suficiente, para disponer del proceso justo, contar con un juez en Berln imparcial y transparente, com la debida audiencia, con el ofrecimiento y
prctica de la prueba pertinente, con la alegacin sobre su mrito, con el dictado de una sentencia adecuadamente motivada, con poder para impugnarla y, firme, llevar adelante su ejecucin. Es tambin
imprescindible que la condena, el mandato jurisdiccional, satisfaga mediante su ntegro cumplimiento
el inters especfico del litigante ganador, en un plazo razonable. La eficacia del proceso, 2 edio.
Buenos Aires: Hammurabi, 2001, pp. 48-49. Os destaques no constam do original.

83

84

Gustavo Santana Nogueira

Ocorre que essa nova realidade pressupe que o juiz, individualmente, sinta-se parte da estrutura propulsora da interpretao, no seu opositor. Deve ver na deciso uniformizante uma
regra de direito para o bem da realidade jurdica e da prpria
estrutura judicial da qual faz parte, no uma camisa de fora.
.....
Isso equivale a dizer que o juiz consciente do seu papel
deve pautar suas aes de acordo com a cpula da estrutura
judicial como se obrigao houvesse, mesmo que contrrio
sua prpria convico. Isso no significa estar tolhido da sua
liberdade de decidir, e sim ter noo de que parte de uma
estrutura que deve ter uma s viso sobre determinados temas
(em que a divergncia seja infundada), sob pena de contribuir
com a desigualdade e a incerteza jurdica. Esse um reflexo do
carter pblico da jurisdio.16
A prtica, no entanto diferente, submetendo a parte a um verdadeiro e lamentvel jogo de azar, pois a deciso sobre o limite da multa diria
fica na dependncia da distribuio do caso concreto a um determinado
Juizado. Enfim, o valor da multa que j incidiu e se tornou elevado deve ou
no ser reduzido com eficcia ex tunc?
Em um caso especfico havia um credor de uma multa que, acumulada, chegou a R$ 46.204,04, em razo do descumprimento da obrigao por
parte da empresa condenada por sentena. Uma das Turmas Recursais do
Estado do Rio de Janeiro determinou a reduo do valor dessa multa para
R$ 10.000,00.17
Outro credor de uma multa que chegou a R$ 42.050,00, tambm em
razo do descumprimento da obrigao por parte da empresa r viu a
Turma Recursal reduzir seu valor para R$ 15.000,00.18

16
17
18

84

Jurisprudncia: da divergncia uniformizao. So Paulo: Atlas, 2006, p. 21.


Recurso 2008.700.043277-3, julgado em 24.09.2008, Rel. Juiz Alexandre Chini.
Recurso 2008.700.008468-3, julgado em 28.04.2004, Rel. Juiz Cleber Ghelfenstein.

Os Juizados Especiais, a Insegurana Jurdica e o Direito Medieval

85

Em outro caso a multa havia ultrapassado os 40 salrios mnimos, sem


que o acrdo declinasse o valor exato. A Turma Recursal decidiu reduzir
o valor da multa acumulada para R$ 8.050.00.19
Outro credor teve melhor sorte.20 A multa acumulada chegou a R$
11.700,00 pelo descumprimento da obrigao de instalar uma linha telefnica, mas o Juiz de primeiro grau reduziu esse valor para R$ 2.000,00. A
Turma Recursal fez a multa acumulada voltar ao valor original, ao argumento de que a multa perde a sua finalidade de coero na hiptese de
diminuio de seu valor pelo julgador.21
Ressaltamos que os trs primeiros casos foram pela reduo da multa
para um valor razovel (R$ 10.000,00, R$ 15.000,00 e R$ 8.050,00), sem que
se mencionasse, em nenhum desses trs casos, quais os critrios utilizados
para se alcanar os citados valores. O que razoabilidade? uma carta
branca para que o Juiz diga que o valor fixado excessivo? Reduzo para um
razovel, que fixo em R$ X. Pelo menos nos casos analisados foi assim que
se fixou o valor final.22
No h diferena substancial entre os quatro casos analisados: todos tratam
de uma obrigao especfica no cumprida, cujo valor da multa acumulada no
poderia ter sido reduzido. Nos trs primeiros o devedor foi premiado pelo descumprimento da obrigao. Essa foi a mensagem passada pelo Judicirio ao
devedor inadimplente, que passou a ter o direito de escolher no cumprir a obrigao porque ele sabe que a multa final vai ser reduzida para um valor razovel. a tutela jurisdicional daquele que no tem o direito! Isso justia?

3.3. Os enunciados e os encontros


Os enunciados, aprovados aps a realizao de encontros entre aplicadores do direito nos Juizados Especiais, so uma forma de se buscar a uni-

19
20
21
22

Recurso 2004.700.008841-0, julgado em 14.04.2004, Rel. Juiz Cleber Ghelfenstein.


No se pode falar em sorte quando da anlise de casos concretos, porque os direitos no so oriundos
da sorte ou do azar da parte, mas sim da lei, e a lei (era pra ser) igual para todos.
Recurso 2003.700.016639-9, julgado em 24.09.2003, Rel. Juza Gilda Maria Carrapatoso de Oliveira.
Segundo Luiz Guilherme Marinoni aceita ou no a tese da resposta correta, o certo que no se pode
isentar o juiz do dever de demonstrar que a sua deciso racionalmente aceitvel e, nessa linha, a
melhor que poderia ser proferida diante da lei, da Constituio e das peculiaridades do caso concreto.
Curso de Processo Civil, v. 1 Teoria Geral do Processo, 3 ed., 2 tiragem. So Paulo: RT, 2008, p. 125.

85

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Gustavo Santana Nogueira

formizao e o aprimoramento do sistema em todo o pas.23 Entretanto


questionamos a legitimidade democrtica destes enunciados, bem como seu
prprio valor no mundo jurdico. um questionamento ousado, reconhecemos, porm aceitam-se os enunciados como se eles fossem absolutos,
como se eles pudessem de fato dar a ltima palavra sobre a interpretao da
lei federal. H uma supervalorizao dos enunciados, aprovados em encontros interessantes, porque buscam um objetivo nico (melhorar os Juizados
Especiais), mas at que ponto uma concluso de enunciado deve ser considerada no caso concreto?
Parece contraditrio o nosso questionamento porque o objetivo deste
artigo foi fazer uma anlise crtica a respeito da insegurana jurdica que
contamina o Juizado Especial, e os enunciados buscam exatamente a minimizar, diminuir ou at mesmo eliminar a insegurana jurdica, o que de fato
um bom comeo, pois assim todos reconhecem que a interpretao altamente controvertida sobre matria de direito danosa ao sistema jurdico
como um todo. E se existem Encontros Nacionais tambm uma demonstrao de que os profissionais que pensam, estudam e aplicam os Juizados
Especiais reconhecem que a lei federal uma s, seja qual for o Estado da
Federao onde ela aplicada, de modo que a Lei n 9.099/95 deve ser igual
em todo o Brasil. No vemos outra razo para os Encontros Nacionais, pois
se assim no fosse eles seriam apenas Estaduais.
Porm questionamos a legitimidade democrtica dos Enunciados porque eles so impostos de cima para baixo sem as devidas discusses. Quem
participa desses Encontros? Como se faz a escolha dos que participam? So
todos, sem exceo, juzes de Juizados Especiais? H desembargadores participando desses Encontros? H Ministros? H doutrinadores?
Se as Smulas, emanadas de Tribunais Superiores, que detm inegvel
legitimidade constitucional,24 so objeto de crtica por parte de diversos
doutrinadores, o que dizer dos Enunciados? Como podem os Enunciados

23
24

86

IX Encontro do Frum Permanente de Coordenadores dos Juizados Especiais, realizado em Belo


Horizonte-MG, entre os dias 04 e 07 de junho de 2007.
Pode-se at questionar a forma de escolha dos Ministros, mas que os Tribunais Superiores possuem legitimidade democrtica pensamos que no pode haver dvidas.

Os Juizados Especiais, a Insegurana Jurdica e o Direito Medieval

87

determinar como se interpreta a lei federal se a Constituio do Brasil


outorga ao Superior Tribunal de Justia essa funo?25 O modelo adotado
o mesmo das Smulas: conciso excessiva no uso das palavras que os formam. As Smulas, por sua vez, contm limitaes exatamente em razo
dessa economia na hora de aprovar o seu contedo e por pretender dar resposta nica a casos concretos que podem ser diferentes. E os Enunciados
seguiram o mesmo caminho, com uma diferena fundamental em relao s
Smulas. Outra diferena relevante entre os Enunciados e as Smulas reside no fato dos primeiros no se basearem em nenhum precedente, em
nenhum caso concreto, enquanto que as Smulas, conquanto concisas, so
o resultado resumido de vrios casos anteriores. Como o enunciado da
smula um novo texto; e como todo texto um evento, na medida em que
reflete (ou, ao menos, pretende refletir) os julgados/precedentes que o criaram, estes devero ser o teto hermenutico na atribuio de sentido ao novo
texto criado pelo Tribunal. O intrprete no poder atribuir qualquer sentido smula, na medida em que esta dever estar lastreada nos precedentes que a criaram.26 E os Enunciados? Qual o seu teto hermenutico?
Nenhum, posto que so disposies abstratas desvinculadas de qualquer precedente que sirva como critrio limitador ou expansivo do seu contedo.
Ambas pretendem dar mais segurana jurdica aplicao do direito, e
para tal, conquanto no possam se eternizar, devem ter uma certa estabilidade, de modo que uma Smula aprovada pelo Supremo Tribunal Federal
tem a pretenso de existir por um perodo considervel, exatamente para
alcanar a sua finalidade. Se uma Smula for aprovada hoje, revista amanh
e cancelada depois, a insegurana jurdica reinar. E se uma Smula for
aprovada hoje, discutida de novo amanh, rediscutida depois de amanh e
assim sucessivamente?

25

26

Isso se deve ao vcuo de poder que o prprio Superior Tribunal de Justia entendeu existir. A partir
do momento em que o STJ entendeu que no dado a ele controlar a legalidade das decises dos
Juizados, algum tinha que assumir esse papel. Como no cabe recurso especial nem ao rescisria, a
soluo so os Enunciados, mas que no corrigem violaes da lei federal.
MONTEZ, Marcus Vincius Lopes e NOGUEIRA, Gustavo Santana. A smula vinculante n 10: tautologia ou inovao? Trabalho no publicado.

87

88

Gustavo Santana Nogueira

Assim so os Encontros e os Enunciados. Eles acontecem quase que


todos os anos, em locais diversos, mas sempre h um Encontro a ser realizado, seja de Juzes, de Coordenadores, de Juzes de Turmas Recursais, etc.,
onde novos Enunciados surgiro, o que traz mais insegurana jurdica... A
partir do momento em que os Enunciados do a soluo ideal para questes de direito, eles integram a cultura jurdica daqueles que militam nos
Juizados (partes, advogados e juzes), razo pela qual a constante edio de
Enunciados diversos, Nacionais e Estaduais, uma ttica suicida, pois fulmina a sua prpria razo de ser e a sua finalidade.
O que propomos aqui que os Enunciados no podem existir, pois so
antidemocrticos, e j que existem que sejam conhecidos de todos, e para
que sejam conhecidos, fundamental que no se marquem Encontros todos
os anos para se discutir sempre as mesmas questes, com a aprovao e ratificao de Enunciados ao final de cada um desses Encontros.

4. O direito medieval
Infelizmente o que se v atualmente nos Juizados Especiais nos lembra
muito as caractersticas do direito medieval, praticado entre os sculos V e
XV d.C, poca em que inexistia o Estado, pelo menos na concepo de
Estado que temos hoje.27 A idade mdia notabilizou-se pela territorialidade
das leis, onde em cada feudo vigorava a sua prpria legislao, aplicvel a
todos os casos a acontecidos e a todas as pessoas que a estivessem, qualquer
que fosse a sua nacionalidade, vivessem ou no habitualmente no lugar.28
No vemos quadro comparativo mais adequado do que este apresentado. A realidade dos Juizados Especiais no difere muito do que se fazia na
Idade Mdia. Cada Juizado Especial, cada Turma Recursal, possui uma lei
processual prpria (uma Lei n 9.099/95 prpria), e no raro, o direito

27

28

88

In an epoque without states, this is a strong indication how the perception of space changed, intensified and led to the concept of territory. Caspar Ehlers, Law and territory the case of Saxony in the
early middle ages. Disponvel em: http://141.2.146.53/fileadmin/downloads/rg13_abstracts.pdf. Acesso
em 01.01.2009. Consulte-se tambm: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio temtico do ocidente medieval, volume I. Coordenador da traduo: Hilrio Franco Jnior. So Paulo:
EDUSC, 2002, pp. 347-349.
Walter Vieira do Nascimento. Lies de histria do direito, 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.
138, citando Ferreira Coelho.

Os Juizados Especiais, a Insegurana Jurdica e o Direito Medieval

89

material levado para anlise nos Juizados, tambm recebe interpretaes


to divergentes que acabam criando essa idia de que os Juizados Especiais
so verdadeiros feudos.
Esses feudos se criaram e se desenvolveram, entre outros motivos,
diante da ausncia de um controle de legalidade das decises do Juizado, o
que confere a cada Juizado as mesmas caractersticas do Estado Feudal,
seno vejamos:
O feudalismo, regime social e poltico triunfante em quase toda a Europa
a partir do sculo X, era caracterizado pela diviso da propriedade, pela
independncia administrativa das terras desmembradas e pela hierarquia
que unia uns aos outros os vrios senhores das propriedades territoriais.29

5. Concluso
Calmon de Passos resumiu, com o brilho de sempre, o que tentamos
expor nesse trabalho:
... atribui-se aos magistrados com exerccio nos Juizados
Especiais o direito de desrespeitar a lei federal e de lhe dar a
interpretao que bem lhes aprouver, podendo apoiar-se em
falsa prova, ter sido peitado ou estar impedido para julgar o
feito, visto como inadmissvel a rescisria das decises transitadas em julgado.30
Os Princpios de Conduta Judicial de Bangalore, que vem a ser um projeto de Cdigo Judicial de mbito global elaborado com base em outros
cdigos e estatutos, nacionais, regionais e internacionais, sobre o tema, dentre eles a Declarao Universal dos Direitos Humanos, da ONU. Essa declarao de direitos prev um julgamento igualitrio, justo e pblico, por tri-

29
30

Alcindo Muniz de Souza. Histria medieval e moderna. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1953,
p. 67.
Jos Joaquim Calmon de Passos. A crise do poder judicirio e as reformas instrumentais: avanos e
retrocessos. Revista Dilogo Jurdico, Salvador, CAJ Centro de Atualizao Jurdica, v. I, n 4, julho,
2001. Disponvel em: http://www.direitopublico.com.br. Acesso em: 13.01.2009.

89

90

Gustavo Santana Nogueira

bunal independente e imparcial, princpio de aceitao geral pelos EstadosMembros, e o responsvel por sua elaborao o Grupo de Integridade
Judicial (The Judicial Integrity Group), ligado ONU. So 6 os valores
defendidos pelo documento (independncia, imparcialidade, integridade,
idoneidade, igualdade e competncia e diligncia), e o terceiro, integridade, possui a seguinte redao:
A integridade essencial para a apropriada desincumbncia dos deveres do ofcio judical.31
Ao interpretar o valor integridade o documento taxativo ao afirmar
que quando um juiz transgride a lei, pode levar o gabinete judicial mreputao, encorajar o desrespeito lei e enfraquecer a confiana pblica
na integridade do prprio Judicirio.32 As excees do dever de respeitar a
lei previstas no documento so limitadas aos casos em que as leis so contrrias aos direitos humanos bsicos e dignidade humana, onde constam
dois exemplos: as leis do regime nazista alemo e do apartheid sul-africano.
Nada a ver com os Juizados, que no pode ser um feudo, no pode ter leis
prprias. O Juiz do Juizado no pode ser um senhor feudal. No esse o
modelo ideal de acesso justia. a nossa modesta opinio.

6. Bibliografia
CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso justia. Traduo e reviso: Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
1998.
CHEMERINSKY, Erwin. Constitutional law principles and policies, 3 ed.
New York: Aspen Publishers, 2006.
COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie costituzionali e giusto processo
(modelli a confronto). Revista de Processo. So Paulo: RT, 1998, n 90.

31

32

90

Naes Unidas (ONU). Escritrio Contra Drogas e Crimes (Unodoc). Comentrios aos Princpios de
Bangalore de Conduta Judicial. Traduo de Marlon da Silva Malha e Ariane Emlio Kloth. Braslia:
Conselho da Justia Federal, 2008, p. 87.
Idem, p. 90.

Os Juizados Especiais, a Insegurana Jurdica e o Direito Medieval

91

GRECO, Leonardo. Garantias constitucionais do processo: o processo justo.


<http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=429>. Acesso em 06.02.2009.
EHLERS, CASPAR. Law and territory the case of Saxony in the early
middle ages. <http://141.2.146.53/fileadmin/downloads/rg13_abstracts.pdf>. Acesso em: 01.01.2009.
LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio temtico do ocidente medieval, Coordenador da traduo: Hilrio Franco Jnior. So
Paulo: EDUSC, 2002, volume I.
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil Teoria Geral do
Processo, 3 ed., 2 tiragem. So Paulo: RT, 2008, v. 1.
MONTEZ, Marcus Vincius Lopes e NOGUEIRA, Gustavo Santana. A
smula vinculante n 10: tautologia ou inovao? Artigo ainda indito.
MORELLO, Augusto Mario. La eficacia del proceso, 2 ed. Buenos Aires:
Hammurabi, 2001.
Naes Unidas (ONU). Escritrio Contra Drogas e Crimes (Unodoc).
Comentrios aos Princpios de Bangalore de Conduta Judicial.
Traduo de Marlon da Silva Malha e Ariane Emlio Kloth. Braslia:
Conselho da Justia Federal, 2008.
NASCIMENTO, Walter Vieira do. Lies de histria do direito, 13 ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2001.
MIRANDA NETTO, Fernando Gama de. Juizados Especiais Cveis entre
autoritarismo e garantismo. Revista de Processo. So Paulo: RT, 2008,
n 165.
PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Jurisprudncia: da divergncia uniformizao. So Paulo: Atlas, 2006.
PASSOS, Jos Joaquim Calmon de. A crise do poder judicirio e as reformas
instrumentais: avanos e retrocessos. Revista Dilogo Jurdico,
Salvador, CAJ Centro de Atualizao Jurdica, v. I, n 4, julho, 2001.
<http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 13.01.2009.
SOUZA, Alcindo Muniz de. Histria medieval e moderna. So Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1953.

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Conciliao, Juzes Leigos e
Uniformizao de Jurisprudncia:
Instrumentos para o Enfrentamento
da Demanda nos
Juizados Especiais Cveis
Jos Guilherme Vasi Werner
SUMRIO: 1. Introduo. 2. Os instrumentos para enfrentamento da demanda nos
Juizados Especiais Cveis. 2.1. A conciliao e a participao dos juzes leigos. 2.2. A uniformizao da jurisprudncia. 3. Concluso.

1. Introduo
A experincia dos Juizados Especiais, iniciada em carter informal e
acolhida pelo constituinte e pelo legislador ordinrio que regulamentou o
art. 98, I, da Constituio, j acumula treze anos de adaptaes, tentativas,
erros e sucessos de seus operadores. Uma grande produo doutrinria e
jurisprudencial pde ocorrer nesse perodo, com grande contribuio para
a consolidao dessa nova Justia.
Em um primeiro momento, pelo menos no mbito dos Judicirios estaduais que logo se dedicaram tarefa de implantar os novos rgos, os esforos foram concentrados na emancipao do novo procedimento das tcnicas e tradies largamente praticadas na Justia Comum, vistas como entraves ao cumprimento dos anseios do legislador e do constituinte quanto
viabilizao de uma prestao jurisdicional clere, informal e, por isso
mesmo mais eficiente.
A despeito do relativo atraso de alguns tribunais estaduais em criar e dispor tais rgos de meios materiais e institucionais para o atendimento de seus
93

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Jos Guilherme Vasi Werner

fins, essa primeira etapa vem sendo cumprida com o auxlio do Conselho
Nacional de Justia que, exercendo uma de suas verdadeiras atribuies, atua
no sentido de estabelecer, com base nas prticas mais bem sucedidas, normas
e procedimentos gerais para a operao dos Juizados Especiais.
O segundo momento, marcado pelo sucesso do empreendimento em
grandes centros da vida nacional, caracterizou-se pela exponenciada majorao das quantidade de aes individuais propostas, sem que o sistema estivesse capacitado para receber esse influxo, ao contrrio do que se supunha
pela exaltao das propriedades da celeridade do rito.
Em nossa viso, os Juizados Especiais Cveis vivem agora o seu terceiro momento. Circunstancialmente, ele no se distancia do segundo, j que
o volume da demanda e as deficincias das unidades mantm o sentimento
de frustrao em face do malogro das expectativas despertadas. O marco
desse tempo atual encontrado no plano subjetivo, na conscincia de que
as iniciativas mais bvias para o problema, como a criao de novos rgos
e a alocao de mais recursos humanos e materiais, no so suficientes,
sendo preciso atuar em todos os espaos e em todas as etapas do processo,
bem como na capacitao de todos os seus agentes, para que a soma dessas
intervenes possa resultar no melhor desempenho global.
Muitas e boas idias foram desenvolvidas e colocadas em prtica a partir dessa conscientizao. J tivemos oportunidade de participar do esforo
do Conselho Nacional de Justia no diagnstico dos principais problemas a
serem enfrentados, destacando-se a necessidade de padronizao de mtodos e rotinas de trabalho, a capacitao de servidores, conciliadores e juzes
leigos, sem falar do problema das instalaes e dos recursos materiais.
A partir da, a experincia e a dedicao dos Juzes serviram de base
para a criao de alguns procedimentos e mtodos de trabalho que podem
contribuir para afastar alguns dos entraves que atualmente prejudicam o
bom andamento dos processos no sistema dos Juizados Especiais Cveis.
Estamos convencidos de que no obstante todos esses mtodos e procedimentos devam ser incentivados, aprimorados e consolidados, pois de todos
eles sero extrados importantes benefcios para o aperfeioamento da prestao jurisdicional em cada uma de suas etapas, nenhum deles , pelo menos
se considerado individualmente, significativo para o tratamento mais eficaz
94

Conciliao, Juzes Leigos e Uniformizao de Jurisprudncia: Instrumentos


para o Enfrentamento da Demanda nos Juizados Especiais Cveis

95

da demanda. Tendo em conta que essa demanda no pode ser reduzida a


curto ou mdio prazos e que eventual soluo nessa direo depende de providncias que no podem ser tomadas exclusivamente pelo Poder Judicirio,
hora de dedicar os esforos dos tribunais s prticas, aos instrumentos e s
atividades que possam contribuir com maior parcela de grandeza para os
resultados visados. Prticas, instrumentos e atividades que, portanto, sirvam
para reduzir diretamente o tempo de trabalho cartorrio e judicial e, consequentemente, o tempo do curso processual, de modo a acomodar o quantitativo da demanda no conjunto de recursos materiais e humanos disponveis.

2. Os instrumentos para enfrentamento da demanda nos


Juizados Especiais Cveis
A conciliao, a participao de juzes leigos e a uniformizao de
jurisprudncia so, em nosso entender, os principais instrumentos para a
execuo dessa tarefa. No nos esquecemos do processamento eletrnico
das causas e da unificao da execuo. Porm, estes ainda no so realidade em muitos tribunais. Aqueles j fazem parte do cotidiano dos Juizados,
carecendo apenas de mais ateno e investimento por parte da administrao do Poder Judicirio.
Quanto aos dois primeiros, conciliao e participao de juzes leigos,
a constatao de sua eficcia na reduo do tempo do processo fcil, imediata. So os nmeros dos levantamentos estatsticos do processamento nos
Juizados Especiais Cveis que o demonstram.
Tomemos como exemplo, inicialmente, os Juizados Especiais Cveis da
Capital do Estado do Rio de Janeiro situados no Frum Central da Comarca,
ou seja, os I, II, III, VII, XXI e XXVII Juizados Especiais Cveis, todos com
a mesma competncia regional e servidos por uma nica distribuio. Pelos
dados extrados do sistema do Tribunal de Justia do Estado do Rio de
Janeiro, referentes ao ano de 2008, os referidos Juizados receberam, cada
um deles, em mdia, 1.425 novos processos por ms.1

Dados obtidos junto ao DEIGE Departamento de Informaes Gerenciais da Prestao Jurisdicional


do Tribunal de Justia do Rio de Janeiro.

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Jos Guilherme Vasi Werner

Isso significa que, para evitar o congestionamento, isto , para conseguir lidar com essa demanda sem que haja uma crescente acumulao de
processos no solucionados, seria necessrio que cada um desses Juizados
solucionasse igual nmero de processos no perodo de um ms, o que implicaria na meta de 71 (setenta e um) processos por dia.
importante considerar que, por conta do rito concentrado da Lei
n 9.099/95, a soluo de um processo no Juizado Especial Cvel, na fase de
conhecimento, depende, caso no haja conciliao ou ausncia de partes
devidamente intimadas, de uma audincia de instruo e julgamento. por
isso que o procedimento bsico de um Juizado Especial Cvel para enfrentar a demanda regular consiste em ajustar o nmero de audincias designadas conforme a distribuio mensal.
Fica fcil perceber que, inexistindo conciliao, o esforo a ser aplicado em cada um desses Juizados para atender a demanda envolveria a realizao e concluso de 71 (setenta e uma) audincias de instruo e julgamento (AIJs) diariamente.
Mesmo descontada a mdia estatstica de 23% de audincias no realizadas por diversos motivos,2 ainda seriam 55 (cinquenta e cinco) audincias
de instruo e julgamento a realizar e concluir.
Ora, se um bom juiz capaz de realizar e concluir cerca de dez (10)
AIJs por dia (duzentas por ms) e um juiz realmente operoso consegue realizar quinze 15 (quinze) AIJs por dia (trezentas por ms), seria preciso, com
esses nmeros, que os responsveis pela administrao providenciassem,
para alm do espao fsico e sua estrutura mobiliria e material, pelo menos
5 (cinco) juzes e seus respectivos auxiliares para dar conta dessa meta.
Trata-se de uma tarefa, se no impossvel, absurdamente custosa para
os tribunais.

2.1. A conciliao e a participao dos juzes leigos


A relevncia do papel dos conciliadores e juzes leigos est precisamente na sua participao para a viabilizao do atendimento demanda. O con2

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Dados obtidos junto ao DEIGE - Departamento de Informaes Gerenciais da Prestao Jurisdicional


do Tribunal de Justia do Rio de Janeiro.

Conciliao, Juzes Leigos e Uniformizao de Jurisprudncia: Instrumentos


para o Enfrentamento da Demanda nos Juizados Especiais Cveis

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ciliador e o juiz leigo, quando acionados e operados de forma eficaz, representam fatores divisores e multiplicadores que, atuando sobre as variveis da
frmula acima descrita interferem diretamente na sua soluo. Vejamos.
Fazendo ainda uso dos dados referentes aos Juizados Cveis do Frum
Central da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, temos que o
percentual mdio de acordos de 20% (vinte por cento).3 Havendo acordo,
com ele e a respectiva homologao por sentena do juiz encerra-se a fase
de conhecimento, dispensando-se a AIJ. Em outras palavras, com o funcionamento regular da conciliao nos juizados em exame, j h uma reduo
estatstica de 20% no nmero de AIJs necessrias para o atendimento da
demanda. De 55 (cinquenta e cinco) AIJs por dia, esse nmero cai para 44
(quarenta e quatro) AIJs dirias, o que ainda exigiria a presena de pelo
menos 3 (trs) juzes operosos para conclu-las.
Nesse ponto que entram em cena os juzes leigos. Advogados, investidos na funo de auxiliares da Justia (art. 7, Lei n 9.099/95), os juzes
leigos podem figurar como rbitros escolhidos pelas partes (art. 24, caput e
1 e 2, Lei n 9.099/95) e esto autorizados a realizar a instruo do processo, presidindo a AIJ, e a proferir deciso a ser homologada pelo juiz de
direito (art. 40, Lei n 9.099/95).
Ao realizarem a instruo do processo, substituindo os juzes togados
nas AIJs, os juzes leigos contribuem no s para a reduo do servio judicial, mas para a multiplicao desse servio. No primeiro caso, aliviam o juiz
togado do esforo de realizao de um grande nmero de AIJs que, antes
dos juzes leigos, s por eles poderiam ser realizadas. Consequentemente, se
no permitem a reduo do tempo de curso do processo, permitem pelo
menos a melhor adequao do tempo do juiz togado aos servios requisitados pela demanda regular de um Juizado Cvel. No mais, a participao dos
juzes leigos no processo enseja uma verdadeira multiplicao dos resultados da prestao da jurisdio final pelo juiz togado, ao menos no que se
refere fase de conhecimento, j que um nico entendimento do magistra-

Dados obtidos junto ao DEIGE Departamento de Informaes Gerenciais da Prestao Jurisdicional


do Tribunal de Justia do Rio de Janeiro.

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Jos Guilherme Vasi Werner

do acerca de determinada questo pode ser reproduzido por tantos quantos


sejam os juzes leigos que o auxiliam.
Voltando aos Juizados em exame, as 44 (quarenta e quatro) AIJs a
serem realizadas diariamente em cada um deles poderiam ser presididas, em
tese, por 4 (quatro) juzes leigos diferentes, todos eles ao final proferindo
uma deciso que seria homologada pelo juiz togado. Nessa linha, parece
lgico que as decises em casos semelhantes sejam igualmente semelhantes,
todas espelhadas no entendimento do juiz togado frente do Juizado.
Assim, se sem os juzes leigos seria preciso contar com pelo menos 3 (trs)
magistrados em um nico Juizado, todos independentes para decidir conforme seu livre convencimento, com os juzes leigos um nico juiz togado
solucionaria todos os casos com seu prprio entendimento.
As vantagens dessa pequena modificao no so apenas abstratas, fundadas nas supostamente maiores coerncia e segurana jurdica. Para ficar
somente nos limites dos instrumentos aqui analisados, a conciliao nesse
Juizado se tornaria mais eficaz, pois os conciliadores passariam a se referir
(e as partes a considerar) a apenas um nico entendimento na pesagem
entre os riscos e os benefcios de um acordo ante a sentena que seria proferida em seu lugar. Havendo trs juzes togados atuando ao mesmo tempo,
a ausncia de um entendimento nico incentiva (para ambas as partes) a
espera por um resultado mais favorvel na sentena. A certeza quanto ao
entendimento de mrito em determinados casos um dado que pode ser
utilizado pelo conciliador na busca pelo acordo entre as partes.
Com o que foi dito at aqui, possvel notar que muito embora os juzes leigos contribuam significativamente para a reduo do servio judicial
ou ao menos para a melhor adequao do tempo do magistrado s tarefas do
Juizado, o instrumento que se mostra mais completo no que concerne
reduo no s do servio judicial, mas tambm do servio cartorrio e do
tempo de curso do processo, a conciliao.
Se em lugar do ndice de 20% (vinte por cento) alcanado nos Juizados
em referncia se conseguisse alcanar um ndice de 50% (cinqenta por
cento), as 44 AIJs por dia necessrias para atender demanda cairiam para
27 (vinte e sete). Os benefcios so bvios. 2 (dois) magistrados operosos
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Conciliao, Juzes Leigos e Uniformizao de Jurisprudncia: Instrumentos


para o Enfrentamento da Demanda nos Juizados Especiais Cveis

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poderiam lidar com a demanda regular. Com os juzes leigos, 3 (trs) deles
dariam conta confortavelmente da tarefa.
No se diga que um tal ndice inalcanvel, pois durante muito
tempo um dos Juizados Especiais Cveis da Capital, situado em um dos
fruns regionais, e com o mesmo perfil de demandas dos Juizados do Frum
Central (90% de causas envolvendo relao de consumo) conseguiu atingir
essa proporo e hoje mantm um resultado de cerca de quarenta e cinco
por cento (45%) de acordos.4
De todo modo, um ndice de conciliao de cerca de 50% dos feitos
no fcil de ser alcanado dentre processos em que figuram pessoas jurdicas como rus, principalmente quando so fornecedoras de produtos e
servios que freqentam assiduamente os Juizados Especiais. Em princpio,
buscam protelar ao mximo ( claro que dentro da legalidade e sem que se
possa falar em m-f processual) o desembolso de quantias que muitas vezes
sabem que sero condenadas a pagar.
A parte r pessoa fsica, que geralmente no coincide com um litigante habitual, no costuma fazer planejamentos contbeis a ponto de se preocupar em retardar o desembolso para obter uma vantagem financeira. Quer,
no mais das vezes, resolver logo a pendenga e se livrar do processo do modo
mais fcil. Por isso tende a ser mais suscetvel ao acordo.
Mesmo assim, a maior dificuldade de celebrao de acordos com pessoas jurdicas que figuram como rus habituais, pode ser minimizada com
ateno e preparo especficos para a conciliao no tipo de conflito em que
se envolvem. Abordar esses rus da mesma forma como se aborda um ru
que seja um mero litigante eventual um erro.
Entende-se que o investimento na conciliao deve ser feito sobretudo por meio da promoo de cursos de treinamento e aprimoramento e do
acompanhamento pessoal dos conciliadores pelo juiz responsvel pelo
Juizado. No caso de Juizados com distribuio comum e situados em um
mesmo local, o ideal que a equipe de conciliadores seja uma s e que
tenham superviso nica.

Dados obtidos junto ao DEIGE Departamento de Informaes Gerenciais da Prestao Jurisdicional


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Jos Guilherme Vasi Werner

que mesmo que o treinamento dos conciliadores possa estar a cargo de


um nico rgo de formao, a maior parte dos tribunais delega aos diversos
Juizados Cveis o seu recrutamento, acompanhamento e aprimoramento.
Somos de opinio que essa delegao pode comprometer os resultados
de um esforo pela maior eficcia da conciliao, que seria melhor servido
por uma centralizao dessas atividades, que tambm seriam concentradas
na administrao dos tribunais, que manteriam estatsticas detalhadas sobre
as tarefas realizadas.
Desse modo, os conciliadores (que em muitos casos j recebem um
treinamento comum) seriam recrutados, acompanhados e avaliados por
um nico setor, atravs de polticas e rotinas nicas, cujo sucesso seria
aproveitado por todos os Juizados atendidos. Com tal providncia ainda
seria possvel a sincronizao das pautas dos juizados atendidos, ou seja,
todos eles poderiam ter audincias de conciliao marcadas para a mesma
data, j que os esforos para manter a pauta em dia seriam absorvidos
pela Central. Aps essa centralizao, talvez fosse o caso de realizar as
audincias de conciliao em um nico local, que abrigaria tantas salas
de conciliao quantas necessrias para atender a demanda de todos os
Juizados atendidos.
No se pode esquecer que a conciliao no restrita aos conciliadores. Uma outra vantagem da participao dos juzes leigos a de que, alm
da realizao da instruo e do preparo de um projeto de sentena, eles
tambm podem praticar a conciliao. O acordo ser sempre o resultado
mais eficiente que podem alcanar e, por isso, ideal que a formao dos
juzes leigos receba nfase especial nas tcnicas de conciliao. Quando isso
for feito, os tribunais podem considerar uma unificao das duas funes
(conciliador e juiz leigo) na mesma pessoa, dependendo do nmero de indivduos necessrios para atender s audincias.

2.2. A uniformizao da jurisprudncia


Escrevemos at aqui sobre a conciliao e a participao dos juzes leigos, dois dos principais instrumentos de reduo do servio nos Juizados
atravs da minimizao do nmero de AIJs a serem realizadas (ou pelo
100

Conciliao, Juzes Leigos e Uniformizao de Jurisprudncia: Instrumentos


para o Enfrentamento da Demanda nos Juizados Especiais Cveis

101

menos do nmero de AIJs a serem realizadas pelo magistrado). Porm,


para que essa reduo possa receber um tratamento completo, essas duas
atividades devem ser complementadas pelo recurso uniformizao de
jurisprudncia nos Juizados Cveis.
A uniformizao permite que entendimentos sobre questes de direito material ou formal se consolidem, evitando disparidade de interpretaes no mesmo sistema e situaes prticas como a da existncia de usurios de servios pblicos que ao pleitearem uma indenizao ou absteno
de cobrana em face da concessionria local as obtm e ao mesmo tempo
daqueles que no as conseguem, tudo porque h divergncia de entendimentos nos Juizados (1 grau) e nos rgos colegiados que julgam os
recursos.
verdade que o sistema dos Juizados Especiais Cveis vem se valendo
de orientaes, chamadas de enunciados, colhidas de encontros de juzes
que atuam tanto no 1 grau quanto no 2 grau. H exemplos de encontros
no mbito dos Estados e tambm no mbito nacional, estes organizados
pelo Frum Nacional dos Juizados Especiais FONAJE. A experincia
mostra que a adoo dessa metodologia vem funcionando at um certo
ponto, devendo ser louvada a possibilidade de participao de todos os juzes que atuam no sistema e no s daqueles que compem os rgos que
apreciam os recursos.
Pois exatamente essa ampliao dos agentes formadores das orientaes que pode estar impedindo que a fora da jurisprudncia seja melhor
aproveitada para a evoluo do sistema. Sendo elaborados, como vimos, em
encontros de juzes que atuam nos juizados e nos conselhos recursais, os
enunciados so respeitados at um certo ponto, a nosso ver de modo insuficiente para garantir o aproveitamento da experincia tcnica dos magistrados que j atuam h algum tempo no sistema e principalmente a segurana jurdica. que se de um lado a participao de todos de certa forma
legitima os resultados alcanados nesses encontros e evoca uma espcie de
compromisso entre aqueles que aderiram ao entendimento enunciado, de
outro no parece que esse compromisso se estenda para aqueles que votaram em sentido contrrio ou diverso do entendimento que prevaleceu.
Ademais, h que se levar em conta que at mesmo pelo pequeno prestgio
101

102

Jos Guilherme Vasi Werner

que os Juizados ainda detm perante os juzes em geral,5 h sempre uma


grande movimentao de magistrados nos juizados de 1 grau, alguns permanecendo no mesmo rgo apenas por um nico ms, outros deixando o
sistema to logo possvel. Essa grande movimentao faz com que a participao desses mesmos magistrados nos encontros deixe de contribuir para a
legitimidade de que se falou. Ao mesmo tempo, os novos juzes que assumem postos nos Juizados acabam no se sentindo vinculados aos enunciados adotados.
Por essas razes, nos parece que a melhor forma de garantir a maior
coerncia do sistema dos Juizados e com isso assegurar sua melhor compreenso por partes advogados e operadores, antigos ou recm-ingressos,
seja atravs da uniformizao da jurisprudncia dos rgos incumbidos da
apreciao dos recursos por meio de mecanismo procedimental exclusivo.
Nessa exclusividade, apenas os rgos recursais, com suas respectivas
decises, seriam fonte de enunciados representativos da jurisprudncia dos
Juizados Especiais. Tais enunciados, emanados do rgo a quem cabe oficialmente a reviso das sentenas dos Juizados Especiais de primeiro grau,
se bem que de observncia no obrigatria, teriam maior fora de persuaso e o que nos parece essencial poderiam ser utilizados como referncia direta para as decises do prprio conselho recursal e para possibilitar a
aplicao do art. 285-A do Cdigo de Processo Civil, nos casos cabveis.
Para evitar que a uniformizao afete a celeridade dos julgamentos
nas turmas recursais, importante que o mecanismo seja de provocao restrita aos juzes integrantes desses rgos, que tero a experincia necessria
para reconhecer questes de relevncia e de grande interesse e repercusso
que possam afetar um grande nmero de processos dos Juizados Especiais.
Nesse sentido vo as disposies do Regimento das Turmas Recursais Cveis
e Criminais do Poder Judicirio do Rio Grande do Sul (art. 19 e pargrafo

102

No obstante o grande progresso e integrao na vida institucional e, principalmente, social, os Juizados


Especiais Cveis ainda so vistos, pela maior parte das administraes dos Tribunais de Justia, como um
rgo de segunda classe. Seus juzes, conforme as palavras do ex-presidente do Supremo Tribunal
Federal e do Conselho Nacional de Justia, ministro Nelson Jobim, ainda contam com certo desprestgio por parte dos integrantes das cpulas dos tribunais (em palestra proferida por ocasio da divulgao do Pacto Nacional Pelos Juizados Especiais, em 6 de dezembro de 2005).

Conciliao, Juzes Leigos e Uniformizao de Jurisprudncia: Instrumentos


para o Enfrentamento da Demanda nos Juizados Especiais Cveis

103

nico, Captulo V) e do antigo Regimento das Turmas Recursais do Estado


do Rio de Janeiro, no mais em vigor.

3. Concluso
Enquanto a demanda pela prestao jurisdicional nos Juizados Especiais
no d sinais de arrefecimento, a conciliao, a participao de juzes leigos
e a uniformizao de jurisprudncia que se apresentam como as formas
mais eficientes de seu tratamento. Em nosso entender, para alm do processo eletrnico um das mais promissoras ferramentas atualmente disposio do Judicirio, a interveno da administrao dos tribunais nos Juizados
Especiais deve ser concentrada nesses instrumentos e procedimentos que,
como mostram os nmeros, so aqueles que podem contribuir mais significativamente para a agilizao do processo nos Juizados Especiais Cveis.

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II
Ao e Competncia
nos Juizados Especiais Cveis

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Consideraes em Torno de Algumas
Questes Polmicas
no mbito dos Juizados Especiais
Aluisio Gonalves de Castro Mendes
Joo Bosco Won Held Gonalves de Freitas Filho

SUMRIO: 1. Introduo. 2. A trajetria dos juizados especiais: do juzo informal justia


estatal. 3. O problema da efetividade dos juizados especiais. 4. A questo do valor da causa
nos juizados especiais. 5. A renncia ao crdito excedente nos juizados especiais. 6. Os conflitos de competncia entre juizado especial e o juzo comum. 7. A uniformizao de interpretao de lei federal: celeridade versus segurana jurdica. 8. Referncias bibliogrficas.

1. Introduo
Tornou-se lugar comum a elaborao de estudos de temas de direito
processual luz do postulado do acesso Justia,1 porquanto um dos esteios
sagrados da moderna processualstica a busca por eficazes instrumentos
(estatais ou no) que propiciem o acesso ordem jurdica justa,2 com vistas a dar ao cidado quilo que efetivamente lhe pertence, em termos de
direito substancial.
Nesse particular, esquadrinhar um sistema que, de um lado, seja menos
burocratizado e custoso para o cidado e, de outro, mais clere e prximo
do jurisdicionado, uma das facetas do movimento do acesso Justia. Sob
o ponto de vista do processo e no apenas de Justia como instituio, bus-

1
2

CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryan. Acesso justia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002.
WATANABE, Kazuo. Acesso justia e sociedade moderna. In: Participao e processo. GRINOVER,
Ada Pellegrini; DINAMARCO, Candido Rangel; WATANABE, Kazuo (Coord.) So Paulo: Revista dos
Tribunais, 1988, p. 128.

107

108

Aluisio Gonalves de Castro Mendes e Joo Bosco Won Held Gonalves de Freitas Filho

car o refinamento dos instrumentos processuais premissa de um processo


civil de resultados.
No se pode negar que a tutela jurdica tradicional no frutifica em arenas que fogem do modelo individualista processual, decorrente do liberalismo que tanto impactou o tecnicismo de outrora. evidente que, por exemplo, em termos de direitos metaindividuais, o processo civil individual no
considerado o instrumento idneo para veicular pretenses coletivas. Da
mesma forma, o modelo processual tradicional no encontra campo frtil
para produzir resultados profcuos, em termos de efetividade, nas causas de
bagatela, sejam as de menor valor econmico ou as de menor complexidade.
Isso porque o processo tradicional demasiadamente complexo para
causas pequenas. Da que se buscam tutelas jurdicas diferenciadas, evidenciadas, por exemplo, pela deformalizao do processo,3 como se tem
no rito sumarssimo dos Juizados Especiais, ao passo que, para demandas de
massa o processo coletivo se apresenta como a via adequada.
Desse modo, a fim de efetivar o acesso justia, repensar um sistema
jurdico diferenciado para causas tambm especficas medida que se
impe. Nesse panorama os juizados especiais cveis so excelentes instrumentos de soluo de determinadas espcie de controvrsias, como as
decorrentes de vizinhos, acidentes de trnsito, cobrana de dvidas de nfimo valor etc.
Por intermdio dos juizados especiais, pois, as pessoas tm a possibilidade de judicializar questes que, normalmente, no seriam levadas perante os juzos tradicionais, dado os custos do processo, a demora na prestao

108

A expresso deformalizao do processo foi difundida no campo jurdico, no Brasil, por Ada Pellegrini
Grinover, atravs do texto intitulado deformalizao do processo e deformalizao das controvrsias,
fruto do relatrio brasileiro para o tema Alternativas informais para procedimentos formais, do VII
Congresso Internacional de Direito Processual em Utrecht, em agosto de 1987. Cf. GRINOVER, Ada
Pellegrini. Deformalizao do processo e deformalizao das controvrsias. Revista de Informao
Legislativa, Braslia, ano 25, n 97, 191-218, jan./mar., 1988. O texto tambm pode ser encontrado na
seguinte referncia: GRINOVER, Ada Pellegrini. Deformalizao do processo e deformalizao das
controvrsias. In: Novas tendncias do direito processual. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria,
1990. De todo modo, a deformalizao do processo implica a utilizao da (...) tcnica processual em
busca de um processo mais simples, rpido, econmico, de acesso fcil e direto, apto a solucionar com
eficincia tipos particulares de conflitos de interesses (GRINOVER, Ada Pellegrini. Deformalizao do
processo e deformalizao das controvrsias. Revista de Informao Legislativa, Braslia, ano 25, n 97,
191-218, jan./mar., 1988, p. 195).

Consideraes em Torno de Algumas Questes Polmicas


no mbito dos Juizados Especiais

109

jurisdicional, o excesso de formalismo e a complexidade da prpria estrutura judiciria.


Destarte, os juizados especiais apresentam-se, em princpio, como profcuo mecanismo de concretizao do acesso Justia, de molde a servir de
canal social entre o jurisdicionado e o Estado na soluo de determinados
tipos de controvrsias.

2. A trajetria dos juizados especiais: do juzo informal


justia estatal
A estrutura orgnica e funcional do Poder Judicirio brasileiro sofreu
relevantes alteraes nos ltimos dois decnios, embora seja perceptvel
que, desde h muito, so conhecidas as transformaes na organizao judiciria brasileira, em qualquer mbito, seja pela criao e extino de rgos
judiciais, seja pela reformulao de suas competncias.
Dentre todas elas, afirma-se que as mais relevantes mutaes foram consubstanciadas pela Constituio da Repblica Federativa de 1988, bem como,
posteriormente, pela Emenda Constitucional n 45, de 2004, intitulada de
Reforma do Poder Judicirio. A Carta de 1988, por exemplo, extinguiu o
Tribunal Federal de Recursos, acarretando, conseqentemente, a criao dos
Tribunais Regionais Federais e do Superior Tribunal de Justia. A Reforma do
Poder Judicirio, igualmente, trouxe profundas alteraes na estrutura judiciria nacional, dentre as quais se destacam a criao do Conselho Nacional
de Justia e a extino dos Tribunais de Aladas em mbito estadual.
Todas as recentes transformaes na arquitetura judiciria objetivam,
principalmente, o aperfeioamento da prestao jurisdicional e a melhora
da administrao da Justia, com vistas consolidao de um Judicirio
mais rpido e Republicano.4
Sem embargo das importantes inovaes referidas, trazidas pela Reforma do Poder Judicirio em 2004 e da prpria Constituio da Repblica

A propsito, em dezembro de 2004, os presidentes da Repblica, da Cmara dos Deputados, do Senado


Federal e do Supremo Tribunal Federal, firmaram o chamado Pacto de Estado em favor de um
Judicirio mais rpido e Republicano.

109

110

Aluisio Gonalves de Castro Mendes e Joo Bosco Won Held Gonalves de Freitas Filho

em 1988, no incio da dcada de oitenta do sculo passado, a sociedade brasileira conheceu a faceta mais democrtica do Judicirio, atravs da implantao concreta dos juizados de pequenas causas.
oportuno ressaltar que a institucionalizao dos juizados de pequenas causas se deve, sobretudo, pela experincia anterior dos Conselhos de
Conciliao e Arbitragem no Rio Grande do Sul, a partir de 1982. A idealizao e concretizao deste ambicioso projeto de justia coexistencial foi
capitaneada pela Associao dos Juzes do Rio Grande do Sul AJURIS, que
contou com a colaborao de inmeros atores sociais, como magistrados,
advogados e auxiliares da Justia.5
Esses Conselhos no integravam a estrutura orgnica do Poder
Judicirio, tampouco havia qualquer regra formal que regulamentasse suas
atividades.6 Da a natureza destes juzos informais de meios alternativos
de soluo de controvrsia.
De modo geral, o projeto dos juzos informais no Rio Grande do Sul e,
posteriormente, em outros estados foi exitoso. A experincia serviu para
que o Ministrio da Desburocratizao canalizasse esforos na busca da
normatizao dos juizados de pequenas causas, o que se deu atravs da Lei
n 7.244/1984.
Os juizados de pequenas causas, inspirados, em alguma medida, na
Small Claims Court do direito norte-americano, buscavam, ao menos num

110

Os conselhos de Conciliao e Arbitramento, que foram chamados popularmente de Juizado de Pequenas Causas, surgiram em Rio Grande, em 23 de julho de 1982, sob a responsabilidade do Juiz Antnio
Tanger Jardim, na poca titular de uma das Varas Cveis daquela localidade, e com o apoio da Associao dos Juzes do Rio Grande do Sul Ajuris. Tendo sido a experincia bem-sucedida tambm em
outros Estados da Federao (PINTO, Oriana Piske de Azevedo Magalhes. Abordagem histrica e
jurdica dos juizados de pequenas causas aos autuais juizados especiais cveis e criminais brasileiros.
Disponvel em: <www.tjdft.jus.br/trib/bibli/docBibli/ideias/AborHistRicaJurDica.pdf>. Acesso em 06
de maro de 2009, p. 8).
Ada Pellegrini Grinover traa um panorama do movimento: Os Conselhos ou Juizados de
Conciliao so rgos no jurisdicionais, compostos por conciliadores honorrios, recrutados entre
advogados, membros do Ministrio Pblico, advogados do Estado e juzes aposentados, todos voluntrios, mas tambm estimulados pelo fato de seu servio ser considerado de relevncia social, o que no
Brasil pode acarretar vantagens funcionais. As instalaes utilizadas so as dos tribunais, inclusive dos
foros descentralizados, localizados nos bairros da grandes cidades, em horrio noturno (aps as 18
horas), para as sesses de conciliao. Mas se estende pelo dia todo o trabalho de orientao jurdica aos
interessados que, conforme o caso, so encaminhados aos rgos competentes, inclusive da assistncia
judiciria, para a soluo de questes no afetas justia conciliativa. A estrutura administrativa dos
Juizados fornecida pelo Poder Judicirio (GRINOVER, op. cit., p. 209).

Consideraes em Torno de Algumas Questes Polmicas


no mbito dos Juizados Especiais

111

primeiro momento, absorver a chamada litigiosidade contida, isto ,


demandas que o jurisdicionado no levaria, por fatores vrios, ao conhecimento do Estado-juiz.7
A ampla receptividade dos juizados de pequenas causas perante a
sociedade brasileira foi razo bastante para que a Constituio da Repblica
Federativa de 1988 aperfeioasse o modelo at ento vigente.8 A nova Carta
concedeu novos contornos ao instituto, traando linhas mestras que deveriam ser seguidas pelo legislador infraconstitucional quando da criao dos
juizados especiais cveis.
Em cotejo com o ento sistema dos juizados de pequenas causas, a
Constituio brasileira, nos termos do seu art. 98, I, foi inovadora sob vrios
aspectos:9
a) tornou obrigatria a instituio dos juizados especiais pelos
entes federativos, j que no sistema da Lei n 7.244/1984
existia mera faculdade;
b) ampliou o instituto para a arena penal, ao passo que a aplicabilidade da Lei de 1984 se cingia apenas ao mbito cvel;

Conforme escreve Joo Geraldo Piquet Carneiro, que dirigiu a comisso que elaborou o anteprojeto que
deu origem Lei n 7.244/1984, (...) a preocupao central que orientou a criao de Juizados de
Pequenas Causas foi ampliar o acesso Justia mediante a criao de um sistema judicial completo, o
mais auto-suficiente possvel que no se confundisse, nem em termos processuais nem do ponto de vista
da organizao e do equipamento humano, com os demais procedimentos e rgos da Justia comum.
Adiante salienta o autor: no se cogitou, poca, de combater a morosidade e o congestionamento do
Judicirio problemas que ainda no tinham assumido a dimenso dramtica atual. Ao contrrio, o
quadro que se desenhava poca era o de litigiosidade contida, como nos lembrava Kazuo Watanabe
nas reunies da comisso que elaborou o anteprojeto de lei dos Juizados de Pequenas Causas. Bem diferente do quadro de litigiosidade explosiva que se vive hoje (CARNEIRO, Joo Geraldo Piquet.
Estratgia de aperfeioamento e consolidao dos Juizados Especiais Cveis. Revista do Advogado, So
Paulo, v. 24 , n 75, p. 34-37, abr. 2004, p. 34).
Joo Marques Brando Neto salienta que (...) os Juizados Especiais sempre existiram na seqncia histrica que vem dos visigodos at nossos dias. Mesmo sendo extintos em alguns momentos, voltaram,
ora apenas no direito, ora no direito e nos fatos. A partir de 1988 passaram a ser efetivamente implantados na prtica e a demanda se fez sentir (BRANDO NETO, Joo Marques. Juizados Especiais: a
fnix da justia ibero-brasileira. Boletim cientfico da Escola Superior do Ministrio Pblico da Unio,
Braslia, v. 4, n 16, p. 263-277, jul./set., 2005, p. 277). O articulista sustenta, ainda, que a partir do seu
ressurgimento na Constituio de 1934, os juizados de pequenas causas sempre tiveram presena marcante nos textos das Constituies subseqentes, tendo superado, inclusive, dois regimes ditatoriais, o
de 1937 e o de 1964 (Ibidem, loc. cit.).
FABRCIO, Adroaldo Furtado. A experincia brasileira dos juizados de pequenas causas. Revista de
Processo, So Paulo, n 101, p. 175-189, jan./mar., 2001

111

112

Aluisio Gonalves de Castro Mendes e Joo Bosco Won Held Gonalves de Freitas Filho

c) contemplou mais um auxiliar da justia no mbito dos juizados, qual seja, o juiz leigo;
d) proporcionou a atividade executiva pelo prprio juizado,
vedao expressamente prevista no antigo sistema em sua
forma originria, de modo que, poca, necessrio se fazia a
execuo na justia tradicional;10
e) ampliou o espectro de atuao do juizado para as causas
cveis de menor complexidade, enquanto a Lei dos Juizados
de Pequenas Causas apenas previa a competncia para causas cveis de pequeno valor.
Com vistas a atender ao comando constitucional do inciso I do art. 98
veio a lume a previso da Lei n 9.099/1995, implementando os juizados
especiais e, por fora de sua redao, revogando a Lei n 7.244/1984, a qual
perdurou por mais de um decnio.
Em mbito cvel, a Lei n 9099/1995 seguiu, em linhas gerais, o traado da Lei n 7.244/1984, com algumas pontuais alteraes, dentre as quais
indica-se: a) o valor foi ampliado, passando a ser de quarenta vezes o salrio mnimo como limite de sua competncia, j que na Lei de 1984 o valor
de alada estava adstrito ao montante de vinte salrios; b) houve a consagrao da competncia de causas cveis de menor complexidade em ateno
determinao do texto constitucional, como, por exemplo, as que seguem
o rito sumrio e as aes de despejo para uso prprio; e c) a concretizao
do sincretismo processual, mitigando o binmio conhecimento-execuo
num sistema uno.
Dada a inexistncia de previso expressa no texto constitucional sobre
a incidncia dos juizados especiais em mbito federal, atravs de alterao
realizada pela Emenda Constitucional n 22/1999, a Constituio da

10

112

O artigo 40 da Lei dos Juizados de Pequenas Causas, originariamente, possua a seguinte redao: A
execuo da sentena ser processada no juzo ordinrio competente. Posteriormente, a Lei n
8.640/1993, deu nova redao ao referido dispositivo, alterando o regime de execuo, passando a dispor que a execuo da sentena ser processada no juzo competente para o processo do conhecimento, aplicando-se as normas do Cdigo de Processo Civil. No obstante, ao mandar aplicar o regime do
CPC, concretizava o modelo dual de processo conhecimento versus executivo , reconhecidamente
burocrtico e demorado.

Consideraes em Torno de Algumas Questes Polmicas


no mbito dos Juizados Especiais

113

Repblica determinou a instituio de juizados especiais perante a Justia


Federal, previso regulamentada com a edio da Lei n 10.259/2001.
Do histrico normativo com incio na Lei de Pequenas Causas, passando pela Constituio da Repblica e, por fim, culminando com as Leis dos
Juizados Especiais em mbito Estadual e Federal, bem como atravs da
experincia concreta dos Conselhos de Conciliao e Arbitragem, percebe-se que, por esta trajetria, no houve apenas a consolidao de um novo
procedimento (deformalizado), como sucedneo s vias tradicionais, mas
tambm o surgimento de uma peculiar estrutura jurdica, instituda com o
claro objetivo de democratizar o acesso Justia de uma clientela normalmente alheia ao sistema jurdico tradicional.

3. O problema da efetividade dos juizados especiais


A glria de um passado recente vem sendo enodoada pelo desprestgio
de um presente problemtico. Os juizados, primeiro os de pequenas causas
em 1984 e depois os especiais cveis a partir de 1995, como visto, tm como
principal bandeira a democratizao do acesso Justia, consolidando uma
ordem jurdica justa, mas tal premissa tem sido prejudicada por entraves que
os juizados especiais cveis estaduais e federais enfrentam nos dias de hoje.
Como cedio, com o advento do regime democrtico, teve curso tambm a democratizao do Judicirio. Tal fenmeno gerou profundas alteraes no quadro at ento encontrado no Poder Judicirio, de modo que
houve uma mutao de uma litigiosidade contida para uma verdadeira
exploso de litigiosidade.
Nesse panorama, as pretenses de uma clientela bastante difusa foram
arrastados para o Poder Judicirio, o qual, em alguma medida, tornou-se um
grande receptor de queixas sociais, na medida em que causas relevantes ou
no, simples ou complexas, nfimas ou vultosas, passaram a desembocar e
tramitar no Judicirio, a espera de uma resposta.
Tal perspectiva vem afetando diretamente os juizados especiais. Com
efeito, por ser uma justia inequivocamente diferenciada, com caracteres
prprios, receptora de uma clientela prpria, que judicializa questes singelas e de menor valor econmico.
113

114

Aluisio Gonalves de Castro Mendes e Joo Bosco Won Held Gonalves de Freitas Filho

Todavia, essas questes atradas aos juizados esto alcanando patamares surpreendentes segundo dados estatsticos,11 que pem em xeque a higidez do sistema, sobretudo o fator celeridade. Percebe-se, em linhas gerais,
que h um nmero excessivo de causas tramitando, agravado com o nmero crescente de novas demandas, gerando um aumento na taxa de congestionamento.
Embora no haja uma nica forma de olhar o tema, possvel inferir,
sem qualquer pretenso de exaustividade, alguns fatores, jurdicos ou no,
que acarretam um aumento de demandas nos juizados especiais:
a) histrico, pela prpria democratizao do pas, sendo certo
que a cultura da represso cede diante da filosofia do acesso;
b) social, a populao passa a ter mais informaes sobre os seus
direitos, sobretudo os relacionados s relaes consumeristas, que so campo frtil de competncia dos juizados;
c) a gratuidade da Justia por fora da lei em primeiro grau de
jurisdio, uma vez que os custos do processo fora do juizado alm da imperiosidade necessidade de contratao de
um advogado so altssimos;
d) ausncia de uma tradio na busca dos meios no judiciais de
soluo de conflitos;
e) deficincia no sistema de tutela coletiva, especialmente em
relao aos direitos individuais homogneos, os quais acabam desaguando, de modo atomizado, nos juizados.
Em relao ao ltimo aspecto, o processo coletivo pode exercer uma
forte influncia como instrumento de racionalizao da administrao da
Justia, porquanto, por intermdio de uma nica ao coletiva, ao invs de

11

114

Cf. o relatrio elaborado pelo Departamento de Pesquisas Judicirias do Conselho Nacional de Justia,
intitulado Justia em nmeros 2007: breve anlise do poder judicirio, especialmente as pginas 98 e
104, que contemplam, respectivamente, os dados dos juizados federais e estaduais de 2004 a 2007.
Disponvel em <http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/relatorios/justica_em_numeros_volume_2.pdf>. Acesso em 15/03/2009.

Consideraes em Torno de Algumas Questes Polmicas


no mbito dos Juizados Especiais

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inmeras aes individuais, poder-se-ia otimizar o servio judicial, reduzindo-se custos, tempo, recursos humanos etc.

4. A questo do valor da causa nos juizados especiais


Sabe-se que o principal critrio de fixao de competncia nos juizados o valor da causa, conquanto seja possvel se inferir a existncia de
outros critrios, como, por exemplo, o material e o pessoal. Malgrado estejam ancorados na mesma filosofia e vinculados aos mesmos princpios
informativos, o legislador ordinrio entendeu por bem conferir tratamento
diferenciado aos juizados especiais cveis estaduais e federais em relao ao
critrio de determinao de competncia ratione valoris.
Isso porque, como se sabe, nos juizados especiais cveis estaduais sua
competncia est adstrita, em regra, ao montante de quarenta salrios mnimos, ao passo que nos juizados especiais cveis federais a limitao de sessenta salrios mnimos.
No obstante, em mbito estadual, possvel em alguns casos admitir
a propositura de aes no juizado especial em valor acima de 40 salrios
mnimos, como se tem, por exemplo, na hiptese do inciso II do art. 3 da
Lei n 9.099/1995.
Com efeito, o dispositivo mencionado faz referncia aos casos estabelecidos no procedimento sumrio em razo da matria. Como se sabe, o rito
sumrio ser empregado em razo do valor da causa, nas hipteses cujo valor
no exceda 60 salrios mnimos, bem como nas causas temticas estabelecidas nos incisos II do art. 275 do CPC, independentemente de seu valor.
Considerando que o inciso II do art. 3 da Lei n 9.099/1995 manda
aplicar, sem qualquer ressalva, as hipteses do inciso II do art. 275 do CPC,
a concluso a que se chega que, nesses casos, ser admissvel a propositura de demanda acima de 40 salrios mnimos, na medida em que os casos do
sumrio em razo da matria no esto adstritos a qualquer valor.12
12

Nesse sentido o enunciado n 58 do FONAJE: As causas cveis enumeradas no art. 275, II, do CPC admitem condenao superior a 40 salrios mnimos e sua respectiva execuo, no prprio juizado. No obstante, no Estado do Rio de Janeiro prevalece o entendimento de que todas as causas da competncia dos
Juizados Especiais Cveis esto limitadas a 40 salrios mnimos (Enunciado n 2.3.1 dos Enunciados Jurdicos
Cveis dos Encontros de Juzes dos Juizados Especiais e das Turmas Recursais do Estado do Rio de Janeiro).

115

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Aluisio Gonalves de Castro Mendes e Joo Bosco Won Held Gonalves de Freitas Filho

Ora, no se pode pretender combinar o inciso II do art. 3 da Lei dos


Juizados Especiais Estaduais com o inciso I do mesmo dispositivo, o qual
realiza uma limitao da alada, posto que so hipteses separadas. O inciso I, no sendo norma geral, apenas um dos casos de competncia dos juizados, assim como o o inciso II.
Ademais, se a inteno do legislador fosse, de fato, realizar uma limitao no valor de alada, teria feito uma ressalva expressa, como fez claramente em relao s aes possessrias, as quais esto vinculadas ao valor
de 40 salrios mnimos, ante a previso do inciso IV do art. 3 da Lei n
9.099/1995. A mesma limitao ocorre na execuo dos ttulos executivos
extrajudiciais, valor que fica limitado a 40 salrios mnimos, nos termos da
inequvoca previso legislativa disposta no inciso II, do 1, do art. 3, da
referida lei.
Aplica-se aqui comezinha regra de hermenutica jurdica, no sentido
de que onde a lei no distinguiu no cabe ao interprete faz-lo. Ou seja, se
a lei no faz qualquer ressalva em relao s hipteses do inciso II do art. 3
da Lei n 9.099/1995 para efeito de limitao do valor da causa, no caberia
ao intrprete realizar tal conteno.
Relembre-se que os juizados especiais cveis contemplam competncia
para apreciar as pequenas causas causas cveis de baixo valor , bem como
para as causas cveis de menor complexidade, isto , causas singelas, qualquer que seja o valor.
Portanto, possvel que exista uma causa cvel de menor complexidade que no seja de baixo valor, como nas hipteses em que lcito optar pelo
rito estabelecido nos juizados especiais estaduais para os casos do sumrio,
caso em que o valor poder exceder o montante de 40 salrios mnimos.
Alm da hiptese acima referida, admissvel que, mesmo no caso do
inciso I do art. 3 da Lei n 9.099/1995, o valor a ser levado ao processo seja
superior a 40 salrios mnimos. Isso ocorre na hiptese de conciliao, caso
em que no fica a sua homologao adstrita alada de 40 salrios, conforme autoriza a parte final do 3 do art. 3 da referida lei.
Desse modo, alm das matrias estabelecidas no rito sumrio que no
ficam vinculadas a qualquer valor admite-se, nos casos de conciliao, a
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Consideraes em Torno de Algumas Questes Polmicas


no mbito dos Juizados Especiais

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superao do valor de alada estabelecido em 40 salrios mnimos para efeito de competncia dos juizados especiais cveis estaduais.
Por outro lado, nos juizados especiais cveis federais, irrefutavelmente, todas as causas esto adstritas ao limite de 60 salrios mnimos, por fora
do art. 3, caput, da Lei n 10.259/2001. No possvel, assim, no mbito
federal, diferentemente do que ocorre nos juizados estaduais, que o valor de
alada seja ultrapassado, sequer para efeito de conciliao, porquanto o
pargrafo nico do art. 10 da Lei n 10.259/2001 estabelece que a conciliao deve atender competncia dos juizados especiais federais, estabelecida, nesse particular, em at 60 salrios mnimos.

5. A renncia ao crdito excedente nos juizados especiais


Tema umbilicalmente relacionado com a questo do valor de alada
dos juizados especiais cveis estaduais e federais e que tem suscitado inmeras controvrsias o debate no tocante renncia do crdito excedente.
O pano de fundo do dissenso o contedo do 3 do art. 3 da Lei n
9.099/1995, que estabelece que a opo pelo procedimento previsto nesta
Lei importar em renncia ao crdito excedente ao limite estabelecido
neste artigo, excetuada a hiptese de conciliao. Alis, complementando
o referido dispositivo, o art. 39 dispe que ineficaz a sentena condenatria na parte que exceder a alada estabelecida nesta Lei.
O debate mais acirrado nos juizados especiais federais, na medida em
que inexiste norma expressa na Lei n 10.259/2001 cuidando do tema da
renncia ex lege.
A primeira questo inexistncia de previso normativa na Lei n
10.259/2001 facilmente superada. Com efeito, a omisso pode ser colmatada pela aplicao subsidiria da Lei n 9.099/1995, j que no h, no
geral, qualquer incompatibilidade na aplicao do 3 do art. 3 da Lei dos
Juizados Especiais Estaduais em mbito federal, exceto em relao parte
final da referida norma que cuida da possibilidade de conciliao acima do
teto estabelecido no juizado especial federal.
O segundo problema admissibilidade ou no de renncia ex lege
mais espinhoso. A esse respeito, existe at enunciado editado pelo FONA117

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Aluisio Gonalves de Castro Mendes e Joo Bosco Won Held Gonalves de Freitas Filho

JEF, o de n 16, no qual se encontra construdo posicionamento de que no


h renncia tcita nos Juizados Especiais Federais para fins de fixao de
competncia.
No obstante, tal orientao no merece prosperar. Com efeito, atravs
da anlise da Lei n 10.259/2001 resta claro que a renncia ocorre pela simples apresentao da demanda em juzo, na medida em que a competncia
dos juizados especiais federais est limitada ao valor de 60 salrios mnimos.
Portanto, despiciendo que o autor se manifeste expressamente sobre a
renncia, eis que corolrio de sua atuao em juzo o conhecimento da lei
e a cincia de que, em nenhuma hiptese, ser possvel postular em montante superior ao estabelecido nos juizados especiais federais.
A precauo que se deve adotar em relao populao no sentido
de que se conceda a devida informao ao jurisdicionado acerca do contedo da legislao nacional no tocante referida renncia, em conformidade
com a norma veiculada na prpria lei, atentando para os efeitos produzidos
pelo artigo 3, 3, da Lei n 9.099/95, quanto renncia a montante que
venha a exceder o valor de alada dos Juizados Especiais Cveis.
Considerando o prprio princpio da demanda, a parte autora poder
se utilizar dos Juizados Especiais Cveis, seja na esfera federal ou no,
mesmo que tenha valores a receber maiores que a limitao legalmente
imposta quando a competncia ratione valoris abrindo mo, para
tanto, dos respectivos excedentes.
Assim, como se pode vislumbrar, o legislador no determinou que o
magistrado colhesse qualquer espcie de renncia especfica da parte autora,
que configura conseqncia automaticamente produzida em razo da opo
manifestada pelo jurisdicionado em se submeter ao procedimento utilizado
pelos Juizados Especiais, constituindo, portanto, uma renncia ex lege.13

13

118

Impende ainda ressaltar que em recentssimo julgado proferido pelo Egrgio Tribunal Regional Federal,
outro no foi o entendimento adotado pela Sexta Turma Especializada que, por unanimidade, firmou a
comentada posio, na lide ento composta, a teor da ementa reproduzida nas linhas a seguir: PROCESSUAL CIVIL. EXTINO DO PROCESSO. FALTA DE INTERESSE DE AGIR. - A Lei n 9.099/95,
aplicvel aos Juizados Federais por fora do art. 1 da Lei n 10.259/2001, em seu art. 3, 3, determina que o excesso que se verifique quanto ao valor da causa, que inicialmente importaria na incompetncia dos Juizados Especiais para seu processo e julgamento, acarretar a automtica renncia ao crdito excedente. Tendo a demandante optado por pleitear seu direito perante o Juizado Especial Federal, carece de interesse de agir para ajuizar ao pleiteando diferena entre o que foi estabelecido na sen-

Consideraes em Torno de Algumas Questes Polmicas


no mbito dos Juizados Especiais

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Ora, sendo o jurisdicionado titular de um direito cujo valor ultrapasse a


quantia de 60 (sessenta) salrios mnimos, oportuniza-se o manejo de um
procedimento abreviado, com algumas vantagens processuais, como a inexistncia de reexame necessrio, de prazos diferenciados, de precatrio etc.
Porm, para alcanar as referidas vantagens processuais, haver uma implicao legal, qual seja, a renncia ao crdito excedente. Por outro lado, para
o mesmo fato, oportuniza-se ao litigante a possibilidade de buscar na ntegra
o valor a que tem direito, sem, contudo, auferir as vantagens processuais
proporcionadas pela opo do rito dos juizados especiais federais. A escolha
cabe ao demandante, de modo que, contabilizando os prs e os contras de
um ou outro sistema, a seleo pelo juizado especial federal acarretar conseqncia jurdica relevante, materializada, como visto, na renncia ao crdito excedente, independentemente de qualquer consulta prvia se deseja ou
no abrir mo do referido valor, eis que corolrio da opo.
Saliente-se que a renncia atinge o prprio direito substancial do demandante, de modo que no lhe lcito, em momento posterior, pretender buscar
a parte residual, sob pena de inocuidade do 3 do art. 3 da Lei n 9.099/1995.
Conclui-se, destarte, que, no havendo disposio legal na Lei n
10.259/2001 contrria aplicao do artigo 3, 3, da Lei n 9.099/95, esta
legislao no deve ser afastada. Nesse sentido, ao aplicar-se a Lei n
9.099/95, outra no deve ser a interpretao seno a de que a renncia constitui efeito legal da opo do jurisdicionado em ajuizar determinada demanda nos Juizados Especiais, ensejando renncia automtica de eventual valor
que exceda alada dos mencionados rgos jurisdicionais.

6. Os conflitos de competncia entre juizado especial e juzo


comum
Em termos de conflito de competncia com o envolvimento de Juizado
Especial Cvel, diversas situaes podem ocorrer: a) conflito entre um juiz

tena e o que lhe seria efetivamente devido, pois a opo pelo ajuizamento da demanda perante o Juizado Especial implica em renncia ao crdito excedente (TRF/2 Regio, Apelao Cvel n
2005.51.01.015351-9, Sexta Turma Especializada, Rel. Des. Fed. FERNANDO MARQUES, julg:
20/09/2006, DJU 06/10/2006, pginas 355/359).

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Aluisio Gonalves de Castro Mendes e Joo Bosco Won Held Gonalves de Freitas Filho

de Juizado Especial (Estadual ou Federal) e um magistrado de outro ramo


da Justia (Juiz do Trabalho, Eleitoral, Militar, Federal ou Estadual, nestas
duas ltimas hipteses desde que o outro seja do outro ramo, ou seja,
Estadual com Federal); b) conflito entre um juiz de Vara Estadual ou
Federal comum de competncia ampla ou especializada e um juiz de
Juizado Especial Estadual ou Federal, sendo ambos da Justia Estadual ou
Federal, mas de estados ou regies diversos; c) conflito entre juzes de
Juizados Especiais de estados ou regies diversos; d) conflito entre um juiz
comum de competncia ampla ou especializada e um juiz de Juizado
Especial, sendo ambos do mesmo estado ou regio; e) conflito entre juzes
de Juizados Especiais do mesmo estado ou regio, mas ligados a Turmas
diversas; f) conflito entre juzes de Juizados Especiais do mesmo estado ou
regio e vinculados (s) mesma(s) Turma; g) conflito entre uma Turma
Recursal e um juiz que no lhe seja vinculado; h) conflito entre Turma
Recursais; i) conflito entre Turma Recursal Estadual ou Federal e, respectivamente, um TJ ou TRF; j) conflito entre uma Turma Recursal ou Juizado
Especial de 1 grau e um Tribunal Superior diverso do STJ.
Nas trs primeiras hipteses (a, b e c), ocorrer um conflito de competncia envolvendo rgos judiciais que no se encontram vinculados ao
mesmo Tribunal, seja porque se situam em ramos diversos (situao a), ou
porque pertencem a estados ou regies diferentes (casos b e c). Portanto,
pode-se afirmar que os conflitos devero ser julgados pelo Superior
Tribunal de Justia,14 com fulcro no art. 105, I, d, da Constituio da
Repblica. Na conjuntura j (conflito entre uma Turma Recursal ou Juizado
Especial de 1 grau e um Tribunal Superior diverso do STJ), por envolver
Tribunal Superior,15 o conflito ser resolvido pelo Supremo Tribunal
Federal, com supedneo no art. 102, I, o, da Magna Carta.

14

15

120

Como decidido pelo Supremo Tribunal Federal: Conflito de competncia Justia Federal Militar de
primeira instncia e Justia Federal de primeira instncia Afastamento. Na dico da ilustrada maioria, entendimento em relao ao qual divergi, na companhia do Ministro Ilmar Galvo, estando ausente, na ocasio, justificadamente, o Ministro Celso de Mello, compete ao Superior Tribunal de Justia, e
no ao Supremo Tribunal Federal, dirimir o conflito, enquanto no envolvido o Superior Tribunal
Militar (CC 7.087, Rel. Min. Marco Aurlio, DJ 31/08/01).
Nesse sentido, o entendimento reiterado do Supremo Tribunal Federal: Conflito de competncia
Tribunal Superior do Trabalho e juiz federal de primeira instncia Competncia originria do STF
para dirimir o conflito Reclamao de servidor pblico federal deduzida contra a Unio Litgio tra-

Consideraes em Torno de Algumas Questes Polmicas


no mbito dos Juizados Especiais

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Na ocorrncia d (conflito entre um juiz comum de competncia ampla


ou especializada e um juiz de Juizado Especial, sendo ambos do mesmo
ramo e do mesmo estado ou regio), os juzes, na linha recursal, no esto
vinculados ao mesmo rgo judicial, na medida que os Juzes Estaduais e
Federais esto submetidos exceto quando se trata de recurso ordinrio
constitucional e de embargos infringentes do art. 34 da Lei n 6.830/80 - ao
respectivo Tribunal de Justia ou Tribunal Regional Federal, enquanto os
Juizados Especiais Estaduais ou Federais Turma Recursal local. Mas, em
sentido amplo, os rgos judiciais e os respectivos Juzes, do mesmo estado
ou regio, encontram-se vinculados a um determinado Tribunal de Justia
ou Tribunal Regional Federal, razo pela qual vinha se entendendo que os
conflitos envolvendo juzes estaduais ou federais do mesmo estado ou regio, ainda que, em um dos plos, situados em Juizados Especiais Federais,
devem ser apreciados pelo correspondente TJ ou TRF, este ltimo com
supedneo no art. 108, I, e, da Carta Constitucional. O Superior Tribunal
de Justia editou,16 contudo, o enunciado n 348 da sua smula: Compete
ao Superior Tribunal de Justia decidir os conflitos de competncia entre
juizado especial federal e juzo federal, ainda que da mesma seo judici-

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balhista Existncia de contrato de trabalho celebrado em perodo anterior ao da vigncia do regime


jurdico nico reconhecimento da competncia da Justia do Trabalho (CC 7.027, Rel. Min. Celso de
Mello, DJ 01/09/95); Conflito de Competncia. Execuo trabalhista e superveniente declarao de
falncia da empresa executada. Competncia deste Supremo Tribunal para julgar o conflito, luz da
interpretao firmada do disposto no art. 102, I, o, da CF. Com a manifestao expressa do TST pela
competncia do Juzo suscitado, restou caracterizada a existncia de conflito entre uma Corte Superior
e um Juzo de primeira instncia, quela no vinculado, sendo deste Supremo Tribunal a competncia
para julg-lo (CC 7.116, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 23/08/02); e Conflito negativo de competncia
entre Juiz Federal e o Tribunal Superior do Trabalho. Reclamao trabalhista. Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatstica - IBGE. Alegado vnculo sob o molde de contrato de trabalho. Entendimento
desta Corte, no sentido de que, em tese, se o empregado pblico ingressa com ao trabalhista, alegando estar vinculado ao regime da CLT, compete Justia do Trabalho a deciso da causa (CC 7.053, Rel.
Min. Celso de Mello, DJ de 07/06/02; CC 7.118, Rel. Min. Maurcio Corra, DJ de 04/10/02). Conflito
de competncia julgado procedente, ordenando-se a remessa dos autos ao TST (CC 7.134, Rel. Min.
Gilmar Mendes, DJ 15/08/03).
O prprio STJ j havia decidido em outra direo: PROCESSUAL PENAL. CONFLITO NEGATIVO
DE COMPETNCIA. CRIMES PRATICADOS POR PARTICULAR CONTRA A ADMINISTRAO
PBLICA EM GERAL. JUIZ DE DIREITO E JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. JUZES SUBORDINADOS AO TRIBUNAL ESTADUAL. INCOMPETNCIA DESTA CORTE. Incompetncia do Superior
Tribunal de Justia para processar e julgar conflito negativo de competncia entre Juzo de Direito e
Juizado Especial Cvel e Criminal (CF, artigo 105, inciso I, alnea d). Competncia do e. Tribunal de
Justia do Estado do Amazonas. Conflito no conhecido (CC 30137/AM, Rel. Ministro FELIX FISCHER, TERCEIRA SEO, julgado em 13/12/2001, DJ 18/02/2002, p. 231).

121

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Aluisio Gonalves de Castro Mendes e Joo Bosco Won Held Gonalves de Freitas Filho

ria. A situao guarda paralelo com o conflito envolvendo um Juizado


Especial e um Juiz de Direito, ambos pertencentes aos quadros da justia de
determinado Estado, tendo o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal
decidido, na espcie, pela competncia do respectivo Tribunal de Justia,
repelindo, na oportunidade a competncia tanto do prprio Supremo
Tribunal Federal como do Superior Tribunal de Justia para a resoluo de
tais conflitos.17 de se salientar que as hipteses de competncia do Superior Tribunal de Justia encontram previso na Carta Magna, sendo, portanto, sob o aspecto formal, ou seja, de quem possui competncia para decidir a respeito (ou de quem possui competncia para decidir sobre o rgo
competente para apreciar os conflitos de competncia em questo), matria
afeta ao conhecimento e deciso do Supremo Tribunal Federal. O argumento auctoritatem indica de modo irrefutvel que a posio da Corte
Constitucional deve prevalecer. Entretanto, sob o prisma da discusso jurdica, os argumentos expostos tanto pelo Superior Tribunal de Justia
(ausncia de subordinao jurisdicional) quanto pelo Supremo Tribunal
Federal (considerando a ausncia de previso constitucional para a hiptese) so plausveis. Mas, sob o ponto de vista prtico, a fixao da competncia local, de respectivo Tribunal de Justia ou Tribunal Regional Federal,18
parece ser mais lgica e razovel sob alguns aspectos:
a) a concentrao no STJ de conflitos de competncia envolvendo juizados especiais de todos os estados representaria
um acmulo desnecessrio de servio para uma corte que

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CONFLITO NEGATIVO DE COMPETNCIA SUSCITADO PELO JUZO DE DIREITO E PELO JUIZADO ESPECIAL CVEL E CRIMINAL DE TRINDADE (GO), EM FACE DA INTERPRETAO DO
PARGRAFO NICO O ARTIGO 66 DA LEI N 9.099/95. 1. Incompetncia do Supremo Tribunal
Federal e do Superior Tribunal de Justia para processar e julgar conflito negativo de competncia entre
Juzo de Direito e Juizado Especial Cvel e Criminal (CF, artigos 102, I, o, e 105, I, d). 2. O artigo 125,
1, da Constituio Federal dispe que a competncia dos tribunais estaduais ser definida na
Constituio do Estado. Por sua vez, o artigo 46, VIII, m, da Constituio goiana estabelece que compete privativamente ao Tribunal de Justia processar e julgar, originariamente, os conflitos de competncia entre juzes. 3. Competncia do Tribunal de Justia do Estado de Gois. 4. Conflito negativo de
competncia no conhecido, CC 7.096/GO, rel. Min. Maurcio Corra, j. 01.06.00, RTJ 175/548.
Athos Gusmo Carneiro tambm entende que o referido conflito de competncia deva ser apreciado
pelo Tribunal Regional Federal (CARNEIRO, Athos Gusmo. Jurisdio e competncia. 14 ed. So
Paulo: Saraiva, 2005, p. 271).

Consideraes em Torno de Algumas Questes Polmicas


no mbito dos Juizados Especiais

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possui como finalidade precpua a uniformizao do direito


infraconstitucional;
b) com a centralizao no STJ, pode-se prever uma demora
irrazovel para a soluo dos respectivos conflitos e o prosseguimento dos julgamentos; por certo, se forem decididos
de modo desconcentrado, nos Tribunais de Justia ou
Tribunais Regionais Federais, haver maior celeridade e
menor tempo de interrupo na marcha dos processos;
c) os conflitos seriam decididos pelo STJ com maior distanciamento da realidade do lugar, quando boa parte dos conflitos
de competncia envolve problemas relacionados com a prpria organizao judiciria local ou regional, com peculiaridades que no fazem parte do objeto central da corte nacional e que podem ser do pleno conhecimento dos tribunais
locais e regionais.
No evento e (conflito entre juzes de Juizados Especiais da mesma
regio, mas submetidos a Turmas diversas), aplica-se o mesmo raciocnio
esposado no pargrafo anterior, com a competncia para estabelecida pelas
normas de organizao estadual ou para o Tribunal Regional Federal, este
ltimo nos termos do art. 108, I, e, da Constituio,19 no sendo o caso de se
submeter o conflito Turma Nacional de Uniformizao, diante da sua competncia limitada nos termos do art. 14 da Lei n 10.259/01, no lhe cabendo, segundo o seu texto, sequer a resoluo de divergncias processuais.
Na situao f (conflito entre juzes de Juizados Especiais da mesma
regio e ligados a uma mesma Turma), no h razo para se deixar de interpretar sistemtica e teleologicamente o quadro. A competncia deve ser da
prpria Turma Recursal a qual esto ligados os Juizados Especiais em conflito. Se houver a vinculao a mais de uma Turma, o problema se resolver com a distribuio.

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Como decidido pelo STJ: Nos casos de conflito de competncia entre juzes federais vinculados ao
mesmo Tribunal Regional Federal, cabe a este processual e julgar o feito, como determina o art. 108, I,
e, da Constituio Federal de 1988, 1 Seo, rel. Min. Eliana Calmon, j. 23.11.05, DJ 12.12.05, p. 253.

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Aluisio Gonalves de Castro Mendes e Joo Bosco Won Held Gonalves de Freitas Filho

Na hiptese g (conflito entre uma Turma Recursal e um juiz que no


lhe seja vinculado), poder-se-ia, se ambos estivessem situados no mesmo
estado ou regio, considerar sedutora a aplicao do mesmo raciocnio
esposado no caso e, para defender a competncia do respectivo TJ ou TRF.
Mas, esse no tem sido o entendimento do Supremo Tribunal Federal, com
base exatamente em entendimento que procura acentuar, na espcie, a
peculiaridade de que se est diante de um rgo revisor a Turma Recursal,
que seria, a rigor, tambm um rgo de segunda instncia, no podendo
submet-lo ao crivo de outro juzo revisor. O pensamento advm de situao anloga a que se encontravam os Tribunais de Alada, sendo, no passado, marcante a divergncia sobre a questo entre o Supremo Tribunal
Federal20 e o Superior Tribunal de Justia.21 Em relao aos conflitos entre
Turmas Recursais dos Juizados Especiais, federais ou estaduais, com os respectivos juzes de rgos comuns da Justia Federal ou Estadual, o Superior
Tribunal de Justia22 vem conhecendo reiteradamente os incidentes, assumindo, assim, a sua competncia, em conformidade com o entendimento
do Supremo Tribunal Federal. Pelos mesmos motivos, ser o Superior

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21
22

124

Nesse sentido, tem decidido reiteradamente o STF: DIREITO CONSTITUCIONAL, PENAL E PROCESSUAL PENAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPET NCIA, ENTRE A TURMA RECURSAL DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL DA COMARCA DE BELO HORIZONTE E O TRIBUNAL DE ALADA
DO ESTADO DE MINAS GERAIS. COMPET NCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA PARA
DIRIMI-LO (ART. 105, I, d, DA C.F.). E NO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (ART. 102, I,
o). 1. As decises de Turma Recursal de Juizado Especial, composta por Juzes de 1 Grau, no esto
sujeitas jurisdio de Tribunais estaduais (de Alada ou de Justia). 2. Tambm as dos Tribunais de
Alada no se submetem dos Tribunais de Justia. 3. Sendo assim, havendo Conflito de Competncia,
entre Turma Recursal de Juizado Especial e Tribunal de Alada, deve ele ser dirimido pelo Superior
Tribunal de Justia, nos termos do art. 105, I, d, da C.F., segundo o qual a incumbncia lhe cabe, quando envolva tribunal e juzes a ele no vinculados. 4. Conflito no conhecido, com remessa dos autos ao
Superior Tribunal de Justia, para julg-lo, como lhe parecer de direito. 5. Plenrio. Deciso unnime
(CC 7.081/MG, rel. Min. Sydney Sanches, DJ 27.9.02, p. 81). Vide tambm CC 7.106/MG, rel. Min. Ilmar
Galvo, DJ 08.11.02, p. 22 e CC 7.090/PR, rel. Min. Celso de Mello, DJ 05.9.03, p. 31.
Enunciado n 22 da Smula: No h conflito de competncia entre o Tribunal de Justia e Tribunal de
Alada do mesmo Estado-Membro.
Nessa direo: CONFLITO DE COMPET NCIA ENTRE TURMA RECURSAL DO JUIZADO ESPECIAL E TRIBUNAL DE ALADA. MANDADO DE SEGURANA IMPETRADO CONTRA ATO
JUDICIAL DA PRESIDENTE DA TURMA RECURSAL. COMPETNCIA DO STJ PARA DIRIMIR O
CONFLITO. COMPETNCIA DA TURMA RECURSAL PARA EXAMINAR O MANDAMUS IMPETRADO CONTRA SEU PRPRIO ATO JUDICIAL. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL. O egrgio Supremo Tribunal Federal, firmou posicionamento no sentido da competncia do
STJ para o exame dos conflitos que envolvam as Turmas Recursais dos Juizados Especiais, nos termos
do art. 105, I, d, da Constituio Federal. (...), CC 41.190/MG, rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j.
26.10.05, DJ 02.03.06, p. 135.

Consideraes em Torno de Algumas Questes Polmicas


no mbito dos Juizados Especiais

125

Tribunal de Justia competente nas suposies h (conflito entre Turmas


Recursais Federais) e i (conflito entre Turma Recursal Federal e um TRF).

7. A uniformizao de interpretao de lei federal: celeridade


versus segurana jurdica
A Lei n 10.259/2001 trouxe interessante inovao no mbito dos juizados especiais federais ao dispor sobre o pedido de uniformizao de interpretao da lei federal (art. 14). O objetivo fulgente da previso normativa uniformizar a interpretao jurdica, alcanando uma coerncia interna dos
entendimentos jurdicos entre os rgos jurisdicionais que integram o microssistema dos Juizados Especiais Federais, da mesma regio ou no, de modo a
unificar, regional ou nacionalmente, a interpretao do direito federal em
questes de direito material, evitando, assim, que a sorte do litigante possa ser
aleatria e dependa, na espcie, do julgador a que a causa for distribuda.
O ordenamento j conhece, desde algum tempo, mecanismos de uniformizao da interpretao jurdica, como, por exemplo, o incidente de
uniformizao de jurisprudncia previsto nos arts. 476 usque 479 do CPC;
a uniformizao intramuros (ou incidente de remessa de recursos) prescrito no 1 do art. 555 do CPC; o recurso especial fundado em dissdio jurisprudencial radicado no art. 105, III, alnea c, da CRFB; os embargos de
divergncia (art. 546 do CPC).
A premissa bsica da unificao da interpretao jurdica, centralizando-a em um nmero menor de rgos jurisdicionais s vezes num nico
rgo , ao invs de se incentivar a pulverizao de entendimentos, tem o
claro intento de alcanar a segurana jurdica, estabilizando as relaes
sociais; buscar o tratamento igualitrio para sujeitos em situaes jurdicas
idnticas (rectius semelhantes), em ateno ao princpio da isonomia; e, por
fim, concretizar a racionalizao da atividade judicante e o estabelecimento de uma segurana jurdica.
Apesar de tudo isso, o sistema jurdico, ainda hoje, tolera a existncia
de decises contraditrias para casos semelhantes, porquanto arraigado na
tradio jurdica brasileira a cultura da independncia do magistrado, conquanto o ordenamento esteja se cerrando para a idia de harmonizao
125

126

Aluisio Gonalves de Castro Mendes e Joo Bosco Won Held Gonalves de Freitas Filho

jurisprudencial e contemplando, em um nmero cada vez maior, institutos


e instrumentos unificadores, como a smula vinculante (art. 103-A da
CRFB) e a smula impeditiva de recurso (art. 518, 1, do CPC).
Nesse particular, o art. 14 da Lei n 10.259/2001 nada mais do que um
desses mecanismos criados para buscar a uniformizao da interpretao
jurdica. Atravs da aplicao da norma cogitada, ser possvel postular a
uniformizao da interpretao da lei federal, em caso de dissidncia decisria entre as Turmas dos juizados especiais federais em questes de direito
material.23 O pedido de uniformizao de lei federal poder ser julgado
mediante a reunio de turmas da regio, por Turma Nacional de
Uniformizao ou pelo Superior Tribunal de Justia.
Se, por um lado, o instituto potencializa a segurana jurdica, de outro,
ao que tudo indica, pode tornar o procedimento dos juizados especiais federais mais demorado e complexo.
Como est posto, o pedido de uniformizao tem natureza e finalidade semelhantes aos embargos de divergncia previstos no art. 546 do CPC,
cujo objetivo expurgar o dissdio interno no mbito do STJ ou do STF,
enquanto a hiptese do 4 do art. 14 da Lei n 10.259/2001, como se ver,
tem funo anloga ao recurso especial fundado em dissdio jurisprudencial
(art. 105, III, c, da CRFB).
A natureza recursal do pedido de uniformizao transparece, a despeito de algumas normas tratarem o instituto como mero incidente processual.24 Com efeito, seguindo a precisa lio de Barbosa Moreira25 recurso
todo remdio voluntrio idneo a ensejar, dentro do mesmo processo, a
reforma, a invalidao, o esclarecimento ou a integrao de deciso judicial
que se impugna.

23
24

25

126

As questes de direito material referidas pela norma podem ser questes de mrito (objeto litigioso do
processo), preliminares de mrito - como a prescrio -, ou prejudiciais de mrito.
Regimento Interno da Turma Nacional de Uniformizao de Jurisprudncia dos Juizados Especiais
Federais, em vrios dispositivos, intitula o pedido de uniformizao de interpretao da lei federal de
incidente (Cf. arts. 6, caput; 7, VI; 7, VII, b; 7, IX; 7, XI; 8, IX; 8, X; 13; 15 etc.).
MOREIRA, Jos Carlos Barbosa. Comentrios ao cdigo de processo civil. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense,
1993, p. 207.

Consideraes em Torno de Algumas Questes Polmicas


no mbito dos Juizados Especiais

127

O pedido de uniformizao um remdio jurdico voluntrio, eis


que se cuida de um mecanismo processual, requerido por uma das partes,
tendente a corrigir um desvio jurdico, qual seja, ausncia de uniformidade
de interpretao jurdica. O instituto analisado no faz surgir novo processo, sendo certo que o seu trmite se d na mesma relao processual, descaracterizando-o como um meio autnomo de impugnao. Por fim, o pedido de uniformizao tem por finalidade a reforma da deciso recorrida,
com a correta fixao, na espcie, da tese jurdica a ser aplicada.
Disso decorre que a Lei n 10.259/2001 propiciou ao litigante nos juizados especiais federais mais um recurso no (pretendido) limitado arsenal
recursal dos juizados especiais, cujo meio central e bsico deveria ser o
recurso inominado.
O pedido de uniformizao ser interposto aps o esgotamento da via
recursal ordinria, isto , aps o julgamento do recurso inominado pela
Turma Recursal. Desse modo, o pedido de uniformizao cria, ento, mais
um grau de jurisdio.
A Lei n 10.259/2001 no inova simplesmente porque contempla o
pedido de uniformizao em previso inexistente na Lei n 9.099/95, mas,
sim, porquanto, ao que parece, muda a filosofia e estrutura principiolgica dos juizados, num microssistema embasado na celeridade processual.
Com efeito, um dos corolrios dos princpios informativos dos juizados
o desestmulo interposio de recursos, os quais podem constituir um
entrave entrega clere e efetiva da prestao jurisdicional.
Numa rpida passagem por alguns dispositivos da Lei n 9.099/1995,
sem pretender esgotar o tema, percebe-se este intento pelo legislador: a) a
interposio do recurso ser, inexoravelmente, pela representao tcnica
do advogado ( 2 do art. 41 da Lei n 9.099/1995), embora seja possvel que
o demandante postule sem advogado, no primeiro grau de jurisdio, nas
causas at 20 salrios mnimos; b) em regra, o recurso ter apenas efeito
devolutivo (art. 43 da Lei n 9.099/95), fugindo da regra geral do efeito suspensivo do sistema tradicional; c) inexistncia de gratuidade ex vi legis no
segundo grau de jurisdio, sendo certo que a interposio do recurso se
deve fazer acompanhada do pagamento das custas no s do recurso, como
tambm do primeiro grau de jurisdio (pargrafo nico do art. 54 da Lei n
127

128

Aluisio Gonalves de Castro Mendes e Joo Bosco Won Held Gonalves de Freitas Filho

9.099/1995); d) incidncia de honorrios advocatcios e custas apenas em


mbito recursal, salvo, em primeiro grau, em casos de litigncia de m-f
(art. 55, caput, da Lei n 9.099/1995); e, por fim, e) no-cabimento do recurso especial (enunciado n 203 da smula do STJ).
Portanto, percebe-se que o legislador da Lei n 9.099/1995 se preocupou em no incentivar a interposio de recursos. Ora, a experincia
demonstra que a interposio desenfreada de recursos atrasa a prestao
jurisdicional, denotando mcula ao princpio da celeridade.
Deve-se ressaltar que a idia de se restringir a interposio de recursos
no exclusiva apenas nos juizados especiais cveis, sendo certo que, j h
algum tempo, apresenta-se como tendncia do direito processual, de uma
maneira geral. Na seara do processo civil, atravs de uma rpida anlise das
recentes alteraes no CPC, percebe-se que o legislador reformista almeja:
a) limitar o campo de incidncia de determinados recursos (como ocorreu
nos embargos infringentes, que teve limitado o seu cabimento); b) tornar
irrecorrveis determinados atos decisrios (recentemente tal premissa
alcanou o agravo, nos termos do pargrafo nico do art. 527 do CPC); c)
criar requisitos que limitem o conhecimento de recursos (como no caso a
repercusso geral da questo constitucional). A perspectiva limitadora se
faz presente tambm no processo penal, com o fim do protesto por novo
jri, extinto por fora da Lei n 11.689/2001.
No obstante, se o art. 14 da Lei n 10.259/2001, por um lado, ao criar
mais um recurso no procedimento simples e clere dos juizados, anda na
contramo do movimento de enxugamento das vias recursais, por outro
busca a uniformizao do direito infraconstitucional, com o fortalecimento
do princpio da isonomia e da segurana jurdica, com possvel reflexo futuro na eventual diminuio do nmero de processos e de recursos, diante da
formao de uma verdadeira jurisprudncia.
Por outro lado, o 4 do art. 14 da Lei n 10.259/2001 traz disposio
de duvidosa constitucionalidade. O referido dispositivo permite que o STJ
seja instado a se manifestar nas hipteses em que a orientao da Turma
Nacional de Uniformizao contrariar enunciado de sua smula ou mesmo
a sua interpretao dominante, para que o rgo de superposio possa diri128

Consideraes em Torno de Algumas Questes Polmicas


no mbito dos Juizados Especiais

129

mir a controvrsia. Em verdade, cuida-se de um recurso especial travestido


de pedido de uniformizao.
Como se sabe, o STJ, como rgo unificador da interpretao do direito federal infraconstitucional, no tem competncia para apreciar recurso
especial que no seja oriundo de Tribunal (Regional Federal ou de Justia),
nos termos do art. 105, III, da CRFB. A Turma Nacional de Uniformizao
no tem natureza jurdica de Tribunal, sendo imprescindvel a edio de
emenda constitucional objetivando o acrscimo de competncia do STJ
sobre o assunto.
O pedido de uniformizao da interpretao de lei federal pe em evidncia dois princpios fundamentais para os juizados especiais, quais sejam,
o da celeridade e o da segurana jurdica. Com vistas a adequar os dois postulados, qui, a busca de uma terceira via seria a soluo, consubstanciada
na criao de um requisito de admissibilidade com vistas a realizar uma
natural filtragem recursal.
Com efeito, semelhana do que ocorreu recentemente com o recurso extraordinrio em relao repercusso geral, talvez seja interessante
cogitar a criao de instituto similar, mutatis mutandis, no pedido de uniformizao de interpretao da lei federal. Com isso, o recurso somente
seria conhecido se houvesse relevncia e transcendncia na matria.
Nesse domnio, se poderia at mesmo cogitar da criao do pedido de
uniformizao em mbito estadual. Mas, para tanto, imprescindvel a realizao de estudos para a verificao da existncia ou no de largo dissenso
jurisprudencial entre os juizados especiais estaduais, bem como analisar, a
partir de dados concretos, se o pedido de uniformizao em mbito federal
tem causado demora na prestao jurisdicional e de que monta. Com o
levantamento de elementos concretos, poder-se-, por certo, melhor se analisar e compatibilizar os postulados da celeridade e da segurana jurdica.

8. Referncias bibliogrficas
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ibero-brasileira. Boletim cientfico da Escola Superior do Ministrio
Pblico da Unio, Braslia, v. 4, n 16, p. 263-277, jul./set., 2005.
129

130

Aluisio Gonalves de Castro Mendes e Joo Bosco Won Held Gonalves de Freitas Filho

CMARA, Alexandre Freitas. Juizados especiais cveis estaduais e federais:


uma abordagem crtica. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
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MOREIRA, Jos Carlos Barbosa. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil.
Volume V. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
PEREIRA, Guilherme Bollorini Pereira. Juizados especiais federais cveis:
questes de processo e de procedimento no contexto do acesso
Justia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
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bibli/docBibli/ideias/AborHistRicaJurDica.pdf> Acesso em 06 de
maro de 2009.
130

Consideraes em Torno de Algumas Questes Polmicas


no mbito dos Juizados Especiais

131

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So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
WATANABE, Kazuo. Acesso justia e sociedade moderna. In:
Participao e processo. GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO,
Candido Rangel; WATANABE, Kazuo (Coord.). So Paulo: Revista dos
Tribunais, 1988.

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A Demanda no Sistema dos
Juizados Especiais Cveis:
o Pedido e a Causa de Pedir
Mario Cunha Olinto Filho

SUMRIO: 1. Princpios e premissas para a anlise do pedido (e da causa de pedir). 2. O


pedido e a inicial no sistema dos juizados especiais cveis. 2.1. Os pedidos genricos, alternativos e cumulados. 2.2. Pedidos de natureza diversa. 2.3. Pedidos incompletos em relao
de trato sucessivo. 2.4. O pedido contraposto. 3. A causa de pedir: teorias aplicveis. 3.1. A
causa de pedir no sistema dos juizados. 3.2. A exposio de forma sucinta. 4. A alterao
do pedido e da causa de pedir. 5. Concluses. 6. Referncias bibliogrficas.

1. Princpios e premissas para a anlise do pedido


(e da causa de pedir)
Tem-se por princpios, no dizer de MIGUEL REALE,1 os reducionismos de juzos a um menor que seja por si evidente. So os pressupostos lgicos de um sistema, que servem de apoio lgico ao edifcio cientfico,
sendo ponto de referncia e de unidade de um sistema.
A questo que se pe de incio diz respeito importncia fundamental
em se conciliar princpios aplicveis matria processual dos Juizados
Especiais Cveis que, a princpio, podem parecer conflitantes, ante a enorme repercusso que tero em relao aos elementos da ao. Realmente, o
rechao aos princpios gerais do processo civil que comumente se v no
tratamento jurisprudencial com a ultra valorizao dos orientadores dos
Juizados, sob o argumento da especialidade, pode conduzir ao tolhimento
da ampla defesa e do contraditrio, afrontando-se um direito fundamental

Filosofia do Direito, 20 ed., So Paulo: Saraiva, 2002, p. 59/60.

133

134

Mario Cunha Olinto Filho

(artigo 5, LX, da CF). Por outro lado, se insistir no rigor da lei processual
genrica atingiria de imediato outros princpios to importantes como os
acima citados e que tm igual resguardo constitucional.
Acolher-se um ou outro princpio sem a viso sistemtica implica em
evidente atentado ao bom senso e legalidade. Muito propcia a lio de
CARLOS MAXIMILIANO,2 pela qual os princpios devem ser harmonizados pois fazem parte de um todo, o Direito em si. Conclui:
Possui todo corpo rgos diversos; porm a autonomia das funes no
importa em separao; operam-se, coordenados, os movimentos, e difcil,
por isso mesmo, compreender bem um elemento sem conhecer os outros,
sem os comparar, verificar a recproca interdependncia, por mais que
primeira vista parea imperceptvel. O processo sistemtico encontra fundamento na lei da solidariedade entre os fenmenos coexistentes. No se
encontra um princpio isolado, em cincia alguma; acha-se cada um em
conexo ntima com outros. O Direito objetivo no um conglomerado
catico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema,
conjunto harmnico de normas coordenadas, em interdependncia metdica, embora fixada cada uma em seu lugar prprio. De princpios jurdicos
mais ou menos gerais deduzem corolrios; uns e outros se condicionam e
restringem reciprocamente, embora se desenvolvam de modo que constituem elementos autnomos operando em campos diversos.
A primeira premissa , portanto, a coexistncia de princpios processuais gerais com os especficos da Lei n 9.099/95.
Como segunda idia, inegvel que os princpios orientadores da Lei
9.099/95, devidamente acolhidos pela ordem constitucional vigente,3 indicam claramente que o tratamento processual devido em sede de Juizados
Especiais Cveis h de ser diferenciado do ordinrio.
De fato, ao mencionar em especial a informalidade (a oralidade uma
das decorrncias de tal princpio) e a simplicidade, parece querer afastar o
rigor procedimental que se encontra nos demais ritos. E isso guarda clara
consonncia com o prprio ideal do sistema: atender a uma demanda mui-

2
3

134

Hermenutica e Aplicao do Direito, 16 ed., Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 128.


Artigo 98, I, da CF.

A Demanda no Sistema dos Juizados Especiais Cveis: o Pedido e a Causa de Pedir

135

tas vezes reprimida, em causas menos complexas, com pouco ou nenhum


custo ou nus aos demandantes.
Em suma, se tivssemos que apontar o objetivo mais nobre dos
Juizados Especiais Cveis, indicaramos a realizao do acesso Justia, consagrado no artigo 5, XXXV, da Constituio Federal. Tal conceito tem hoje
contornos bem abrangentes, de maneira que se traduz fundamentalmente
na possibilidade de se efetivar direitos individuais ou sociais, seja pela existncia de instrumentos legais (normas positivas) que garantam o seu reconhecimento e imposio, seja pela existncia de rgos estatais aptos a receber eventuais demandas de quem quer que seja.
CAPPELLETTI4 chamou a ateno para as trs fases do movimento de
acesso ou ingresso Justia. Em um primeiro momento, se traduzia com a
existncia da assistncia judiciria como meio de superar as dificuldades de
ingresso em juzo, decorrentes da desinformao ou pobreza, que aqui no
to somente a econmica, mas tambm a tcnica, cultural, social e jurdica.5
Em seguida, ressaltou a importncia de proteo aos interesses ditos
difusos, alertando quanto necessidade no s de se aprovar normas processuais pertinentes ao tema, mas que a mentalidade do jurista deveria
acompanhar tal mudana. Por fim, o mestre italiano lembrou acerca do
risco da burocratizao do Poder Judicirio. A ampla via de acesso seria realizvel com a adoo de procedimentos mais cleres, informais, econmicos
para certos tipos de demandas, o que se traduz tambm na instrumentalidade processual,6 pela qual o Estado serve de meio para a realizao das necessidades dos indivduos e no o contrrio.

4
5
6

Acesso Justia, traduo de Ellen Gracie Northfleet., Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 31/73.
A hipossuficincia que d ensejo inverso de nus de prova em relaes de consumo, de acordo com
o artigo 6, VIII, da Lei 8.078/90 diz respeito a todos estes aspectos, em especial ao tcnico.
CNDIDO DINAMARCO, Fundamentos do Processo Civil Moderno, 5 ed., So Paulo: Malheiros, vol,
I, p. 73 salienta que a instrumentalidade do direito processual ao substancial e do processo ordem
social constitui uma diretriz a ser permanentemente lembrada pelo processualista e pelo profissional,
para que no seja subvertida a ordem das coisas, nem feitas injustias em nome do injustificvel culto
forma. A invocao desse fundamental princpio constitui seguro expediente metodolgico, apto a
conferir certeza aos resultados encontrados. Ainda o mestre, no livro A Instrumentalidade do
Processo, 11 ed., So Paulo: Editora Malheiros, p. 326/327, acrescenta: O lado negativo do princpio
da instrumentalidade corresponde ao refluxo da escalada processualista que sucedeu s grandes descobertas dos processualistas na segunda metade do sculo passado, escalada que no Brasil chegou a um
nvel de quase euforia com a vigncia do Cdigo de Processo Civil. Trata-se, assim, da instrumentalidade realada e invocada como fator de conteno de exageros e distores. A excessiva preocupao

135

136

Mario Cunha Olinto Filho

CNDIDO DINAMARCO7 lembrou que isso no se confunde com a


rejeio do processo ou do abandono total das formas. Ao contrrio, afirmando a necessidade dos mesmos, prope uma viso sistemtica:
No se trata de desprocessualizar a ordem jurdica. imenso o valor
do processo e nas formas dos procedimentos legais esto depositados sculos de experincia que seria ingnuo querer desprezar. O que precisa desmistificar regras, critrios, princpios e o prprio sistema. Sob esse aspecto,
merece ser lembrada a Lei de Pequenas Causas (substituda, hoje, pela Lei
dos Juizados Especiais, com a mesma orientao) que, fiel principiologia
sedimentada atravs da disciplina e prtica do processo tradicional, para o
seu novo processo deu nova interpretao instrumentalista a cada um dos
princpios: teve empenho em no mant-los estratificados em suas formulaes superadas pela exigncia do tempo, mas tambm a conscincia da sua
indispensabilidade sistemtica, que desaconselhava o seu imprudente banimento. Isso significa operacionalizar o processo, sem antep-lo justia.
Orientao deliberadamente instrumentalista.
Mais: o acesso no s Justia, mas a uma ordem jurdica justa.8
Ao lado dessas importantes idias h, contudo, uma outra e aqui terceira premissa que jamais pode ser esquecida, e serve como delimitadora:
a informalidade no pode em nenhuma hiptese tolher a parte de se manifestar ou defender da forma mais ampla ou retirar-lhe a possibilidade de ter
acesso a todos as informaes constantes no processo. dizer: se a formalidade no se justifica em si mesma ante a prpria instrumentalidade processual motivos h para que seja exigida quando o direito da parte em se

7
8

136

com os temas processuais constitui condio favorvel a essas posturas inadequadas, com o esquecimento da condio instrumental do processo. Favorece, inclusive, o formalismo no modo de empregar a tcnica processual, o que tem tambm o significado de menosprezar a advertncia de que as formas so
apenas meios preordenados aos objetivos especficos em cada momento processual.
A instrumentalidade do Processo, p. 328/329.
SILVANA CAMPOS DE MORAES, Juizado de Pequenas Causas, So Paulo: Revista dos Tribunais,
1991, p. 31, ao analisar as preposies de Cappelletti, concluiu: Estudando esse tema, Cappelletti menciona a necessidade de efetivo ingresso s vias judiciais, considerando-o como um dos mais importantes direitos, na medida em que dele dependem todos os demais. Acrescenta ainda, o autor, que de
suprema importncia para os novos direitos individuais e sociais, sendo inexpressiva a declarao dos
direitos quando desacompanhada de mecanismos concretos para sua efetiva tutela. Isso porque de nada
adiantaria o reconhecimento dos direitos, tanto individuais como sociais, se no existirem meios para
sua proteo e reinvindicao.

A Demanda no Sistema dos Juizados Especiais Cveis: o Pedido e a Causa de Pedir

137

defender ou se manifestar esteja ameaada. A exposio dessas trs idias


necessria para a exposio e anlise das hipteses que se passa a tratar.

2. O pedido e a inicial no sistema dos juizados especiais cveis


O pedido corresponde sinteticamente pretenso de vida que o autor
espera ver satisfeita e que, a princpio (na narrativa daquele) resistida pelo
ru, dando origem lide dentro do conceito de CARNELUTTI.9
tambm a providncia que requer ao Estado-Juiz para que este
subordine a vontade do ru a sua imperatividade.
Distingue-se a o pedido como tendo um objeto mediato e um objeto
imediato, guardando respectiva correlao com o acima exposto. No dizer
de JOS CARLOS BARBOSA MOREIRA,10 o objeto mediato o bem que
o autor pretende conseguir por meio da providncia jurisdicional (v.g.,
determinada importncia em dinheiro, a remoo de um muro), sendo que
o imediato se refere providncia em si (v.g., a condenao do ru a pagar,
a declarao da existncia ou inexistncia de uma relao jurdica), que ser
sempre nico e determinado.
No sistema nacional, o pedido tem contornos de extrema relevncia,
recebendo tratamento extremamente rgido. De fato, servindo como elemento de identificao da ao, o Cdigo de Processo Civil adota como regra
a imutabilidade do mesmo11 e a interpretao restritiva, conforme estipula
no seu artigo 293,12 abrindo raras excees, como a que de se considerar
includas no pedido as prestaes peridicas decorrentes de obrigao.13
9

10
11

12

13

Para LIEBMAN, in: Estudo Sobre o Processo Civil Brasileiro, p. 103, a lide o conflito efetivo ou virtual de pedidos contraditrios, sobre o qual o juiz convidado a decidir. Julgar a lide e julgar o mrito
seriam expresses sinnimas que se referem deciso do pedido do autor para julg-lo procedente ou
improcedente e, por conseguinte, conceder ou negar a providncia requerida.
O Novo Processo Civil Brasileiro, p. 12.
O CPC indica, a contrario sensu, que as modificaes e aditamentos s podero ocorrer em determinadas hipteses: as modificaes podem ser feitas antes da citao sem restries e aps tal ato apenas com
o consentimento do ru (artigo 264), no sendo possvel qualquer alterao aps o saneamento do processo (pargrafo nico); j o aditamento s pode ocorrer antes da citao (artigo 294).
Os pedidos so interpretados restritivamente, compreendendo-se, entretanto, no principal os juros
legais. Alm disso, o juiz no poder se pronunciar sobre questes no suscitadas, a cujo respeito a lei
exige a iniciativa da parte, devendo decidir a lide nos limites em que foi proposta, no estando autorizado a proferir sentena de natureza diversa da pedida, bem como condenar o ru em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado. (artigos 128, 459 e 460 do CPC).
Artigo 290 do CPC.

137

138

Mario Cunha Olinto Filho

Igual tratamento recebeu a elaborao da petio inicial. Atravs da


mesma, o autor instrumentaliza a demanda, dirigindo-a a um rgo jurisdicional, identificando os seus elementos (partes, causa de pedir e pedido),
com a cincia das provas com as quais pretende demonstrar o que narra (e o
seu suposto direito), alm de precisar o valor de sua causa (artigo 282, do
CPC14). Com a sua apresentao por escrito, despachada ou distribuda
(artigo 263 do CPC), a ao se considera proposta.
Grande preocupao teve o estatuto processual em garantir a estabilidade da demanda, de maneira a que no fosse corrompida pela mutabilidade excessiva de seus elementos e permitisse inovaes que comprometessem a marcha processual e o prprio princpio da eventualidade. Mais: um
sistema por demais permissivo poderia dar causa a prejuzos para a defesa
do ru seja argumentativa ou probatria com a insero de novas partes, fatos ou pedidos aps a sua manifestao, de maneira a gerar desequilbrio entre os demandantes.
Se isso apresenta um grau de vantagem, por outro lado cria uma barreira muitas vezes intransponvel para que as partes alcancem dentro da
demanda proposta a superao da chamada lide integral caneluttiana ou,
mais comumente, corrijam-se erros que, sem a devida observao, no
garantiro parte o efetivo bem de vida que realmente pretendia.
No sistema dos Juizados Especiais Cveis, vigorando os princpios da
informalidade, oralidade e simplicidade15 entre outros seria paradoxal
que a Lei especial (9.099/95), admitindo a formulao de pedido oral pelo
prprio reclamante, sem assistncia profissional16 Secretaria do rgo
jurisdicional mantivesse a rigidez do artigo 282 e seguintes do Cdigo de
Processo Civil.
Ao tratar do assunto, a lei especial abrandou os seus termos, exigindo no seu artigo 14, 1, apenas o nome, qualificao e o endereo

14

15
16

138

Artigo 282, do CPC: A petio inicial indicar: I o juiz ou tribunal, a que dirigida; II os nomes,
prenomes, estado civil, profisso, domiclio e residncia do autor e do ru; III o fato e fundamentos
jurdicos do pedido; IV o pedido, com suas especificaes; V o valor da causa; VI as provas com
que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados; VII o requerimento de citao do ru.
Artigo 1 da Lei n 9.099/95, sendo certo que a oralidade tem fundamento constitucional, atravs do
artigo 98, I, da CF.
Nas causas com valor de at 20 salrios mnimos, conforme o artigo 9.

A Demanda no Sistema dos Juizados Especiais Cveis: o Pedido e a Causa de Pedir

139

das partes; os fatos e os fundamentos, de forma sucinta; e o objeto e seu


valor.
A anlise do pedido e da petio inicial aqui feita em conjunto, j que
a prpria Lei n 9.099/95 acaba por confundir os termos, no empregando a
expresso pedido de forma tcnica, mas sim informal. De fato, fala-se em
instaurao do processo (demanda) com a apresentao do pedido, escrito
ou oral, Secretaria do Juizado,17 at porque, podendo o mesmo ser oral,
no haveria propriamente petio inicial (mas sim pretenso), muito embora ela se forme posteriormente aps reduzida a escrito (artigo 14, 3).
JOS ROGRIO CRUZ E TUCCI j alertava para tal fato, ao concluir
que o art. 14 da Lei n 9.099/95, confundindo ostensivamente pedido com
o suporte material em que aquele vem especificado (petio inicial ou termo
lavrado pela secretaria), preceitua que o processo se inicia com a apresentao da pretenso, por escrito ou verbalmente, secretaria do juizado.18
Cremos que tal discusso no relevante, j que, afastada a impreciso
tcnica, no apresenta outros contornos.
De qualquer forma, resta claro at pelo modo de exposio feito pela
lei que no se pode exigir formalidades e requerimentos de tcnica apurada, devendo-se amenizar as conseqncias de eventuais deslizes desde que
no haja comprometimento defesa do reclamado, como se ver frente.
A jurisprudncia tem se firmado no mesmo entendimento, alertando
acerca da especialidade dos Juizados Especiais Cveis e da necessidade de se
abrandar o rigor do sistema processual adotado pelo cdigo de 1973, sob
pela de se inviabilizar a realizao dos seus fins, em especial o amplo acesso Justia.19

17
18
19

Artigo 14, da Lei n 9.099/95.


Contornos da Causa Petendi da Demanda Civil Perante o Juizado Especial, in: Questes Prticas de
Processo Civil, 2 ed., p. 60.
So exemplos os Enunciados 3.1.1, 3.1.2 e 3.2, do ECJTR-RJ, nos seguintes termos, respectivamente: A
petio inicial deve atender, somente, aos requisitos do artigo 14 da lei 9.099/95, ressalvando-se, em
ateno aos princpios do artigo 2 do mesmo diploma, a possibilidade de emenda por termo na prpria
audincia, devendo o Juiz interpretar o pedido da forma mais ampla, respeitado o contraditrio; No
haver nos Juizados Especiais Cveis pronta deciso de extino do processo sem julgamento do mrito
por inpcia da inicial, devendo eventual vcio da petio inicial ser suprido na abertura da audincia de
instruo e julgamento.; Em face dos princpios constitucionais vigentes e dos que constam da Lei n
9.099/95, o Juiz do Juizado Especial poder dar uma real e mais ampla abrangncia ao pedido inicial que
contenha expresses imprecisas, como por exemplo, perdas e danos, indenizao, se a narrao dos fa-

139

140

Mario Cunha Olinto Filho

2.1. Os pedidos genricos, alternativos e cumulados


Apresenta a Lei n 9.099/95 regras especficas em relao aos pedidos
genricos, no seu artigo 14, 2, e para os alternativos e cumulados, objetos do artigo 15.
Pedidos genricos so aqueles que se contrapem aos certos ou determinados quanto ao objeto mediato, que o bem de vida pretendido pelo
autor. Renovamos a lembrana de que o pedido imediato (ou processual)
sempre certo e determinado, posto que a parte deve definir que tipo de providncia almeja em obter do Estado-Juiz: uma condenao, constituio,
declarao, etc. E mesmo na generalidade do pedido mediato, no pode
haver completa indeterminao.20
Para o Cdigo de Processo Civil, a regra que o pedido mediato tambm h de ser certo e determinado (artigo 286), traando trs excees: nas
aes universais, se no puder o autor individualizar na petio dos bens
demandados; quando no for possvel determinar, de modo definitivo, as
conseqncias do ato ou fato ilcito; e quando a determinao do valor da
condenao depender de ato que deva ser praticado pelo ru (incisos I, II e
III). o que ocorre, v.g., se o autor pleiteia indenizao em virtude de dano
sofrido em acidente automobilstico, no tendo como calcular na inicial
todos os custos de tratamento mdico que ter.
A elaborao de pedido genrico impe uma das seguintes conseqncias: sendo possvel no curso do processo de cognio a sua determinao,
o Juiz dever proferir sentena lquida ou certa quanto ao objeto; caso con-

20

140

tos na vestibular assim o permitir. Outros exemplos: No sistema dos JEs no tem lugar para formalismos processuais, bastando, para o prosseguimento do pedido, que o autor, pessoalmente, declare a sua
pretenso. Em decorrncia, a inicial no precisa preencher os requisitos no artigo 282 do CPC (RJE
16/35); Nos JEs, o processo se orienta pelo critrio da simplicidade, que permite que o pedido, deduzido oralmente pela parte, contenha de forma sucinta os fatos e fundamentos, o objeto e seu valor, alm
de dados para identificao e localizao das partes; alm disso, pelo mesmo critrio, possvel o melhor esclarecimento do pedido na audincia (RJE 16/34-35).
Como lembra HUMBERTO THEODORO JNIOR, Curso de Direito Processual Civil, Volume I, 39 ed.,
p. 327, na sua generalidade, o pedido h sempre de ser certo e determinado. No se pode, por exemplo, pedir a condenao a qualquer prestao. O autor ter, assim, de pedir a condenao a entrega de
certas coisas indicadas pelo gnero ou o pagamento de uma indenizao de valor ainda no determinado. A indeterminao ficar restrita quantidade ou qualidade das coisas ou importncias pleiteadas.
Nunca poder, portanto, haver indeterminao do gnero da prestao pretendida.

A Demanda no Sistema dos Juizados Especiais Cveis: o Pedido e a Causa de Pedir

141

trrio, proferir sentena ilquida, deixando que a determinao do objeto


mediato seja apurada em processo de liquidao, nos termos do artigo
475-A/I, do estatuto processual.
Sob o regime da Lei n 9.099/95, possvel a existncia de pedido genrico quando no for possvel determinar, de logo, a extenso da obrigao.
Contudo, o sistema especial impe uma regra de restrio: seja determinado ou genrico o pedido, a sentena nos Juizados Especiais h de ser lquida, conforme consta no artigo 38, pargrafo nico.
Assim, na eventualidade de pedido genrico, o juiz dever observar se
possvel a sua liquidao no curso do processo de conhecimento, j que, no
sendo isto alcanvel, dever extinguir o feito sem conhecimento de seu
mrito, na forma do artigo 51, II. A razo simples: no haveria sentido em
se admitir a fase de liquidao aps a cognio, com notrio atraso temporal,
em um sistema que h de ser clere, simples e informal. Mormente quando
as causas que l se julgam devem ser de pequena complexidade. Uma demanda na qual necessria uma apurao por arbitramento ou por artigos do seu
objeto mediato no parece indicar ser a mesma de baixa complexidade.
A proibio de ser prolatada sentena ilquida se o pedido for certo e
determinado preceituada no artigo 459, pargrafo nico, do Cdigo de
Processo Civil obviamente se aplica com muito mais razo nos Juizados
Especiais.
Haveria aplicabilidade para a hiptese do primeiro inciso do artigo
286, do CPC, no rito da Lei n 9.099/95? No parece existir bice legal para
a sua aplicao em tese, ou seja, que aes universais possam existir em sede
de Juizados, no sendo possvel a individualizao dos bens que supostamente o reclamado estaria obrigado a entregar.
Contudo, h de se convir que o mbito de aplicao reduzido, j que
em sua maioria as aes de tal natureza exigem juzos e ritos especializados,
como o caso da petio de herana, dissoluo de sociedades com a diviso de bens, etc. Alm disso, mais raras sero as hipteses nas quais seria
possvel a liquidao ou individualizao no curso da estreita cognio do
procedimento dos Juizados.
Os pedidos, em sede de juizados, tambm podero ser alternativos ou
cumulados, conforme se observa no artigo 15, da Lei n 9.099/95.
141

142

Mario Cunha Olinto Filho

Por pedidos alternativos entendem-se aqueles feitos de maneira que,


dentre os apresentados, apenas um ser objeto de cumprimento, conforme
a regra do artigo 288, do CPC, posto que qualquer um satisfaria a obrigao.
E a alternatividade recai sobre o objeto mediato do pedido, ou seja, sobre o
bem jurdico que pretende o autor. Quanto a alternatividade for a benefcio do credor, como lembra HUMBERTO THEODORO JNIOR,21 poder
ele escolher de logo uma prestao fixa (no alternativa); contudo, se a
escolha couber ao devedor, o juiz lhe assegurar o direito de cumprir a
prestao de um ou de outro modo, ainda que o autor no tenha formulado
pedido alternativo, nos termos do artigo 288, pargrafo nico, do CPC.
Um clssico exemplo de hiptese de pedido alternativo nos Juizados,
cujo benefcio da alternatividade do autor, so as aes nas quais o consumidor, diante do vcio do produto, pode exigir a troca do bem, o abatimento
proporcional no preo ou a devoluo do que pagou, como consta no artigo
18, do CDC. Se quiser apenas a devoluo, o pedido no ser mais alternativo, tendo o autor-consumidor a faculdade de escolha e delimitao na inicial.
Em relao ao valor dos pedidos no caso de alternatividade, h de
observar ao contrrio da cumulao prpria que os valores de cada um
no devero ser somados para a obteno do valor da causa. Na alternatividade, apenas um dentre os pleitos autorais ser atendido, e no todos.
Assim, o valor da causa em relao aos pedidos alternativos h de corresponder a um deles, se de igual valor; ou ao maior valor dentre os formulados, se de valores diversos.
Igual entendimento deve se ter em relao a hiptese do artigo 289, do
CPC, no qual se vislumbra a alternatividade sucessiva (subsidiria), pela
qual o juiz conhecer do pedido posterior, se no puder acolher o anterior.
Quanto cumulao prpria de pedidos, tambm no h qualquer
impedimento. Seja ela na modalidade simples ou sucessiva (aquela na qual
o juiz, para acolher o posterior, necessita deferir o anterior), o sistema dos
Juizados as acolhe.
Contudo, no que tange ao valor da causa, aplicar-se- aqui a regra do
artigo 259, II, do CPC: o valor ser o equivalente a soma de todos os pedi-

21

142

Curso de Direito Processual Civil, v. 1, p. 328.

A Demanda no Sistema dos Juizados Especiais Cveis: o Pedido e a Causa de Pedir

143

dos, o que tem relevncia ante a limitao imposta pelo artigo 3, da Lei n
9.099/95 (40 salrios-mnimos) e pelo artigo 3, da Lei n 10.259/01 (60 salrios-mnimos).

2.2. Pedidos de natureza diversa


Reza o artigo 460, do CPC, que defeso ao juiz proferir sentena, a favor do autor, de natureza diversa da pedida.... ARRUDA ALVIM22 esclarece que a violao a tal determinao gera a sentena extra petita, por quebra do princpio dispositivo e que a mesma poder consistir num pronunciamento excedente sobre o tipo de ao (pedido imediato) propriamente
dito, como, ainda ser tambm extra petita, se, conquanto atendido o pedido, tal ocorra por outra causa petendi.
Interessa-nos aqui a primeira hiptese.
Prosseguindo-se com o raciocnio pelo qual deva ser admitida uma
interpretao mais elstica do pedido em sede de juizados, entendemos ser
possvel se conceder um provimento de natureza diversa da requerida na
inicial em determinadas e limitadas hipteses.
Se por um lado o princpio da informalidade que rege o sistema dos
Juizados Especiais Cveis no se traduz em uma liberalidade processual descontrolada, na qual tudo seria possvel, por outro est a indicar uma flexibilidade maior para se atingir um provimento adequado ao caso.
No se trata propriamente de reconhecer a lide integral, no conceito
de LIEBMAN,23 ou seja, deferir-se a possibilidade do julgador em conhecer
partes do conflito no deduzidas pelas partes (em especial o autor), em confronto com os princpios dispositivos e da demanda. Quer-se, sim, que o
equvoco em relao ao provimento requerido no se torne na ausncia
de qualquer prejuzo parte contrria impeditivo prestao jurisdicional. Na primeira hiptese, o juiz acolheria algo que a parte autora no deseja, o que inadmissvel; na segunda, algo que objetiva, mas que por um

22
23

Manual de Direito Processual Civil, Vol. 2, 4 ed., p. 377.


Estudos sobre o Processo Civil Brasileiro, p. 96.

143

144

Mario Cunha Olinto Filho

lapso, no foi propriamente apresentado na inicial, apesar de ser plenamente previsvel.


Se as normas que regem os Juizados Especiais permitem, em causas de
valores limitados, que a parte autora sem qualquer assistncia tcnica formule diretamente o seu pedido, inclusive oralmente (artigo 14, 3, da Lei
n 9.099/95), a exigncia de perfeies formais certamente estaria em divrcio com o prprio sistema.
E a admisso das hipteses que aqui so tratadas est finalmente sujeita ao respeito aos princpios do contraditrio e ampla defesa. O ru no
pode sob nenhuma circunstncia se surpreender ou se ver sem possibilidade de ter impugnado o provimento que passa a ser conhecido. Da
mesma forma que o julgador visualiza com facilidade o eventual equvoco
quanto ao provimento, ao ru isso tambm deve ser evidente.
V-se que o prprio Cdigo de Processo Civil, norma das mais rgidas
e restritas em relao ao pedido, abre excees. E se constata claramente
que tais excees so admitidas justamente pela ausncia de ofensa defesa do ru, da mesma forma que aqui se sustenta, seja pela previsibilidade,
seja pela comunho argumentativa da impugnao. o que ocorre, v.g.,
com a aplicao do artigo 290, do CPC,24 que apresenta a possibilidade do
pedido implcito.
Dito isso, passemos as hipteses.
A primeira ocorre vista de mero erro quando a descrio da natureza do pedido, sem que se revele real dvida quanto ao seu contedo. o que
se v quando, v.g., o autor pede que o ru seja condenado a anular um contrato, quando na realidade trata-se de um pedido declaratrio de nulidade
do dito pacto. Mesmo equivocado, no ter o ru qualquer dificuldade em
identificar o objeto da ao ou seja, o que realmente deseja o autor e,
por conseqncia, no se ver prejudicado ou surpreendido no caso de se
conhecer na sentena com a natureza apropriada hiptese.

24

144

Artigo 290, do CPC: Quando a obrigao consistir em prestaes peridicas, considerar-se-o elas
includas no pedido, independentemente de declarao expressa do autor; se o devedor, no curso do
processo, deixar de pag-las ou de consign-las, a sentena as incluir na condenao, enquanto durar
a obrigao.

A Demanda no Sistema dos Juizados Especiais Cveis: o Pedido e a Causa de Pedir

145

A segunda j mais complexa. Dar-se- em virtude da falta de correspondncia entre o que se requer, em relao natureza do pleito (condenatrio, constitutivo ou declaratrio) e o que realmente possvel de acolhimento, vista dos fatos apurados no curso do processo, mas pela singeleza
da sua concluso.
No se trata da hiptese de pedido juridicamente impossvel, j que o
mesmo, em tese, seria passvel de acolhimento pela ordem jurdica. O pedido
trazido na inicial no possui em si qualquer bice ao hipottico acolhimento.
E tambm no a situao a que trata o artigo 295, p.u., II, do CPC,
pela qual a inicial deveria ser indeferida por inpcia se da narrao dos fatos
no decorrer logicamente o pedido. Na descrio feita pelo autor na hiptese que se sustenta, o pedido decorrncia lgica do que narra, seja em
relao ao fato (causa de pedir remota), seja quando ao fundamento jurdico utilizado (causa de pedir prxima).
Ocorre que se verifica com as provas juntadas ou esclarecimento das prprias partes ou dentro da verdade formal do processo que na realidade o
pedido, com a natureza que fora lanado, no seria passvel de acolhimento
(logo improcedente). Mas outro, de caracterstica diversa, seria a decorrncia
natural e esperada diante da dita realidade, sem que o processo tomasse curso
lgico diverso do que seguia para aportar no pedido apontado na inicial.25
Tomemos como exemplo a seguinte situao: O autor, argindo que o
ru lhe faz cobranas indevidas, requer a devoluo dos valores que pagou,
condenando-se o segundo a tanto. H pedido de natureza condenatria,
portanto. Mas isso ocorre por um lapso do autor (ou seu patrono) j que,
apesar de receber tais cobranas, no efetuara qualquer pagamento, o que
resta cabalmente demonstrado ao longo do feito.
Por bvio, tal pedido condenatrio seria improcedente, mesmo com o
reconhecimento da veracidade dos fatos narrados na inicial. Mas a conseqncia natural de se reconhecer que as cobranas eram indevidas na hiptese do

25

No Estado do Rio de Janeiro, editou-se o Enunciado 3.2 (da Consolidao dos Enunciados dos Juzes e
Turmas Recursais) que prestigia tal entendimento: Em face dos princpios constitucionais vigentes e
dos que constam da Lei n 9.099/95, o Juiz do Juizado Especial poder dar uma real e mais ampla abrangncia ao pedido inicial que contenha expresses imprecisas, como por exemplo, perdas e danos, indenizao, se a narrao dos fatos na vestibular assim o permitir.

145

146

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no pagamento seria a declarao de nulidade daquelas.26 To natural como


seria se reconhecer o pedido condenatrio que se descarta se tivesse ocorrido
o pagamento. Para o ru, nenhuma diferena que justificasse uma limitao a
sua defesa se vislumbra: os motivos que utilizou para eventualmente sustentar
que a cobrana era legtima servem para impugnar qualquer dos pedidos.
E o que fundamental para tal possibilidade: a carga de sucumbncia
do ru no ser maior do que seria se o pedido fosse conhecido na sua natureza original. A declarao de nulidade da cobrana no mais gravosa do
que a condenao ao pagamento em repetio de indbito.
Entendemos que tal fator imprescindvel para o que aqui se sustenta.
No poderia o ru arcar ainda que sob o mesmo argumento defensivo
com nus maior, por alterao da natureza do provimento final, do que
arcaria originariamente se o pedido fosse acolhido tal como fora de incio
apresentado. Aqui inegavelmente ter-se-ia o julgamento extra petita, a que
trata o artigo 460, do CPC.
Assim, se no exemplo citado o contrrio ocorresse (o autor, tendo
pago, pelo a declarao de nulidade das cobranas e no a devoluo de
valores), a imposio da condenao seria nula, no apenas pelo argumento supra exposto, mas tambm pelo fato de que o pedido inicial declaratrio no inapropriado, podendo ser acolhido procedente.
Mas isso no quer dizer que toda questo prejudicial ou incidental (no
exemplo, a ilegalidade da cobrana) deva ser erigida a um pedido, resolvida na parte dispositiva da sentena e, por conseqncia, sobre ela se formar
a coisa julgada. No desconhecido o fato que a regra a da no formao
da coisa julgada sobre questes incidentais ou prejudiciais (artigo 469, III,
do CPC) justamente pelo fato de no integrarem o pedido. A exceo a esta
regra (artigo 470, do CPC) s existe por conta da instaurao de ao declaratria incidental, na qual aquelas questes passam a ser o prprio objeto da
demanda secundria. Aqui no se defende a extenso do pedido s questes
prejudiciais ou incidentais (como equivocadamente ocorre na prtica) mas
sim a correta interpretao do prprio pedido mal formulado.

26

146

Importante frisar que a meno acerca da nulidade da cobrana na fundamentao da deciso no seria
eficaz, posto que a mesma no faz por si s coisa julgada, nos termos do artigo 469, I, do CPC.

A Demanda no Sistema dos Juizados Especiais Cveis: o Pedido e a Causa de Pedir

147

Diante das hipteses mencionadas, cremos que presente se faz a harmonia entre as severas normas da lei processual comum e a informalidade
reinante nos Juizados Especiais, de maneira a compatibilizar o afastamento
do excessivo zelo interpretao restritiva do pedido com a necessidade de
prover o ru com o seu direito ampla defesa e contraditrio.

2.3. Pedidos incompletos em relao de trato sucessivo


Muito comuns em sede de Juizados so demandas que discutem relaes continuadas ou de trato sucessivo. So aquelas nas quais alguma das
partes se no ambas discute obrigaes cujo cumprimento se protrai no
tempo, de forma parcelada.
To comum quanto a existncia de destas aes, o pedido incompleto quando a providncia desejada pela parte. Ao formular o autor o seu
pedido, limita-se a pleitear a correo das repercusses ocorridas at ento,
esquecendo-se das que esto por vir. Ou, por impossibilidade de conhecimento prvio, no realiza pedido apto a atacar situao gravosa que s se
verifica no curso da demanda.
A lei processual comum oferece mecanismo simples para a soluo de
tais questes.
Como exceo da rgida interpretao restrita do pedido (artigo 293,
do CPC), o artigo 290 do estatuto processual defere a possibilidade de se
conhecer implicitamente de prestaes peridicas no includas no pleito
inicial. E, deixando o devedor de pag-las ou consign-las no curso do processo, a sentena as incluir na condenao, enquanto durar a obrigao.
A aplicao desta norma se d claramente nas hipteses de pedidos
condenatrios:27 assim, se o autor pedir a condenao do ru a pagar as

27

Leciona JOS JOAQUIM CALMON DE PASSOS, Comentrios ao Cdigo de Processo Civil, volume III,
8 ed., p. 194: A sentena que venha a ser proferida ser sentena condenatria, sem oferecer qualquer
particularidade digna de nota, com relao s prestaes vencidas at a data de sua prolao, e ser sentena de condenao para o futuro, no que diz respeito s prestaes vencveis aps o momento referido. Constitui-se em favor do credor um ttulo executrio de trato sucessivo, isto , sentena condenatria que o habilita a executar o devedor no s quanto s vencidas, no que ela um ttulo executrio
idntico a todas as outras sentenas condenatrias, como, por igual, em relao s que vierem a se vencer, futuramente, se no satisfeitas no tempo e nas condies fixadas.

147

148

Mario Cunha Olinto Filho

prestaes j vencidas at a propositura da ao e outras se vencerem no seu


curso, o julgador poder acolh-las na deciso final. Mais: as que se venceram aps dita deciso podero ser objeto de execuo, no que CALMON DE
PASSOS chamou de condenao para o futuro.28
Mas a aplicao de tal dispositivo poderia alcanar pedidos de natureza no condenatria?
Entendemos que sim.
No h qualquer razo plausvel para se entender o contrrio. O mesmo
raciocnio que justifica a aceitao do pedido implcito condenatrio aplicvel aos pleitos constitutivos ou declaratrios. Ou seja: que se compreende
no pedido tudo o que dele logicamente decorre.29 Alm disso, como lembra
VICENTE GRECO FILHO,30 o artigo 290, do CPC tem por fundamento a
economia processual e a finalidade poltica do processo que a pacificao e
a estabilidade das relaes jurdicas e que seria exagerado formalismo se
exigir uma demanda para cada prestao. Da mesma maneira, seria exagerado se exigir uma ao declaratria ou constitutiva para cada fato sucessivo
decorrente da mesma causa de pedir, mormente no sistema dos Juizados
Especiais Cveis, no qual se prima pela simplicidade e informalidade.
Por ilustrao, tracemos a seguinte hiptese: o autor, recebendo cobranas no reconhecidas nos meses de janeiro e fevereiro, ingressa com
ao visando a anulao dos ditos dbitos, alegando que nenhum contrato
celebrara com o ru. Contudo, com o passar dos meses, recebe novas
cobranas, agora em relao aos meses de maro e abril, cuja declarao de
nulidade por bvio no foi requerida na inicial. Nada obsta o reconhecimento em sentena declaratria no s da nulidade de todas as faturas supra
mencionadas, como tambm das que porventura surjam aps a deciso,
desde que decorrentes do mesmo fato que justifica a causa de pedir.31
28
29

30
31

148

Ob. cit., p. 194.


H decises no STJ que consagram tal entendimento em casos at mais complexos, como a proferida no
Resp 39498/MS 1993, julgado na 4 Turma e que teve como relator o Min. BARROS MONTEIRO. L,
o tribunal reconheceu a possibilidade de se declarar nula uma escritura pblica, ainda que no fosse
pedido, quando houve pleito visando a anulao do registro imobilirio que o sucedeu, j que o primeiro decorreria logicamente do reconhecimento do segundo, aplicando-se o artigo 293, do CPC (LEXSTJ
Vol. 92, p. 147).
Direito Processual Civil Brasileiro, 2 volume, 6 ed., 1993, p. 100
A anlise da causa de pedir , portanto, importante, medida que este elemento da ao serve de limitador do alcance do objeto.

A Demanda no Sistema dos Juizados Especiais Cveis: o Pedido e a Causa de Pedir

149

2.4. O pedido contraposto


Admite a Lei n 9.099/95 que o reclamado, ao oferecer sua resposta,
apresente na contestao, pedido em seu favor, nos limites do art. 3 desta
Lei, desde que fundado nos mesmos fatos que constituem objeto da controvrsia (artigo 31), a exemplo do que tambm ocorre no rito sumrio, como
demonstra o artigo 278, 1, do CPC.
O pedido contraposto tem natureza reconvencional, muito embora
no se confunda com aquele instituto. Enquanto a reconveno, a que trata
o artigo 315, do CPC, ao autnoma, o pedido contraposto est ligado de
forma adesiva ao principal, de maneira que, caso esta ltima seja extinta prematuramente, o processo continuar em relao reconveno, mas
no ao pleito contraposto.32
em si autnomo, mas, no constituindo propriamente uma ao,
depende para o seu conhecimento da ao principal e necessariamente ser
julgado conjuntamente com o pleito principal, o que no necessariamente
ocorre com o reconvencional.33

32

33

Acerca do tema em sede de Juizados, RICARDO CUNHA CHIMENTI entende de forma diversa, concluindo: No vejo bice no prosseguimento do pedido contraposto mesmo que haja desistncia quanto
ao pedido principal, a exemplo do que prev o art. 317 do CPC para a reconveno (ob. cit., p. 191).
Contudo, discordamos de tal posicionamento, seja pelos motivos j elencados, seja pelo fato do artigo 317
do CPC ser regra especfica para o instituto da reconveno. Alm do mais, se o ru deseja que o seu pedido contraposto seja conhecido em havendo pleito de desistncia pelo autor, basta que no concorde com
ele, sendo certo que em qualquer hiptese o consentimento seria necessrio (artigo 267, 4, do CPC),
j que o pedido contraposto s poderia ser apresentado no prazo de resposta (com a contestao).
Em artigo publicado na Revista Dialtica de Direito Processual (nmero 9, p. 24/33), DANIEL AMORIM
ASSUMPO NEVES, Contra-ataque do Ru: Indevida Confuso entre as Diferentes Espcies
(Reconveno, Pedido Contraposto e Ao Dplice), advertiu: Apesar de ser ideal o julgamento conjunto da ao principal e da reconveno, nem sempre isso possvel, j que tanto uma quanto outra
pode ser extinta prematuramente sem julgamento de mrito. Nesse caso, inclusive, surge interessante
questo do recurso cabvel de tal deciso. A doutrina majoritria entende que se a reconveno for extinta sem o julgamento de seu mrito, a deciso ser interlocutria, cabendo contra ela o agravo de instrumento. Toma-se aqui a definio de sentena prevista pelo art. 162 do CPC, que embora bastante criticvel pelo seu manifesto carter tautolgico, determina que se o processo no chegar ao fim em razo de
pronunciamento do juiz o mesmo no ser sentena. Como o processo continuar em razo da manuteno da ao principal, o pronunciamento dito corretamente como deciso interlocutria. O mesmo
ocorre se a ao principal for extinta prematuramente, j que com a reconveno, o processo continuar, sendo tambm essa deciso considerada interlocutria, cabvel contra ela, portanto, o agravo de instrumento. Tudo decorre, segundo corretas lies de CNDIDO RANGEL DINAMARCO, da unidade do
processo, sendo que a extino da ao principal ou da reconveno meramente uma diminuio do
objeto do processo, e no sua extino. Idntico pensamento aplica-se para explicar por que a reconveno no cria um novo processo, somente alarga o objeto daquele j existente em razo da ao principal.

149

150

Mario Cunha Olinto Filho

CRUZ E TUCCI34 esclarece que pedido contraposto (actio contraria)


o que, ostentando cunho reconvencional, e fundado nos mesmos fatos ou
fato (causa petendi), se apresenta autonomamente, com a formulao, pelo
ru, de pedido antagnico ao do autor, implicando o julgamento conjunto
de ambas as contrastantes pretenses.
Por outro lado, tendo natureza acionria, na reconveno h de se
observar todos os requisitos genricos para o seu exerccio, como os pressupostos processuais, as condies da ao, alm da conexidade com a ao
principal ou com o fundamento da defesa, o que justifica a sua apresentao em pea separada da contestao.
O contraposto, apresentado no prprio corpo da contestao, pressupe
identidade com os fatos trazidos na inicial,35 sendo obviamente bem mais
restrito. Justamente por isso, as hipteses nas quais a lei impe a possibilidade do pedido contraposto so aquelas de rito e de causas menos complexas.
Acerca do assunto, o debate mais comum se prende possibilidade ou
no de apresentao de pedido contraposto pelos reclamados que no so,
em tese, admitidos como autores (pessoas jurdicas ou entes despersonificados). Poderia, por exemplo, uma empresa de grande porte, acionada nos
Juizados estaduais, apresentar pedido contraposto?
Existem entendimentos a defender ambas as posies.
O Enunciado 31, do FONAJE o acolhia, expressando que admissvel
pedido contraposto no caso de ser a parte r pessoa jurdica. No mesmo sentido, RICARDO CUNHA CHIMENTI,36 que concluiu, diante da isonomia a
que trata o artigo 125, I, do CPC, ser admissvel o pleito contraposto por pessoas jurdicas, inclusive as de direito pblico (no caso dos Juizados Federais.37

34
35

36
37

150

Ob. cit., p. 63.


Como exemplo, podemos citar a clssica demanda na qual o autor aduz na inicial que o ru foi o causador de acidente automobilstico, requerendo a indenizao dos danos impostos ao seu carro. Em contestao, alm de se defender, o ru formula pedido contraposto, no qual, inclusive utilizando as razes
de sua defesa, sustenta que a culpa pelo acidente fora do autor, e que requer a indenizao pelos estragos que sofreu o seu veculo. CRUZ E TUCCI nos ensina, na obra supra citada, que a manifestao do
demandado conter, em regra, uma pluralidade de causae: a causa excipiendi, que se consubstancia na
defesa propriamente dita; e a causa petendi do pedido contraposto, originada obrigatoriamente dos
mesmos fatos que exornam a pretenso do autor (ob. cit., p. 63).
Ob. cit., p. 93.
No mesmo sentido: Cabe pedido contraposto no caso de ser o ru pessoa jurdica (Concluso 13 do II
ECJEs). O pargrafo nico do art. 17 da LJE, ao referir possibilidade de pedido contraposto, no faz

A Demanda no Sistema dos Juizados Especiais Cveis: o Pedido e a Causa de Pedir

151

Ao contrrio, o Enunciado Cvel 4.2, da Consolidao dos Enunciados


do Rio de Janeiro, dispe que no cabe pedido contraposto no caso de ser o
ru pessoa jurdica, posio tambm defendida por CNDIDO DINAMARCO,38 que advertiu que a instituio dos juizados especiais como Justia do
cidado destina-se a dar amparo exclusivamente s demandas das pessoas
fsicas. Na realidade, o principal fundamento encontra-se no fato de que
quem no pode propor a ao (ser autor), diante das regras dos artigos 8, da
Lei n 9.099/95, e 6, da Lei n 10.259/01, no poderia por lgica formular
pedido contraposto, j que assume condio semelhante, podendo obter provimento em seu favor, no se limitando a rechaar a pretenso autoral.39
Em que pese a autoridade destes argumentos, entendemos que no h
bice para o pedido contraposto em tais circunstncias. O fato de existir
limitaes em relao s pessoas para a propositura se refere condio de
autor no desautoriza o pedido contraposto, j que processualmente tal instituto no faz com que o ru se transforme tecnicamente em autor.
Ademais, o artigo 31, da Lei n 9.099/95, no trouxe qualquer limitao, esclarecendo ser direito do reclamado em sua contestao formul-lo.
Por outro argumento, a limitao apontada nos elencos dos artigos 8,
da Lei n 9.099/95 e 6, I, da Lei n 10.259/01, se justifica para evitar inchao de demandas (privilegiando de fato as pessoas fsicas, alm de garantir o

38
39

qualquer exceo pessoa jurdica. Observando o princpio da segurana jurdica, as normas so norteadas com o intuito de que o destinatrio possa identificar a situao jurdica que lhe atinge, bem como
as conseqncias da mesma. No h vedao legal ao contrapedido formulado por pessoa jurdica que
dever ficar adstrito ao valor de alada do JE (RJE 19/81 e 1/92); (...) Possibilidade de a pessoa jurdica formular pedido contrapedido, pois tal no se equipara a reconveno, sendo parte integrante d contestao inaplicabilidade da vedao do art. 8 da LJE. (...) o art. 8 da LJE diz que ...somente as pessoas fsicas capazes sero admitidas a propor ao..., quando o art. 31 da mesma Lei possibilita ao ru,
na contestao, formular pedidos em seu favor, nos limites do art. 3 desta Lei, desde que fundo nos
mesmos fatos que constituem objeto da controvrsia. Ora, possibilidade de formular contrapedido difere de reconveno prevista pelo CPC, pois dever ser deduzido na contestao, no caracterizando o
pedido vedado pelo art. 8 acima citado (RJE 20/93-94).
Manual dos Juizados Cveis, 2 ed., So Paulo: Malheiros, 2001, p. 120/121.
ALVARO COURI ANTUNES, Juizados Especiais Federais Cveis: Aspectos relevantes e o sistema recursal da Lei 10.259/01, Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 103/104, defende igualmente a impossibilidade:
A nosso ver, no possvel a aplicao do artigo 31 da Lei n 9.099/95 que versa sobre o pedido contraposto, pois este s seria possvel se ambas as partes pudessem figurar, em tese, nos dois lados da relao jurdica processual, ou seja, se estivessem legitimadas como autoras e rs. As entidades pblicas no
poderiam ser autoras em sede de Juizados Especiais Federais Cveis, da porque nada justificaria pudessem elas por via transversa contrariar a norma inserta no artigo 6, I, da Lei n 10.259/01, o que contraria toda a lgica do sistema.

151

152

Mario Cunha Olinto Filho

real acesso justia). Ora, j instaurada a demanda por quem autorizado


para tanto, no causaria qualquer transtorno o pedido contraposto de pessoas jurdicas, j que a demanda existe (e continuar a existir) no por obra
destes, mas de quem realmente pode ser autor. No haveria aumento de
demandas, sendo certo ainda que em nenhuma hiptese a r pessoa jurdica poderia se valer do sistema dos Juizados sem prvio aforamento de ao
por parte dos ditos legitimados com autores.
Por fim, a admisso do pedido contraposto nestes casos seria medida de
economia processual, evitando que por ao autnoma a r tivesse que pleitear o que entende lhe ser de direito e, pior, tendo que aguardar o desfecho
da ao proposta no Juizado, ante a prejudicialidade.
Resta a lembrana independentemente do entendimento a ser acolhido que pleitos como o de condenao por litigncia de m-f (artigo 17
e 18, do CPC), de custas ou honorrios no so considerados propriamente
pedidos (ou pedidos contrapostos), e tanto assim que a sua imposio pode
se dar de ofcio. Assim, ainda que formulados pela parte r (qualquer que
seja a sua natureza), no sero tomados como pedidos contrapostos, no
havendo qualquer bice ao seu conhecimento.

3. A causa de pedir: teorias aplicveis


Em breves linhas, necessria uma exposio acerca das generalidades
que envolvem a causa de pedir, precedendo a anlise da mesma em sede de
Juizados Especiais, em especial as teorias dominantes, a sua auto ou heterodeterminao, bem como o que fato principal e secundrio.
Pela teoria da individualizao, a mera alegao de existncia da relao
jurdica (ser credor, legatrio, etc.) suficiente como suporte causa de pedir.
A causa petendi a relao ou estado jurdico afirmado pelo autor em
apoio sua pretenso, de maneira que a alterao dos fatos constitutivos
no importa na mudana da causa de pedir, desde que a relao jurdica
permanea inalterada. Os fatos em si (causa remota) no seriam imprescindveis para a determinao da causa de pedir.
H direitos que, dada a sua natureza absoluta, indicariam a causa de
pedir autodeterminada, ou seja, derivada do prprio fundamento invocado
152

A Demanda no Sistema dos Juizados Especiais Cveis: o Pedido e a Causa de Pedir

153

sem a necessidade de narrativa do fato gerador. Assim, afirmada a propriedade, v.g., seria irrelevante a indicao do ttulo aquisitivo (compra, sucesso, etc.).
Outros direitos, de cunho relativo (como os obrigacionais) do ensejo
s demandas ditas heterodeterminadas, nas quais a meno do fato constitutivo se faz necessrio.
A princpio e sem consideraes respeito da sistemtica do CPC
(artigo 282), a teoria da individualizao soa inaplicvel nas demandas
heterodeterminadas, ante a impossibilidade da real cincia quanto aos fatos,
prejudicando o contraditrio, a bilateralidade argumentativa e probatria
(contraprova) e deixando sem justificao o princpio da eventualidade. A
parte autora, apenas mencionando o fundamento jurdico, tolheria a defesa do ru, admitindo-se at que o primeiro viesse a indicar inovando no
processo fatos diversos dos apresentados ou rechaados em defesa (contestao) aps a apresentao da mesma.
J pela teoria da substanciao, no basta dizer-se o fundamento jurdico. A explicitao do porqu essencial (causa remota): da mihi factum.
Fato este que h de ser jurdico, relevante ao direito.
Alm das consideraes acerca das teorias da individualizao e substanciao, bem como das demandas auto e heterodeterminadas, importante tambm a meno acerca dos fatos principais e dos fatos secundrios.
Conforme exposio de CRUZ E TUCCI,40 os primeiros so aqueles
essenciais para configurar o objeto do processo e que constituem a causa
de pedir, ou seja, delimitam a pretenso deduzida em juzo. Fala-se aqui
em fato jurgeno (essencial) que por si s suficiente para delinear a pretenso, j que dele se extrai um efeito ou conseqncia jurdica.
Por sua vez, os secundrios ou simples seriam aqueles que sozinhos, no
delimitando uma pretenso e, portanto, incapazes de por si s sustent-la,
auxiliam na demonstrao do principal. dizer: muito embora o fato principal possa necessitar do secundrio para o xito da demanda, a causa de pedir
no se afirma sem o primeiro, sendo que a recproca no verdadeira. Em

40

A Causa Petendi no Direito Processual Brasileiro, 2 ed., So Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 153.

153

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Mario Cunha Olinto Filho

demanda na qual o autor, v.g., exige o pagamento de alugueres em atraso, a


inadimplncia contratual o fato essencial; j o fato do ru anteriormente
no adimplir outras contas, a indicar ser ele um inadimplente contumaz, se
caracteriza como fato simples, que pode ser til prova do principal.

3.1. A causa de pedir no sistema dos juizados


O problema inicial, para a anlise da causa de pedir nos Juizados, se
prende ao fato de que a Lei n 9.099/95, ao expor os requisitos da petio
inicial, parece amenizar o rigor do artigo 282, III, do CPC (que impe a
exposio dos fatos e fundamentos do pedido, acolhendo conforme doutrina dominante a teoria da substanciao) j que se refere a uma exposio
sucinta (artigo 14).
O afastamento de tal teoria poderia atingir outro princpio, o da eventualidade, que restaria sem justificativa posto que as limitaes quanto a
modificao da causa de pedir (e pedido) seriam inaplicveis, impondo-se
igual rompimento do sistema de precluses. Novamente CRUZ E TUCCI41
muito bem advertiu:
Tudo isso significa que a regra da eventualidade, impondo
um sistema rgido de precluses, constitui, como j procuramos
patentear, pressuposto da teoria da substanciao, ao exigir a
exposio simultnea, na petio inicial, dos fatos que fazem
emergir a pretenso do demandante (causa petendi remota) e
do enquadramento da situao concreta, narrada in status
assertionis, previso abstrata, contida no ordenamento do
direito positivo, e do qual decorre a juridicidade daquela (causa
petendi prxima).
Mas ser que isso corresponde exatamente realidade dos Juizados e
ao seu potencial de realizao jurisdicional?

41

154

Ob. cit., p. 151.

A Demanda no Sistema dos Juizados Especiais Cveis: o Pedido e a Causa de Pedir

155

Percebe-se que em sede de juizados especiais, at por conta da informalidade e da baixa complexidade, a causa de pedir prxima muitas das vezes
no explorada. No raramente, limita-se o autor a indicar um dispositivo
legal (o que se afigura irrelevante, diante do princpio iura novit curia)
havendo hipteses nas quais simplesmente nenhum fundamento lanado.
E, contrariando a regra geral do CPC, em boa parte dos casos isso no
indicar qualquer problema, porquanto em nada estar prejudicada a defesa
do ru-reclamado, que perfeitamente sabe no que o autor se prende para
ligar o fato ao pedido. E tanto assim que por mais das vezes apresenta contestao atacando justamente a causa de pedir prxima, que sequer foi ventilada expressamente. o caso, v.g., do autor que, demandando em face da
loja fornecedora do produto, se limita a narrar que l comprou uma geladeira e que tal bem apresentou defeito, descongelando todos os seus alimentos,
o que resultou em um prejuzo x. E a loja, ao seu turno, sem necessariamente negar a causa de pedir remota, rejeita ter qualquer responsabilidade no
evento, sob a alegao de que, ao contrrio do fabricante, no responde pelo
fato do produto (artigo 12 do CDC). Os motivos que comporiam a causa
petendi prxima so previsveis, nsitos prpria narrativa factual.42
Contudo, mais curiosas so as hipteses em que o fato (causa de pedir
remota) ou no bem esclarecido ou se transforma, por conta de outro fato
superveniente. E aqui entra uma aplicao mais direta do princpio da individualizao, o qual para a maioria dos autores no foi acolhida (ou pelo
menos, no como regra) no nosso diploma processual, j que a exigncia da
narrativa do fato e do fundamento (artigo 282, III, do CPC) revela a realizao do princpio da substanciao.

42

ROBERTO PORTUGAL BARCELLAR, Juizados Especiais A nova mediao paraprocessual, So


Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 235, para demonstrar que a importncia da simplificao e da desnecessidade de formalismos e burocracia excessiva, lembra que os Juizados Especiais Cveis no Brasil
foram institudos com base no modelo norte-americano (Small Claims Courts) e que l no h a necessidade de narrativas extensas ou fundamentaes tcnicas. Ilustra com um interessante exemplo, em
seguida transcrito: Os pedidos, em algumas cortes de pequenas causas da Florida, so simples, de fcil
preenchimento e, inclusive, podem ser formulados marcando-se um x ou acionando-se uma tecla do
computador. O autor indica nome, telefone e endereo, dele e do ru, assinala o tipo de questo e desde
logo o computador indica o dia e horrio que o autor dever comparecer para a audincia....

155

156

Mario Cunha Olinto Filho

Mas o prprio CPC traz regras especiais que revelam uma maior
importncia do fundamento do que do fato em si. o que ocorre, v.g., nas
aes possessrias. No importante saber se o ato do ru fora realmente de
esbulho ou turbao, at porque ele pode se alterar no curso da demanda
(ou at antes da propositura da ao) mas sim que o ato que pratica, de qualquer forma, afronta o direito de que afirma ser o possuidor justo e de boaf, que pode ter o exerccio dos poderes inerentes propriedade (artigo
1.195 do CC) e se opor em face daquele que injustamente opera a violao
(artigo 1.210 do CC).
Nas cautelares tambm no parece ser de fundamental importncia o
fato esttico. Ao contrrio, diante do princpio da fungibilidade (que vai
atingir at ao pedido) pode-se conhecer das variantes fticas para se deferir
at uma medida que no foi exatamente a requerida inicialmente (sob pena
de se negar o prprio sentido e objetivo das demandas de cautela).
E ainda temos os casos jurisprudenciais, nos quais se afastando um
rigor excessivo e ilgico, admite-se que o fato, quando transmudado, no
opera problemas processuais, posto que o fundamento se mantm intacto.
o que se d, por exemplo, quando proposta uma demanda de nunciao
de obra nova, percebe-se no seu curso que a obra j foi concluda. Seria
absurdo acolher-se uma extino do processo sem resoluo de mrito (por
falta de interesse processual qualificado pela ausncia de adequao) devendo prosseguir-se como uma demolitria, j que o fundamento (direito
incolumidade fsica e patrimonial) o mesmo.
O que h de comum entre tudo isso? Seja no caso de se verificar supostos problemas na causa de pedir remota (fato) ou prxima (fundamento)
percebe-se que isso no se traduz em real dificuldade processual para o
conhecimento de mrito quando em nada se limita a ampla defesa e o contraditrio do ru. Mesmo que isso ocorra excepcionalmente, possvel
mesmo s demandas nas quais se aplicao exclusivamente o CPC. Logo,
com mais os argumentos derivados da informalidade, simplicidade e da
ausncia de complexidade material, no se pode querer que em sede de juizados no se considerem tais possibilidades. Ao contrrio: l, o que no
entendimento puro do CPC era uma profunda exceo, pode se tornar uma
conduta bem mais comum.
156

A Demanda no Sistema dos Juizados Especiais Cveis: o Pedido e a Causa de Pedir

157

3.2. A exposio de forma sucinta


A determinao pela qual a exposio deva se dar de forma sucinta,
por outro lado, tambm no parece que esteja a indicar unicamente uma
narrativa resumida, de poucas palavras, breve.
Naturalmente, esta tambm a inteno da norma processual especial,
at porque, se as causas so de pequena complexidade, nada justifica uma
longa exposio, inviabilizando inclusive a celeridade e a oralidade.
Mas se a informalidade rege o sistema dos Juizados, no qual o leigo
pode oralmente formular um pleito, seria incompatvel a exigncia de tecnicismo na formulao da causa de pedir tal como se tem no CPC.43 O leigo,
em verdade, na maior parte dos casos age e move sua ao motivado por um
senso instintivo de justeza, que serve para aferir a sua leso e definir sua
pretenso, sem apoiar-se em fundamentos tcnicos.44
Assim, como j defendido acima, soa-nos sem sentido que a falta de
fundamentos jurdicos formalmente declinados gere inpcia inicial. Da
mesma fora, no se pode aplaudir a idia pela qual a narrativa do fato contenha detalhamentos sobre circunstncias que, para o leigo, no soem rele-

43

44

PEDIDO Dispensa de formalidade Simplicidade e informalidade Interpretao Finalidade


Pretenso Sentena extra petita Inocorrncia A Lei 9.099/95 dos Juizados Especiais, ao dispensar
a presena de advogado nas causas de valor at 20 salrios mnimos, adotando os princpios da oralidade, simplicidade e informalidade, dispensa formalidades e requisitos consagrados no processo comum,
o que d ainda mais nfase aos princpios da mihi factum, dabo tibi jus e jura novit cria, transferindo
ao juiz a responsabilidade de harmonizar e interpretar os fatos narrados pelas partes ao direito normatizado, dando-lhes a deciso que reputar mais justa, atendendo aos fins sociais da lei e s exigncias do
bem comum, nos termos do art. 6 da mesma lei A parte leiga, que comparece sozinha ao Juizado, no
tem a obrigao de expor, com preciso, os fundamentos jurdicos do pedido, pelo que basta que a
mesma narre os fatos e exponha suas pretenses, cabendo ao julgador aplicar a lei e adotar a deciso que
reputar mais justa e equnime, mesmo que o pedido no seja claro, desde que no prejudicada a defesa
do ru e a deciso seja coerente com a pretenso formulada No extra petita a sentena, no Juizados
Especial Cvel, que se atm aos fatos articulados e pretenso deduzida, visto que a preciso do pedido
no constitui requisito essencial nesse novo instituto (1 Turma Recursal de Belo Horizonte MG, Rec.
187, Rel. Vanessa Verdolin Hudson de Andrade); PEDIDO Requisitos formais A petio inicial e
o termo de reclamao, quando esta for oral, no esto obrigados a atender os requisitos indicados no
art. 282 do Cdigo de Processo civil; limitam-se to-somente queles indicados no art. 14 da Lei n
9.099/95 (2 Turma Cvel e Criminal do Maranho, Ac. n 1.571/00, Rel. Gevsio Protsio dos Santos
Jnior). (Decises extrada do livro de JORGE ALBERTO QUADROS DE CARVALHO SILVA, Lei
dos Juizados Especiais Cveis Anotada, 3 ed., So Paulo: Saraiva, 2003.
O que CRUZ E TUCCI chama de situao substancial (A causa petendi...., p. 128)

157

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vantes. E, se ao final perceber-se que na realidade eram, h de se permitir


a sua meno e conhecimento.
Aqui remetemos aos mesmos motivos j expressos para justificar a flexibilizao em relao ao pedido, lembrando que, embora no se possa impor
um comportamento com rigidez e formalismos exacerbados, por outro lado a
observncia das garantias mnimas do processo um imperativo.
Ao analisar o problema relativo ao alcance ftico da causa de pedir,
LEONARDO GRECO45 sustentou a necessidade de investigao pelo julgador para delimitar a coisa litigiosa, com a colaborao das partes, devendo
agir no sentido de promover todo o esclarecimento necessrio da questo
apresentada pelo autor. Se a oralidade , inclusive, o nico princpio mencionado na CF para aplicao aos Juizados Especiais, juntando-o com a
informalidade, parece-nos, mais do que uma faculdade, ser dever do juiz
indagar ao autor (ainda que em audincia) na hiptese de dvida no s
o que busca, mas a integralidade das razes pelas quais o faz.
dizer: enquanto for possvel ao ru desvendar as razes do autor que
devero, em razo da natureza da causa, ser simples - no h razo para preocupaes formalistas. Se tal esclarecimento ocorre tardiamente, desde que as
razes sejam conexas ou decorrentes das j apresentadas, a sua cognio deve
ser deferida, ainda que isso importe em nova oportunidade para o ru se
manifestar, se necessrio vista dos novos fatos. A relativizao da rigidez do
artigo 264, do CPC, imprescindvel prpria efetividade do processo.

4. A alterao do pedido e da causa de pedir


A regra do artigo 264, do CPC, importa na impossibilidade de modificao do pedido e tambm da causa de pedir aps a citao, salvo com
o consentimento do ru e que, em nenhuma hiptese, a mesma poderia
ocorrer aps o saneamento do feito. J o artigo 294, do mesmo estatuto, no
admite o aditamento aps a citao.

45

158

No curso do processo, essa investigao ainda possvel, porque as partes ainda dependem da deciso
do juiz e devem colaborar na delimitao da coisa litigiosa, podendo o juiz tomar as providncias necessrias para elucidar a inteno da manifestao de vontade do autor (ob. cit., p. 68).

A Demanda no Sistema dos Juizados Especiais Cveis: o Pedido e a Causa de Pedir

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Para a anlise do tema, mister a exposio da justificativa da imposio


legal.
Trata-se da aplicao do princpio da estabilidade objetiva da demanda. Se por um lado o autor tem plena liberdade para ingressar com uma ao
e nela fazer o pedido que lhe convier ante os princpios do acesso Justia, da demanda e correlao parece razovel se exigir que no haja em
regra a mutabilidade do mesmo, sob pena de ser por um lado injustificvel
o rgido tratamento legal indicado para a sua formulao na petio inicial.
Alm disso, a incerteza constante impossibilitaria no s que o ru se
defendesse amplamente, mas tambm que o autor, vista das alegaes
defensivas, adaptasse o seu pedido ou a prpria causa de pedir (ante a clara
indicao de que o original no seria provido) j ciente das teses da parte
contrria, importando isso em verdadeira inverso processual.46
A possibilidade de modificao antes da citao justamente se acolhe
por estar o processo ainda em formao, no estando o ru integrado ao
(artigo 219, do CPC). E se o ru concorda com a dita modificao mesmo
aps a citao, presume-se que isso no lhe cause qualquer prejuzo processual: ao contrrio, anuindo que a matria sob adstrio se amplie, tende a
evitar ser demandado novamente.
Em sede de Juizados Especiais Cveis, o problema inicial acerca do tema
bvio: por no haver uma dilao procedimental, sendo os atos extremamente concentrados, a modificao do pedido aps a citao pode ser obstada ante a negativa do ru pelo fato de no ser possvel uma defesa adequada.
Realmente, enquanto no rito ordinrio, ocorrendo a modificao do
pedido e anuindo o ru, a este ser deferido prazo razovel para se manifes-

46

A esse respeito, interessante a seguinte deciso proferida no STJ, no julgamento do Resp 320977/RS, 4
Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, em 2002 (disponvel no site: www.stj.gov.br): CIVIL E
PROCESSUAL. AO DE INDENIZAO. INSCRIO NO SERASA. ALTERAO DO PEDIDO
APS A CONTESTAO, EM RPLICA. INADMISSIBILIDADE. CPC, ART. 264. IMPUTAO DE
OMISSO DO RU EM COMUNICAR A INSCRIO. AJUIZAMENTO IMEDIATO DA AO.
IMPOSSIBILIDADE MATERIAL. IMPROCEDNCIA. I Pleiteada indenizao ao argumento de que
a inscrio no SERASA fora indevida por ausncia de execuo contra a autora, e verificado, em face
da contestao, que de fato havia cobrana judicial como constava do registro, defeso postulante
alterar o pedido, j em rplica, para, buscando contornar o equvoco flagrante por ela cometido mediante assertiva inverdica na inicial, requerer o ressarcimento ao argumento de que o ilcito se dera em
razo tambm da no comunicao prevista no artigo 43, pargrafo 2, do CDC (...).

159

160

Mario Cunha Olinto Filho

tar, contestando de forma escrita o novo pedido, no rito da Lei n 9.099/95


a meno acerca da alterao formulada em regra na prpria audincia de
instruo e julgamento, j tendo o reclamado sido citado e preparado a sua
resposta, aguardando-se um julgamento imediato. E no h qualquer regra
especfica que amenize o teor do artigo 264, do CPC.
Contudo, h peculiaridades que no podem ser ignoradas e que influenciaro em um entendimento diferenciado da questo para a sua aplicao nos juzos especiais.
De incio e como j ressaltado, o prprio sistema legal j trata o pedido (e seus fundamentos) de maneira diversa ao que consta no artigo 282, do
CPC. Nota-se, em observncia ao princpio da informalidade, que no parece ter a lei exigido do autor-reclamante a tecnicidade ordinria, at porque
em alguns casos pode formular a sua inicial sem assistncia profissional.
Em continuao, admitindo-se a rgida aplicao do artigo 286, do
CPC, em certas hipteses a emenda seria faticamente impossvel, posto que,
sendo expedida imediatamente a ordem citatria com a propositura da inicial, no haveria sequer dilao temporal para tanto.
Ao contrrio do que ocorre no rito ordinrio, o reclamado no citado para responder em determinado prazo, mas sim para comparecer
audincia de conciliao.47 E nesta no h previso legal para que a contestao seja ofertada, decorrendo os efeitos da revelia naquela oportunidade
unicamente de eventual ausncia do reclamado.48
Assim, resta claro que, muito embora seja facultado ao reclamado fazla antes, a resposta h de ser ofertada por ocasio da audincia de instruo
e julgamento. Ora, partindo-se desta premissa, por que no seria admissvel
a alterao do pedido (e da sua causa) em audincia de conciliao?
Nenhuma das razes que justificam a limitao trazida no artigo 286, do
CPC, poderia vingar: no se tolheria o reclamado de se defender amplamente, no ocorrendo qualquer precluso consumativa ou temporal ao seu
direito de impugnao.

47
48

160

Artigos 16 e 18, 1, da Lei n 9.099/95.


Artigo 20 da citada norma.

A Demanda no Sistema dos Juizados Especiais Cveis: o Pedido e a Causa de Pedir

161

Alegar-se que a conciliao poderia ser prejudicada se revela um argumento inconsistente, j que a mesma pode ocorrer posteriormente, inclusive na prpria audincia de instruo e julgamento, com fulcro no artigo
125, IV, do CPC. E de qualquer forma, melhor soluo seria o aguardo de
nova audincia, com a soluo de todo o real conflito material entre as partes, do que se deixar brechas para a propositura de nova demanda.
Sobre o tema, a jurisprudncia vem mantendo uma linha extremamente liberal, de maneira a permitir emenda inicial para a modificao
do pedido mesmo em audincia de instruo e julgamento49 desde que
respeitado o contraditrio, muitas vezes indicando que a mesma constitui um esclarecimento do pleito inicialmente informado quando da propositura.
Mas entendemos que h de existir um limite para tanto, sob pena de
ocorrer uma inovao processual to radical que a prpria identidade da
demanda desapareceria. dizer: a emenda no pode causar uma transmudao processual, de maneira a se confundir como uma nova ao completamente diversa da proposta.
Parece-nos que a admisso da emenda em tais hipteses deva ficar condicionada ao fato de ser o novo pedido correlato com o anterior ou decorrente do mesmo, de maneira que a razo emprica (causa de pedir remota)
que lhes d origem seja comum, o que evita inclusive maiores nus para a

49

Nos JEs, o processo se orienta pelo critrio da simplicidade, que permite que o pedido, deduzido
oralmente pela parte, contenha de forma sucinta os fatos e fundamentos, o objeto e seu valor, alm de
dados para identificao e localizao das partes; alm disso, pelo mesmo critrio, possvel o melhor
esclarecimento do pedido em audincia (RJE 16/34-35); Em face dos critrios que informam o procedimento do JE, quando o pedido deduzido oralmente e registrado pela secretaria de forma deficiente,
o autor pode aclar-lo na audincia, incluindo, inclusive, como no caso, solicitao de condenao em
multa por inadimplemento contratual (mesma causa de pedir) (RJE 17/46); Pedido formulado no balco do Juizado que se apresenta inepto. nus do Judicirio em relao ao consumidor que, ao abrigo
da LJE, comparece pessoalmente para propor ao, colher as informaes e registrar o pedido de forma
suficientemente clara, para que possa ser contestado e apreciado adequadamente. Verificadas omisses
que impedem o normal prosseguimento, compete ao magistrado o oportuno saneamento, evitando cerceamento de defesa e ou prejuzos prestao jurisdicional (RJE 30-31/36); Inexiste nulidade processual pelo aditamento do pedido trs dias antes da audincia. At na audincia de instruo o pedido
pode ser aditado, desde que garantido o contraditrio (RJE 18/99).A petio inicial deve atender,
somente, aos requisitos do Art. 14 da Lei n 9.099/95, ressalvando-se, em ateno aos princpios do Art.
2 do mesmo diploma, a possibilidade de emenda por termo na prpria audincia, devendo o Juiz interpretar o pedido da forma mais ampla, respeitado o contraditrio (Enunciado 3.1.1, da Consolidao dos
Enunciados dos Juzes e Turmas Recursais do Estado do Rio de Janeiro).

161

162

Mario Cunha Olinto Filho

defesa do reclamado. H naturalmente fatos cujo conhecimento devem ser


levados em considerao para se proferir a sentena, ainda que no lanados na inicial, como os trazidos na hiptese do artigo 462, do CPC,50 independentemente da ocorrncia de emendas. Mas no est a se tratar desses.
O que parece no ser razovel que em audincia de instruo e julgamento ocorra uma emenda ao pedido, fundando-o em uma causa de pedir completamente diversa da inicial.
Imagine-se a hiptese do autor que ingressa com demanda em face de
seu vizinho, narrando que o muro que est construindo irregular, por no
respeitar as normas de vizinhana, pleiteando de incio o seu desfazimento.
Parece ser plausvel que, em emenda ao pedido, requeira indenizao pelos
eventuais danos que sofreu com as obras de conteno, j que tanto um
quanto o outro decorrem do mesmo fato. Mas no se afigura razovel que
em audincia venha a alegar que o reclamado lhe deve uma indenizao,
mas por inadimplncia de um contrato de locao ou por ato ilcito devido
a um acidente automobilstico, fatos que nenhuma relao tem com a questo originariamente exposta.
Como j bem ressaltado, imprescindvel que o reclamado tenha a oportunidade de ter se manifestado sobre o fato e se defender plenamente. Alis,
dada a pequena complexidade dos casos que chegam aos Juizados Especiais,
por mais das vezes o argumento utilizado pelo reclamado para impugnar o
pedido original servir para igualmente rechaar o formulado em alterao.
E na eventual hiptese de no ser possvel a elaborao de defesa imediata,
pode-se aplicar analogicamente os artigos 27 e 31, pargrafo nico, da Lei
9.099/95,51 que permitem a designao de nova data para a audincia, com
o fito de obstar eventual tolhimento ao direito de defesa.

50

51

162

Artigo 462 do CPC: Se, depois da propositura da ao, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento da lide, caber ao juiz tom-lo em considerao, de ofcio ou a
requerimento da parte, no momento de proferir a sentena.
Artigo 27 da Lei n 9.099/95: No institudo o juzo arbitral, proceder-se- imediatamente audincia
de instruo e julgamento, desde que no resulte prejuzo para a defesa. Artigo 31, p.u., da Lei n
9.099/95, que trata da hiptese de existir pedido contraposto: O autor poder responder ao pedido do
ru na prpria audincia ou requerer a designao da nova data, que ser desde logo fixada, cientes
todos os presentes.

A Demanda no Sistema dos Juizados Especiais Cveis: o Pedido e a Causa de Pedir

163

5. Concluses
Muitos trabalhos j existem acerca das Leis ns 9.099/95 e 10.259/01,
assim como coletneas de julgados relativos aos Juizados Especiais Cveis.
Contudo, so poucos os que se dedicaram exclusivamente, ou com
maior profundidade, s peculiaridades processuais relativas aos elementos
da ao. O assunto , por mais das vezes, tratado de forma superficial, dando
origem a classificaes e concluses equivocadas.
Chamamos a ateno para a necessidade de mitigao da rigidez tradicional trazida pelo CPC no que toca ao pedido e a causa de pedir, sem, contudo, atropelar o direito ao contraditrio e ampla defesa. O formalismo no
pode ter justificativa em si prprio, mas tambm no se pode admitir sob
a comum desculpa da aplicao dos princpios da informalidade, simplicidade e oralidade que tudo se pode fazer.
Valoriza-se aqui a dispensa da formalidade intil, sugerindo espao para
o conhecimento do que apurvel diante da existncia de pequenos erros de
narrativa factual ou de elaborao do pedido quando evidente a inteno da
parte (muitas vezes desassistida) que no raro reconhecida pela prpria narrativa presente na contestao do ru. E quando eventual modificao importa em real ampliao do objeto da demanda (desde que haja um grau de conexidade ou derivao da mesma conduta que d origem a causa de pedir) que
seja admitida a emenda e posterior manifestao do reclamado, afirmando-se
a importncia dos princpios dispositivo e da adstrio, evitando-se o perigoso entendimento quanto a possibilidade de julgamentos ultra ou extra petita.
Dentro dessa viso, cabe ao julgador especial cuidado no manejo processual, que, diante de todos os princpios mencionados, dever se interessar em conhecer o real alcance do litgio (a lide efetiva) se entrevistando
informalmente com as partes na audincia ou solicitando as informaes
que entender necessrias, para que elas acompanhem igualmente o raciocnio e os provimentos do magistrado.

6. Referncias bibliogrficas
ARAGO. Egas Dirceu Moniz de. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil, v. II. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
163

164

Mario Cunha Olinto Filho

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COELHO. FBIO ULHOA. Manual de Direito Comercial. 14 ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2003.
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DINAMARCO, Cndido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11 ed.
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164

A Demanda no Sistema dos Juizados Especiais Cveis: o Pedido e a Causa de Pedir

165

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NEVES, Daniel Amorim Assumpo Neves. Contra-ataque do ru. Indevida Confuso entre as Diferentes Espcies (Reconveno, Pedido
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PASSOS, Jos Joaquim Calmon de. Comentrios ao Cdigo de Processo
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PEREIRA. Caio Mario da Silva. Instituies de Direito Civil, v. IV. 2 ed.
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REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20 ed. So Paulo: Saraiva, 2002.
ROCHA, Fellipe Borring Rocha. Juizados especiais cveis. 3 ed. Rio de
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RODRIGUES, Geisa de Assis. Juizados Especiais e aes coletivas. Rio de
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SCHNKE, Adolf. Direito Processual Civil. Reviso de Afonso Celso
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anotada. 3 ed. So Paulo: Saraiva, 2003.
SOUSA, lvaro Couri Antunes Sousa. Juizados Especiais Federais Cveis:
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THEODORO JNIOR, Humberto. Juizado Especial Civil. As inovaes no
Cdigo de Processo Civil. Juizado especial cvel. 6 ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1996.

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III
Recursos
nos Juizados Especiais Cveis

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Aspectos Relevantes do Sistema
Recursal dos Juizados Especiais
Gustavo Quintanilha Telles de Menezes

SUMRIO: 1. Introduo. 2. Do sistema recursal dos Juizados Especiais. 3. Do recurso inominado e seu julgamento. 4. Do Recurso Extraordinrio e da Ao Rescisria. 5. Concluses. 6. Bibliografia.

1. Introduo
No recente em nossa histria jurdica, a demanda por uma prestao
jurisdicional mais clere, embora somente com a Emenda Constitucional n
45, de 30 de dezembro de 2004, esse anseio tenha sido alado ao nobre patamar de direito fundamental constitucional, na letra do inciso LXXVIII, que
o incluiu no extenso rol do artigo 5 da Constituio da Repblica.
A busca permanente pelo adequado cotejo entre qualidade e tempo, no
exerccio da atividade jurisdicional, passa por diversos caminhos, que se
estendem desde a sempre almejada desburocratizao do servio pblico
em geral notadamente com ampla implementao de tecnologia at o
estudo dos corretos instrumentos jurdicos, que possam saciar a pressa do
jurisdicionado, sem o deixar ao desamparo das garantias que asseguram a
legitimidade das decises judiciais.
Nesse contexto de contnuo amadurecimento do sistema processual,
visando sempre a tornar a justia mais acessvel aos cidados, coerente com
as ondas renovatrias do processo civil identificadas por CAPPELLETTI,1 a

CAPPELLETTI, Mauro. BRYANT Garth. Access to Justice: The Wordwide Movement to Make Rights
Effective A General Report. Access to Justice: A Word Survey. Mauro Cappelleti and Bryant Garth,
Eds. (Milan: Dott. A. Guiffre Editore, 1978).

169

170

Gustavo Quintanilha Telles de Menezes

Lei n 9.099/95, de 26 de dezembro de 1995, veio cumprir o papel de reformular o procedimento de prestao jurisdicional em casos de menor complexidade, ante os limites tcnicos e estruturais da Lei n 7.244, de 7 de
novembro de 1984, que tratava dos Juizados de Pequenas Causas.
Atento, pois, ao mandamento constitucional de eficcia limitada,2 inserido no artigo 98, inciso I, da Carta Federal, a denominada Lei dos Juizados
Especiais instituiu microssistema processual prprio. Definindo um sistema
recursal particular ao menos em parte a Lei n 9.099/95 passou a merecer da doutrina e da jurisprudncia um estudo e tratamento em separado,
notadamente porque no se pode perder de vista os princpios especficos
que informam o singular sistema jurdico dos Juizados, quais sejam, a oralidade, a simplicidade, a informalidade, a economia processual e a celeridade.3
Nesse passo, tem ensejo uma breve anlise das caractersticas peculiares da disciplina de recursos nos Juizados Especiais Cveis,4 quer para
melhor compreender a integralidade do sistema, quer para progredir no
permanente desenvolvimento dos instrumentos jurdicos ao adequado
exerccio da jurisdio.

2. Do sistema recursal dos Juizados Especiais


Insta salientar, de incio, que a Lei n 9.099/95 disps sobre seu sistema recursal em seus artigos 41 a 46, 54 e 55, pelo que, embora as normas
gerais previstas do Ttulo X, do Livro I, do Cdigo de Processo Civil sejamlhe supletivas, sua aplicao depende de guardarem coerncia com os princpios anteriormente elencados, que informam o sistema dos Juizados
Especiais, restringindo-se praticamente parte procedimental e no sendo
admitida a interposio de recursos no previstos na Lei dos Juizados.

2
3
4

170

SILVA, Jos Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais, 6 ed. Malheiros: So Paulo, 2003
ROCHA, Felippe Borring. Juizados Especiais Cveis, Aspectos Polmicos da Lei n 9.099, de 26/9/1995.
1 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2000, p. 14.
Da Lei n 9.099/95, aplicam-se aos Juizados Especiais Cveis somente os artigos 1 a 59 e 93 a 97, visto
que os artigos 60 a 92 tratam somente dos Juizados Especiais Criminais; neste trabalho dar-se- ateno
exclusiva aos primeiros, ficando os demais para outra oportunidade.

Aspectos Relevantes do Sistema Recursal dos Juizados Especiais

171

O primeiro ponto interessante da Lei consiste exatamente no fato de


no ter sequer reservado uma seo especfica para recursos. A opo legislativa, embora carente de algum apuro tcnico, j demonstra que no quis
o legislador prestigiar a impugnao das decises da primeira instncia.
Compreende-se essa linha, a uma, pelo fato de que se pretendia uma
gil soluo do conflito, se possvel sem nenhum recurso conceito que
tambm respaldou a iseno de custas na primeira instncia e sua cobrana
na fase recursal, como elemento dissuasrio de recursos a duas, observase que os julgamentos de segunda instncia so desenvolvidos por magistrados de primeiro grau,5 no se exigindo, portanto, tratamento da matria
com o rigor do Captulo VII do Cdigo de Processo Civil (Da Ordem dos
Processos no Tribunal).
Em verdade, os oito artigos referem-se apenas a um recurso, que ante
a ausncia de nomenclatura legal especfica, foi alcunhado pela doutrina de
recurso inominado. O outro recurso previsto no projeto da lei estava no
artigo 47, que foi vetado.
O veto ao referido artigo 47 excluiu do sistema recursal dos Juizados o
recurso de Embargos de Divergncia. O Ministrio da Justia assim se
manifestou nas Razes de Veto, quanto ao artigo 47:

O art. 47 do projeto de lei deve ser vetado, com fundamento no interesse pblico, porque a inteno que norteou a
iniciativa parlamentar foi propiciar maior agilidade processual,
o que no aconteceria com a sano deste dispositivo, visto que
ele ensejaria o aumento de recursos nos tribunais locais, em vez
de sua diminuio. Da, no mais haveria brevidade na concluso de causas, contrariando todo o esprito que moveu a proposio e que traduz o anseio de toda a sociedade brasileira..
Andou bem o Poder Executivo em vetar o artigo, tanto assim que se
poupou s partes o desgaste de mais uma etapa recursal sem qualquer pre-

Adota-se a distino entre instncia e grau de jurisdio, imputando-se quela a distino quando h
um ou mais nveis de conhecimento da causa, e este para diferenciar a hierarquia de competncias cognicveis por um magistrado juiz ou desembargador dentro de um mesmo Tribunal.

171

172

Gustavo Quintanilha Telles de Menezes

juzo, j que a prtica das Turmas Recursais conduziu edio de


Enunciados de Unificao de Jurisprudncia, semelhana dos Tribunais.
Estes enunciados vm cumprindo com louvor a funo de unificar os
entendimentos colegiados, homogeneizando as decises na instncia recursal, sem acrscimo do tempo de julgamento nos casos individuais.
Como sucedneo recursal ao agravo sem previso similar na Lei e
cuja utilizao foi vedada pela jurisprudncia6 a advocacia militante tem
utilizado o mandado de segurana, como acontecera outrora com a correio parcial7 e com o prprio mandado de segurana, apesar da Smula 267
do Supremo Tribunal Federal.8 Ante a ausncia de recurso judicial destinado a impugnar deciso que pode violar direito da parte, exsurge a hiptese
do artigo 5, inciso II, da Lei n 1.533, de 31 de dezembro de 1951.
O mandado de segurana permite a impugnao de decises interlocutrias, que seriam, pela Lei n 9.099/95, irrecorrveis de primeira instncia.
Interessante observar que na jurisprudncia das Turmas Recursais do
Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro no comum a aplicao
dos artigos 527, inciso III, e 558, ambos do Cdigo de Processo Civil, que
autorizam a antecipao de tutela recursal pelo Relator, assim como se tem
como incabvel a utilizao do artigo 557, posto que no havendo previso
legal ou regimental de agravo interno, essas decises seriam irrecorrveis.9
Alis, registre-se que a prpria antecipao dos efeitos da tutela, inserta no artigo 273 do Cdigo de Processo Civil, no tem previso expressa na
Lei dos Juizados, sendo mais um dos muitos exemplos de aplicao de
norma prpria do procedimento comum do Cdigo de Processo Civil,
inclusive com amparo no poder geral de cautela inserto no artigo 5, inciso
XXXV, da Constituio da Repblica.10

7
8
9
10

172

Consolidao dos Enunciados Jurdicos Cveis, Enunciado n 11.5: Agravo De Instrumento Inadmissibilidade. No sistema de Juizados Especiais Cveis, inadmissvel a interposio de agravo contra deciso interlocutria, anterior, ou posterior sentena.
ARAGO, gas Dirceu Moniz de. A Correio Parcial. Curitiba: Ed. Ltero-Tcnica, 1958.
Vide o RE 76.909, julgado a 5.XII.73, RTJ, 70/504.
Em sentido contrrio, o Enunciado n 102, do Frum Nacional dos Juizados Especiais, aprovado no XIX
Encontro Aracaju/SE.
Consolidao dos Enunciados Jurdicos Cveis, Enunciados n 14.5.1.

Aspectos Relevantes do Sistema Recursal dos Juizados Especiais

173

Os embargos de declarao, que podem ser opostos oralmente e cuja


caracterstica de recurso negada por boa doutrina,11 apenas suspendem
e no interrompem o prazo recursal, a contar da sua interposio at a
publicao da deciso sobre os mesmos. A nosso sentir, a Lei n 9.099/95
demonstrou apuro tcnico em no tratar os embargos de declarao como
recurso, haja vista que no objetivam, em regra, impugnar a deciso, mas
sim provocar sua integrao, esclarecimento ou ajuste, sem lhe impor
modificao de contedo.
Os chamados embargos declaratrios de efeitos infringentes ou modificativos e sua discutvel aplicao transcendem o foco especfico do
tema em exame.

3. Do recurso inominado e seu julgamento


O recurso inominado tem a mesma natureza da apelao no procedimento comum, devolvendo ao rgo julgador da instncia superior a
Turma Recursal toda a matria de direito e de fato impugnada, tendo por
funo revisar a atividade judicante da primeira instncia, para reformar ou
anular a sentena.12
Com efeito, afigura-se cabvel a impugnao da sentena com a interposio de recurso inominado que no tem efeito suspensivo vedado o
recurso contra sentena homologatria de acordo ou de laudo arbitral,
sendo esta, pois, irrecorrvel.13
O julgamento pela Turma Recursal processa-se na forma do Regimento das Turmas Recursais, consolidado na Resoluo n 07/2006 do Conselho
da Magistratura ostenta significativa importncia no Estado do Rio de
Janeiro, tanto em matria recursal, quanto nos demais temas afetos aos
Juizados Especiais, a Consolidao dos Enunciados Jurdicos Cveis das
Turmas Recursais e os Enunciados do Frum Nacional de Juizados Especiais

11
12
13

ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 2 ed. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 590.
Idem, p. 375.
Lei n 9.099/95, Art. 41. Da sentena, excetuada a homologatria de conciliao ou laudo arbitral,
caber recurso para o prprio Juizado.

173

174

Gustavo Quintanilha Telles de Menezes

FONAJE, todos encontrveis no stio eletrnico do Tribunal de Justia do


Estado do Rio de Janeiro.14
Feito o prego, o Presidente indaga sobre a presena de advogado que
pretenda sustentar oralmente, normalmente inscrito em lista prvia, para
facilitar os trabalhos da Turma. Defere-se cinco minutos para cada advogado. Frise-se que o Relator poder dispensar a sustentao oral, se entender
desnecessria em razo de seu voto ser favorvel ao direito pleiteado, hiptese em que poder ser concedida, se houver um voto contrrio.
As deliberaes das Turmas sero tomadas por maioria de votos e o
julgamento constando apenas na ata os dados identificadores do processo,
fundamentao sucinta e parte dispositiva, servindo a smula do julgamento como acrdo, caso a sentena seja confirmada pelos seus prprios
fundamentos. Permite-se a incorporao da sentena s razes de decidir
do acrdo.
No mesmo sentido da Lei n 11.672, de 08 de maio de 2008, que introduziu o artigo 543-C no Cdigo de Processo Civil, comumente so realizados simultaneamente o julgamento de casos anlogos, tanto que o
Regimento autoriza que a secretaria das Turmas Recursais, a critrio do Juiz
Coordenador, extraia smula coletiva, referente a todos ou parte dos processos de uma mesma sesso que tenham sido decididos de igual forma, a
ser assinada pelos juzes que participaram da sesso, constando dos autos
juntamente com o voto ou votos eventualmente redigidos pelos juzes que
participaram do julgamento.15
Prevalece o entendimento que a expresso mencionar, constante do
Art. 38, da Lei n 9.099/95, significa que o Juiz dever motivar sua deciso
enfrentando, ainda que de maneira concisa, todas as questes de fato e de
direito levantadas pelas partes.
So decididas pelo Colegiado das Turmas Recursais todas as questes
atinentes admissibilidade, no devendo faz-lo sozinho o Relator. Quanto
ao requisito de recolhimento de custas, registre-se que o entendimento
jurisprudencial de que no se aplica o 2 do artigo 511 do Cdigo de

14
15

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Stio eletrnico do Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro: www.tj.rj.gov.br.


Resoluo n 07/2006, artigos 9 e 15.

Aspectos Relevantes do Sistema Recursal dos Juizados Especiais

175

Processo Civil. O no recolhimento integral do preparo do recurso inominado, previsto no artigo 42, 1, da Lei n 9.099/95, importa em desero,
inadmitida a complementao a destempo. Inclusive irrecorrvel a deciso monocrtica que no recebeu o recurso por desero ou intempestividade, no havendo sequer a remessa dos autos s Turmas Recursais em
qualquer hiptese.
Tambm no se admite nos Juizados Especiais, recurso adesivo em sede
de Juizados Especiais, por falta de expressa previso legal.16
Importa destacar que no se aplica ao julgamento pelas Turmas
Recursais o Princpio da Reserva de Plenrio s Turmas Recursais, previsto
no artigo 97 da Constituio da Repblica.
A toda evidncia, o artigo 98 da Constituio consubstancia exigncia
para a formao da jurisprudncia de segundo grau de jurisdio de um
Tribunal sobre a inconstitucionalidade de uma lei, o que no impede que os
rgos de primeiro grau, que no exprimem o entendimento coletivo do
Tribunal, dispensem o requisito.
As Turmas Recursais no tm competncia para exprimir (nem representar, nem vincular) a jurisprudncia do Tribunal, rgo jurisdicional de
segundo grau, sobre a inconstitucionalidade de uma lei, logo, semelhana
do que ocorre com os juzes, as Turmas Recursais, que tambm so rgos
de primeiro grau, podem declarar incidentalmente a inconstitucionalidade
de lei, sem terem que antes encaminhar a questo ao rgo Especial.
No se vislumbra nisso que as Turmas Recursais tenham mais liberdade de julgamento do que tm as Cmaras que devem remeter ao rgo
Especial a declarao incidental de inconstitucionalidade o que ocorre
que as Cmaras, rgos julgadores de segundo grau, embora rgos fracionrios, exprimem e consubstanciam a jurisprudncia do Tribunal, no limite de suas competncias.
Vale observar que no deve surpreender o fato de uma deciso de um
rgo de primeiro grau Turmas Recursais sobre a inconstitucionalidade
de uma lei, ser submetida diretamente ao Supremo Tribunal Federal, pois
nosso sistema de controle constitucional caminha, em sucessivas reformas,

16

Consolidao dos Enunciados Jurdicos Cveis, Enunciados ns 10, 11 e 14.

175

176

Gustavo Quintanilha Telles de Menezes

para impor o controle pelo Tribunal de Cpula diretamente aos rgos de


primeiro grau.
Nota-se o fenmeno em todas as aes declaratrias de constitucionalidade e inconstitucionalidade, e na argio de descumprimento de preceito fundamental, que suspendem processos de primeiro grau e vinculam ou
tornam ineficazes suas decises, sem que se aguarde ou se exija a prvia
manifestao dos respectivos Tribunais.
No se veja nisso, tampouco, alforria s Turmas Recursais da eventual
uniformizao de jurisprudncia feita pelo Tribunal. Cremos que devem as
Turmas Recursais observar a jurisprudncia unificada do Tribunal, bem
como promover, no mbito de sua competncia, a unificao de jurisprudncia da matria especfica de Juizados Especiais.
Merece destaque, outrossim, a jurisprudncia de fixao de honorrios
advocatcios no mximo legal vinte por cento sobre o valor da causa ou
da condenao nos casos em que o recurso no provido. Cuida-se de
opo jurisprudencial que refora a inteno legal de inibir o excesso de
recursos, especialmente os protelatrios, que ainda podem receber a sano
de multa por litigncia de m-f.

4. Do Recurso Extraordinrio e da Ao Rescisria


O Superior Tribunal de Justia no admite recurso contra deciso
oriunda de Turmas Recursais, ao fundamento de sua competncia constitucional estar disposta de forma exaustiva no artigo 105, inciso II, da Constituio da Repblica, que contempla somente o cabimento de Recurso
Especial contra decises de Tribunais.17
Por outro lado, o artigo 102, inciso III, da Carta Magna no traz a mesma restrio, pelo que possvel a interposio de Recurso Extraordinrio
contra deciso proferida pelas Turmas Recursais,18 apesar de serem rgos
de primeiro grau, com competncia recursal de segunda instncia.

17
18

176

Vide AgRg no Ag 68454 / SP, Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n 1995/0013128-5.


ROCHA, Felippe Borring. Obra citada na nota n 4, p. 167.

Aspectos Relevantes do Sistema Recursal dos Juizados Especiais

177

Em que pese haver discusso jurisprudencial e doutrinria, mostra-se


acertada fixao pelo artigo 5, 2, alnea e, da Resoluo n 07/2006 do
Conselho da Magistratura do TJERJ, como sendo do Juiz Coordenador das
Turmas Recursais, a competncia para fazer o juzo de admissibilidade dos
Recursos Extraordinrios, eventualmente interpostos, de deciso das
Turmas Recursais.
Embora os artigos 541 e 543 do Cdigo de Processo Civil disponham
sobre a competncia da Presidncia ou Vice-Presidncia para decidir sobre
a admisso do Recurso Extraordinrio, devem os dispositivos ser interpretados de forma consentnea Constituio da Repblica e Lei Federal que
estabelece o sistema dos Juizados Especiais, que tem a mesma hierarquia
que o Cdigo de Processo Civil. Nesse sentido, o esclarecedor voto do Ministro Seplveda Pertence:
o relatrio.
VOTO O Sr. Min. Seplveda Pertence (Relator): No tem
razo o agravante: A Constituio dispe ser da competncia do
STF julgar, mediante RE, as causas decididas em nica ou ltima
instncia, quando a deciso recorrida se enquadrar em pelo menos
uma das hipteses previstas nas alneas do inciso III do art. 102.
No h vinculao natureza do rgo jurisdicional prolator da
deciso recorrida, bastando que ocorra, como j dito, a configurao do que disposto no art. 102, da Constituio.
Assim, o STF j decidiu ser cabvel RE das decises que, emanadas do rgo colegiado a que se refere a Lei n 7.244/84 (art. 41,
1), resolvem processo instaurado perante Juizado Especial de
Pequenas Causas (Reclamao n 459). O mesmo entendimento foi
adotado sobre os Juizados Especiais Cveis e Criminais (Reclamao n 1.025).
Portanto, o art. 541 do CPC deve ser interpretado em conformidade com a Constituio, e no proceder de forma inversa, ou
seja, a interpretao da Carta tendo em vista o CPC; caso contrrio, jamais seria possvel ao STF conhecer de RE interposto contra
177

178

Gustavo Quintanilha Telles de Menezes

sentena em embargos infringentes de alada (execuo fiscal), ou


de julgamento de Turma Recursal de Juizado Especial.
Ressalte-se, tambm, que a redao do art. 541 de 1994 (Lei
8.950) e as leis que instituram os Juizados Especiais so posteriores (L. 9099/1995 e 10259/2001).
Nego provimento ao agravo regimental: o meu voto.
(AI-AgR 491932 / RS - RIO GRANDE DO SUL. AG. REG.
NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. Relator(a): Min. SEPLVEDA PERTENCE. Julgamento: 27/04/2004. rgo Julgador:
Primeira Turma)

Ainda concluindo pela competncia do Juiz Presidente ou Coordenador da Turma Recursal para aferir a admissibilidade do Recurso Extraordinrio, o Enunciado n 84 do Frum Nacional dos Juizados Especiais.
A Lei n 9.099/95, em seu artigo 59, expressamente veda a possibilidade de propositura de ao rescisria, medida harmnica com os princpios
que informam o sistema dos Juizados Especiais, notadamente ante a baixa
complexidade da matria. Se os recursos j so corretamente desestimulados, com mais razo a reviso de uma deciso transitada em julgado.
Assim, com o devido respeito tese daqueles que defendem que a Ao
Rescisria no foi expressamente excluda na Lei n 10.259/01, i.e., sugerem
o cabimento da mesma no mbito dos Juizados Federais,19 no vislumbramos tal possibilidade. O sistema processual dos Juizados Federais essencialmente o mesmo dos Juizados Estaduais, no havendo, entre as pontuais
diferenas, nada que enseje o cabimento daquilo que foi expressa e coerentemente excludo.

5. Concluses
Com efeito, impe-se concluir que o sistema processual estabelecido
para os Juizados Especiais, notadamente em sua parte recursal, teve xito

19

178

OLIVEIRA, Eduardo Fernandes de. Aes Rescisrias nos Juizados Especiais Federais. Publicado no
stio eletrnico da Escola da Advocacia Geral da Unio, Revista, Ano VII, Edio agosto 2007.

Aspectos Relevantes do Sistema Recursal dos Juizados Especiais

179

em organizar uma modalidade prpria de reviso de decises judiciais,


equacionando a indispensvel observncia das garantias que so intrnsecas
ao ordenamento, com a reduo das vias a serem percorridas, entre o
ingresso da demanda e a resposta judicial final.
Como disse o Ministro do Superior Tribunal de Justia Cesar Asfor
Rocha, em palestra realizada na Corregedoria do Tribunal de Justia do
Estado do Rio de Janeiro, preciso que o Poder Judicirio e o sistema jurdico preocupem-se com a integralidade do acesso Justia, no bastando
apenas viabilizar a entrada, mas tambm a sada do mesmo. Uma eficiente
disciplina recursal permite que o jurisdicionado receba com presteza o
resultado final da atuao judicial.
Uma menor diversidade de recursos e sucedneos, sem contudo oportunizar s partes a reviso das decises judiciais, um certo rigor, assim como
um procedimento mais eficiente e cujos problemas prticos mais frequentes j estejam pacificados em enunciados jurisprudenciais, so fatores que
vo ao encontro do ideal de desburocratizao e agilizao da Justia.
A contnua evoluo dos institutos processuais, associada a procedimentos cleres e suporte tecnolgico adequado, consubstanciam os recursos
necessrios para que os Juizados Especiais sigam cumprindo cada vez melhor
a sua misso de viabilizar com eficincia e qualidade o acesso Justia.

6. Bibliografia
ARAGO, gas Dirceu Moniz de. A Correio Parcial. Curitiba: Ed. LteroTcnica, 1958.
ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 2 ed. So Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2008, p. 220.
CAPPELLETTI, Mauro. BRYANT Garth. Access to Justice: The Wordwide
Movement to Make Rights Effective A General Report. Access to
Justice: A Word Survey. Mauro Cappelleti and Bryant Garth, Eds.
(Milan: Dott. A. Giuffre Editore, 1978).
MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. So Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2008.
179

180

Gustavo Quintanilha Telles de Menezes

MENEZES, Gustavo Quintanilha Telles de. Justia coletiva em uma sociedade de massa, publicado no Suplemento Especial de Doutrina da
Associao dos Magistrados do Estado Rio de Janeiro, Edio n 3, Rio
de Janeiro: 2008.
OLIVEIRA, Eduardo Fernandes de. Aes Rescisrias nos Juizados Especiais Federais. Publicado no stio eletrnico da Escola da Advocacia
Geral da Unio, Revista, Ano VII, Edio agosto 2007.
ROCHA, Felippe Borring. Juizados Especiais Cveis, Aspectos Polmicos da
Lei n 9.099, de 26/9/1995. 1 ed. Rio de Janeio: Editora Lmen Jris,
2000, p. 14.
SILVA, Jos Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais, 6 ed.
Malheiros: So Paulo, 2003

180

8
Da Recorribilidade das Decises
Interlocutrias nos Juizados Especiais
Cveis Federais e Estaduais
Bruno Garcia Redondo

SUMRIO: 1. Introduo. 2. Do Juizado de Pequenas Causas aos Juizados Especiais Cveis.


3. Os princpios informativos do processo nos Juizados Especiais. 4. Princpio da oralidade
e seus postulados fundamentais. 5. O recurso contra determinadas decises interlocutrias
nos Juizados Federais: agravo de instrumento. 6. O recurso contra determinadas decises
interlocutrias nos Juizados Estaduais: agravo de instrumento. 6.1. Primeiro fundamento:
interpretao sistemtica do Estatuto dos Juizados Especiais (Leis ns 9.099/95 e 10.259/2001).
6.2. Segundo fundamento: aplicao subsidiria do Cdigo de Processo Civil. 6.3. Terceiro
fundamento: agravo de instrumento como meio de evitar a indevida utilizao do mandado de segurana como sucedneo recursal. 6.4. Quarto fundamento: inexistncia, na
prtica, de efetiva concentrao de atos processuais em audincia. 6.5. Quinto fundamento: ponderao de princpios e de interesses em conflito. 7. Concluso. 8. Referncias bibliogrficas.

1. Introduo
O Juizado Especial atualmente em dos mais importantes meios processuais para o acesso do jurisdicionado ao Poder Judicirio. As Leis ns 9.099/95
e 10.259/2001, aliadas a outros diplomas, mais voltados para o direito material (v.g., Lei n 8.078/90), tm contribudo para a ampliao tanto de Juizados
Especiais instalados pelo pas, quanto de demandas a eles submetidas.
A ainda grave crise resultante da superlotao do Poder Judicirio
acentua o questionamento de diversos pontos relativos aos Juizados Especiais, no que tange a aspectos eminentemente prticos e, principalmente,
tcnico-jurdicos que envolvem a cincia do Direito Processual Civil.
O desenvolvimento da atividade judiciria no mbito dos Juizados
Especiais gerou e permanece gerando divergncia nos planos doutrinrio e jurisprudencial, motivando, assim, o presente estudo sobre questo de
181

182

Bruno Garcia Redondo

relevncia prtica e tcnico-cientfica: a recorribilidade das decises interlocutrias proferidas no mbito dos processos em curso perante Juizados
Especiais Cveis Federais e Estaduais, especialmente daquelas capazes de
causar leso grave e de difcil reparao para a parte.
As questes de fundo trazidas por esse tema exigem consideraes preliminares, ainda que sumrias, sobre o contexto jurdico-institucional que
culminou com a criao dos Juizados Especiais Cveis e sobre os seus princpios norteadores.

2. Do Juizado de Pequenas Causas aos Juizados Especiais Cveis


O Juizado Especial de Pequenas Causas, institudo pela Lei n 7.244/84,
foi idealizado como uma das formas de solucionar o fenmeno jurdicosocial que Kazuo Watanabe denominou de litigiosidade contida, que consistiria na parcela de conflitos de interesses que no eram levados ao Poder
Judicirio devido a trs fatores:
(i)

inadequao da estrutura do Judicirio, vigente poca,


para solucionar conflitos individuais, principalmente os de
pequena expresso econmica;
(ii) tratamento legislativo insuficiente, tanto no plano material, quanto no plano processual, dos conflitos coletivos e
difusos; e
(iii) tratamento processual inadequado das causas de reduzido
valor econmico, resultante da inaptido do Judicirio
para proporcionar uma clere e no-custosa soluo dessa
espcie de controvrsia.

O Juizado Especial de Pequenas Causas teria, assim, dentre os seus objetivos, proporcionar a resoluo do terceiro fator desse fenmeno, para que fosse
resgatada a credibilidade popular de que o Poder Judicirio seria merecedor1 e

182

WATANABE, Kazuo. Filosofia e caractersticas bsicas do juizado especial de pequenas causas. In:
WATANABE, Kazuo (coord.). Juizado especial de pequenas causas: Lei 7.244, de 7 de novembro de
1984. So Paulo: RT, 1985, p. 02-03.

Da Recorribilidade das Decises Interlocutrias


nos Juizados Especiais Cveis Federais e Estaduais

183

facilitado o acesso Justia2 em razo de suas caractersticas principais: gratuidade em primeiro grau; desnecessidade de assistncia de advogado em
determinadas hipteses; emprego de recursos tecnolgicos para proporcionar maior celeridade na tramitao processual; e duplo grau de jurisdio.3
A Constituio Federal, promulgada em 1988, passou a prever, no inciso I de seu art. 98, a competncia da Unio e dos Estados para a criao de
Juizados Especiais providos por juzes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliao, o julgamento e a execuo de causas cveis de
menor complexidade e infraes penais de menor potencial ofensivo,
mediante os procedimentos oral e sumarissimo.
Posteriormente, a Lei n 9.099/95 revogou a Lei n 7.244/84 e disciplinou a criao dos chamados Juizados Especiais Cveis e Criminais no mbito da Justia Estadual.
Por seu turno, a Lei n 10.259/2001 passou a regular os Juizados Especiais Cveis e Criminais no mbito da Justia Federal.

3. Os princpios informativos do processo nos Juizados


Especiais
Para que o resultado esperado acesso Justia como forma de melhor
equacionar a alarmante litigiosidade reprimida pudesse ser alcanado, o
art. 2 da Lei n 7.244/84 estabeleceu que os Juizados Especiais de Pequenas
Causas seriam orientados pelos seguintes critrios: oralidade, simplicidade,
informalidade, economia processual, celeridade e busca da conciliao.
Posteriormente, com o advento dos Juizados Especiais Cveis e Criminais, foi reproduzida, no art. 2 da Lei n 9.099/95, exatamente a mesma

2
3

Nesse sentido, Paulo Cezar Pinheiro Carneiro. Acesso justia: juizados especiais cveis e ao civil
pblica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 117-119.
Assim leciona Kazuo Watanabe: O JEPC atende, em suma, ao justo anseio de todo cidado em ser ouvido em seus problemas jurdicos. a Justia do cidado comum, que lesado nas compras que faz, nos
servios que contrata, nos acidentes que sofre, enfim do cidado que se v envolvido em conflitos de
pequena expresso econmica, que ocorrem diariamente aos milhares, sem que saiba a quem recorrer
para solucion-los de forma pronta, eficaz e sem muito gasto. Essas idias todas esto contidas na Lei
7.244/84. O modo, a forma e a mentalidade com que for implantado o Juizado Especial de Pequenas
Causas, podero viabiliz-las plenamente, ou compromet-las de modo irremedivel (Op. cit., p. 07).

183

184

Bruno Garcia Redondo

redao que antes constava do art. 2 da Lei n 7.244/84, sendo reiterados,


assim, todos aqueles princpios informativos.
A observncia do princpio da oralidade traz, como conseqncia, a
diretriz de que, nos Juizados Especiais Cveis, o processo deve desenvolverse com prevalncia da palavra falada sobre a palavra escrita. Por se tratar de
princpio relacionado ao objeto do presente estudo, sua anlise ser pormenorizada em tpico prprio.
Por seu turno, o princpio da informalidade ou da simplicidade impe
que o processo em curso nos Juizados Especiais Cveis seja inteiramente
deformalizado,4 mediante o abandono do formalismo que leva exacerbao das formas processuais. Em que pese ser necessria, para a regularidade
do ato jurdico, a observncia da forma exigida para o mesmo, esse princpio promove a abolio do exagero formal, tornando possvel o aproveitamento do ato processual sempre que o resultado ao qual se dirige venha a
ser alcanado, ainda que praticado por forma diversa da prescrita em lei
(art. 13 da Lei n 9.099/95).
De sua vez, o princpio da economia processual impe que seja extrado, do processo o mximo de resultado (proveito ou vantagem) com o mnimo de dispndio de energias e de tempo.
De acordo com o princpio da celeridade processual, o processo em
curso nos Juizados Especiais Cveis deve demorar o mnimo possvel.
Importante observar que esse princpio no preconiza um processo demasiadamente clere, j que tanto um processo extremamente demorado,
quanto outro extremamente breve, provavelmente sero incapazes de produzir resultados justos. O que se objetiva com a adoo desse princpio

184

Ada Pellegrini Grinover utiliza o conceito de deformalizao em dois sentidos (deformalizao do processo e deformalizao das controvrsias) e explica a diferena do seguinte modo: (...) de um lado, a
deformalizao do prprio processo, utilizando-se a tcnica processual em busca de um processo mais
simples, rpido, econmico, de acesso fcil e direto, apto a solucionar com eficincia tipos particulares
de conflitos de interesses. De outro lado, a deformalizao das controvrsias, buscando para elas, de
acordo com sua natureza, equivalentes jurisdicionais, como vias alternativas ao processo, capazes de
evit-lo, para solucion-las mediante intrumentos institucionalizados de mediao. A deformalizao
do processo insere-se, portanto, no filo jurisdicional, enquanto a deformalizao das controvrsias utiliza-se de meios extrajudiciais (Deformalizao do processo e deformalizao das controvrsias. In:
Novas tendncias do direito processual. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1990, p. 179. Artigo
tambm publicado na Revista de Processo RePro, So Paulo: RT, n 46, p. 60-82, abr./jun. 1987).

Da Recorribilidade das Decises Interlocutrias


nos Juizados Especiais Cveis Federais e Estaduais

185

que o processo seja o mais clere possvel, para que demore apenas o tempo
estritamente necessrio produo de um resultado justo. A tcnica processual utilizada pelo Estatuto dos Juizados foi, essencialmente, a supresso e a
abreviao de certas fases e etapas, e a concentrao de atos processuais.
Finalmente, a autocomposio revela-se como uma das caractersticas
peculiares dos Juizados Especiais Cveis, j que, nestes, deve ser preeminentemente buscada, como forma de contribuir para a pacificao social.5 O
esforo no sentido da autocomposio , assim, mais acentuado nos Juizados
Especiais do que no processo civil comum.6

4. Princpio da oralidade e seus postulados fundamentais


O princpio da oralidade est significativamente presente nos Juizados
Especiais Cveis, sendo um de seus princpios informativos (art. 2 da Lei n
9.099/95).
Chiovenda ensina que o modelo do processo oral baseia-se em 05 (cinco) postulados fundamentais: (i) prevalncia da palavra falada sobre a escrita; (ii) concentrao dos atos processuais em audincia; (iii) imediatidade

Dessa forma, Cndido Rangel Dinamarco: E o art. 2 proclama tambm a conciliao, como mola-mestra que h de informar e impulsionar todo o processo das pequenas causas numa clara recomendao
aos aplicadores do novo sistema, no sentido de darem o melhor do seu empenho para a obteno da autocomposio dos conflitos pelas prprias partes. (Princpios e critrios no processo das pequenas causas.
In: WATANABE, Kazuo (coord.). Op. cit., p. 105). Em outra obra, o mesmo autor assim se manifesta: O
legislador teve conscincia, tambm, a partir de experincias brasileiras anteriores (esp., Constituio do
Imprio: v. seu at. 161) e modelos processuais estrangeiros, de que a conciliao constitui poderosssima
arma de pacificao social, dada a natural tendncia das pessoas a aceitar e cumprir as solues que elas
prprias elaboraram ou cujo preparo aceitaram voluntariamente. O valor social da conciliao foi tambm posto em destaque no art. 2 da Lei das Pequenas Causas, onde so programados os princpios e critrios do novo processo institudo (Manual das pequenas causas. So Paulo: RT, 1986, p. 03).
Ao analisar estatstica dos anos de 1992 e 1993 do Rio Grande do Sul, Geisa de Assis Rodrigues conclui
que o xito na conduo de solues negociadas uma marca dos Juizados Especiais Cveis, obtendose um grau de acomodao do dissenso bem razovel. (Juizados especiais cveis e aes coletivas. Rio
de Janeiro: Forense, 1997, p. 63). Por seu turno, como resultado de pesquisa desenvolvida nos anos de
2004 a 2006 pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais CEBEPEJ, sob a orientao do
Prof. Kazuo Watanabe, Pierpaolo Cruz Bottini observou que no que concerne aos resultados dos
Juizados, verifica-se um percentual de acordo de 34,5%, ndice que certamente poderia ser ampliado
com polticas de qualificao de conciliadores e de capacitao dos agentes da sociedade civil competentes para buscar uma soluo consensual para os litgios apresentados (Cf. Pesquisa Nacional sobre
os Juizados Especiais Cveis, p. 09. Disponvel em: <http://www.cebepej.org.br>. Acesso em: 13 jan.
2009).

185

186

Bruno Garcia Redondo

entre o juiz e a fonte da prova oral; (iv) identidade fsica do juiz; (v) irrecorribilidade das decises interlocutrias em separado.7
A prevalncia da palavra falada sobre a escrita, primeiro postulado da
oralidade, no exige a excluso absoluta da escrita no processo, j que esta,
como meio aperfeioado, que , de exprimir o pensamento e de conservarlhe duradouramente a expresso, no pode deixar de ocupar no processo o
lugar, que ocupa em qualquer relao da vida.8 Por certo, no processo oral
tambm existe palavra escrita, mas o uso da palavra falada deve predominar
em relao quela.
Apesar de a prtica de atos processuais de modo verbal revelar-se cada
vez mais rara, importante observar que a prpria Lei dos Juizados
Especiais admite a realizao de diversos atos de forma oral, tais como: propositura da demanda (art. 14 da Lei n 9.099/95); outorga de poderes gerais
ao advogado ( 3 do art. 9); oferecimento de resposta (art. 30); interposio de embargos de declarao (art. 49); e requerimento de execuo (inciso IV do art. 52).
A concentrao do atos processuais em audincia, segundo postulado
fundamental da oralidade, impe que todos os atos processuais sejam praticados em uma s oportunidade, isto , na audincia. Sendo necessrio realizar mais de uma audincia, ou adiar a anteriormente designada, deve a
prxima audincia ser realizada com o menor intervalo de tempo possvel
em relao anterior, o que contribuir, inclusive, para manter a imediatidade entre o juiz e a fonte da prova oral. Segundo Chiovenda, a diferena
entre o processo oral e o escrito fica evidente nesse ponto:
E aqui melhor se manifesta a diferena entre o processo oral
e o escrito: que, ao passo que o oral tende necessariamente a restringir-se a uma ou poucas audincias prximas, nas quais se
desenvolvem tdas as atividades processuais, o processo escrito, ao
contrrio, difunde-se numa srie indefinida de fases, pouco
importando que uma atividade se desenvolva mesmo a grande dis-

7
8

186

CHIOVENDA, Giuseppe. Instituies de direito processual civil. Trad. bras. J. Guimares Menegale. 3.
ed. So Paulo: Saraiva, 1969, v. 3, p. 50-55.
CHIOVENDA, Giuseppe. Op. cit., p. 51.

Da Recorribilidade das Decises Interlocutrias


nos Juizados Especiais Cveis Federais e Estaduais

187

tncia de outra, de vez que apoiado nos atos escritos que o remoto juiz ter, um dia, de julgar.9

No caso dos Juizados Especiais Cveis, a busca pela concentrao dos


atos processuais em audincia evidente, como se v do procedimento e da
sequncia de atos legalmente previstos: realizao da sesso de conciliao
imediatamente, caso as partes se encontrem presentes no instante da propositura da demanda (art. 17 da Lei n 9.099/95), ou em at 15 dias aps o registro da demanda (art. 16); prolao de sentena na prpria sesso de conciliao, caso o demandado a ela no comparea (art. 23); frustrada a conciliao,
realizao imediata ou em at 15 dias da audincia de instruo e julgamento (caput e pargrafo nico do art. 27); e prtica de diversos atos durante a audincia de instruo e julgamento, tais como apresentao da resposta (art. 30), contraditrio sobre os documentos (pargrafo nico do art. 29),
colheita das provas e oitiva das partes (arts. 28 e 33), deciso sobre todos os
incidentes (art. 29) e prolao da sentena, a qual deve ocorrer ao final da
audincia, e no em momento posterior (arts. 28, 38 e 40).10
Em que pese a aparente celeridade do procedimento, a prtica forense
revela que a litigiosidade exacerbada tem gerado uma superlotao dos
Juizados, ocasionando, em inmeras Comarcas e Sees Judicirias, a desconcentrao e o fracionamento dos atos processuais, sendo cada vez mais
alongado o procedimento e maior o intervalo de tempo entre as audincias
e entre elas e a prolao da sentena.

9
10

CHIOVENDA, Giuseppe. Op. cit., p. 54-55.


Em 1986, ao comentar a Lei dos Juizados de Pequenas Causas, aprovada no ano anterior, Cndido Rangel
Dinamarco j fazia um apelo para que os juzes observassem a redao legal e, assim, viessem a proferir
sentena em audincia: Depois de instruda a causa, o juiz proferir a sentena, sempre oral e sucintamente (v. art. 38). A lei no prev que o juiz deixe de proferi-la na audincia, como no processo civil
comum, augurando-se que os juzes no instaurem essa prtica. (...) A lei no prev oportunidade diferente para a prolao da sentena e o juiz das pequenas causas no deve instalar a prtica de sentenas posteriores. (...) Sentena proferida depois significa prolongamento das aflies e expectativas das partes e ainda
a necessidade de intimao, que complica e encarece (Op. cit., p. 83 e 92). Duas dcadas aps as lies de
Dinamarco, Alexandre Freitas Cmara analisa e critica a prtica dos dias atuais, em que as sentenas
comumente deixam de ser proferidas em audincia: Ocorre que isto se d na teoria mas no na prtica.
Como se diz usualmente, em tom jocoso, na prtica a teoria outra. Isto porque na prtica muitos juzes
tm atuado nos Juizados Especiais Cveis como se estivessem em juzos cveis comuns, e desrespeitam o
comando contido no art. 28 da Lei n 9.099/95. Em outras palavras, muitos juzes encerram a audincia
sem proferir sentena, como se incidisse na hiptese o art. 456 do CPC (Juizados especiais cveis estaduais
e federais: uma abordagem crtica. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 12-13).

187

188

Bruno Garcia Redondo

A imediatidade entre o juiz e a fonte da prova oral, terceiro postulado


da oralidade, traz a necessidade de contato direto entre o magistrado e as
fontes da prova oral isto , as pessoas que iro prestar depoimento no processo (partes, testemunhas e perito) sendo importante observar que o sistema processual civil brasileiro adota o exame indireto, no qual todas as
perguntas so feitas, ao depoente, pelo juiz. Nesse sentido, somente o
magistrado que presidiu a audincia de instruo e julgamento quem pode
valorar as provas produzidas.11 Em consequncia, parte da doutrina sustenta com razo que, em um processo oral, o rgo julgador do recurso
encontra-se impedido de reexaminar provas, j que no teve contato imediato com as fontes da prova, sendo-lhe permitido apenas verificar se o
direito foi corretamente aplicado ao caso.12
Analisando, especificamente, a situao dos Juizados Especiais Cveis,
tambm possvel verificar a busca pela imediatidade entre o juiz e a fonte
da prova oral, j que a sentena deve ser proferida ao final da audincia de
instruo e julgamento (art. 28 da Lei n 9.099/95).
A identidade fsica do juiz, quarto postulado fundamental da oralidade, impe a vinculao do juiz ao processo.13 Nesse sentido, o magistrado
que venha a colher a prova oral fica vinculado ao processo para o fim de
proferir a sentena, seja ao final da audincia de instruo e julgamento,
seja posteriormente.
No caso dos Juizados Especiais Cveis, tambm encontra-se presente a
identidade fsica do juiz, uma vez que, como visto, a sentena deve ser proferida ao final da audincia de instruo e julgamento (art. 28 da Lei n 9.099/95).
Finalmente, a irrecorribilidade das decises interlocutrias em separado,
quinto postulado da oralidade, acarreta a impossibilidade de recurso, em separado, contra as decises interlocutrias.14 por essa razo que o entendimen-

11
12

13
14

188

Assim leciona Giuseppe Chiovenda: Proclama, esta, verdade, que no podem concorrer na deliberao
da sentena seno os juzes que assistiram discusso da causa (art. 375, Cd. Proc. Civil) (Op. cit., p. 53).
Nesse sentido, Alexandre Freitas Cmara. Op. cit., p. 12 e 144. Em sentido contrrio, Felippe Borring
Rocha. Juizados especiais cveis: aspectos polmicos da Lei n 9.099, de 26.9.1995. 5. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009, p. 143.
CHIOVENDA, Giuseppe. Op. cit., p. 53-54.
CHIOVENDA, Giuseppe. Op. cit., p. 55.

Da Recorribilidade das Decises Interlocutrias


nos Juizados Especiais Cveis Federais e Estaduais

189

to predominante segue no sentido de no admitir a interposio de agravo de


instrumento, vendo-se a parte obrigada a impetrar mandado de segurana.
Decorre desse postulado a inexistncia de precluso quanto s matrias
decididas em momento anterior ao da prolao da sentena. Sendo proferida
deciso antes da audincia de instruo e julgamento, ou sendo decididos eventuais incidentes durante a audincia, todas essas matrias e decises podero
e devero ser atacadas pela parte na ocasio do recurso contra a sentena.15
Convm observar que a aplicao do postulado da irrecorribilidade das
decises interlocutrias somente se justifica caso outro postulado tambm
esteja sendo observado, qual seja, o da concentrao dos atos processuais em
audincia. Afinal, sendo todos os atos processuais praticados em audincia,
e nesta sendo decididos todos os incidentes e proferida a sentena, pouco
espao se abre para a prolao de deciso interlocutria, devendo a parte
insurgir-se, desde logo, contra a sentena.
Entretanto, no momento em que deixa de existir efetiva concentrao
dos atos processuais em audincia, vindo o procedimento a tornar-se cada
vez mais alongado e fracionado, com etapas distanciadas umas das outras,
no mais se justifica a irrecorribilidade de todas as decises interlocutrias,
sendo possvel a interposio de agravo de instrumento16 contra aquelas
capazes de causar leso grave e de difcil reparao para a parte, como ser
analisado nos tpicos a seguir.

5. O recurso contra determinadas decises interlocutrias


nos Juizados Federais: agravo de instrumento
O art. 4 da Lei n 10.259/2001 confere ao juiz o poder de, a requerimento da parte ou de ofcio, deferir medidas cautelares no curso do processo, para
evitar dano de difcil reparao. Trata-se de regra que consagra, no mbito dos
Juizados Federais, o poder geral de cautela do magistrado, que j se encontrava positivado, para o sistema processual comum, nos arts. 797 a 799 do CPC.

15
16

Igualmente, Cndido Rangel Dinamarco. Op. cit., p. 99-100; Alexandre Freitas Cmara. Op. cit., p. 152153; e Felippe Borring Rocha. Op. cit., p. 145.
Desse modo, Alexandre Freitas Cmara. Op. cit., p. 15, 151-154.

189

190

Bruno Garcia Redondo

A redao do dispositivo, entretanto, no adequada, j que se refere


apenas s medidas cautelares. Na realidade, ao magistrado permitido, no
curso do processo, deferir pedido de tutela tanto cautelar destinada a assegurar a efetividade de outra espcie de tutela, qual seja, a satisfativa, resguardando, assim, a prpria atividade jurisdicional quanto satisfativa
(tutela antecipada) destinada atuao prtica do direito material, satisfazendo-o ainda que com certo grau de provisoriedade.
A interpretao adequada do art. 4 da lei dos Juizados Federais , portanto, aquela que confere poder ao magistrado para, no curso do processo
perante o Juizado Federal, deferir medidas de urgncia, sejam cautelares ou
satistativas (antecipatrias),17-18 de ofcio19 ou a requerimento da parte.20

17

18

19

20

190

Nesse sentido, Alexandre Freitas Cmara. Op. cit., p. 245; Joel Dias Figueira Jnior e Fernando da Costa
Tourinho Neto. Juizados especiais federais cveis e criminais. 2 ed. So Paulo: RT, 2007, p. 221; e
Guilherme Bollorini Pereira. Juizados especiais federais cveis: questes de processo e de procedimento no contexto do acesso justia. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 157. De forma semelhante, Enunciado n 26 do FONAJE: So cabveis a tutela acautelatria e a antecipatria nos Juizados
Especiais Cveis. (redao aprovada no XXIV Frum Nacional de Juizados Especiais, realizado em
Florianpolis SC nos dias 12 a 14 de novembro de 2008). Igualmente, Enunciado n 14 das Turmas
Recursais dos Juizados Especiais Federais da Seo Judiciria do Rio de Janeiro: Sendo possvel a concesso de antecipao dos efeitos da tutela no mbito do JEF, ser vedado o ajuizamento de ao cautelar autnoma, ressalvada a possibilidade de pedido incidental cautelar (art. 4 da L. 10.259/2001), desde
que o Juizado seja competente para apreciar o pedido principal. (redao aprovada na Sesso Conjunta
realizada em 10.10.2002, DOERJ 19.09.2003).
De modo contrrio, Disney de Melo Ramos combina o art. 2 da Lei n 9.494/97 com o art. 1 da Lei n
8.437/92 e conclui que, como regra, no seria possvel a tutela antecipada nos Juizados Federais, mas
apenas a cautelar. Entretanto, o autor reconhece a necessidade da anlise objetiva de cada caso especfico, para que seja verificado se, excepcionalmente, teria cabimento a tutela antecipada na situao sob
exame (Manual prtico do juizado especial na justia federal. Rio de Janeiro; Forense, 2009, p. 110).
Apesar de o presente estudo no ser o mbito prprio para o desenvolvimento deste ponto, convm afastar-nos, momentaneamente, do tema central deste trabalho para que o leitor possa compreender nossa afirmativa. A observao necessria porque compartilhamos do entendimento que admite o deferimento, de
ofcio pelo magistrado, de qualquer espcie de tutela de urgncia, seja cautelar, seja satisfativa (conhecida
por tutela antecipada). Em que pese se tratar de posicionamento minoritrio em doutrina, este o que se
revela o mais adequado, j que, sendo a tutela de urgncia cautelar e a tutela de urgncia satisfativa duas
espcies do mesmo gnero, o regime jurdico das tutelas de urgncia deve ser unificado e, portanto, sistemtica a interpretao de todos os dispositivos do CPC a ele referentes. Inafastvel, assim, a concluso de
que a interpretao conjunta do art. 273 e dos arts. 797 a 799 do CPC revela que o juiz pode, excepcionalmente, deferir medidas de urgncia ex officio. por essa razo que afirmamos que a interpretao adequada do art. 4 da Lei n 10.259/2001 a que permite ao magistrado deferir, de ofcio, qualquer espcie de
tutela de urgncia, seja cautelar, seja satisfativa. Em sentido semelhante, George Marmelstein Lima.
Antecipao da tutela de ofcio? Revista do Tribunal Regional Federal da 5 Regio, v. 4, p. 17-20, 2002;
Guilherme Bollorini Pereira. Op. cit., p. 157-158; TRF, 1. R., 2. T., AC 2002.37.00.008775-9/MA, Rel. Des.
Fed. Francisco de Assis Betti, j. 24.09.2008, e-DJF1 26.01.2009, p. 36; e TRF, 3. R., 7. T., AC
2006.03.99.013118-0, Rel. Des. Fed. Walter do Amaral, j. 01.12.2008, e-DJF3 21.01.2009, p. 800.
O Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais CEBEPEJ desenvolveu, sob a orientao do Prof.
Kazuo Watanabe, no perodo compreendido entre dezembro de 2004 e fevereiro de 2006, pesquisa inti-

Da Recorribilidade das Decises Interlocutrias


nos Juizados Especiais Cveis Federais e Estaduais

191

Por seu turno, o art. 5 da Lei n 10.259/2001, em redao tambm criticvel, estabelece que,exceto nos casos do art. 4, somente ser admitido
recurso de sentena definitiva.
Diversas falhas podem ser apontadas no texto legal: (i) remisso ao art.
4, que se refere apenas ao deferimento de medidas cautelares; (ii) afirmao de que, como regra, somente seria cabvel recurso contra sentena definitiva; e (iii) no que tange hiptese excepcional, no identificado qual o
recurso cabvel contra deciso interlocutria, nem o prazo para sua interposio, tampouco as regras de seu processamento.
Quanto ao primeiro aspecto, no se deve entender que seria cabvel
recurso apenas contra deciso que defere medida cautelar, por 02 (dois)
fundamentos:
(i)

a impropriedade da palavra defere reside no seguinte


aspecto: tanto a deciso que defere, quanto a deciso que
indefere, possuem idntico potencial danoso parte contrria. Deferido o pedido do autor, sua efetivao pode significar risco de dano ao ru; indeferido o pleito, sua noefetivao pode causar dano ao autor; e
(ii) a impropriedade da expresso medida cautelar tal
como analisada nos pargrafos anteriores, em que foi analisado o art. 4 da referida lei consiste no fato de que
permitido ao magistrado apreciar, no curso do processo,
pedido de tutela de urgncia, gnero do qual so espcies
tanto a tutela cautelar, quanto a tutela satisfativa (tutela
antecipada).

tulada Avaliao dos Juizados Especiais Cveis, na qual foram examinados os processos distribudos
no ano de 2002. Essa pesquisa analisou dados colhidos de forma emprica junto a alguns dentre
os diversos Juizados Especiais instalados em 09 (nove) cidades: Rio de Janeiro, So Paulo, Porto
Alegre, Belo Horizonte, Salvador, Goinia, Fortaleza, Belm e Macap. Como resultado da pesquisa,
verificou-se que aproximadamente 15% (quinze por cento) das peties iniciais distribudas aos
Juizados, em 2002, continham pedido liminar de tutela antecipada ou cautelar (Cf. Pesquisa Nacional
sobre os Juizados Especiais Cveis, p. 29. Disponvel em: <http://www.cebepej.org.br>. Acesso em: 13
jan. 2009).

191

192

Bruno Garcia Redondo

A interpretao mais adequada do art. 5 da Lei n 10.259/2001 no


que se refere ao seu primeiro aspecto , assim, a que admite recurso contra deciso interlocutria capaz de causar dano grave parte (art. 522 do
CPC), tal como a que aprecia deferindo ou indeferindo pedido de tutela de urgncia, de natureza cautelar ou satisfativa.21
No que tange ao segundo aspecto, v-se que o referido dispositivo no
identifica o recurso cabvel contra deciso interlocutria, nem o prazo para
sua interposio, tampouco as regras de seu processamento.
Apesar de a lei dos Juizados Federais no conceder qualquer denominao a esse recurso, evidente que se trata de agravo de instrumento, j
que esse o recurso cabvel contra deciso interlocutria capaz de causar
leso grave e de difcil reparao para a parte (art. 522 do CPC).
Tendo em vista a inexistncia de regras, no Estatuto dos Juizados, que
regulem o procedimento desse recurso, deve seu processamento seguir as
regras gerais do agravo de instrumento, previstas no Cdigo de Processo
Civil: prazo de 10 (dez) dias para interposio (art. 522);22 assistncia obrigatria por advogado ( 2 do art. 41 da Lei n 9.099/95); apresentao das
cpias dos documentos obrigatrios e facultativos (art. 525 do CPC); interposio perante a Turma Recursal, que o juzo ad quem (art. 524); juntada de cpia do agravo em 03 (trs) dias perante o juzo a quo (art. 526 do
CPC) etc.
Nessa esteira, a interpretao mais adequada do art. 5 da Lei n
10.259/2001 no que se refere ao seu segundo aspecto a que reconhece
que o recurso contra deciso interlocutria capaz de causar leso grave e de
difcil reparao para a parte o agravo de instrumento, cujo processamento deve seguir as regras estabelecidas no Cdigo de Processo Civil, que, por
ser a norma geral em matria processual, deve ser aplicado subsidiariamen-

21

22

192

Nesse sentido, Alexandre Freitas Cmara. Op. cit., p. 245; Joel Dias Figueira Jnior e Fernando da
Costa Tourinho Neto. Op. cit., p. 288-292; e Guilherme Bollorini Pereira. Op. cit., p. 193-194. De
forma semelhante, Enunciado n 13 das Turmas Recursais dos Juizados Especiais Federais da Seo
Judiciria do Rio de Janeiro: Somente caber recurso de deciso do deferimento ou indeferimento de liminar. (redao aprovada na Sesso Conjunta realizada em 04.06.2002, DOERJ 19.09.2003)
Enunciado n 10 das Turmas Recursais do Juizado Especial Federal de So Paulo SP: de 10 (dez)
dias o prazo para interposio de recurso contra medida cautelar prevista no art. 4 da Lei n
10.259/2001 (DOESP 07.06.2004).

Da Recorribilidade das Decises Interlocutrias


nos Juizados Especiais Cveis Federais e Estaduais

193

te, com as necessrias compatibilizaes (v.g., onde estiver escrito


Tribunal, deve-se ler Turma Recursal).23-24
No que tange ao terceiro aspecto, no se deve entender que seria cabvel recurso apenas contra sentena definitiva. A palavra definitiva revelase imprpria porque enseja a equivocada interpretao de que apenas as
sentenas com contedo do art. 269 do CPC seriam recorrveis.
Como se sabe, dentre os diversos critrios que a doutrina utiliza para o
estudo dos atos do juiz, comum a classificao das sentenas em terminativas e definitivas. Enquanto as primeiras no resolvem o mrito (art. 267
do CPC), as segundas implicam resoluo do mrito (art. 269 do CPC).
Verifica-se, assim, a impropriedade da redao do dispositivo da Lei dos
Juizados Federais, porquanto inexiste fundamento jurdico capaz de justificar o cabimento de recurso apenas contra as sentenas definitivas, pois a
irrecorribilidade das terminativas geraria a utilizao indevida do mandado
de segurana como sucedneo recursal.
Desse modo, a interpretao mais adequada do art. 5 da Lei n
10.259/2001, no que se refere ao seu terceiro aspecto, a que admite apelao porque esse o recurso por excelncia, cabvel contra qualquer sentena (art. 513 do CPC)25 contra qualquer espcie de sentena, seja terminativa, seja definitiva.26

23

24

25

26

Igualmente, Alexandre Freitas Cmara. Op. cit., p. 245; Joel Dias Figueira Jnior e Fernando da Costa
Tourinho Neto. Op. cit., p. 290; Guilherme Bollorini Pereira. Op. cit., p. 193-194; e Ricardo Cunha
Chimenti. Teoria e prtica dos juizados especiais cveis estaduais e federais. 10 ed. So Paulo: Saraiva,
2008, p. 202.
Em sentido contrrio, Mantovanni Colares Cavalcante defende a recorribilidade imediata das decises
interlocutrias nos Juizados Federais por meio de recurso inominado, que no deveria observar os
rigores do agravo de instrumento previsto no CPC: seu prazo seria o de 10 dias (analogia ao art. 42 da
Lei n 9.099/95), no haveria de ser observado o art. 526 do CPC e sua interposio deveria ocorrer
perante a Turma Recursal (Recursos nos juizados especiais. 2 ed. So Paulo: Dialtica, 2007, p. 110112). Por seu turno, Patrcia Trunfo Teixeira sustenta que dito recurso inominado deveria ser interposto perante o prprio juiz da causa, prolator da deciso (Aspectos cveis e a aplicao subsidiria da Lei
n 9.099/95 nos Juizados Especiais da Justia Federal. In: GUEDES, Jefferson Cars (coord.). Juizados
especiais federais. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 461).
Desse modo, Weber Martins Batista e Luiz Fux. Juizados especiais cveis e criminais e suspenso condicional do processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 238; e Alexandre Freitas Cmara. Op. cit.,
p. 244. Em sentido contrrio, entendendo que o recurso contra a sentena nos Juizados no a apelao, Cndido Rangel Dinamarco. Op. cit., p. 98.
Dessa forma, Guilherme Bollorini Pereira. Op. cit., p. 191-193. Em sentido contrrio, sustentando o
cabimento de recurso apenas contra sentena definitiva, Disney de Melo Ramos. Op. cit., p. 44.

193

194

Bruno Garcia Redondo

6. O recurso contra determinadas decises interlocutrias


nos Juizados Estaduais: agravo de instrumento
Como visto, a interpretao mais tcnica e adequada do art. 5 da Lei
n 10.259/2001 a que reconhece o cabimento da interposio de agravo de
instrumento contra deciso interlocutria capaz de causar leso grave e de
difcil reparao para a parte.
Por seu turno, a Lei n 9.099/95, que regula os Juizados Especiais
Estaduais, no prev, de forma expressa, a possibilidade de recurso contra
deciso interlocutria. Em seu art. 41 h referncia apenas ao recurso contra a sentena, razo pela qual o entendimento predominante segue no sentido de no admitir a interposio de agravo de instrumento no mbito dos
Juizados Estaduais.27-28
Em que pese a omisso da Lei dos Juizados Estaduais a esse respeito,
imperioso reconhecer o cabimento de recurso por meio de agravo de instrumento contra determinadas decises interlocutrias, sempre que a sua
excepcional recorribilidade imediata mostrar-se indispensvel,29 tal como

27

28

29

194

Considerando inadmissvel o recurso contra deciso interlocutria proferida no mbito de processo em


curso perante Juizado Estadual, Cndido Rangel Dinamarco. Op. cit., p. 98-100; Nelson Nery Junior e
Rosa Maria de Andrade Nery. Cdigo de processo civil comentado e legislao extravagante. 10. ed. So
Paulo: RT, 2007, p. 1.487; Paulo Marotta Moreira Wander. Juizados especiais cveis. Belo Horizonte:
Del Rey, 1996, p. 108; Mantovanni Colares Cavalcante. Op. cit., p. 57; Eduardo Sodr. Juizados especiais cveis: processo de conhecimento. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 111-113; Jos Maria de
Melo e Mrio Parente Tefilo Neto. Lei dos juizados especiais comentada. Curitiba: Juru, 1997, p. 67.
Igualmente, Enunciado Jurdico n 11.5. da Consolidao dos Enunciados Jurdicos resultantes dos
Encontros de Juzes de Juizados Especiais Cveis e Turmas Recursais do Estado do Rio de Janeiro (Aviso
TJRJ n 23/2008, DO 03.07.2008): Agravo de instrumento Inadmissibilidade. No sistema de Juizados
Especiais Cveis, inadmissvel a interposio de agravo contra deciso interlocutria, anterior, ou posterior sentena (Aviso TJRJ n 23/2008, DOERJ 03.07.2008).
Defendendo a inadmissibilidade de agravo de instrumento, mas sustentando o cabimento de agravo
retido, Humberto Theodoro Jnior. Curso de direito processual civil. 38 ed. Rio de Janeiro: Forense,
2007, v. 3, p. 479. De modo contrrio, sustentando com razo o descabimento do agravo retido nos
Juizados Especiais, Felippe Borring Rocha. Op. cit., p. 145-146; Fernando da Costa Tourinho Neto e Joel
Dias Figueira Jnior. Juizados especiais estaduais cveis e criminais. 5 ed. So Paulo: RT, 2007, p. 292.
No mesmo sentido, reconhecendo o cabimento de agravo de instrumento em situaes excepcionais,
Weber Martins Batista e Luiz Fux. Op. cit., p. 227 e 238; Alexandre Freitas Cmara. Op. cit., p. 15, 151154; Felippe Borring Rocha. Op. cit., p. 144-148; Fernando da Costa Tourinho Neto e Joel Dias Figueira
Jnior. Op. cit., p. 290-296; Ricardo Cunha Chimenti. Op. cit., p. 201; Ronaldo Frigini. Comentrios
lei de pequenas causas. So Paulo: Livraria de Direito, 1995, p. 360; e Jos Paulo Camargo Magano.
Cabimento de agravo de instrumento em sede de juizado especial. Tribuna da magistratura, So Paulo:
APAMAGIS, mai./jun. 1998, p. 29. Igualmente, 1. Col. Rec. de So Paulo, MS 67, rel. Juiz Botto
Muscari, j. 29.04.1999; e 1. Col. Rec. da Capital SP, rel. S Duarte, Rec. 1995, j. 20.06.1996, RJE, 1:34.

Da Recorribilidade das Decises Interlocutrias


nos Juizados Especiais Cveis Federais e Estaduais

195

ocorre nos seguintes casos: (i) deciso cujo contedo acarrete risco de leso
grave e de difcil reparao parte; (ii) deciso que deixa de receber o
recurso contra a sentena (apelao); (iii) deciso que atribui os efeitos
apelao; e (iv) deciso proferida no curso da execuo.
Esse posicionamento, apesar de ainda minoritrio, o que se mostra
mais adequado, sendo possvel invocar 05 (cinco) fundamentos jurdicos
capazes de amparar o cabimento do recurso por meio de agravo de instrumento nos Juizados Especiais Cveis Estaduais.

6.1. Primeiro fundamento: interpretao sistemtica do Estatuto


dos Juizados Especiais (Leis ns 9.099/95 e 10.259/2001)
O art. 1 da Lei n 10.259/2001 estabelece que os dispositivos da Lei n
9.099/95 so subsidiariamente aplicveis ao sistema dos Juizados Especiais
Federais no que com ele no conflitarem. Todavia, a recproca no vem
expressa, j que na Lei n 9.099/95 no h previso semelhante. Surge,
assim, a questo controvertida, a respeito da possibilidade de aplicao subsidiria dos dispositivos da Lei n 10.259/2001 (Juizados Federais) Lei n
9.099/95 (Juizados Estaduais).
De acordo com a primeira corrente, amplamente dominante no plano
da jurisprudncia, a omisso contida na Lei n 9.099/95 impediria a aplicao subsidiria da Lei n 10.259/2001 ao sistema dos Juizados Especiais
Cveis Estaduais. Por essa razo, no seria cabvel a interposio de agravo
de instrumento contra deciso interlocutria proferida em sede de Juizado
Estadual, mas apenas contra aquelas prolatadas no mbito de Juizado
Federal, uma vez que essa possibilidade estaria presente apenas no art. 5 da
Lei n 10.259/2001.
Com o devido respeito, no h como concordar com esse entendimento, por no menos do que 03 (trs) fundamentos.
Primeiramente, deve-se observar que a Lei n 9.099/95 jamais poderia
fazer referncia Lei n 10.259/2001, j que aquela anterior a esta em
quase 06 (seis) anos. Impossvel, portanto, o Legislador afirmar, em 1995,
que Lei dos Juizados Estaduais seriam subsidiariamente aplicveis os dispositivos da Lei dos Juizados Federais, de 2001.
195

196

Bruno Garcia Redondo

Em segundo lugar, deve o operador do Direito buscar, sempre que possvel, a interpretao sistemtica dos dispositivos, tanto aqueles previstos em
um mesmo diploma legal, quanto os estabelecidos em leis diferentes. Por essa
razo, deve-se reconhecer que as Leis ns 9.099/95 e 10.259/2001 relacionamse e complementam-se em todos os pontos nos quais no conflitarem.
Mais ainda, deve-se reconhecer que as Leis ns 9.099/95 e 10.259/2001
formam, conjuntamente, o Estatuto dos Juizados Especiais, que estabelece
um sistema processual distinto daquele criado pelo Cdigo de Processo Civil,
apesar de o sistema previsto nesse diploma geral ser aplicvel, subsidiariamente, ao dos Juizados Especiais, como se ver oportunamente.
Desse modo, estando positivada, no Estatuto dos Juizados Especiais, a
possibilidade de interposio de agravo de instrumento contra deciso
interlocutria capaz de causar leso grave e de difcil reparao para a parte
(art. 5 da Lei n 10.259/2001), essa regra aplicvel tanto aos Juizados
Federais, quando aos Juizados Estaduais.30

6.2. Segundo fundamento: aplicao subsidiria do Cdigo de


Processo Civil
A Lei dos Juizados Estaduais, como visto, no prev o cabimento de
recurso contra deciso interlocutria, ao passo que o art. 522 do Cdigo de
Processo Civil estabelece o cabimento de agravo de instrumento.
Por outro lado, a Lei n 9.099/95 traz a previso da aplicao subsidiria dos dispositivos do Cdigo de Processo Civil ao sistema dos Juizados
Especiais Estaduais no que com ele no conflitarem apenas em seu art.

30

196

Dessa forma, Alexandre Freitas Cmara: O mesmo se d em relao ao Estatuto dos Juizados Especiais.
Este cria um sistema processual prprio, distinto do sistema criado pelo Cdigo de Processo Civil. Tratase do sistema processual adequado para as causas cveis de menor complexidade (e, como se ver
adiante, tambm para as pequenas causas, cf. infra n 4). (...) preciso, porm, que se deixe desde logo
um ponto bem claro: a meu juzo, a Lei n 9.099/95 e a Lei n 10.259/01, conforme venho dizendo, compem um s estatuto. certo, por um lado, que a Lei dos Juizados Federais afirma, expressamente, que
a Lei dos Juizados Estaduais lhe subsidiariamente aplicvel. A recproca, porm, embora no seja
expressa, tambm verdadeira. No h qualquer razo para que no se possa aplicar nos Juizados
Estaduais as conquistas e inovaes contidas na Lei dos Juizados Federais, sempre que entre os dois
diplomas no haja qualquer incompatibilidade. Isto permitir, inclusive, a soluo de problemas de
outro modo insolveis (Op. cit., p. 04).

Da Recorribilidade das Decises Interlocutrias


nos Juizados Especiais Cveis Federais e Estaduais

197

52, que trata da execuo de ttulo judicial. Surge, assim, outra questo controvertida, sobre se o Cdigo de Processo Civil aplicvel subsidiariamente Lei n 9.099/95 apenas no procedimento de execuo, ou tambm ao
longo da fase de conhecimento do processo.
De acordo com o posicionamento dominante nos planos doutrinrio e
jurisprudencial, o Cdigo de Processo Civil seria subsidiariamente aplicvel
Lei n 9.099/95 apenas durante o procedimento de execuo, em razo da
interpretao literal do art. 52 do referido diploma o nico a trazer essa
regra que se refere exclusivamente execuo de ttulo judicial nos
Juizados Estaduais. Por decorrer de mera interpretao literal, esse no se
revela o melhor entendimento.
Mais adequado, portanto, o posicionamento que reconhece a aplicabilidade do Cdigo de Processo Civil inclusive fase de conhecimento do
processo submetido ao Juizado Estadual, j que esta fase regulada em
meros 51 artigos, que, evidentemente, precisam ser complementados pelas
normas gerais do sistema processual civil comum.
Diversos exemplos podem ser invocados para comprovar a aplicabilidade subsidiria do Diploma Processual Civil Lei n 9.099/95 tambm no
que se refere fase cognitiva do processo, uma vez que, na lei dos Juizados
Estaduais: (i) no h referncia aos deveres das partes e de seus procuradores (arts. 14 a 35 do CPC); (ii) no h previso do cabimento de litisconsrcio (arts. 46 a 49 do CPC); (iii) no h previso de julgamento com resoluo do mrito (art. 269 do CPC); (iv) no h referncia formao de coisa
julgada (arts. 467 a 474 do CPC); e (v) no h previso de cabimento de
recurso extraordinrio, tampouco o estabelecimento das regras de seu processamento (arts. 508, 541 a 546 do CPC).
Apesar do silncio legal quanto a essas questes, no h operador do
Direito que duvide que, nos Juizados Estaduais, as partes tm deveres processuais; que possvel o litisconsrcio; que o magistrado pode apreciar o
pedido resolvendo o mrito da causa; que a sentena, transitada em julgado, forma coisa julgada; e que cabe recurso extraordinrio no prazo de 15
(quinze) dias.
Inegvel, portanto, a seguinte concluso: os dispositivos do Cdigo de
Processo Civil so subsidiariamente aplicveis ao sistema processual dos
197

198

Bruno Garcia Redondo

Juizados Especiais Cveis Estaduais e Federais no que com ele no conflitarem. As normas do CPC, portanto, complementam as omisses das Leis ns
9.099/95 e 10.259/2001 durante o desenvolvimento do procedimento, seja
na fase de conhecimento, seja na de execuo.31
Polmica semelhante existiu, durante muitos anos, em relao ao
recurso cabvel contra a deciso que se manifestava sobre o pedido de liminar em mandado de segurana, j que a Lei n 1.533/51 no traz, de forma
expressa, a previso de cabimento do agravo de instrumento.
Uma linha de entendimento, ao sustentar o no cabimento do agravo de
instrumento,32 defende a impetrao de mandado de segurana em face da
deciso que aprecia o pedido de liminar em mandado de segurana, j que,
inexistindo previso expressa de recurso cabvel na Lei n 1.533/51, deveria
ser aplicado o Enunciado n 26733 da Smula do Supremo Tribunal Federal.
Por seu turno, destacou-se a corrente que, de forma mais adequada,
sustenta o cabimento de agravo de instrumento contra a deciso que se
manifesta sobre o pedido de liminar formulado em mandado de segurana, em razo tanto da aplicao subsidiria do Cdigo de Processo Civil
Lei n 1.533/51, quanto do 6 do art. 4 da Lei n 8.437/92, aplicvel ao

mandamus por fora do 2 do art. 4 da Lei n 4.348/64, que tambm rege


o instituto.34
Atualmente, essa polmica encontra-se praticamente superada, tendo
prevalecido o entendimento mais razovel, no sentido do cabimento de

31
32
33
34

198

Nesse sentido, Alexandre Freitas Cmara. Op. cit., p. 04, 152-153; Fernando da Costa Tourinho Neto e
Joel Dias Figueira Jnior. Op. cit., p. 293; e Ricardo Cunha Chimenti. Op. cit., p. 201.
Por todos, ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 2 ed. So Paulo: RT, 2008, p. 487-489.
Enunciado n 267 da Smula do STF: No cabe mandado de segurana contra ato judicial passvel de
recurso ou correio.
Desse modo, BARBOSA MOREIRA, Jos Carlos. Recorribilidade das decises interlocutrias em mandado de segurana. Temas de direito processual: 6 srie. So Paulo: Saraiva, 1996, p. 211-224; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 4 ed. So Paulo: RT, 2006, p. 606-612;
DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Jos Carneiro. Curso de direito processual civil. 7 ed. Salvador:
JusPodivm, 2009, v. 3, p. 180-181; SCARPINELLA BUENO, Cassio. Mandado de segurana. 5 ed. So
Paulo: Saraiva, 2009, p. 104-111; ALVIM, Eduardo Arruda; SCARPINELLA BUENO, Cassio. Agravo de
instrumento contra decises proferidas em mandado de segurana. Execuo provisria. Revista de processo REPRO, So Paulo: RT, n 95, p. 235-238; CINTRA GONALVES, Jos Horcio. O agravo no
direito brasileiro. So Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p. 29-30.

Da Recorribilidade das Decises Interlocutrias


nos Juizados Especiais Cveis Federais e Estaduais

199

agravo de instrumento contra a deciso que aprecia o pedido de liminar em


mandado de segurana.35
De sua vez, sendo o Cdigo de Processo Civil subsidiariamente aplicvel ao sistema dos Juizados Especiais, foroso reconhecer o cabimento do
recurso por meio de agravo de instrumento contra deciso interlocutria
suscetvel de causar parte leso grave e de difcil reparao (art. 522 do
CPC) no mbito de processo em curso perante Juizado Estadual ou Federal.

6.3. Terceiro fundamento: agravo de instrumento como meio de


evitar a indevida utilizao do mandado de segurana como
sucedneo recursal
razovel prever que, sempre que uma parte vier a considerar-se desfavorecida em razo da prolao de uma deciso judicial, ela ir utilizar-se
de algum meio juridicamente adequado para buscar a reverso daquela
situao que, caso fosse concretizada, viria a causar-lhe dano grave.
Analisando-se especificamente o objeto do presente estudo, sendo proferida deciso interlocutria capaz de causar leso grave e de difcil reparao, a parte desfavorecida ir insurgir-se contra ela de algum modo, seja por
meio de agravo de instrumento, seja mediante impetrao de mandado de
segurana, dependendo do entendimento que se adote sobre a (ir)recorribilidade daquela deciso.
No caso dos Juizados Estaduais, tem prevalecido, no mbito da jurisprudncia, o entendimento de que todas as decises interlocutrias seriam
irrecorrveis, razo pela qual a parte desfavorecida tem sido obrigada a
impetrar mandado de segurana contra a deciso potencialmente danosa.
Os defensores desse posicionamento alegam que o agravo de instrumento seria incompatvel com o procedimento, por supostamente ferir alguns de
seus princpios informativos, em especial, a oralidade e a celeridade.

35

STJ, CE, EREsp 471.513/MG, rel. p. ac. Min. Gilson Dipp, j. 02.02.2005, DJ 07.08.2006, p. 196; STJ, 2.
T., REsp 817.403/MG, rel. Min. Castro Meira, j. 21.08.2008, DJe 23.09.2008; STJ, 1. T., REsp
705.892/PE, rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 26.04.2005, DJ 09.05.2005, p. 313; STJ, 5. T., REsp.
593.529/PA, rel. Min. Jos Arnaldo da Fonseca, j. 07.04.2005, DJ 09.05.2005, p. 458.

199

200

Bruno Garcia Redondo

Em que pese tratar-se de corrente ainda majoritria, no h como consider-la adequada, por 02 (dois) fundamentos distintos.
A interposio de agravo de instrumento contra deciso interlocutria
potencialmente danosa, proferida no curso do procedimento, em nada atrasa o curso processual. Pelo contrrio, a interposio de um simples recurso
(agravo de instrumento) chega a ser mais benfica oralidade e celeridade do que a impetrao de uma demanda judicial (mandado de segurana).
Por seu turno, o descabimento do recurso de agravo de instrumento
implica a indevida utilizao do mandado de segurana como sucedneo
recursal, desvirtuando-se, assim, os objetos aos quais cada um desses institutos se destina.36 A funo constitucional de rgo revisor, que a garantia
do duplo grau de jurisdio impe Turma Recursal, demonstra que muito
mais tcnico e razovel ser v-la julgando simples recursos, interpostos
contra meras decises interlocutrias, do que demandas de mandados de
segurana impetrados contra atos judiciais.
Por esses fundamentos, o recurso por meio de agravo de instrumento,
alm de preservar a oralidade e a simplicidade do procedimento, tambm
contribui para evitar a indevida utilizao do mandado de segurana como
sucedneo recursal.

6.4. Quarto fundamento: inexistncia, na prtica, de efetiva


concentrao de atos processuais em audincia
A criao dos Juizados, como visto, buscou equacionar o problema da
litigosidade contida ao permitir maior acesso Justia. Foi imaginado um
procedimento clere (da sumarissimo), abreviado, no qual a palavra falada deveria prevalecer sobre a escrita e, devendo todos os incidentes ser
oralmente invocados durante uma audincia, naquele mesmo momento
poderiam e seriam decididas todas as questes.
A oralidade, portanto, consistia em um dos principais princpios informativos dos Juizados Especiais, sendo a concentrao dos atos processuais

36

200

Igualmente, Alexandre Freitas Cmara. Op. cit., p. 153; e Felippe Borring Rocha. Op. cit., p. 147.

Da Recorribilidade das Decises Interlocutrias


nos Juizados Especiais Cveis Federais e Estaduais

201

em audincia e a irrecorribilidade das decises interlocutrias dois de seus


postulados fundamentais.
Transcorridos, todavia, 24 anos da criao do Juizado Especial de
Pequenas Causas e 14 anos da instituio dos Juizados Especiais Cveis, verifica-se que a situao vigente muito diversa da anterior.
A prtica forense revela que a litigiosidade contida transformou-se em
litigiosidade exacerbada; os nmeros de Juizados Especiais instalados pelo
pas e os de demandas a eles submetidas permanecem aumentando consideravelmente;37 as audincias de conciliao tm sido marcadas para datas cada
vez mais distantes do momento da propositura da demanda;38 os pedidos
liminares para deferimento de tutela de urgncia so, cada vez mais, apreciados em momento anterior ao da realizao da audincia de instruo e julgamento, sendo objeto de decises interlocutrias no curso do processo etc.
Como se pode notar, alguns dos postulados fundamentais da oralidade
so mitigados ou descaracterizados a partir do momento em que o procedimento dos Juizados Especiais Cveis vem-se tornando cada vez mais alongado e fracionado, com etapas distanciadas umas das outras distribuio
da demanda, prolao de deciso interlocutria sobre o pedido de tutela de
urgncia, realizao da audincia de conciliao, prolao de decises interlocutrias sobre eventuais incidentes, realizao da audincia de instruo
e julgamento, designao de data para leitura de sentena, prolao do projeto de sentena pelo juiz leigo, homologao do projeto de sentena ou
prolao de sentena diretamente pelo juiz togado.

37

38

Segundo estatstica de mbito nacional, divulgada pelo CNJ em 2006, dividindo-se o nmero de processos distribudos aos Juizados Especiais apenas no ano de 2006 pelo nmero de magistrados atuantes em
Juizados, tem-se o resultado de 4.652 causas novas para cada juiz. Tambm em proporo nacional,
somando-se as causas novas (2006) s antigas (distribudas antes de 2006) e dividindo-se o resultado pelo nmero de magistrados em atuao em Juizados pelo pas, tem-se o nmero de 8.651 processos
ativos (em andamento) para cada juiz de Juizado Especial (Cf. Relatrio Justia em nmeros: indicadores estatsticos do Poder Judicirio Ano 2006, p. 199 e 207. Disponvel em: <http://www.cnj.gov.
br>. Acesso em: 13 jan. 2009).
Como resultado de pesquisa realizada pelo CNJ em 2007, foi apurado que determinados Juizados
Especiais Cveis situados na Bahia estavam designando audincias de conciliao para 2011, isto , para
04 (quatro) anos aps a data da distribuio da demanda (Advogados reclamam: juizados da BA marcam audincia para 2011. Revista Consultor Jurdico, So Paulo, 01 abr. 2007. Disponvel em:
<http://www.conjur.com.br/2007-abr-01/audiencias_juizados_bahia_sao_marcadas_2011>. Acesso em:
13 jan. 2009).

201

202

Bruno Garcia Redondo

Dessa forma, a perda da caracterstica da oralidade, em razo da consagrao prtica de um procedimento cada vez mais cartorrio e burocrtico, torna possvel e, por isso, justifica plenamente a recorribilidade imediata, por meio de agravo de instrumento, de determinadas decises interlocutrias, sempre que proferidas em momento anterior ao da prolao da
sentena e passveis de causar, parte, leso grave e de difcil reparao.

6.5. Quinto fundamento: ponderao de princpios e de interesses


em conflito
Os princpios informativos dos Juizados Especiais devem, evidentemente, ser observados como regra, sendo hipteses excepcionais o seu afastamento ou a sua mitigao.39
Por outro lado, exatamente pelo fato de serem princpios, possvel
que, em determinado caso concreto, ocorra conflito entre eles. Nessa hiptese, ser necessria, para sua resoluo, a ponderao dos interesses conflitantes, a fim de que, no caso em exame, venha a incidir o princpio capaz
de proteger o interesse jurdico mais relevante.40
Uma vez proferida, no curso do processo ou seja, em momento anterior ao da prolao da sentena deciso interlocutria capaz de causar dano
grave parte (v.g. a que se manifeste sobre pedido de tutela de urgncia),
apresenta-se o seguinte conflito: de um lado, as garantias constitucionais da
ampla defesa e do duplo grau de jurisdio, o princpio da efetividade e a existncia de risco de leso grave e de difcil reparao; de outro, o princpio da
oralidade, em seu postulado da irrecorribilidade das decises interlocutrias.
O resultado dessa ponderao deve ser amplamente favorvel prevalncia das garantias constitucionais da ampla defesa e do duplo grau de

39

40

202

Desse modo, Alexandre Freitas Cmara: Os princpios enumerados no art. 2 da Lei n 9.099/95 so,
pois, os princpios gerais, informativos do microssistema dos Juizados Especiais Cveis. Sua generalidade os torna vetores hermenuticos, o que significa dizer que toda a interpretao do Estatuto dos
Juizados Especiais Cveis s ser legtima se levar em conta tais princpios (Op. cit., p. 07).
Igualmente, Alexandre Freitas Cmara: Sendo, assim, para que um desses princpios seja afastado em
alguma situao preciso que haja regra expressa excepcionando sua incidncia, ou que haja algum
conflito entre dois princpios, caso em que apenas um deles o que proteger o interesse mais relevante no caso sub judice poder incidir (Op. cit., p. 07).

Da Recorribilidade das Decises Interlocutrias


nos Juizados Especiais Cveis Federais e Estaduais

203

jurisdio, para que seja permitido o recurso por meio de agravo de instrumento contra deciso interlocutria capaz de causar dano grave parte. A
defesa da irrecorribilidade desse tipo de deciso, alm de no proporcionar
maior celeridade do processo, prestigia interesse inequivocamente menos
relevante.

7. Concluso
Os Juizados Especiais Cveis so orientados por diversos princpios,
entre eles, o da oralidade, sendo esta formada por 05 (cinco) postulados fundamentais. Enquanto existir efetiva concentrao de atos processuais em
audincia, a irrecorribilidade das decises interlocutrias em separado continuar contribuindo para a celeridade do processo.
Entretanto, a partir do momento em que o procedimento dos Juizados
Especiais Cveis vem-se tornando cada vez mais fracionado e alongado,
sendo maior o distanciamento entre as etapas processuais, fica mitigado e
descaracterizado o postulado da concentrao de atos processuais em
audincia, no mais persistindo fundamento jurdico para a observncia
absoluta do postulado da irrecorribilidade das decises interlocutrias em
separado.
Importante observar que a recorribilidade imediata de determinadas
decises interlocutrias por meio agravo de instrumento no decorre apenas da descaracterizao prtica da oralidade nos processos em curso nos
Juizados.
Pelo contrrio, essa possibilidade resulta tambm da aplicao de 02
(dois) dispositivos legais: o art. 5 da Lei n 10.259/02, aplicvel tanto aos
Juizados Federais, quanto aos Estaduais; e o art. 522 do Cdigo de Processo
Civil, subsidiariamente aplicvel ao sistema processual dos Juizados Especiais.
O agravo de instrumento cabvel, portanto, sempre que a excepcional recorribilidade imediata da deciso interlocutria revelar-se um imperativo, o que ocorre, sobretudo, nos seguintes casos:
(i)

deciso cujo contedo acarrete risco de leso grave e de


difcil reparao parte;
203

204

Bruno Garcia Redondo

(ii) deciso que deixa de receber o recurso contra a sentena


(apelao);
(iii) deciso que se manifesta sobre os efeitos atribudos apelao; e
(iv) deciso proferida durante a execuo.
Uma vez interposto o agravo de instrumento, seu processamento deve
seguir as regras gerais estabelecidas no Cdigo de Processo Civil, porquanto, para essa hiptese, inexiste regramento especfico no Estatuto dos
Juizados Especiais Cveis.

8. Referncias bibliogrficas
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IV
Processo Eletrnico
nos Juizados Especiais Cveis

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9
Os Juizados Especiais Cveis
e o E-Process: O Exame das Garantias
Processuais na Esfera Virtual
Humberto Dalla Bernardina de Pinho
Mrcia Michele Garcia Duarte

SUMRIO: 1. Consideraes iniciais. 2. Fundamentos constitucionais do princpio do acesso justia. 3. Celeridade: dos tempos remotos contemporaneidade. 4. Processo virtual e
as garantias processuais. 5. Consideraes finais. 6. Referncias bibliogrficas. 7. Referncias eletrnicas.

1. Consideraes iniciais
A pacificao dos conflitos sociais por meio de uma justia clere foi
idealizada desde os povos antigos,1 passando por diversas influncias e modificaes, alcanando o que hoje denominamos de juizados especiais (Jecs).
O Jecs so uma realidade tanto na esfera estadual como na federal e
foram criados com o propsito de atender s demandas menos complexas, a
partir de determinao imposta pelo Texto Constituinte de 1988. Antes
desse novo mecanismo, porm, existiram os denominados juizados de
pequenas causas, cuja nomenclatura, a nosso ver, era equivocada, posto
que causas menos complexas no seriam, necessariamente, pequenas.
Os juizados especiais consagram um seguimento do Poder Judicirio destinado a oferecer prestao jurisdicional em demandas de pouca monta e so

Destaca-se que o Cdigo de Hamurabi que j mencionava ferramentas semelhantes s que atualmente
so denominadas de substitutos ou equivalentes jurisdicionais autodefesa, autocomposio e mediao. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Teoria Geral do Processo Civil Contemporneo. 2 ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 09.

209

210

Humberto Dalla Bernardina de Pinho e Mrcia Michele Garcia Duarte

dotados de peculiaridades e princpios prprios, destacando-se a a celeridade,


que se traduz, em suma, no objetivo de rapidez na prestao jurisdicional.
Dentre as regras procedimentais especficas dos Jecs, destacam-se: o
desestmulo recursal, com a vedao da interposio de agravo de instrumento e a exigncia de preparo no caso de apresentao de recurso inominado; a
imposio ao recorrente vencido do pagamento de honorrios de sucumbncia e das despesas processuais;2 a regra procedimental sincrtica; o prazo
comum mesmo quando da manifestao pela Defensoria Pblica; no h a
prerrogativa da intimao pessoal do procurador federal;3 as intimaes so
viveis por meio telefnico;4 alm da previso expressa de poderes de conciliao, transao e desistncia deferidos aos representantes judiciais da Unio,
autarquias, fundaes e empresas pblicas federais; no so admitidos embargos de execuo e nem a interveno de terceiros ou a assistncia.5
Para este estudo em especial, destacamos que foi por meio dos juizados
especiais que se semeou em nosso ordenamento jurdico a possibilidade de
autos processuais integralmente virtuais, sem o uso de papel. O uso dessa
ferramenta virtual mostra-se to promissor, clere e comprometido com o
respeito ao meio ambiente, que oportunizado at mesmo perante o
Supremo Tribunal Federal, que disponibiliza a ferramenta e-STF, e, com
isso, viabiliza-se que a ao judicial tramite em diversos graus de jurisdio
integralmente na verso virtual.
Os processos virtuais contam com mecanismos de segurana a fim de
evitar que panes e at mesmo hackers possam comprometer a fidelidade e o
regular trmite processual virtual. Essas ferramentas vo desde back-ups s
assinaturas digitais, mediante senha pessoal. Com isso, visa-se a assegurar
que a tecnologia se faa presente na prestao jurisdicional, resguardandose, contudo, a promessa de uma justia preocupada com o fator segurana.
Passada essa anlise, impe-se uma indagao: e quanto s garantias
processuais e, antes mesmo disso, e quanto s garantias constitucionais dos
judicantes no processo virtual? Prope-se com este estudo analisar esse

2
3
4
5

210

Artigo 55, caput, da Lei n 9.099/95.


Enunciado n 07 do FONAJEF. Disponvel em: http://www.ajufe.org.br/. Acesso em 29/12/2008.
Enunciado n 73 do FONAJEF.
Enunciados 13 e 14 do FONAJEF.

Os Juizados Especiais Cveis e o E-Process:


O Exame das Garantias Processuais na Esfera Virtual

211

aspecto to relevante e ainda to pouco discutido, por meio do qual avaliaremos at que ponto as ferramentas virtuais consagram uma manifestao
judiciria clere, econmica, justa, equnime, efetiva e razovel.

2. Fundamentos constitucionais do princpio do acesso


justia
Ao falarmos de juizado especial, no podemos deixar de mencion-lo
como um dos principais veculos por meio do qual o Poder Judicirio se vale
na busca por maior facilitao do acesso justia.
Vemo-nos diante de inovaes tecnolgicas, novas problemticas de
massa, globalizao e outros fatores que fizeram com que os chamados
Novos Direitos surgissem. E com isso, hoje temos a necessidade de prestao jurisdicional de forma mais clere, posto que s assim atender-se-
sobrecarga de demanda, fruto incontestvel dos novos conflitos sociais.
Partindo da observao acerca dessas novis necessidades, Mauro
Cappelletti6 inaugurou as denominadas Ondas Renovatrias do Direito
Processual e, com isso, pensou numa estrutura processual que visasse a
conferir regras menos formais e mais comprometidas com as necessidades
sociais, fornecendo solues adequadas para manuteno da ordem no
Estado Democrtico de Direito.7
6

Em uma de suas mais felizes passagens, pontifica o Mestre: o recente despertar de interesse em torno
do acesso efetivo Justia levou a trs posies bsicas, pelo menos nos pases do mundo Ocidental.
Tendo incio em 1965, estes posicionamentos emergiram mais ou menos em seqncia cronolgica.
Podemos afirmar que a primeira soluo para o acesso - a primeira onda desse movimento novo - foi
a assistncia judiciria; a segunda dizia respeito s reformas tendentes a proporcionar representao
jurdica para os interesses difusos, especialmente nas reas da proteo ambiental e do consumidor; e
o terceiro - e mais recente - o que nos propomos a chamar simplesmente enfoque de acesso justia porque inclui os posicionamentos anteriores, mas vai muito alm deles, representando, dessa forma,
uma tentativa de atacar as barreiras ao acesso de modo mais articulado e compreensivo. CAPPELLETTI, Mauro, GARTH, Bryant [traduo de Ellen Gracie Northfleet]. Acesso Justia. Porto Alegre:
Srgio Antonio Fabris, 1988, p. 31 e ss.
A propsito, diz Cappelletti, no preciso ser socilogo de profisso para reconhecer que a sociedade
(poderemos usar a ambiciosa palavra: civilizao?) na qual vivemos uma sociedade ou civilizao de
produo em massa, de troca e de consumo de massa, bem como de conflitos ou conflitualidades de
massa. (...) Da deriva que tambm as situaes de vida, que o Direito deve regular, so tornadas sempre mais complexas, enquanto por sua vez, a tutela jurisdicional a Justia ser invocada no mais
somente contra violaes de carter individual, mas sempre mais freqente contra violaes de carter
essencialmente coletivo, enquanto envolvem grupos, classes e coletividades. Trata-se, em outras palavras, de violaes de massa. CAPPELLETTI, Mauro. Formaes Sociais e Interesses Coletivos Diante
da Justia Civil. In Revista de Processo, vol. 5, separata.

211

212

Humberto Dalla Bernardina de Pinho e Mrcia Michele Garcia Duarte

Eis que surgem na ordem jurdica processual outros caminhos para a


desobstruo das vias jurisdicionais ento existentes. Foram eles a tutela de
interesses metaindividuais (ao civil pblica e mandado de segurana coletivo, entre outros) e a simplificao de procedimentos, aperfeioamento de
dispositivos legais tudo em prol de minimizar as delongas processuais.
Num momento seguinte a essas primeiras vertentes, iniciou-se a denominada Reforma do Poder Judicirio, que falaremos mais adiante. Neste
momento do estudo, importante darmos seguimento aos pensamentos de
autores que manifestaram a preocupao com a segurana da prestao
jurisdicional clere conjugada com acesso justia.
Nessa linha tambm se manifestou Paulo Cezar Pinheiro Carneiro,8
que, por meio de suas sbias palavras, props um re-estudo da garantia
constitucional do acesso justia na sistemtica processual brasileira, por
meio do qual considerou quatro grandes princpios a reger o acesso justia. So eles os princpios da acessibilidade, da operosidade, da utilidade e da
proporcionalidade. S assim, afirma, o acesso justia restar pautado na
constitucionalidade.
Sintetizamos cada um dos princpios: a) acessibilidade possibilita a
efetivao de direitos individuais e coletivos, por meio de utilizao adequada dos instrumentos jurdicos por sujeitos capazes, usufruindo do direito informao e sem obstculos de qualquer natureza; b) Operosidade
divide-se em subjetividade e objetividade. A primeira clama pela atuao
tica de todos os sujeitos do processo, que devem zelar pela efetividade processual. J a segunda, refere-se utilizao correta dos meios processuais,
buscando a verdade real e a conciliao; c) utilidade refere-se ao menor
sacrifcio para o vencido, porm nisso considerando-se o recebimento pelo
vencedor da forma mais rpida e proveitosa possvel, com celeridade e
segurana, binmio que comporta, por exemplo, a fungibilidade da execuo, notadamente em relao ao direito consumerista, a limitao de incidncia de nulidades e o alcance subjetivo da coisa julgada, sobretudo nas

212

CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso justia: Juizados Especiais Cveis e Ao Civil Pblica:
Uma Nova Sistematizao da Teoria Geral do Processo, 2 ed., rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2007,
p. 63 e ss.

Os Juizados Especiais Cveis e o E-Process:


O Exame das Garantias Processuais na Esfera Virtual

213

aes coletivas; d) proporcionalidade dever ser considerada pelo julgador


quando da ocorrncia de conflito, em orientar-se sempre no objetivo de
resguardar o direito mais valioso e o maior nmero de pessoas.
Considerados os princpios acima, notadamente no tocante aos Jecs,
entendemos serem louvveis as mutaes que vm sendo impelidas ao processo civil brasileiro, mas destacamos que essas devero coadunar-se s
novas necessidades sociais, mas sem perder a sua efetividade, pois, s assim,
podero contribuir para diminuir o nvel da tenso social, promovendo a
paz e o bem comum na sociedade.9
Feita essa anlise, seguimos com a observao de que se torna impossvel dissociar a atividade jurisdicional exercida por meio do microssistema
(Jecs), dos princpios constitucionais do acesso justia e da dignidade da
pessoa humana, to relevantes ao estudo que propomos, e encerramos essa
breve anlise do acesso justia luz da constituio, para passarmos aos
juizados especiais desde o seu nascedouro, embora recebendo outra denominao, mas sempre visto como uma forma diferenciada de tratar de lides
especificas e de menor monta.

3. Celeridade: dos tempos remotos contemporaneidade


Como mencionamos no incio deste estudo, recentemente estabeleceu-se que o Governo deveria se empenhar na Reforma do Poder Judi-

Diante da transformao da concepo de direito, no h mais como sustentar as antigas teorias da jurisdio, que reservavam ao juiz a funo de declarar o direito ou de criar a norma individual, submetidas
que eram ao princpio da supremacia da lei e ao positivismo acrtico. O Estado constitucional inverteu os
papis da lei e da Constituio, deixando claro que a legislao deve ser compreendida a partir dos princpios constitucionais de justia e dos direitos fundamentais. Expresso concreta disso so os deveres de o
juiz interpretar a lei de acordo com a Constituio, de controlar a constitucionalidade da lei, especialmente atribuindo-lhe novo sentido para evitar a declarao de inconstitucionalidade, e de suprir a omisso
legal que impede a proteo de um direito fundamental. (...) O direito fundamental tutela jurisdicional,
alm de ter como corolrio o direito ao meio executivo adequado, exige que os procedimentos e a tcnica processual sejam estruturados pelo legislador segundo as necessidades do direito material e compreendidos pelo juiz de acordo com o modo como essas necessidades se revelam no caso concreto. (...) O juiz
tem o dever de encontrar na legislao processual o procedimento e a tcnica idnea efetiva tutela do
direito material. Para isso deve interpretar a regra processual de acordo, trat-la com base nas tcnicas da
interpretao conforme e da declarao parcial de nulidade sem reduo de texto e suprir a omisso legal
que, ao inviabilizar a tutela das necessidades concretas, impede a realizao do direito fundamental tutela jurisdicional. MARINONI, Luiz Guilherme. A Jurisdio no Estado Contemporneo. In Estudos de
Direito Processual Civil. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 13-66.

213

214

Humberto Dalla Bernardina de Pinho e Mrcia Michele Garcia Duarte

cirio, marcada pelo denominado Pacto de Estado em favor de um Judicirio mais rpido e republicano.10
Mobilizaram-se os Trs Poderes com o fito de se chegar a uma soluo
que atendesse aos anseios sociais em relao justia. As propostas inseridas naquele Documento determinaram a priorizao na apreciao de projetos de lei, cujos textos se destinassem a conferir ampliao ao acesso justia e maior rapidez na resposta jurisdicional.11
O referido acordo entre os Trs Poderes gerou impactos no ordenamento jurdico por meio de importantes modificaes, como por exemplo,
a alterao de diversos dispositivos do trintenrio Cdigo de Processo Civil.
Explanou-se que haveria um compromisso de implementao da reforma
constitucional do Judicirio bem como a reforma do sistema recursal e dos
procedimentos, alm da determinao para que a agenda parlamentar
inclusse os projetos de lei que objetivassem a regular e a incentivar a informatizao dos processos (e-process).
Essa preocupao governamental em criar mecanismos que conferissem prestao jurisdicional de modo mais clere j foi objeto de discusses
em perodos histricos anteriores. Desde os tempos dos visigodos,12 com a
criao do Cdigo Visigtico, inicialmente denominado Lex Roamana
Visigotorum, que foi a primeira legislao a vigorar na Pennsula Ibrica
aps o Domnio Romano, j havia a preocupao com a morosidade da
Justia. Aquele Cdigo distinguia duas formas de demandas. Eram os chamados pleito de grandes coisas e pleito de pequenas coisas.
No Sculo XIV, o Reinado Portugus demonstrou que as demandas
que no se resolvessem num prazo razovel acarretariam prejuzos s par-

10
11

12

214

http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJ8E452D90ITEMIDA08DD25C48A6490B9989ECC844FA5FF1PTBRIE.htm. Acesso em 29/12/2008.


Poucos problemas nacionais possuem tanto consenso no tocante aos diagnsticos quanto questo
judiciria. A morosidade dos processos judiciais e a baixa eficcia de suas decises retardam o desenvolvimento nacional, desestimulam investimentos, propiciam a inadimplncia, geram impunidade e solapam a crena dos cidados no regime democrtico. Publicado no DOU n 241, de 16 de dezembro de
2004, seo I, p. 8.
Visigodo do Germ. *wisi-gota, de wisu (wesu), bom + Irl. gotnar, homens, heris. s. m., godo do Ocidente; (no pl.) godos do Ocidente, um dos grupos em que se dividiu o povo godo, e que invadiu a
Pennsula Ibrica a partir do sc. IV. Disponvel em http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx. Acesso em 29/12/2008.

Os Juizados Especiais Cveis e o E-Process:


O Exame das Garantias Processuais na Esfera Virtual

215

tes. As Ordenaes do Reinado de Afonso IV dispunham que as delongas


geravam prejuzos aos reinos, e nos processos que se faziam de forma diversa, isto , no fossem geis, alguns perderiam seus direitos e venceriam
aqueles que deveriam ser vencidos.13
No Brasil, aplicaram-se as Ordenaes Manuelinas nos Sculos XVIII e
XIX, cujos julgadores para pequenas contendas receberam o nome de Juzes
de Vintena, que eram eleitos para proceder a julgamento de contendas sem
processo nas quais no caberiam apelao ou agravo, e executariam imediatamente a sentena. Essas demandas contemplavam questes que envolvessem baixo valor pecunirio.
A primeira Constituio brasileira, erigida sob o comando imperial,
estabelecia que no houvesse contenda pela via judicial sem a tentativa de
conciliao prvia presidida por Juzes de Paz.14
As Constituies de 193415 e de 193716 igualmente j tratavam do tema
justia especializada para manejar causas de pequeno valor, atribuindolhe a denominao de Justia de Paz. Excetuavam-se, contudo, a apreciao
de recurso que porventura viesse a ser intentado, conferindo competncia
para apreciao do mesmo Justia togada.
J na Constituio de 1946, aos Juzes de Paz foi conferida uma nova tarefa, a competncia para a habilitao e a celebrao de casamentos ou outros

13

14

15

16

A respeito dos juizados nos tempos dos visigodos e da era monrquica portuguesa: BRANDO NETO,
Joo Marques. Juizados Especiais: a Fnix da Justia Ibero-Brasileira. In Revista Boletim Cientfico.
Juizados Especiais: a Fnix da Justia Ibero-Brasileira. Escola Superior do MPU. V. 4, n 16, jul./set. de
2005.
Art. 161. Sem se fazer constar, que se tem intentado o meio da reconciliao, no se comear Processo
algum. Art. 162. Para este fim haver juizes de Paz, os quaes sero electivos pelo mesmo tempo, e
maneira, por que se elegem os Vereadores das Camaras. Suas attribuies, e Districtos sero regulados
por Lei. Disponvel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiao24.htm>.
Acesso em 29/12/2008.
TTULO II. Da Justia dos Estados, do Distrito Federal e dos Territrios. Art. 104 - Compete aos
Estados legislar sobre a sua diviso e organizao judicirias e prover os respectivos cargos, observados
os preceitos dos arts. 64 a 72 da Constituio, mesmo quanto requisio de fora federal, ainda os princpios seguintes: (...) f) competncia privativa da Corte de Apelao para o processo e julgamento dos
Juzes inferiores, nos crimes comuns e nos de responsabilidade. (...) 7 - Os Estados pediro criar Juzes
com investidura limitada a certo tempo e competncia para julgamento das causas de pequeno valor,
preparo das excedentes da sua alada e substituio dos Juzes vitalcios.
Art. 104 - Os Estados podero criar a Justia de Paz eletiva, fixando-lhe a competncia, com a ressalva do recurso das suas decises para a Justia togada. (...) Art. 106 - Os Estados podero criar Juzes com
investidura limitada no tempo e competncia para julgamento das causas de pequeno valor, preparo das
que excederem da sua alada e substituio dos Juzes vitalcios.

215

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Humberto Dalla Bernardina de Pinho e Mrcia Michele Garcia Duarte

atos previstos em lei, em atribuio judiciria de substituio. Para a apreciao dos casos de pequeno valor, o legislador determinou a criao de cargos de
Juzes togados com limitao temporal da investidura, mas revestido de competncia para substituir os Juzes vitalcios.17 A Constituio seguinte, aprovada em tempos de ditadura militar, dispunha da mesma forma.18
A partir de 1984, por meio da Lei n 7.244/84, o Brasil, pela primeira
vez, disciplinou em Lei prpria como se processariam os feitos e qual seria
a competncia para a apreciao de pequenas demandas. Eram os chamados juizados de pequenas causas,19 limitando a matria de competncia
funcional s demandas cveis e facultava a presena de advogado.20

17

18

19

20

216

Art. 124 - Os Estados organizaro a sua Justia, com observncia dos arts. 95 a 97 e tambm dos seguintes princpios: (...) X - poder ser instituda a Justia de Paz temporria, com atribuio judiciria de
substituio, exceto para julgamentos finais ou recorrveis, e competncia para a habilitao e celebrao de casamentos o outros atos previstos em lei; XI - podero ser criados cargos de Juzes togados com
investidura limitada a certo tempo, e competncia para julgamento das causas de pequeno valor. Esses
Juzes podero substituir os Juzes vitalcios.
Constituio de 1967 - SEO VIII. Da Justia dos Estados. Art 136 - Os Estados organizaro a sua
Justia, observados os arts. 108 a 112 desta Constituio e os dispositivos seguintes: (...) 1 - A lei poder criar, mediante proposta do Tribunal de Justia: a) Tribunais inferiores de segunda instncia, com
alada em causas de valor limitado, ou de espcies, ou de umas e outras; b) Juzes togados com investidura limitada no tempo, os quais tero competncia para julgamento de causas de pequeno valor e
podero substituir Juzes vitalcios; c) Justia de Paz temporria, competente para habilitao e celebrao de casamentos e outros atos previstos em lei e com atribuio judiciria de substituio, exceto para
julgamentos finais ou irrecorrveis.
Aps longo debate, temos afinal aprovada a Lei do Juizado Especial de Pequenas Causas (JEPC). Tomou
ela o n 7.244/84, sendo sancionada a 7.11.84 e publicada no dia seguinte. As controvrsias surgidas
giraram em torno de alguns aspectos secundrios da proposta, como por exemplo a faculdade de patrocnio da causa por advogado. Quanto idia-matriz, porm, que de facilitar o acesso Justia, pouca
voz discordante se ouviu. Algumas pessoas procuraram substituir a idia de criao do Juizado Especial
de Pequenas Causas pela proposta de aperfeioamento do procedimento sumarssimo, no se dando
conta de que no se tratava de mera formulao de um novo tipo de procedimento, e sim de um conjunto de inovaes, que vo desde a nova filosofia e estratgia no tratamento dos conflitos de interesses at tcnicas de abreviao e simplificao procedimental. WATANABE, Kazuo; GRINOVER, Ada
Pellegrini; CARNEIRO, Joo Geraldo Piquet; LAGRASTA NETO, Caetano; DINAMARCO, Candido
Rangel. V.FRONTINI, Paulo Salvador. Juizado Especial de Pequenas Causas. So Paulo: Revista dos
Tribunais, 1985, p. 1.
Os juizados de pequenas causas, que consagraram no ordenamento ptrio a matriz de uma prestao
jurisdicional mais ampla, rpida e desburocratizada, j eram regidos por princpios, denominados por
aquela lei de critrios da simplicidade, oralidade, economia processual, gratuidade, celeridade e de
conciliao. Nas palavras de Kazuo Watanabe: Fala o art. 2, v.g., do critrio da simplicidade, que, bem
pensado, uma expresso dinmica dos princpios da liberdade das formas processuais e da sua instrumentalidade, em sua projeo sobre um processo que pretende ser acessvel e muito gil. Fala da oralidade, conspcua diretriz do processo moderno, de tradicionais razes romanas, mas que aqui, talvez pela
primeira vez entre ns, levada aos extremos do verdadeiro e integral dilogo falado entre o juiz as partes e as testemunhas. Fala da economia processual e a ela adiciona a gratuidade da justia em primeiro
grau de jurisdio (art. 51), porque seu manifesto intuito a abertura da via de acesso ao Poder Judici-

Os Juizados Especiais Cveis e o E-Process:


O Exame das Garantias Processuais na Esfera Virtual

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Aps essa data, a Constituio de 1988 previu expressamente que seria


instituda uma justia especializada,21 os juizados especiais, pela primeira
vez com essa nomenclatura. Os Jecs foram criados e inseridos na sistemtica nacional22 por meio da Lei n 9.099/95, parcialmente alterada com o
advento da Lei n 10.259/01. Criou-se com isso uma espcie de microssistema, norteado por princpios que garantiriam maior celeridade e maior efetividade da prestao jurisdicional. So eles a oralidade, a simplicidade, a
informalidade, a economia processual, a celeridade e o estmulo conciliao ou transao,23 seguindo a linha traada pelas ondas renovatrias de
Mauro Cappelletti em seu movimento universal de acesso justia, conforme vimos anteriormente.

4. Processo virtual e as garantias processuais


Vistos os movimentos de acesso justia, o escoro histrico dos juizados, as inovaes e influncias tecnolgicas, retomemos a nossa indagao

21

22

23

rio para o completo cumprimento da promessa do servio jurisdicional, constitucionalmente apresentada de forma solene (Const., art. 153, 4). Fala da celeridade e institui um procedimento obstinadamente concentrado, sem oportunidades para dilaes que o aluguem, nem para incidentes que protelem a consumao do julgamento do mrito. O artigo 2. Proclama tambm a conciliao, como molamestra que h de informar e impulsionar todo o processo das pequenas causas numa clara recomendao aos aplicadores do novo sistema , no sentido de darem o melhor do seu empenho para a obteno da autocomposio dos conflitos pelas prprias partes. Juizado Especial de Pequenas Causas. So
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1985, p. 105.
Art. 98. A Unio, no Distrito Federal e nos Territrios, e os Estados criaro: I - juizados especiais, providos por juzes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliao, o julgamento e a execuo
de causas cveis de menor complexidade e infraes penais de menor potencial ofensivo, mediante os
procedimentos oral e sumarissimo, permitidos, nas hipteses previstas em lei, a transao e o julgamento de recursos por turmas de juzes de primeiro grau; II - justia de paz, remunerada, composta de cidados eleitos pelo voto direto, universal e secreto, com mandato de quatro anos e competncia para, na
forma da lei, celebrar casamentos, verificar, de ofcio ou em face de impugnao apresentada, o processo de habilitao e exercer atribuies conciliatrias, sem carter jurisdicional, alm de outras previstas
na legislao. 1 Lei federal dispor sobre a criao de juizados especiais no mbito da Justia Federal.
Para demandas menos complexas, o direito estrangeiro tambm guarda procedimento diferenciado. A
Inglaterra, na segunda metade do sculo XX, instituiu a criao de trs tribunais independentes, j
extintos, mas que eram custeados naquela oportunidade por instituies privadas ligadas a advogados e
que buscavam a conciliao, facultando a representao processual por profissional habilitado. No atual
direito ingls, existem juizados para tratar de causas de menor complexidade, um oficial e outro extraoficial. Nos Estados Unidos da Amrica, que adota o sistema common Law, desde a dcada de 30, existem as denominadas Small Claims Court, Na Alemanha, para dirimir causas de menor complexidade,
existem as justias especializadas para tratar de matrias comerciais (Kammer fr Handelssachen), laborais (Arbeitsgerichte), administrativas (Verwaltungsgerichte), previdencirias (Sozialgerichte).
O artigo 2 da Lei n 9.099/95.

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quanto necessidade de viabilizar a proteo das garantias fundamentais


nos juizados especiais, notadamente em se tratando de processo virtual. Isso
porque estamos diante de um microssistema norteado por princpios prprios, que se acresce agora do processo virtual e da consequente mudana
de paradigma do processo real, concreto e materializado.24
Pois bem. Os juizados tornaram-se o modelo experimental dos chamados processos virtuais (tambm denominado de processo eletrnico,
e-process e e-proc), com a promessa de maior celeridade, economia
processual e de tempo, alterando de forma significativa e positiva o binmio custo-benefcio.
Os processos eletrnicos permitem que as partes acessem aos autos do
processo em qualquer dia e horrio, o que sem dvida viabiliza uma economia de tempo, j que as partes podem contar com prazo comum em qualquer hiptese. Podem requerer a juntada de peties em qualquer momento, sem necessitar se deslocar.
No que toca aos advogados, so intimados virtualmente de todos os
atos e, o comparecimento ao cartrio, com o tempo, se tornar a exceo j
que os atos so conhecidos na ntegra pela internet, tal como se os autos do
processo fsico fossem acessados. Assim, os advogados no precisaro
enfrentar filas nas secretarias para obterem vista dos autos, nem mesmo
para protocolizar em peties, j que podero fazer boa parte do trabalho
diretamente dos seus escritrios.
Com isso asseveramos que os objetivos do processo virtual so a economia e a celeridade na tramitao dos processos, em razo da viabilidade de
conferir a integralidade da tramitao dos processos por sistema totalmente
eletrnico, com segurana, maior rapidez na atuao dos magistrados e de
todos os envolvidos na demanda, bem como no processamento dessa, j que
todos os atos praticados requerem o uso de senha pessoal e intransfervel.
Observemos ainda que a transparncia ser total. Todos os atores do
processo podem saber em tempo real o que se passa, o momento exato da

24

218

Neste momento do estudo, devemos destacar que no Estado do Rio de Janeiro a atuao da Polcia
Judiciria j pode ser provocada por meio da ferramenta virtual. Conferir no site: www.delegaciavirtual.rj.gov.br.

Os Juizados Especiais Cveis e o E-Process:


O Exame das Garantias Processuais na Esfera Virtual

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juntada das peas, os atos de comunicao processual (que passaro a ser


instantneos em muitos casos) e, principalmente, o acompanhamento da
rotina cartorria, que ser consideravelmente abreviada.
O estado do Rio Grande do Sul foi o pioneiro em matria de processo
virtual. Em meados de novembro de 2002 foi implantado o projeto-piloto
na comarca de So Sebastio do Ca. Esse projeto foi inaugurado no Juizado
Especial Estadual Cvel, em que as peties iniciais eram registradas oralmente ou por disquete no denominado Sistema Themis. Posteriormente,
outras cidades em outros estados foram inaugurando seu prprio sistema de
informatizao dos processos.
Os atos praticados nos processos virtuais recebem as chamadas assinaturas virtuais, tambm conhecidas como certificao digital ou assinatura
eletrnica. No Rio de Janeiro, por exemplo, a Justia Federal mantm um
convnio com a Caixa Econmica Federal para a certificao digital das
assinaturas dos magistrados e dos serventurios da Justia no sistema de
processo eletrnico. O ato realizado com a utilizao de um smart card
(carto eletrnico) e de um leitor especfico para o carto, que plugado
ao computador. Alm disso, deve ser digitada uma senha pessoal associada
informao digital do usurio colhida por meio de um leitor tico.25 Em
segundo grau de jurisdio, haver a apreciao da demanda virtual pelo
Conselho Recursal Virtual.
O Supremo Tribunal Federal tambm j est preparado para receber
processos virtuais. Em 200426 foi institudo o denominado e-STF, qual seja,
o sistema para a prtica de atos processuais e de dados e imagens, por meio
do correio eletrnico. Dois anos depois foram viabilizadas as assinaturas
digitais, mediante um convnio com a Caixa Econmica Federal, que foi
assinado digitalmente pela Presidente do STF, Ministra Ellen Gracie.27

25

26
27

Desta forma esto sendo realizadas as assinaturas digitais no STF desde junho de 2006, por meio do convnio celebrado digitalmente entre aquele Tribunal e a CEF, que ser responsvel pela certificao digital, conforme Acordo de Cooperao Tcnica n. 6/2006. Disponvel em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=67295&caixaBusca=N. Acesso em 29/12/2008.
Resoluo n 287, de 14 de abril de 2004.
Acordo de Cooperao Tcnica n 6/2006 para a ampliao e incremento da prestao de servios de
Certificao Digital no mbito do STF. Disponvel em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticia
Detalhe.asp?idConteudo=67295&caixaBusca=N. Acesso em 29/12/2008.

219

220

Humberto Dalla Bernardina de Pinho e Mrcia Michele Garcia Duarte

CEF compete, desde ento, a emisso dos certificados, tal como os


emitidos em sede cartorria, para garantir a autenticidade de quem assina.
Por fim, o STF passou a disponibilizar o chamado Dirio da Justia eletrnico, que substitui qualquer outro meio de publicao oficial, para quaisquer efeitos legais, salvo excees,28 para a publicao oficial de todos os
atos jurdicos do Tribunal.
Seguindo a tendncia j instalada nos tribunais de autos virtuais, foi que
em 2006 a Lei n 11.419, regulamentou a informatizao do processo judicial, alterando, inclusive, dispositivos do CPC. Analisando a legislao, a
doutrina vislumbrou o fim da morosidade, a economia processual ao Judicirio e s partes, a transparncia da prestao jurisdicional, a viabilizao
do respeito ao princpio da durao razovel do processo e a incluso digital
do Poder Judicirio, gerando maior efetividade da atividade judicante.29
Por outro lado, alguns apontamentos negativos acerca da temtica j
surgiram. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou
no ano de 2007 uma Ao Direta de Inconstitucionalidade, que recebeu o
nmero 3.880, com pedido de concesso in limine da tutela contra a norma
supracitada.30
Em resumo, o Conselho da Ordem entendeu que o processo digital fere
aos princpios da proporcionalidade e da publicidade, bem como aos precei-

28
29

30

220

As excees correspondem aos casos em que, por fora de lei, deva se processar pela via da intimao
ou vista pessoal, nos termos do pargrafo segundo do artigo 4 da Lei n 11.419/06.
Em mdio prazo, acreditamos que a medida trar grande economia ao Poder Pblico, que custeia o
armazenamento dos atos processuais. A curto prazo, no entanto, j se vislumbra a economia que ser
repassada as partes, tendo em vista que o tempo gasto com inmeros procedimentos ser substitudo dos
processos por um simples toque de boto. Investimentos devero ocorrer para que a justia brasileira se
torne modelo para o mundo. O processo tradicional no ser subtrado de nossos fruns, mas com o
tempo deixar de ser a via escolhida pelos litigantes. O tempo mais uma vez marca a reforma do processo. Sem dvida alguma, a implementao do processo eletrnico trar ainda mais transparncia ao
Judicirio e, sobretudo, contribuir para a efetividade do princpio da durao razovel do processo
inserido em nossa Magna Carta pela Emenda Constitucional n 45/2004. (...) O processo virtual, como
j dito, representar a incluso digital do Judicirio, com a utilizao da tecnologia j disponvel na
maioria dos rgos jurisdicionais de nosso pas, tornando a prtica dos atos processuais mais rpida,
garantindo que o resultado final seja efetivo. BARBOSA, Hugo Leonardo Pena. Lei n 11.419/2006:
o processo eletrnico como garantia de um Judicirio efetivo. In Revista Dialtica de Direito
Processual, n 49, So Paulo: Oliveira Rocha, 2007, p. 79-94.
Uma vez proposta a ADIn, em abril de 2007 foi deferido pelo STF o ingresso, na qualidade de amicus
curiae do Instituto Brasileiro de Direito Eletrnico. Conferir em: http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=3880&processo=3880. Acesso em 01/12/2008.

Os Juizados Especiais Cveis e o E-Process:


O Exame das Garantias Processuais na Esfera Virtual

221

tos constitucionais acerca do exerccio da advocacia, alm do artigo 5,


caput e incisos XII, LX; do artigo 84, inciso IV e do artigo 133 da Carta.
Arguiu a OAB que o sistema de intimaes e publicaes virtuais ir
extinguir o Dirio Oficial impresso em papel,31 afetando o princpio da
publicidade. A OAB alerta para o fato de que, segundo dados de pesquisa
realizada pelo Comit Gestor da Internet, constatou-se que 66,68% da
populao brasileira nunca houveram acessado internet.
Outro argumento foi a inadmissvel exposio do advogado a possveis
restries que os Tribunais podero impor ao exerccio da funo. Alega a
Ordem que o cadastramento dos advogados afronta os direitos dos causdicos, j que o cadastro realizado junto a OAB, que quem a Constituio
Federal legitima para a funo de credenciar advogados, habilitando-os ao
exerccio da advocacia.
Muito embora a informatizao e a migrao para o processo virtual
sejam uma tendncia irreversvel, dotada de imensas vantagens, preciso
reconhecer que algumas formalidades so de fato questionveis.
Entendemos por concordar que a imposio de cadastramento prvio
dos advogados junto aos Tribunais para a finalidade de propor ao virtual
fere no s legislao especial, como tambm Constituio. As funes
de registro e de cadastro de advogados competem privativamente OAB.
E isso se aplica tambm aos advogados pblicos, promotores e defensores, que tm suas atividades regradas pelas respectivas leis federais, sendo
dotados de autonomia e independncia funcional. Um sistema controlado
exclusivamente pelo Poder Judicirio no parece ser a melhor opo. O
ideal um sistema de gerenciamento conjunto, inclusive com a participao dos setores da sociedade organizada, sem que um s grupo controle
todos os outros, mas sem ser controlado pelos demais.
Mediante isso, consideramos que o argumento da OAB que questiona
a constitucionalidade desse dispositivo bastante plausvel. Os causdicos

31

Nesse aspecto, contudo, no h muito a se fazer. Realmente, a necessidade de proteger o meio ambiente e de economizar os recursos naturais do planeta impem um uso mais racional do papel. Uma soluo provisria seria disponibilizar equipamentos para apressar a incluso digital e dessa tarefa devem
participar todos os rgos da sociedade, a comear pela prpria OAB, que deve incentivar e subsidiar
os advogados.

221

222

Humberto Dalla Bernardina de Pinho e Mrcia Michele Garcia Duarte

esto sujeitos ao cadastro prvio somente perante o seu rgo de Classe,


para o exerccio livre de sua profisso, no cabendo qualquer outra imposio de cadastro, tal como quer exigir o legislador infraconstitucional.
Ressaltamos, entretanto, que essa problemtica poder ser facilmente
suprida por uma medida que crie uma espcie de convnio, tal como supracitado, entre os rgos de Classe e os rgos do Poder Judicirio, a fim de
que o cadastro de profissionais nos primeiros seja disponibilizado aos
demais, e, com isso, dentro do enfoque avocado na ADIn, os advogados
regularmente inscritos nos quadros da OAB estariam automaticamente
cadastrados para atuar em processos virtuais.32
Nessa exegese, vlido ressaltar que, por outro lado, a OAB deve ter a
obrigao de manter sempre atualizados seus cadastros, velando pela preciso e transparncia dessas informaes.
Passando a um outro ponto da fundamentao argumentativa da OAB
na ADIn, havemos de concordar que os processos virtuais podem ferir o
princpio constitucional da publicidade, ao limitar o acesso s informaes
processuais e aos documentos digitalizados somente s partes, seus procuradores e ao Parquet.33
A legislao impugnada quer conferir tal sigilo a todos os casos, inclusive, queles que so processados perante o microssistema, os Jecs, conquanto, em verdade, o sigilo das informaes e atos processuais devem ser
restritos a situaes em que, por exemplo, envolvam defesa da intimidade
ou quando houver interesse social.34

32

33

34

222

Lembramos que essa soluo que apontamos contraria a previso legal. Segundo a Lei dos processos virtuais, o credenciamento junto ao Poder Judicirio dever ocorrer por meio de procedimento em que
exigida a identificao presencial do interessado. (Artigo 2, 1, da Lei n 11.419/06). Como uma alternativa a solucionar esse impasse, verificamos que na ADIn proposta pela OAB destaca a existncia do
ICP-OAB, que seria a Autoridade Certificadora da OAB, e que poder emitir os certificados eletrnicos para os inscritos assinarem digitalmente processos virtuais.
Lei n 11.419/06: Artigo 11. (...) Pargrafo 6 Os documentos digitalizados juntados em processo eletrnico somente estaro disponveis para acesso por meio de rede externa para suas respectivas partes
processuais e para o Ministrio Pblico, respeitado o disposto em lei para as situaes de sigilo e de
segredo de Justia.
Artigo 5 LX, da Constituio Federal. Comentamos: pense-se, por exemplo, num indivduo que ajuza
ao indenizatria porque sofreu dano esttico; ou num outro que deseja saber quem seu pai; ou ainda
naquele que deseja se divorciar por ter descoberto o adultrio da parceira. So questes ntimas. Essas
pessoas tm o direito de ter suas informaes processuais devidamente resguardadas pelo Poder
Judicirio. Se elas, de incio, souberem que toda a qualquer pessoa poder acessar aquele processo virtual, ler o seu contedo e divulg-lo, provavelmente no procurar a via jurisdicional.

Os Juizados Especiais Cveis e o E-Process:


O Exame das Garantias Processuais na Esfera Virtual

223

Diante do texto legislativo, a doutrina aps de maneira divergente o


entendimento quanto ao novel dispositivo. Se por um lado uma interpretao
mostra-se bastante restritiva, limitando o acesso pelo pblico s provas documentais, seja nos casos de segredo de justia ou no, o que sem dvida, violaria o princpio da publicidade;35 o segundo entendimento, por outro lado,
assegura que o princpio da publicidade est sendo respeitado, na medida em
que confere conhecimento pblico aos atos praticados pelo Poder Judicirio
de maneira mais ampla, uma vez que disponibiliza todas as etapas do processo judicial no s para as partes, mas tambm para toda a coletividade.36
Talvez uma soluo intermediria seja facultar a todos os operadores
do direito (a includos advogados pblicos e privados, promotores e defensores pblicos) a consulta a todos os processos, reprise-se, desde que no
cobertos por alguma hiptese de segredo de justia.
Quanto aos jurisdicionados, esses poderiam consultar livremente os
processos que figuram como sujeitos ativos ou passivos. Em complemento a
isso, nos casos dos indivduos que tenham interesse, mas que no sejam partes da demanda, deveriam proceder com um requerimento que seria submetido ao juzo, acompanhado das razes, para que seja feito o exame da pertinncia, tal como ocorre nos autos fsicos quanto interveno de terceiros.
Coadunando-se as propostas acima, vemos claramente uma forma proporcional de acomodar os princpios da publicidade e da proteo intimidade, posto que salvaguarda o primeiro, sem que com isso seja mitigado o
segundo. A partir dessa linha de raciocnio, no custa lembrar que, ultimamente, tm sido frequentes os choques entre esses princpios. Vejamos, por
exemplo, as interceptaes telefnicas desregradas; a divulgao precipitada de diligncias policiais imprensa, antes que seja formado um juzo
mnimo de acusao; e a manipulao de dados sigilosos, culminando com
a desarticulao de quadrilhas que roubavam, vendiam e extorquiam pessoas, de posse de seus dados ntimos (extratos de cartes de crdito, contas
telefnicas, informaes bancrias e outras).

35
36

CALMON, Petrnio. Comentrios Lei de Informatizao do Processo Judicial. Rio de Janeiro:


Forense, 2007, p. 117.
CLEMENTINO, Edilberto Barbosa. Processo Judicial Eletrnico. Curitiba: Juru Editora, 2007, p. 151.

223

224

Humberto Dalla Bernardina de Pinho e Mrcia Michele Garcia Duarte

Outro ponto que vislumbramos o de que devam ser pensadas medidas de segurana quanto ao acesso aos autos virtuais por pessoas estranhas
ao processo, caso o texto legislativo que o restringe seja revisto. Para solucionar isso, pensamos na criao de um sistema capaz de rastrear e de registrar todas as pessoas que acessaram o histrico de cada processo. No caso de
divulgao indevida, fica muito mais fcil descobrir quem foi responsvel
pela utilizao imprpria da informao ou do documento.
Nos processos fsicos, os autos so acessados no balco cartorrio. Caso
os autos sejam retirados para fotocpia, por exemplo, a identificao e o
registro de quem os retira poder ser feita num Livro prprio. Nesses casos,
em ocorrendo a hiptese de uso indevido de informaes e documentos, a
identificao daqueles que manusearam os autos processuais fica mais fcil.
Por outro lado, na via da justia virtual, esse controle resta quase
improvvel, posto que, com o crescimento desenfreado e desregrado de lan
house, i. e., alm do uso inapropriado de ferramentas de Internet, saber-se
de onde foi feito o acesso e/ou quem foi o consulente inoportuno dos autos
virtuais, se tornar cada vez mais difcil.
Diante dessa hiptese, apontamos que h possveis solues para que
os acessos sejam controlados e monitorados, resguardando-se com isso os
princpios da publicidade, mas tambm o da intimidade. Vejam-nas abaixo.
Tomamos como exemplo as instituies bancrias, que oferecem medidas protetivas para a utilizao pelos correntistas da Internet quando da
realizao dos servios e transaes financeiras. Uma dessas medidas refere-se ao fato de que os acessos so realizados por meio de computadores
cadastrados junto ao sistema do banco, mediante o uso de senhas, bem
como que os acessos limitam-se ao uso daquela mquina cadastrada para tal
finalidade. Essa seria uma opo relevante e segura.
De toda sorte, pensemos que os Tribunais complementem os meios de
consultas aos autos virtuais na medida em que tambm passem a oferecer
espaos com mquinas disponveis e cadastradas no formato para o acesso
seguro, conforme sugerido acima, para que o pblico possa fazer consulta
virtual aos autos, mas que, para tanto, dever identificar-se perante um servidor pblico.
224

Os Juizados Especiais Cveis e o E-Process:


O Exame das Garantias Processuais na Esfera Virtual

225

A mquina cadastrada monitoraria quais processos virtuais foram acessados, por quem, a que horas e quais documentos foram consultados. Isso
poder parecer, primeira vista, uma medida ditatorial e burocrtica.
Porm, olhando-se por outro ngulo, os autos processuais, embora possam
em sua maioria ser consultados publicamente, o sero feito de maneira prudente. Por outro lado, em no sendo aplicadas essas medidas preventivas,
poder ocorrer a banalizao do interesse e do direito dos atores do processo, e, com isso, da sociedade como um todo.
Contudo, ainda que fixados esses parmetros, preciso reconhecer que
persiste outro grande entrave a obstaculizar e limitar o acesso das pessoas
ao juzo virtual. Esse comprometimento fruto dos deficientes nveis de
desenvovimento econmico-social, que so uma realidade no Brasil.
Agrava-se a questo quando atentamos para o fato de que, no custa
lembrar, nos juizados especiais pode haver o contato direto da parte interessada com o juzo competente, sem a intermediao do advogado (nas
hipteses cuja causa no exceda 20 salrios mnimos, no mbito estadual e
60 salrios mnimos na esfera federal).
Veja-se que sem a assitncia do causdico, portanto, sem o conhecimento tcnico adequado, e sem conhecer as ferramentas para o uso da
Internet e dos editores de texto, dificulta-se bastante a situao da parte na
esfera virtual. Isso pode mitigar perigosamente o princpio do acesso efetivo justia, maculando-o de forma irreversvel.
Observando mais esse vis negativo da discusso proposta, vejamos os
fundamentos a seguir.
Inicialmente, preciso dizer que, segundo pesquisas realizadas no ano de
2007 por meio de Estudos intitulados Governo Eletrnico e Habilidades
com Computador e Internet, realizados pelo Centro de Estudos sobre as
Tecnologias da Informao e da Comunicao (CETIC.br),37 constatou-se que:
a) Quanto ao acesso: apenas 25% da populao brasileira, maiores de dezesseis anos, utilizaram a internet para interagir

37

O CETIC.br responsvel pela produo de indicadores e estatsticas sobre a disponibilidade e uso


da Internet no Brasil, divulgando anlises e informaes peridicas sobre o desenvolvimento da rede
no pas. Disponvel em: <http://www.cetic.br/>. Aceso em 18/12/2008.

225

226

Humberto Dalla Bernardina de Pinho e Mrcia Michele Garcia Duarte

com rgos Pblicos, e que o acesso a esses rgos, bem como


internet como um todo, crescia em razo da renda familiar,
do grau de instruo e da classe social, ao passo que diminua o
acesso conforme aumentava a idade do internauta;
b) Quanto classe social e ao grau de instruo: apenas 11% da
populao de classes sociais D e E, bem como apenas 12%
dos que possuam somente o ensino fundamental, acessavam
internet;
c) Quanto habilidade com computador: cerca de 1/3 dos que
alegaram saber utilizar o computador, sequer haviam utilizado um editor de texto, o que uma atividade considerada
bsica, e que 73% dos adultos com mais de quarenta e cinco
anos se sentiam despreparados para utilizar o computador.
Diante dessa realidade, de verdadeira excluso digital em massa, nos
resta concluir que o processamento de feitos integralmente pela via digital
precisa ser efetivado paulatinamente e, principalmente, ser acompanhado
de polticas pblicas lcidas e razoveis, sob pena de se ferir no s o princpio da publicidade como, principalmente, o da isonomia.
Lembramos o entendimento de Luis Roberto Barroso,38 para quem efetividade significa a realizao do Direito, o desempenho concreto de sua
funo social, bem como a materializao, no mundo dos fatos, dos preceitos legais simbolizando a aproximao, to ntima quanto possvel,
entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social.
Conjugando os argumentos expostos pela OAB na ADIn n 3.880 e os
elementos estatsticos e doutrinrios supracitados, consideramos que, no
que diz respeito ao acesso justia com efetividade, a justia dever sim ser
realizada da forma mais clere possvel, mas ressaltamos que essa rapidez
deva respeitar a durao razovel do processo. Caso contrrio, a celeridade
desenfreada ser socialmente to nociva quanto as delongas processuais que
se buscam extinguir com esse mecanismo.

38

226

BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Rio de Janeiro:
Renovar, 1990, p. 76 e ss.

Os Juizados Especiais Cveis e o E-Process:


O Exame das Garantias Processuais na Esfera Virtual

227

5. Consideraes finais
Propusemos uma anlise da preservao das garantias processuais no
processo virtual. Para isso, passamos brevemente pelos movimentos de acesso justia, pelo histrico da busca por mecanismos mais cleres de conferir
justia, notadamente em matrias menos complexas, pela criao dos juizados, suas peculiaridades e pioneirismo no processo virtual na esfera nacional,
pelas argumentaes quanto constitucionalidade da Lei n 11.419/06, chegando grande indagao quanto s garantias processuais na esfera virtual.
Pois bem. A celeridade tem sido o grande objeto propulsor das modificaes legislativas. Foram muitas lei reformadoras desde 1973, quando o
nosso Cdigo de Ritos entrou em vigor. Considerando a legislao extravagante, foram mais de sessenta alteraes cuidando de procedimentos diversos, conquanto no prprio corpo do CPC, no mesmo ano de sua edio,
foram alterados setenta e dois artigos.39
Dessa data at a promulgao da Constituio de 1988, houve a alterao de vinte dois artigos, seguindo-se a Reforma do Judicirio instituda
pela Emenda Constitucional 45/04. Com isso, alguns dispositivos chegaram
a ser alterados mais de uma vez.40
Mencionamos esses dados para levar o leitor a refletir sobre a plausibilidade das alteraes, necessrias sim, sobretudo em razo dos novos conflitos em escala de massa, mas que demandam cautela e prudncia do legislador, para que no se comprometa a integridade do sistema processual diante de tantos remendos. Concordamos que as reformas sejam necessrias,
assim, como os juizados so o grande passo para desafogar a justia e conferir prestao jurisdicional da forma mais rpida, acessvel e justa possvel.
Modificar a legislao, inovar, adequar-se s novidades tecnolgicas e
utilizar-se dessas ferramentas a fim de que o Direito seja conferido e assegurado a quem o detm de fato so atitudes louvveis. Porm, como profissionais do direito, devemos analisar e exercer nossa contribuio social ao

39
40

Lei n 5.925/73.
Veja-se o caso do agravo, alterado pelas Leis n 9.139, n 10.352/01 e Lei n 11.187/05.

227

228

Humberto Dalla Bernardina de Pinho e Mrcia Michele Garcia Duarte

apontarmos em que aspecto possa haver conflito entre a celeridade proposta pelo legislador infraconstitucional e as garantias processuais.
Isso porque devemos nos preocupar com a preservao da integridade
e da coerncia do sistema, ponderando-o previamente com os setores doutrinrios e judiciais quanto viabilidade das modificaes. E, com isso, destacamos que os juizados especiais tambm esto subordinados observncia dos princpios do contraditrio e do devido processo legal, bem como
aos demais princpios fundamentais e do direito processual.
Os juizados especiais, regidos pelos princpios da informalidade, simplicidade, em que se admite at mesmo ao jurisdicionado dispensar a representao processual,41 bem como figurando como verdadeiro desbravador
ao reunir atividade judicante e tecnologia possibilitando o e-process, dever ser observado tambm sob a tica das garantias processuais, como a isonomia e o acesso justia.
A justia igualitria aquela que permite s partes a igualdade de
armas diante do Poder Judicirio. Caso contrrio acarretar um desequilbrio dentro da relao jurdica processual, principalmente, como visto
acima, em casos em que a parte acessa diretamente o Poder Judicirio, sem
a assistncia do advogado. Se a lei resolveu criar tal hiptese, deve assumir
a responsabilidade de viabiliz-la de forma adequada.
Visto isso, consideramos que, quando a temtica celeridade, notadamente para este estudo do processo virtual, aspectos importantes devem ser
ponderados para se compreender o que contribuio social e o que est se
mostrando nocivo sociedade. Isso, claro, sem deixarmos de concordar e
destacar que a informatizao do processo gera sim muitos benefcios sociais.
Benefcio maior ainda poder ser alcanado com os processos virtuais
se forem considerados e respeitados os limites do desenvolvimento econ41

228

Vale destacarmos que as doutrinas nacional e estrangeira j descreveram a importncia do papel do


advogado no contexto jurdico. Jos Afonso da Silva afirma que advogado no apenas um pressuposto da formao do Poder Judicirio, mas tambm necessrio ao seu funcionamento e, continua, afirmando que o artigo 133 da CF um princpio basilar do funcionamento do Poder Judicirio, cuja inrcia requer um elemento tcnico propulsor. SILVA, Jos Afonso da. Curso de Direito Constitucional
Positivo. 26 ed. So Paulo: Malheiros, 2006, p. 596/7. Cappelletti se pronunciou acerca do papel do
advogado como essencial, seno indispensvel para: decifrar leis cada vez mais complexas e procedimentos misteriosos, necessrios para ajuizar uma causa. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant.
Acesso Justia. Porto Alegre: Srgio Antnio Fabris, 1988, p. 32.

Os Juizados Especiais Cveis e o E-Process:


O Exame das Garantias Processuais na Esfera Virtual

229

mico, social e estrutural de nosso pas, lembrando que uma grande mudana deve ser efetivada de forma planejada, equilibrada e racionalizada. De
nada adianta buscar solues instantneas, milagrosas e com forte apelo de
mdia, quando todos ns sabemos que o processo virtual precisa de um
perodo de maturao, e no deve extinguir completamente o processo de
papel, pelo menos no em curto prazo.

6. Referncias bibliogrficas
ARONNE, Bruno. Processo digital. Informatizao da Justia exige empenho e cautela. Fonte: http://conjur.estadao.com.br/static/text/65929.
Acesso em 22/01/2009.
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BARBOSA, Hugo Leonardo Pena. Lei n 11.419/2006: o processo eletrnico como garantia de um Judicirio efetivo. In Revista Dialtica de
Direito Processual. N 49, So Paulo: Oliveira Rocha, 2007, p. 79-94.
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BRASIL/ Constituio da Repblica dos Estados Unidos do Brasil. 1934.
BRASIL/ Constituio Poltica do Imprio do Brazil. 1824.
BRASIL/ Congresso Nacional. Lei n 11.419. Dispe sobre a informatizao
do processo judicial; altera a Lei n 5.869, de 11 de janeiro de 1973
Cdigo de Processo Civil; e d outras providncias. Braslia/DF, 2006.
______. Lei n 11.187. Altera a Lei n 5.869, de 11 de janeiro de 1973
Cdigo de Processo Civil, para conferir nova disciplina ao cabimento
229

230

Humberto Dalla Bernardina de Pinho e Mrcia Michele Garcia Duarte

dos agravos retido e de instrumento, e d outras providncias.


Braslia/DF, 2005.
______. Lei n 10.352. Altera dispositivos da Lei n 5.869, de 11 de janeiro
de 1973 Cdigo de Processo Civil, referentes a recursos e ao reexame
necessrio. Braslia/DF, 2001.
______. Lei n 10.259. Dispe sobre a instituio dos Juizados Especiais
Cveis e Criminais no mbito da Justia Federal. Braslia/DF, 2001.
______. Lei n 9.139, Altera dispositivos da Lei n 5.869, de 11 de janeiro de
1973, que institui o Cdigo de Processo Civil, que tratam do agravo de
instrumento. Braslia/DF, 1995.
______. Lei n 9.099. Dispe sobre os Juizados Especiais Cveis e Criminais
e d outras providncias. Braslia/DF, 1995.
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O Exame das Garantias Processuais na Esfera Virtual

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7. Referncias eletrnicas
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http://www.ajufe.org.br
http://www.cetic.br
http://www.delegaciavirtual.rj.gov.br
http://www.jfrj.gov.br
http://www.mj.gov.br
http://www.planalto.gov.br
http://www.priberam.pt
http://www.stf.jus.br
231

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10
Reflexes sobre o Processo Eletrnico
nos Juizados Especiais Cveis
Erick Linhares
SUMRIO: 1. Introduo. 2. Desafios e resultados. 2.1. Software livre. 2.2. Benefcios. 2.3. Acesso justia. 2.4. Economia de recursos. 3. Pressupostos para implantao. 3.1. Treinamento.
3.2. Equipamento. 3.3. Unicidade do sistema. 3.4. Processos fsicos anteriores. 3.5. Responsabilidade pela insero de dados e integralidade do meio eletrnico. 3.6. Protocolo e
tempestividade. 3.7. Digitalizao invivel de documentos. 3.8. Materializao de autos virtuais. 3.9. Formato dos documentos. 3.10. Comunicaes processuais. 3.11. Defesa. 3.12. Oficiais de justia. 3.13. Sade laboral. 4. Concluso. 5. Bibliografia.

1. Introduo
A informtica mais que uma tecnologia, uma revoluo que condiciona nosso presente. Sua ampla utilizao no mundo jurdico ainda desconhecida pela maior parte dos tribunais.
O objetivo deste artigo expor, com informaes prticas, as vantagens da substituio do papel pelo registro eletrnico de autos, com base na
experincia da Justia de Roraima que, em janeiro de 2009, completou dois
anos de implantao do processo eletrnico em todos os Juizados Especiais
Cveis de sua capital.

2. Desafios e resultados
Em 2005, o Tribunal de Justia de Roraima definiu alguns pressupostos para a virtualizao de autos:
1) o software deveria ser livre;
2) a nova tecnologia deveria apresentar benefcios para o Poder
Judicirio, para os advogados, para o Ministrio Pblico e
para os cidados;
233

234

Erick Linhares

3) deveria facilitar o acesso Justia e no criar um apartheid


tecnolgico; e
4) deveria propiciar economia, reduzir o trabalho repetitivo,
otimizar o material existente e encurtar o tempo de tramitao processual.

2.1. Software livre


Muitas vezes, por questes oramentrias e por desconhecimento de
outras tecnologias, o preo acaba sendo o aspecto predominante na aquisio de tecnologia. Contudo, um sistema barato pode ser mais oneroso, se
considerarmos seus custos operacionais (pessoal, manuteno, equipamentos etc).
Em nosso caso, por srias limitaes oramentrias, as tecnologias
pagas haviam sido descartadas e optamos pelo software livre. E, dentre os
sistemas existentes, depois de testarmos alguns, especialmente dos
Tribunais Regionais Federais, adotamos o PROJUDI Processo Judicial
Digital, oferecido pelo Conselho Nacional de Justia.
Esse sistema apresentava vantagens, como transferncia de tecnologia,
manuteno feita pelo prprio Conselho Nacional de Justia, inexistncia
de nus com pessoal e doao de equipamentos de informtica. Tambm
apresentava srios riscos.
A Justia de Roraima foi pioneira nacional no uso do PROJUDI.
Iniciamos em 28 de janeiro de 2007, propositalmente domingo, para
demonstrar que era um novo tempo para o Judicirio.
A virtualizao de autos foi uma operao arriscada. Tecnologias
emergentes, como o PROJUDI, podem as vezes fracassar, comprometendo
o trabalho desenvolvido e sua credibilidade.
Alguns fatores diminuram o risco. O sistema havia sido testado e,
embora no fosse perfeito, atendia as demandas iniciais e comportava aperfeioamento. O Conselho Nacional de Justia estava fornecendo todo o
suporte material e tcnico, sem custos. A tecnologia era de uso simples, dispensando longos cursos ou grossos manuais. Por fim, o Conselho Nacional
de Justia pretendia disseminar o PROJUDI em mbito nacional (o que de
234

Reflexes sobre o Processo Eletrnico nos Juizados Especiais Cveis

235

fato ocorreu), simplificando a migrao para novas tecnologias, caso o


PROJUDI se tornasse obsoleto.

2.2. Benefcios
Muitos precisaram ser convencidos que o processo eletrnico no era
apenas outro brinquedo tecnolgico, mas uma escolha racional que contribuiria para melhorar a Justia, pelos seguintes motivos:
1)
2)
3)
4)
5)

ecologicamente correto;
reduz custos para o Poder Judicirio;
simplifica a comunicao processual (intimaes e citaes);
torna a Justia funcional vinte e quatro horas por dia;
apresenta comodidades: permite que o advogado peticione e
que o juiz decida de qualquer lugar do planeta;
6) elimina o tempo morto na tramitao do processo;
7) inviabiliza subtrao ou desaparecimento de autos; e
8) facilita o acesso do cidado Justia.

2.3. Acesso justia


Quando iniciamos o sistema, nossa principal preocupao era um apartheid tecnolgico. Assim, justamente com a implantao do PROJUDI
foram feitas campanhas de marketing sobre suas vantagens. Tambm foram
realizados vrios cursos para os usurios internos (magistrados e servidores)
e externos (partes e advogados). Apenas para dar exemplo, o principal jornal de Boa Vista,1 nesses 24 meses de utilizao do sistema, publicou 46
reportagens sobre o processo eletrnico.
Ainda assim, quando de sua implantao houve desconforto e insegurana em muitos usurios. O que natural, o novo sempre causa aflio.

Folha de Boa Vista (www.folhabv.com.br).

235

236

Erick Linhares

Em relao aos advogados, maiores usurios do sistema, percebemos


que os mais jovens (at quarenta anos) no tiveram dificuldades em se adaptar. Os mais antigos se dividiram entre os que se reciclaram, frequentando
cursos de informtica e os que, infelizmente, abandonaram a advocacia nos
Juizados Especiais, ao menos temporariamente.
Hoje, dos 679 inscritos na OAB de Roraima, 597 esto cadastrados no
PROJUDI, ou seja, 87,92%, praticamente a totalidade dos advogados militantes. Por outro lado, as reclamaes iniciais sobre a dificuldade em peticionar desapareceram. Inclusive, muitos advogados acompanham seus processos atravs de telefone celular.
Em relao s partes que exercem o jus postulandi diretamente, no
tivemos reclamaes, por incrvel que possa parecer.
Nossa estratgia foi realizar um bom treinamento com a equipe de
atermao dos Juizados Especiais, bem como criar uma Central de Atendimento do PROJUDI, para tirar dvidas sobre o sistema e orientar o peticionamento.
Essas medidas, em conjunto, aumentaram substancialmente a demanda, algo que no espervamos que acontecesse de maneira to abrupta.
O grfico adiante registra o nmero total de processos em cada ano de
funcionamento dos Juizados Especiais de Boa Vista, desde sua implantao em
novembro de 1995 at o trmino de 2008, perodo pesquisado neste artigo.
No primeiro ano de implantao do processo eletrnico (2007), o
aumento no nmero de aes aforadas foi de 26,87%. Em 2008 foi de
25,48%. Ou seja, nesse perodo, o incremento total da demanda foi de
52,35%, algo que nunca havia acontecido.
Os seguintes nmeros expressam o pleno xito da implantao em seus
dois primeiros anos: 6.231 sentenas, 40.184 despachos, 3.396 tutelas antecipadas, 11.896 audincias realizadas, 31.405 intimaes eletrnicas e 606
citaes eletrnicas.
Acreditamos que a divulgao dada pela imprensa ao novo sistema,
como instrumento apto a agilizar a tramitao processual e simplificar o
acompanhamento processual, possa ter incentivado o aumento de demanda nos primeiros meses, mas no justifica a sua elevao contnua. Esta,
indubitavelmente, decorre da receptividade da inovao.
236

Reflexes sobre o Processo Eletrnico nos Juizados Especiais Cveis

237

TOTA L DE PROCESSOS: 1995 - 2008

7000

6550

N DE AES

6000
5000

4881

4000
3000

2299

2000

1377

1000
0

1153

1753
1274

1803

1776

2706
2603

3569
2784

214
1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008
ANO

Fonte: Coordenadoria dos Juizados Especiais do TJRR

A agilizao digital refletiu no nmero de processos arquivados, com


aumento de 54,93 % no primeiro ano (2007) e 8,72% em 2008, ou seja,
63,65% no binio, com diminuio na taxa de congestionamento.

Fonte: Coordenadoria dos Juizados Especiais do TJRR

237

238

Erick Linhares

O tempo mdio de tramitao processual tambm foi reduzido, no


primeiro ano de implantao do processo eletrnico, em 39 dias (2007),
caindo de 115 para 76 dias. Entretanto, em 2008, devido ao aumento da
demanda, este nmero voltou a subir para 108 dias, como mostra o grfico
abaixo.

Fonte: Coordenadoria dos Juizados Especiais do TJRR

Esse aumento no tempo de tramitao importantssimo, ao revelar


que o processo eletrnico no a cura para todos os males, uma espcie de
emplasto Brs Cubas judicial, como constantemente apregoado. Ele tem
limitaes e gargalos. A sobrecarga de trabalho do magistrado e a incapacidade para dar vazo crescente demanda so os principais problemas e,
para eles, a informtica no tem soluo aparente.

2.4. Economia de recursos


Identificamos os seguintes insumos que incidem sobre o processo fsico, segundo metodologia desenvolvida pela eminente magistrada Sulamita
Pacheco,2 do Tribunal de Justia do Rio Grande do Norte:

238

Relatrio apresentado ao Presidente do TJRN, em 04.10.2007.

Reflexes sobre o Processo Eletrnico nos Juizados Especiais Cveis

a)
b)
c)
d)

239

folha de papel: R$ 0,03/unidade;


impresso da pgina em impressora laser: R$ 0,23/unidade;
capa de processo: R$ 3,00/unidade;
outros insumos (grampos, clips, colchetes etc): R$ 0,02.

Adotando-se uma mdia de 70 folhas por processo, chegaremos aos


seguintes custos: (a) folha de papel R$ 2,10 [R$ 0,03 X 70], (b) impresso:
R$ 16,10 [R$ 0,23 X 70], (c) capa de processo: R$ 3,00, (d) insumos: R$ 0,20
[R$ 0,02 X 10]. Atravs desses dados, conclumos, por conseguinte, que
cada processo custa aos cofres pblicos R$ 21,40.
Como foram ajuizados nesses dois anos 11.431 processos eletrnicos,
podemos afirmar que houve uma economia de R$ 244.623,40 para o Poder
Judicirio, apenas em papel e material de expediente. Se incluirmos nesse
clculo custos de comunicao processual (intimao e citao), transporte
e armazenamento de autos fsicos, bem como o tempo de atuao dos servidores no processo, essa economia aumentar, consideravelmente.

3. Pressupostos para implantao


3.1. Treinamento
No incio tivemos muitas falhas banais, por causa de serventurios,
advogados e magistrados, na ocasio mal instrudos sobre as funcionalidades do sistema.
O treinamento constante no prprio Juizado Especial, com monitoramento de erros, juntamente com cursos e palestras sobre o processo eletrnico, foi a mais adequada ferramenta para impedir os equvocos.
Tambm, para melhor capacitao dos usurios do sistema, interessante a realizao de cursos bsicos de informtica pelo Tribunal de Justia.

3.2. Equipamento
A implantao do processo eletrnico pressupe a prvia instalao de
equipamentos de auto-atendimento ( 3 do art. 10 da Lei n 11.419/2006).
239

240

Erick Linhares

Cumprimos a lei, colocando computadores na sala da OAB no frum


e treinando seus funcionrios. Ainda assim, em pouco tempo, com o
aumento da demanda, filas de advogados surgiram diante dos aparelhos. As
reclamaes foram frequentes, no obstante o aumento constante do nmero de computadores.
Esses problemas decorreram, em grande parte, do pssimo servio de
internet prestado em Roraima, que obrigou muitos advogados a utilizarem
a banda larga do frum.
A soluo foi firmar convnio com os provedores de internet de Boa
Vista para acesso direto antena do Tribunal de Justia, tornando o PROJUDI mais rpido para os usurios externos.
Atualmente estamos instalando aparelhos de auto-atendimento em
locais de grande circulao, como terminais de nibus, aeroporto e rodoviria, dentre outros.
A idia que o cidado utilize esses terminais para entrar com suas
aes, at oralmente. Para tanto, so dotados de monitor tochscreen, dois
alto-falantes, monofone, cmera de vdeo, teclado alfanumrico, impressora trmica, scanner e duas entradas USB.
Quando estiverem em funcionamento serviro para formulao oral
de pedidos, entrega eletrnica de peties, intimaes, pagamento de custas e acompanhamento de processos.
Em relao ao cartrio, a estrutura de trabalho com balco de atendimento, escaninho e mesas no mudou, como pensvamos inicialmente. O
aumento expressivo da demanda trouxe apenas readequao de espao, em
decorrncia do desaparecimento dos autos fsicos.

3.3. Unicidade do sistema


O processo eletrnico que implantamos funciona exclusivamente
atravs do software PROJUDI.
Atualmente, estamos pensando em romper a unicidade do sistema de
processo eletrnico. O PROJUDI tem sido ineficiente na Turma Recursal,
no obstante as tentativas para aperfeio-lo.
240

Reflexes sobre o Processo Eletrnico nos Juizados Especiais Cveis

241

A Turma Recursal tem sido o calcanhar de Aquiles do PROJUDI, com


graves e urgentes problemas, como processos perdidos,3 duplicados e
indevidamente conclusos. Atrasando a prestao jurisdicional.
Em razo disso, decidimos substituir o PROJUDI - Turma Recursal
pela Sesso-Eletrnica, sistema usado pelo Conselho Nacional de Justia, o
qual funciona bem melhor em segundo grau: mais seguro, estvel e com a
possibilidade de prvia discusso de voto, simplificando o julgamento.

3.4. Processos fsicos anteriores


Optamos por no digitalizar os autos fsicos quando o PROJUDI foi
implantado.
A celeridade dos processos em curso nos Juizados Especiais indicava
que em breve seriam extintos, o que de fato aconteceu. Aps dois anos de
implantao do sistema, sobraram apenas 72 processos, todos em execuo.

3.5. Responsabilidade pela insero de dados e integralidade do


meio eletrnico
Os autos do processo eletrnico so integralmente digitais, sendo responsabilidade de cada usurio a insero de documentos, todos em formato digital, sem necessidade da interveno do cartrio.

3.6. Protocolo e tempestividade


O protocolo de peties no PROJUDI ininterrupto, ou seja, a Justia
se tornou funcional vinte e quatro horas por dia, permitindo vista de autos
e peticionamento em qualquer horrio.
Contudo, como ocorre com os bancos, registramos apages e casos
de lentido do sistema.

Perdidos so processos que ficam invisveis para o usurio, no obstante permaneam na base de
dados; exigindo-se consulta manual nesta para sua localizao.

241

242

Erick Linhares

Por isso, h necessidade de se desenvolver um mdulo que certifique o dia,


o horrio e a durao de eventual inoperncia do sistema PROJUDI, de
modo que tal informao fique acessvel aos usurios.

3.7. Digitalizao invivel de documentos


Dispensamos a digitalizao quando for tecnicamente invivel ou
excessivamente volumosa.
Nesse caso, se certifica nos autos eletrnicos e os documentos ficam disponveis em cartrio, com meno ao processo eletrnico a que se refiram.

3.8. Materializao de autos virtuais


A materializao do processo eletrnico pode ser parcial (somente
algumas peas) ou total (a integridade do processo) e feita pelo cartrio,
mediante determinao judicial.

3.9. Formato dos documentos


Quando iniciamos o PROJUDI, qualquer formato de documento era
admissvel, o que acabou gerando problemas. Alguns desses formatos eram
pagos e outros de difcil acesso, comprometendo a abertura de documentos
e a prestao jurisdicional. Apenas para dar exemplo, chegamos a ter mais
de 15 programas de abertura de documentos, o que no razovel.
Atualmente, as peties e documentos enviados ao processo eletrnico so gravados apenas nos formatos PDF (Portable Document Format) ou
html (hypertext markup language), disponibilizados gratuitamente na
internet, em stio do Judicirio de Roraima.

3.10. Comunicaes processuais


As citaes e intimaes dos usurios cadastrados so feitas de forma
eletrnica. A citao ou intimao eletrnica acontece com a leitura do respectivo documento na tela do usurio citado ou intimado.
242

Reflexes sobre o Processo Eletrnico nos Juizados Especiais Cveis

243

3.11. Defesa
A resposta do requerido apresentada em audincia de instruo e julgamento, podendo o juiz determinar a insero eletrnica dos documentos
que reputar relevantes, ou determinar que seja certificado em ata resumidamente o seu contedo e, em qualquer dos casos, os documentos so restitudos parte que os apresentou, ao final da audincia.

3.12. Oficiais de justia


A ausncia de uma Central de Mandados dentro do PROJUDI gera
srios problemas.
Enquanto o sistema no aperfeioado, a soluo foi certificar nos
autos o nome do oficial de justia, a data da distribuio do mandado e o
resultado de sua diligncia. Servio que feito manualmente, consumindo
tempo que poderia ser melhor aproveitado.

3.13. Sade laboral


H necessidade de criao de uma poltica de sade laboral para os servidores e magistrados usurios do sistema. Infelizmente, nesses dois anos de
utilizao do processo eletrnico no conseguimos sensibilizar sobre esta
questo.
At o momento, felizmente, no registramos licenas por L.E.R. ou
doenas correlatas, mas s uma questo de tempo. Existe ampla literatura
mdica sobre os danos decorrentes de uso excessivo de computador. E sem
orientao adequada, essas leses provavelmente ocorrero.

4. Concluso
O processo eletrnico, diante de seu potencial de transformao da
Justia e de sua prtica, rompe com o status quo de sculos. uma grande
oportunidade e um imenso risco. Tudo depende de seu gerenciamento, que
243

244

Erick Linhares

passa por vrias administraes do Tribunal de Justia, exigindo-se muito


planejamento e comprometimento.
Com efeito, embora a virtualizao de autos seja inevitvel, seu caminho no fcil e tampouco isento de erros. preciso boa vontade e tolerncia para superao dos inmeros obstculos presentes e futuros.
Da a grande importncia do dilogo com todos os envolvidos (magistrados, servidores e advogados) para desarmar resistncias e para o pleno
xito do sistema.
Por fim, no se deve esquecer que o processo eletrnico apenas mais
uma ferramenta para aperfeioar a prestao jurisdicional, devendo ser
conjugado com outras prticas para que resultados mais significativos sejam
alcanados.

5. Bibliografia
TRIBUNAL DE JUSTIA DE RORAIMA. Coordenadoria dos Juizados
Especiais. Boa Vista: 2009.
_____. Coordenadoria do PROJUDI. Boa Vista: 2009.

244

V
Direito do Consumidor
e Juizados Especiais Cveis

men Juris Editora Lumen Juris Editora Lumen Juris Editora


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11
Tutela do Consumidor: Por que os
Juizados Especiais?
Delton Ricardo Soares Meirelles
Marcelo Pereira de Mello

SUMRIO: 1. Introduo. 2. O Juizado Especial como expoente do Acesso Justia no


Brasil. 3. A tutela jurisdicional das relaes de consumo nos Juizados especiais. 4. Composio dos conflitos por agncias reguladoras. 5. Os juizados so mais confiveis que as
agncias?. 6. Os juizados especiais so mais efetivos que as agncias reguladoras?. 7. Deve o
Judicirio conhecer imediatamente destes conflitos?. 9. Concluso. 10. Referncias bibliogrficas.

1. Introduo
A proteo do consumidor e os juizados especiais demonstram ser dois
dos mais importantes instrumentos de acesso ao direito na atualidade.
Ambos so vistos associados, sendo os conflitos de consumo protagonistas
dos processos nos juizados especiais. Neste artigo ser questionada esta preferncia, haja vista a possibilidade da utilizao das agncias reguladoras
como instncia alternativa, nos conflitos envolvendo empresas concessionrias de servios pblicos.
Para tanto, ser abordado como os juizados especiais incorporaram a
judicializao das relaes de consumo, analisados num contexto de redemocratizao e reformas do Estado brasileiro. Em seguida, verificar-se- se
as agncias reguladoras poderiam ser utilizadas como rgo extrajudicial
para resoluo dos conflitos envolvendo concessionrias de servios pblicos. Por fim, buscar-se-o os motivos que induzem o consumidor a buscar
imediatamente a tutela jurisdicional estatal.
A pesquisa, alm de conter reviso literria necessria, inclui a anlise
de diversos julgados e dados estatsticos oficiais sobre o tema.
247

248

Delton Ricardo Soares Meirelles e Marcelo Pereira de Mello

2. O Juizado Especial como expoente do Acesso Justia


no Brasil
O Judicirio ocidental, reconhecendo as barreiras de acesso Justia,1
acaba por incorporar as reivindicaes por uma reforma profunda de mentalidade, a fim de que o direito no mais encarado apenas do ponto de vista
dos produtores (poder legislativo estatal), mas tambm sob a tica dos consumidores do Direito e da Justia.2 A conscincia da existncia dos direitos
e, acima de tudo, um reclamo pela sua efetividade e cumprimento levaram
a uma busca maior pela tutela jurisdicional, a qual passa a ser visto como
um servio pblico e no mais uma corte mtica.
A partir do final dos anos 70, os pases ocidentais centrais passavam por
um perodo de reestruturao estatal, devido crise do Welfare State e a
necessidade de maior legitimao poltico-social. Na Amrica do Sul, posto
tambm ter sentido os efeitos desta crise, no pode ser esquecido o peculiar
processo de redemocratizao, aps longos perodos ditatoriais (Brasil
1964/1984; Argentina 1966/1973 e 1976/1983; Uruguai 1973/1985 e Chile
1973/1990, p. ex.). Traumatizados com tais perodos de represso, houve
um intenso processo de incorporao de valores democrticos e polticas
sociais. Com isto, ELIANE BOTELHO JUNQUEIRA afirma que o debate
sobre o acesso Justia no Brasil no se deve apenas crise do Estado de
bem-estar social, como acontecia ento nos pases centrais, mas sim pela
excluso da grande maioria da populao de direitos sociais bsicos, entre
os quais o direito moradia e sade.3

1
2
3

248

CAPPELLETTI, Mauro. & GARTH, Bryant. Acesso Justia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988.
CAPPELLETTI, Mauro O problema de reforma do processo civil nas sociedades contemporneas in
O Processo Civil Contemporneo, p. 16.
Complementando seu pensamento, afirma que a anlise das primeiras produes brasileiras revela que
a principal questo naquele momento, diferentemente do que ocorria nos demais pases, sobretudo nos
pases centrais, no era a expanso do welfare state e a necessidade de se tornarem efetivos os novos
direitos conquistados principalmente a partir dos anos 60 pelas minorias tnicas e sexuais, mas sim a
prpria necessidade de se expandirem para o conjunto da populao direitos bsicos aos quais a maioria no tinha acesso tanto em funo da tradio liberal-individualista do ordenamento jurdico brasileiro, como em razo da histrica marginalizao scio-econmica dos setores subalternizados e da
excluso poltico-jurdica provocada pelo regime ps-64 (JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Acesso
Justia: um olhar retrospectivo in Revista Estudos Histricos, n 18, 1996, p. 01, disponvel em
<http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/201.pdf>).

Tutela do Consumidor: Por que os Juizados Especiais?

249

No Brasil, a reforma do Estado tornou-se prioritria nos anos 80, a


ponto de ser criado o Ministrio da Desburocratizao, com o objetivo de
reestruturar a administrao pblica em geral. Entretanto, ao contrrio do
que ocorre em outros pases, em que o Executivo assume as polticas pblicas judicirias (como a Frana), no Brasil o corporativismo judicirio consegue se articular a ponto de protagonizar as polticas de reformas.4
Isto ficou muito claro na fundao dos juizados especiais. Apesar de o
Ministrio da Desburocratizao ter formulado projetos de simplificao da
Justia, a primeira experincia concreta ocorreu no Rio Grande do Sul
(1983), onde foi testado pela primeira vez um Conselho Informal de
Conciliao. LUIZ WERNECK VIANNA e outros cientistas polticos defendem a tese de que a magistratura se apropriou da experincia gacha para
represar uma iniciativa mais contundente do Executivo, como a criao de
uma agncia especializada ou uma poltica de estmulo a meios alternativos.5 LUCIANA GROSS CUNHA, por outro lado, aponta uma ferrenha crtica a esta composio de burocratas e juzes paulistas. Segundo a pesquisadora da FGV, havia uma oposio especialmente de advogados e associaes
de classe, que no tomaram parte da elaborao do anteprojeto e viam em
seu texto uma ameaa ao exerccio da profisso e at mesmo justia,6 j
que o texto veio praticamente pronto do Ministrio da Desburocratizao,
sem possibilitar maiores debates quanto sua implementao.

Sobre o poder corporativo dos magistrados brasileiros nas reformas judicirias, ver MELLO, Marcelo
Pereira de & MEIRELLES, Delton R. S. A reforma da Justia do Trabalho e o embate Judicirio X Legislativo, in Revista de direito da Universidade Municipal de So Caetano do Sul, n 14, jan./jul. 2008.
VIANNA, Luiz Werneck, CARVALHO, Maria Alice Resende de, MELO, Manuel Palcios Cunha &
BURGOS, Marcelo Baumann. A judicializao da poltica e das relaes sociais no Brasil. RJ: Revan,
1999, p. 167. Estes pesquisadores, mais a frente, afirmam que por motivaes distintas, ambos os universos o do associativismo dos magistrados gachos e o do Executivo Federal - convergiram na preocupao em reformar as prticas e as instituies do Poder Judicirio; no primeiro caso, atendendo s
presses sociais por direitos e visando criar um espao institucional onde a litigiosidade presente na
sociedade brasileira pudesse ser explicitada; no segundo caso, orientando-se por uma rationale tecnocrtica, coerente com os objetivos de simplificao e de modernizao do aparelho de Estado (...).
Assim, embora informada por uma perspectiva quase oposta, a que talvez no fosse estranha a contribuio terica de M. Cappelletti sobre a democratizao do acesso Justia, a experincia reformadora
ensaiada pelos juzes do Rio Grande do Sul acabaria tendo influncia sobre a agenda de modernizao
institucional concebida pelo executivo. (op. cit., p. 170)
CUNHA, Luciana Gross. Juizado Especial: criao, instalao, funcionamento e a democratizao do
acesso justia. 1 ed. So Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 31.

249

250

Delton Ricardo Soares Meirelles e Marcelo Pereira de Mello

De qualquer modo, os interesses dos poderes Executivo e Judicirio


convergiram na regulamentao federal dos Juizados de Pequenas Causas
(Lei n 7.244/84), os quais seguem um procedimento diferenciado para
demandas de pequeno valor. Como da tradio jurdico-poltica brasileira, o acesso Justia acabou se tornando preliminar ao acesso ao direito
material, quando o ideal seria o inverso.7
A justificativa formal da criao dos juizados especiais, consoante se
observa no discurso de um dos autores do anteprojeto, KAZUO WATANABE, seria a composio de conflitos que raramente chegavam ao Judicirio
tradicional, em virtude da morosidade, custas, formalidades etc. Seria importante, portanto, a criao de rgos especficos para resolver a litigiosidade
contida, entendida como fenmeno extremamente perigoso para a estabilidade social, pois um ingrediente a mais na panela de presso social, que j
est demonstrando sinais de deteriorizao do seu sistema de resistncia.8

3. A tutela jurisdicional das relaes de consumo nos


Juizados especiais
O processo de redemocratizao, alm de expor a demanda reprimida
pelo regime de exceo ps-1964, incorpora legal e constitucionalmente
uma srie de reivindicaes. Talvez um dos grandes expoentes seja a tutela
das relaes de consumo, objeto de considerao especial pelo legislador
constituinte:
O direito do consumidor e instrumentos para sua proteo
devem constar de forma explcita no texto constitucional.

250

Como destaca LEONARDO GRECO, Sem dvida o ltimo pressuposto do acesso ao Direito o acesso
Justia, no sentido de acesso a um tribunal estatal imparcial, previamente institudo como competente, para a soluo de qualquer litgio a respeito de interesse que se afirme juridicamente protegido ou
para a prtica de qualquer ato que a lei subordine aprovao, autorizao ou homologao judicial
(O acesso ao direito e Justia, in Estudos de Direito Processual. Campos dos Goytacazes: Faculdade
de Direito de Campos, 2005, p. 205).
WATANABE, KAZUO. Filosofia e caractersticas bsicas do Juizado Especial de Pequenas Causas in
Juizado Especial de Pequenas Causas (Coord. Kazuo Watanabe). So Paulo: Revista dos Tribunais, 1985,
p. 02.

Tutela do Consumidor: Por que os Juizados Especiais?

251

O movimento de defesa do consumidor, no Brasil, iniciouse em fins da dcada de 70 em decorrncia da crescente conscientizao da sociedade sobre prticas abusivas de produo e
comercializao de bens e servios, sob a complacncia dos
poderes pblicos.
O nmero de propostas sobre o assunto encaminhadas a
esta Subcomisso bem demonstra a necessidade de se estabelecer princpios constitucionais que venham a orientar a formulao de um Cdigo do Consumidor.
(...) Os objetivos gerais do referido cdigo voltam-se para
assegurar aos cidados a defesa de seus interesses e, ao mesmo
tempo, concorrer para o aprimoramento da atividade econmica como um todo.9
Ressalte-se que este processo no foi exclusivo do Brasil, e sim se insere num cenrio global de acesso Justia e novos direitos.10 Entretanto,
importante destacar como os juizados especiais e a defesa do consumidor
foram constitucionalizados e regulamentados concomitantemente,11 no
sendo raro associ-los como grandes representantes de um modelo jurdico
democrtico e cidado,12 ainda que proporcionalmente pouco utilizados
pela populao.
Duas pesquisas de campo demonstram isto. No municpio de Niteri
(RJ), 81,3% dos entrevistados identificaram os juizados como rgos jurisdicionais (ndice superior ao da Justia do Trabalho 78%; e do TRE

9
10

11

12

BRASIL. Assemblia Nacional Constituinte. Relatrio e Anteprojeto da subcomisso dos direitos polticos, dos direitos coletivos e garantias. Disponvel em: <www.mj.gov.br>.
No surpreendente, portanto, que o direito ao acesso efetivo justia tenha ganho particular ateno na medida em que as reformas do welfare state tm procurado armar os indivduos de novos direitos substantivos em sua qualidade de consumidores (CAPPELLETTI, Mauro. & GARTH, Bryant.
Acesso Justia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988, p. 10).
Os juizados especiais encontram-se previstos na Constituio (art. 95, I) e nas Leis ns 9.099/95 e
10.259/01; ao passo que a tutela do consumo tornou-se garantia constitucional (art. 5, XXXII) e merecedora de cdigo prprio (Lei n 8.078/90)
Pode-se incluir tambm a tutela coletiva do consumo, com a previso expressa da Lei n 7.347/85, a qual
garante a proteo do consumidor (art. 1, II) e conseqente extenso da legitimidade extraordinria.
Mais tarde, a Lei n 8.078/90 (Cdigo de Defesa do Consumidor) passa a regular especialmente a matria a partir de seu art. 81.

251

252

Delton Ricardo Soares Meirelles e Marcelo Pereira de Mello

58,2%), inferior apenas ao Tribunal de Justia (90,2%) e ao Frum (89,4%).


Esta mesma pesquisa revela que a maior parte da populao ainda no utilizou o Judicirio (61%), sendo que daqueles que j ingressaram com ao,
16% foram a um juizado especial (ndice inferior apenas ao da Justia do
Trabalho 23%). Outro dado relevante: os juizados especiais so utilizados
principalmente pela classe mdia: 45,5% dos entrevistados tinham renda
familiar superior a dez salrios mnimos mensais, sendo que apenas 11,4%
recebia menos que trs salrios mnimos.13
Em outra pesquisa mais abrangente (incluindo nove capitais), organizada pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ), em
convnio com a Secretaria de Reforma do Judicirio (Ministrio da Justia),
h um diagnstico mais completo e comparativo sobre os juizados especiais.
Um dos destaques o protagonismo dos conflitos de consumo, beneficiada
pela incompetncia para apreciao de outras causas que tambm seriam
populares (como trabalhistas, familiares e fazendrias locais), e motivada
especialmente pela ascenso concomitante da regulamentao jurdica dos
direitos do consumidor (Lei n 8.078/9014) e dos juizados (Lei n 9.099/95).
Interessante destacar que o Rio de Janeiro detm uma realidade sensivelmente diferente dos demais judicirios estaduais. Enquanto na mdia das
capitais os conflitos de consumo respondem por 37,2% dos processos, na
capital fluminense sua presena macia: 79%.15
No outro lado da baa de Guanabara, Niteri apresenta dados semelhantes em seus juizados especiais. Tomando por base o ano de 2004 (contemporneo pesquisa do Ministrio da Justia), os juizados especiais nite-

13
14

15

252

MELLO, Marcelo Pereira de & MEIRELLES, Delton R. S. A Cultura Legal do Cidado de Niteri, in
Cadernos CEDES/IUPERJ, n 03.
Destaque-se o art. 6, VII: So direitos bsicos do consumidor: (...) o acesso aos rgos judicirios e
administrativos com vistas preveno ou reparao de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteo Jurdica, administrativa e tcnica aos necessitados.
BRASIL (Ministrio da Justia/Secretaria de Reforma do Judicirio). Diagnstico dos Juizados
Especiais Cveis. Disponvel em www.mj.gov.br, 2006. Merece nota o trabalho pioneiro de PAULO
CEZAR PINHEIRO CARNEIRO, cuja pesquisa sobre acesso Justia no Rio de Janeiro aponta que
em todos os juizados pesquisados, pelo menos 50% das causas tm por base relaes de consumo
(Acesso Justia: juizados especiais. cveis e ao civil pblica. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003,
p. 144).

Tutela do Consumidor: Por que os Juizados Especiais?

253

roienses julgaram 22.211 processos, dos quais 12.794 (58%) eram referentes
a direito do consumidor.16
Com relao ao Estado do Rio de Janeiro, seu Tribunal de Justia apresenta estatstica parcial de 2008 (atualizada at agosto17), revelando que 30
empresas respondem por 86% dos processos nos juizados especiais, todas
referentes direta ou indiretamente a relaes de consumo. Dentre elas, destacam-se as empresas de telefonia (2 Telemar/Oi telefonia fixa; 5 Vivo; 8 TIM; 9 Oi celular; 11 Claro e 24 Embratel/Livre/Vsper),
energia eltrica (3 Light e 4 AMPLA) e gua (14 CEDAE). No caso
de servios de telecomunicaes, dados do Ministrio da Justia mostram
que mais de um tero (33,6%) dos processos nos juizados especiais envolvem litgios de consumo envolvendo empresas de telefonia (na mdia das
capitais pesquisadas, o ndice menor: 22,8%).18
A empresa Telemar/Oi, a propsito, tem o ttulo nada honroso de
empresa mais acionada desde o incio do servio estatstico no Rio de
Janeiro.19 Uma das medidas para atenuar sua participao foi o acordo entre
a concessionria e o Judicirio fluminense em 1999, instituindo-se o projeto Expressinho, como uma instncia conciliatria prvia aos juizados.
interessante a observao de uma pesquisadora do projeto de diagnstico
dos juizados especiais brasileiros:
De qualquer sorte, nossa impresso pessoal de que a
TELEMAR tem uma atuao diferenciada no Rio de Janeiro: h
maior volume de celebrao de acordos (mesmo em se tratando
de indenizao por dano moral), h mutires, nos quais a
empresa desiste do recurso interposto e paga, de pronto, o valor
determinado na sentena. Contudo, enquanto no restante do

16

17
18
19

MELLO, Marcelo Pereira de & MEIRELLES, Delton R. S. Legitimidade judicial versus comunitria:
efeitos da atuao dos juzes leigos nos conflitos de vizinhana, in Anais do 6 Encontro da Associao
Brasileira de Cincia Poltica, 2008, Campinas.
Dados disponveis em: <http://www.tj.rj.gov.br/cgj/servicos/estatisticas/top30.html>.
BRASIL (Ministrio da Justia/Secretaria de Reforma do Judicirio). Diagnstico dos Juizados Especiais
Cveis. Disponvel em: <www.mj.gov.br>, 2006.
Se somarmos as causas envolvendo a TELEMAR NORTE LESTE S/A (OI telefonia fixa) e TNL PCS
S.A. (OI - telefonia celular), esta empresa foi acionada em 170.359 (16% do total de 1.049.265 processos nos juizados especiais fluminenses entre janeiro/2005 e agosto/2008).

253

254

Delton Ricardo Soares Meirelles e Marcelo Pereira de Mello

pas todos os acordos so cumpridos, bastante expressivo o


percentual de acordos inobservados e, portanto, executados.20
O nmero alto de aes, aliado costumeira presena de empresas
concessionrias de servios pblicos,21 demonstra que as leses aos direitos
dos consumidores so rotineiras. Ao mesmo tempo em que este fenmeno
poderia ser lido como uma ampliao do acesso Justia, garantindo uma
tutela jurisdicional antes inimaginvel; a presena constante de tais empresas acaba congestionando os cartrios e, consequentemente, acarretando
maiores custos operacionais (funcionrios tcnico-administrativos e adiamento de audincias).
Com isso, verifica-se que os juizados especiais vm se transformando
em um verdadeiro balco de reclamaes de consumidores, atendendo a um
constante litgio de massa22 em prejuzo de decises mais artesanais23 (como
os conflitos de vizinhana24). Com tamanho afluxo de casos semelhantes,

20

21

22

23

24

254

FERRAZ, Leslie Shrida. Relatrio pesquisa juizados especiais cveis Rio de Janeiro in BRASIL
(Ministrio da Justia/Secretaria de Reforma do Judicirio). Diagnstico dos Juizados Especiais Cveis.
Disponvel em: <www.mj.gov.br>, 2006, p. 80.
Considerados por CAPPELLETTI & GARTH como litigantes habituais, os quais gozam de diversas vantagens em relao aos consumidores, geralmente litigantes eventuais (Acesso Justia. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1988, p. 24).
Estes litgios de massa poderiam ser compostos coletivamente pelos procedimentos prprios, como j
defendiam CAPPELLETTI & GARTH. Vale aqui a observao de PAULO CEZAR PINHEIRO CARNEIRO, para quem existem vrias situaes comuns nas diversas aes nas quais figuram como rus as
pessoas antes mencionadas que, em tese, poderiam configurar direitos individuais homogneos, protegidos por ao civil pblica, no juzo competente (Acesso Justia: juizados especiais. cveis e ao civil
pblica. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 145). Frise-se que tais aes coletivas no poderiam ser
conhecidas pelos juizados, conforme entendimento consolidado no enunciado n 32 do FONAJE
(Frum Nacional dos Juizados Especiais).
Uma das solues adotadas no Rio de Janeiro foi a implementao de juzes leigos, auxiliares do juiz
togado. Entretanto, a burocratizao e a ausncia de legitimidade social e preparo tcnico acarretaram
a perda de credibilidade destes agentes. Esta curiosa passagem d a dimenso deste problema:
Interessante notar a postura do Magistrado em relao ao juiz leigo. Ele um pouco avesso idia,
entendendo que a administrao da pauta dos novos julgadores vai atrapalhar sua rotina. Ademais,
disse que os juzes leigos querem desfrutar do mesmo prestgio que os togados. Segundo ele, numa
festa da alta sociedade carioca, uma juza leiga deu a entender que era Magistrada, e os demais
magistrados ficaram perguntando em qual concurso ela havia sido admitida, at que, depois de
muito apert-la, ela revelou que era uma mera juza leiga (FERRAZ, Leslie Shrida. Relatrio
pesquisa juizados especiais cveis Rio de Janeiro in BRASIL (Ministrio da Justia/Secretaria de
Reforma do Judicirio). Diagnstico dos Juizados Especiais Cveis. Disponvel em www.mj.gov.br,
2006, p. 82/83).
Sobre o tema, MEIRELLES, Delton R. S. Juzes leigos comunitrios: acesso Justia nas cidades in Ab
Initio (Revista da faculdade de direito da Universidade Federal Fluminense), n 01.

Tutela do Consumidor: Por que os Juizados Especiais?

255

talvez fosse o caso de se implementar juizados com competncia especfica


para relaes de consumo.25
Diversamente do que se poderia supor, a absoro integral destes conflitos massificados e usuais pelos juizados especiais no significa garantia de
pleno acesso Justia, conceito este mascarado pela realidade de um demaggico acesso aos rgos judicirios, cujo resultado , muitas vezes, uma
prestao jurisdicional deficiente e de baixa qualidade. De fato, a alta litigiosidade no implica em acesso Justia amplo, mas no fato de poucas pessoas ou instituies utilizarem demais o Poder Judicirio, enquanto que a
maior parte da populao est afastada dos mecanismos formais de resoluo de litgios.26 Sob uma perspectiva econmica, temos que
Um judicirio que leve a muitos litgios no est sendo eficiente por duas razes. Uma, porque consome muitos recursos,
tanto da parte dos litigantes (advogados etc.) como do setor pblico (e.g. juzes e pessoal administrativo). Outra, porque litgios em
excesso indicam que as leis e os direitos no se acham suficientemente bem definidos e/ou respeitados. Provavelmente tambm
sinalizam que o sistema no est sendo eficiente em desencorajar
casos que deveriam ser resolvidos no mbito privado.27
Curioso observar, a propsito, que o relatrio sobre os juizados especiais, assinado por Kazuo Watanabe em nome do CEBEPEJ, defende a atribuio de competncia absoluta (como ocorre em mbito federal, conforme

25

26
27

H um importante depoimento coletado na pesquisa nacional sobre os juizados: Para o Dr. Marco, a
mudana mais importante para os JECs cariocas seria a criao de Varas especializadas em Direito do
Consumidor, apartando-as das demais demandas. Segundo o Magistrado, enquanto as aes dessa natureza tm um desfecho rpido, as brigas de vizinhos, ex-casais, familiares, etc. tomam um tempo enorme na pauta e nada solucionam, pois as partes buscam mesmo o litgio, no querem a pacificao.(FERRAZ, Leslie Shrida. Relatrio pesquisa juizados especiais cveis Rio de Janeiro in BRASIL
(Ministrio da Justia/Secretaria de Reforma do Judicirio). Diagnstico dos Juizados Especiais Cveis.
Disponvel em: <www.mj.gov.br>, 2006, p. 83.
BRASIL (Ministrio da Justia/Secretaria de Reforma do Judicirio). Judicirio e economia. Disponvel
em: <www.mj.gov.br>, 2006, p. 06.
PINHEIRO, Armando Castelar. Impacto sobre o crescimento: uma anlise conceitual, in Judicirio e
Economia no Brasil. So Paulo: Sumar, 2000, p. 26.

255

256

Delton Ricardo Soares Meirelles e Marcelo Pereira de Mello

o art. 3, 3, da Lei n 10.259/01), como forma de se pressionar melhores


condies de funcionamento.28
Da vm as questes: por que os juizados absorvem todos estes conflitos? Se h dados que comprovam a corriqueira violao de direitos pelas
empresas concessionrias de servios pblicos, no seria o caso de interveno estatal mais drstica? Por outro lado, no seria vivel uma instncia preliminar ao Judicirio, filtrando as causas que necessariamente demandassem a atuao jurisdicional?
Em nosso sistema jurdico, essas questes podem ser compreendidas a
partir do papel que poderia desempenhado pelas agncias reguladoras, tratadas a seguir.

4. Composio dos conflitos por agncias reguladoras


As agncias reguladoras, tidas como entes que especificamente tratassem da regulao, controle e administrao de setores estratgicos de nossa
economia, tiveram uma preliminar previso constitucional com o atual
diploma de 1988 (art. 177, 2, II). No entanto, a regulamentao destas
entidades apenas veio no governo Fernando Henrique Cardoso, o qual incorpora as idias de Estado Gerencial divulgadas pelo seu ministro Bresser
Pereira. Com isso, foram criadas vrias agncias reguladoras: ANEEL (Agncia Reguladora de Energia Eltrica) pela Lei n 9.427, de 26 de dezembro de
1996; ANATEL (Agncia Nacional de Telecomunicaes), Lei n 9.472, de 16
de julho de 1997; ANP (Agncia Nacional de Petrleo), Lei n 9.478, de 06

28

256

Os Juizados esto sobrecarregados de servios em razo do desmedido aumento de sua competncia. E


no se adotou, at o momento, o princpio do acesso obrigatrio a esses Juizados, nos limites de sua
competncia (competncia absoluta).
Muitas das causas que poderiam ser por eles julgadas esto sendo, atualmente, canalizadas para os juzos comuns, em virtude do princpio da facultatividade do acesso aos Juizados, o que significa que a
sobrecarga de servios poder ser agravada a qualquer momento, pela simples alterao da preferncia
dos jurisdicionados, por alguma razo pessoal ou por deciso de seu advogado.
Esse dado constitui uma permanente ameaa qualidade dos Juizados Especiais Cveis, razo pela qual
deve ser enfrentado definitivamente de alguma forma, seja adotando-se o princpio da obrigatoriedade
do acesso o que exigir uma prvia avaliao da repercusso dessa deciso nos Juizados de todo o pas e
reclamar certamente um importante investimento na sua melhoria, seja reduzindo-se a competncia
para nveis razoveis. BRASIL (Ministrio da Justia/Secretaria de Reforma do Judicirio). Diagnstico
dos Juizados Especiais Cveis. Disponvel em: <www.mj.gov.br, 2006>, p 12/13.

Tutela do Consumidor: Por que os Juizados Especiais?

257

de agosto de 1997; e ANA (Agncia Nacional de guas), Lei n 9.984, de 17


de julho de 2000; entre outras.
Tais agncias tm natureza de pessoas jurdicas do Direito Pblico,
vinculadas aos seus respectivos ministrios, integrando a Administrao
Pblica Indireta e tidas como autarquias especiais, com as inerentes prerrogativas. Surgem, basicamente, em decorrncia do processo de privatizao
de empresas de capital estatal,29 as quais detinham o monoplio dos servios pblicos essenciais. Assim, o Brasil passou a adotar um modelo intermedirio entre a excessiva liberdade de mercado (como paradigma liberal
novecentista), e o intervencionismo estatal prprio do Welfare State, mediante a instituio de uma burocracia limitada regulao e no mais condutora da economia. Destarte, o mercado deve obedecer a esta ao normativa estatal, a qual se justifica pela proteo de vrias garantias constitucionais no campo do domnio econmico.
Uma das misses das agncias reguladoras a disciplina do mercado, a
fim de estabelecer maior segurana ao investidor. Atualmente, sua atuao no
cenrio jurdico impressionante, como demonstra JOAQUIM FALCO:
Em 2007, o Congresso aprovou 198 leis. Em compensao,
apenas trs das principais agncias reguladoras produziram
1.965 resolues. A Agncia Nacional de Energia Eltrica editou
635, a Agncia Nacional de Transportes Terrestres, 726, e a
Agncia Nacional de guas, 604. Mesmo sem considerar resolues das outras sete agncias federais (ANVISA, ANS, ANCINE,
ANATEL, ANP, ANTAQ e ANAC), so quase dez vezes mais
atos normativos. Nos estados, o cenrio se repete. No Rio
Grande do Sul, por exemplo, a AGERGS produziu 580 resolues enquanto a Assemblia Legislativa gacha elaborou apenas
188 leis estaduais. Existem agncias em 19 estados e tambm no
Distrito Federal. Em alguns, mais de uma, como So Paulo e Rio.

29

Iniciadas no governo Fernando Collor, mediante o chamado Programa Nacional de Desestatizao


(Lei n 8.031/90, alterado pela Lei n 9.491/91).

257

258

Delton Ricardo Soares Meirelles e Marcelo Pereira de Mello

bem verdade que Leis produzidas pelos Legislativos e


resolues editadas pelas agncias reguladoras so normas diferentes. Estas nem sempre geram direitos e deveres para os regulados e consumidores, e obrigam apenas certos setores: energia
eltrica; transportes terrestres; telecomunicaes; sade suplementar etc. Mas, devido progressiva universalizao dos servios regulados, estas agncias tendem a influenciar o oramento e o quotidiano de todos os brasileiros.30
Entretanto, outra funo relevante que podem assumir a composio
administrativa de conflitos.31 No apenas como parte interessada num processo administrativo, mas tambm atuando como mediadoras ou mesmo
rbitras de litgios envolvendo empresas e consumidores.32
Nos EUA, as regulatory agencies atuam como verdadeira instncia
judicante, em que os consumidores buscam a soluo administrativa em vez
da ao judicial, diversamente do modelo brasileiro. A jurisprudncia
norte-americana entende ser cabvel o judicial review apenas nos casos de
vcios formais do processo administrativo, j que o Judicirio no teria os
mesmos conhecimentos tcnicos dos especialistas das agncias. Alm disso,
estas detm grande legitimidade perante a populao, tendo em vista sua
manifesta autonomia e independncia. Entretanto, tal modelo visto por
desconfiana por CAPPELLETTI & GARTH:
Outras solues governamentais para o problema de modo especial, a criao de certas agncias pblicas regulamenta-

30
31

32

258

FALCO, Joaquim. Agncias Reguladoras e o Poder Judicirio, disponvel em: <http://www.cnj.jus.


br/index.php?option=com_content&task=view&id=4054&Itemid=129>
Como no caso da ANATEL, em que a Lei n 9.472/97 prev expressamente, em seu art. 19, XVII, que
lhe compete compor administrativamente conflitos de interesses entre prestadoras de servio de telecomunicaes.
JOAQUIM FALCO tambm defende a utilizao de meios alternativos, mas apenas estimuladas pelas
agncias reguladoras, e no conduzidas por estas, conforme se verifica nesta passagem: as agncias
poderiam propor que as concessionrias, alm de tradicionais departamentos jurdicos, criassem departamentos de conciliao. Diques autnomos, contendores de demandas, que evitem a cultura, ainda
dominante, de tudo judicializar. Reduziria o conflito entre concessionrias e consumidores. (Agncias
Reguladoras e o Poder Judicirio, disponvel em: <http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&task=view&id=4054&Itemid=129>).

Tutela do Consumidor: Por que os Juizados Especiais?

259

doras altamente especializadas, para garantir certos direitos do


pblico ou outros interesses difusos so muito importantes,
mas, tambm, limitadas. A histria recente demonstra que, por
uma srie de razes, elas tm deficincias aparentemente inevitveis. Os departamentos oficiais inclinam-se a atender mais
facilmente a interesses organizados, com nfase nos resultados
das suas decises, e esses interesses tendem a ser predominantemente os mesmos interesses das entidades que o rgo deveria controlar. Por outro lado, os interesses difusos, tais como os
dos consumidores e preservacionistas, tendem, por motivos j
mencionados, a no ser organizados em grupos de presso capazes de influenciar essas agncias.33
De qualquer maneira, as agncias reguladoras atuam como uma instncia alternativa para resoluo de conflitos, tema que se situa na atual agenda de polticas pblicas de acesso Justia e reforma de Estado.34 As leis que
regulamentam o regime de concesso exigem a insero de clusulas contratuais prevendo a resoluo amigvel e extrajudicial de controvrsias,
como os se verifica nos seguintes dispositivos: art. 23, XV, da Lei n 8.987/95
(reguladora do regime de concesso e permisso de servios pblicos previstos no artigo 175/CRFB); art. 93, XV, da Lei n 9.472/97 (ANATEL); art.
43, X, da Lei n 9.478/97 (ANP); art. 35, XVI, da Lei n 10.233/01 (ANTT);
art. 4, 5, da Lei n 10.848/04 (comercializao de Energia Eltrica) etc.35

33

34

35

CAPPELLETTI, Mauro. & GARTH, Bryant. Acesso Justia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988,
p. 52. Esta preocupao tambm se encontra presente em ALEXANDRE SANTOS DE ARAGO, quando
diz que o risco de contaminao parcial das agncias certamente no especfico das agncias reguladoras, ocorrendo, em maior ou menor grau, em toda a administrao pblica, aqui e alhures. Todavia, quando um ordenamento setorizado, os seus dirigentes, inclusive pela formao tcnico-profissional especializada no setor, tendem a ter um contato mais estreito e frequente com os agentes econmicos regulados,
o que, se por um lado positivo, por outro, se no forem criados os instrumentos necessrios, poder levar
parcialidade das agncias (Agncias reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 366/367).
MEIRELLES, Delton R. S. Meios alternativos de resoluo de conflitos: justia coexistencial ou eficincia administrativa?, in Revista Eletrnica de Direito Processual n 01. Disponvel em: <http://www.
revistaprocessual.com/REDP_1a_30dezembro2007_RJ.pdf>.
Mesmo se tratando de sociedade de economia mista, no h empecilho para a utilizao de arbitragem,
conforme precedentes do STF (SE n 5206 AgR/EP, rel. Min. Seplveda Pertence; AI n 52.191, Rel.
Min. Bilac Pinto) e do STJ (AgRg no MS 11308 / DF, rel, Min. Luiz Fux).

259

260

Delton Ricardo Soares Meirelles e Marcelo Pereira de Mello

Todavia, estes mtodos alternativos no devem se limitar s questes


contratuais envolvendo a Administrao e as empresas concessionrias. As
agncias podem intervir em conflitos envolvendo consumidores e empresas, como instncia mediadora de conflitos (sem impedimento de heterocomposio arbitral, se assim desejarem as partes). A ANATEL, p. ex., atua
como intermediria (e, consequentemente, mediadora) quando o consumidor utiliza de seu portal eletrnico, central telefnica de atendimento ou
salas do cidado. Protocolada a reclamao, a empresa comunicada para
responder reclamao e, caso no seja resolvido o problema, possvel
impor-lhes sanes administrativas.
Com isso, resta a dvida sobre as razes pelas quais os consumidores
rejeitam esta via administrativa, e buscam o imediato acesso Justia. Neste
trabalho, sero abordadas as seguintes questes: a) Os juizados so mais
confiveis que as agncias?; b) Os juizados so mais efetivos que as agncias?; c) O Judicirio poderia deixar de conhecer destas causas, forando o
consumidor a buscar a composio administrativa prvia?

5. Os juizados so mais confiveis que as agncias?


Estudos das cincias sociais desenvolveram os conceitos de confiana
(cincia poltica36) e legitimidade (sociologia37), os quais permitiriam compreender o porqu das agncias ainda no so totalmente aceitas pela comunidade como rgos legtimos para a resoluo de conflitos com as concessionrias privadas. Alm de serem relativamente recentes, as agncias sofrem
com a desconfiana dos brasileiros para com a sua Administrao, vista como
excessivamente burocrtica e viciada pela corrupo e clientelismo.
Este fenmeno presente na composio dos conflitos. Ainda subsiste
um dficit de confiana na idoneidade do Poder Pblico em tomar decises,
mesmo por meio de um processo administrativo devidamente regulamentado. Como lembram ADILSON ABREU DALLARI e SERGIO FERRAZ, a
inexistncia da disciplina do processo administrativo representou expressi-

36
37

260

MOISS, Jos lvaro. Cidadania, confiana e instituies democrticas, in Lua Nova n 65: 71-94,
2005.
WEBER, Max. Economia y sociedad. Ciudad del Mexico: Fondo de Cultura Econmica, 1999.

Tutela do Consumidor: Por que os Juizados Especiais?

261

vo vetor de reforo da autoridade burocrtica quando em face dos reclamos


da coletividade.38 Conseqentemente, a Administrao sempre se considerou senhora e dona do processo administrativo, decidindo, a seu talante,
quando e como instaur-lo, seu iter, a dimenso da atividade dos administrados em seu bojo, sua publicidade ou reserva etc..39 SEABRA FAGUNDES, comentando sobre a tentativa administrativa prvia como exigncia
da lei n 1533/51, assim discorre
Tivemos sempre a restrio por menos plausvel, pois que
leva procrastinao dentro da sua casustica, da soluo jurisdicional do estado de contenciosidade resultante da inconformao do administrado com o ato da autoridade pblica.
Procrastinao tanto mais inconveniente quanto slido que,
em nossa prtica burocrtica, o recurso hierrquico, pela demora de decises e pela ratificao com que, via de regra, prestigia
os atos recorridos, no conseguiu ainda afirmar-se como meio
de correo de erros na aplicao da lei. Destarte, melhor fora
deixar s partes a livre opo. Que a elas ficasse a escolha entre
as esperanas da deciso administrativa favorvel e as dificuldades de prova e custeio da via judiciria.40
Destarte, uma das vantagens do processo jurisdicional sobre o administrativo seria seu carter de substitutividade e/ou desinteresse do Estadojuiz.41 CHIOVENDA, p. ex., utiliza-se deste critrio para afirmar que a
prpria administrao julga, pois que no se age a no ser com apoio num
juzo: mas julga sobre a prpria atividade. Ao contrrio, a jurisdio julga da

38
39
40
41

FERRAZ, Srgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. 1 ed. So Paulo: Malheiros
Editores, 2002, p. 21.
Idem, ibid.
FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judicirio. 5 ed., Rio de
Janeiro, Forense, 1979, p. 282.
Justamente o que distingue a jurisdio da administrao esse desinteresse objetivo, essa indiferena
do Estado-juiz em que o resultado da sua atividade seja este ou aquele, enquanto o administrador sempre parte, agindo sempre no interesse do Estado ou da coisa pblica. GRECO, Leonardo. Garantias
fundamentais do processo: o processo justo, in Estudos de Direito Processual. Campos dos Goytacazes:
Faculdade de Direito de Campos, 2005, p. 231.

261

262

Delton Ricardo Soares Meirelles e Marcelo Pereira de Mello

atividade alheia e duma vontade de lei concernente a outrem.42 Por este


motivo, questiona-se a imparcialidade da Administrao em conduzir o
processo administrativo, especialmente em nosso pas, cuja tradio patrimonialista abala a confiana na iseno de seu julgamento.
A imparcialidade, mais do que uma garantia decorrente do juzo natural, fundamental ao processo liberal.43 Ainda que haja o reconhecimento
jurdico desta garantia no processo administrativo (especialmente o federal),44 h o prejuzo decorrente do princpio hierrquico administrativo45 e
da ausncia de profissionalizao de seus julgadores.
Todavia, no caso das agncias reguladoras aqui analisadas, por atuarem
como mediadoras de conflitos entre concessionrias e consumidores, no
haveria, em tese, este problema de parcialidade. Seus rgos julgadores no
se confundem com as partes litigantes, e se mostrariam como terceiros
desinteressados (seguindo-se a lio de CHIOVENDA). Alm disso, possuem um conhecimento bem mais especializado do que o magistrado (muitas vezes limitado pelo procedimento46 e dependente do perito), o que

42
43

44

45
46

262

CHIOVENDA, Giuseppe. Instituies de Direito Processual Civil (traduo por J. Guimares Menegale
e notas por Enrico Tullio Liebman). So Paulo: Ed. Saraiva, 1942, p. 23
Histricamente la cualidad preponderante que aparece inseparable de la idea misma del juez, desde su
primera aparicin en los albores de la civilizacin, es la IMPARCIALID. El juez es un tercero extrao
a la contienda que no comparte los intereses o las pasiones de las partes que combaten entre s, y que
desde el exterior examina el litigio con serenidad y con despego; es un tercero inter partes, o mejor an,
supra partes. Lo que lo impulsa a juzgar no es un inters personal, egosta, que se encuentre en contraste o en connivencia o amistad con uno o con otro de los egosmos en conflicto. El inters que lo mueve
es un inters superior, de orden colectivo, el inters de que la contienda se resuelva civil y pacificamente, ne cives ad arma veniant, para mantener la paz social. Es por esto que debe ser extrao e indiferente a las solicitaciones de las partes y al objeto de la lite, nemo iudex in re propria (CALAMANDREI,
Piero. Proceso y Democracia [traduo por Hector Fix Zamudio]. Buenos Aires: Ediciones Juridicas
Europa-America, 1960, p. 60).
Como se depreende no art. 37/CRFB: (A administrao pblica [...] obedecer aos princpios de [...]
impessoalidade [...]); art. 38, Lei n 9.472/97 (A atividade da Agncia ser juridicamente condicionada
pelos princpios da [...] impessoalidade [...]), art. 2, nico, III, da Lei n 9.784/99 (Nos processos administrativos sero observados, entre outros, os critrios de [...] objetividade no atendimento do interesse
pblico [...]); e os casos de impedimento (art. 18) e suspeio (art. 20) regulados pela Lei n 9.784/99.
O art. 11 da Lei n 9.784/99, p. ex., autoriza a delegao (arts. 12 a 14) e avocao (art. 15) de competncia.
Ainda que o art. 35 da Lei n 9.099/95 admita a percia (quando a prova do fato exigir, o Juiz poder inquirir tcnicos de sua confiana, permitida s partes a apresentao de parecer tcnico), mesmo informal
(enunciado n 15 do Frum Nacional de Juizados Especiais FONAJE), muitos juzes deixam de conhecer
da ao por uma suposta complexidade da prova tcnica. Isto se deve, no caso do Rio de Janeiro, a uma
indevida interpretao do conceito de causa cvel de menor complexidade (enumeradas ex lege pelo art.
3 da Lei n 9.099/95) e deste enunciado do TJ/RJ: No cabvel percia judicial tradicional em sede de
Juizado Especial. A avaliao tcnica a que se refere o Art. 35, da Lei n 9.099/95, feita por profissional da
livre escolha do Juiz, facultado s partes inquiri-lo em audincia ou no caso de concordncia das partes.

Tutela do Consumidor: Por que os Juizados Especiais?

263

garantiria um maior grau de confiabilidade tcnica ao processo administrativo, como ressalta ALEXANDRE SANTOS DE ARAGO:
Em relao ao Poder Judicirio, a independncia dos rgos e entidades dos ordenamentos setoriais no pode, pelo
menos em sistemas que, como o nosso (art. 5, XXXV, C.F.),
adotam a unidade de jurisdio, ser afirmada plenamente. Em
tese, sempre ser possvel o acionamento do Judicirio contra as
suas decises. Todavia, em razo da ampla discricionariedade
conferida pela lei e ao carter tcnico-especializado do seu
exerccio, prevalece, na dvida, a deciso do rgo ou entidade
reguladora, at porque, pela natureza da matria, ela acabaria
deixando de ser decidida pela agncia, para, na prtica, passar a
ser decidida pelo perito tcnico do Judicirio.
O Poder Judicirio acaba, portanto, em razo de uma salutar autolimitao, tendo pouca ingerncia material nas decises
das agncias, limitando-se, na maioria das vezes, como imposio do Estado de Direito, aos aspectos procedimentais assecuratrios do devido processo legal e da participao dos direta ou
indiretamente interessados no objeto da regulao.47
A jurisprudncia extremamente cautelosa quanto ao judicial review
nos conflitos envolvendo as agncias reguladoras. Mais do que respeito
garantia de independncia entre as funes estatais, o Judicirio reconhece
sua limitao ao decidir sobre questes eminentemente tcnicas. Neste sentido, a 2 Turma do Superior Tribunal de Justia, no julgamento do recurso
especial n 872.584/RS (rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 20/11/2007)
em que o consumidor ajuizara ao anulatria com pedido de restituio de
indbito em face da BRASIL TELECOM S/A, referente cobrana indevida de assinatura bsica residencial, decidiu que

47

ARAGO, Alexandre Santos de. As agncias reguladoras independentes e a separao de poderes: uma
contribuio da teoria dos ordenamentos setoriais. Revista Dilogo Jurdico, Salvador, CAJ Centro de
Atualizao Jurdica, n 13, abr./maio, 2002, p. 30. Disponvel em: <http://www.direitopublico.com.br>.

263

264

Delton Ricardo Soares Meirelles e Marcelo Pereira de Mello

a feitura da equao tarifria atribuio administrativa da


Agncia. S poderia o Poder Judicirio interferir em casos
excepcionais, de gritante abuso ou desrespeito aos procedimentos formais de criao dessas figuras. Carece o Poder Judicirio
de mecanismos suficientemente apurados de confronto paritrio
s solues identificadas pelos expertos da Agncia reguladora.48
Da mesma forma, preservou-se a competncia tcnica da agncia reguladora em ao civil pblica em que se discutia a delimitao da chamada
rea local para fins de configurao do servio local de telefonia e cobrana da tarifa.49

48

49

264

Vale destacar que, neste caso, o STJ inclinou-se pela regulao administrativa em detrimento do direito do consumidor. Conforme o voto do rel. Min. Humberto Gomes de Barros, no meu sentir, o ponto
de salincia deste recurso a opo do Superior Tribunal de Justia entre manter o modelo regulatrio
das telecomunicaes no Brasil, da forma como foi estruturado na Constituio de 1988, aps a Emenda
n 8/1995, ou abrir, em definitivo, o campo destinado regulao aos influxos do processo de judicializao da vida.
Ora, modelo regulatrio, em todos os pases que adotaram o modelo anglo-americano, a frmula sntese entre os extremos anteriormente experimentados nas sociedades industriais: o absentesmo estatal
e o regime de monoplio-oligoplio do Estado nas atividades econmicas de infra-estrutura. [...] H,
neste Tribunal e em diversos juzos brasileiros, uma pletora de aes sobre o problema do tensionamento das regras de Direito do Consumidor e das regras de outras provncias jurdicas, como o Direito
Administrativo ou o Direito Civil.
No campo da regulao de servios de telecomunicaes, a questo assume contornos ainda mais perturbadores. [...] Ora, se essa matria fosse analisada com o rigorismo cientfico, no se chegaria ao
absurdo de se confrontar as normas de Direito do Consumidor com as regras fundadas no Direito das
Telecomunicaes, como as ora debatidas neste recurso especial. A cobrana de assinatura bsica tema
alheio s relaes de consumo, quando se observa que seu fundamento o regime tarifrio advindo da
delegao normativa Anatel, por fora da Constituio, e concretizado em regulamentos, editais de
licitao e em contratos de concesso. A empresa operadora do STFC Servio de Telefonia Fixa
Comutada no exige esses quantitativos com base em direito seu, mas, como decorrncia da equao
econmico-financeira que lastreia seu vnculo com a Administrao Pblica.
O Direito do Consumidor qualifica as relaes jurdicas entre usurios e operadoras naquilo que no for
objeto de regulao ou quando a regulao extrapolar os limites cientficos do Direito das
Telecomunicaes e passar a invadir a rbita daquela provncia. A cobrana indevida de ligaes no
efetuadas questo nitidamente consumerista. A exigncia da assinatura bsica, por seu turno, tema
especfico da regulao dos servios de telecomunicaes (STJ. 2 T. REsp 872584/RS, j. 20/11/07).
STJ. 2 Turma. REsp 572070/PR, rel. Min. Joo Otvio de Noronha, j. 16/03/2004. Nos termos do voto do
relator, no caso presente, observo que a deciso hostilizada, embora reconhecendo que as chamadas
reas locais devam ser fixadas, nos termos da legislao de regncia, com base em critrios de natureza
predominantemente tcnica, acabou por adentrar no mrito das normas e procedimentos regulatrios que
inspiraram a atual configurao dessas reas, invadindo seara alheia na qual no deve se imiscuir o Poder
Judicirio. Ao intervir na relao jurdica para alterar essas regras, estar o Judicirio, na melhor das hipteses, criando embaraos que podem comprometer a qualidade dos servios prestados pela concessionria. Alm disso, no concebo como se possa interferir de forma to radical em um setor de tamanha complexidade e sensibilidade como o das comunicaes com base em mera presuno de que prestadora de
servios dispe, na rea questionada, de uma adequada engenharia de rede de telecomunicaes.

Tutela do Consumidor: Por que os Juizados Especiais?

265

Por outro lado, no s a Administrao que merece descrdito. JOS


CARLOS BARBOSA MOREIRA cita ensaio assinado pelos economistas
Prsio Arida, Edmar Lisboa Bacha e Andr Lara-Resende (Credit, Interest,
and Jurisdictional Uncertainty: Conjectures on the Case of Brazil), para os
quais uma das causas principais, seno a principal, do retraimento dos possveis investidores de longo prazo reside na tendncia, apontada como
dominante entre ns, a favorecer o devedor em eventual conflito com o
credor.50 Este mito do juiz Robin Hood, tomado como iniciativa individual
e no como uma poltica estatal uniforme, apenas aumenta a desconfiana
das empresas na iseno do juiz51 e, conseqentemente, os riscos de decises judiciais absurdas so repassados aos demais consumidores. O equilbrio fundamental para um sistema eficiente de justia, como alerta CAPPELLETTI:
Por isso, uma sbia poltica de proteo dos consumidores,
longe de ser instrumento de distoro do mercado, constitui,
com a poltica tendente a assegurar a livre concorrncia, instrumento hoje imprescindvel para garantir a efetiva liberdade do

50

51

A 8 Turma do TRF/2 Regio tambm se posicionou neste sentido, no julgamento da Apelao Civel n
397032 (rel. Des. Fed. Marcelo Pereira. j. 01/07/2008): A atuao do Poder Judicirio interferindo na
determinao das reas que ensejam cobrana de tarifa local mostra-se indevida no s por configurar
intromisso na seara de discricionria regulamentao da Agncia, mas tambm por no deter o
Magistrado as informaes tcnicas necessrias a aferir os critrios para melhor prestao do servio de
telefonia.
MOREIRA, Jos Carlos Barbosa. Dois cientistas polticos, trs economistas e a Justia brasileira, in
Temas de Direito Processual: 7 srie. Rio de Janeiro: Saraiva, 2001, p. 403. Aps analisar este ensaio, o
processualista faz uma dura crtica, afirmando que (...)os trs economistas no apresentaram provas da
propenso da Justia brasileira para favorecer os devedores; utilizaram, para repetir a frmula j recordada, argumento emprico sem apoio emprico. Mas a verdade nua e crua que, caso examinassem a
legislao em vigor, encontrariam nela alguma base para sustentar que, em certa medida insisto: em
certa medida , tal propenso recomendada aos juzes. Quer dizer: conforme as circunstncias, se eles
esto mesmo favorecendo devedores, nem sempre fazem mais do que aplicar, como lhes cumpre, o
direito vigente (op. cit., p. 412).
Um sistema de resoluo de conflitos caracteriza-se como justo quando a probabilidade de vitria
prxima a um para o lado certo e a zero para o lado errado. A parcialidade claramente ruim, e difere
da imprevisibilidade porque distorce o sentido de justia de uma forma intencional e deterministra. Os
tribunais podem ser tendenciosos devido corrupo, por serem politizados (favorecendo a certas classes de litigantes como membros da elite, trabalhadores, devedores, residentes etc.), ou por no gozarem
de independncia em relao ao Estado, curvando-se sua vontade quando o governo parte na disputa. PINHEIRO, Armando Castelar. Impacto sobre o crescimento: uma anlise conceitual, in
Judicirio e Economia no Brasil. So Paulo: Sumar, 2000, p. 29.

265

266

Delton Ricardo Soares Meirelles e Marcelo Pereira de Mello

mercado. Com efeito, uma sbia poltica de proteo dos consumidores tende a restabelecer o equilbrio perdido, restituindo
ao consumidor aquela efetiva capacidade de escolha que serve,
precisamente, de guia e de estmulo para o produtor, assegurando assim, no interesse comum, a eficincia da economia.52
Os juizados especiais se tornaram um campo propcio a esta insegurana jurdica. De fato, h uma confuso corriqueira entre princpio da informalidade e casusmo procedimental, permitindo ao juiz conduzir o processo arbitrariamente, muitas vezes em desrespeito garantia do devido processo legal.53 Alm disso, nos juizados especiais estaduais ainda no h um
sistema claro de harmonizao de seus julgados, em virtude da incompetncia do Superior Tribunal de Justia em conhecer de recursos especiais contra as decises das turmas recursais.54
Assim, quanto menos o Judicirio intervier, melhor ser para a
Economia. No de se estranhar que, diante da afirmao os empresrios
costumam dizer que sempre melhor fazer um mau acordo do que recorrer Justia, 36,9% dos entrevistados concordaram totalmente e 51,3%
concordaram parcialmente (total 88,2%).55
Face ao exposto, tem-se que no h razes suficientes para se afirmar
que uma deciso tomada em sede de juizado especial seja mais segura ou
confivel que um julgamento administrativo pelas agncias reguladoras.
Muito pelo contrrio, a especializao administrativa, aliada ao desinteresse das agncias, permitiriam um julgamento mais previsvel e tcnico do
que possibilitaria o juizado especial.

52
53

54
55

266

CAPPELLETTI, Mauro. O acesso dos consumidores Justia in As garantias do cidado na Justia. So


Paulo: Saraiva, 1993, p. 309.
Como ressalta ALFREDO BUZAID, o devido processo legal um padro pelo qual se pode aferir at
onde vai a liberdade da administrao na execuo de suas atividades (Inafastabilidade do controle
jurisdicional in Estudos e pareceres de direito processual civil. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002,
p. 316).
Smula n 203/STJ: No cabe recurso especial contra deciso proferida, nos limites de sua competncia, por rgo de segundo grau dos juizados especiais.
PINHEIRO, Armando Castelar. O judicirio e a economia: evidncia emprica para o caso brasileiro,
in Judicirio e Economia no Brasil, So Paulo: Sumar, 2000, p. 114.

Tutela do Consumidor: Por que os Juizados Especiais?

267

6. Os juizados especiais so mais efetivos que as agncias


reguladoras?
Um parmetro tcnico-jurdico para a definio de efetividade pode ser
encontrado na famosa definio de CHIOVENDA: o processo deve dar
quanto for possvel, praticamente, a quem tenha um direito, tudo aquilo e
somente aquilo que ele tenha direito de conseguir.56 Surgiria, portanto, a
questo de se saber se a ao distribuda ao juizado especial traria resultados
prticos melhores do que a composio do conflito pela agncia reguladora.
Um argumento especulativo (diante da falta de dados mais precisos)
seria que os consumidores buscariam nos juizados especiais mais que a soluo tcnica de seus problemas: dentro de um clculo racionalista de vantagens, um dos propsitos seria a reparao patrimonial do dano sofrido.
No Rio de Janeiro, esta hiptese poderia ser amparada a partir da pesquisa nacional sobre juizados especiais. Ainda que no haja uma discriminao
dos dados, temos que 50,4% das aes cumulam pedido de indenizao por
dano moral (maior ndice dentre as capitais pesquisadas, sendo a mdia nacional de 20%). Como em 37,7% dos casos (mdia nacional de 39,3%) h sentena homologatria de acordo, e em 38,4% sentena de mrito, com procedncia total em 30% e parcial em 47,1% (na mdia das capitais, respectivamente, 29,5%, 50,0% e 28,8%).57 Se transplantarmos estes percentuais para
os conflitos consumeristas (mesmo admitindo diversas variveis que prejudicariam a anlise), haveria uma chance considervel de vitria para o autor da
ao. Estes dados, aliados gratuidade no procedimento em primeiro grau e
ao discurso de acesso Justia, poderiam despertar no consumidor a esperana de que obter alguma forma de compensao pecuniria nos juizados.58

56
57
58

CHIOVENDA, Giuseppe. Instituies de direito processual civil (trad. J. Guimares Menegale). Vol. I.
So Paulo: Saraiva, 1943, 12, p. 84
BRASIL (Ministrio da Justia/Secretaria de Reforma do Judicirio). Diagnstico dos Juizados Especiais
Cveis. Disponvel em: <www.mj.gov.br>, 2006.
H uma varivel importante, que causa distoro no sistema dos juizados. Se, de um lado, algumas
empresas conscientemente violam direitos de consumidores (forando-os a defender seus interesses
administrativa ou judicialmente), por outro lado no so raros os casos de aventureiros ou litigantes
profissionais. Como o art. 54 da Lei n 9.099/95 dispensa o recolhimento de custas em primeiro grau de
jurisdio, isto estimula o demandismo, que dificilmente reprimido devido a ineficcia dos mecanismos de conteno de abusos processuais (como a litigncia de m-f do art. 55 desta lei).

267

268

Delton Ricardo Soares Meirelles e Marcelo Pereira de Mello

As agncias, por seu turno, no foram criadas para a soluo de pequenas


causas, e sim como instncia regulatria e preventiva de conflitos. Entretanto,
na consulta pblica ANATEL n 641/05 (em que se propunha alterao do
regulamento do servio telefnico fixo comutado), havia a previso de indenizao ao assinante prejudicado por ato da operadora.59 E mesmo que no
haja esta condenao, a agncia reguladora poderia intermediar o conflito
entre empresa e consumidor, no qual ambos cheguem a um acordo.
Outra das supostas limitaes presentes na composio extrajudicial
que, caso o consumidor necessidade de medidas sancionatrias mais incisivas, encontrar uma limitao de mecanismos coercitivos pelas agncias
reguladoras, especialmente poderes constritivos. No julgamento da medida
cautelar em ao direta de inconstitucionalidade n 1668/DF (Pleno. Rel.
Min. Marco Aurlio, j. 20/08/98), o Supremo Tribunal Federal interpretou
como inconstitucional o art. 19, XV, da Lei n 9.472/97, que lhes dava poderes para realizar busca e apreenso de bens no mbito de sua competncia. Alm da violao da garantia constitucional do devido processo legal
(art. 5, LIV), tal dispositivo permitiria a autotutela executiva da Administrao Pblica, usurpando uma funo tipicamente jurisdicional, conforme se observa no voto do relator, Min. Marco Aurlio,
A rigor, o que se tem, na espcie, o exerccio, pela Administrao Pblica, de maneira direta, a alcanar patrimnio privado, de direito inerente atividade que exerce. Se de um lado

59

268

Art. 30. Havendo interrupo do acesso ao STFC na modalidade local, a prestadora deve conceder crdito ao assinante prejudicado.
1 No devido crdito se a interrupo for causada pelo prprio assinante.
2 O crdito deve ser proporcional ao valor da tarifa ou preo de assinatura considerando-se todo o
perodo de interrupo.
3 O crdito relativo interrupo superior a 30 (trinta) minutos a cada perodo de 24 (vinte e quatro)
horas deve corresponder, no mnimo, a 1/30 (um trinta avos) do valor da tarifa ou preo de assinatura.
4 O crdito a assinante na forma de pagamento ps-pago deve ser efetuado no prximo documento
de cobrana de prestao de servio, que deve especificar os motivos de sua concesso e apresentar a
frmula de clculo.
5 O crdito a assinante de terminal a que est vinculado crdito pr-pago deve ser ativado e comunicado ao assinante em at 5 (cinco) dias, contados do restabelecimento do servio.
6 O recebimento do crdito, pelo assinante, no o impede de buscar o ressarcimento que ainda entenda devido, pelas vias prprias.
7 A concesso do crdito no exime a prestadora das sanes previstas no PGMQ-STFC, no contrato de concesso ou de permisso, ou no termo de autorizao.

Tutela do Consumidor: Por que os Juizados Especiais?

269

Agncia cabe a fiscalizao da prestao dos servios, de outro


no se pode compreender, nela, a realizao de busca e apreenso de bens de terceiros. A legitimidade diz respeito provocao mediante o processo prprio, buscando-se alcanar, no
mbito do Judicirio, a ordem para que ocorra o ato de constrio, que o de apreenso de bens. O dispositivo acaba por criar,
no campo da administrao, figura que, em face das repercusses pertinentes, h de ser sopesado por rgo independente e,
portanto, pelo Estado-juiz.60
Assim, a agncia reguladora deveria acionar o Judicirio, invocando
tutela acautelatria, como no caso de busca e apreenso de equipamentos
de estao de rdio clandestina.61
Entretanto, a Lei n 11.292/06 altera o art. 3, nico, da Lei n
10.871/04, conferindo poderes dos dirigentes das agncias reguladoras para,
no exerccio das atribuies de natureza fiscal ou decorrentes do poder de
polcia (...), promover a interdio de estabelecimentos, instalaes ou
equipamentos, assim como a apreenso de bens ou produtos, e de requisitar, quando necessrio, o auxlio de fora policial federal ou estadual, em
caso de desacato ou embarao ao exerccio de suas funes. Ainda que isto
possa tambm ser interpretado como atentatrio garantia do devido processo legal, o STF ainda no foi provocado pela via adequada para o controle de constitucionalidade.62
Aparentemente, os juizados especiais seriam mais efetivos pelos mecanismos satisfativos exclusivos da tutela jurisdicional (Lei n 9.099/95, art.

60

61

62

Diante da divergncia feita pelo Min. Nelson Jobim, para quem esta apreenso caracteriza tipicamente o exerccio do poder de polcia, restrito ao seu mister, ou seja, aquele que tiver exercido ilegalmente a sua atividade ter os bens apreendidos. A discusso, depois, da ilegalidade ou no desse ato ser no
Poder Judicirio; o Min. Seplveda Pertence alega que com essa amplitude eu diria quase ilimitada,
dada a extenso do mundo das telecomunicaes em que vivemos , o dispositivo efetivamente traz,
pelo menos, riscos serissimos de violao do princpio do devido processo legal.
STJ. 1 Turma. REsp 951892/CE, rel. Min. Francisco Falco, j. 16/08/2007; STJ. 1 Turma. REsp
635884/CE, rel. Min. Denise Arruda, j. 04/04/2006; STJ. 1 Turma. REsp 551525/CE, rel. Min. Denise
Arruda, j. 23/08/2005; STJ. 2 Turma. REsp 696135/CE, rel. Min. Franciulli Netto, j. 15/03/2005 STJ. 1
Turma. REsp 628287/CE, rel. Min. Francisco Falco, j. 18/11/2004; STJ. 1 Turma. REsp 643357/CE, rel.
Min. Luiz Fux, j. 09/11/2004; STJ. 2 Turma. REsp 626774/CE, rel. Min. Eliana Calmon, j. 17/06/2004.
STF. Pleno. Rcl 5310/MT, rel. Min. Crmen Lcia, j. 03/04/2008.

269

270

Delton Ricardo Soares Meirelles e Marcelo Pereira de Mello

52), sejam de tutela especfica, seja de atos de penhora. Ocorre que tais vantagens so extensveis ao acordo mediado pela agncia reguladora, j que os
juizados especiais tambm so competentes para a execuo de ttulos executivos extrajudiciais, no valor de at quarenta vezes o salrio mnimo (Lei
n 9.099/95, art. 3, 1, II, c/c art. 53), como a conciliao reduzida a termo
e subscrita pelas partes (art. 585, II/CPC) e a deciso arbitral pela agncia
reguladora (art. 475-N/CPC). Em verdade, deve-se observar a singularidade da condenao estatal face s vias alternativas, e no no procedimento
executivo.63
A durao do processo judicial um fator de extrema relevncia. O volume excessivo de causas, a mentalidade cartorria do Judicirio e a cultura litigiosa contribuem para compreender a demora endmica dos conflitos levados
aos Juizados. Conforme se observa da pesquisa da Secretaria de Reforma do
Poder Judicirio,64 mesmo com uma poltica agressiva de estmulo conciliao,65 pouco mais de um tero dos processos encerrado com acordo em
audincia de conciliao. Ainda assim, esta composio leva em mdia 70 dias
para ocorrer nos juizados especiais das capitais analisadas. Se houver instruo
e recurso da sentena, o prazo se estende para cerca de seis meses e meio.
Ato processual

Percentual

Durao mdia

de conciliao

34,5%

070 dias

Acordo em AIJ

20,9%

189 dias

Sentena

33,4%

193 dias

Recurso

08,9%

199 dias

Execuo

15,3%

300 dias

Acordo em audincia

63

64
65

270

Certamente que esta observao restringe-se ao desenvolvimento da hiptese, haja vista as constantes
reformas da execuo, desde a tutela especfica do art. 84 do Cdigo de Defesa do Consumidor, at as
recentes Leis ns 11.232/05 e 11.382/06.
BRASIL (Ministrio da Justia/Secretaria de Reforma do Judicirio). Diagnstico dos Juizados Especiais
Cveis. Disponvel em: <www.mj.gov.br>, 2006
Destacando-se o movimento Conciliar legal, em que o Conselho Nacional de Justia organiza a
Semana Nacional de Conciliao, alm de oferecer suporte operacional e outros estmulos s instituies judicirias brasileiras.

Tutela do Consumidor: Por que os Juizados Especiais?

271

Ainda que sem maiores dados estatsticos sobre o tempo mdio que se
leva para ser processada a reclamao administrativa, no restam dvidas
que sua informalidade garantiria um prazo bem menos longo que a realidade dos juizados. Mesmo a conciliao administrativa ou um eventual procedimento arbitral, caso fossem utilizados, dificilmente demoraria mais que
o processo jurisdicional.
Se no h diferenas substanciais entre a execuo da sentena do juizado especial e do ttulo extrajudicial composto em sede de agncia reguladora, ser que esta ofereceria alguma vantagem a mais para o consumidor?
Tendo em vista sua natureza regulatria, a agncia reguladora pode
disciplinar o mercado por meio de sanes administrativas. O art. 173 da
Lei n 9.472/97, p.ex., prev advertncia, multa,66 suspenso temporria,
caducidade e declarao de inidoneidade; respeitando-se sempre a prvia e
ampla defesa (art. 175). Tais medidas, assim com as de execuo indireta,67
podem se revelar mais efetivas do que a simples recomposio pecuniria
do dano, p. ex. Afinal de contas, as concessionrias devem cumprir metas
de qualidade perante a agncia reguladora, e quanto mais os consumidores
reclamam, maior ser a fiscalizao administrativa.
Lamentavelmente, ambas as instncias (jurisdicional e administrativa)
ainda no se mostraram completamente eficazes no controle das concessionrias de servios pblicos. De fato, estas empresas presentes na lista dos
juizados especiais fluminenses tambm so freqentes nas estatsticas das
agncias reguladoras, como vemos neste comparativo entre juizados especiais do Rio de Janeiro e ANATEL:68

66

67

68

Lei n 9.472/97, art. 179: A multa poder ser imposta isoladamente ou em conjunto com outra sano,
no devendo ser superior a R$ 50.000.000,00 (cinqenta milhes de reais) para cada infrao cometida.
1 Na aplicao de multa sero considerados a condio econmica do infrator e o princpio da proporcionalidade entre a gravidade da falta e a intensidade da sano.
Em monografia sobre o tema, MARCELO LIMA GUERRA diferencia as execues direta (forada) e
indireta, afirmando que naquela as medidas empregadas pelo juiz realizam, elas mesmas, a tutela executiva (vale dizer, a satisfao coativa do credor), enquanto na execuo indireta a tutela realiza-se sempre com o cumprimento pelo prprio devedor da obrigao; embora induzido pela imposio de medidas coercitivas (Execuo indireta. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 28).
Destaque-se que as estatsticas levam em considerao a proporo nmero de usurios X nmero de
reclamaes, tomando por base o universo de 1.000 consumidores. Dados retirados de <http://www.
anatel.gov.br/Portal/documentos/217453.pdf?numeroPublicacao=217453&assuntoPublicacao
=Ranking%20SMP%20-%20Agosto%20de%202008&caminhoRel=Cidadao>.

271

272

Delton Ricardo Soares Meirelles e Marcelo Pereira de Mello

Empresa

Juizados Especiais (RJ)

Agncia reguladora

Telemar/(fixo)

24.100 (02 lugar)

0,600/1.000 (5 lugar)

Vivo

13.751 (05 lugar)

0,218/1.000 (7 lugar)

TIM

7.185 (08 lugar)

0,402/1.000 (1 lugar)

OI

7.127 (09 lugar)

0,386/1.000 (3 lugar)

CLARO ATL

6.729 (11 lugar)

0,255/1.000 (4 lugar)

7. Deve o Judicirio conhecer imediatamente destes conflitos?


Assim como ocorre no sistema norte-americano, poder-se-ia limitar a
tutela jurisdicional apenas nos casos de ofensa s garantias processuais,
constituindo o esgotamento das vias administrativas um verdadeiro filtro
para as demandas que chegariam ao Judicirio. Entretanto, os opositores da
adoo deste sistema no Brasil invocam a garantia da inafastabilidade da
jurisdio, protegida pelo art. 5, XXVI, da constituio vigente (a lei no
excluir da apreciao do Poder Judicirio leso ou ameaa a direito).
Entre outros, h a opinio de NELSON NERY JR, para quem no mais se
permite, no sistema constitucional brasileiro, a denominada jurisdio condicionada, ou instncia administrativa de curso forado.69
Um dos argumentos para se rejeitar o controle interno administrativo
seria a limitao autoritria da jurisdio. Com efeito, recorrente a alegao de que tais restries constituiriam arbitrariedade tpicas de momentos
de anormalidade democrtica, em que regimes de exceo impediam
expressamente a tutela jurisdicional contra o Estado,70 ou condicionavam o
exerccio do direito de ao tentativa prvia de soluo administrativa.71
69
70

71

272

Princpios do processo civil na Constituio Federal. 7 ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 106.
Como previam os artigos 94 da Constituio de 1937 ( vedado ao Poder Judicirio conhecer de questes exclusivamente polticas) e 11 do Ato Institucional n 05/1968 (excluem-se de qualquer apreciao judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares,
bem como os respectivos efeitos), o qual foi acolhido pelo art. 182 da Emenda Constitucional n
01/1969 (continuam em vigor o Ato Institucional n 5, de 13 de dezembro de 1968, e os demais Atos
posteriormente baixados) e reforado pelo seu art. 181 (ficam aprovados e excludos de apreciao
judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da Revoluo de 31 de maro de 1964).
Conforme estipulava o art. 153, 4, da EC n 01/69, com a redao dada pela EC n 07/77: O ingresso
em juzo poder ser condicionado a que se exauram previamente as vias administrativas, desde que no
exigida garantia de instncia, nem ultrapassado o prazo de cento e oitenta dias para a deciso sobre o

Tutela do Consumidor: Por que os Juizados Especiais?

273

Diante deste trauma ps-regime de exceo, a atual constituio apenas exige expressamente o exaurimento das vias administrativas nas aes
relativas disciplina e s competies desportivas (art. 217, 1). Com base
nisto, autores como FREDIE DIDIER JR rejeitam a constitucionalidade de
lei ordinria que, abstratamente, estabelea tal condio:
(...) no se justifica, constitucionalmente, luz do direito fundamental inafastabilidade (art. 5, XXXV, da CF/88), qualquer
regra legal que condicione o exerccio do direito de agir a um
prvio esgotamento de instncias extrajudiciais, a pretexto de
demonstrao do interesse de agir. No se pode, a priori, definir se h ou no interesse de agir. O legislador no tem esse
poder de abstrao. Utilidade e necessidade da tutela jurisdicional no podem ser examinadas em tese, independentemente
das circunstncias do caso concreto.72
No entanto, mesmo o Supremo Tribunal Federal j admite que lei ordinria pode estabelecer condies para o exerccio do direito de ao, como
o faz o Cdigo de Processo Civil. Como observa NELSON NERY JR., a
caracterstica que diferencia o direito de petio do direito de ao a
necessidade, neste ltimo, de se vir a juzo pleitear a tutela jurisdicional,
porque se trata de direito pessoal. Em outras palavras, preciso preencher
a condio da ao interesse processual.73

72
73

pedido. Neste contexto insere-se, p. ex., o processo administrativo fiscal disciplinado pelo Decreto n
70.235/72 (regulando o Decreto-lei n 822/69).
Ainda que seja possvel identificar uma relao muito prxima entre poltica e regras processuais, tornase importante destacar a observao de JOS CARLOS BARBOSA MOREIRA, para quem constitui exagero de simplificao conceber essa relao guisa de vnculo rgido, automtico e inflexvel, para considerar que, se determinada lei (processual ou qualquer outra) surgiu sob governo autoritrio, essa contingncia cronolgica fatalmente lhe imprime o mesmo carter e a torna incompatvel com o respeito s
garantias democrticas. A realidade sempre algo mais complexa do que a imagem que dela propem
interpretaes assim lineares, para no dizer simplrias (MOREIRA, Jos Carlos Barbosa. Privatizao
do processo?, in Temas de Direito Processual: 7 srie. Rio de Janeiro: Saraiva, 2001, p. 88/89.)
Pressupostos processuais e condies da ao: o juzo de admissibilidade do processo. So Paulo: Saraiva,
2005, p. 279.
Princpios do processo civil na Constituio Federal. 7 ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.
101/102.

273

274

Delton Ricardo Soares Meirelles e Marcelo Pereira de Mello

LEONARDO GRECO, analisando esta condio a partir das teorias da


ao, ressalta que o interesse processual pode se confundir com o interesse
substancial (para os concretistas), ou ser um interesse de segundo grau
(conforme os abstratistas).74 GALENO LACERDA, p. ex., segue esta tendncia, ao enfocar a necessidade de se diferenciar o interesse jurdico
(amparo legal pretenso do autor) e o interesse puro e simples, tpica condio autnoma da ao.75
De qualquer forma, o interesse processual legitima-se pela inafastabilidade jurisdicional gerada pela represso estatal autotutela. GALENO
LACERDA j dizia que ningum dever bater s portas do pretrio pelo
simples gosto de bater, mas porque h um interesse fundamental que o
impele. A existncia deste que importa como condio necessria ao.76
De forma semelhante, assim disserta CASSIO SCARPINELLA BUENO
O interesse de agir, neste sentido, representa a necessidade de requerer, ao Estado-juiz, a prestao da tutela jurisdicional com vistas obteno de uma posio de vantagem (...) que,
de outro modo, no seria possvel alcanar. O interesse de agir,
portanto, toma como base o binmio necessidade e utilidade. Necessidade da atuao jurisdicional em prol da obteno
de uma dada utilidade.77
Com isto, o sistema jurdico processual brasileiro no claro quanto
necessidade de exaurimento das vias administrativas como requisito de admissibilidade da ao, como nos casos de mandado de segurana,78 habeas data,79

74
75
76
77
78

79

274

GRECO, Leonardo. A Teoria da Ao no Processo Civil. So Paulo: Dialtica, 2003, p. 34.


LACERDA, GALENO. Despacho saneador. 3 ed. Porto Alegre: Srgio Antnio Fabris, 1990, p. 89.
LACERDA, GALENO. Despacho saneador. 3 ed. Porto Alegre: Srgio Antnio Fabris, 1990, p. 91.
BUENO, Cssio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. vol. 1. So Paulo:Saraiva,
2007, p. 358.
Lei n 1.533/51, art. 5, I: No se dar mandado de segurana quando se tratar (...) de ato de que caiba
recurso administrativo com efeito suspensivo, independente de cauo, com a ressalva da smula n
429 do Supremo Tribunal Federal (a existncia de recurso administrativo com efeito suspensivo no
impede o uso do mandado de segurana contra omisso da autoridade)
Lei n 9507/97, art. 8, pargrafo nico: A petio inicial dever ser instruda com prova: I - da recusa
ao acesso s informaes ou do decurso de mais de dez dias sem deciso; II - da recusa em fazer-se a
retificao ou do decurso de mais de quinze dias, sem deciso; ou III - da recusa em fazer-se a anotao
a que se refere o 2 do art. 4 ou do decurso de mais de quinze dias sem deciso.

Tutela do Consumidor: Por que os Juizados Especiais?

275

acidentes de trabalho,80 militares81 e para tipificao dos crimes de sonegao e apropriao indbita previdenciria.82 Por outro lado, tambm corrente a dispensa de prvio esgotamento em questes previdencirias,83
repetio de indbito,84 indenizao por adeso a plano de aposentadoria
incentivada,85 vencimentos de servidor pblico86 e militares.87
Pode-se supor que este discurso do acesso Justia como preliminar ao
acesso ao direito seja conveniente para o Judicirio. Ao absorver uma quan80
81

82

83

84

85
86

87

Smula 89 do Superior Tribunal de Justia: a ao acidentria prescinde do exaurimento da via administrativa.


Estatuto dos Militares (Lei n 6.880/80), art. 51, 3: O militar s poder recorrer ao Judicirio aps
esgotados todos os recursos administrativos e dever participar esta iniciativa, antecipadamente, autoridade qual estiver subordinado. A 3 Seo do Superior Tribunal de Justia havia includo tambm
os pedidos de reconsiderao (MS 7.359?DF, rel. Min. Vicente Leal, j. 11/12/2002), mas tal entendimento foi modificado pela 6 Turma, no julgamento do RMS 10603/AC (Rel. Min. Maria Thereza de Assis
Moura, julg. 03/05/2007).
Cdigo Penal, art. 168-A (includo pela Lei n 9.983/00): deixar de repassar previdncia social as contribuies recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional. Para configurar sua consumao, necessria a ocorrncia de dano efetivo previdncia. Assim, o prvio esgotamento da via administrativa constitui condio de procedibilidade para a ao penal, sem o que no se vislumbra justa causa
para a instaurao de inqurito policial, j que o suposto crdito fiscal ainda pende de lanamento definitivo, impedindo a configurao do delito e, por conseguinte, o incio da contagem do prazo prescricional.
(STF. Pleno. Inq 2537?GO, rel. Min. Marco Aurlio; STJ. 5 Turma. HC 96348/BA, j. 24/06/2008, rel. Min.
Laurita Vaz). Da mesma forma, pendente o procedimento administrativo fiscal, no h crdito tributrio
exigvel e, conseqentemente, no pode ter incio a persecuo penal (STJ. 6 Turma. REsp 771.667?SC,
rel. Min. Paulo Medina, j. 15/03/2007. Idem em STF. Pleno, HCs 81.611?DF, 83.353-5 e 86.120-2).
Smula n 213 do Tribunal Federal de Recursos: o exaurimento da via administrativa no condio para
a propositura de ao de natureza previdenciria; Smula n 44 do Tribunal Regional Federal da 2 Regio:
para a propositura de aes de natureza previdenciria desnecessrio o exaurimento das vias administrativas; Smula n 09 do Tribunal Regional Federal da 3 Regio: em matria previdenciria, torna-se desnecessrio o prvio exaurimento da via administrativa, como condio de ajuizamento da ao. STJ. 5 Turma.
REsp 270.518/RS, Min. Jorge Scartezzini, j. 08/10/2002; STJ. 5 Turma. REsp 664682/RS, Min. Jos Arnaldo
da Fonseca, j. 18/10/2005; STJ. 5 Turma. REsp 764560/PR, Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 07/03/2006.
TRIBUTARIO. RECURSO ESPECIAL. NO CONHECIMENTO. REPETIO DE INDEBITO.
EXAURIMENTO DAS VIAS ADMINISTRATIVAS. INTERESSE DE AGIR. Cuidando-se de efetivo
recolhimento do imposto, diante da exigncia do fisco, no ha dizer sobre a falta de interesse de agir,
por no ter o contribuinte exaurido as vias administrativas no pleito da repetio respectiva. garantia constitucional do cidado o livre acesso ao Poder Judicirio (STJ. 2 Turma. REsp 7595/SP, rel. Min.
Hlio Mosimann, j. 14/09/1994).
STJ. 1 Turma. REsp 841676 / PE, Min. Teori Albino Zavascki, j. 17/08/2006.
A jurisprudncia deste Superior Tribunal de Justia, com base no cnon constitucional que preconiza
o livre acesso ao Poder Judicirio, pacfica no sentido de que a exausto da instncia administrativa
no condio para o pleito judicial. Patente a existncia do interesse em agir, de vez que desnecessrio o prvio requerimento na via administrativa para ensejar o ingresso na via judiciria, mormente
quando a vantagem pleiteada imposta administrao por imperativo legal (STJ. 6 Turma. REsp
261.158/SP, Min. Vicente Leal, j. 22/08/2000).
A contestao da Unio demonstrando contrariedade ao mrito da demanda, no apenas alegando a
necessidade de exaurimento da via administrativa, faz surgir o interesse processual. Mostra-se desnecessrio, assim, percorrer a via administrativa antes do ingresso em juzo (STJ. 5 Turma. REsp
328.889?RS, Rel. Min. Edson Vidigal, j. 21/08/2001). Idem em STJ. 5 T. REsp 764560/PR, Rel. Min.
Arnaldo Esteves Lima, j. 07/03/2006.

275

276

Delton Ricardo Soares Meirelles e Marcelo Pereira de Mello

tidade astronmica de demandas, fortalece-se sua legitimidade poltica e


social, mostrando-se como um poder mais acessvel que o Executivo ou o
Legislativo. Por outro lado, ao assumir tamanho volume de trabalho, o judicirio acaba por garantir uma maior fatia oramentria. De fato, sendo o procedimento gratuito dos juizados especiais em primeiro grau (Lei n 9.099/95,
art. 54), sua estrutura custeada basicamente pelo oramento estatal.
O Banco Mundial detectou que o Brasil gasta 3,66% de seu oramento
com a manuteno do sistema judicial, sendo o custo mais alto em comparao a outros 35 paises analisados (mdia de 0,97% do oramento pblico).88
Nos anos 90, ao analisar a situao econmica na Amrica Latina, houve
expressa recomendao de reforma do Judicirio (visto como ineficiente e
dispendioso), mas o corporativismo da magistratura e outros setores sociais
conseguiram frear alteraes mais radicais em sua estrutura orgnica.89
No caso aqui analisado, deve-se refletir se efetivamente h o interesse
do consumidor em acionar a concessionria pelo juizado. Analisando-se sob
uma perpectiva econmica, deve-se verificar quais seriam as vantagens para
o consumidor propor a ao90 em vez da composio extrajudicial.

9. Concluso
Pelo que se observou, a composio administrativa dos conflitos entre
consumidores e concessionrias, mediada pelas agncias reguladoras, seria
mais benfico para as partes envolvidas e para a economia. Informalidade,
rapidez, conhecimento tcnico e possibilidade de execuo judicial posterior so apenas alguns dos argumentos que poderiam ser utilizados para se
reconhecer a vantagem deste meio alternativo aos juizados especiais.

88
89

90

276

BRASIL (Ministrio da Justia/Secretaria de Reforma do Judicirio). Judicirio e economia. Disponvel


em www.mj.gov.br, 2006, p. 10.
Sobre este tema, ver MELLO, Marcelo Pereira de & MEIRELLES, Delton R. S. A reforma da Justia do
Trabalho e o embate Judicirio X Legislativo, in Revista de direito da Universidade Municipal de So
Caetano do Sul, n 14, jan./jul. 2008.
Para entender a deciso de se iniciar ou no um litgio, deve-se comparar o que se pode ganhar com o
que se pode perder como conseqncia desta deciso. Uma concluso natural que se recorre ao judicirio quando a utilidade esperada dessa ao maior do que a de agir de outra forma. Da mesma maneira, as partes em litgio buscam uma soluo fora dos tribunais quando a utilidade de ambas maior
seguindo esta alternativa do que uma outra. PINHEIRO, Armando Castelar. Impacto sobre o crescimento: uma anlise conceitual, in Judicirio e Economia no Brasil. So Paulo: Sumar, 2000, p. 27.

Tutela do Consumidor: Por que os Juizados Especiais?

277

Pode-se especular, sem maiores dados empricos, que um dos principais motivos para o pouco uso da via administrativa seja o desconhecimento deste papel das agncias reguladoras (e a desconfiana por ser um rgo
administrativo), em oposio popularizao dos juizados especiais. Outra
razo seria o protagonismo poltico do Judicirio, visto como o grande
defensor dos consumidores em seus litgios com as grandes empresas. Por
fim, a patrimonializao destes conflitos, estimulada pela cultura reparatria e pela expectativa de indenizao pecuniria, tambm merece destaque
como explicao racional para a atitude dos consumidores.
De qualquer forma, vive-se numa realidade de solues particulares e
individualistas. De fato, as agncias reguladoras em tese seriam uma forma
mais pblica de controle, tomando-se o conceito de pblico no-estatal de
Bresser Pereira. No entanto, sem uma atuao mais incisiva, resta ao consumidor as solues judicantes, que acaba sendo mais demorada (em virtude do excessivo nmero de processos nos cartrios) e pontual. E como as
decises dos juizados no tm eficcia erga omnes, limitando-se a respostas
isoladas e dependentes da provocao individual de cada lesado.
Como j alertava Cappelletti, sinal de melhor acesso Justia um sistema de soluo extrajudicial de conflitos, pela chamada justia coexistencial e conciliatria. Este deveria ser o papel das agncias reguladoras, por
meio de processos administrativos eficazes e democrticos, e no se manterem omissas diante de sucessivos danos causados pelas empresas que deveriam ser fiscalizadas.
Assim, melhor que aplaudir os juizados como grandes reguladores dos
abusos das concessionrias, seria nos orgulharmos de um sistema pleno de
fiscalizao administrativa, de natureza preventiva e extrajudicial, deixando ao Judicirio apenas o julgamento excepcional de vcios de processos
administrativos ou questes de mbito mais coletivo.

10. Referncias bibliogrficas


ARAGO, Alexandre Santos de. Agncias reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
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280

12
Tutela do Consumidor Superendividado
no mbito dos Juizados Especiais
Cveis Estaduais e Federais
Roberta Barcellos Danemberg

SUMRIO: 1. Introduo. 2. O que superendividamento. 2.1. Conceito. 2.2. Requisitos.


2.3. Classificao. 3. Quem o consumidor superendividado. 4. Causas do superendividamento. 5. Fundamentos de proteo do superendividado. 5.1. Dignidade do consumidor.
5.2. Eqidade (equilbrio) contratual e vulnerabilidade do consumidor. 5.3. Boa-f e funo
social nas relaes de consumo. 5.4. Direito informao. 5.5. Interpretao dos contratos.
6. O papel da defensoria pblica e do procon na tutela do superendividado. 7. Tutela do
consumidor superendividado atravs dos Juizados Especiais Cveis. 7.1. Sobre a presena
das partes e do advogado. 7.2. Competncia. 7.3. Valor da causa. 7.4. Pedido revisional e
outras consideraes. 8. Consideraes finais. 9. Referncias bibliogrficas. 10. Referncias
eletrnicas.

1. Introduo
O tema do superendividamento no novo, pois o instituto da insolvncia civil deveras antigo no Direito. A novidade nesse campo est relacionada poltica de proteo pessoa que se encontra com excesso de dvidas, trazendo prejuzo no s para si mesma e para o comrcio, mas muitas
vezes para a sua famlia e a sociedade.
de se observar, inicialmente, que a democratizao do crdito, longe
de trazer a to esperada felicidade, pode levar o ser humano prpria runa
financeira, com srias conseqncias psicolgicas. A facilidade de acesso ao
crdito, criada pela open credit society (sociedade aberta ao crdito), de
matriz norte-americana, capaz de seduzir muitas pessoas tomadas pelo
desejo de adquirir bens imediatamente.
Contrair um emprstimo no significa receber um favor, mas autntico direito; uma situao natural e necessria para aquelas pessoas que que281

282

Roberta Barcellos Danemberg

rem possuir bens que no podem ser comprados vista. Vale dizer, ser
devedor no mais motivo de vergonha, de modo que se endividar, assumindo prestaes para o pagamento de um carro ou imvel, uma conduta absolutamente comum, podendo-se afirmar que vivemos em uma economia do endividamento. O que gera preocupao o endividamento excessivo, isto , o superendividamento.
A propaganda tem sido agressiva, criando tentaes praticamente irresistveis atravs das diversas mdias, como jornal, televiso, rdio, internet,
alm de abordagens diretas na rua, com slogans como Crdito Fcil e
Comece a Pagar Ano que Vem.
Diante de tais anncios muitas pessoas parecem ficar embriagadas pelo
consumo, o que gera imensa chance de comprometerem-se com gastos
acima de sua realidade econmico-financeira, sobretudo se ocorrerem fatos
inesperados, como doena na famlia ou perda de emprego.
Para que as pessoas faam parte de relaes jurdicas, torna-se imperativo o respeito boa-f e confiana das partes contratantes, devendo
haver o fornecimento de informao adequada sobre riscos e custos do
negcio. O mercado deve constituir um local seguro, na medida em que o
contrato hoje est subordinado idia de funo social.
Ademais, preciso reconhecer que o superendividamento deve ser
evitado e erigido como autntica poltica estatal se quisermos um pas com
menos desigualdades e pessoas mais felizes.

2. O que superendividamento
Neste tpico sero lanadas consideraes sobre o conceito de superendividamento, seus requisitos e, por fim, a classificao que pode ser
encontrada em doutrina.

2.1. Conceito
O tema do superendividamento vem ganhando cada vez mais espao
no cenrio internacional. Nos pases de lngua inglesa conhecido como
282

Tutela do Consumidor Superendividado no mbito


dos Juizados Especiais Cveis Estaduais e Federais

283

overindebtedness e na Frana como surendettement. O termo alemo correspondente berschuldung.


A expresso sobreendividamento utilizada como alternativa a superendividamento, principalmente entre os autores portugueses.1 Tambm
nos pases latinos e de idioma espanhol, o fenmeno designado de sobreendeudamiento.2
O superendividamento representa, em linhas gerais, a situao em que,
uma pessoa de boa-f, assume compromissos financeiros e no consegue
cumpri-los. No pode ser confundido com o mero inadimplemento, que
constitui o descumprimento da obrigao.3 Poder-se-ia pensar que aquele
que est superendividado est inadimplente, mas isto no totalmente correto.4 Isto porque, o consumidor pode estar honrando seus compromissos e,
em razo de fatos imprevisveis como a perda do emprego, saber de antemo que no conseguir mais honr-los. Estar superendividado, porm
ainda no ser inadimplente.
Para CLAUDIA LIMA MARQUES, superendividamento a impossibilidade global do devedor-pessoa fsica, consumidor, leigo e de boa-f, de
pagar todas as suas dvidas atuais e futuras de consumo (excludas as dvidas
com o Fisco, oriundas de delitos e de alimentos).5
Cada pas, entretanto, pode adotar uma concepo um pouco diversa
de superendividamento. Na Frana o superendividamento caracteriza-se
pela impossibilidade manifesta de o devedor de boa-f honrar suas dvidas
no profissionais vencidas ou vincendas.6 Na Blgica, no h uma clara
definio de superendividamento nas duas leis de 05.07.1998, mas h a
noo que o identifica com a incapacidade duradoura ou estrutural de o

1
2
3

Cf. MARIA MANUEL LEITO MARQUES et alii, O endividamento dos consumidores, passim.
Cf. IVN JESS TRUJILLO DEZ, El sobreendeudamiento de los consumidores, passim.
Segundo PAULO NADER, Curso de Direito Civil, vol. II, p. 510, inadimplemento descumprimento,
total ou parcial, de uma obrigao de dar, fazer ou no fazer; o no pagamento de dvida nas condies fixadas em negcio jurdico.
Para ARAKEN DE ASSIS, Resoluo do contrato por inadimplemento, p. 102, o inadimplemento absoluto se refere obrigao no cumprida e que nem poder s-la, traduzindo uma situao irrecupervel. O autor inclui a insolvncia, ao lado de outros casos como exemplo de inadimplemento absoluto.
Sugestes para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas fsicas em contratos de
crdito ao consumo: proposies com base em pesquisa emprica de 100 casos no Rio Grande do Sul,
in: Revista de Direito do Consumidor, vol. 55, p. 12.
MARIA MANUEL LEITO MARQUES et alii, O endividamento dos consumidores, p. 235.

283

284

Roberta Barcellos Danemberg

devedor respeitar as suas obrigaes financeiras.7 J a lei finlandesa chama


de insolvente o devedor que no tem capacidade para pagar as suas dvidas
no momento em que elas se tornam exigveis, quando essa no seja uma
situao meramente transitria, mas de carter permanente.8
Os portugueses chamam o sobreendividamento de falncia ou insolvncia de consumidores, conceituando-o como as situaes em que o
devedor se v impossibilitado, de uma forma durvel ou estrutural, de pagar
o conjunto das suas dvidas, ou mesmo quando existe uma ameaa sria de
que o no possa fazer no momento em que elas se tornem exigveis.9
preciso, a partir dos conceitos expostos, enumerar os requisitos exigidos para que esteja caracterizada a situao jurdica de superendividamento.

2.2. Requisitos
Em razo da ausncia de um tipo legal definindo claramente as hipteses de superendividamento e os seus requisitos, faz-se mister uma investigao luz do direito comparado, notadamente o francs, que tem uma
boa disciplina do instituto.
No sistema francs, o art. 331 do Code de la Consomation (L. 93/949
de 1993) institui um procedimento amigvel perante uma comisso de
acordo entre credores e o consumidor sobre as condies de pagamento,
exigindo os seguintes requisitos para que se configure o superendividamento: a) que o consumidor seja pessoa fsica domiciliada na Frana (ou francesa domiciliada no estrangeiro); b) que sejam dvidas de consumo (no relacionadas atividade profissional); c) boa-f do consumidor; d) impossibilidade manifesta do devedor de honrar com seus compromissos financeiros.10
Presume-se a boa-f do devedor independente do valor devido ou de
quantos so seus credores.11 Vale destacar os julgados da Corte de Cassao
7
8
9
10

11

284

Idem, p. 251.
Idem, p. 251.
Idem, p. 265.
Cf. REINALDO LIMA LOPES, Crdito ao Consumidor e Superendividamento Uma problemtica
geral, in: Revista de Direito do Consumidor, vol. 17, p. 60; GERALDO DE FARIA MARTINS DA
COSTA, Superendividamento, p. 115-6.
GILLES PAISANT, El tratamiento del sobreendeudamiento de los consumidores em derecho francs,
in: Revista de Direito do Consumidor, vol. 42, p. 13, explica que tal presuno foi estabelecida pela
Corte de Cassao francesa, em virtude do silncio legal.

Tutela do Consumidor Superendividado no mbito


dos Juizados Especiais Cveis Estaduais e Federais

285

francesa que declarou a ausncia de m-f em relao aos consumidores


que no procuraram o superendividamento de maneira consciente e
refletida.12
A expresso impossibilidade permanente contida em outras leis deve
ser evitada, pois passa a idia de que o superendividado nunca se recuperar.
Sustenta IVN JESS TRUJILLO DEZ que deve ser indiferente, para
a tutela do superendividado, a existncia de um ou mais credores.13

2.3. Classificao
Os superendividados so classificados pela doutrina em dois tipos: passivos e ativos. So considerados passivos aqueles que se tornam devedores
no por vontade prpria, mas por situaes que no puderam evitar, tais
como: falecimento de um parente prximo, desemprego ou divrcio.
J os superendividados ativos so aqueles que gastam muito por simplesmente no terem controle de suas finanas, sem que para isso tenha
ocorrido uma situao nova, o que no significa, contudo, a ausncia de
boa-f.14 Neste caso, o indivduo, na busca de manter um padro de dignidade que ele mesmo se impe, se endivida em demasia. Na maioria das
vezes, o consumidor at detecta o endividamento antes de contratar, porm
contrata impelido pela necessidade. Seja necessidade real ou necessidade
criada pelos costumes ou pela mdia.15
Tal classificao revela-se importante na medida em que rgos de
proteo do superendividado, como a Defensoria Pblica do Estado do Rio
de Janeiro, limitam a sua atuao ao superendividado passivo.16 Entretanto,

12
13
14
15

16

GERALDO DE FARIA MARTINS DA COSTA, Superendividamento, p. 117.


El sobreendeudamiento de los consumidores, p. 10.
Cf. http://noticias.arcauniversal.com.br/arcanews/integra.jsp?cod=71720&codcanal=36 (acessado em
15.11.2005)
MARCELLA LOPES DE CARVALHO PESSANHA OLIBONI, O superendividamento do consumidor
brasileiro e o papel da Defensoria Pblica: criao da Comisso de Defesa do Consumidor
Superendividado, in: Revista de Direito do Consumidor, vol. 55, p. 170.
DAVID TELLES, Ajuda para superendividados (Entrevista com o Defensor Pblico Lincoln Lamellas),
in: http://noticias.arcauniversal.com.br/arcanews/integra.jsp?cod=71720&codcanal=36 (acessado em
15.11.2005).

285

286

Roberta Barcellos Danemberg

o superendividado ativo tambm merece proteo jurdica,17 seja atravs da


educao para o consumo, seja por meio de tutela processual.
No se pode esquecer a dificuldade experimentada pela Frana no tratamento dos superendividados passivos, j que o procedimento estruturado
pela lei francesa tinha por base os superendividados ativos, pois partia do
pressuposto que o superendividado possua renda para parcelar suas dvidas.
Ressalte-se, no entanto, que a reforma da lei corrigiu tal problema, facultando comisso suspender a exigibilidade do crdito por at trs anos.18

3. Quem o consumidor superendividado


Traar o conceito jurdico de consumidor superendividado deveras
difcil, se levarmos em considerao a extenso do prprio termo consumidor, que a doutrina, sempre em busca da proteo mais ampla possvel, tem
certa dificuldade em precisar.19 De qualquer modo, deve-se reconhecer que
o conceito jurdico de superendividado no coincide com o conceito de
consumidor presente na Lei n 8.078/90 (Cdigo de Defesa do Consumidor
CDC), uma vez que no se confere tutela pessoa jurdica.20
O perfil do consumidor superendividado vem sendo buscado em pesquisas realizadas em diversos pases. No Brasil, os estudos ainda no alcanam a maior parte da populao, limitando-se ao universo dos superendividados de alguns estados.
Destaca-se a iniciativa pioneira da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul e da Defensoria Pblica do Estado do Rio Grande do Sul que
fizeram um levantamento do perfil dos superendividados deste estado.21

17
18

19

20
21

286

GERALDO DE FARIA MARTINS DA COSTA, O direito do consumidor endividado e a tcnica do


prazo de reflexo, in: Revista de Direito do Consumidor, vol. 43, p. 261-262.
GILLES PAISANT, A reforma do procedimento de tratamento do superendividamento pela lei de 29
de julho de 1998 relativa luta contra as excluses, in: Revista de Direito do Consumidor, vol. 55, p.
242-246.
Cf. GUSTAVO PEREIRA LEITE RIBEIRO, O conceito jurdico de consumidor, in: Revista Trimestral
de Direito Civil, vol. 18, passim; JULIANA SANTOS PINHEIRO, O conceito jurdico de consumidor,
in: Problemas de Direito Civil-Constitucional, p. 325 e ss.
HELOSA CARPENA e ROSNGELA LUNARDELLI CAVALAZZI, Superendividamento: proposta
para um estudo emprico e perspectiva de regulao, in: Revista Direito do Consumidor, vol. 55, p. 135.
RAFAELA CONSALTER, O perfil do superendividado no estado do Rio Grande do Sul, in:
http://www.adpergs.org.br/restrito/arq_artigos28.pdf (acessado em 12.12.2005).

Tutela do Consumidor Superendividado no mbito


dos Juizados Especiais Cveis Estaduais e Federais

287

preciso apontar, no entanto, algumas limitaes nessa pesquisa. Em


primeiro lugar, porque se restringiu quelas pessoas que procuraram a
Defensoria at formar um nmero de cem casos. Em segundo lugar, porque
a assistncia s ocorreu para aqueles que percebiam at trs salrios mnimos por ms.22 De todo modo, merece aplausos a iniciativa que revela
informaes interessantes.
Constatou-se nessa pesquisa nmero pouco maior de superendividados
do sexo feminino (51%) e menos de um tero com mais de dois dependentes (26%). Um dado preocupante diz respeito faixa etria mais superendividada: 64% so pessoas com mais de 50 anos (24% entre 30 e 50 anos e 12%
com menos de 30 anos). E 66% dos entrevistados superendividados possuem renda mensal de at dois salrios mnimos ou nem mesmo tm renda.
A quantidade de devedores inadimplentes ou em atraso no pagamento de
prestaes chega a 90% dos entrevistados, e 70% esto inscritos em cadastros de devedores. Tambm interessante perceber que o nmero de superendividados passivos corresponde a quatro vezes o de superendividados
ativos, sendo que 62,5% daqueles atribuiu sua condio ao desemprego. Por
fim, cumpre destacar que praticamente a metade dos pesquisados (49%) no
Rio Grande do Sul possui pelo menos trs credores. Os principais so lojas
(51%), instituies bancrias (45%) e financeiras (36%). Os supermercados
aparecem em 15% dos casos.
O resultado da pesquisa realizada pela Defensoria Pblica do Estado do
Rio de Janeiro foi apresentado no II Seminrio Internacional de Defensoria
Pblica e a Proteo do Consumidor, em 1 de fevereiro de 2005, pela Defensora Pblica Marcella Oliboni. Foram entrevistadas trinta pessoas.23
Um dos destaques dessa pesquisa foi o fato de cerca da metade dos
entrevistados serem devedores, principalmente, de instituies bancrias e
financeiras, alm de estarem com praticamente toda a renda comprometida com suas dvidas.

22

23

CLAUDIA LIMA MARQUES, Sugestes para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de
pessoas fsicas em contratos de crdito ao consumo: proposies com base em pesquisa emprica de 100
casos no Rio Grande do Sul, in: Revista de Direito do Consumidor, vol. 55, p. 46.
Cf. http:arquivoglobo.globo.com/pesquisa/texto_gratis.asp?codigo=2434687 (acessado em 30.11.2005).

287

288

Roberta Barcellos Danemberg

Ao contrrio do encontrado na pesquisa do Rio Grande do Sul, 53% dos


entrevistados so homens, dos quais a grande maioria tem entre 35 e 55 anos.
Tambm no Rio de Janeiro, o superendividado passivo prepondera
entre os assistidos consultados (73%), apresentando como principais causas
de sua condio a doena, seguida do desemprego.
Em razo de essas pesquisas estarem limitadas a dois estados brasileiros, preciso que este trabalho seja disseminado para que se conhea
melhor o perfil do superendividado, atravs de um universo mais amplo.24
De qualquer sorte, vale informar alguns nmeros divulgados no dia 15
de abril de 2009 pela Federao do Comrcio de SP (Fecomercio), que executa pesquisas peridicas, no exatamente sobre o consumidor superendividado, mas sobre o grau de endividamento da populao paulistana.
De acordo com a economista do Fecomercio, Kelly Carvalho, a maior
parte dos consumidores entrevistados com dvidas possui 33% de sua renda
comprometida em at 3 meses. O restante de 3 a 6 meses (23%), de 6 meses
a 1 ano (12%) e acima de 1 ano (32%). Em relao ao tempo de atraso de
dvidas, para 33% o atraso at 30 dias, enquanto para 23% compreende o
perodo entre 30 e 60 dias. Para 12%, o atraso entre 60 e 90 dias e para
outros 32% chegam a ser superior a 90 dias.25

4. Causas do superendividamento
O desemprego tem sido apontado como um dos principais motivos
para o superendividamento entre os pesquisados no Rio Grande do Sul e no
Rio de Janeiro. Com a recente crise econmica mundial o nmero de
desempregados tende a crescer como apontam os dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia

24

25

288

Registre-se iniciativa, em Portugal, do Observatrio do Endividamento dos Consumidores (OEC) a


quem compete proceder recolha e anlise da informao econmica e scio-jurdica no domnio do
crdito aos consumidores; definir metodologias de avaliao do sobreendividamento; realizar estudos
tcnicos que permitam caracterizar e conhecer as principais tendncias do endividamento e do
sobreendividamento das famlias; e participar em reunies de trabalho para discusso e estudo de medidas de interveno nas reas do crdito, do endividamento e do sobreendividamento dos consumidores in: http://www.oec.fe.uc.pt/apresentacao/apresentacao.html (acessado em 20/04/09).
Detalhes da pesquisa divulgada pela Fecomercio podem ser obtidos no endereo http://www.fecomercio.com.br/pagina.php?tipo=21&pg=1320 (acessado em 15/04/2009).

Tutela do Consumidor Superendividado no mbito


dos Juizados Especiais Cveis Estaduais e Federais

289

e Estatstica (IBGE) em maro de 2009: a taxa de desocupao em fevereiro foi de 8,5%, 0,3 ponto acima do dado de janeiro.26 Vale ressaltar que o
tempo mdio despendido na procura de trabalho chegava, em outubro de
2008, a 9 meses em So Paulo e 14 meses no Distrito Federal,27 o que demonstra a frgil situao do trabalhador que adquire uma dvida para pagamento a longo prazo. Pesquisa encomendada pela Confederao Nacional
da Indstria (CNI) ao Instituto Brasileiro de Opinio Pblica e Estatstica
(IBOPE) e divulgada em maro de 2009 revelou que o desemprego a
principal preocupao dos brasileiros para os prximos seis meses.28
possvel dividirmos os consumidores em dois tipos: os privilegiados
e os desfavorecidos.29 Ambos so vulnerveis tcnica e juridicamente, mas
os primeiros conseguem ter mais acesso ao crdito e bens, constituindo o
que se chama vulgarmente de classe mdia ou classe alta. Os desfavorecidos
constituem a classe baixa que tem como necessidade de consumo objetos
bsicos da vida urbana, como eletrodomsticos, que s lhes so acessveis
atravs da concesso de crdito. No Brasil, metade da populao constituda por consumidores desfavorecidos.30
No bastassem sua natural vulnerabilidade e o imenso nmero de
potenciais consumidores sedentos por comprar a prazo, a populao h
muito tempo exposta oferta de crdito fcil, nas mais diversas formas. O
crdito anunciado como um sonho, em todos os horrios e locais, pode ser
na rua, atravs de panfletos, ou durante um programa televisivo em que o
prprio apresentador torna-se o garoto propaganda.31
A criao do emprstimo consignado em folha de pagamento em 2003
para os trabalhadores da ativa e em 2004 para os aposentados e pensionis-

26 Desemprego em fevereiro subiu para 8,5%, diz IBGE in http://ultimosegundo.ig.com.br/econo


mia/2009/03/26/desemprego+em+fevereiro+subiu+para+85+diz+ibge+5072045.html (acessado em
17/04/2009).
27 Cf. http://turandot.dieese.org.br/icv/TabelaPed?tabela=99 (acessado em 14/04/2009).
28 IVAN RICHARD, Desemprego a maior preocupao dos brasileiros, revela pesquisa CNI /Ibope in
http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2009/03/20/materia.2009-03-20.5964688505/view (acessado
em 14/04/2009).
29 Cf. JOS REINALDO DE LIMA LOPES, Crdito ao consumidor e superendividamento - uma problemtica geral, in: Revista Direito do Consumidor, vol. 17, p. 58.
30 Idem, p. 58-59.
31 Idem, p. 58.

289

290

Roberta Barcellos Danemberg

tas, que tem como grande atrativo taxa de juros menor, fez crescer ainda
mais a oferta de crdito.32
A Previdncia Social informou, em seu portal, que at 4 de outubro de
2005, em um universo de 18.871.718 de aposentados e pensionistas,
4.974.416 de operaes de emprstimo consignado entre bancos conveniados
com INSS haviam sido realizadas, estando ativas 4.778.700 (descontados os
emprstimos cancelados e os j pagos pelos segurados). Deste universo de
operaes ativas, 49,89% referiam-se a aposentados e pensionistas com renda
de at um salrio mnimo.33 No perodo compreendido entre 2 de junho e 11
de julho de 2005 a mdia diria de operaes de crdito foi de 22,3 mil.34
J entre junho e agosto de 2008, foram feitas mais de 193 mil operaes
por aposentados e pensionistas, somando no final de agosto 14,83 milhes
de operaes ainda ativas.35 Note-se que nesta poca a crise econmica
mundial ainda no havia se instalado no pas.
A Instruo normativa do INSS n 33, de 05 de novembro de 2008,36
estabeleceu critrios e procedimentos operacionais relativos consignao
de descontos para pagamento de emprstimos e carto de crdito, contrados nos benefcios da Previdncia Social. O INSS buscou, desse modo,
reduzir os juros praticados nesses emprstimos consignados, alm de proporcionar maior proteo aos beneficirios, obrigando, por exemplo, as instituies financeiras a informarem previamente, ao titular do benefcio, o
valor total financiado, a taxa mensal e anual de juros, acrscimos remuneratrios, moratrios e tributrios, o valor, nmero e periodicidade das prestaes e a soma total a pagar por emprstimo. Limitou, ainda, o nmero de
60 parcelas e a margem consignvel a 30% do valor da aposentadoria ou
penso recebida, sendo 20% da renda para emprstimos consignados e
10% exclusivamente para o carto de crdito.37
32
33
34
35
36
37

290

Cf. www.idec.org.br/noticia.asp?id=4136# (acessado em 07/12/2005).


Cf. http://www.previdencia.gov.br/agprev/MostraNoticia.asp?Id=21272&ATVD=1&xBotao=1 (acessado em 07/12/2005).
Cf. http://www.previdenciasocial.gov.br/agprev/MostraNoticia.asp?Id=20158&ATVD=1&xBotao=1
(acessado em 07/12/2005).
CONSIGNADO: Contratao de crdito mantm-se estvel 09/10/2008, in: http://www1.previdencia.gov.br/agprev/agprev_mostraNoticia.asp?Id=31793&ATVD=1&xBotao=1, (acessado em 31/03/2009).
Cf. http://www81.dataprev.gov.br/sislex/paginas/38/inss-pres/2008/28.htm (acessado em 31/03/2009).
Cf. http://www1.previdencia.gov.br/pg_secundarias/paginas_perfis/emprestimo_consignado_01.asp
(acessado em 31/03/09).

Tutela do Consumidor Superendividado no mbito


dos Juizados Especiais Cveis Estaduais e Federais

291

Como destaca a professora AMLIA SOARES DA ROCHA38 a seduo do crdito fcil leva facilmente ao superendividamento, o que compromete o prprio primado da vida digna.
Alm da grande oferta de crdito, deve ser destacado o fato de que em apenas 10% dos casos pesquisados pela Defensoria Pblica do Rio de Janeiro havia
sido exigido algum tipo de garantia. Percentual baixo tambm foi encontrado
pela Defensoria do Rio Grande do Sul (22%), na pesquisa j citada.
A liberao de qualquer garantia por parte do devedor funciona como
um verdadeiro chamariz, uma vez que a concesso do crdito fica muito
mais fcil de acontecer. Tal atitude talvez possa ajudar a explicar o acelerado crescimento do superendividamento no pas. Afinal, no de hoje que
se oferecem parcelamentos para praticamente todo o tipo de compra, em
um claro estmulo ao endividamento.
A renda do brasileiro est apertada, as pessoas esto endividadas.
preciso estmulo para as compras. Este o pensamento de JOO CARLOS
OLIVEIRA, presidente da Associao Brasileira de Supermercados (Abras),
que defende ser o parcelamento uma forma de negociao to vlida quanto o preo baixo.39
CLUDIO FELISONI, do Programa de Administrao do Varejo
(Provar) da Fundao Instituto de Administrao (FIA) informa que em pesquisa realizada pela entidade e o Canal Varejo foi constatado que 26,5% das
pessoas com renda de at trs salrios-mnimos parcelam compras no supermercado. E alerta: Crdito para comprar alimentos? Algo est errado.40
Diversamente pensa JOO GOMES, da Fecomrcio-RJ sobre a concesso de crdito pelos supermercados: uma forma de tornar o cliente mais
fiel. E est longe de mostrar um consumidor endividado: os nmeros da
inadimplncia esto estveis.41
Muitos brasileiros para satisfazerem seus sonhos de consumo esto
endividando-se e comprometendo parte significativa de seus rendimentos

38
39
40
41

AMLIA SOARES DA ROCHA, Dvida e consumo, in: Consultor Jurdico, http://conjur.estadao.


com.br/static/text/34627,1 (acessado em 13/12/2005).
FABIANA RIBEIRO, Farra do crdito nos alimentos, in: O Globo, 30/11/05, p. 25.
Ibidem.
Ibidem.

291

292

Roberta Barcellos Danemberg

em longas parcelas. Ao elevar o prazo para pagamento o risco de inadimplncia muitas vezes aumenta, pois, conforme comenta JOS ANTNIO
PRAXEDES NETO, vice-presidente da Telecheque, o brasileiro imediatista, no espera para fazer suas compras vista ou em menos parcelas. (...)
Por isso, a inadimplncia no caso do celular, por exemplo, atingiu taxa de
8,3% no ano. bem mais que a taxa mdia do varejo, de 2,8%.42
Um caso que retrata bem essa realidade o de um auxiliar administrativo, com salrio de R$ 800, que se comprometeu a pagar oito parcelas de R$
200 por um aparelho celular que tira fotos, filma, tem visor colorido e fininho, porque acredita ser possvel tirar uma onda com o novo aparelho.43
Sobre o tema, a pesquisadora CECLIA MATOSO, da Escola de
Superior de Propaganda e Marketing, explica: Status o que os consumidores buscam ao comprar um produto acima de sua capacidade financeira.
Como todas as classes tm carto de crdito fica mais fcil cair na tentao
das compras a prazo.44
No direito aliengena so apontadas outras causas para o superendividamento, como a doena, o aumento do custo de vida, acidente e separao ou divrcio.45 A propsito, a crise no regime matrimonial pode deixar completamente desamparado aquele cnjuge que era economicamente dependente do outro.46
preciso, portanto, encontrar um ponto de equilbrio para que o sonho
de acesso ao crdito no se transforme no pesadelo do superendividamento.
De outro lado, no se pode criar uma restrio tal que impea os desfavorecidos de tambm usufrurem do sistema. Eis a questo que requer debate e reflexo, com severa observao das formas de preveno do superendividamento.

5. Fundamentos de proteo do superendividado


H razes polticas e jurdicas que fundamentam a proteo dos consumidores que se encontram na situao de superendividamento. Destarte,
torna-se imperioso identificar tais razes.
42
43
44
45
46

292

FABIANA RIBEIRO, s vsperas do Natal, sonhos comprados a prazo, in: O Globo, 11.12.2005, p. 51.
Ibidem.
Ibidem.
Cf. MARIA MANUEL LEITO MARQUES et alii, O endividamento dos consumidores, p. 156.
IVN JESS TRUJILLO DEZ, El sobreendeudamiento de los consumidores, p. 15, p. 75-78.

Tutela do Consumidor Superendividado no mbito


dos Juizados Especiais Cveis Estaduais e Federais

293

5.1. Dignidade do consumidor


O Estado brasileiro, preocupado com o bem-estar dos seus cidados,
estabeleceu que a construo de uma sociedade solidria, a erradicao da
pobreza e a reduo das desigualdades sociais constituem objetivos fundamentais da Repblica Federativa (art. 3, I e III da CRFB). A propsito, a
Constituio de 1988 erigiu como verdadeira poltica estatal a defesa do
consumidor (art. 5, XXXII e art. 17, V).
preciso reconhecer, a partir dessas normas, que a tutela jurdica do
superendividado um direito fundamental, que tem por base a dignidade
da pessoa humana.47
Poder-se-ia pensar ser um exagero asseverar que a situao de superendividamento incompatvel com o princpio constitucional da dignidade da pessoa humana, que basilar de toda a legislao brasileira (art. 1, III, CRFB/88).
Entretanto, compreender ser intolervel que o Estado abandone os seus prprios cidados na condio de superendividados frente a um mercado feroz,
vido por dinheiro, sem que haja a mnima proteo, constitui o primeiro
passo para que se estabelea a relao entre dignidade e superendividamento.
Segundo EDUARDO GABRIEL SAAD, dignidade ao parecer do
legislador no tem o significado que lhe atribui o dicionarista: ttulo ou
cargo que confere ao indivduo posio de destaque. Foi o vocbulo usado
na lei para designar a honestidade ou a autoridade moral do consumidor,
atributos que o fornecedor, por bem ou mal, deve respeitar.48
Em clssica passagem, consignou MARCELLA OLIBONI: o consumidor superendividado torna-se um excludo socialmente, passa a amargurar
uma angstia existencial, uma impotncia diante da vida sobrevivendo
abaixo de um padro de dignidade.49 Ao lado do respeito dignidade (art.

47

48
49

HELOSA CARPENA e ROSNGELA LUNARDELLI CAVALAZZI, Superendividamento: proposta


para um estudo emprico e perspectiva de regulao, in: Revista Direito do Consumidor, vol. 55, p.
124. Para CLAUDIA LIMA MARQUES, Contratos no Cdigo de Defesa do Consumidor, p. 210-211, o
consumidor sujeito de direitos fundamentais, porque o contrato ponto de encontro entre direitos
fundamentais.
EDUARDO GABRIEL SAAD, Comentrios ao Cdigo de Defesa do Consumidor, p. 148.
O superendividamento do consumidor brasileiro e o papel da Defensoria Pblica: criao da Comisso
de Defesa do Consumidor Superendividado, in: Revista de Direito do Consumidor, vol. 55, p. 170.

293

294

Roberta Barcellos Danemberg

4, CDC), a Poltica Nacional de Relaes de Consumo, prev entre outros


princpios, a vulnerabilidade (art. 4, I, CDC), a harmonizao dos interesses dos participantes das relaes de consumo (art. 4, III, CDC),50 a educao e informao do consumidor (art. 4, IV, CDC) e a boa-f (art. 4, III
e VI, CDC).
Neste sentido, as Turmas Recursais do Estado do Rio de Janeiro tm
diversos julgados que limitam o pagamento pelo consumidor superendividado a 30% de seu salrio, a fim de preservar quantia suficiente para sua
sobrevivncia de maneira digna. No se questiona em tais decises a inexistncia de dvida, mas a forma como ela poder ser paga.51

5.2. Eqidade (equilbrio) contratual e vulnerabilidade


do consumidor
Pode-se definir a vulnerabilidade como a situao de desequilbrio do
poder negocial entre os contratantes que acaba por justificar tratamento desequilibrado e desigual dos mesmos.52 O art. 4, I, do CDC, estabelece, com
efeito, uma presuno de fraqueza manifesta do consumidor, j que se submete ao poder de controle dos titulares de bens de produo (empresrios).53
Em razo dessa vulnerabilidade do consumidor, a Lei 8.078/90 fixa
inmeras normas imperativas que probem clusulas abusivas, que sejam
incompatveis com a eqidade (art. 51, IV), visando atingir a justia contratual nas relaes de consumo. o que a CLAUDIA LIMA MARQUES
chama de princpio da eqidade (equilbrio) contratual.54

50

51
52

53
54

294

Tal harmonizao no se restringe ao tratamento das partes envolvidas, mas alcana, igualmente, critrios de ordem prtica, consubstanciados em dois grandes instrumentos: 1) marketing de defesa do
consumidor (ex.: contato telefnico); 2) conveno coletiva de consumo sobre preo, qualidade, quantidade e garantia de produtos e servios, bem como reclamao e composio de conflitos (JOS
GERALDO BRITO FILOMENO, Comentrios aos arts. 4 e 5, in: Cdigo Brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto, p. 61).
Cf. Recursos Inominados ns. 2008.700.021081-8, 2009.700.010025-0 e 2009.700.000037-1, julgados,
respectivamente, em 02/06/2008, 10/03/2009 e 14/01/2009.
GUSTAVO PEREIRA LEITE RIBEIRO, O conceito jurdico de consumidor, in: Revista Trimestral de
Direito Civil, vol. 18, p. 26. Alguns autores tentam distinguir vulnerabilidade de hipossuficincia, ressaltando que esta o aspecto processual da vulnerabilidade.
JOS GERALDO BRITO FILOMENO, Comentrios aos arts. 4 e 5, in: Cdigo Brasileiro de defesa do
consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto, 6 ed., p. 55.
Contratos no Cdigo de Defesa do Consumidor, p. 741.

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295

Para FRANCISCO AMARAL, a eqidade um princpio tico, um


modelo ideal de justia, um princpio inspirador do direito que visa a realizao da perfeita igualdade material, transformando-se em modelo jurdico
quando aplicado pelo rgo jurisdicional a um conflito de interesses especfico (...). , antes e acima de tudo, um critrio de deciso de casos singulares, que se apresenta sob a forma de uma clusula geral.55 Para o autor, a
eqidade , ainda, um critrio histrico de igualdade e proporcionalidade.56
Neste particular, ensina PIETRO PERLINGIERI, que La proporzionalit rileva anche in tema di scelta tra risoluzione e riduzione, e nella valutazione della gravita dellinadempimento (no vernculo: a proporcionalidade se aplica tambm em tema de escolha entre resoluo e reduo, e na
valorao da gravidade do inadimplemento).57 Vale dizer, com base na
eqidade, pode o consumidor superendividado tentar judicialmente (e
extrajudicialmente) a resoluo contratual ou a renegociao de suas dvidas, de acordo com a gravidade de sua inadimplncia e observando o princpio da proporcionalidade.

5.3. Boa-f e funo social nas relaes de consumo


No CDC a boa-f colocada como um dos princpios gerais (art. 4, III),
sendo a mesma presumida em todas as relaes de consumo, ainda que no
haja no diploma legal a sua conceituao. A boa-f deve estar presente, principalmente, na conduta do fornecedor, que, com sensibilidade e menos
ganncia, poder contribuir com a reduo do nmero de superendividados
ao, por exemplo, informar corretamente os custos do crdito, o que nem sempre ocorre, apesar da obrigatoriedade imposta pelo Banco Central do Brasil.58

55
56
57
58

A eqidade no Cdigo Civil brasileiro, in: Aspectos controvertidos do novo Cdigo Civil (Escritos em
Homenagem ao Ministro Jos Carlos Moreira Alves), p. 207-208.
Idem, p. 208.
Equilibrio Normativo e principio di proporzionalit nei conttratti, in: Revista Trimestral de Direito
Civil, vol. 12, p. 139.
A Resoluo do Conselho Monetrio Nacional de n 3.517, de 6 de dezembro de 2007, dispe sobre a
informao e a divulgao do custo efetivo total (CET) correspondente a todos os encargos e despesas
de operaes de crdito e de arrendamento mercantil financeiro, contratadas ou ofertadas a pessoas
fsicas.

295

296

Roberta Barcellos Danemberg

A lei consumerista determina que as clusulas contratuais incompatveis com a boa-f sero tidas como abusivas e nulas,59 o que confere ao
magistrado certa discricionariedade para identificar os limites liberdade
contratual.60
interessante mencionar projeto de lei portugus 291/IX/1, de 15 de
maio de 2003, que, de acordo com o art. 3, 2: Presume-se a boa f das pessoas cujo sobreendividamento ocorra na seqncia de: a) desemprego; b)
emprego temporrio ou precrio; c) incapacidade temporria ou permanente; d) separao, divrcio ou falecimento do cnjuge ou equiparado.61
O projeto portugus presume a boa-f do superendividado passivo
sem, contudo, esgotar as hipteses. No se pode esquecer que a existncia
de boa-f pode se apresentar na situao de superendividamento ativo.
Segundo HUMBERTO THEODORO JR., a funo social do contrato
cuida da liberdade contratual e seus efeitos sobre a sociedade (terceiros),
enquanto o princpio da boa-f fica restrito ao relacionamento tico dos
sujeitos do negcio jurdico (partes contratantes).62 Mas nem por isso tais
clusulas gerais deixam de se relacionar. O art. 421 do Cdigo Civil (CC)
estabelece que a liberdade de contratar ser exercida em razo e nos limites da funo social do contrato.
GUSTAVO TEPEDINO define a funo social do contrato como o
dever imposto aos contratantes de atender - ao lado dos prprios interesses
individuais perseguidos pelo regulamento contratual - a interesses extracontratuais socialmente relevantes, dignos de tutela jurdica que se relacionam
com o contrato ou so por ele atingidos.63 Para o autor, possvel associar
a funo social do contrato (art. 421 do CC) boa-f objetiva que, como
princpio interpretativo (art. 113 do CC) ou como princpio fundamental do

59
60

61
62
63

296

CDC, art. 51, caput e inciso IV.


CLAUDIA LIMA MARQUES. Sugestes para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas fsicas em contratos de crdito ao consumo: proposies com base em pesquisa emprica de 100 casos
no Rio Grande do Sul, in Direitos do Consumidor Endividado: superendividamento e crdito, p. 280.
Consulte-se detalhes do projeto em: http://ps.parlamento.pt/?menu=iniciativas&id_dep=108&leg=VIII
(acessado em 17/04/2009).
O contrato e sua funo social, p. 31.
Crise de fontes normativas e tcnica legislativa na parte geral do Cdigo Civil de 2002, in: A parte
geral do novo Cdigo Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional, p. XXXII.

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297

regime contratual (art. 422 do CC), estabelece o dever de interpretar o negcio de modo a preservar o contedo econmico e social perseguido pelas
partes, alcanando as fases pr-contratual, contratual e ps-contratual. Com
isso, rompe-se a lgica individualista para alcanar interesses que so atingidos pelo contrato, como o consumerista, ambiental e trabalhista.64
LVARO VILLAA AZEVEDO explica que o art. 421 do Cdigo Civil
amplia ainda mais a capacidade de o juiz proteger o mais fraco na contratao que, por exemplo, possa estar sofrendo os efeitos de clusulas abusivas
ou de publicidade enganosa.65 Como princpio geral dos contratos, evidente que a idia de funo social do contrato se aplica s relaes de consumo.66 Isto constitui, a nosso ver, fundamento suficiente para a proteo
tambm do superendividado ativo.

5.4. Direito informao


O art. 6, III, do CDC, determina os direitos bsicos do consumidor e,
entre eles, merece especial ateno o direito informao adequada e clara
sobre os diferentes produtos e servios, com especificao correta de quantidade, caractersticas, composio, qualidade e preo, bem como sobre os
riscos que apresentem. O citado inciso combinado com o art. 52, do mesmo
diploma legal, determina o dever do fornecedor de informar o consumidor
sobre todos os detalhes do negcio quando da outorga de crdito, tais como
os juros e demais acrscimos, alm dos valores com e sem financiamento.67

64
65

66
67

Idem, p. XXXII-XXXIII.
O novo Cdigo Civil Brasileiro: tramitao, funo social do contrato; boa-f objetiva; teoria da impreviso e, em especial, onerosidade excessiva (laesio enormis), in: Aspectos controvertidos do novo
Cdigo Civil (Escritos em Homenagem ao Ministro Jos Carlos Moreira Alves), p. 34.
Por todos: PAULO NEVES SOTO, Novos perfis do direito contratual, in: Dilogos sobre o Direito
Civil, p. 255-258.
Art. 52. No fornecimento de produtos ou servios que envolva outorga de crdito ou concesso de
financiamento ao consumidor, o fornecedor dever, entre outros requisitos, inform-lo prvia e adequadamente sobre: I - preo do produto ou servio em moeda corrente nacional; II - montante dos juros
de mora e da taxa efetiva anual de juros; III - acrscimos legalmente previstos; IV - nmero e periodicidade das prestaes; V - soma total a pagar, com e sem financiamento. 1 As multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigaes no seu termo no podero ser superiores a dois por cento do
valor da prestao. 2 assegurado ao consumidor a liquidao antecipada do dbito, total ou parcialmente, mediante reduo proporcional dos juros e demais acrscimos.

297

298

Roberta Barcellos Danemberg

Interessante destacar que a exigncia do inc. V, deste art. 52, visa


assegurar ao consumidor o conhecimento dos preos vista e financiado, de
modo que o mesmo possa, de acordo com suas prprias convenincias,
optar por uma ou por outra forma de pagamento.68
A informao adequada proporciona ao consumidor o direito de escolher se quer ou no contratar. Assim, essencial que as indicaes de preo,
taxas de juros, periodicidade de prestaes, total a pagar vista e parcelado,
sejam dadas de maneira acessvel, pois, se for feita de forma tal, que
somente algum versado em contabilidade possa compreend-la, poder o
consumidor alegar que o contrato no o obriga, em face do art. 46 do
CDC.69 Mesma conseqncia ter o contrato em que o fornecedor no der
oportunidade ao consumidor de conhecer as clusulas avenadas.
NELSON NERY JNIOR leciona que dar oportunidade de tomar
conhecimento do contedo do contrato no significa dizer para o consumidor ler as clusulas do contrato de comum acordo ou as clusulas contratuais gerais do futuro contrato de adeso. Significa, isto sim, fazer com que
tome conhecimento efetivo do contedo do contrato. No satisfaz a regra
do artigo sob anlise a mera cognoscibilidade das bases do contrato, pois o
sentido teleolgico e finalstico da norma indica dever o fornecedor dar efetivo conhecimento ao consumidor de todos os direitos e deveres que decorrero do contrato, especialmente sobre as clusulas restritivas de direitos do
consumidor, que, alis, devero vir em destaque nos formulrios de contrato de adeso (art. 54, 4, CDC).70
Com o escopo de fortalecer o direito informao adequada e clara
a Lei n 11.785, de 22/09/08, alterou o 3 do Cdigo de Defesa do
Consumidor71 para estipular que os contratos de adeso devero obedecer a
um tamanho mnimo de letra, pois, como estavam sendo redigidos, eram
praticamente ilegveis para maior parte da populao.

68
69
70
71

298

EDUARDO ARRUDA ALVIM, Comentrios aos arts. 39-80, in: Cdigo do Consumidor Comentado, p. 259.
Idem, p. 258-259.
Comentrios aos arts. 46 a 54, in: Cdigo Brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores
do anteprojeto, p. 473.
Nova redao do 3 do art. 54 do CDC: Os contratos de adeso escritos sero redigidos em termos
claros e com caracteres ostensivos e legveis, cujo tamanho da fonte no ser inferior ao corpo doze, de
modo a facilitar sua compreenso pelo consumidor. (grifo nosso)

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299

5.5. Interpretao dos contratos


A regra clssica de interpretao dos contratos, prevista no art. 112 do
Cdigo Civil, determina que nas declaraes de vontade se atender mais
inteno nelas consubstanciadas do que ao sentido literal da linguagem,
sendo a mesma aplicvel tambm aos contratos de consumo.
Entretanto, segundo NELSON NERY JNIOR,72 o princpio maior da
interpretao dos contratos de consumo est insculpido no art. 47 do CDC,
que prev uma interpretao mais favorvel ao consumidor.
Tal interpretao deve considerar a presena da boa-f objetiva em
todos os contratos de consumo, alm dos deveres do fornecedor e como
suas prticas e clusulas tentaram afastar o cumprimento destes deveres
imperativos, afinal o CDC norma de ordem pblica (art. 1 do CDC) e os
direitos assegurados aos consumidores so indisponveis por contrato.73

6. O papel da defensoria pblica e do procon na tutela do


superendividado
Atualmente no h mais o que questionar: a tutela jurdica do consumidor superendividado constitui um direito fundamental (art. 5, XXXII,
CRFB).74 Existem vrias iniciativas voltadas para a proteo do superendividado, inclusive preventivas, fora do mbito judicial.
Neste sentido, h no Brasil, experincias de resoluo das situaes de
superendividamento atravs dos ncleos de Defensorias Pblicas e
PROCONs.
No Rio de Janeiro, foi criada, atravs de Resoluo do Defensor
Pblico Geral, a Comisso de Defesa do Consumidor Superendividado pertencente ao Ncleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pblica do

72
73
74

Idem, p. 468.
CLAUDIA LIMA MARQUES, Contratos no Cdigo de Defesa do Consumidor, p. 758.
HELOSA CARPENA e ROSNGELA LUNARDELLI CAVALAZZI, Superendividamento: proposta para um estudo emprico e perspectiva de regulao, in: Revista Direito do Consumidor, vol. 55,
p. 124.

299

300

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Estado (NUDECON). Tal comisso composta pelos Defensores em exerccio nesse ncleo.75
funo de o Defensor Pblico verificar em quais casos, entre os assistidos, h o superendividamento, atravs de perguntas a respeito de sua
renda mensal, suas dvidas e contas regulares.
Uma vez constatado o superendividamento, caber Comisso marcar
uma audincia especial de conciliao entre o consumidor e seus credores.
Nesta oportunidade o Defensor ir explicar o sentido tcnico de superendividamento para que depois o assistido superendividado narre os motivos
que o levaram a tal situao. Por fim, sero os credores convidados a retornarem em data posterior para uma nova audincia de conciliao individual, ocasio em que podero propor um acordo j conhecendo a real situao do devedor. Poder-se-, ento, oferecer tanto um parcelamento mais
longo como um abatimento no montante do dbito. Na hiptese de haver
acordo, o mesmo ser firmado em ata de audincia com a assinatura do
Defensor Pblico.
O primeiro caso concreto examinado pela Comisso de Defesa do
Consumidor Superendividado da Defensoria Pblica do Estado do Rio de
Janeiro foi o de uma assistida que, aps trs anos de tratamento de um parente com grave doena, viu-se endividada com quinze instituies financeiras
no montante de R$ 100.000, apesar de sua renda mensal de R$ 6.800.76
Atravs de audincias de conciliao foi possvel firmar acordos com dez dos
credores, que viabilizaram os pagamentos por meio de parcelamento das
dvidas com um prazo compatvel com a realidade da consumidora.
A Defensora Pblica MARCELLA OLIBONI, em entrevista publicada
no jornal O Globo em dia 5 de abril de 2009, informou que a procura no
NUDECON aumentou 37,32% aps passarem a atender os consumidores
superendividados,77 o que demonstra a existncia de um nmero significati-

75

76
77

300

Cf. MARCELLA LOPES DE CARVALHO PESSANHA OLIBONI, O superendividamento do consumidor brasileiro e o papel da Defensoria Pblica: criao da Comisso de Defesa do Consumidor
Superendividado, in: Revista de Direito do Consumidor, vol. 55, p. 174-176.
Idem, p. 175.
Tbua de Salvao para os superendividados, Jornal O GLOBO.

Tutela do Consumidor Superendividado no mbito


dos Juizados Especiais Cveis Estaduais e Federais

301

vo de consumidores carentes de urgente orientao no apenas jurdica, mas


de educao preventiva, para que possa, com melhor conhecimento, proteger-se das diversas armadilhas financeiras que lhe so impostas diariamente.
Em So Paulo, a Fundao Procon criou o Ncleo de Tratamento do
Superendividamento com o objetivo de prevenir novos casos atravs de
orientao adequada, alm de desenvolver um trabalho de sensibilizao
junto empresa quanto a sua responsabilidade social, esquematizando critrios de negociao de dvidas.78
O Ncleo busca auxiliar os consumidores superendividados atravs da
intermediao na negociao de suas dvidas com todos os credores envolvidos.79 No caso de no haver acordo entregue ao consumidor um Termo
de Comparecimento, que poder ser utilizado, junto com outros documentos, na instruo de um processo judicial.80

7. Tutela do consumidor superendividado atravs dos


Juizados Especiais Cveis
Desde o Direito Romano at a Idade Mdia, o devedor insolvente tinha
como destino tornar-se servo do seu credor, em razo de sua dvida.81 Em
pocas mais remotas da Antigidade e nos primeiros anos de Roma, admitiu-se at a execuo pessoal do devedor.82 As Ordenaes Manoelinas e
Filipinas chegaram a prever priso civil por dvida.83
O tratamento do superendividado foi negligenciado ao longo dos sculos, porque sempre houve maior preocupao com a situao jurdica dos

78

79
80

81
82
83

O PROCON-SP informa em seu site que tendo em vista, o grande nmero de pessoas que acessaram
esta pgina, em dezembro de 2006, o atendimento est provisoriamente suspenso, http://www.procon.sp.gov.br (acessado em 02/04/2009).
Cf. http://www.procon.sp.gov.br/texto.asp?id=2219 (acessado em 01/04/2009).
Em 13/04/2009 foi assinado pelos Presidentes da Repblica, Senado Federal, Cmara dos Deputados e
Supremo Tribunal, o II Pacto Republicano de Estado, que a fim de garantir maior celeridade e efetividade prestao jurisdicional prev a Atualizao do Cdigo de Defesa do Consumidor, com o objetivo de conferir eficcia executiva aos acordos e decises dos PROCONs, quanto aos direitos dos consumidores, o que sem dvida representar um avano na defesa do consumidor, que ter a sua disposio um rgo fortalecido. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=106058
(acessado em 14/04/2009)
ALFREDO BUZAID, Do Concurso de Credores no Processo de Execuo, p. 101.
HUMBERTO THEODORO JR., Insolvncia civil, p. 12.
o que noticia LEONARDO GRECO, Processo de Execuo, vol. 2, p. 547.

301

302

Roberta Barcellos Danemberg

credores.84 A ausncia de uma poltica estatal,85 a falta de compreenso de


direitos fundamentais do devedor insolvente, bem como o tratamento equiparado da insolvncia falncia no permitiram a criao de uma verdadeira tutela jurisdicional diferenciada para o superendividado.
A partir do CDC possvel compreender que o superendividado no
est condenado a enfrentar o arcaico sistema de execuo por quantia certa
contra devedor insolvente, presente nos arts. 748 a 786-A do Cdigo de
Processo Civil (CPC). facultado ao consumidor antecipar-se judicialmente, propondo, por exemplo, ao revisional, ao de resoluo contratual ou
outras aes que julgar cabveis, com fundamento no art. 83 do CDC.86

7.1. Sobre a presena das partes e do advogado


Os Juizados Especiais foram criados87 a partir do art. 98 da Constituio Federal que prev os procedimentos oral e sumarssimo e tem por
finalidade facilitar o acesso da populao ao Poder Judicirio e tornar mais
clebre o julgamento das demandas, no devendo ser encarados como
meras alternativas para o ingresso em juzo sem assistncia jurdica.
Para o ajuizamento de uma ao imprescindvel o patrocnio de um
profissional habilitado, com excees pontuais no sistema, incluindo-se as
causas at certo valor que tramitam nos Juizados Especiais. De fato, o consumidor superendividado que no utilizar o servio da Defensoria Pblica
ou de escritrio modelo de faculdade, por exemplo, poder encontrar bi-

84
85

86
87

302

Significativo o texto do art. 646 do Cdigo de Processo Civil: A execuo por quantia certa tem por
objeto expropriar bens do devedor, a fim de satisfazer o direito do credor.
IVN JESS TRUJILLO DEZ, El sobreendeudamiento de los consumidores, p. 15, informa que na
Espanha falta uma poltica estatal orientada para o superendividamento dos consumidores que so tratados como devedores insolventes.
Art. 83: Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este Cdigo so admissveis todas as espcies de aes capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela.
ALEXANDRE CMARA, Juizados Especiais Cveis Estaduais e Federais Uma Abordagem Crtica, p.
207-8, destaca interessante aspecto a respeito da criao dos Juizados Especiais Federais, que tambm
pode ser estendido aos Juizados Especiais estaduais: (...) no se pode deixar de observar que a existncia dos Juizados Especiais Cveis federais serviu tambm para diminuir a quantidade de processos dirigidos aos juzes federais comuns. Com isso, tambm nas Varas Federais comuns, em que se observa o
sistema processual comum, regido basicamente pelo Cdigo de Processo Civil, se consegue obter mais
rapidamente o resultado do processo, j que tais juzos j no esto mais assoberbados como anteriormente estavam. Juizados Especiais Cveis Estaduais e Federais Uma Abordagem Crtica, p. 207-8.

Tutela do Consumidor Superendividado no mbito


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303

ces na contratao de um advogado, uma vez que o motivo da demanda ser


justamente sua dificuldade de arcar com suas dvidas. Dever, portanto,
haver bom senso ao se contratar o servio de um profissional, pois tal despesa no poder ser desconsiderada.
Neste aspecto, os Juizados Especiais surgem como interessante alternativa, possibilitando o ajuizamento de uma ao sem a assistncia de um
advogado nas causas at 20 salrios mnimos na esfera estadual88 e at 60
salrios mnimos na federal. Cumpre destacar que a falta de orientao de
um profissional qualificado no necessariamente ser o mais benfico para
o consumidor, que poder formular um pedido equivocado, sem que tenha
oportunidade futura de adequ-lo ao seu caso especfico.
Por isso, dispe a Lei n 9.099/95, em seu art. 9, 2, que o juiz dever alertar a parte da convenincia do patrocnio por advogado. O consumidor poder ter a assistncia judiciria prestada por rgo institudo
junto ao Juizado Especial, na forma da lei local, sempre que a outra parte
comparecer assistida por um advogado ou for o ru pessoa jurdica ou
firma individual (art. 9, 1).89
Nos Juizados Especiais Cveis, mesmo que tenha sido constitudo advogado, O comparecimento pessoal da parte s audincias obrigatrio. A
pessoa jurdica poder ser representada por preposto (Enunciado 20, do
Frum Nacional de Juizados Especiais - FONAJE).
Segue no mesmo sentido o Enunciado 78, tambm do FONAJE, ao afirmar que O oferecimento de resposta, oral ou escrita, no dispensa o comparecimento pessoal da parte, ensejando, pois, os efeitos da revelia.
Merece crtica a obrigatoriedade do comparecimento pessoal da pessoa
fsica, previsto no art. 51, I, da Lei n 9.099/95, uma vez que tal exigncia,
por vezes, causa a inviabilidade do ajuizamento da ao ou obstculo ao seu

88
89

No caso dos Juizados Especiais Cveis o autor somente poder estar desacompanhado de um advogado
se o valor da causa no ultrapassar 20 salrios-mnimos, conforme art. 9 da Lei n 9.099/95.
FELIPPE BORRING ROCHA, Juizados Especiais Cveis Aspectos Polmicos da Lei n 9.099, de
26/9/1995, p. 63, ao abordar o tema afirma tratar-se de aplicao do principio da isonomia dentro da
lgica criada pelo regime de exceo dos Juizados Especiais. (...) Por isso, no sendo possvel proibir que
uma das partes tenha advogado, a sada foi deferir outra, que esteja desacompanhada, a assistncia
judiciria.

303

304

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prosseguimento. Como por exemplo, no caso da pessoa ter dificuldade de


locomoo em decorrncia de idade ou sade, ou ter um trabalho que lhe
exige viagens constantes sem que consiga conciliares as datas dos compromissos profissionais e das audincias.
Aceitar a representao por preposto apenas da pessoa jurdica verdadeira violao ao princpio da isonomia.90
Diferentemente dos Juizados Especiais Cveis da esfera estadual, nos
Juizados Especiais Federais no apenas a assistncia de advogado dispensvel, como a prpria presena do autor, que poder nomear, por escrito,
um representante, advogado ou no (Lei n 10.259/01, art. 10).91
Nos Juizados Especiais Federais da 2 Regio, por exemplo, os futuros
jurisdicionados que no estejam assistidos por advogado sero atendidos
pelos funcionrios da Justia Federal, preferencialmente bacharis em Direito, que iro elaborar a inicial. Receber carto com o nmero do processo e indicao para qual Juizado foi distribuda a ao, data da audincia e
cpia da inicial. Caber ao Juiz decidir sobre a necessidade da realizao de
audincia (Provimento 11/02, art. 10),92 sendo, contudo, recomendvel que
o mesmo consulte as partes quanto necessidade da audincia.

7.2. Competncia
O critrio para se definir o Juizado Especial competente ser o mesmo
adotado para a definio da competncia de justia (Justia Estadual ou
Justia Federal?), mas dever observar regras especiais para a competncia
de foro (art. 4 da Lei n 9.099/95) e para a competncia de juzo (art. 3 da
Lei 9.099/1995 e art. 3 da Lei n 10.259/2001).93
90

91

92
93

304

Interessante abordagem sobre o tema foi feita por MARCIA CRISTINA XAVIER DE SOUZA em seu
artigo Acesso Justia e Representao das Partes nos Juizados Especiais Cveis, in: Direito Processual
e Direitos Fundamentais, p. 177 e segs.
MARCELO DA FONSECA GUERREIRO, Como postular nos Juizados Especiais Cveis Federais, p. 79,
informa que O atendimento inicial aos jurisdicionados que pretendam ingressar com demandas perante os Juizados Especiais Federais da 2 Regio, sem patrocnio de advogado, ocorrer na forma prevista
no Provimento 2/2001.
Fluxogramas e Notas Explicativas sobre o Atendimento e Distribuio nos Juizados Especiais da 2
Regio. http://www.trf2.gov.br/juizados/atendimento1.pdf (acessado em 16/04/2009)
Sobre o tema, consulte-se MARINONI, Luiz Guilherme. Processo de Conhecimento (Curso de Processo
Civil v. 2), 7 ed. rev. e atual., So Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

Tutela do Consumidor Superendividado no mbito


dos Juizados Especiais Cveis Estaduais e Federais

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Tratando-se de Justia Estadual e estando preenchidos os requisitos


necessrios, ser facultado ao autor escolher entre a Vara Cvel e o
Juizado Especial Cvel.94 Entretanto, se a causa for de competncia federal no foro onde estiver instalada Vara do Juizado Especial, a sua competncia absoluta.95
Assim, por exemplo, se o credor do consumidor superendividado for a
Caixa Econmica Federal, uma eventual ao revisional que esteja dentro
do teto de 60 salrios-mnimos dever ser proposta perante o Juizado
Especial Federal e no no juzo de Vara Federal.
Os Juizados Especiais estaduais e federais tambm se diferenciam
quanto possibilidade de renncia a crdito excedente, tendo sido a matria tratada pela Smula 17 da Turma Nacional de Uniformizao dos
Juizados Especiais Federais: No h renncia tcita no Juizado Especial
Federal, para fins de competncia96 e pelo art. 3, 3, da Lei n 9.099/95,
que determina que a opo pelo procedimento previsto nesta Lei importar em renncia ao crdito excedente ao limite estabelecido neste artigo,
excetuada a hiptese de conciliao.

7.3. Valor da causa


As aes para tutela do superendividado podem ser propostas nos
Juizados Especiais Cveis ou nos Juizados Especiais Federais, desde que
observados os limites do valor da causa, que na esfera estadual no poder
ultrapassar a 40 salrios-mnimos,97 e na federal a 60 salrios-mnimos,
alm de outros aspectos procedimentais especficos, em especial o art. 3 da
Lei n 9.099/95 e o art. 3 da Lei n 10.259/01.
O critrio para atribuio do valor da causa para a hiptese do superendividamento pode ser encontrado no art. 259, V, do CPC, o que pode

94
95

96
97

Enunciado 1 do FONAJE: O exerccio do direito de ao no Juizado Especial Cvel facultativo para o


autor.
Art. 3, 3, da Lei n 10.259/01. Enunciado 94 do FONAJE: cabvel, em Juizados Especiais Cveis, a
propositura de ao de reviso de contrato, inclusive quando o autor pretenda o parcelamento de dvida, observado o valor de alada.
Cf. https://www2.jf.jus.br/phpdoc/virtus/listaSumulas.php (acessado em 14/04/2009).
Enunciado 36 do FONAJE: A assistncia obrigatria prevista no art. 9 da Lei n 9.099/1995 tem lugar
a partir da fase instrutria, no se aplicando para a formulao do pedido e a sesso de conciliao.

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levar, em uma leitura apressada, ao equvoco de se atribuir o valor total do


contrato, mesmo em uma ao que vise to-somente a reviso de uma clusula. pacfico no Superior Tribunal de Justia o entendimento que o valor
atribudo causa deve traduzir o contedo econmico perseguido na ao.
Assim, se o consumidor estiver discutindo apenas parte de uma dvida
contratual, dever o valor da causa corresponder a esta, que ser o objeto da
lide, e no o valor integral questionado. Dessa forma, teremos como parmetro na atribuio do valor da causa a vantagem econmica que se pretende obter. Por exemplo, se o valor do contrato de R$80.000 e o consumidor pretende a reduo da dvida para R$50.000, em razo de clusula abusiva, o valor da causa ser de R$30.000, porque este ser o proveito econmico pretendido.
Neste sentido, foi criado, no FONAJE, o Enunciado 39, que assim determina: Em observncia ao art. 2 da Lei n 9.099/1995, o valor da causa
corresponder pretenso econmica objeto do pedido.
Deve-se ter em mente tambm que, ao limitarem os valores nos
Juizados Especiais em salrios mnimos, estes devem corresponder ao salrio mnimo nacional98 da poca do ajuizamento da ao,99 conforme enunciados do FONAJE e do FONAJEF (Frum Nacional dos Juizados Especiais
Federais).

7.4. Pedido revisional e outras consideraes


Observe-se, inicialmente, que o princpio da fora obrigatria dos contratos perdeu a sua rigidez j faz algum tempo.100 O fundamento para que o
consumidor superendividado possa pleitear a reviso do seu contrato
encontra-se no art. 6, V, do CDC.101

98

FONAJE, Enunciado n 50: Para efeito de alada, em sede de Juizados Especiais, tomar-se- como base
o salrio mnimo nacional.
99 FONAJEF, Enunciado n 15: Na aferio do valor da causa, deve-se levar em conta o valor do salrio
mnimo em vigor na data da propositura da ao.
100 Cf. ORLANDO GOMES, Transformaes gerais do direito das obrigaes, p. 95-96.
101 CDC, art. 6: So direitos bsicos do consumidor: V - a modificao das clusulas contratuais que estabeleam prestaes desproporcionais ou sua reviso em razo de fatos supervenientes que as tornem
excessivamente onerosas.

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H polmica na doutrina no que tange ao dispositivo supracitado.


Para uma primeira corrente h a consagrao da teoria da impreviso,
o que seria deveras prejudicial ao consumidor, sendo este compelido a provar a imprevisibilidade dos fatos que geraram a excessiva onerosidade
(JOS GERALDO BRITO FILOMENO E JAMES MARINS).
J para uma segunda corrente, tal dispositivo legal, alm de ampliar as
possibilidades para o consumidor obter a reviso contratual, libera-o da
demonstrao de imprevisibilidade (CLAUDIA LIMA MARQUES).
Esta ltima corrente parece estar de acordo com os escopos normativos da Lei n 8.078/90 que exige, em seu art. 47, a interpretao mais favorvel ao consumidor.102 Tambm ARRUDA ALVIM perfilha tal orientao
ao comparar o texto consumerista com o do Cdigo Civil de 2002, afirmando que naquele no h: a) referncia imprevisibilidade; b) referncia
extrema vantagem para o credor.103
Interessante destacar que, embora o art. 6, V, do CDC no fale de resoluo contratual, mas apenas em reviso, RUY ROSADO DE AGUIAR
JNIOR104 sustenta ser possvel a propositura de ao de resoluo contratual, combinando-se o artigo citado com o art. 83 do mesmo diploma legal.105
Do mesmo modo, no h bice para que a ao revisional seja proposta perante o Juizado Especial, conforme o Enunciado 94, aprovado no XVIII
FONAJE: cabvel, em Juizados Especiais Cveis, a propositura de ao de
reviso de contrato, inclusive quando o autor pretenda o parcelamento de
dvida, observado o valor de alada.
So admitidas tambm nos Juizados as aes que questionam a legalidade dos juros cobrados, como se confere no Enunciado 70, aprovado no

102 Neste sentido: ALINNE ARQUETTE LEITE NOVAIS, Os novos paradigmas da teoria contratual: o
princpio da boa-f objetiva e o princpio da tutela do hipossuficiente, in: Problemas de direito civilconstitucional, p. 47-48; FABIANA RODRIGUES BARLETTA, A reviso contratual por excessiva onerosidade superveniente contratao positivada no Cdigo do Consumidor, sob a perspectiva civilconstitucional, in: Problemas de direito civil-constitucional, p. 298-302.
103 A funo social dos contratos no novo Cdigo Civil, in: Revista dos Tribunais, vol. 815, p. 29.
104 Extino dos contratos por incumprimento do devedor, p. 154.
105 CDC, art. 83: Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este Cdigo so admissveis todas as
espcies de aes capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela.

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FONAJE: As aes nas quais se discute a ilegalidade de juros no so complexas para o fim de fixao da competncia dos Juizados Especiais.
importante destacar tais enunciados, porque vrios consumidores
deparam-se com dvidas muitas vezes impagveis, que crescem de forma
acelerada em razo de contratos abusivos, aplicao imprpria de juros,
insero de multas, comisso de permanncia cumulada com correo
monetria, alm de acertos extrajudiciais onde o devedor assina confisses de dvida com novas condies desfavorveis ao consumidor.
Somem-se ainda os inmeros casos em que as instituies financeiras
efetuam descontos diretamente na conta corrente do devedor, ultrapassando at mesmo o valor do rendimento mensal do consumidor.
Exemplo dessa situao encontrado na deciso do recurso
2009.700.010025-0, julgado em 10/03/2009, pelo Conselho Recursal dos
Juizados Cveis do Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro: consumidor aposentado e doente aps ter feito dois emprstimos consignados, fez
mais 08 emprstimos no caixa eletrnico. O Ita descontava mensalmente
valor superior ao rendimento do cliente, deixando sua conta mensalmente
negativa. Foi aplicada pela Turma a Tese do superendividamento acolhida
pelos Tribunais para limitar os descontos mensais, por analogia da lei do
emprstimo consignado, em 30% (trinta por cento) da renda. Sendo impenhorvel o salrio, no pode a instituio financeira se valer do contrato de
adeso para legitimar a apreenso do integral saldo da conta corrente bancria para pagamento de dvida. responsabilidade de o credor aferir as
condies de solvabilidade de quem vai tomar o emprstimo.106
No julgamento do recurso n 2008.700.021081-8,107 ocorrido em
02/06/2008, tambm pelo Conselho Recursal dos Juizados Cveis do
Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro, limitou-se o desconto em
folha em 30%,108 com relevo para o seguinte trecho da deciso: A autora

106 Conselho Recursal dos Juizados Cveis do Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro, Recurso n
2009.700.010025-0, Juza Relatora Juza Carla Silva Corra.
107 Conselho Recursal dos Juizados Estaduais Cveis do Rio de Janeiro, Recurso n 2008.700.021081-8, Juza
Relatora Karenina David Campos de Souza e Silva.
108 Enunciado 59, do FONAJE: Admite-se o pagamento do dbito por meio de desconto em folha de pagamento, aps anuncia expressa do devedor e em percentual que reconhea no afetar sua subsistncia
e a de sua famlia, atendendo sua comodidade e convenincia pessoal.

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deve e quer pagar, mas os fatos reais de sua vida a impedem de cumprir o
inicialmente contratado, j que mais da metade do valor que recebe a ttulo de salrio est sendo retido pelo ru. No presente caso, foram aplicados
os artigos 6, inciso V e 51, 1, inciso III, da Lei n 8.078/90, por entender
o magistrado ser esta lei de ordem pblica e interesse social (art. 1), conferindo-lhe o poder de rever o contrato afastando o pacta sunt servanda, e
fazendo prevalecer o princpio do equilbrio contratual mais de acordo com
a moderna funo social dos contratos (art. 421, CC).
Esses julgamentos apontam para a possibilidade de se tutelar o superendividado no mbito dos Juizados Especiais Cveis, sendo frgil a tese que
sustenta haver complexidade da causa.109
Felizmente, na ao revisional, ter o consumidor oportunidade de
questionar as situaes acima expostas tanto em contrato vigente, quanto
no j extinto ou que tenha sido objeto de novao.110
Destarte, fica aberta a possibilidade de o consumidor superendividado
formular pedido para: 1) renegociar as suas dvidas; 2) propor novo parcelamento com maior prazo; 3) obter um perodo de carncia que lhe permita retomar o pagamento das dividas; 4) reduzir os encargos. Em alguns
casos, o credor pode at perdoar parcialmente o dbito.
Entretanto, quando o consumidor superendividado possuir diversos
credores a ao revisional ter alcance reduzido, pois a demanda proposta
ficar restrita ao(s) contrato(s) firmado(s) somente com um deles. O que,
apesar de no ser impeditivo para a continuidade da ao, no proporcionar oportunidade para uma negociao to ampla como poderia ser se feita
em conjunto com os demais credores.
Tal realidade reafirma a importncia de se definir tratamento diferenciado ao consumidor superendividado, preferencialmente com a criao de

109 Sem razo a deciso do Conselho Recursal dos Juizados Estaduais Cveis do Rio de Janeiro, ao julgar o
Recurso n 2009.700.010905-8, em 12/03/2009, reformou a sentena que havia limitado o desconto a
30% do salrio do autor, por entender que a causa incompatvel com a estrutura sistmica dos juizados especiais cveis, pois no desdobramento lgico da sentena impor uma forma executria que
incompatvel com o sistema da Lei n 9.099/95.
110 O STJ reafirmou seu posicionamento sobre o tema ao julgar o Recurso Especial n 947.587 em 18/12/08,
DJe 04/02/2009: pacfica a jurisprudncia desta Corte no sentido da possibilidade de reviso judicial
de contratos j extintos pelo pagamento ou objeto de novao.

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Juizados Especiais especficos para cuidar das situaes de superendividamento, com estmulo conciliao e com condies de promover audincias conjuntas entre o consumidor e seus credores. Alm de possuir um
corpo multidisciplinar de profissionais das reas jurdica, financeira e comportamental, para oferecer suporte amplo quele que se sente, muitas vezes,
excludo e envergonhado diante da sua situao de superendividamento,
conforme se constatou no Projeto-piloto: tratamento das situaes de
superendividamento do consumidor.111
Por tais razes, a proposta de Juizados especializados em superendividamento mostra-se cada vez mais urgente e necessria.

8. Consideraes finais
A tutela do superendividado constitui direito fundamental (art. 5,
XXXII, CRFB) e encontra na dignidade humana o seu fundamento. Apesar
de o Cdigo de Defesa do Consumidor no conter regras especficas sobre o
superendividamento, possvel fazer uso de inmeras normas para defender o consumidor superendividado, como as que tratam da presuno de
vulnerabilidade, boa-f, direito informao etc.
Apesar da previso legal da Poltica Nacional de Relaes de Consumo112 o governo no parece preocupado em promov-la com a eficcia
necessria, deixando de colocar em execuo projetos educacionais que
poderiam reduzir o nvel de endividamento da populao.

111 KREN RICK DANILEVICZ BERTONCELLO e CLARISSA COSTA DE LIMA, Adeso ao Projeto
Conciliar Legal CNJ, Projeto-piloto: tratamento das situaes de superendividamento do consumidor, in:http://www.escoladamagistratura.com.br/superendividamento/projeto_piloto/Artigo%
20Berlim%20Projeto %20Piloto%20-%20portugues (acessado em 16/04/2009).
... a primeira dificuldade enfrentada na sua execuo est ligada ao estigma sofrido pelo consumidor
superendividado, que no raras vezes demonstrava grande constrangimento em assumir as dificuldades
de pagamento, bem como em declarar a totalidade de seus credores e o respectivo montante das dvidas. Houve casos, por exemplo, em que o consumidor declarou apenas um credor, no momento que
preencheu o formulrio, encorajando-se somente na semana posterior a retornar ao Frum para a
incluso dos demais credores que havia omitido. Frente a situaes como estas, identificamos a necessidade do atendimento ser prestado individualmente em ambiente separado a fim de preservar a intimidade dos relatos.
112 CDC, arts. 4 e 5.

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Como notrio, os consumidores so atrados cada vez mais pelas facilidades de crdito, incentivados pelo prprio governo que, mesmo diante de
uma crise econmica de proporo mundial, promove campanha publicitria para incentivar o consumo de bens e servios no mercado interno,
cujo mote o mundo aprendeu a respeitar o Brasil e o Brasil confia nos
brasileiros. A premissa adotada a de que se cada um que tem emprego e
renda deixar de consumir por medo do futuro, a crise de fato se instalar
com mais fora na economia brasileira.
Sobre as notcias econmicas negativas, que vm ocupando os jornais,
o atual Presidente da Republica, Luiz Incio Lula da Silva, foi incisivo: No
leiam, o Brasil no vai parar, garantiu o presidente aos 36 ministros presentes na reunio ministerial.113
Nesta linha, no se pode negar a importncia do trabalho destinado a
orientar juridicamente e prevenir a formao de novos consumidores superendividados. Imprescindvel a realizao de um projeto que socorra os
consumidores que j se encontram na situao de superendividamento,
quer seja da iniciativa do Poder Executivo Federal embora demonstre
estar mais interessado em incitar o crdito , quer seja da iniciativa dos
outros Poderes, que podero, talvez em conjunto, elaborar um modelo de
Juizado Especial dedicado a promover a proteo do superendividado atravs da preservao da dignidade da pessoa humana (princpio fundamental
previsto na Constituio Federal) e cumprimento efetivo das normas de
defesa do consumidor.
Por fim, a proposta de um atendimento especializado poder proporcionar maior celeridade e efetividade, com profissionais envolvidos no
tema e com o mesmo propsito.

9. Referncias bibliogrficas
AGUIAR JNIOR, Ruy Rosado de. Extino dos contratos por incumprimento do devedor, Rio de Janeiro: AIDE, 2004.

113 Reportagem de Leonardo Attuch e Denize Bacoccina, Abriram o guarda-chuva, in: Revista Isto Dinheiro (http://www.terra.com.br/istoedinheiro/edicoes/583/imprime117743.htm, acessado em 16/04/09).

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(acessado em 14/04/2009).

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VI
Juizados Especiais Cveis
e o Poder Pblico

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Da Criao de Juizados Especiais para
as Causas que Envolvam Estados,
Distrito Federal e Municpios
Marcia Cristina Xavier de Souza

SUMRIO: 1. Introduo. 2. Da competncia privativa e concorrente dos Estados para legislar sobre Juizados Especiais. 3. Da necessidade de norma especfica. 4. Da ausncia de
norma emanada do Poder Legislativo. 4.1. Da ausncia de norma nacional. 4.2. Da ausncia de norma estadual. 5. Da ausncia de norma emanada pelo Poder Judicirio. 6. Concluso. 7. Referncias bibliogrficas.

1. Introduo
Os Juizados Especiais Cveis e Criminais, criados pela Lei n 9.099/1995,
trouxeram, a uma parcela da populao alijada da soluo de conflitos, a
possibilidade de sua resoluo por meios cleres e gratuitos, informais. Com
o advento dos Juizados Especiais Federais, atravs da Lei n 10.259/2001,
essa possibilidade se estendeu s questes que envolviam os entes federais.
Contudo, questes que envolvem os entes pblicos estaduais, distritais
e municipais ainda so levadas soluo pelos meios tradicionalmente previstos no direito processual comum, criando desigualdades no s entre os
jurisdicionados, mas entre os entes pblicos.
Mais do que discutir eventual necessidade de criao de rgos especficos para a soluo de tais conflitos, o objetivo desse trabalho , a partir das
experincias dos dois rgos j existentes e da competncia legislativa prevista na Constituio Federal, analisar qual ente federado seria o competente para sua criao.
321

322

Marcia Cristina Xavier de Souza

2. Da competncia privativa e concorrente dos Estados para


legislar sobre Juizados Especiais
Com relao competncia legislativa, assim dispe a Constituio
Federal: a) a Unio tem a competncia privativa para legislar sobre processo (art. 22, inc. I); b) a Unio, os Estados e o Distrito Federal tm competncia concorrente para legislar sobre criao, funcionamento e processo
dos juizados de pequenas causas (art. 24, inc. X) e sobre procedimentos em
matria processual (art. 24, inc. XI); c) Unio e Estados devero criar juizados especiais com competncia para causas cveis de menor complexidade
(art. 98, inc. I).1
Entre 1988 e 1995 vigorava a Lei n 7.244/1984, que regulamentava os
juizados de pequenas causas, mas inexistiam regras sobre os juizados especiais cveis, somente criados pela Lei n 9.099/1995. Neste interregno alguns
Estados, com base na determinao do inc. I, do art. 98, da Constituio,
instituram seus prprios juizados especiais cveis.
Foram eles: Bahia (Lei n 6.371, de 18/03/1992), Cear (Lei n 11.898,
de 30/12/1991, revogada pela Lei n 11.934, de 14/04/1992), Mato Grosso (Lei
n 6.176, de 18/01/1993), Mato Grosso do Sul (Lei n 1.071, de 11/07/1990),
Paraba (Lei n 5.466, de 26/09/1991), Piau (Lei n 4.376/1991), Rio Grande
do Sul (Lei n 9.442, de 03/12/1991), Santa Catarina (Lei n 8.151, de
22/11/1990, revogada pela Lei Complementar 77, de 12/01/1993 e pela Lei
1.141, de 25/03/1993), Sergipe (Lei n 2.900, de 23/11/1990) e Tocantins
(Lei n 38, de 08/05/1989).
A maioria dessas leis foi posteriormente revogada, quando entrou em
vigor a Lei n 9.099/1995. Outras, contudo, apenas sofreram alteraes a fim
de se adaptar lei federal.
No Estado da Bahia, a Lei n 6.371/1992 criou Juizados de Pequenas
Causas e Especiais, estes com competncia para questes de trnsito e de
consumidor. J os Juizados de Pequenas Causas tinham um elenco de cau-

322

Para uma anlise mais detalhada da competncia legislativa da Unio, Estados e Municpios, ver Marcia
Cristina Xavier de Souza. A competncia constitucional para legislar sobre processo e procedimentos,
in Revista da Faculdade de Direito Candido Mendes, n 13, 2008, p. 119-138.

Da Criao de Juizados Especiais para as Causas que


Envolvam Estados, Distrito Federal e Municpios

323

sas cujo valor limitava-se aos 20 (vinte) salrios mnimos, envolvendo questes de direito patrimonial disponvel. Esta lei definiu regras de legitimidade ativa e passiva, at mesmo em contrariedade Lei n 7.244/1984, a qual
fazia meno.2
O Estado do Cear criou, atravs das Leis n 11.898/1991 e 11.934/1992,
Juizados Especiais de Pequenas Causas, cuja competncia era definida na
Lei n 7.244/1984.3 O mesmo se deu no Estado do Tocantins, que, atravs
da Lei n 38/1989, criou os Juizados de Pequenas Causas com competncia
para causas elencadas na mesma lei federal.4
O Estado da Paraba, pela Lei n 5.466/1991, criou Juizados Especiais
de Pequenas Causas, aos quais denominou de Juizados Especiais Cveis, com
competncia para o julgamento e a execuo das causas previstas no art.
275, do Cd. de Proc. Civil (em sua redao original).5
No Estado do Sergipe, a Lei n 2.900/1990, criou os Juizados Especiais
de Pequenas Causas, na forma prevista no art. 98, inc. I, da Constituio
Federal e na Lei n 7.244/1984.6
A Lei n 9.442/1991, do Estado do Rio Grande do Sul, instituiu Juizados
Especiais e de Pequenas Causas Cveis, para as causas cveis de menor complexidade, sem, contudo, defini-las.7
A Lei n 1.071/1990 instituiu, no Estado do Mato Grosso do Sul, os
Juizados Especiais Cveis e Criminais, com competncia para julgar e exe-

2
3
4
5

6
7

BAHIA. Casa Civil. Lei n 6.371/1992. Disponvel em: <http://www2.casacivil.ba.gov.br>. Acesso em


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recurso, o seu art. 59 foi declarado inconstitucional, conforme deciso proferida pelo Tribunal Pleno do
Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 71.713-6 PB, rel. Min. Seplveda Pertence, j. em
26/10/1994 (disponvel em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 22/04/2008).
SERGIPE. Assemblia Legislativa. Lei n 2.900/1990. Disponvel em: <http://www.al.se.gov.br/legislacao_estadual.asp> Acesso em 26/04/2008.
RIO GRANDE DO SUL. Assemblia Legislativa. Lei n 9.442/1991. Disponvel em: <http://www.
al.rs.gov.br/legis>. Acesso em 26/04/2008.

323

324

Marcia Cristina Xavier de Souza

cutar as mesmas causas previstas na redao original do art. 275, do Cd. de


Proc. Civil.8
A Lei n 4.376/1991 criou, no Estado do Piau, Juizados Especiais
Cveis e Criminais, com competncia para julgar quaisquer causas cveis de
valor de at 20 (vinte) salrios mnimos e as causas elencadas no art. 275,
inc. II, do Cd. de Proc. Civil, nos mesmos valores.9
A Lei n 6.176/1993 (posteriormente alterada pela Lei n 6.490/1994),
do Estado do Mato Grosso, criou Juizados Especiais Cveis e Criminais. Sua
competncia inclua julgamento e execuo das causas que envolvessem
direitos patrimoniais disponveis em geral, alm de questes de direito de
famlia e de direito das sucesses, todas elas limitadas ao valor de at 20
(vinte) salrios mnimos. Foi criado um procedimento executrio prprio,
em muito parecido com o da Lei n 9.099/1995.10
A lei matogrossense foi a nica a ter sua inconstitucionalidade parcialmente declarada, pois definiu que as causas referentes a alimentos eram da
competncia dos Juizados Especiais (art. 9, inc. IV, da Lei n 6.176/1993,
alterada pela Lei n 6.490/1994). A declarao foi incidental, no julgamento do HC 75.308-6.11
O Estado de Santa Catarina foi o mais frtil em leis no perodo compreendido entre a Constituio de 1988 e a regulamentao dos Juizados
Estaduais em 1995. Foram quatro leis, sendo que trs delas foram objeto de

9
10
11

324

MATO GROSSO DO SUL. Assemblia Legislativa. Lei n 1.071/1990. Disponvel em: <http://www.
tj.ms.gov.br/legislacao/juizados.asp> Acesso em 26/04/2008. A lei tambm instituiu Juizados Especiais
Criminais e, por ter definido os crimes a serem julgados pelo rgo, teve a inconstitucionalidade de seu
art. 69 declarada pelo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, atravs do HC 74298-0, rel. Min.
Maurcio Correa, j. em 27/09/1996 (disponvel em: <http://www.stf.gov.br> Acesso em 24/04/2008).
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MATO GROSSO. Tribunal de Justia. Lei n 6.176/1993, alterada pela Lei n 6.490/1994. Disponvel
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O paciente fora condenado ao pagamento de prestaes alimentcias, sendo determinada sua priso no
curso da execuo da sentena. Apesar de a lei ser anterior Lei n 9.099/1995, entenderam os
Ministros pela inconstitucionalidade do dispositivo que concedia aos Juizados Especiais matogrossenses
competncia para questes alimentares (art. 9, inc. IV, da Lei n 6.176/1993), no s por violao da
competncia legislativa da Unio, mas porque mesmo a Lei n 7.244/1984 (que poca da condenao
ainda vigia) no continha tal competncia (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 75.308-6 MT,
Tribunal Pleno. Rel. Min. Sydney Sanches, j. 18/12/1997, disponvel em: <http://www.stf.gov.br>.
Acesso em 03/05/2008).

Da Criao de Juizados Especiais para as Causas que


Envolvam Estados, Distrito Federal e Municpios

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ADI. Em regra, as leis catarinenses foram as mais detalhadas, no s na definio de procedimentos, mas, at mesmo de regras de direito processual.
Pela Lei catarinense n 8.151/1990 foram institudos os Juizados
Especiais de Causas Cveis.12 As matrias de sua competncia abrangiam as
causas que seguiam o procedimento sumrio, de acordo com a redao original do art. 275, inc. II, do Cd. de Proc. Civil (observe-se que no havia
valor mximo definido para as causas), entre outras, bem como procedimentos cautelares de natureza no jurisdicional. Contudo, este rol no era
taxativo, pois tinha o Tribunal de Justia poder para ampli-lo ou reduzi-lo.
Tanto o processo como o procedimento previstos nessa lei se destacavam em relao Lei n 7.244/1984 e ao Cd. de Proc. Civil. Por tal motivo, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil moveu uma
Ao Direta de Inconstitucionalidade, em que solicitava a suspenso da eficcia de alguns dos artigos da lei catarinense.
Em seu voto o relator, Min. Paulo Brossard, afirmou que apesar da
questo ser da maior relevncia, havia que se considerar que: a) no estava
de todo configurado o limite da competncia de cada ente federado, tanto
mais quanto versa sobre matria que, desde 1934, foi imputada Unio e s
a ela; b) por outro lado, preciso considerar que a Constituio de 88
abriu uma fresta que no havia a partir de 34 at 88, do Estado poder dispor sobre a forma de medidas de carter procedimental, temas que eram
confiados totalmente ao legislador federal.13
Em 1993, foi promulgada a Lei Complementar n 77, que revogou a Lei
n 8.151/1990.14 Por esta lei foram criados os Juizados de Pequenas Causas,
competentes para causas de valor entre 05 (cinco) e 20 (vinte) salrios mnimos, questes individuais sobre direito do consumidor e execuo de ttulos extrajudiciais dentro do valor acima. Tambm foram criados os Juizados

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13

14

SANTA CATARINA. Tribunal de Justia. Lei n 8.151/1990. Disponvel em: <http://www.tj.sc.gov.br/


jur/legis.htm>. Acesso em 26/04/2008.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC 795-5 SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Paulo Brossard, j.
05/11/1992, disponvel em <http://www.stf.gov.br> Acesso em 19/04/2008. A deciso foi pelo indeferimento da ao, uma vez que a suspenso da eficcia da lei (ainda que parcial), decorridos mais de dois anos
de incio do funcionamento dos Juizados, traria grandes e evidentes repercusses de ordem prtica.
SANTA CATARINA. Tribunal de Justia. Lei Complementar n 77/1993. Disponvel em: <http://www.
tj.sc.gov.br/jur/legis.htm>. Acesso em 26/04/2008.

325

326

Marcia Cristina Xavier de Souza

Especiais Cveis, com competncia para julgamento e execuo das causas


enumeradas no art. 275, inc. II, do Cd. de Proc. Civil, aes de despejo, de
registro pblico e de adjudicao compulsria de imvel, todas sem definio de valor.
A criao de um recurso por esta lei foi declarado inconstitucional no
julgamento do AI-AgR 253.518-9 SC, que teve por relator o Min. Marco
Aurlio.15
Os dispositivos da Lei Complementar n 77/1993 foram integralmente
reproduzidos na Lei n 1.411/1993.16 Esta lei foi objeto de Ao Direta de
Inconstitucionalidade n 1035-2 SC, atravs da qual o Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil pediu a declarao de inconstitucionalidade de diversos artigos da lei, com a suspenso da sua eficcia. O relator,
Min. Carlos Velloso, reproduziu o voto proferido pelo Min. Paulo Brossard,
com relao s dvidas quanto matria e no sentido do prejuzo que uma
tal deciso poderia produzir aps anos de entrada em funcionamento dos
rgos da Justia Catarinense.17
Desta breve exposio, algumas consideraes podem ser tiradas com
relao s leis estaduais elaboradas no perodo compreendido entre 1988 e
1995, quando os Estados puderam exercer sua competncia legislativa
supletiva em relao aos Juizados Especiais.
Em regra, as leis estaduais reproduziram dispositivos da Lei n
7.244/1984 ou do art. 275, do Cd. de Proc. Civil, ainda que denominassem
os rgos como juizados especiais.
Os Estados no identificaram diferenas entre os Juizados de Pequenas
Causas e os Juizados Especiais. De modo geral, os legisladores estaduais
entenderam que, se a Lei n 7.244/1984 no os compelia a criarem os Juizados de Pequenas Causas, o art. 98, inc. I, da Constituio Federal, por seu
turno, impunha a obrigatoriedade da instituio do rgo, inclusive

15
16
17

326

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AI-AgR 253518-9 SC, 2 Turma. Rel. Min. Marco Aurlio, j.
09/05/2000, disponvel em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 19/04/2008.
SANTA CATARINA. Tribunal de Justia. Lei n 1.411/1993. Disponvel em: <http://www.tj.sc.gov.br/
jur/legis.htm>. Acesso em 26/04/2008.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC 1035-2 SC, Tribunal Pleno. Rel. Min. Paulo Brossard, j.
01/08/1994, disponvel em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 19/04/2008.

Da Criao de Juizados Especiais para as Causas que


Envolvam Estados, Distrito Federal e Municpios

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ampliando-lhe a competncia para execuo de causas cveis e julgamento


de causas criminais.18 Esta viso contrariava a posio do Supremo Tribunal
Federal, j definida no voto paradigmtico do Min. Paulo Brossard, proferido na ADI-MC 1.127-8:
por Juizados Especiais de Pequenas Causas se compreendem os
rgos judicirios institudos antes da Constituio de 1988,
pela Lei n 7.244/84, com alada jurisdicional determinada pelo
valor patrimonial da lide e absolutamente desprovidos de competncia na esfera criminal. Os Juizados Especiais so instituies aludidas pelo art. 98, I, da Constituio, cuja competncia
cvel determinada pela menor complexidade da causa sem
considerar o seu valor... Logo, h que se reconhecer, induvidosamente, que a nova Lei abarcou a competncia do Juizado
Especial de Pequenas Causas, ressaltando-se que essa instituio no foi abolida do nosso ordenamento jurdico, haja vista o
disposto no art. 24, X, da Constituio.19
Nas raras vezes em que o legislador estadual fez uso da competncia
legislativa supletiva que detinha, terminou por invadir a competncia privativa da Unio para legislar sobre processo. Esta assertiva, contudo, merece ser melhor aprofundada.
A competncia privativa da Unio para legislar sobre processo,
incluindo, aqui, o processo dos Juizados Especiais. A competncia da Unio
concorrente com os Estados e o Distrito Federal para legislar sobre procedimentos em matria processual e sobre criao, funcionamento e processo
dos Juizados de Pequenas Causas.
Ora, os Juizados Especiais Cveis e os Juizados de Pequenas Causas no
so o mesmo rgo da Justia Estadual. Enquanto os primeiros tm por
competncia questes de menor complexidade, sem qualquer preocupao

18
19

Em outras palavras, a Constituio Federal teria criado Juizados de Pequenas Causas cuja instituio
seria obrigatria, mas denominando-os Juizados Especiais.
ADI-MC DF, n 1.127-8, j. em 29/06/2001. Disponvel em: <www.stf.gov.br>, acessado em 10/04/2008.

327

328

Marcia Cristina Xavier de Souza

com seu valor, os segundos tm no valor da causa seu parmetro, ainda que
as causas apresentem alguma complexidade.
Ento, nada impede que os Estados, exercendo sua competncia legislativa supletiva, regulamentem integralmente a criao, o processo e o funcionamento dos Juizados de Pequenas Causas, uma vez que inexiste lei
nacional a respeito, que trate das respectivas normas gerais e desde que no
tenham a mesma competncia e procedimento dos j existentes Juizados
Especiais Cveis.
E, como da competncia dos Estados a organizao de sua Justia
(Constituio Federal, art. 125, caput), podem os mesmos manter as duas instituies simultaneamente,20 como tentou fazer o Estado de Santa Catarina,
atravs da Lei n 1.141/1993.
O Supremo Tribunal Federal nunca enfrentou diretamente o problema da eventual inconstitucionalidade das leis estaduais, salvo nos casos criminais. Na nica oportunidade em que declarou inconstitucional norma
civil, f-lo incidentemente, no curso do julgamento de um Habeas
Corpus.21 A Corte firmou jurisprudncia no sentido de que fica prejudicada qualquer ao de inconstitucionalidade se, para o julgamento de seu
mrito, houver necessidade de comparar normas infraconstitucionais.
importante a reproduo da deciso proferida na ADI-AgR 1035-2,
de relatoria do Min. Carlos Velloso:
A lei nova, Lei Federal 9.099, de 1995, revogou a Lei 7.244/84,
afastando, tambm, as normas estaduais que, no tema, dispunham de forma contrria. A presente ao, portanto, est prejudicada, dado que, repete-se, as disposies da lei objeto da
ao, que esteja em desacordo com nova lei federal, esto afas-

20
21

328

Jos Eduardo Carreira Alvim, in Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho (org.). Lei dos Juizados
Especiais Cveis e Criminais comentada e anotada, p. 10.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 75.308-6 MT, Tribunal Pleno. Rel. Min. Sydney Sanches. j.
18/12/1997. Disponvel em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 03/05/2008. O paciente, condenado
ao pagamento de alimentos, no cumpriu a deciso, pelo que, em execuo de sentena, foi determinada a sua priso. Ao impetrar Habeas Corpus atacando a deciso, alegou, incidentemente, a inconstitucionalidade do inc. IV do art. 9 da Lei n 6.173/1993, que instituiu os Juizados Especiais no Estado do
Mato Grosso com competncia para julgar aes alimentares.

Da Criao de Juizados Especiais para as Causas que


Envolvam Estados, Distrito Federal e Municpios

329

tadas. dizer, h uma nova ordem infraconstitucional, que


necessita ser examinada antes do exame da questo constitucional, o que prejudica a ao direta de inconstitucionalidade.22
Verifica-se que o Supremo Tribunal Federal, apesar do voto do Min.
Paulo Brossard, vem entendendo que no h qualquer diferena entre os
Juizados de Pequenas Causas e os Juizados Especiais Cveis. Assim, com a
revogao da Lei n 7.244/1984 e o advento da Lei n 9.099/1995, ficam os
Estados proibidos de legislar sobre ambos os Juizados, salvo se suas normas
estiverem de acordo com os dispositivos da Lei de Juizados Especiais.23
As razes que levaram a esta sinonmia identificada pelo Supremo
Tribunal Federal encontram-se nas disposies das duas leis supramencionadas: como a Lei n 9.099/1995, em termos de Processo de Conhecimento,
pouqussimo inovou em relao Lei n 7.244/1984, fica a impresso de que
absorveu, no tocante ao valor da causa, a competncia desta.
No entanto, exatamente a denominao anterior e a reproduo dos
dispositivos da revogada lei na nova que levam a este equvoco: no existe
uma definio das pequenas causas apenas para aquelas cujo valor seja de
menor monta. A bem da verdade, esta definio vem da interpretao literal feita a partir das disposies da Lei n 7.244/1984. E o que os intrpretes
tm feito equivale a um repristinamento:24 so pequenas causas to somente aquelas cujos valores esto dentro de um determinado teto e que digam
respeito a direitos patrimoniais.25

22

23

24

25

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-AgR 1035-2 SC, Tribunal Pleno. Rel. Min. Carlos Velloso, j.
26/05/1997, disponvel em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 19/04/2008. Nem mesmo a argumentao posterior da entidade autora, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que reiterou, em Agravo Regimental, o pedido de julgamento da inconstitucionalidade da lei, foi suficiente para
modificar o entendimento dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
Veja-se a deciso do RE 273.899-9 SC, j. 29/03/2001, cujo relator Min. Seplveda Pertence afirmou: ao
menos quando se trate de tais causas [definidas pelo valor], inequvoco que a lei federal unificou o
tratamento das duas instituies, de modo a admitir, em igual medida, a legislao complementar estadual com relao ao respectivo processo (disponvel em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em
28/04/2008).
Repristinatrio diz propriamente respeito eficcia de certa regra, j posta margem, e que se revigorou, direta ou indiretamente. (De Plcido e Silva. Vocabulrio Jurdico, vol. III e IV. Verbete: repristinatrio, p. 106).
Art. 3 da Lei n 7.244/1984.

329

330

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Com este fator limitador, causas outras que no as previstas na Lei n


9.099/1995, de valores at mesmo abaixo dos 40 (quarenta) salrios mnimos e que versem sobre direitos de famlia, por exemplo, no podem ser
resolvidos em um Juizado de Pequenas Causas, por que este termo s aplicvel s causas previstas na revogada Lei n 7.244/1984.
Mas nada impede a criao de um rgo da Justia Estadual, competente pelo valor da causa, por exemplo, para as aes que sejam da convenincia de cada Estado e do Distrito Federal, sem que necessariamente
sejam obedecidos as regras e critrios da revogada Lei n 7.244/1984. Essas
causas, ento, poderiam ser consideradas pequenas para fins de competncia do rgo.
E, independentemente de valor, so de menor complexidade as causas
que tenham por objeto relaes controvertidas que dispensam meios probatrios complexos e que, em seu procedimento, dispensem, total ou parcialmente, incidentes processuais que levem a sua dilao.26
Outro entendimento contraria o disposto no inc. X, do art. 24, bem
como o art. 125, da Constituio Federal.
Verifica-se, pois, que o legislador estadual tem competncia para a
criao de Juizados de Pequenas Causas, no que tange a seus processo e procedimentos, e pode legislar sobre o procedimento dos Juizados Especiais
Cveis, posto serem dois rgos distintos da Justia Estadual.
Porm, como conciliar (se possvel a conciliao) essas assertivas com
a criao dos Juizados Especiais para o Poder Pblico Estadual, Distrital e
Municipal?
Preliminarmente, contudo, uma indagao merece uma resposta: considerando-se a existncia de duas normas que j regulamentam os Juizados
Especiais, uma para relaes privadas (Lei n 9.099/1995) e outra para as
relaes que envolvem a Fazenda Pblica Federal (Lei n 10.259/2001), a
primeira sendo aplicada subsidiariamente segunda, haveria necessidade
de elaborao de uma norma especfica para a regulamentao dos Juizados
Especiais Pblicos?

26

330

Andr Luiz Nicolitt. A durao razovel do processo, p. 78-79.

Da Criao de Juizados Especiais para as Causas que


Envolvam Estados, Distrito Federal e Municpios

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3. Da necessidade de norma especfica


A Lei n 10.259/2001 regulamenta os Juizados Especiais que tm
como parte uma pessoa jurdica de direito pblico, que neste processo no
mantm seus privilgios processuais, mas que segue, subsidiariamente, os
dispositivos criados para dirimir litgios entre particulares pela Lei n
9.099/1995.
Se a Lei dos Juizados Federais se utiliza subsidiariamente da Lei dos
Juizados Especiais, por que no poderia a Lei n 9.099/1995, com algumas
alteraes, se utilizar subsidiariamente da Lei n 10.259/2001 e se aplicar
aos Juizados da Fazenda Pblica?
Esta a posio de LUS FELIPE SALOMO, que entende que a Lei n
10.259/2001 revogou o art. 8, da Lei n 9.099/1995, no que tange proibio de pessoas jurdicas de direito pblico serem partes, quando a Lei n
10.259/2001 entrou em vigor, no apenas por fora do princpio lex posterior derogat lex priori (art. 2, 1, da Lei de Introduo), mas tambm em
obedincia aos princpios da isonomia e do devido processo legal.27
Ou, em uma perspectiva mais sistemtica, que a criao dos Juizados
Especiais Federais (a partir da Emenda Constitucional n 22/1999 e da Lei
n 10.259/2001) teria derrogado a Lei n 9.099/1995, no que tange possibilidade de atuao das pessoas jurdicas de direito pblico estaduais e
municipais nos processos que correm na justia especial. E tambm teria
introduzido o pagamento dos seus dbitos de menor valor por meios outros
que no o precatrio, corroborado pelo disposto no art. 87, do Ato das
Disposies Constitucionais Transitrias.28
Da mesma forma, no so razoveis os projetos de lei que alteram a
competncia (Projeto de Lei n 1.003/2003)29 ou a legitimidade para atuar

27
28
29

Lus Felipe Salomo. Algumas observaes quanto aos reflexos cveis da Lei dos Juizados Especiais
Federais sobre a Lei n 9.099/95, in Revista da EMERJ, n 26, p. 275.
lvaro Couri Antunes Sousa. Acesso justia e a participao das pessoas jurdicas de direito pblico
nos Juizados Especiais, in Fbio Costa Soares. Acesso justia: segunda srie, p. 27-29.
Conforme o projeto de Lei n 1.003/2003, do Deputado Carlos Nader, ou o projeto de Lei n 2.521/2007
(BRASIL. Cmara dos Deputados. Disponvel em: http://www.camara.gov.br. Acesso em 01/06/2008).

331

332

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nos Juizados Especiais Cveis (Projeto n 3.763/2000),30 para permitir que os


entes pblicos no federais sejam partes nos Juizados Especiais Estaduais.
A mera alterao da competncia ou da legitimidade nos Juizados
Especiais Estaduais para permitir que litgios que envolvam as Fazendas
Pblicas Estaduais, Distritais ou Municipais possam neles ser resolvidos no
soluo.
Mantidos seriam os privilgios processuais, por ausncia de expressa
determinao legal. Eles s foram abolidos do processo em que a Unio
parte porque a lei assim o determinou. O argumento, em que pese parecer simplista e positivista, encontra respaldo nos contra-argumentos favorveis manuteno dos privilgios processuais e que foram apresentados
no item 1.1.2.
Fortes so as justificativas para a existncia dos privilgios processuais da Fazenda Pblica em juzo e j de longa data vm sendo expendidos. E sequer a necessidade de observncia das garantias da isonomia, da
celeridade processual, da tutela jurisdicional efetiva e do devido processo legal so suficientes para contrapor os argumentos favorveis aos privilgios da Fazenda Pblica, posto que so utilizados a seu favor para a
justificativa.
Assim, sem que, ao menos, se modificasse o procedimento especial da
Lei n 9.099/1995, a mudana se mostraria desprovida de eficcia, pois em
nada alteraria a situao da Fazenda Pblica, no que tange aos seus privilgios processuais.31
O que no recomendvel que se faa, na nova lei, uma mera cpia
dos dispositivos das referidas leis, ou uma adaptao tosca. No so as regras
de uma ou de outra lei que se podero aproveitar para disciplinar o processo e o procedimento dos Juizados Especiais para a Fazenda Pblica Estadual,
Distrital ou Municipal, mas o sistema como um todo.

30
31

332

De acordo com o projeto de Lei n 3.763/2000, do Deputado Ricardo Fiza. (BRASIL. Cmara dos
Deputados. Disponvel em: <http://www.camara.gov.br>. Acesso em 01/06/2008).
Existem fortes argumentos para justificar os privilgios da Fazenda Pblica em juzo, mas sua manuteno fere a garantia da isonomia frente a outras pessoas no processo. Se a Unio, nos Juizados Especiais,
no conta com tais privilgios, mas so mantidos para os Estados, o Distrito Federal e os Municpios em
rgos idnticos, troca-se uma violao de isonomia por outra.

Da Criao de Juizados Especiais para as Causas que


Envolvam Estados, Distrito Federal e Municpios

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4. Da ausncia de norma emanada do Poder Legislativo


Nos tpicos anteriores, tentou-se identificar as competncias legislativas das pessoas pblicas para legislar sobre processo e procedimentos.
Todavia, uma celeuma ainda subsiste em relao ao processo envolvendo as questes da Fazenda Pblica Estadual, Distrital e Municipal: da maneira como esto estruturados os Juizados Especiais Estaduais e os Federais (principalmente este ltimo) com relao ao valor da causa, poder-se-ia entender
que talvez no tenha sobrado muito espao para a criao de Juizados de
Pequenas Causas, se o critrio de sua competncia for o valorativo, nos mesmos moldes em que se assentaram as doutrina e jurisprudncia dominantes.
E, por que levar-se em considerao o critrio do valor da causa como
definidor do rgo a ser criado para o julgamento e a execuo das questes
que envolvam os Estados, o Distrito Federal e os Municpios?
Um dos mais importantes avanos dos Juizados Especiais Federais o da
no necessidade de pagamento por precatrio dos valores dentro do teto do
rgo, no caso, 60 (sessenta) salrios mnimos (art. 17 da Lei n 10.259/2001).
J a Constituio Federal, no art. 87 e incisos do Ato das Disposies
Constitucionais Transitrias, permite que sejam considerados como de
pequeno valor, para fins de liberao de pagamento por precatrio (art. 100,
3), dbitos abaixo de 40 (quarenta) salrios mnimos, para as Fazendas
Pblicas dos Estados e do Distrito Federal, e de 30 (trinta) salrios mnimos,
para as Fazendas Pblicas dos Municpios, enquanto cada ente federado no
definir valores outros em suas respectivas leis.
Assim, tem-se que um futuro Juizado para as causas da Fazenda
Pblica Estadual, Distrital e Municipal s ter efetividade, no que concerne ao acesso justia e celeridade, se uma eventual condenao em quantia certa da Fazenda Pblica r no depender de precatrio para ser cumprida.32 E, para que tal ocorra, as causas a serem nele ajuizadas devem limitar-se ao teto legalmente definido.

32

No se pode esquecer, tambm, da igualdade das partes: se aquele que litiga em face da Unio, nos
Juizados Especiais Federais, pode receber seu crdito sem ter que se submeter fila dos precatrios, por
que a pessoa que for vitoriosa em litgio em face do Estado, do Distrito Federal e do Municpio dever
ser tratada de maneira diferente?

333

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Por outro lado, se forem criados Juizados Especiais Cveis para causas
de menor complexidade cvel, sem limite de valor, o pagamento de quantia
ao qual for condenada a Fazenda Pblica Estadual, Distrital e Municipal
poder ultrapassar o limite constitucional, impossibilitando a rpida soluo da causa.
Ento, eventual diferena entre os Juizados de Pequenas Causas e os
Juizados Especiais Cveis est em que naqueles o valor da causa o ponto
determinante de sua competncia, enquanto nestes a menor complexidade das causas. E a posio que se adota neste trabalho a da distino entre
os dois rgos, como j ficou exposto anteriormente.
Porm, no a denominao o que importa na estruturao dos
Juizados de que trata o presente trabalho, posto ser indubitvel a necessidade da criao do rgo que envolva as matrias que tenham por partes a
Fazenda Pblica Estadual, Distrital ou Municipal, sejam elas de pequeno
valor ou de menor complexidade. No entanto, a definio da espcie de
rgo importante, na medida em que poder definir se a competncia para
sua instituio da Unio ou dos Estados e do Distrito Federal.
Se forem Juizados Especiais, incumbe Unio legislar privativamente
sobre o seu processo e sobre as normas gerais de seu procedimento, enquanto os Estados e o Distrito Federal legislaro sobre os procedimentos, no que
toca s suas peculiaridades locais (conforme art. 98, inc. I, art. 22, inc. I, e
art. 24, inc. X, da Constituio). Caso sejam Juizados de Pequenas Causas,
incumbe Unio legislar sobre as normas gerais sobre o processo e o procedimento, restando aos demais entes federados a legislao sobre os mesmos temas, mas dentro de suas peculiaridades (art. 24, inc. XI).
Destarte, cumpre verificar a quem incumbiria creditar a ausncia de
tal norma? Ao Congresso Nacional ou s respectivas Assemblias Legislativas? E como se poderia suprir a lacuna?

4.1. Da ausncia de norma nacional


Tanto os Juizados de Pequenas Causas quanto os Juizados Especiais se
constituem em processos diferenciados do processo regulado pelo Cdigo
de 1973 e no apenas procedimentos especiais em relao ao procedimento
334

Da Criao de Juizados Especiais para as Causas que


Envolvam Estados, Distrito Federal e Municpios

335

ordinrio codificado. Tal se d porque em ambos os Juizados existem regras


especficas com relao capacidade das partes, ao registro de atos processuais, ao sistema probatrio, quebra da diviso rgida entre processos de
conhecimento, de execuo e cautelar, ao sistema de impugnao de decises judiciais etc.33
Diante de tal assertiva, fica clara a competncia da Unio para legislar
em ambos os casos (art. 22, inc. I, e art. 24, inc. XI, da Constituio Federal).
O que modifica, nesta competncia legislativa, seu carter privativo ou
concorrente, conforme o caso concreto.
Os Juizados de Pequenas Causas foram criados a partir de lei ordinria
(Lei n 7.244/1984). J a instituio dos Juizados Especiais Cveis e Federais
se deu por fora de determinao constitucional (art. 98, inc. I e 1, do
qual derivaram as Leis ns 9.099/1995 e 10.259/2001). No caso destes ltimos Juizados, a determinao constitucional era desnecessria, mas foi uma
consequncia da Carta de 1988, que tem como caracterstica ser detalhista
na definio de suas garantias.
A mera anlise comparativa das duas leis instituidoras dos Juizados
Estaduais, 7.244/1984 e 9.099/1995, corrobora a assertiva acima. A segunda
lei uma repetio dos comandos da anterior, acrescida do procedimento
executrio e do processo criminal. E nem se poderia argumentar que a primeira lei nasceu sob a gide de uma ordem constitucional anterior (Constituio de 1967/1969), menos preocupada com as garantias fundamentais
da pessoa: apesar da atual Carta ter sido mais contundente nessa proteo
praticamente nada havia na Lei das Pequenas Causas que colidisse com os
ditames da Constituio de 1988.34
Os Juizados para as Fazendas Pblicas Estadual, Distrital e Municipal
tambm independem de determinao constitucional. A uma, porque a
determinao prevista no art. 98, inc. I e 1, j serve como norma geral
(do ponto de vista constitucional) para a criao dos supracitados rgos. A

33
34

Cndido Rangel Dinamarco, Manual das Pequenas Causas, p. 2.


Por exemplo, em ambas as leis os critrios orientadores so os mesmos: oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade (art. 2 das Leis ns 7.244/1984 e 9.099/1995).

335

336

Marcia Cristina Xavier de Souza

duas, porque como rgos da Justia Estadual no precisam se submeter ao


trmite legislativo que uma Emenda Constitucional exige.35
Em verdade, somente uma Constituio to detalhista como a promulgada em 1988 poderia ter se preocupado em estabelecer como garantia de
acesso justia (bem como de celeridade e de igualdade das partes) a criao de um processo e de um rgo especficos pela Justia Estadual. A simples afirmao de existncia dessa garantia, com a promulgao de lei
nacional (como, alis, j o era quando da Lei n 7.244/1984), observados os
limites constitucionais da competncia legislativa da Unio, seria suficiente para a criao dos Juizados.36
Destarte, nenhum dos Juizados Especiais j criados, ou por serem eventualmente criados, dependem de alterao constitucional para a sua existncia.
Como afirmado, a criao dos atuais Juizados Especiais Cveis
Estaduais e Federais independia de determinao constitucional. Ainda
assim, foi com base nela que se deu sua instituio. Seguindo esta linha de
raciocnio, tambm os Juizados Especiais para o Poder Pblico Estadual,
Distrital e Municipal independem de determinao constitucional para
serem criados.
Contudo, considerando-se o comando do art. 98, da Constituio
Federal, em seus inc. I e 1, que determinam a criao dos dois Juizados
atuais, no seria o caso de entender-se que este comando tambm poderia
ser estendido aos outros Juizados? Ou seja, no estaria o legislador nacional
obrigado a criar os Juizados da Fazenda Pblica Estadual, Distrital e
Municipal? Se afirmativa a resposta, considerando-se a mora legislativa,
poder-se-ia fazer uso de medidas judiciais para suprir esta omisso?
primeira das indagaes impe-se a resposta afirmativa. Uma vez
que a Constituio determinou que fossem criados Juizados Especiais com
competncia para resolver questes cveis de menor complexidade (art. 98,
inc. I), no h justificativa para que certas relaes jurdicas envolvendo os

35
36

336

Destarte, a proposta de Emenda Constituio apresentada pelo Deputado Dcio Lima, em 2007, portanto, , no mnimo, desproporcional em relao aos fins que deseja alcanar (vide Anexo 01).
Outro no o entendimento de Celso Ribeiro Bastos, uma vez que uma eventual lacuna constitucional
pode configurar apenas uma opo do constituinte, ao deixar a questo para que o legislador infraconstitucional dela se incumba (Hermenutica e interpretao constitucional, p. 55).

Da Criao de Juizados Especiais para as Causas que


Envolvam Estados, Distrito Federal e Municpios

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Estados, o Distrito Federal, os Municpios e outras pessoas tambm no possam ser consideradas de menor complexidade para fins de soluo pelos
Juizados. Em verdade, a no criao dos referidos Juizados demonstra a violao da garantia da isonomia (conforme o item 1.1.3.).
O principal obstculo foi superado com a criao dos Juizados Especiais Federais: a impossibilidade de o ente pblico transacionar.37 Ultrapassado tambm foi o bice relativo forma de pagamento dos dbitos da
Fazenda Pblica, posto que, em sendo de pequeno valor, o pagamento farse- diretamente, sem necessidade de precatrios.38
Como a regulamentao dos Juizados Especiais, seja de Pequenas Causas ou Especial Cvel, envolve legislar sobre direito processual, incumbe
Unio definir o processo dos Juizados da Fazenda Pblica Estadual, Distrital
e Municipal (art. 22, inc. I, da Constituio Federal). Como se ver no prximo captulo, as regras do Cd. de Proc. Civil e das duas leis que atualmente regem os Juizados, Estaduais e Federais, devem ser aproveitadas (ainda
que no integralmente), no s que se refere ao direito processual. Tambm
devem ser aproveitadas as regras gerais para o procedimento a ser eventualmente observado (art. 24, inc. XI, da Carta Magna).
E, por fora da tradio constitucional brasileira, que sempre incumbiu ao Congresso Nacional a tarefa de legislar sobre praticamente quase
todas as matrias, mesmo quando no fossem de interesse apenas nacional
ou federal, e pelas razes acima expendidas, os senadores e deputados vm
apresentando projetos de lei para que sejam criados os Juizados da Fazenda
Pblica Estadual, Distrital e Municipal.39
Com isto, fica afastada eventual alegao de mora do legislador nacional, uma vez que a competncia para legislar sobre processo, seja dos Juizados Especiais ou dos Juizados de Pequenas Causas, da Unio, sendo necessrio compatibilizarem-se as duas normas reguladoras do processo no sistema dos Juizados Especiais Cveis.

37
38
39

Art. 10, pargrafo nico, da Lei n 10.259/2001.


Arts. 100 da Constituio Federal e 87 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias.
Alguns desses projetos de lei ou propostas de Emenda Constituio at o momento apresentados, estejam ou no em tramitao, esto disponveis em: <http://www.camara.gov.br>.

337

338

Marcia Cristina Xavier de Souza

Outro argumento contrrio alegao de eventual mora legislativa na


criao dos Juizados que no se pode definir o momento em que os parlamentares nela teriam sido constitudos, pois no h qualquer determinao
legal no sentido de instituio dos rgos e do processo especial, ao contrrio do que se deu com os precedentes.40-41
No caso, o que caracterizaria a mora legislativa do congressista seria a
quebra da igualdade das partes, desde quando foram criados os Juizados
Federais. Se, quando a Unio parte, tm as pessoas uma justia gratuita,
informal, clere e com possibilidade de se obter soluo conciliatria e
recebimento de valores sem grandes obstculos procedimentais, por que
no poderia se dar o mesmo quando os outros entes federados estivessem
envolvidos em idnticas situaes? A violao da isonomia no se d apenas
em relao s pessoas que litigam contra as Fazendas Pblicas, mas tambm
entre elas. Sendo de menor valor ou de menor complexidade a causa, qual
justificativa se teria para que a Unio rapidamente resolvesse seus litgios,
enquanto Estados, Distrito Federal e Municpios ficassem submetidos a procedimentos mais delongados em causas idnticas?
Assim, por fora dessas consideraes, no haveria como compelir o
legislador nacional a criar lei instituidora dos Juizados Especiais da Fazenda
Pblica Estadual, Distrital e Municipal, conforme se verifica tambm pelas
razes abaixo.
A Constituio Federal de 1988 dispe de um remdio a ser utilizado
sempre que o legislador (ou administrador) se omitir na regulamentao de
suas normas, impossibilitando que se tornem efetivas as garantias constitucionais. Trata-se da ao declaratria de inconstitucionalidade por omisso
(art. 103, 2), atravs da qual o Supremo Tribunal Federal afirma que h
inconstitucionalidade quando o legislador (ou administrador) se omite no
seu dever de tornar efetiva norma constitucional.

40

41

338

Os Juizados Especiais Cveis e Criminais, que a Constituio de 1988 determinou serem criados pela
Unio e pelos Estados, somente vieram a lume em 1995. J os Juizados Federais, cuja criao foi determinada atravs da Emenda Constitucional n 22/1999, somente foram institudos em 2001.
Para que fique caracterizada a inrcia legislativa, necessrio que haja imposio constitucional, desde
que definida em norma certa e determinada (CLMERSON MERLIN CLVE. A fiscalizao abstrata
de constitucionalidade no direito brasileiro, p. 220-221).

Da Criao de Juizados Especiais para as Causas que


Envolvam Estados, Distrito Federal e Municpios

339

A inconstitucionalidade por omisso pode ser absoluta, quando h


completa ausncia de norma infraconstitucional, ou parcial, quando a
norma imperfeita ou insatisfatria.42 No caso sub examine, a inexistncia
de norma criadora dos Juizados da Fazenda Pblica Estadual, Distrital e
Municipal, quando a Constituio determina a criao de Juizados Especiais
para causas cveis de menor complexidade (inclusive para os casos em que
a Unio for parte), poderia configurar uma inconstitucionalidade por omisso parcial.
O legislador infraconstitucional at o momento no cumpriu com seu
dever de legislar sobre os Juizados da Fazenda Pblica Estadual, Distrital e
Municipal. A Constituio erige como algumas de suas garantias fundamentais a igualdade entre as pessoas (art. 5, inc. I) e a razovel durao do
processo (art. 5, inc. LXXVIII). A criao de Juizados Especiais Cveis e
Criminais e de Juizados Especiais Federais, sem que fossem criados os respectivos juizados para as questes em que os Estados, o Distrito Federal e o
Municpio so partes fere as referidas garantias constitucionais e, portanto,
demonstra a inrcia legislativa.43
Entretanto, somente se pode considerar o legislador em mora quando
este, efetivamente, deixa de cumprir o seu dever de legislar ou quando o faz
de forma incompleta. No se caracteriza, destarte, a mora legislativa quando os rgos legislativos esto em processo de deliberao sobre projetos de
lei apresentados para suprir a lacuna ou corrigir a incompletitude.44
E, como afirmado acima, diversos projetos de lei j foram apresentados
no sentido de criao dos Juizados da Fazenda Pblica Estadual, Distrital e
Municipal, ainda que alguns deles se resumam a modificar a redao do

42
43

44

Gilmar Ferreira Mendes. Jurisdio Constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na


Alemanha, p. 289-290.
Em sentido contrrio, Flvia Piovesan, para quem a omisso constitucional est relacionada exigncia concreta de ao contida nas normas constitucionais (Proteo judicial contra omisses legislativas, p. 91).
Gilmar Ferreira Mendes, Inocncio Mrtires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de Direito
Constitucional, p. 1130. Outra no foi a deciso proferida no julgamento do Mandado de Injuno n
715-DF, que objetivava a declarao de mora legislativa do Congresso Nacional pela no regulamentao do inc. LXXVIII, do art. 5, da Constituio Federal (garantia da durao razovel do processo). A
existncia de projetos de lei em votao, a fim de regulamentar o dispositivo constitucional demonstrava a ausncia de inertia deliberandi, a ensejar a procedncia da ao (relator Min. Celso de Mello, j. em
25/02/2005, disponvel em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 03/05/2008).

339

340

Marcia Cristina Xavier de Souza

caput do art. 8, da Lei n 9.099/1995, a fim de permitir que pessoas jurdicas de direito pblico possam ser partes nos Juizados Especiais Cveis.
Em resumo, apesar de incumbir Unio a competncia de legislar
sobre o processo dos Juizados da Fazenda Pblica Estadual, Distrital e
Municipal, esta omisso j se encontra suprida pelas regras processuais existentes nas Leis ns 9.099/1995 e 10.259/2001. E, ad argumentadum, se as
atuais normas porventura ainda se apresentarem como insuficientes para o
satisfatrio cumprimento do comando constitucional, a atuao do legislador infraconstitucional, que vem deliberando sobre o tema, impede qualquer manifestao judicial no sentido de compeli-lo a tal.45

4.2. Da ausncia de norma estadual


Os Estados e o Distrito Federal tm competncia concorrente com a
Unio para legislar sobre procedimentos em matria processual, esta atravs da criao das normas gerais e aqueles atravs do estabelecimento das
normas especficas que iro atender s suas peculiaridades locais. Caso a
Unio no estabelea as normas gerais, tm os demais entes competncia
legislativa supletiva, podendo estabelecer normas gerais que atendero suas
necessidades locais, at que a Unio supra sua omisso, legislando sobre a
questo (art. 24 e pargrafos da Constituio Federal).
Essa novidade da atual Carta Magna (competncia legislativa concorrente e supletiva dos Estados e do Distrito Federal) no tem sido bem aproveitada ou compreendida tanto pelo Poder Legislativo quanto pelo Poder
Judicirio.

45

340

Mesmo porque a deciso em eventual ao direta de inconstitucionalidade por omisso somente serviria para declarao da mora do rgo legiferante. Ainda que contenha carter mandamental, a deciso
no compele o rgo desidioso a cumprir com seu dever e tampouco tem uma eficcia que se substituiria ao ato no praticado (Gilmar Ferreira Mendes. Jurisdio Constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha, p. 290). Neste sentido, a deciso na ADI 3682-MT, relator Min. Gilmar
Mendes, j. 09/05/2007, em que o Supremo Tribunal Federal, reconhecendo a mora legislativa, imps
um prazo de 18 (dezoito) meses para seu suprimento sem, contudo, determinar sano para seu descumprimento ou alternativa para o jurisdicionado em caso de persistncia da mora (disponvel em:
<http://www.stf.gov.br>. Acesso em 26/03/2008).

Da Criao de Juizados Especiais para as Causas que


Envolvam Estados, Distrito Federal e Municpios

341

Entre 1988 e 1995 (datas de promulgao da Constituio e de entrada


em vigor da Lei dos Juizados Especiais Cveis e Criminais), alguns Estados,
aproveitando-se da inrcia do legislador nacional, fizeram uso de sua competncia legislativa supletiva e criaram seus prprios Juizados Especiais,
ainda que, por vezes, nominando-os como Juizados de Pequenas Causas.46
Quando a Lei n 9.099/1995 entrou em vigor, revogando a Lei n
7.244/1984, todas as leis estaduais que continham regras contrrias lei
federal perderam sua eficcia, total ou parcialmente. Algumas dessas leis
estavam sendo objeto de Aes Diretas de Inconstitucionalidade e, em regra, o Supremo Tribunal Federal proferiu decises em dois sentidos: a) julgou parcialmente inconstitucionais leis estaduais que criavam juizados de
pequenas causas com competncia criminal47 e; b) considerou prejudicadas
as aes, por depender o julgamento da constitucionalidade da norma estadual da anlise da constitucionalidade da lei federal.48 Ao mesmo tempo, as
decises tambm se fundamentavam, implicitamente, na inexistncia de
diferenas entre os Juizados de Pequenas Causas e os Juizados Especiais
Cveis, contrariando entendimentos anteriores.49
Os Estados que j haviam institudo seus Juizados Especiais preferiram
revogar as leis e submeter as novas normas s regras da Lei n 9.099/1995
sem, contudo, aproveitar para legislar sobre questes locais especficas sobre
procedimentos. O mximo a que se chegou foram as determinaes de carter organizacional do Poder Judicirio estadual. No restante, as leis estaduais
que criaram os Juizados Especiais so meras reprodues da lei federal.
Desta forma, as sucessivas decises do Supremo Tribunal Federal e a
timidez legislativa das Assemblias estaduais levaram os Estados-membros
a no insistirem na regulamentao dos Juizados Especiais, perdendo a

46
47

48
49

Para maiores detalhes, reportamo-nos ao item 2.


O Supremo Tribunal Federal havia firmado seu entendimento, a partir do voto do Min. Paulo Brossard,
no sentido de que a diferena entre os juizados de pequenas causas e os juizados especiais cveis residia,
entre outros aspectos, na inexistncia de competncia para julgamento de questes penais por parte do
primeiro rgo (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC DF, n 1.127-8, Tribunal Pleno, j. em
29/06/2001. Disponvel em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 10/04/2008.).
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-AgR 1035-2 SC, Tribunal Pleno. Rel. Min. Carlos Vellosso, j.
26/05/1997. Disponvel em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 19/04/2008.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 273.899-9 SC, Tribunal Pleno. Rel. Min. Seplveda Pertence,
j. 29/03/2001. Disponvel em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 28/04/2008.

341

342

Marcia Cristina Xavier de Souza

oportunidade de fazerem valer a novidade constitucional, que a sua competncia legislativa concorrente e a supletiva.
Com relao aos Juizados da Fazenda Pblica Estadual, Distrital e
Municipal, por se tratarem de rgos com competncia para pequenas causas, ainda que se d especial nfase na diminuio da complexidade do processo, para garantir a sua durao razovel, no h qualquer diferena no
que toca competncia concorrente para sobre eles legislar: o processo e os
procedimentos devem ser genericamente regulamentados pela Unio e
especificamente por cada Estado-membro e pelo Distrito Federal.
No momento em que a Unio no cria os Juizados Especiais da Fazenda
Pblica Estadual, Distrital e Municipal, devem os Estados criar as normas
procedimentais especficas que serviro como normas gerais at que seja
suprida a omisso legislativa com a edio de lei nacional. O processo dos
referidos Juizados, como visto, j est regulado pelas normas das Leis ns
9.099/1995 e 10.259/2001.
Algumas questes de ordem jurdica e prtica, contudo, exsurgem a
partir das assertivas acima: a lei, estadual, instituidora dos Juizados para a
Fazenda Pblica Estadual, Distrital e Municipal, no poderia ferir a competncia legislativa municipal para definir os valores mximos a serem pagos
sem necessidade de precatrio. Caso infringisse essa competncia, sua
inconstitucionalidade seria flagrante.50
Como os Municpios no dispem de um Poder Judicirio prprio,51-52
a lei estadual deve atentar para as realidades de cada municipalidade, notadamente no que se refere a sua capacidade financeira.

50
51

52

342

O art. 87, inc. II, do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias permite aos Municpios, atravs
de lei de iniciativa de sua Cmara de Vereadores, determinar esse valor mximo.
Gabriel de Oliveira Zfiro sugeriu que fosse criada uma justia municipal, formada por juzes eleitos,
com competncia para questes de vizinhana, consumidor e trnsito, desde que limitados ao teto de
40 (quarenta) salrios mnimos e ausentes a produo de provas e a alta indagao jurdica (Juizados
Especiais Municipais com juzes eleitos uma proposta. Revista da EMERJ, n 14, p. 100-102).
Em 2004 foi apresentado projeto de Emenda Constitucional, de iniciativa do Deputado Carlos Mota, que,
acrescentando um inciso III ao art. 98, criava os Juizados Municipais, providos por juizes togados, ou
togados e leigos, eleitos por voto direto, universal e secreto, com mandato de quatro anos e competncia
para, na forma da lei, conciliar, julgar e executar as causas cveis decorrentes das aplicaes da legislao
municipal, da prestao de servios pblicos da municipalidade. Tambm o art. 92 seria alterado, com a
introduo do inc. VIII, que criaria os Juizados Municipais. A proposta foi posteriormente arquivada.
(BRASIL. Cmara dos Deputados. Disponvel em: <http://www.camara.gov.br>. Acesso em 29/03/2008).

Da Criao de Juizados Especiais para as Causas que


Envolvam Estados, Distrito Federal e Municpios

343

Esta questo remete a outra de maior abrangncia, e no menor importncia: em relao aos Municpios, eventual lei estadual regulamentando os
procedimentos dos Juizados Especiais da Fazenda Pblica Estadual,
Distrital e Municipal seriam equiparados a normas gerais para aqueles entes
federados. Considerando-se que eles tm peculiaridades, mas tambm considerando-se que, at o presente momento, as normas estaduais no atentaram para estas questes municipais, seria este o momento de faz-lo ou
manter-se a tradio jurdica brasileira?53

5. Da ausncia de norma emanada pelo Poder Judicirio


A lei de organizao judiciria de cada Estado-membro de iniciativa
dos respectivos Poderes Judicirios (art. 125, 1, da Constituio Federal).
Incumbe, ento, aos respectivos Tribunais de Justia definir quais rgos o
integraro, bem como a competncia de cada um deles (art. 96, inc. II, d, da
Constituio Federal).
Esta atribuio do Poder Judicirio estadual j vinha do Cdigo de
Processo Civil que, em seu art. 91, dispe ser a competncia pelo valor e
pela matria regida pelas normas de organizao judiciria, tendo esta disposio sido recepcionada pela atual Carta Magna.54
Desta forma, uma eventual falta de iniciativa das Assemblias
Legislativas estaduais no pode servir como empecilho para a criao de
varas especializadas para causas de menor complexidade cvel, em que figurem como partes os Estados e os Municpios.55
Estas varas atuariam como Varas de Fazenda Pblica especializadas
pelo valor da causa, de acordo com o permissivo constitucional (quarenta
salrios mnimos para as questes estaduais e trinta salrios mnimos para
as questes municipais)56 ou os valores definidos pelas leis elaboradas pelos
respectivos entes federados.

53
54
55
56

Por no ser esta a sede adequada, no sero enfrentadas tais questes.


Athos Gusmo Carneiro. Jurisdio e competncia, p. 63.
A criao de tais rgos j havia sido sugerida por Cristina Tereza Gaulia, sem, contudo, definir a competncia para sua instituio (Juizados Especiais Cveis: o espao do cidado no Poder Judicirio, p. 166).
Art. 87 e pargrafos do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias.

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Seu nico diferencial em relao s Varas de Fazenda Pblica


comuns seria o valor da causa, posto no ter o Poder Judicirio competncia para definir procedimentos. Contudo, em sendo superada a inrcia
legislativa dos poderes competentes, as varas ento existentes poderiam ser
adaptadas para funcionar como os Juizados da Fazenda Pblica.

6. Concluso
H necessidade da criao de Juizados Especiais para a soluo de questes que envolvam os entes pblicos estaduais, distritais e municipais.
Enquanto os cidados que litigam em face da Unio tm acesso a uma justia gratuita, clere, informal, os demais tm que buscar a justia comum
quando, em causas semelhantes, tm como adversrios o Estado, o Distrito
Federal ou o Municpio.
Essa situao tambm cria uma desigualdade entre os entes federados:
enquanto a Unio soluciona mais rapidamente seus conflitos, abrindo mo
de seus privilgios processuais, como o prazos processuais diferenciados,
reexame necessrio de decises que lhe so desfavorveis, impossibilidade
de transao por seus procuradores ou pagamento de suas dvidas sem precatrios, os outros entes ainda deles se beneficiam em causas idnticas.
Por tais motivos, urge que tais Juizados sejam criados. Entretanto, no
h que se descuidar das normas constitucionais que determinam a competncia legislativa dos Estados e do Distrito Federal para tanto. hora de se
abandonar a tradio legislativa brasileira que concentrava no Congresso
Nacional a edio de todas as leis, ainda que no federais, sob pena de se
editarem leis inconstitucionais, por invaso de competncia legislativa.

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14
Os Juizados Especiais Federais Cveis
sob a tica do Acesso Justia
Andr da Silva Ordacgy

SUMRIO: 1. Premissas bsicas sobre o Acesso Justia. 2. O Acesso Justia nos Juizados
Especiais Federais. 3. Caractersticas dos Juizados Especiais Federais Cveis e alguns Aspectos Polmicos da Lei n 10.259/01. 4. Referncias Bibliogrficas.

1. Premissas bsicas sobre o Acesso Justia


Em que pese o intenso discurso dos pensadores jurdicos sobre a problemtica do acesso justia, e que, hodiernamente, vem aumentando de
forma considervel, a expresso acesso justia ainda continua a ser de
difcil definio. Mas se por um lado permanece a dificuldade ou a complexidade da conceituao, por outro resta evidente as suas finalidades basilares para o sistema jurdico. E so os juristas CAPPELLETTI e GARTH,1 sem
dvida alguma os maiores tericos sobre o assunto, que indicam as finalidades do acesso justia:

A expresso acesso Justia reconhecidamente de difcil definio, mas serve para determinar duas finalidades bsicas do sistema jurdico o sistema pelo qual as pessoas podem
reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litgios sob os auspcios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessvel a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam
individual e socialmente justos (...). Sem dvida, uma premissa

CAPPELLETTI, Mauro & GARTH, Bryant. Acesso Justia. Traduo de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Srgio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 08.

347

348

Andr da Silva Ordacgy

bsica ser a de que a justia social, tal como desejada por nossas sociedades modernas, pressupe o acesso efetivo.
Avanando na conceituao de Acesso Justia, que recebe tratamento constitucional como clusula ptrea positivada no inc. XXXV, do art. 5,
da CR/1988, tem-se a preciosa lio de Kazuo Watanabe, reproduzida por
GRINOVER:2

A idia de acesso justia no mais se limita ao mero acesso aos tribunais. Nas palavras lapidares de Kazuo Watanabe, no
se trata apenas de possibilitar o acesso justia enquanto instituio estatal, e sim de viabilizar o acesso ordem jurdica justa.
E, segundo o mesmo autor, so dados elementares desse direito:
o direito informao; o direito adequao entre a ordem jurdica e a realidade scio econmica do pas; o direito de acesso a
uma justia adequadamente organizada e formada por juzes
inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo de
realizao da ordem jurdica justa; o direito a pr-ordenao dos
instrumentos processuais capazes de promover a objetiva tutela
dos direitos; o direito remoo dos obstculos que se anteponham ao acesso efetivo justia com tais caractersticas.
O acesso justia, portanto, deve levar em considerao o entendimento do carter coletivo que deve direcionar o ordenamento jurdico, de
forma a assegurar um sistema processual em que seja garantida a maior
igualdade possvel entre os litigantes (grau mximo de oportunidades para
ambos litigantes), no se considerando quaisquer fatores extrajurdicos que
possam gerar vcios na prestao da tutela jurisdicional (desigualdades econmicas, de cor, de sexo, de nacionalidade, dentre outras).
A realidade vivenciada pelos Juizados Especiais Cveis, sob o procedimento sumarssimo institudo pelas Leis ns 9.099/95 e 10.259/01, exige uma
nova mentalidade sobre os conceitos jurdicos de efetividade e instrumentali-

348

GRINOVER, Ada Pellegrini. O Processo em evoluo. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1990, p. 115.

Os Juizados Especiais Federais Cveis sob a tica do Acesso Justia

349

dade do processo; de interesse coletivo e de bem pblico; bem como reclama


ainda reformas legislativas urgentes a propiciar efetivo acesso justia. Nesse
diapaso, citamos novamente CAPPELLETTI e GARTH,3 para concluir:

Originando-se, talvez, da ruptura da crena tradicional na


confiabilidade de nossas instituies jurdicas e inspirando-se
no desejo de tornar efetivos e no meramente simblicos os
direitos do cidado comum, ela exige reformas de mais amplo
alcance e uma nova criatividade. Recusa-se a aceitar como imutveis quaisquer procedimentos e instituies que caracterizam
nossa engrenagem de justia.

2. O Acesso Justia nos Juizados Especiais Federais


Assim, para melhor tratar do significativo acesso justia propiciado
pelo advento da Lei n 10.259/01, que instituiu os Juizados Especiais Federais Cveis, necessrio sejam antes tecidas algumas consideraes sobre
o surgimento de juizados para julgamento de causas de menor valor econmico, seu histrico evolutivo e sua importncia para a concretizao do efetivo acesso justia nas esferas estadual e federal.
Seguindo uma tendncia universal do processo civil, no sentido de formao de microssistemas jurdicos cada vez mais especializados em dado
ramo ou matria do direito, operando dentro do sistema jurdico maior,
que surgiram os Juizados Especiais de Pequenas Causas, com o advento da
Lei n 7.244, de 07/11/84, como proposta de soluo para a inadequao da
estrutura das vias ordinrias do Poder Judicirio brasileiro em solucionar,
com rapidez e efetividade, os pequenos litgios de carter individual e de
reduzido valor econmico.
Entretanto, os Juizados de Pequenas Causas no lograram pleno xito
em seus escopos, talvez devido a uma estreita e errnea viso poltica, que
a enxergava, pejorativamente, como uma justia menor, de pouca monta,

CAPPELLETTI, Mauro & GARTH, Bryant. Ob. cit., p. 08.

349

350

Andr da Silva Ordacgy

no recebendo por isso a devida importncia, restando evidente o descaso


de diversos estados-membros da Federao em implant-los ou mesmo aparelh-los adequadamente, visto que a criao desses juizados era de carter
facultativo (art. 1 da Lei n 7.244/84).
Outro fator de desestmulo talvez fosse a competncia por demais
estreita desses juizados (art. 3, de I a III, da Lei n 7.244/84), restrita a causas cujo valor no excedesse a vinte salrios mnimos, limitando-se a condenao ao pagamento de dinheiro, entrega de coisas certas mveis ou ao
cumprimento de obrigaes de fazer nas relaes de consumo, sendo vedada ainda a prpria execuo dos seus julgados, os quais deveriam ser levados sede da Justia Ordinria, o que por si s j desestimulava o ajuizamento de aes nos juizados.
Apesar dos fatores contrrios, pode-se dizer que os Juizados de Pequenas Causas, no saldo geral, obtiveram boa aceitao popular, necessitando
somente de um certo aprimoramento. Dessa forma, o legislador decidiu dar
melhor tratamento s causas de menor valor econmico e de menor complexidade, outorgando-lhes tratamento constitucional (arts. 24, X, e 98, I,
da CR/1988), ampliando-lhes o objeto e procurando corrigir alguns dos
defeitos observados na experincia prtica dos Juizados de Pequenas Causas
da Lei n 7.244/84.
Dessa forma, o art. 98 da novel Carta Magna estabeleceu a criao de
Juizados Especiais Cveis e Criminais, no mbito da Justia dos Estados, do
Distrito Federal e dos Territrios, o que veio a se concretizar por meio da
Lei n 9.099, de 26/09/95, que em seu art. 97, revoga a Lei n 7.244/84,
pondo fim existncia dos Juizados de Pequenas Causas. Observa-se que o
dispositivo constitucional inova at na terminologia, pretendendo mesmo
inaugurar uma nova era no modelo de juizados de causas de reduzido valor
econmico.
A Lei n 9.099/95 trouxe inovaes substanciais no s em relao aos
extintos Juizados de Pequenas Causas, mas a todo o sistema jurdico tradicionalmente conhecido no Brasil. Embora o direito criminal no corresponda ao objeto do presente artigo, restrito somente ao campo de atuao
dos Juizados Especiais Cveis, mas com a finalidade de melhor ilustrar as
relevantes inovaes trazidas pela lei em tela, podemos citar o surgimento
350

Os Juizados Especiais Federais Cveis sob a tica do Acesso Justia

351

dos crimes de menor potencial ofensivo (arts. 60 e 61), a suspenso condicional do processo (art. 89 e ), a composio dos danos civis em matria
penal (art. 72 e ss.) e a proposta de transao penal (art. 76 e ), dentre
outros institutos jurdicos criminais inovadores.
Outrossim, no foram de menor relevncia as alteraes introduzidas
pela Lei n 9.099/95 no campo do direito processual civil, de forma que os
Juizados Especiais Estaduais passaram a concretizar a ideologia de uma justia rpida e efetiva, mediante procedimento oral e sumarssimo, de fcil
acesso e voltada para a defesa dos direitos e interesses do cidado comum,
orientada pelos critrios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando sempre que possvel a conciliao ou
a transao (art. 2), permitido ainda o julgamento de recursos por turmas
de juzes de 1 grau (art. 41, 1), o que desafoga os tribunais hoje to assoberbados de processos e assegura o direito fundamental do indivduo de
acesso Justia (art. 5, XXXV).
A Lei n 9.099/95 alterou o conceito de causa cvel de menor valor econmico, ao alterar o critrio quantitativo (valor da causa) determinante da
fixao de competncia, que nos extintos Juizados de Pequenas Causas era
de vinte salrios mnimos, elevando-o para quarenta salrios mnimos (art.
3, I), alm de promover significativa modificao no critrio qualitativo de
fixao de competncia (ex.: os atuais Juizados tm competncia para a ao
de despejo do locatrio, para uso prprio do locador, independente do valor
da causa art. 3, III).
Associe-se a essas modificaes no campo cvel, outros fatores de grande importncia dos juizados especiais da Lei n 9.099/95, que proporcionaram adequado acesso justia em favor do cidado: a dispensa do pagamento de custas, taxas ou despesas processuais em primeiro grau de jurisdio,
salvo em caso de recurso ou de litigncia de m-f (art. 54 e seu p.u. c/c o
art. 55); e a faculdade de ser ou no assistido por advogado, nas causas de
valor at vinte salrios mnimos (art. 9, caput).
Posteriormente, a Emenda Constitucional n 22/1999 acrescentou o
pargrafo nico ao art. 98 da CRFB/1988, estabelecendo que vindoura lei
federal disporia sobre a criao de juizados especiais no mbito da Justia
Federal, encerrando assim uma sria divergncia existente sobre a aplicabi351

352

Andr da Silva Ordacgy

lidade da Lei n 9.099/95 na esfera do Judicirio Federal, defendida por


muitos juristas de escol.4 Entendiam estes que a melhor tcnica legislativa
aconselhava a criao de captulos ou sees especficos na Lei n 9.099/95,
para tratar dos procedimentos prprios aplicveis Justia Federal.
Usavam, na defesa dessa tese, ao final vencida, a justificativa de que os juizados especiais (estaduais ou federais) eram vertentes da mesma e nica
fonte constitucional (art. 98, I, CRFB/1988), alm de serem fundados nos
mesmos princpios gerais orientadores (oralidade em grau mximo, menor
complexidade probatria, limitao valorativa e infraes de menor potencial ofensivo).
Os Juizados Especiais Federais vieram enfim a se concretizar por meio
da Lei n 10.259, de 12/07/01, cuja vigncia em todo o territrio nacional
teve incio seis meses aps a sua publicao (prazo de vacatio legis), por
fora do disposto em seu art. 27.
Pode-se dizer que consenso a idia de que os juizados especiais so
um divisor de guas na histria do Poder Judicirio brasileiro, com a imagem constantemente comprometida por um quadro de ineficincia e morosidade, marcada por um processo lento, formalista e elitista, de recursos
infindos, incapaz de atender a demanda social. Resta evidente, por conseguinte, o descrdito do cidado que se socorre da justia comum ou ordinria como a ltima porta aberta para a soluo de seus problemas.
A Lei n 10.259/01 representa um considervel avano na prestao da
tutela jurisdicional, na medida que favorece uma grande parcela da populao, notadamente a camada mais carente da sociedade, sem reais condies
de acesso justia no Poder Judicirio Federal. Inconteste a contabilizao
do aspecto social na elaborao dos juizados federais, servindo como pano
de fundo a fomentar o acesso justia ao hipossuficiente, questo essa ressaltada pelo Item 08 da Exposio de Motivos do Projeto de Lei que instituiu os juizados federais (PL n 3.999/00, tambm denominado Projeto
Costa Leite), ao opinar o ento Ministro da Justia Jos Gregori, relativa-

352

Neste posicionamento, citem-se, por todos, Joo Carlos Pestana de Aguiar, Juizados Especiais Cveis e
Criminais Teoria e Prtica, Rio de Janeiro: Espao Jurdico, 1998, p. 43; e o saudoso Jlio Fabrini
Mirabete, Juizados Especiais Criminais, 3 ed. So Paulo: Atlas, 1998, p. 17.

Os Juizados Especiais Federais Cveis sob a tica do Acesso Justia

353

mente legitimidade ativa nos juizados, pela excluso de entidades que


no se caracterizam como hipossuficientes, tendo em vista a finalidade primordial da criao do Juizado.
Sem dvida que o primeiro beneficiado pela implantao dos juizados
federais o segurado da Previdncia Social (INSS), cuja lide previdenciria
acabava por se transformar em uma questo sucessria, tanto o tempo em que
se arrastava o processo, vindo at a falecer o postulante. Com os juizados
federais, o segurado passou a contar com uma justia mais rpida e efetiva.
Tal benesse, representativa de verdadeiro acesso Justia, refletiu-se
poca em expressivos nmeros estatsticos oficiais: das 1,5 milhes de aes
previdencirias que tramitavam na Justia Federal, mais de 80% tinham
valor inferior ao teto mximo permitido pela Lei n 10.259/01 (sessenta salrios mnimos), de forma que poderiam tramitar nos juizados federais. Em
2001, o oramento do Poder Executivo contemplou 40.752 precatrios devidos pelo INSS, sendo que desse total, 33.204 (81,5%) possuam valor igual ou
inferior a 60 salrios mnimos, de forma que poderiam prescindir do sistema
de precatrios se a Lei n 10.259/01 j existisse quela poca. O mesmo se
aplica aos precatrios da Unio como um todo, excludos os do INSS: dos
64.119 precatrios includos no oramento de 2001, 53.295 (83%) possuam
competncia pelo valor de causa para tramitar nos juizados federais.5
Portanto, resta inquestionvel que a Lei n 10.259/01 representou, de
fato, efetivo acesso justia em favor do jurisdicionado, consoante continuam a demonstrar as estatsticas oficiais.

3. Caractersticas dos Juizados Especiais Federais Cveis e


alguns Aspectos Polmicos da Lei n 10.259/01
Naturalmente, por ser uma lei h muito aguardada como soluo para
desafogar o Judicirio Federal, a Lei n 10.259/01 trouxe em seu nascedouro uma srie de questionamentos doutrinrios, ainda mais se observarmos
que estabeleceu um renque de institutos inovadores (mesmo se comparada

MENDES, Gilmar Ferreira. Juizados Especiais Federais: o resgate de uma dvida social. Revista Jurdica
Consulex, Braslia, DF, ano V, n 114, out./2001, p. 66.

353

354

Andr da Silva Ordacgy

com a moderna Lei n 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Estaduais),


tais como: a possibilidade de se demandar o ente pblico (art. 6, II); a simplificao dos procedimentos processuais para citao e intimao (arts. 7 e
8); a eliminao de prazos processuais diferenciados para o ente pblico (art.
9); a outorga de poderes ao representante do ente pblico, para conciliar,
transigir e desistir da ao (art. 10, p.u.); a instituio de exame pericial em
sede de juizados, com adiantamento dos honorrios periciais por verba oramentria do prprio Tribunal (art. 12, 1); a desnecessidade da expedio de
precatrio nas condenaes com valor inferior a 60 salrios mnimos, instituindo-se um modelo mandamental de execuo (art. 17 e seus ).
Dessa forma, procura-se, nestas poucas linhas, esclarecer ao leitor
alguns pontos crticos e aspectos controvertidos desta novel legislao (Lei
n 10.259/01), pautando-se sempre pela premissa do acesso justia.
O art. 1 da referida Lei frustrou um pouco a doutrina, ao fixar a aplicao subsidiria da Lei n 9.099/95 nos casos em que for omissa, o que faz
com que alguns creditem ser este o pior defeito do citado diploma legal.6
Perdeu o legislador uma excelente oportunidade de elaborar um texto prprio,7 enriquecido pela valiosa experincia prtica de alguns anos de existncia dos juizados estaduais, ao preferir realizar uma inadequada adaptao da Lei n 9.099/95 realidade federal, o que vem gerando, pela anlise
da casustica, vrios problemas de integrao interpretativa.8
Embora a lei seja omissa quanto aplicao do Cdigo de Processo
Civil ao rito institudo pela Lei n 10.259/01 (juizados federais), tendo em
vista o seu carter amplo e geral, entende-se pela sua aplicao subsidiria

354

Por todos, o oportuno artigo de Felippe Borring Rocha, Notas Introdutrias sobre os Juizados Especiais
Federais Cveis. JurisPoiesis Revista dos Cursos de Direito da Universidade Estcio de S, Rio de
Janeiro, ano 4, n 5, 2002, p. 164.
A Lei n 10.259/01 pode ser considerada uma lei pequena, visto que contm somente vinte e sete artigos, dos quais os arts. 18 e 19, bem como os cinco ltimos, tratam, praticamente, do atendimento s
necessidades de organizao dos servios judicirios ou administrativos (instalao dos juizados; regulamentao da funo de conciliador; limitao de competncia em funo dos interesses administrativos; promoo de cursos de aperfeioamento; dotao de infra-estrutura administrativa pelos Tribunais
Regionais Federais; prazo de vacatio legis).
J o processualista Alexandre Freitas Cmara entende pela interpretao integrada dos referidos diplomas legais, como se fossem uma s lei, defendendo a idia de um Estatuto dos Juizados Especiais Cveis
(in Juizados Especiais Cveis Estaduais e Federais Uma Abordagem Crtica. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2007, p. 208).

Os Juizados Especiais Federais Cveis sob a tica do Acesso Justia

355

para integrar lacunas existentes, no solucionadas pela Lei n 9.099/95,


desde que no desnature a celeridade e a oralidade do rito, nem tampouco
implique em bice ao acesso justia.
Porquanto o art. 2 da Lei em comento tenha por objeto matria afeta
ao mbito criminal, nico motivo pelo qual no interessa aos objetivos do
presente estudo, passa-se anlise da competncia cvel (art. 3, caput), a
qual atribui aos juizados federais o processo, conciliao e julgamento das
causas federais que no excedam o valor correspondente a 60 (sessenta)
salrios mnimos, bem como a execuo de suas sentenas.
Observe-se que o legislador andou bem ao estipular o teto dos juizados
federais em sessenta salrios mnimos, propiciando assim maior acesso
justia e atuando em perfeita consonncia com a moderna conceituao das
causas de reduzido valor econmico, a qual vem se ampliando (vide o inc.
I do art. 275, do CPC; tambm o 5 do art. 100 da CR/1988).
O 1 do art. 3 faz uma ressalva ao critrio objetivo do valor da causa,
vedando o processo e julgamento das causas cveis (critrio qualitativo) que
consistam em mandado de segurana; desapropriao; diviso e demarcao; ao popular; execuo fiscal; improbidade administrativa; demandas
sobre direitos ou interesses difusos, coletivos ou individuais homogneos;
aes relativas a bens imveis da Unio, autarquias e fundaes pblicas
federais; aes referentes anulao ou cancelamento de ato administrativo federal (salvo o de natureza previdenciria e o de lanamento fiscal); e
as relativas impugnao da pena de demisso imposta a servidor pblico
civil ou de sano disciplinar aplicada ao militar.
Enquanto que o 2 do art. 3 da Lei adota o j consagrado entendimento legal e jurisprudencial relativo ao valor da causa nas prestaes vencidas e vincendas (a soma de doze parcelas), a redao do 3 (a qual faz
previso da competncia absoluta dos Juizados) foi extremamente infeliz,
porque to-somente preocupada em desafogar as instncias ordinrias da
Justia Federal Comum. Tal dispositivo parece andar na contramo da mentalidade jurdica contempornea, que a de propiciar ao jurisdicionado o
maior acesso justia possvel atravs da opcionalidade de ritos (ordinrio,
sumrio e especial), tal qual ocorre nos juizados estaduais, ainda mais se
considerado que o contraditrio e a ampla defesa encontram-se mitigados
355

356

Andr da Silva Ordacgy

em sede de juizados, bem como a produo de provas, razo pela qual a submisso do jurisdicionado a este rito sumarssimo deve ser espontnea.9 Esta
a lio de LEONARDO GRECO: 10

A tutela diferenciada abrange, ainda, os juizados especiais


para causas de menor complexidade, os juzes de paz e juzes
leigos, e a adoo pela lei processual de procedimentos concentrados de cognio sumria. caracterstica essencial da tutela
diferenciada a sua utilizao opcional ou facultativa, pois muitos desses meios no se revestem das garantias habituais dos
magistrados ou no se prestam ampla discusso de todas as
matrias de fato e de direito que poderiam ser alegadas num
processo mais amplo.
Por outro lado, o legislador agiu acertadamente ao dispor sobre a possibilidade do deferimento de medidas cautelares no curso do processo, de
ofcio ou a requerimento das partes, para evitar dano de difcil reparao
(art. 4), sepultando de vez a discusso sobre o seu cabimento em sede de
rito especial dos juizados.11
O art. 5, 1 parte, da citada Lei, possibilita a interposio de recurso em
face de deciso interlocutria que conceder ou indeferir medida cautelar,
recurso este que designado, pelo diploma processual civil, de agravo (art.
522, CPC). Como a Lei n 10.259/01 no lhe deu uma denominao especfica, a melhor tcnica processual aconselha o uso da terminologia recurso
inominado, a exemplo do que ocorre com o interposto contra sentena.12
Cumpre salientar que o recurso inominado em face de deciso que
defere ou no medida liminar, de forma alguma avilta o princpio informa-

9
10
11

12

356

Alexandre Freitas Cmara entende pela inconstitucionalidade desse dispositivo (in Juizados Especiais
Cveis Estaduais e Federais Uma Abordagem Crtica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 216).
GRECO, Leonardo. O Acesso ao Direito e Justia. JurisPoiesis Revista dos Cursos de Direito da
Universidade Estcio de S, Rio de Janeiro, ano 7, n 6, 2004, p. 65.
Em que pese a existncia dessa controvrsia, na prtica a medida cautelar j vinha sendo adotada no procedimento dos juizados estaduais, mesmo sem expressa previso da Lei n 9.099/95. Cabe, igualmente,
antecipao dos efeitos da tutela nos juizados especiais, por aplicao do princpio da fungibilidade.
Nos juizados federais da Seo Judiciria do Rio de Janeiro, a terminologia utilizada pedido de reviso de deciso.

Os Juizados Especiais Federais Cveis sob a tica do Acesso Justia

357

tivo da oralidade nos juizados, haja vista todas as demais decises interlocutrias continuarem irrecorrveis, devendo prevalecer, in casu, o princpio
mais amplo do acesso justia. Por exemplo, imagine-se o caso em que o
magistrado indefira a liminar para imediato restabelecimento de benefcio
previdencirio bloqueado injustamente pela autarquia previdenciria
(INSS) e que consista na nica fonte de subsistncia do segurado. Seria
extremamente injusto e penoso para o jurisdicionado que este aguardasse
at o final do processo para recorrer, devendo-se ressaltar, ainda, que o julgamento final de mrito pode ocorrer aps mais de ano, devido volumosa sobrecarga de feitos atualmente em trmite nos juizados federais.
Portanto, o legislador acabou, sim, por prestigiar a oralidade (irrecorribilidade das decises interlocutrias e concentrao dos atos processuais),
quando estabeleceu apenas uma nica hiptese de interposio de recurso
inominado em face de deciso interlocutria, evitando inclusive o desvirtuamento do nobre instituto do mandado de segurana, o qual vem sendo
usado de maneira descabida na prtica dos juizados estaduais.
Ao procurar privilegiar os princpios informativos da economia processual e da celeridade do procedimento, o art. 5 (in fine) termina por
suprimir o acesso justia quando dispe que somente se admite recurso de
sentena definitiva, o que exclui as sentenas terminativas (extino do
processo sem resoluo do mrito). Embora a sentena terminativa no
obste o ajuizamento de nova ao nos juizados, a experincia prtica tem
demonstrado os graves prejuzos temporais e econmicos sofridos pelo
jurisdicionado quando da ocorrncia de evidente erro judicial ou nos casos
de sentena terminativa que indiretamente discuta o mrito, nem sempre
corrigveis pela via dos embargos declaratrios. Na prtica forense, a jurisprudncia vem procurando corrigir essas distores.
Quanto possibilidade de recurso adesivo, a Coordenadoria dos Juizados
Especiais Federais no Estado do Rio de Janeiro emitiu o Provimento n
05/2002, que veda expressamente essa possibilidade no 4, do seu art. 8. As
razes que fundamentam esse posicionamento esto ancoradas no princpio
da taxatividade (no h previso legal para a sua interposio) e na ofensa ao
princpio da celeridade (constituiria, em tese, no retardo ou morosidade do
processo). Entretanto, MARCELO DA FONSECA GUERREIRO, enfrenta
357

358

Andr da Silva Ordacgy

bem essa questo, defendendo a possibilidade de recurso adesivo em sede de


juizados federais, pois o princpio da taxatividade s se aplica recurso, e no
sobre a sua forma de interposio (que seria a adesiva). Quanto celeridade,
esta seria favorecida, ao contrrio do que se pensa, pois no traria prejuzo ao
regular andamento do processo e a aceitao de recurso adesivo desestimularia a interposio descabida de recursos nos juizados.13
Quanto legitimidade das partes para compor a relao jurdica processual nos juizados federais (art. 6 da Lei n 10.259/01), merece especial
destaque o plo passivo (ru), ocupado pela Unio, autarquias, fundaes e
empresas pblicas federais, por representar inovao de significativo acesso justia.
Isso porque a Lei n 9.099/95, que regula os juizados estaduais, acabou
por repetir disposio da revogada Lei n 7.244/84 (extintos juizados de
pequenas causas), extremamente prejudicial aos reclames da sociedade e ao
efetivo acesso justia, ao dispor em seu art. 8, caput, que as pessoas jurdicas de direito pblico no poderiam ser partes nos juizados estaduais.
Alm disso, h expressa excluso de competncia para as causas de natureza fiscal e de interesse da Fazenda Pblica (art. 3, 2, da Lei n 9.099/95).
De modo inverso, a novel Lei n 10.259/01, que instituiu os Juizados
Especiais Cveis Federais, dispe que a Unio, suas fundaes e autarquias,
e as empresas pblicas federais, podero ser demandadas no processo regulado por essa lei (art. 6, II) o que demonstra a evoluo da conscincia
scio-poltica do legislador quanto ao acesso justia e no que tange aos
conceitos de Fazenda Pblica e bem pblico.
O juiz federal RESINENDE DOS SANTOS, atravs da publicao de primoroso artigo14 sobre a implantao dos juizados federais, defende a incluso
dos entes pblicos no polo passivo das causas de reduzido valor econmico,
mesmo que o rito seja sumarssimo, citando como exemplo negativo os juizados estaduais. Acrescenta ainda que esse tipo de vedao no ocorre nos jui-

13
14

358

GUERREIRO, Marcelo da Fonseca. Como Postular nos Juizados Especiais Federais Cveis. Niteri-RJ:
Impetus, 2007, pp. 125-128.
SANTOS, William Douglas Resinende dos. Juizados Especiais Federais beira do fracasso.
Informativo ADV, Boletim Semanal n 31, agosto/1999, p. 501.

Os Juizados Especiais Federais Cveis sob a tica do Acesso Justia

359

zados de pequenas causas dos Estados Unidos da Amrica, os quais admitem


que as pessoas jurdicas de direito pblico possam ser demandadas. O citado
jurista ainda argumenta que seria como o Estado dizer que justia rpida
uma coisa boa, mas somente para os outros, no para si mesmo:

A verdade que a maior parte das prerrogativas concedidas


s pessoas jurdicas de direito pblico, que visa a proteger o interesse da coletividade, teve resultado inverso, criando um muro
de impunidade e irresponsabilidade que apenas ampara a ineficincia e a prtica de ilicitudes em desfavor do cidado. A desmedida proteo ao Estado se deforma, deixando de proteger o
interesse pblico e vedando o direito constitucional de ao
quando o Estado a parte adversa. No razovel que o Estado
combata as leses a direitos tidas como de pequena monta apenas quando praticadas por terceiros. Seria como o prprio
Estado dizer que a Justia rpida bom, mas para os outros.
Alis, quando combate os vcios dentro do seu prprio organismo, ao contrrio de se prejudicar, como viso mope poderia
supor, o Estado se purifica e aperfeioa. O Estado se fortalece e se
torna o exemplo de autoridade, inclusive moral, que a sociedade
espera. O bom administrador ser reconhecido, ao passo que o
desidioso ver a Justia alcanar-lhe prontamente, fazendo com
que este d lei e ao interesse coletivo a devida reverncia.
Todos sabemos o quanto as pessoas jurdicas de Direito
Pblico violam a Constituio e a lei e permanecem protegidos pelas dificuldades de acesso Justia. Isso tem de mudar. A
responsabilizao do ente estatal serve como fator de aperfeioamento da atividade administrativa. Por essas razes,
imprescindvel admitir o ajuizamento de processos em face da
Fazenda Pblica.
Convm ressalvar que, pelo fato do art. 6, inc. II, apontar os entes pblicos federais como rus, no significa que as pessoas fsicas e as pessoas
jurdicas de direito privado tambm no possam integrar o plo passivo, o
359

360

Andr da Silva Ordacgy

que sempre vai ocorrer no caso de litisconsrcio passivo necessrio.15 Um


exemplo clssico do aqui afirmado, e que ocorre com relativa freqncia
nos juizados federais, a causa previdenciria na qual se discute o recebimento de penso por morte entre a companheira e a esposa. Neste caso,
uma constar como autora, e a outra como r, ao lado do INSS.
A Lei n 10.259/01 tambm fez imensos progressos no que concerne
legitimidade ativa ad causam da pessoa fsica nos juizados federais, seno
vejamos. Quando o inc. I do art. 6 dispe que podem ser parte nos juizados
federais, na condio de autor, as pessoas fsicas e as microempresas e
empresas de pequeno porte,16 sem realizar qualquer distino relativa
capacidade das pessoas fsicas, o referido dispositivo constitui um permissivo legal mesmo para os incapazes (o menor de dezoito anos, o debilitado
mental, o viciado em txico, etc.).17
Tal norma encontra eco no princpio do acesso justia, visto que o
incapaz tambm poder utilizar-se de um rito clere, dinmico e eficaz,
despido de formalismos, para a obteno de seu benefcio. Para evitar qualquer prejuzo aos interesses do incapaz, basta sejam tomadas algumas cautelas da praxe jurdica, como, por exemplo, a assistncia obrigatria por
advogado nesses casos, a interveno do Ministrio Pblico Federal e a
nomeao de curador especial.18
Outra inovao de relevncia trazida pela Lei n 10.259/01, foi a insero dos avanos tecnolgicos nos mecanismos processuais, notadamente os
meios eletrnicos de transmisso de dados e a internet. Assim, o 2, do art.
8, prev que os tribunais podero organizar servios de intimao das partes e de recepo de peties por meio eletrnico. Tambm o 3 do art. 14,
ao tratar do pedido de uniformizao, dispe que a reunio de juzes domiciliados em cidades diversas ser feita pela via eletrnica.

15

16
17
18

360

Neste sentido, a clara redao do Enunciado n 4 das Turmas Recursais dos Juizados Federais do Rio de
Janeiro: possvel o litisconsrcio passivo necessrio dos entes enunciados no art. 6, II da L.
10.259/2001, com pessoa jurdica de direito privado e pessoa fsica.
Microempresas e empresas de pequeno porte, assim definidas em lei (Lei n 9.317/96).
Vide arts. 3 e 4 do Novo Cdigo Civil (2002).
A participao do incapaz nos plos ativo e passivo da demanda j uma realidade nos juizados federais, inclusive com a edio de enunciado: Os incapazes podem ser parte no JEF, sendo obrigatrias a
assistncia por advogado e a intimao do MPF, podendo haver conciliao (Enunciado n 5 das
Turmas Recursais dos Juizados Federais do Rio de Janeiro).

Os Juizados Especiais Federais Cveis sob a tica do Acesso Justia

361

Diversos juizados federais j atuam na qualidade de juizados virtuais,


onde o acompanhamento de todo o processo (autos virtuais) realizado
atravs de terminais eletrnicos ou computadores, caracterizando-se pelo
uso de senha ou assinatura eletrnica e pela ausncia de autos fsicos, prestigiando-se dessa forma os princpios informadores dos juizados, como a
oralidade em grau mximo, a economia processual, a celeridade e a concentrao dos atos processuais. No h como negar que os denominados autos
virtuais contriburam em muito para a celeridade do procedimento, o que
extremamente satisfatrio para o jurisdicionado.
Nesse sistema virtual, a petio inicial e a documentao apresentada
pela parte so escaneadas e gravadas no banco de dados informatizado,
havendo devoluo dos originais.19 Aps o cadastro das partes, o processo
virtual autuado com nmero gerado pelo sistema, compondo-se virtualmente com a petio inicial e a documentao escaneadas. O processo distribudo eletronicamente e o prprio computador fornece a data da prxima audincia, se necessrio com o agendamento de prvia percia. A citao e eventuais intimaes so feitas atravs de correio eletrnico (e-mail).
A contestao e demais peas processuais so recebidas atravs de sistema
de transmisso eletrnica de atos processuais.
O sistema conta com a captura eletrnica de assinaturas, atravs de
canetas eletrnicas, sendo que para a assinatura dos juzes basta que este
digite a sua senha para que o documento em questo seja assinado, com base
no cadastro de assinaturas gravadas com senhas criptografadas. Toda a tramitao do processo feita eletronicamente, inclusive entre setores internos dos juizados federais. de se anotar que a Lei n 11.419/06 permite que
os tribunais criem o Dirio de Justia eletrnico para divulgao dos atos
judiciais e administrativos.
Toda essa sistemtica representa significativa economia de papel e tinta,
dentro de uma conceituao ecologicamente correta, bem como resulta na
economia de despesas pblicas e do servio burocrtico. Mas sem dvida

19

importante que a parte conserve a documentao original, para o caso de argio de eventual incidente de falsidade do documento ou similar, quando haver necessidade de apresentao do original
para a devida comprovao de sua autenticidade.

361

362

Andr da Silva Ordacgy

que o principal ganho a celeridade do processo em favor do jurisdicionado, que ver a sua causa sendo julgada com maior rapidez e efetividade.20
Entretanto, cumpre fazer algumas ressalvas ao procedimento inteiramente eletrnico (autos virtuais), porque no se pode conceber privilegiar a celeridade e a economia processual sem fazer uma ponderao de
interesses com os relevantes princpios constitucionais do acesso justia,
do contraditrio e da ampla defesa.
A primeira ressalva, naturalmente, diz respeito segurana das informaes transmitidas por meio eletrnico, seja contra falhas de comunicao no sistema, ou de armazenamento das informaes (da a necessidade
de um completo sistema de backup cpias de segurana), ou contra atos
de hackers, que cada vez mais se aprimoram na invaso de sistemas eletrnicos, mesmo os ditos fechados (o sistema eletrnico permite o envio de
peas e documentos via internet). Para tanto, preciso dotar os juizados
federais eletrnicos de um sistema moderno e inteiramente seguro, conforme leciona CARVALHO:21

... Assim, desde que resguardada a segurana da informao digital, tanto quanto deve ser preservada a segurana da
correspondncia tradicionalmente entregue pelo carteiro, tm
ambas a mesma credibilidade para veicular comunicaes processuais, inclusive intimaes.
A segunda observao que se faz, agora de contedo scio-econmico,
diz respeito carncia estrutural da justia e principalmente dos rgos
pblicos que nela atuam (defensoria e procuradorias), bem como o despreparo da populao em geral para o uso dos modernos meios eletrnicos.

20

21

362

Somente para se ter uma idia do ganho de tempo no processo virtual, o sistema praticamente elimina
o prazo sucessivo para manifestao processual, visto que os autos estaro disponveis virtualmente,
ao mesmo tempo, para ambas as partes. Na prtica, grande parte dos prazos transformam-se em prazo
comum.
CARVALHO, Ivan Lira de. Os Juizados Especiais Federais e as comunicaes processuais eletrnicas.
Aspectos da Lei 10.259/01. Revista Doutrina. Rio de Janeiro: Instituto de Direito, 2002, p. 132.

Os Juizados Especiais Federais Cveis sob a tica do Acesso Justia

363

O instrumental tecnolgico demasiadamente caro, principalmente


para os rgos pblicos que militam nos juizados. Os defensores pblicos
federais, os procuradores do INSS e os advogados da Unio (AGU) no dispem de apoio tecnolgico suficiente, sendo notrio que tais profissionais
carecem, por vezes, at mesmo de computador, papel e impressora, convivendo com srios problemas de escassez de material.
Deve tambm ser considerada a deficincia tecnolgica da populao em
geral, despreparada at para o manejo de um simples terminal eletrnico bancrio. Certamente que o complexo mundo jurdico lhes pareceria ainda mais
assustador se apresentado de forma virtual. Portanto, sempre que possvel,
deve ser incentivada a instalao de quiosques eletrnicos populares e cursos
de ensino de informtica gratuitos para jurisdicionados e advogados.
Dessa forma, no h dvida de que a experincia de juizados eletrnicos extremamente vlida e contribui para a economia processual e a
celeridade do procedimento, mas deve ser temperada com o devido respeito a valores de maior relevncia, como a segurana jurdica, o acesso justia, o contraditrio e a ampla defesa, razo pela qual ainda necessita de um
certo aprimoramento e de pesados investimentos na dotao tecnolgica
dos rgos pblicos, alm de reclamar uma preparao/orientao do jurisdicionado para o uso dos meios eletrnicos.
O art. 9 apresenta uma das maiores novidades da Lei n 10.259/01,
constituindo-se em norma propiciadora de verdadeiro acesso justia (processo clere, sem retardos injustificados), ao suprimir o prazo diferenciado
para a prtica de qualquer ato processual pelas pessoas jurdicas de direito
pblico, fazendo a ressalva de que a citao para a audincia de conciliao
deve ser realizada com antecedncia mnima de trinta dias. O legislador
visou aqui a supresso das prerrogativas da Fazenda Pblica, previstas no
art. 188 do CPC,22 com as quais se tornaria impossvel a especialidade do
rito, visto que este se embasa na celeridade e na informalidade.23

22
23

Art. 188 do CPC: Computar-se- em qudruplo o prazo para contestar e em dobro para recorrer quando a parte for a Fazenda Pblica ou o Ministrio Pblico.
Guilherme Bollorini Pereira entende que o art. 191 do CPC, que prev prazo em dobro para a hiptese de
litisconsrcio em que as partes tm procuradores diferentes, tambm no aplicvel aos juizados especiais
federais, sob pena de ofensa ao princpio da celeridade (in Juizados Especiais Federais Cveis Questes de
Processo e de Procedimento no contexto do Acesso Justia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 71).

363

364

Andr da Silva Ordacgy

Neste toar, CARREIRA ALVIM24 festeja a eliminao dos privilgios


dos entes pblicos nos juizados federais, conforme transcrito abaixo:

Vamos acabar com todos os privilgios dos entes pblicos,


que no se justificam em face das pequenas causas que so objeto dos juizados especiais; vamos pr fim aos privilgios de prazo
em dobro para recurso, prazo em qudruplo para contestar, eliminar o precatrio como instrumento de pagamento de dbitos
judiciais. Vamos utilizar essa cova rasa para sepultar esses odiosos e injustificveis privilgios com que nosso ordenamento jurdico ainda brinda a Unio Federal e suas autarquias e fundaes.
Obviamente, que o dispositivo em comento (art. 9), por se referir
parte que seja pessoa jurdica de direito pblico, no poderia obrigar de
forma alguma a Defensoria Pblica da Unio (DPU),25 que deveria manter
a sua prerrogativa processual de prazo em dobro (art. 44, inc. I, Lei Complementar n 80/94).26 Isso porque a Defensoria Pblica no parte na relao jurdica processual desenvolvida nos juizados federais, mas atua somente na funo de causdico do assistido hipossuficiente (pessoa fsica), consistindo em condio necessria para se estabelecer uma adequada paridade
processual entre os litigantes.27 Respeitar essa prerrogativa significa ampliar o acesso justia, na medida em que mais pessoas juridicamente necessitadas podero ser assistidas pela Defensoria, sem qualquer prejuzo em sua
defesa ante o prazo dilatado. Ademais, considerando-se o aspecto do plano
hierrquico das normas positivadas, a lei ordinria (Lei n 10.259/01) no
pode revogar uma lei complementar (LC n 80/94), exigindo-se, para tanto,

24
25
26
27

364

ALVIM, J. E. Carreira. Juizados Especiais Federais. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 02.
Art. 134. A Defensoria Pblica instituio essencial funo jurisdicional do Estado, incumbindolhe a orientao jurdica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5, LXXIV.
Art. 44, inc. I: receber intimao pessoal em qualquer processo e grau de jurisdio, contando-se-lhe
em dobro todos os prazos.
Marcelo da Fonseca Guerreiro aponta a necessidade de realizao de concursos pblicos constantes para
o devido aparelhamento da Defensoria Pblica da Unio, de modo a propiciar melhoria no Judicirio e
no acesso justia (in Como Postular nos Juizados Especiais Federais Cveis. Niteri-RJ: Impetus, 2007,
pp. 7-8).

Os Juizados Especiais Federais Cveis sob a tica do Acesso Justia

365

uma norma revogadora de hierarquia igual ou superior revogada.


Entretanto, o entendimento vigente dos rgos de cpula do Judicirio no
sentido de que deve prevalecer o princpio da especialidade (in casu, a celeridade), mesmo que em detrimento do acesso justia.
O art. 10, caput, da Lei n 10.259/01, reza que as partes podero designar, por escrito, representante para a causa, o qual pode ser advogado ou
no. Note-se a uma brecha para a figura do defensor leigo (paraprofissional), referida por CAPPELLETTI e GARTH em sua clebre obra.28 No h
dvida de que a inteno do legislador foi a de propiciar o maior acesso
justia possvel, deixando ao crivo do jurisdicionado a contratao de advogado ou no, em primeira instncia, para qualquer valor da causa at sessenta salrios mnimos. Tal disposio do legislador deu-se em funo de
evitar que o jurisdicionado se encontrasse obstaculizado de pleitear o seu
direito em juzo, devido a problemas extraprocessuais (idade avanada, deficincia fsica, distncia geogrfica, custos financeiros, etc) que impossibilitassem a sua presena fsica, com evidente prejuzo do acesso justia. Logo,
o prprio jurisdicionado ou seu representante tem capacidade postulatria
plena em primeira instncia, independentemente de assistncia tcnica.
Em que pese a existncia de autorizadas vozes em contrrio,29 tem prevalecido, nos juizados especiais estaduais e federais, o entendimento amplamente majoritrio de que a norma autorizadora de capacidade postulatria
para a parte compatvel com a Carta Maior, em funo da prpria natureza dos juizados especiais, que trata de causas de reduzido valor econmico
e de menor complexidade. Embora o Estatuto da Advocacia disponha ser a
capacidade postulatria privativa do advogado, regularmente inscrito nos
quadros da OAB, mesmo em sede de Juizados (art. 1, inc. I, Lei n 8.906/9430),
a Lei n 10.259/01 (Juizados Federais) norma especial a prevalecer em face

28
29

30

CAPPELLETTI, Mauro & GARTH, Bryant. Ob. cit., p. 71.


Por todos, Felippe Borring Rocha. Juizados Especiais Cveis Aspectos Polmicos da Lei n 9.099 de
26/9/1995. 3 ed. Rio de Janeiro: Ed. Lmen Jris, 2003, p. 49 e ss. O autor faz a defesa de sua argumentao com base na essencialidade da funo advocatcia, que representaria uma garantia para o jurisdicionado, visto que, no seu entender, a maioria das pessoas no tem condies de promover adequadamente os seus interesses em juzo.
O Supremo Tribunal Federal, na ADIn 1.127-8 (j. 06.10.1994), decidiu, liminarmente, pela no aplicao do inc. I do art. 1 da Lei n 8.906/94 em relao aos juizados especiais, at a deciso final de mrito.

365

366

Andr da Silva Ordacgy

do Estatuto da Advocacia, que norma geral, alm do que se trata de lei


posterior (mais nova) a revogar a mais antiga. Outrossim, os juizados especiais tm magnitude constitucional, o que espanca, vez por todas, quaisquer
dvidas sobre a sua constitucionalidade.
O art. 10, p.u., da Lei n 10.259/01, constitui importante autorizativo
para que os representantes judiciais dos entes pblicos possam conciliar,
transigir ou desistir, nos processos de competncia dos juizados. Ocorre
que, na prtica, a realidade outra, sendo ainda um pouco tmida as tentativas de conciliao ou transao em juzo, apesar de sensveis melhoras,
mesmo porque no se operou a necessria mudana de mentalidade nos
representantes dos entes pblicos federais, os quais continuam tenazmente
arraigados aos antigos conceitos de indisponibilidade do bem pblico, em
detrimento da moderna ideologia de eficincia e de operosidade que deve
sempre reger os rgos pblicos, atravs de uma considerao da relao
custo versus benefcio no caso concreto. Sobre o assunto, leciona WILLIAM DOUGLAS RESINENDE DOS SANTOS:31

Existe considervel preconceito contra a possibilidade de


conciliao e transao quando for parte pessoa jurdica de direito pblico, tendo em vista, principalmente, a indisponibilidade
do interesse pblico. Todavia, a indisponibilidade no significa
proibio da transao, mas apenas da transao desvantajosa.
Um acordo pode ser extremamente til para a coletividade, caso
em que impedi-lo que vulnera o interesse coletivo. A transao
j hoje legalmente possvel mas as dificuldades administrativas
para sua concretizao tornam este eficiente instrumento uma
figura de pouca utilidade prtica. No se vai criar a transao mas
apenas simplific-la para que sirva ao interesse pblico.
H que se considerar tambm a obrigatoriedade desses representantes
judiciais terem de se submeter s smulas administrativas editadas por seu

31

366

SANTOS, William Douglas Resinende dos. Juizados Especiais Federais beira do fracasso. Informativo ADV, Boletim Semanal n 31, agosto/1999, p. 501.

Os Juizados Especiais Federais Cveis sob a tica do Acesso Justia

367

rgo de cpula,32 alm, claro, do justo receio de que os mesmos venham


a sofrer alguma responsabilizao administrativa, cvel ou criminal pela
realizao de eventual acordo que venha a ser acoimado de fraude,33 conforme noticia TOURINHO NETO:34

Os procuradores tero receio de conciliar, transigir ou


desistir, em face da idia de que o procurador tem sempre de
recorrer, de procrastinar, para evitar que o pagamento decorrente da condenao seja rpido. Notcias h que procuradores,
atualmente, esto respondendo sindicncia porque deixaram de
recorrer nas questes dos 28% de reajuste do funcionalismo
pblico e em outras questes. O medo de ser tachado de corrupto grande e pondervel.
Outro aspecto de relevncia da Lei dos Juizados Federais a possibilidade da realizao de prova pericial (art. 12 e seus ), o que no se admite nos juizados estaduais.35 Faculta-se a apresentao de quesitos e indicao de assistente tcnico, no prazo de dez dias, quando a percia se der em
causa previdenciria ou referente assistncia social. Em relao prova
tcnica, o ponto gerador de acesso justia , sem dvida, a previso contida no seu 1, do adiantamento dos honorrios periciais conta da verba
oramentria do respectivo Tribunal, o que no prejudicar a parte hipossuficiente de recursos financeiros.
O art. 13 abole, em sede de Juizados Federais, o odioso instituto do reexame necessrio, tambm denominado de recurso de ofcio, que a doutrina sempre apontou como de duvidosa constitucionalidade. Dessa forma, se

32

33
34
35

A AGU Advocacia Geral da Unio edita smulas administrativas dirigidas aos advogados da Unio,
aos procuradores federais autrquicos e da Fazenda Nacional, retirando dos mesmos qualquer independncia funcional.
Como uma espcie de caa s bruxas, ao repique das influncias polticas.
TOURINHO NETO, Fernando Costa. Juizados Especiais Federais. Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n 51,
out. 2001. Disponvel em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2230. Acesso em: 26 set. 2004.
A inquirio tcnica do art. 35 da Lei n 9.099/95 (juizados estaduais) no tem a magnitude da previso
relativa prova pericial nos juizados federais (Lei n 10.259/01).

367

368

Andr da Silva Ordacgy

no houver recurso por parte da Fazenda Pblica, ocorrer o trnsito em


julgado para o ente pblico.
No que tange seara recursal, alm do recurso inominado dirigido
Turma Recursal, que, como visto, pode ser interposto em face da deciso
interlocutria que defere ou no a liminar (art. 4) ou contra sentena definitiva que julga o mrito da lide (art. 5), tambm cabvel o manejo dos
embargos de declarao, por aplicao subsidiria da Lei n 9.099/95, visto
que so recursos de grande utilidade e de pouco retardo processual.
Tambm cabvel a interposio de recurso extraordinrio, dirigido ao
STF, por expressa previso da Lei (art. 15).
A Lei n 10.259/01 inovou ao criar dois procedimentos de uniformizao das decises em segundo grau (art. 14). O primeiro, destina-se a solucionar as divergncias de interpretao da lei federal entre as Turmas
Recursais ou entre estas e as smulas e jurisprudncia dominantes do STJ, e
tem o seu trmite processual regulado nos pargrafos do art. 14. J o outro
procedimento de uniformizao praticamente idntico ao primeiro, exceto pelo objeto (que passa a ser a norma constitucional) e pelo controle final,
que realizado pelo STF (art. 15).36
Quanto ao rescisria, a Lei n 10.259/01 restou omissa. Lamentavelmente, a jurisprudncia vem se utilizando do disposto no art. 1 da
supracitada Lei, que determina que quando a mesma for omissa, aplicar-se subsidiariamente o disposto na Lei n 9.099/95. Ora, o art. 59 desta ltima
probe expressamente a admissibilidade de ao rescisria, o que constitui
hiptese de impossibilidade jurdica do pedido.37 Dessa forma, perdeu o
legislador uma excelente oportunidade de realizar importante avano na

36

37

368

William Douglas R. dos Santos atribui ao pedido de uniformizao dos juizados federais a natureza jurdica de verdadeiro recurso, visto que objetiva a modificao do julgado (in Manual do Conciliador e do
Juiz Leigo Juizados Especiais Cveis. SILVA, Luiz Cludio; SLAIBI FILHO, Nagib; & SANTOS,
William Douglas Resinende dos. Niteri-RJ: Impetus, 2006, p. 196-197). O Conselho da Justia Federal,
ante a omisso da Lei n 10.259/01 quanto ao prazo de interposio do pedido de uniformizao, estipulou em 10 dias, a contar da cincia do acrdo (art. 3 da Resoluo n 273/02).
Alexandre Freitas Cmara aponta como nica hiptese de cabimento de ao rescisria em sede de juizados, os processos que tenham sido conhecidos pelo Supremo Tribunal Federal, no mrito, via recurso extraordinrio, na forma do disposto no art. 102, I, j, da CRFB/88. Entende, ainda, o citado doutrinador processual que a nica soluo possvel para desconstituir sentena transitada em julgado no
microssistema dos juizados especiais seria atravs da querella nullitatis (in Juizados Especiais Cveis
Estaduais e Federais Uma Abordagem Crtica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 162-163).

Os Juizados Especiais Federais Cveis sob a tica do Acesso Justia

369

Lei n 10.259/01, visto que a doutrina h muito j reclamava da ausncia de


uma ao autnoma impugnativa para lidar com questes como sentena
que ofenda a coisa julgada ou tenha sido proferida por juiz corrupto ou
impedido, etc. A rigor, no porque a causa considerada de reduzido
valor econmico ou de pouca complexidade que o postulado da justia das
decises deve ser afastado.38
A execuo em sede de Juizados Federais recebeu tratamento especial
do legislador, que se mostrou extremamente afinado com os modernos
princpios da instrumentalidade e de efetividade do processo, propiciadores
de efetivo acesso justia. A Lei n 10.259/01 realmente inaugurou uma
nova era no que concerne execuo, diferentemente do que ocorre na
esfera estadual, onde a fase executiva consiste no principal gargalo de
estrangulamento dos juizados estaduais, emperrando toda a celeridade
daquele procedimento.39
Dessa forma, a execuo, como prevista na Lei n 10.259/01, quebra
com dogmas ao prever at a possibilidade de seqestro de bens pblicos, que
eram tidos, em regra, como inalienveis e impenhorveis, o que faz lanar
profundas discusses sobre uma nova conceituao do que seja bem pblico
e interesse da coletividade. LEONARDO GRECO40 apresenta, no direito
aliengena, procedimentos processuais similares contra a Fazenda Pblica:

Uma outra soluo, igualmente protetiva dos direitos dos


credores, comeou a surgir em alguns outros pases, como a
Itlia, a Espanha, Portugal e a Argentina, que, limitando a
impenhorabilidade dos bens pblicos, admitem a penhora de
bens dominicais do Estado e de receitas pblicas no vinculadas

38
39

40

Vale destacar que o Anteprojeto Costa Leite (que resultou na Lei n 10.259/01) previa, originalmente, em sua redao, a possibilidade de ao rescisria.
SALOMO, Luis Felipe. Roteiro dos Juizados Especiais Cveis. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora Destaque,
2003, p. 65. No mesmo sentido: CARVALHO, Ivan Lira de. Ob. cit., p. 130: ..., a Lei 9.099/95 foi tomada como locomotiva de um moderno sistema de processo, de procedimento e de prestao jurisdicional
mais gil, malgrado os defeitos que o tempo j cuida de apontar, a exemplo dos equvocos do processo de
execuo de sentena. Grifo nosso. Entretanto, essa realidade vem mudando em sede dos juizados estaduais, principalmente com a utilizao da denominada penhora on line ou penhora eletrnica.
GRECO, Leonardo. Ob. cit., pp. 55-56.

369

370

Andr da Silva Ordacgy

ao exerccio de atividades essenciais. Em Portugal, os bens dos


corpos administrativos, as coisas do seu domnio privado, podem ser penhoradas, desde que no estejam afetadas a um fim
de utilidade pblica. Na Espanha, em 1998, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade do Regulamento
das Fazendas Locais que proibia genericamente a penhora de
bens pblicos, fosse ou no do patrimnio disponvel. Na
Argentina, se o Estado se tornar remisso, podero ser penhorados bens pblicos de utilizao privada. No Direito Italiano,
no so impenhorveis o dinheiro pblico e os crditos inscritos em balano, salvo os originrios de relaes de direito pblico, como tais entendidas as resultantes de atos cumpridos no
exerccio de poderes de imprio da administrao; os crditos
pblicos de origem privada, que no tm uma destinao pblica previamente estabelecida.
H muitas pessoas jurdicas de direito pblico titulares de
vasto patrimnio ocioso ou no utilizado em fins pblicos, que
poderiam servir para saldar dvidas, sem desviar recursos dos
servios essenciais do Estado. (...)
No Estado de Direito, que respeita os direitos dos cidados, a intangibilidade do patrimnio pblico somente se justifica na medida em que serve ao bem comum, atravs da sua
afetao ao exerccio de funes pblicas de interesse de toda
a coletividade.
Esto previstos nos arts. 16 e 17 da Lei n 10.259/01, dois procedimentos de execuo de sentena. Quando o ttulo judicial cuidar de obrigao de fazer, no fazer ou de entrega de coisa certa (art. 16), o magistrado determinar autoridade citada para a causa, mediante a expedio
de ofcio requisitrio, a realizao do ato ou de sua absteno. Embora a
lei seja omissa, no caso de descumprimento da ordem judicial, entende-se
cabvel o emprego de multa por ato atentatrio ao exerccio da jurisdio,
a incidir sobre o ente pblico e/ou o administrador responsvel pela prtica do ato (multa pessoal); a responsabilizao criminal da referida auto370

Os Juizados Especiais Federais Cveis sob a tica do Acesso Justia

371

ridade por estar incursa, em tese, no crime de desobedincia; a busca e


apreenso no caso de entrega de coisa certa; dentre outras medidas coercitivas ou de sub-rogao.
Quando se tratar de obrigao de pagar quantia certa (art. 17), dentro
do limite de sessenta salrios mnimos, o pagamento dever ser realizado no
prazo de sessenta dias da entrega da requisio autoridade citada para a
causa, na agncia mais prxima da Caixa Econmica Federal ou do Banco
do Brasil, independentemente de precatrio. Caso seja desatendida a requisio judicial, o magistrado determinar o seqestro do numerrio suficiente ao cumprimento da deciso ( 2 do art. 17).
O pagamento por meio de precatrio somente se dar na hiptese de
condenao em valor superior ao teto mximo legal (sessenta salrios mnimos), caso a parte no deseje abrir mo da parcela excedente em prol da utilizao do procedimento especial (ofcio judicial requisitrio). Peca, neste
ponto, a Lei (art. 17, 3), quando veda o fracionamento do pagamento,
impossibilitando que o autor receba o mximo legal (sessenta salrios mnimos) pelo procedimento institudo pelos Juizados, e o restante por meio de
precatrio. Ou seja, se a parte preferir a celeridade do rito especial, ter que
desistir do valor excedente, o que configura norma assaz injusta, mormente quando se tratar de pessoa hipossuficiente, consistindo essa norma em
proteo desmedida ao errio pblico.41
Os artigos finais da Lei resumem-se a estabelecer disposies concernentes organizao dos servios judicirios ou administrativos, com exceo do art. 20, o qual veda a aplicao da Lei n 10.259/01 no juzo estadual,
dispondo ainda que, na ausncia de vara federal, a causa poder ser proposta no Juizado Federal mais prximo do foro definido no art. 4 da Lei n
9.099/95, o que pode gerar algumas dificuldades de ordem prtica quanto
estipulao da correta proximidade geogrfica.
Vale tambm destacar o pargrafo nico do art. 22, que faz previso
do funcionamento de juizado especial federal em carter itinerante, norma
esta extremamente propiciadora de acesso justia. Os Juizados Federais,

41

A Emenda Constitucional n 37/2002, que acrescentou o 4 ao art. 100 da CRFB/88, supultou de vez
essa discusso, visto que repetiu a injusta redao do 3 do art. 17, da Lei n 10.259/01.

371

372

Andr da Silva Ordacgy

a Defensoria Pblica42 e os demais rgos pblicos (INSS, AGU etc.) tm


realizado diversos juizados itinerantes pelos rinces do Pas, atingindo
reas nunca antes alcanadas, habitadas principalmente pela populao
mais carente.

4. Referncias Bibliogrficas
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Teoria e Prtica, Rio de Janeiro: Espao Jurdico, 1998.
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MENDES, Gilmar Ferreira. Juizados Especiais Federais: o resgate de uma
dvida social. Revista Jurdica Consulex, Braslia, DF, ano V, n. 114,
out./2001.

42

372

A Defensoria Pblica da Unio desenvolveu valioso projeto de assistncia jurdica integral e gratuita
nesse sentido, denominado DPU Itinerante, no qual, isolada ou em conjunto com o Judicirio, alcana as mais distantes reas do Pas, seja de barco, de automvel ou de avio. Marcelo da Fonseca
Guerreiro elenca algumas experincias interessantes de realizao de juizados itinerantes em sua obra
(in Como Postular nos Juizados Especiais Federais Cveis. Niteri-RJ: Impetus, 2007, p. 45).

Os Juizados Especiais Federais Cveis sob a tica do Acesso Justia

373

PEREIRA, Guilherme Bollorini. Juizados Especiais Federais Cveis


Questes de Processo e de Procedimento no contexto do Acesso
Justia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
ROCHA, Felippe Borring. Juizados Especiais Cveis Aspectos Polmicos
da Lei n 9.099 de 26/9/1995. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
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