A Desintegração e A Metamofrose Na Estranha Poética de Nuno Ramos PDF
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8 maio/2015
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Resumo: Pelo vis do estranhamento (ostranenie) de Viktor Chklovski, esse trabalho analisa
a potica do artista brasileiro Nuno Ramos, cuja produo artstica se d em dilogo com
outras artes, principalmente as artes plsticas. Pretende-se mostrar a originalidade e
peculiaridade potica do artista em questo, que intriga a crtica quanto forma, ao contedo
e ao estilo de escrita, e que problematiza os limites da matria, da natureza e do homem. Esses
limites podem ser verificados pela recorrncia das ideias da metamorfose e da desintegrao
em suas obras, em especial nos livros Cujo, de 1993, e Junco, de 2011, os quais sero objetos
de estudo neste trabalho. No que diz respeito dificuldade da crtica, colocada em evidncia
a atual situao da poesia brasileira, apresentada por Marcos Siscar em 2005, no texto A
cisma da poesia brasileira, havendo uma conexo entre a crise da poesia e o poeta
contemporneo no Brasil, representado neste contexto por Nuno Ramos.
Palavras-chave: literatura brasileira; hibridismo artstico; poesia contempornea; crise da
poesia; estranhamento; desintegrao.
Abstract: By means of Viktor Shklovskys estrangement (ostranenie), this study examines
the poetics of Brazilian artist Nuno Ramos, so that his artistic production in dialogue with
other arts, especially the visual arts. In it is intended to show the originality and uniqueness
poetic of the artist in question that intrigues the criticism regarding the form, content and
writing style of the author, who discusses the limitations of matter, nature and man. These
limits can be checked by the recurrence of the ideas of metamorphosis and disintegration in
his works, especially in books like Cujo, 1993 and Junco, 2011, which will be the main
objects of study in this work. With regard to the difficulty of the critical is discussed the
current situation of Brazilian poetry, by Marcos Siscar in 2005, in the text The schism of
Brazilian poetry, with a connection between the poetry crisis and the contemporary poet in
Brazil, represented in this context by Nuno Ramos.
Keywords: Brazilian literature; artistic hybridity; contemporary poetry; poetry crisis;
estrangement; disintegration.
Agradecimentos aos professores Eduardo Veras e Myriam Avila que, por meio de suas disciplinas Tendncias
da Poesia Contempornea (2013/2) e Poticas do Estranhamento (2014/1), respectivamente, viabilizaram a
realizao deste trabalho.
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Graduanda na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]
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Muito se discute a respeito da arte no mundo: como ela criada, qual a sua funo
social e esttica, como se d a sua percepo pelo homem, entre outras indagaes. Um
estudo muito relevante nesse mbito se deu a partir do conceito de estranhamento
(ostranenie), sistematizado pelo formalista russo Viktor Chklovski, em seu texto A arte
como procedimento, que prope a desautomatizao da nossa percepo da realidade, por
meio da singularizao das coisas:
E eis que para devolver a sensao de vida, para sentir os objetos, para provar que
pedra pedra, existe o que se chama arte. O objetivo da arte dar a sensao do
objeto como viso e no como reconhecimento; o procedimento da arte o
procedimento da singularizao dos objetos e o procedimento que consiste em
obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a durao da percepo. O ato de
percepo em arte um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte um meio
de experimentar o devir do objeto, o que j passado no importa para a arte.
(CHKLOVSKI, 1971, p. 45)
Isto , para Chklovski, devemos experimentar o que a arte nos proporciona tal como
percebemos e no como conhecemos. Dessa forma, no necessariamente o que o artista nos
apresenta algo novo, pelo contrrio, a maneira como ele nos apresenta que nova
(original), bem como defende David Lodge (2009) ao dizer que estranhamento um sinnimo
de originalidade.
Nuno Ramos um consagrado artista plstico brasileiro, que se aventura em outras
artes, tais como cinema, literatura, msica, fotografia, sendo assim considerado um artista
hbrido. Sua primeira experincia literria foi o livro Cujo, publicado quando seu nome j era
reconhecido, que consiste em vrios fragmentos, s vezes de uma pgina, outras de uma frase,
cujo contedo gira em torno de trs eixos principais que prevalecem a cada trecho. O primeiro
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muito tem a ver com sua experincia como artista plstico, no qual h uma obsesso pela
transformao da matria, a mudana do estado fsico:
Pus o vidro derretido sobre o breu, que dava uma forma cncava ao feltro. O
problema era o que fazer como vidro agora, j que se ele prevalecesse eu teria uma
escultura de vidro. Bem, poderia derret-lo novamente, ou lanar asfalto frio para
recobri-lo, mas neste caso teria uma escultura de asfalto frio. Seria preciso, ento,
que os materiais se transformassem uns nos outros ininterruptamente e, o que mais
difcil, encontrar um nome para este material proteico, um nome que tivesse as
mesmas propriedades dele. (RAMOS, 2011, p. 9)
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No sei como coisas to dspares se juntam pelo nome. Podemos pr palavras juntas,
mas no os dias e as aves. Os animais tm ancas e suas ancas so cobertas pela pele.
Uma pedra to distante de outra pedra, vizinha, mas ns dizemos pedra, ns,
bichos de carne, que nem um corpo duro temos, s esta bolha fraca e molhada.
Dizemos rosas s rosas e nosso dedo aponta. Nosso sexo empina. A pedra de nossa
lpide e o cal que nos termina, estas tambm so coisas. Mas cuidado, a palavra
que junta tudo. Nossa roupa toca nosso peito, ela nossa. nossa agora, ao menos,
mas no, cuidado. Roupa a palavra entre ns e essa planta morta, tecida fio a fio
depois de arrancada e ns usamos, pendurada. (RAMOS, 2011, p. 79)
Assim, o autor no s mostra que o nome nada mais que vocabulrio, mas tambm
que por trs do mesmo h todo um significado e matrias e seres modificados, que se
transformam em coisas novas, seja pelo homem ou pela natureza. O nome, assim, como uma
pele que reveste as coisas, mas que pode significar qualquer coisa, j que tudo est propcio s
metamorfoses e s ressignificaes. E, se o nome a pele das coisas, o cujo a pele do
prprio nome, como antecipa Augusto Massi na orelha do livro de Nuno Ramos:
Nuno Ramos escreve um livro difcil de definir. Desde o ttulo o autor j revela este
gosto pela indeterminao, o desejo coerente de no nomear, de praticar uma espcie
de analfabetismo intelectual: pr tudo prova. Que ningum espere destes
fragmentos epifanias ou fulguraes, eles traduzem uma sabedoria baa [...]. Cujo
ganha corpos [...]. Tez, textos, tecido, as trs vozes entretecidas, costuradas por seu
prprio peso, por sua prpria espessura epidrmica. Cujo: a pele do nome. (MASSI,
2011, orelha do livro)
Essa alquimia que eu ia criando nos materiais o que tentei captar no Cujo. E desse
lugar j mais corpreo, j mais assentado, a coisa com a literatura voltou. Na
verdade, nunca parei de escrever. Para mim, escrever no difcil. Esse o grilo,
alis, porque no sei muitas vezes do que estou falando, para que estou escrevendo.
Parece que o impulso retrico s vezes maior do que aquilo que quero dizer. 4
Parte da resposta de Nuno Ramos pergunta: Cujo, seu primeiro livro, saiu em 1993, quando seu nome j era
reconhecido nas artes plsticas. Como fez para remover os antigos obstculos?.
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A esse mal-estar, a meu ver, corresponde a sensao vivida pelos prprios poetas de
estarem presos em uma espcie de impasse. Se valores tais como nacionalidade,
subjetividade, experimentao, novo, etc. no so mais totalmente adequados
ao sentido dos projetos dos jovens poetas, estes tambm no esto em condies
de oferecer respostas gerais. E, no entanto, a cisma est presente (SISCAR, 2010, p.
152).
Contudo, essa crise que deveria ser um impasse para os poetas, torna-se ela mesma o
contedo e, com isso, a estrutura de compreenso da produo potica contempornea:
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Sendo assim, a crise no deve ser vista pelo seu lado negativo, mas como uma forma
de renovao da literatura brasileira, uma vez que h a poetizao da crise, sendo ela mesma a
base da escrita contempornea.
Como no bastasse a dificuldade j mencionada da crtica em estudar a poesia
contempornea de um modo geral, devido ao carter particular e nico de cada autor, no caso
de Nuno Ramos essa dificuldade se intensifica, uma vez que sua produo literria se
caracteriza pela indeterminao das coisas, presente no s no contedo como na prpria
forma e estilo de escrita, como j tratado anteriormente.
Ao ser questionado, em entrevista, sobre essa inclassificao, o autor comentou:
2 Desintegrao e metamorfose
Junco abre um caminho para nos levar das areias de uma praia
em que as ondas s conseguem traar um mesmo movimento
pendular e enrijecido, rumo ao mar aberto onde tudo ainda
possibilidade.6
Resposta de Nuno Ramos pergunta: Ao receber o Prmio Portugal Telecom, voc disse que uma obra
inclassificvel e reafirmou sua incapacidade de ficar em um gnero s. Mas voc tambm diz que gosta de
manter o gnero em tudo que faz. mais importante manter os gneros ou quebr-los? Ou eles so dissolvidos
justamente para ser conservados?
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NESTROVSKI, S. Junto ao Junco. 2012, p. 70-71.
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E, se esses defuntos no so tragados pelo mar, a gua salgada ainda assim os deforma, como
acontece com o junco jogado na praia que transformado em farinha moda pela gua, na
primeira estrofe do mesmo poema:
Um junco jogado na praia
um junco dourado, o sol sua mortalha
sobre a rocha, farinha
moda pela gua.
(RAMOS, 2011, p. 13)
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Essa farinha moda se assemelha visualmente areia, figura constante nos poemas ao
longo de todo o livro, representando nele a ideia de desintegrao da matria, relacionada
tambm morte.
Levando em considerao que essa ideia representada por outras imagens, s vezes
at mesmo relacionadas tambm areia, como p e farinha, por exemplo, por motivos de
delimitao do objeto trataremos agora apenas dos poemas em que a palavra areia utilizada.
Isso acontece em 12 dos 43 poemas: 5.; 6.; 9.; 11.; 12.; 15.; 17.; 22.; 25.; 32.; 38. e 43.
Com exceo do primeiro poema citado (5.), no qual a areia aparece apenas como um
local definido da praia A proa da canoa / presa no assoalho / de areia [...] (RAMOS, 2011,
p. 19) , em todos os outros onze poemas ela usada como a imagem de algo disforme, que
ao mesmo tempo a origem e o destino de toda a natureza. Essa ideia proposta pelo prprio
autor em uma passagem de Cujo:
Vale lembrar que Nuno Ramos tambm relaciona o amorfo ao que mido: O ideal
que tenha reflexos e que no dure muito. A umidade favorece as duas coisas. (RAMOS,
2011[1993], p.41), logo a areia da praia um smbolo perfeito em suas concepes, uma vez
que est entre o molhado (mar) e o seco (terra), sendo sua parte seca tida como uma superfcie
frgil e que reveste e tenta proteger o que est vivo, como uma pele, e sua parte molhada, isto
, mida, funciona como agente transformador assim como o mar.
Lembrando que nessa anlise a areia representa a origem, o destino, a degradao, o
depsito de restos e o local de modificao, reproduzo aqui um trecho de :
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Esse p no incio da citao pode ser entendido como a areia deste estudo,
principalmente na passagem a prpria desintegrao da matria em partes minsculas vai
recobrindo as que esto inteiras, preservando-as, e eu acrescentaria aqui, desintegrando-as,
pois ao mesmo tempo que a areia funciona como pele protetora, funciona tambm como
agente degradante da matria.
Vale a pena citar o poema 32. de Junco como exemplo da areia (o p) sendo o que
origina as coisas, isto , aquilo que est na constituio bsica de toda a matria e ao mesmo
tempo o que a encobre e protege:
32.
As pontas
das coisas
saram da areia
Temos acima um exemplo do eu-lrico explicitando sua ideia da areia como origem
(As pontas das coisas saram da areia), isto , de como a areia a constituio bsica de
tudo e ao mesmo tempo as coisas so bem diferentes umas das outras (o olho, o sopro, o
rim).
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Esse poema retrata bem as questes levantadas neste trabalho, sendo abordada a
desintegrao das coisas, causada pela areia e pelo mar, o que leva explcita metamorfose
que um bicho morto provoca no bicho vivo que o come, sendo que esses dois se unem dessa
maneira. E, enquanto o bicho vivo come o bicho morto, ele come junto o que est perto, no
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caso caule, areia e sal. Tudo isso numa manh solar, ou seja, no cotidiano, sem que
ningum note ou pare para observar e refletir a respeito.
importante citar a presena metamrfica at mesmo no ttulo do captulo 12
Recobrimento, lama-me, urgncia e repetio, cachorros sonham? do livro , no qual
Nuno Ramos divaga sobre a morte, a desintegrao e a metamorfose com tonalidade trgica e
ao mesmo tempo objetiva, caracterstica de sua obra como um todo. Cita-se aqui um trecho
desse captulo, para que fique mais claro como se d essa narrativa:
Tudo que nico separou-se, mas aquilo que o viu partir quer que retorne, e tem
fora para isso uma lama genrica que perdeu alguns de seus filhos mas procura
por eles incansavelmente. Para sobreviver, aqueles que escaparam sacrificam as
camadas superficiais de seus prprios corpos, deixando que sejam atacadas, milnios
a fio, pela acidez, pelo vento solar, pelo suco gstrico da serpente, que vai aos
poucos derretendo estas camadas, espatifando-as em pequenos pedaos, e usam
depois estes fragmentos para esconder-se, vivendo debaixo do seu manto.[...] Estes
filhotes desgarrados so feitos do mesmo material da lama primavera, que os fareja
por cima e por baixo, mas sem conseguir determinar exatamente onde esto estas
poucas unidades, vivas ou imveis, que lhe escaparam. A causa dessa dificuldade
salvadora que a camada que os recobre, isoland0-os, feita da poeira das partes
externas de seus corpos transformada pouco a pouco em farinha, em pequenos pelos
e poros, pela presso constante da lama-me, tendo, portanto, uma composio
parecida com a dela, que confunde-se tentando detect-los. isto o que os salva e
isola, o fato de que a superfcie de contato aparece lama nebulosa como parte de si
mesma (RAMOS, 2008. p. 141-142).7
Para uma melhor anlise e entendimento da divagao do autor, vale a pena a leitura de todo o captulo, qui,
de todo o livro .
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um mosaico de caractersticas e tcnicas, formando coisas novas e que ainda tem muito a nos
dizer.
Referncias