Andrew Pyper - O Demonologista

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Para Maude

Milhes de criaturas espirituais andam na Terra


Invisveis, tanto quando estamos acordados,
como quando dormimos
JOHN MILTON
Paraso Perdido

Na noite passada tive o mesmo sonho. S que no um sonho. Sei disso porque, quando
comea, ainda estou acordada.
L est minha mesa. O mapa na parede. Os bichinhos de pelcia com os quais no brinco
mais, mas que no guardo no armrio para no magoar meu pai. Posso estar na cama. Posso
estar em p no meio do quarto, procurando uma meia perdida. De repente, no estou mais.
Desta vez eu no apenas vejo algo. Sou levada daqui para L.
Parada s margens de um rio em chamas. Milhares de marimbondos em minha cabea.
Brigando e morrendo dentro do meu crnio, seus corpos se amontoando por trs dos meus
olhos. Picando e picando.
A voz do meu pai. De algum lugar do outro lado do rio. Chamando por mim.
Nunca ouvi sua voz desse jeito. Ele est to assustado que no consegue disfarar, ainda
que tente (ele SEMPRE tenta).
O cadver passa boiando.
O rosto para baixo. Ento espero que sua cabea se erga, que mostre os buracos no lugar
dos olhos, que diga alguma coisa com seus lbios azuis. Uma das coisas terrveis que ele
poderia fazer. Mas ele apenas passa, como um tronco de rvore.
Nunca estive aqui antes, mas sei que real.
O rio a divisa entre este lugar e o Outro Lugar. E eu estou do lado errado.
H uma floresta escura aqui, mas no esse o problema.
Tento ir para onde meu pai est. Os dedos dos meus ps tocam o rio, e ele murmura
dolorosamente.
Ento h braos que me puxam para trs. Arrastando-me para as rvores. Parecem braos
masculinos, mas no um homem que coloca os dedos na minha boca. Unhas que arranham o
fundo da minha garganta. Pele que tem gosto de barro.
Mas um segundo antes, antes que eu esteja de volta ao meu quarto com a meia perdida na
mo, eu me dou conta de que estava chamando meu pai da mesma maneira que ele estava me
chamando. Dizendo a mesma coisa o tempo todo. No palavras que saem da minha boca
atravessando o ar, mas que saem do meu corao atravessando a terra, para que ns dois
possamos ouvi-las.
ENCONTRE-ME

Sumrio
Capa
Mdias sociais
Folha de rosto
Dedicatria
Epgrafe
Noite eterna
Capitulum 1
Capitulum 2
Capitulum 3
Capitulum 4
Capitulum 5
Capitulum 6
Capitulum 7
Capitulum 8
Capitulum 9
Capitulum 10
Capitulum 11
Capitulum 12

Capitulum 13
Capitulum 14
Capitulum 15
Capitulum 16
Capitulum 17
Capitulum 18
Capitulum 19
Capitulum 20
Capitulum 21
Capitulum 22
Atravs do edn
Capitulum 23
Capitulum 24
Posfcio
Agradecimentos
Crditos

Capitulum 1

CAPITULUM 1

As fileiras de rostos. Mais jovens a cada ano. claro, sou eu que estou ficando mais velho em
meio aos calouros que vm e vo, uma iluso, como olhar para o espelho retrovisor do carro e
ver a paisagem se afastar de voc, em vez de voc se afastando dela.
Venho dando esse curso h tempo suficiente para flertar com pensamentos como esse ao
mesmo tempo que falo para duzentos estudantes. hora de resumir as coisas. Uma ltima
chance para tentar convencer pelo menos alguns dos nervosinhos de laptop minha frente da
magnificncia de um poema ao qual eu devotei quase toda a minha carreira.
E agora chegamos ao fim, digo-lhes, fazendo uma pausa. Espero que os dedos se ergam dos
teclados. Respiro profundamente o ar viciado da sala de aula e sinto, como sempre, a
devastadora tristeza que acompanha as linhas finais do poema.
Algumas lgrimas eles derramaram, e logo as secaram;
O mundo estava frente deles, podiam escolher
Onde repousar, e a Providncia os guiava:
Eles, de mos dadas e passos lentos e hesitantes,
Tomaram seu caminho solitrio atravs do den.[1]
Com essas palavras eu sinto minha filha perto de mim. Desde que ela nasceu e mesmo antes,
como a simples ideia do filho que eu queria ter um dia , com Tess que eu invariavelmente
imagino estar, de mos dadas, deixando o jardim.

Solido, prossigo. isso que toda essa obra realmente significa. No o bem contra o mal,
no um esforo para justificar as atitudes de Deus para com os homens. Este o caso mais
convincente para provar mais convincente que qualquer um da prpria Bblia que o
inferno real. No um fosso escaldante, no um lugar acima ou abaixo de ns, mas em ns, um
lugar em nossa mente. Conhecer-nos a ns mesmos e, em troca, suportar a eterna lembrana de
nossa solido. Ser banido. Vagar sozinho. Qual o verdadeiro fruto do pecado original?
Individualidade! onde nossos pobres recm-casados so deixados: juntos, mas na solido da
autoconscincia. Por onde eles podem vagar agora? Qualquer lugar!, diz a serpente. Todo o
mundo lhes pertence! E ainda assim eles so condenados a escolher seu prprio caminho
solitrio. uma jornada terrvel, at mesmo atemorizante. Mas uma jornada que todos ns
temos de enfrentar, tanto hoje como naquela poca.
Aqui fao outra pausa, ainda mais longa. Longa o suficiente para haver o risco de acharem que
acabei, de algum se levantar, ou fechar seu laptop, ou tossir. Mas eles nunca o fazem.
Perguntem a si prprios, digo, apertando ainda mais a mo imaginria de Tess. Para onde
vocs iro agora que o den foi deixado para trs?
Imediatamente, um brao se levanta. um garoto no fundo da sala que eu nunca havia
chamado, no qual nem havia reparado.
Sim?
Essa pergunta vai cair na prova?
Meu nome David Ullman. Sou professor do Departamento de Ingls da Universidade de
Columbia em Manhattan, um especialista em mitologia e narrativa religiosa judaico-crist,
apesar de meu verdadeiro ganha-po, o texto cujo estudo crtico garantiu minha posio na Ivy
League[2] e convites para vrias inutilidades acadmicas em todo o mundo, ser Paraso
Perdido, de Milton. Anjos cados, a tentao da serpente, Ado e Eva, pecado original. Um
poema pico do sculo XVII que reconta eventos bblicos, mas com uma viso maliciosa, uma
perspectiva que indiscutivelmente confere simpatia a Sat, o lder dos anjos rebeldes que se
cansou de aturar um Deus mal-humorado e autoritrio, escapando para criar uma carreira
prpria em criar problemas para os seres humanos.
Tem sido uma maneira engraada (os devotos podem at chamar de hipcrita) de ganhar a
vida: passei minha carreira dando aulas sobre coisas nas quais no acredito. Um ateu estudioso
da Bblia. Um especialista em demnios que acredita que o mal uma inveno humana.
Escrevi ensaios sobre milagres leprosos curados, gua transformada em vinho, exorcismos
, mas nunca vi um truque de mgica que no conseguisse decifrar. Minha justificativa para
essas evidentes contradies que h coisas que tm um significado, cultural, mesmo sem
existir. O Diabo, anjos. Paraso. Inferno. Eles so parte de nossas vidas mesmo que nunca

tenhamos visto, e nunca vejamos, ou tocado nelas, provado que elas so reais. Coisas que nos
questionamos.
A mente onde eles habitam, e nela
Podemos fazer do inferno um paraso, do paraso um inferno[3]
Este John Milton, falando por meio de Sat, sua fico mais brilhante. E por acaso eu acredito
que o velho companheiro os dois velhos companheiros acertaram.
O ar do campus Morningside da Columbia est mido com o estresse das provas e a limpeza
apenas parcial de uma chuva em Nova York. Acabei de terminar minha ltima aula do primeiro
semestre, uma ocasio que sempre traz um alvio agridoce, a conscincia de que outro ano
acabou[4] (a preparao das aulas, as horas administrativas e as avaliaes quase terminadas),
mas tambm de que outro ano passou (e, com ele, mais um doloroso clique no hodmetro
pessoal). Apesar disso, ao contrrio de muitos dos resmunges mimados que me cercam nas
funes docentes e se excitam com inteis questes de ordem nas reunies de comit dos
departamentos, eu ainda gosto de dar aulas, ainda gosto dos estudantes que esto se deparando
com literatura adulta pela primeira vez. Sim, muitos deles esto aqui apenas na situao prAlgo que Vai Dar Dinheiro de Verdade pr-Medicina, pr-Direito, pr-Casamento com
algum rico , mas muitos ainda no esto fora de alcance. Se no do meu alcance, ento do da
poesia.
Agora so trs da tarde. Hora de atravessar o ptio de ladrilhos at a minha sala no prdio da
Filosofia, deixar l a ninhada de trabalhos de fim de ano atrasados, largados com muita culpa
em minha mesa na sala de aula, e depois ir para a estao Grand Central encontrar Elaine
OBrien para nosso drinque de encerramento anual no Oyster Bar.
Apesar de Elaine dar aulas no Departamento de Psicologia, sinto-me mais prximo dela que
de qualquer um de Ingls. Na verdade, sinto-me mais prximo dela que de qualquer um que
conheo em Nova York. Ela tem a mesma idade que eu quarenta e trs em boa forma, graas
a quadras de squash e meias maratonas , viva, seu marido levado por um derrame vindo do
nada h quatro anos, na mesma poca em que cheguei a Columbia. Gostei dela imediatamente.
Dotada de algo que passei a considerar um senso de humor srio: ela conta poucas piadas, mas
faz observaes sobre os absurdos do mundo com uma perspiccia que, s vezes, consegue ser
esperanosa e devastadora ao mesmo tempo. Alm disso, uma mulher de beleza calma, eu diria,
ainda que eu seja casado no presente momento, pelo menos e que admitir esse tipo de
admirao por uma colega mulher com quem ocasionalmente bebo possa ser, como o Cdigo de
Conduta da Universidade gosta de designar praticamente todas as interaes humanas,
imprprio.
Porm, nunca houve nada remotamente imprprio entre OBrien e eu. Nem um nfimo beijo

roubado quando ela toma seu trem na linha New Haven, nem uma especulao leviana sobre o
que poderia acontecer se ns corrssemos para o quarto de algum hotel em Manhattan para
saber, pelo menos uma vez, como seramos na cama. No represso o que nos impede de fazer
isso eu, pelo menos, no penso que seja , nem se deve, inteiramente, ao fato de ambos
honrarmos meus votos matrimoniais (j que ns dois sabemos que minha mulher os jogou pela
janela h um ano por aquele idiota presunoso da Fsica, o afetado adepto da teoria das cordas,
[5] Will Junger). Acho que OBrien e eu (ela s Elaine depois do terceiro martni) no
empurramos as coisas nessa direo por temer que isso possa corromper aquilo que temos. E o
que temos? Uma profunda, ainda que assexuada, intimidade, de um tipo que jamais conheci com
qualquer homem ou mulher desde a infncia, talvez nem mesmo naquela poca.
Ainda assim, creio que ns tenhamos uma espcie de caso, que vem durando quase todo o
tempo de nossa amizade. Quando estamos juntos, falamos de coisas sobre as quais no converso
com Diane h algum tempo. Para OBrien, o dilema de seu futuro: ela teme a perspectiva de
envelhecer solteira, ao mesmo tempo que reconhece ter se acostumado a ficar s, indulgente
com seus hbitos. Uma mulher cada vez mais incasvel, como ela mesma diz.
Para mim, a nuvem negra da depresso. Ou melhor, o que eu relutantemente sou obrigado a
chamar de depresso, assim como metade da populao mundial j se autodiagnosticou, ainda
que esse termo no parea totalmente adequado ao meu caso. Toda a minha vida, fui perseguido
pelos ces negros de uma inexplicvel melancolia, apesar da boa sorte que tive na carreira, do
casamento inicialmente promissor e da maior ventura de todas, minha nica filha: uma menina
brilhante e sensvel, fruto de uma gravidez que todos os mdicos disseram que nunca chegaria a
termo, o nico milagre que estou pronto a admitir como verdadeiro. Depois que Tess nasceu, os
ces negros se afastaram por um tempo. Mas quando ela passou da fase de aprender a andar
para o falatrio da escolinha, eles voltaram, mais famintos que nunca. Nem meu amor por Tess,
nem mesmo quando ela murmurava noite Papai, no fique triste, podia mant-los longe.
Havia sempre a sensao de que alguma coisa comigo no estava certa. Nada que se
percebesse externamente eu sou decididamente civilizado, como Diane me descreveu com
orgulho quando comeamos a namorar, o mesmo termo que ela agora usa com um tom de voz
que tem conotaes sarcsticas. Mesmo por dentro, sou honestamente livre de autopiedade e
ambies frustradas, um estado atpico para um acadmico de carreira. No, minhas sombras
vm de uma fonte mais elusiva que as apontadas nos manuais. Com relao aos meus sintomas,
so poucos, talvez nenhum, que posso marcar na lista de sinais de alerta dos cartazes do servio
pblico de sade mental pregados no metr. Irritabilidade ou agresso? S quando vejo o
noticirio. Perda de apetite? Sem chance. Venho tentando perder cinco quilos, sem sucesso,
desde que me formei. Problemas de concentrao? Eu leio poemas de Homens Brancos Mortos
e trabalhos de estudantes de graduao para viver concentrao meu negcio.
Meu mal mais uma presena indefinvel que uma ausncia que esgota todo o prazer. A
sensao de que tenho um companheiro invisvel me seguindo diariamente, esperando por uma

oportunidade, para conseguir um relacionamento mais prximo que aquele do qual j desfruta.
Quando criana, tentei em vo imputar-lhe uma personalidade, como se fosse um amigo
imaginrio do tipo que as outras crianas diziam ter. Mas meu seguidor apenas me seguia
ele no brincava, nem me protegia ou consolava. Seu nico interesse consistia e ainda
consiste em ser uma companhia melanclica, maligna em seu silncio.
Semntica professoral, talvez, mas para mim se parece mais com melancolia do que com o
desequilbrio qumico de uma depresso. O que Robert Burton chamou em A Anatomia da
Melancolia (publicada h mais de quatrocentos anos, no tempo em que Milton comeava a
esboar seu Sat) de aborrecimento do esprito.[6] como se minha prpria vida fosse
assombrada.
OBrien praticamente desistira de me mandar ver um psiquiatra. Ela j tinha se cansado de
ouvir sempre a mesma resposta: Para que, se eu tenho voc?
Eu me permito um sorriso neste momento, imediatamente apagado pela viso de Will Junger
descendo a escadaria de pedra da Biblioteca Low.[7] Acenando em minha direo como se
fssemos amigos. Como se o fato de ele estar fodendo minha mulher h dez meses tivesse
desaparecido de sua mente.
David! Podemos falar?
Com que esse homem se parece? Alguma coisa astuta e surpreendentemente carnvora. Alguma
coisa com garras.
Outro ano, ele diz assim que para na minha frente, teatralmente sem flego.
Ele me olha meio de lado, mostra seus dentes. So expresses como essa, acredito, que
contaram como fascinantes nos primeiros cafs com minha mulher depois da aula de ioga.
Essa era a palavra que ela usou quando eu fiz aquela primeira, e sempre intil, pergunta do
corno: Por que ele? Ela deu de ombros, como se no precisasse de uma razo e estivesse
surpresa de que eu quisesse uma. Ele fascinante, disse ela finalmente, pousando na palavra
como uma borboleta que escolhe uma flor para descansar.
Veja bem, eu no quero que isso seja difcil, comea Will Junger. Sinto muito pela maneira
como as coisas aconteceram.
E como foi?
O qu?
Como as coisas aconteceram?
Ele esticou seu lbio inferior, em uma imitao de dor. Teoria das cordas. o que ele ensina,
sobre isso que ele conversa com Diane, provavelmente, depois de ele ter sado de cima dela.
Como qualquer substncia, se voc reduzi-la ao essencial, ela se mantm unida por cordas
incrivelmente finas. Eu no entendo de substncias, mas acredito que apenas disso que Will
Junger feito. Cordas invisveis que levantam suas sobrancelhas e os cantos de sua boca, uma
marionete habilmente manipulada.
S estou tentando agir como um adulto, diz.

Voc tem filhos, Will?


Filhos? No.
claro que no. E nunca ter, sua criana egosta, respondo, enchendo o peito com o ar
mido. S tentando agir como um adulto? V se foder! Voc pensa que esta uma cena de
uma pea de teatro indie no Village qual voc leva minha mulher, um bando de mentiras que
um cara no New York Times disse que foram interpretadas de maneira bem naturalista. Mas na
vida real? Somos pssimos atores. Somos to canastres que chega a doer. Voc no sente isso,
mas a dor que voc est nos causando minha famlia est destruindo nossas vidas, o que
temos juntos. O que tnhamos.
Escute, David. Eu...
Eu tenho uma filha, continuo, atropelando-o. Uma garotinha que sabe que algo est errado,
e ela est escorregando para esse lugar escuro, e eu no sei como tir-la de l. Voc tem ideia
do que ver sua filha, que tudo para voc, desmoronar? claro que no. Voc vazio. Um
sociopata summa cum laude[8] que fala sobre literalmente nada para ganhar a vida. Cordas
invisveis! Voc um especialista do nada. Um vcuo que anda e fala.
Eu no esperava dizer tudo isso, mas fiquei contente em falar. Mais tarde, eu vou desejar
entrar em uma mquina do tempo e voltar a este momento apenas para soltar um insulto mais
bem elaborado. Mas, por ora, parece bastante bom.
engraado que voc diga isso sobre mim, afirma ele.
Engraado?
Irnico. Talvez seja o melhor termo.
Irnico nunca o melhor termo.
Essa ideia, por acaso, foi de Diane. Que ns conversssemos.
Voc est mentindo. Ela sabe o que eu penso de voc.
Mas voc sabe o que ela pensa de voc?
As cordas da marionete foram puxadas. Will Junger sorri um inesperado sorriso de triunfo.
Voc no est presente, ele diz. o que ela fala. David? Como eu posso saber como
David se sente? Ele no est aqui.
No h resposta para isso. Porque verdade. Essa foi a sentena de morte de nosso
casamento, e eu fui incapaz de corrigir o erro. No vcio em trabalhar, nem as distraes de
uma amante ou de um hobby obsessivo, nem a distncia que alguns homens tendem a assumir
medida que se arrastam para a meia-idade. Parte de mim a parte da qual Diane precisa
simplesmente no est mais aqui. Ultimamente posso estar no mesmo aposento, na mesma cama,
e ela tenta me tocar, mas como tentar alcanar a Lua. O que eu gostaria de saber, o que eu
rezaria para que me contassem se eu acreditasse que preces funcionam, onde est o fragmento
perdido. O que eu deixei para trs? O que, em primeiro lugar, eu nunca tive? Qual o nome do
parasita que se alimentou de mim sem que eu percebesse?
O Sol saiu, e de repente toda a cidade est banhada em vapor, as escadas da biblioteca

reluzindo. Will Junger franze o nariz. Ele um gato. Vejo isso agora, tarde demais. Um gato
preto que cruzou meu caminho.
Vai ser um dia quente, ele diz, partindo sob a nova luz.
Passo pela esttua em bronze do Pensador, de Rodin[9] (Parece que ele est com dor de
dente, disse uma vez Tess, inocentemente, sobre a obra) e entro no prdio da Filosofia. Meu
escritrio no terceiro andar, e subo as escadas segurando firme o corrimo, exausto pelo calor
repentino.
Quando chego ao meu andar e viro no corredor, sou atingido por uma sensao de vertigem to
intensa que me apoio na parede e agarro os tijolos. J tive, diversas vezes, ataques de pnico do
tipo que podem deixar algum momentaneamente sem flego, o que minha me chamava de
vertigem. Mas isso algo completamente diferente. Uma ntida sensao de estar caindo. No
de um lugar alto, mas dentro de um espao ilimitado. Um abismo que me engole, que engole o
prdio, o mundo, em um nico e implacvel trago.
De repente acaba. E me deixa feliz por no ter havido testemunhas do meu abrao na parede.
Ningum exceto a mulher sentada na cadeira ao lado da porta da minha sala.
Velha demais para ser uma estudante. Bem vestida demais para ser uma acadmica.
Inicialmente calculei que ela tivesse trinta e poucos, depois, chegando mais perto, ela parecia
mais velha, seus ossos muito salientes, o envelhecimento precoce de quem tem distrbios
alimentares. Na verdade, ela parece estar morrendo de fome. Uma fragilidade que seu conjunto
elegante e sua longa e tingida cabeleira negra no conseguem esconder.
Professor Ullman?
Seu sotaque , de forma genrica, europeu. Poderia ser francs, alemo ou tcheco com uma
pitada de ingls americano. Um sotaque que mais esconde que revela suas origens.
No estou atendendo hoje.
Claro que no. Eu li o aviso na sua porta.
Voc est aqui por causa de um estudante? Algum filho seu est na minha turma?
Estou acostumado com essa cena: o pai superprotetor, que assumiu a terceira hipoteca para
colocar o filho em uma excelente universidade, faz um apelo em favor de sua Grande Esperana
de nota B. Mas ainda que eu pergunte a essa mulher se este seu caso, eu sei que no . Ela est
aqui por minha causa.
No, no, ela responde, puxando uma mecha rebelde de cabelo que cobria seus lbios.
Estou aqui para lhe entregar um convite.
Minha caixa de correio no andar de baixo. Voc pode deixar qualquer coisa endereada a
mim com o porteiro.
Um convite verbal.
Ela fica de p. Mais alta do que eu esperava. E, apesar de ela ser to preocupantemente magra
como parecia como quando estava sentada, no h qualquer fraqueza aparente em seu corpo. Ela

mantm suas costas eretas, com os ombros alinhados e seu fino queixo apontado para o teto.
Eu tenho um compromisso no Centro da cidade, digo, apesar de estar esticando a mo para a
maaneta a fim de abrir a porta. E ela j est se movendo para perto para tambm entrar na sala.
Apenas um momento, professor, diz. Prometo no ret-lo muito tempo.
Meu escritrio no grande, e as estantes lotadas de livros e papis empilhados tornam o
espao ainda menor. Sempre achei que isso dava aconchego ao ambiente, como um ninho
acadmico. Esta tarde, no entanto, mesmo depois de eu ter desabado na cadeira por trs da
minha mesa e de a Mulher Magra sentar no banco antigo em que meus alunos pedem extenso de
prazos ou imploram por notas maiores, a sala sufocante. O ar escasso, como se tivssemos
sido transportados a uma altitude maior.
A mulher alisa sua saia. Os dedos longos demais. A nica joia que ela usa um anel de ouro
em seu polegar. To largo que gira sempre que ela mexe sua mo.
Uma apresentao seria normal neste momento, afirmo, surpreso com o tom decididamente
agressivo de minha voz. No decorre de uma posio de fora, percebo, mas de autodefesa. Um
animal pequeno se inflando para criar a iluso de ferocidade frente a um predador.
Meu nome verdadeiro uma informao que, infelizmente, no posso lhe dar, ela diz.
Claro que eu poderia usar algo falso um pseudnimo , mas mentiras de qualquer tipo me
incomodam. Mesmo as incuas mentiras da convenincia social.
Isso coloca voc em uma posio vantajosa.
Posio vantajosa? Mas isso no uma disputa, professor. Estamos do mesmo lado.
E que lado esse?
Ela ri. O dbil rudo de uma tosse mal controlada. Ambas as mos voando para cobrir a boca.
Seu sotaque. No consigo localiz-lo, digo, depois que ela se acalma e o anel do polegar
para de girar.
J vivi em muitos lugares.
Uma viajante.
Uma errante. Talvez seja o melhor termo.
Ser errante implica uma ausncia de propsito.
mesmo? Mas no pode ser. Pois foi isso que me trouxe aqui.
Ela desliza para a frente, de modo a ficar bem na ponta do banco, um movimento de talvez
cinco ou sete centmetros. Ainda assim como se ela tivesse se sentado na minha mesa, a
distncia entre ns indelicadamente pequena. Eu posso sentir seu cheiro agora. Um vago sopro
de palha, como em um celeiro, de gado recm-esquartejado. Por um segundo, acho que no
conseguirei inspirar de novo sem demonstrar nojo. E ento ela comea. Sua voz no disfara
totalmente o cheiro, mas de alguma forma diminui sua intensidade.
Eu represento um cliente que exige discrio acima de tudo. E nesse caso especfico, como
voc sem dvida ir compreender, devido a essa exigncia tenho de me limitar a s lhe repassar

as informaes essenciais.
O estritamente necessrio.
Sim, ela responde, como se nunca houvesse escutado a expresso. S o que voc tem
necessidade de saber.
Que vem a ser?
Sua percia necessria para ajudar o meu cliente a entender um caso em andamento que seja
do completo interesse dele. por isso que estou aqui. Para convidar voc, como consultor, para
fornecer sua avaliao e observaes profissionais, o que quer que voc considere relevante
para melhorar nossa compreenso do... Ela se interrompe, parecendo procurar uma lista de
palavras possveis em sua mente, finalmente decidindo-se pela melhor de uma seleo
inadequada. Do fenmeno.
Fenmeno?
Por favor, perdoe-me por usar um termo genrico.
Isso parece muito misterioso.
Necessariamente. Como eu disse.
Ela continua me olhando. Como se eu que tivesse de fazer as perguntas. Como se ela
estivesse esperando que eu levasse a conversa adiante. Ento eu o fao.
Voc se referiu a um caso. O que isso envolve, mais precisamente?
Precisamente? Isso est alm do que eu posso contar.
Por ser um segredo? Ou porque voc mesma no entende?
A pergunta justa. Mas se eu respondesse, cometeria uma deslealdade com relao ao que
fui encarregada de revelar.
Voc no est me revelando muito.
Sob o risco de exceder os limites de discusso que me foram determinados, deixe-me dizer
que no tenho muito a revelar. Voc o especialista, professor, no eu. Vim em busca de
respostas, do seu ponto de vista. No tenho nem um nem outro.
Voc viu esse fenmeno?
Ela engole a prpria saliva. A pele de seu pescoo to esticada que posso ver a saliva
passando pela sua garganta, como um camundongo embaixo de um lenol.
Sim, eu vi, responde.
E qual sua opinio sobre ele?
Opinio?
Como voc o descreveria? No profissionalmente, no como uma especialista, mas de forma
pessoal. O que voc pensa que ?
Ah, isso eu no posso dizer, responde, sacudindo sua cabea, os olhos baixos, como se eu
estivesse dando em cima dela e o galanteio fosse motivo para constrangimento.
Por que no?
Ela ergue os olhos. Porque no h um nome que eu possa dar a isso, ela diz.

Eu deveria pedir-lhe que partisse. Qualquer curiosidade que eu tive assim que a vi na porta da
minha sala se foi. Esse intercmbio agora no pode dar em nada alm de alguma revelao
sobre uma estranheza mais profunda, no do tipo de uma histria curiosa e divertida, nada
parecido com a proposta de uma mulher maluca para depois ser contada em jantares com
amigos. Porque ela no louca. Porque o habitual vu de proteo que sentimos quando temos
breves contatos com inocentes excntricos foi removido, e eu me sinto exposto. Por que voc
precisa de mim?, eu me ouo dizendo, no entanto. H um bocado de professores de Ingls por
a.
Mas poucos demonologistas.
No assim que eu me descreveria.
No? Ela d um sorriso irnico. Uma amostra de humor leviano que visa a distrair do quo
sria ela . Voc um renomado especialista em textos religiosos, mitologia e coisas do
gnero, no ? Especialmente as ocorrncias registradas de menes bblicas ao Adversrio?
Documentos apcrifos de atividade demonaca no mundo antigo? Minha pesquisa est errada?
Tudo o que voc est dizendo verdade. Mas no sei nada sobre demnios ou invenes do
gnero fora desses textos.
claro! No espervamos que voc tivesse experincias diretas.
Quem esperava?
Quem esperaria, naturalmente! No, professor, a nica coisa que solicitamos so suas
qualificaes acadmicas.
No estou seguro de que voc tenha entendido. Eu no acredito.
Frente a essa evidente falta de compreenso, ela apenas franze a testa.
No sou um clrigo. Nem um telogo, veja bem. Eu no admito a existncia de demnios,
como no admito a de Papai Noel, prossigo. Eu no vou igreja. No encaro os eventos
descritos na Bblia ou em qualquer outro texto sagrado como tendo realmente ocorrido,
especialmente aqueles que dizem respeito ao sobrenatural. Se voc quer um demonologista,
sugiro procurar o Vaticano. Talvez l haja algum que ainda leva esse assunto a srio.
Sim. Ela d outro sorriso irnico. Asseguro que h.
Voc trabalha para a Igreja?
Trabalho para uma agncia que foi contemplada com um alto oramento e um amplo leque de
responsabilidades.
Vou considerar isso como um sim.
Ela se inclina para a frente. Seus cotovelos nodosos fazem rudo ao se encostarem nos joelhos.
Eu sei que voc tem um compromisso. Voc ainda tem tempo para ir at a estao Grand
Central para cumpri-lo. Posso, ento, apresentar a proposta do meu cliente?
Espere a. Eu no disse que estava indo para Grand Central.
No. Voc no disse.
Ela no se move. Sua imobilidade, um sinal de nfase.

Posso?, ela pergunta de novo, depois de algo que pareceu um minuto completo.
Eu me reclino na cadeira, fazendo um gesto para que ela continue. No h mais porque fazer
de conta que eu tenho uma escolha nessa questo. Nos ltimos instantes, ela expandiu sua
presena na sala de tal forma que agora bloqueia a porta de maneira to eficaz como um leo de
chcara de boate.
Levaremos voc para Veneza o mais cedo possvel. Amanh, de preferncia. Voc ficar
alojado em um dos melhores hotis da velha cidade o meu predileto, ressalto. Uma vez l,
voc vai aguardar que lhe deem um endereo. No ser necessrio nenhum documento ou
relatrio de qualquer espcie. Na verdade, pedimos que voc no relate suas observaes a
ningum alm daqueles que estiverem aguardando no local. Isso tudo. Todas as despesas,
claro, sero pagas. Voo na executiva. Alm de honorrios relativos consultoria que,
esperamos, voc considere razoveis.
Ento, ela se levanta. D um passo, o necessrio para alcanar minha mesa, pega uma caneta
da caneca e escreve um valor no bloco de notas ao lado do telefone. O montante superior a um
tero do meu salrio anual.
Voc vai me pagar isso para ir a Veneza e visitar a casa de algum? Da dar meia-volta e
voar para casa? isso?
Basicamente, .
uma puta histria.
Voc duvida de mim?
Espero que voc no fique magoada.
Em absoluto. s vezes eu esqueo que, para algumas pessoas, preciso algum tipo de
prova.
Do bolso interno de seu blazer, ela retira um envelope branco. Ela o coloca na minha mesa.
No tem endereo.
O que isso?
Passagem de avio. Reserva pr-paga de hotel. Cheque visado no valor de um quarto dos
seus honorrios. O restante ser pago depois da sua volta. E o endereo no qual voc
esperado.
Deixo minha mo pairar sobre o envelope, como se toc-lo significasse fazer uma concesso
em uma questo crucial.
Naturalmente, voc pode levar sua famlia com voc, ela diz. Voc tem uma esposa? Uma
filha?
Uma filha, sim. No tenho tanta certeza sobre a esposa.
Ela olha para o teto, fecha os olhos. Ento recita:
Salve o amor conjugal, lei misteriosa, verdadeira fonte
Da prole humana, propriedade exclusiva

No Paraso de todas as coisas comuns.[10]


Voc tambm especialista em Milton?, pergunto quando ela volta a abrir os olhos.
No da sua categoria, professor. Sou apenas uma admiradora.
No h muitos admiradores que o tenham memorizado.
Experincia adquirida. um talento meu. Apesar de eu nunca ter tido a experincia que o
poeta descreve. Prole humana. No tenho filhos.
Essa ltima confisso surpreendente. Depois de ter-se mostrado to esquiva, ela revela
espontaneamente esse fato ntimo, de maneira quase triste.
Milton estava certo sobre as alegrias da prole, digo. Mas, pode acreditar, ele estava muito
enganado sobre o casamento tendo algo em comum com o paraso.
Ela acena com a cabea, ainda que, aparentemente, no ao que acabei de falar. Alguma outra
coisa se confirmou para ela. Ou talvez ela j tenha dito tudo o que tinha para dizer e est
aguardando minha resposta. Ento eu lhe dou.
Minha resposta no. Seja o que for, bastante curioso, mas muito alm da minha
competncia. No poderia aceitar de maneira alguma.
Voc no compreende. No estou aqui para ouvir sua resposta, professor. Estou aqui para
entregar um convite, tudo.
Certo. Mas temo que seu cliente v se decepcionar.
Isso raramente acontece.
Em um nico movimento, ela se vira. Sai da sala. Eu espero algum tipo de cumprimento
cordial, um Bom dia, professor ou um aceno de sua mo ossuda, mas ela apenas acelera pelo
corredor na direo das escadas.
Quando levanto da minha cadeira e estico a cabea pela porta para olh-la, ela j
desapareceu.

Capitulum 2

CAPITULUM 2

Coloco alguns papis de trabalho na minha pasta de couro e volto para o calor l fora, tomando
o caminho do metr. O ar pior aqui embaixo, selado a vcuo e adocicado pelo lixo. Isso se
soma aos odores humanos, cada um contando uma pequena tragdia de escravido ou desejo
frustrado quando passa.
Na viagem para o Centro eu penso na Mulher Magra, tentando recordar seus detalhes fsicos,
to vividamente presentes h apenas alguns minutos. Mas seja pelos inquietantes acontecimentos
do dia ou pelo fato de algum canto da minha memria recente estar com defeito, ela s me volta
como uma ideia, no como uma pessoa. E a ideia menos natural e mais assustadora, na
lembrana, do que me pareceu na ocasio. Pensar nela agora como a diferena entre ter um
pesadelo e contar para algum, na clara segurana da manh seguinte, seu enredo tolo e errtico.
Na estao Grand Central, subo as escadas rolantes e os tneis que do no saguo principal.
Hora do rush. Lembra mais pnico que uma viagem com um objetivo. E ningum tem o olhar
mais perdido que os turistas, que queriam vivenciar a emoo de estar em uma Nova York
afobada, mas que agora ficam apenas paralisados, agarrando suas mulheres e filhos.
OBrien est de p junto ao guich de informaes, abaixo do grande relgio dourado, no
centro do saguo, nosso ponto de encontro tradicional. Ela parece plida. Talvez irritada, com
toda razo, com o meu atraso.
Ela est olhando para o outro lado quando eu me coloco ao seu lado. Um tapinha em seu
ombro, e ela tem um sobressalto.
No sabia que era voc, ela se desculpa. Apesar de que eu deveria saber, no? Este o
nosso lugar.

Eu gosto disso mais, talvez, do que deveria a ideia de nosso lugar , mas descarto isso
como um mero escorrego nas palavras.
Desculpe pelo atraso.
Voc est perdoado.
Lembre-me mais uma vez, digo. Por que este o nosso lugar? algo de Hitchcock?
Intriga Internacional?[11]
E voc meu Cary Grant? Uma ideia autocongratulatria. No que a aparncia seja to
diferente, ento no faa bico. Mas a verdade que gosto de me encontrar aqui precisamente
por tudo o que h de no civilizado. apinhado de gente. As mscaras de cobia e desespero.
O pandemnio. Caos organizado.
Pandemnio, repito, distraidamente, mas muito baixo para que OBrien escute em meio ao
tumulto.
O que voc disse?
o nome que Sat d Fortaleza que ele constri para si e seus seguidores depois de ser
expulso do paraso.[12]
Voc no a nica pessoa que leu Milton, David.
claro. Voc fez isso bem antes de mim.
OBrien d um passo para trs e me olha com ateno. O que h? Voc parece trmulo.
Penso em contar a ela sobre a Mulher Magra, a estranha proposta apresentada em meu
escritrio. Mas h uma sensao de que isso significaria compartilhar um segredo que eu
deveria guardar mais que uma sensao, um alerta fsico, uma dor no peito e um ntido
aperto na traqueia, como se dedos invisveis tivessem atravessado minha carne para me
silenciar. Eu me pego murmurando algo sobre o calor, minha necessidade de uma bebida gelada.
para isso que estamos aqui, no?, diz OBrien, tomando-me pelo brao e conduzindo-me
pela multido do trreo. Sua mo no meu cotovelo traz frescor minha pele subitamente ardente.
O Oyster Bar fica no subsolo. Uma caverna desprovida de janelas embaixo da estao que, por
alguma razo, se presta a servir frutos do mar crus e vodca gelada. OBrien e eu passamos
nosso tempo aqui ruminando sobre o estado de nossas carreiras (a minha atingindo seu ponto
culminante, a desfrutar o status de principal especialista global a quase qualquer citao, e os
trabalhos de OBrien sobre o apoio psicolgico dos tratamentos espirituais garantindo sua
recente quase fama). Na maior parte do tempo, no entanto, no falamos de nada especfico,
como se fssemos feitos um para o outro, ainda que um casal improvvel.
Por que improvvel? Afinal de contas, ela uma mulher. Uma mulher solteira. Cabelo escuro
cortado curto, olhos azuis resplandecendo em uma pele morena irlandesa. Ao contrrio de mim,
ela vem de uma famlia com dinheiro, ainda que do tipo que no se exibe. Uma juventude em
campos de tnis em Connecticut, seguida de uma coleo, aparentemente muito fcil, de
elevados ttulos acadmicos, um bem-sucedido consultrio em Boston, e agora a Columbia,

onde apenas no ano passado ela deixou a chefia do Departamento de Psicologia, a fim de se
concentrar mais em sua prpria pesquisa. Um currculo vencedor, sem dvida. Mas no
exatamente o perfil da colega de bebedeira de um homem casado.
Diane nunca reclamou de forma direta sobre essa amizade. Na verdade, algo que ela
encorajou. No que isso a tenha impedido de ter cimes de nossas comemoraes no Oyster
Bar, de nossas idas a bares esportivos no meio da semana para ver jogos de hquei (tanto eu
como OBrien somos fs temporrios dos Rangers, apesar de nossos times de nascena serem
outros, ela o Bruins, eu o Leafs). Diane no tem outra escolha alm de aceitar OBrien, j que
negar essa amizade significaria admitir que Elaine me d alguma coisa que ela mesma no
consegue me dar. Que isso seja verdade e abertamente conhecido por ns trs o que torna a
volta para casa depois de uma noite fora com OBrien particularmente deprimente.
A ideia de terminar essa amizade como uma oferta de paz a Diane passou pela minha cabea,
como ocorreria com qualquer marido em um casamento agonizante que ainda deseja salvar,
contra todas as probabilidades e bons conselhos. E eu quero que funcione. Admito que
ultrapassei minha cota de fracassos o indefinido poo de escurido que est no fundo de
quem eu sou , mas nenhum deles intencional, nenhum est sob meu controle. Minhas
imperfeies no me impediram de fazer tudo o que consegui imaginar para ser um bom marido
para Diane. Mas a verdade : eu preciso de Elaine OBrien em minha vida. No como um flerte
crnico, no como um tormento sentimental do amor que poderia ter sido, mas como minha
conselheira, meu eu interior mais articulado, de cabea limpa.
Isso pode parecer estranho estranho , mas ela tomou o lugar do irmo que eu perdi
quando era criana. Se eu no pude fazer nada para evitar sua morte, agora no posso deixar
OBrien partir.
O que no est claro o que ela obtm dessa associao. J lhe perguntei, algumas vezes, por
que ela desperdia tantas de suas escassas horas livres com um miltoniano melanclico como
eu. Sua resposta sempre a mesma.
Estou destinada a voc, ela diz.
Conseguimos bancos livres no balco do bar e pedimos uma dzia de ostras Malpeque de
New Brunswick[13] e dois martnis para comear. O lugar lotado e barulhento como o salo
da Bolsa de Valores, mas mesmo assim ns imediatamente formamos um casulo com nossos
pensamentos compartilhados. Comeo relatando meu encontro com Will Junger, acrescentando
algumas rplicas mais mordazes s que eu realmente dissera naquela tarde (e deixando de fora
as confisses rudes sobre a preocupao com Tess). OBrien sorri, apesar de detectar meus
acrscimos (e provavelmente tambm minhas omisses), como eu sabia que ela faria.
Voc realmente disse isso tudo?
Quase, respondo. Eu adoraria ter dito isso tudo.
Ento vamos considerar que disse. Que fique registrado que a serpente traioeira, William
Junger da Fsica, est neste momento lambendo as feridas verbais infligidas pelo perigosamente

subestimado Dave Ullman, dos Livros Velhos.


Sim. Gosto disso, assenti, tomando um gole do meu drinque. uma espcie de superpoder,
quando se pensa nisso. Ter um amigo que aceita nossa verso da realidade.
No h realidade, e sim verses da realidade.
Quem disse isso?
Eu, tanto quanto sei, ela responde, tomando um gole.
A vodca, o prazer reconfortante de estar junto dela, a confiana de que, por ora, nenhum
perigo real pode afligir-nos tudo isso me faz sentir que no haveria problemas em ir mais
fundo e contar a OBrien meu encontro com a Mulher Magra. Estou limpando a boca com um
guardanapo, preparando-me para falar, quando ela se adianta.
Eu tenho uma notcia, ela diz, devorando uma ostra. o tipo de introduo que sugere uma
fofoca das boas, alguma coisa chocante e necessariamente sexual. Mas ento, depois de engolir,
ela anuncia: Tenho cncer.
Se houvesse algo em minha garganta, eu teria engasgado.
uma piada? Diga-me que uma maldita piada.
Por acaso os oncologistas do hospital Presbiteriano de Nova York fazem piadas?
Elaine. Meu Deus. No. No.
Eles no sabem ao certo onde comeou, mas est nos ossos agora. O que explicaria o fato de
eu estar jogando squash to mal ultimamente.
Eu sinto muitssimo.
Qual o mantra zen que est em todas atualmente? o que .
grave? Quero dizer claro que grave , qual o estgio?
Avanado, eles dizem. Como se fosse um curso de graduao ou algo parecido. Apenas um
cncer que j cursou os pr-requisitos pode se candidatar.
Ela est se saindo maravilhosamente bem em mostrar bom humor o fato de estar comigo
ajuda, posso perceber, assim como a coragem estimulante do martni , mas h um tremor no
canto de seus lbios que, percebo agora, um sinal da luta contra as lgrimas. E ento, antes
que me d conta, sou eu que estou chorando. Envolvendo-a com meus braos, derrubando
algumas conchas vazias de ostras do prato no cho.
Calma, professor, murmura OBrien em meu ouvido, apesar de me abraar to forte como eu
a estou abraando. As pessoas podem ter uma ideia errada.
E qual seria a ideia correta? Um abrao como esse nunca seria confundido com lascvia ou
parabns. uma recusa desesperada. Uma criana se agarrando pessoa querida na estao,
prestes a partir, lutando contra o inevitvel at o fim, ao contrrio da educada capitulao do
adulto.
Vamos conseguir ajuda, digo a ela. Encontraremos os mdicos certos.
No adianta mais, David.
Voc no vai simplesmente aceitar isso, vai?

Sim. Vou tentar. E gostaria de contar com a sua ajuda.


Ela me afasta. No por embarao, mas para que eu possa ver seus olhos.
Eu sei que voc est com medo, ela diz.
claro que estou com medo. uma notcia devastadora...
No estou falando do cncer. Estou falando de voc.
Ela respira fundo. Seja o que for que vai dizer, ela precisa de uma energia que talvez no
tenha. Ento seguro seus braos, para mostrar apoio. Eu me aproximo para escut-la.
Nunca consegui entender do que voc tem tanto medo, mas h algo em voc que o encurralou
de tal forma que voc nem percebe, ela diz. Voc no precisa me dizer o que . Aposto que
voc mesmo no sabe. Mas veja bem: eu provavelmente no estarei por perto quando voc tiver
de encar-lo. Gostaria de estar, mas no ser possvel. Voc vai precisar de algum. Voc no
vai conseguir se estiver sozinho. No conheo ningum que conseguiria.
Tess.
Tem razo.
Voc quer que eu recorra a Tess?
Eu quero que voc se lembre de que ela tem tanto medo quanto voc. De que ela tambm
pensa que est sozinha.
No sei se estou entendendo...
Sua melancolia. Ou depresso. Junto com nove entre dez das doenas que estudei,
diagnostiquei, busquei tratar. Chame como voc quiser, mas so s nomes diferentes para a
solido. o que deixa a escurido entrar. contra isso que voc deve lutar.
Solido. Como se OBrien estivesse em minha aula hoje, tomando notas.
No estou sozinho.
Mas voc pensa que est. Toda a sua vida voc pensou que estava apenas por sua conta e
como saber? Talvez voc estivesse. Isso quase engoliu voc. Se voc no tivesse seus livros,
seu trabalho, todos os escudos da sua mente, teria engolido. Ainda tenta fazer isso. Mas voc
no pode deixar que isso acontea, porque agora h Tess. E no importa o quanto ela v se
afastar de voc, voc no pode desistir. Ela sua filha, David. Ela voc. Ento voc tem de
provar seu amor por ela cada maldito minuto de cada maldito dia. Qualquer coisa a menos que
isso e voc ter falhado na Prova do Ser Humano. Qualquer coisa a menos e voc estar
realmente sozinho.
Mesmo aqui, no pfio ar-condicionado do Oyster Bar, OBrien tem calafrios.
De onde vem isso?, pergunto. Voc nunca falou nada parecido sobre Tess antes. Que ela ...
como eu. O que quer dizer que ela tem o que eu tenho.
No so apenas a cor dos olhos e a altura que acabam transmitidos de uma gerao para
outra.
Espere. Voc est falando como dra. OBrien, a psiquiatra? Ou como minha chapa OBrien, a
amigvel demolidora?

Essa pergunta, cujo objetivo era levar-nos de volta para um clima mais alegre, s parece
confundi-la. E no momento em que ela luta para encontrar uma resposta, a doena surge em suas
feies. A pele de seu rosto se repuxa, ela empalidece. Em uma transformao perceptvel
apenas para mim, ela agora tem uma aparncia que a deixa parecida com uma irm da Mulher
Magra. Uma semelhana que eu deveria ter percebido no momento em que a vi sentada na porta
da minha sala, mas da qual s me dou conta agora, em um momento de horror.
apenas algo que sei, ela finalmente responde.
Ficamos l mais algum tempo. Pedimos outra rodada, dividimos uma lagosta, como sempre
fizemos. Durante todo o tempo, OBrien habilmente evita que a conversa volte para o assunto de
sua doena, ou para seu insight estranhamente significativo sobre aquilo que vem me afligindo a
vida inteira. Ela disse tudo o que queria falar sobre o assunto. E h a convico tcita entre ns
de que nem mesmo ela tem certeza de todas as implicaes disso.
Quando acabamos, eu a acompanho at o andar principal da estao. Est mais calmo agora,
os viajantes habituais j deram lugar aos basbaques, s pessoas tirando fotos. Estou disposto a
esperar com OBrien na entrada da plataforma at que seu trem para Greenwich esteja pronto
para partir, mas ela me faz parar junto ao relgio dourado.
Vou ficar bem, ela diz com um sorriso dbil.
claro. Mas no h razo para voc esperar aqui sozinha.
No estou sozinha. Ela segura meu pulso com ambas as mos, em sinal de gratido. E
algum est esperando por voc.
Disso eu duvido. Nesses dias, Tess apenas se tranca em seu quarto logo aps o jantar e liga o
computador. NO PERTURBE em non na sua porta.
Algumas vezes as pessoas fecham a porta porque esto tentando encontrar uma maneira de
fazer voc bater nela.
OBrien solta meu pulso e some em meio a um grupo de turistas alemes. Eu a seguiria, ou
tentaria, mas ela no quer que eu o faa. Ento dou a volta e tomo a direo oposta, descendo o
tnel para a entrada do metr, o ar cada vez mais quente medida que me afasto da superfcie.

Capitulum 3

CAPITULUM 3

Saio da estao da 86th Street, no Upper West Side. onde ns vivemos, minha pequena
famlia, em meio a outras pequenas famlias da vizinhana, nossa rua quase sempre cheia de
pais segurando copos de espresso com leite enquanto empurram os mais modernos carrinhos de
beb. um clich perfeito para pessoas como ns: profissionais de elevada escolaridade que
tm preconceito contra os subrbios e a f de que vivendo aqui, em uma relativa segurana e ao
mesmo tempo a curta distncia do Central Park, do Museu de Histria Natural e de excelentes
escolas pblicas, daremos a nossos filhos nicos aquilo de que eles precisam para um dia se
transformarem em ns.
Gosto daqui, de uma maneira meio que de turista permanente. Cresci em Toronto, uma cidade
de escala e temperamento mais modestos, relativamente sem mitologias prprias. Morar em
Nova York tem sido, para mim, um processo de aperfeioar o fingimento. O fingimento meu
lar, no uma invencionice de romances, de filmes. Fingir que um dia quitaremos a hipoteca de
nosso espaoso apartamento de trs quartos em um edifcio de classe na 84th Street. Fico
sempre incomodado com o fato de que no temos, na verdade, condies de bancar o lugar,
ainda que Diane goste de ressaltar que ningum banca coisas, David. No estamos mais em
1954.
As coisas no esto bem entre ns e talvez no tenham mais conserto. Mas, enquanto sou
sacudido pelo velho elevador at nosso andar, repasso os acontecimentos desse estranho dia,
para decidir o que enfrentar, o que enterrar. Quero contar a Diane sobre OBrien, minha
conversa com Will Junger, a Mulher Magra, porque no h mais ningum com quem
compartilhar essas informaes especficas, cada uma muito ntima, a sua maneira, para

apresentar a um colega ou em um jantar com amigos. Mas tambm h a esperana de


impression-la. Revelar algo que a fizesse parar, despertar seu interesse, sua simpatia.
Postergar o inevitvel, o que talvez seja a nica coisa que eu possa fazer esses dias.
Abro a porta do apartamento e encontro Diane de p, esperando por mim, um copo de vinho
quase vazio na mo. O que seu semblante expressa? Que no importa a histria que eu contar,
no far a menor diferena.
Precisamos conversar, ela diz.
As duas palavras mais temidas na histria do casamento.
Estou falando srio.
Eu tambm.
Ela me leva para a sala de estar, onde outro copo de vinho (este cheio) me espera na mesa de
centro. Algo para atenuar o impacto do golpe que ela est prestes a dar. Mas no quero
atenuantes. Esse tem sido um problema dela esse tempo todo, certo? Que eu nunca esteja
presente. Bem, seja pelos estranhos e terrveis acontecimentos do dia ou por uma nova
resoluo que acabei de tomar, eu me sinto muito presente neste momento.
Estou indo embora, diz Diane. Seu tom de voz o de uma hbil provocao, como se este
fosse um momento de coragem para ela, de uma fuga audaciosa.
Para onde voc ir?
Para a casa dos meus pais em Cape[14] durante o vero. Ou parte do vero. At que eu
consiga meu prprio apartamento.
Dois apartamentos em Manhattan. Como vamos pagar por isso? Voc ganhou na loteria?
Estou sugerindo que no h mais ns, David. O que significa que estou falando de apenas
um apartamento. O meu.
Ento no devo confundir com uma separao moderninha.
No, acho que no.
Ela toma o ltimo gole de seu copo. Foi mais fcil do que ela imaginava. Ela est quase
acabando, e a noo do fim a deixa com sede.
Estou tentando, Diane.
Eu sei que est.
Ento voc pode ver que eu estou tentando?
Isso no impediu voc de ser como algum por quem passamos todos os dias e
cumprimentamos, mas nunca chegamos a conhecer. Voc pensa que conhece, mas, no fim das
contas, percebe que no.
No h nada que eu possa dizer?
Nunca foi essa a questo. Era sobre fazer. Ou no fazer.
No posso discutir com nada disso. E mesmo se pudesse, nunca fomos do tipo que discute.
Talvez devssemos. Algumas acusaes desagradveis a mais, alguns desmentidos e confisses
exaltados a mais talvez tivessem resolvido. Mas no sei muito bem como fazer isso.

Voc vai morar com ele?, pergunto.


Estamos pensando nisso.
Ento quando o vi hoje, quando ele esbarrou comigo, ele estava apenas esfregando isso na
minha cara.
Will no assim.
Voc est errada, Diane, tenho vontade de dizer. Ele exatamente assim.
E Tess?, pergunto.
O que tem ela?
Voc j contou para ela?
Eu pensei em deixar isso para voc, ela responde. Voc melhor com ela. Sempre foi.
Isso no uma competio. Somos uma famlia.
No, isso j acabou. Fim.
Ela tambm sua filha.
Eu no consigo me comunicar com ela, David!
Neste ponto, Diane surpreende a si prpria ao comear a chorar: soluos curtos, mas sonoros.
H algo errado com ela, ela busca se controlar. Nada que se possa perguntar a um mdico,
no disso que estou falando. Nada que aparea em um exame. Algo de errado que no se pode
ver.
O que voc pensa que ?
No sei. Estar com onze anos. Quase uma adolescente. O mau humor. Mas no isso. Ela
como voc, ela diz, um eco, ainda que mais raivoso, das palavras de OBrien. Os dois se
isolam nesse clubinho particular, intocvel.
Ela se sente s. Vejo isso agora to claramente como a mancha de batom na borda de seu
copo. Seu marido e sua filha compartilham alguma escurido secreta que, entre outros efeitos
colaterais, deixou-a de fora. Estou aqui como sempre estive , mas ela est sozinha.
Tess est no quarto dela?, pergunto. Diane responde que sim com a cabea.
V, ela diz, me despachando. Mas eu j parti.
Nem A Anatomia da Melancolia, de Robert Burton, em suas mil e quatrocentas pginas,
determina se a condio hereditria ou no. Suponho que eu e Tess formamos uma prova to
forte para uma resposta afirmativa como qualquer outro caso. No ltimo ano, ela visivelmente
mostrou sinais de distrao depressiva, uma reduo gradativa no nmero de amigos, a mudana
de interesses amplos para obsesses especficas, no caso dela um dirio no qual nunca tentei
dar uma olhada, em parte por respeitar sua privacidade, mas tambm por medo do que eu possa
encontrar l. essa alterao recente que mais assusta Diane. Mas a verdade que j faz tempo
que eu me reconheci em Tess. Dividimos um distanciamento do clamor da vida, que
continuamente tentamos reduzir, sendo apenas parcialmente bem-sucedidos.
Bato em sua porta. Ao ouvir sua palavra de permisso Entre! , eu a encontro fechando

seu dirio e sentando-se bem empertigada na beirada da cama. Seu cabelo longo, dourado claro
como um vinho Riesling, ainda na trana que fiz para ela esta manh. O cuidado com o cabelo
um territrio que reclamei para mim desde que Tess comeou a andar, minha pacincia sendo
muito maior que a de Diane para desfazer os ns ou cortar fora o chiclete seco. Uma tarefa
inusitada para um pai, talvez. Mas a verdade que temos algumas de nossas melhores conversas
no banheiro antes das oito horas, o ar enevoado por uma sucesso de banhos quentes, ns dois
decidindo o que seria melhor, um rabo de cavalo, uma trana simples ou duas fininhas.
Minha Tess. Olhando para mim e imediatamente lendo o que aconteceu na sala.
Ela se move. Abre espao para que eu sente a seu lado.
Ela vai voltar?, pergunta Tess, a abertura de nossa conversa ficando subentendida entre ns.
No tenho certeza. Acho que no. No.
Mas eu vou ficar aqui? Com voc?
No discutimos os detalhes. Mas sim, aqui continuar sendo sua casa. A de ns dois. Porque,
seja para onde for, em hiptese alguma irei sem voc.
Tess assente com a cabea como se isso o fato de eu ficar aqui com ela fosse tudo o que
ela precisasse saber. tudo o que eu preciso saber, tambm.
Precisamos fazer algo, digo depois de algum tempo.
Como terapia familiar? Esse tipo de coisa?
Tarde demais para isso, penso. Tarde demais para ns trs juntos. Mas ainda h voc e eu.
Sempre haver voc e eu.
Falo de algo divertido.
Divertido? Ela repete a palavra como se pertencesse a uma linguagem antiga, um termo
esquecido em nrdico antigo para o qual ela precisa de ajuda.
Voc acha que pode fazer as malas at amanh? Roupas para trs dias? Apenas entrar em um
avio e cair fora? Estou falando de passagens na primeira classe. Hotel quatro estrelas. Como
estrelas de rock.
T, ela diz. Srio?
Absolutamente srio.
Aonde vamos?
O que voc acha de Veneza?
Tess sorri. Faz tanto tempo que no vejo minha filha espontaneamente mostrar sua felicidade
e ainda mais decorrente de algo que eu tenha feito que, surpreendendo at a mim mesmo,
comeo a soluar.
A mais pura luz do Paraso, digo.
Isso aquele velho Milton de novo?
Sim. Mas tambm voc.
Aperto seu nariz. O pequeno belisco com o polegar e o indicador, que parei de tentar h
alguns anos, devido a suas irritadias reclamaes. Espero outra agora, mas, em vez disso, ela

reage da maneira que fazia quando era criana, quando esse era um dos nossos milhares de
jogos.
Piiiiiii!
Ela ri. E eu rio com ela. Por um momento, voltamos a ser tolos. De todas as coisas das quais
pensei que sentiria falta quando minha filha deixasse de ser criana, no tinha ideia de que a
permisso para eu mesmo agir como criana estaria no topo da lista.
Levanto e me dirijo para a porta.
Aonde voc vai?, ela pergunta.
Contar mame.
Conte daqui a pouco. Apenas fique um pouco comigo, ok?
Ento eu fico um pouco. Sem falar, sem tentar conjurar algum lugar-comum tranquilizante, sem
fingir. Apenas fico.
Nesta noite, sonho com a Mulher Magra.
Ela est sentada sozinha em uma sala de aula vazia, a mesma em que dou meu curso para o
primeiro ano, s que com algumas diferenas: ampliada, suas dimenses impossveis de
calcular medida que as paredes direita e esquerda se dissolvem na escurido. Estou de p
atrs de minha mesa, forando a vista para v-la. As nicas luzes so aquelas fracas que
iluminam os degraus dos corredores e os dois avisos de SADA DE EMERGNCIA, em vermelho,
nas portas do fundo, distantes como cidades alm de um deserto.
Ela est sentada no meio de uma fileira, na parte superior. A nica coisa que se v dela o
rosto. Enfermio, desnutrido. O rosto de um noticirio em preto e branco. A pele prestes a se
rasgar sobre seu nariz, as mas do rosto, o queixo frgil. Isso faz com que seus olhos fiquem
salientes, como se estivessem lutando para escapar.
Nenhum de ns fala. Ainda assim, o silncio preenchido com a sensao de que acabou de
ser dito em voz alta algo que nunca deveria ter sido dito. Uma obscenidade. Uma maldio.
Eu pisco.
E ela est parada na minha frente.
Sua boca se abre. A garganta mostra, fina como uma pele de cobra que acabou de ser
trocada. Um hlito ftido passando por ela e lambendo meus lbios, cerrando-os.
Ela solta o ar. E antes que eu possa acordar, ela emite um longo suspiro.
Um suspiro que se transforma em uma expresso que cresce em volume e fora, at se erguer
dela como uma espcie de poema.
Uma acolhida. Uma heresia.
Pandemnio...

Capitulum 4

CAPITULUM 4

Estou a mais de nove mil metros acima do Atlntico, o nico passageiro na cabine da primeira
classe com a luz de leitura acesa, com Tess cochilando de maneira irregular a meu lado, seu
dirio no colo, fechado, e, pela primeira vez desde que a Mulher Magra foi ao meu escritrio,
eu deixo minha mente divagar sobre o que provavelmente me espera em Veneza.
O dia de ontem me trouxe uma tal quantidade de complicaes que foi difcil decidir com qual
lidar primeiro: a doena terminal da minha melhor amiga, o fracasso do meu casamento de uma
vez por todas, ou o porqu de uma mensageira supostamente da Igreja me oferecer uma bolada
para visitar...bem, visitar o qu? O nico aspecto da minha percia especificamente citado por
ela foi meu conhecimento da obra de Milton. No, nem isso, o de ser um demonologista.
Mesmo aqui, em nosso hotel flutuante Boeing, no me sinto confortvel seguindo essa linha de
pensamento, de qualquer modo absurda. Ento eu retomo minha leitura. Uma pilha de livros,
todos daquele que , a bem da verdade, meu gnero predileto. O guia de viagens.
Eu sou o tipo de rato de biblioteca que leu sobre lugares mais do que viajou. E, em grande
parte, at prefiro ler sobre eles a visit-los. No que eu no goste de novos lugares, mas estou
sempre consciente da minha prpria estrangeirice, um aliengena entre os nativos. assim que
eu me sinto, no importa o lugar.
Ainda assim, estou ansioso para chegar a Veneza. Nunca estive l, e sua fantstica histria e
lendria beleza so coisas que mal posso esperar para compartilhar com Tess. Tenho esperana
de que a beleza do lugar v sacudir seu atual estado de esprito. Talvez a espontaneidade dessa
aventura e magnificncia do destino consigam trazer de volta o brilho dos olhos dela.

Ento eu continuo lendo sobre o passado empapado de sangue dos monumentos da cidade, as
batalhas travadas pela terra, pelo comrcio, pela religio. Enquanto isso, vou marcando os
restaurantes e lugares com a maior chance de agradar Tess. Serei para ela o guia de viagem mais
bem informado e personalizado que puder.
A viagem j comeou de maneira emocionante. Tess s contando nossos planos a Diane esta
manh (ela fez algumas perguntas, enquanto seus olhos exprimiam os clculos que fazia sobre
como isso lhe daria algum tempo no previsto com Will Junger), e ento a pressa em fazer as
malas, a ida ao banco para comprar euros (o cheque visado da Mulher Magra entrara sem
problemas na minha conta), e a ida de limusine at o aeroporto Kennedy, ns dois dando
risadinhas no banco de trs como dois colegiais brincando de pique.
Como no havia tempo para telefonar, no aeroporto mandei um torpedo para OBrien. Fiquei
pensando sobre o quanto contaria a ela da viagem. Descrever a Mulher Magra no teclado de um
celular no saguo de espera da primeira classe se mostrou impossvel, assim como falar dos
parmetros da minha consultoria em um caso acerca do qual nada fora revelado, alm dos
meus generosos honorrios. No fim, apenas escrevi:
Estou indo a Veneza (na Itlia, no na Califrnia) com Tess.
Volto em alguns dias. Explicao TK.
Sua resposta veio quase que imediatamente.
WTF?[15]

Eu me levanto para esticar as pernas. O zumbido e o murmrio do avio tranquilizam, como


um tero mecnico. Isso e os passageiros adormecidos nos dois lados me do a estranha
impresso de que sou um fantasma transatlntico, arremessado pelo espao, o nico esprito
alerta na noite.
Mas h outro. Um homem idoso de p em frente aos toaletes no fim do corredor, olhando para
seus sapatos maneira das pessoas educadamente entediadas. Quando eu chego perto ele me
olha e, como se em reconhecimento de um inesperado companheiro, sorri.
No estou s, ele diz guisa de boas-vindas. Seu sotaque tem um charmoso sabor italiano.
Seu rosto levemente enrugado, belo como o de um ator de comerciais.
Eu estava lendo.
? Eu tambm amo livros, diz. Os grandes livros. A sabedoria do homem.
Apenas guias de viagem, no meu caso.
Ele ri. Esses tambm so importantes! Voc no pode se perder em Veneza. preciso
encontrar seu caminho.
Todos os livros dizem que se perder em Veneza um de seus maiores encantos.

Errar pelas ruas, sim. Mas se perder? H uma diferena.


Estou considerando essa resposta quando o velho coloca a mo no meu ombro. Um aperto
forte.
O que o leva a Veneza?, pergunta.
Um trabalho.
Trabalho! Ah, voc um ladro.
Por que voc diz isso?
Tudo em Veneza roubado. As pedras, as relquias, os cones, as cruzes de ouro em todas as
igrejas. Tudo isso vem de outros lugares.
Por qu?
Porque no h nada l. Nenhuma floresta, nenhuma pedreira, nenhuma fazenda. uma cidade
que afronta Deus, construda unicamente sobre o orgulho dos homens. E ainda em cima da gua!
Poderia um tal ato de magia agradar ao Pai Celestial?
Apesar do significado devoto de suas palavras, de alguma forma o tom de sua voz comunicava
o oposto, em uma espcie de ironia barata. Ele no est nem um pouco preocupado com os
crimes do orgulho dos homens ou com o desgosto do Pai Celestial. Pelo contrrio, essas
coisas o excitam.
Por sobre meus ombros, ele observa os passageiros que dormem.
A abenoada inocncia do sono, observa. Ai de mim, ele no mais me visita trazendo o
consolo do esquecimento.
Ento seus olhos encontram Tess.
Sua filha?, ele pergunta.
De repente, sou atingido pela certeza de que interpretei esse sujeito da maneira errada. Ele
no um idoso encantador jogando conversa fora com um colega insone. Ele est fingindo.
Escondendo seus verdadeiros desejos. Bem como a razo pela qual ele est de p aqui, agora,
comigo.
Penso em vrias respostas No da porra da sua conta ou Nem olhe para ela , mas em
vez disso eu apenas me viro e volto direto para minha poltrona. Enquanto ando, eu o escuto
entrando no toalete e fechando a porta. Ele ainda est l quando me acomodo.
Finjo ler, mantendo o olho na porta do toalete. Mas, apesar de ficar acordado ainda por uma
hora ou mais, no o percebo sair.
Acabo por levantar e bater na porta, s que ela est destrancada. Quando abro, no h ningum
l dentro.
Veneza cheira.
A qu? Inicialmente difcil dizer, como se fosse um cheiro de ideias mais que de qualquer
fonte especfica. No de cozinha, de fazenda ou de fbrica, mas o fedor de imprio, de histrias
que se sobrepem, a mancha indelvel da corrupo. No Novo Mundo, quando uma cidade
cheira, voc pode dizer a qu. O rano adocicado de um conjunto de fbricas de papel. As

castanhas assadas e os arrotos de esgoto de Manhattan. Mas em Veneza, nossas narinas norteamericanas encontram, em vez disso, a desconhecida exalao das grandes abstraes. Beleza.
Arte. Morte.
Veja!
Tess aponta nosso vaporetto quando este chega para nos pegar, levando-nos ao longo do
Grande Canal at nosso hotel. Veja! praticamente tudo o que ela disse desde que aterrissamos.
E ela tem razo: h tanta coisa para ver, tantos detalhes nas fachadas de todos os prdios, que h
o perigo constante de perder novas provas do extraordinrio. Estou mais do que feliz em seguir
seu dedo indicador, minha filha perto de mim, compartilhando a alegria de acordar para um
mundo novo.
Embarcamos no vaporetto e este zarpa fazendo barulho, cortando as ondas de outros barcos de
passageiros e gndolas. Instantaneamente perdemos de vista qualquer sinal do moderno.
como a Disney World, observa Tess. S que de verdade.
Ento eu mostro algumas das realidades aprendidas no meu curso-relmpago no avio. Ali, o
cinzento Fondacco dei Turchi com suas imponentes janelas goivadas. E aqui a Pescheria, com
seu salo neogtico funcionando como mercado de peixe desde o sculo XIV. (Pelo cheiro,
parece que alguns desses peixes esto venda desde o sculo XIV, observa Tess.) Mais alm, o
Palazzo dei Camerlenghi, onde os evasores fiscais costumavam ficar presos no poro.
Parece que se passaram apenas alguns minutos, o Grande Canal se estreita, e passamos sob a
ponte de Rialto, sua arcada to carregada de turistas que eu temo que ela possa desabar sobre
ns em uma avalanche de cmeras digitais, culos escuros e pedra entalhada. Ento o canal faz
uma curva e se alarga novamente. Passamos debaixo da menos lotada ponte da Accademia, e
chegamos muito mais larga Bacia de San Marco; para alm dela, a cintilante amplitude da
laguna.
O vaporetto reduz a velocidade e se volta para o atracadouro do Bauer Il Palazzo, nosso
hotel. Valetes com casacos de botes dourados amarram nosso barco, pegando nossas malas e
oferecendo uma mo enluvada a Tess. Em apenas uma hora depois de nossa aterrissagem fomos
transportados de um lugar qualquer annimo, em um aeroporto internacional, quase
inimaginvel individualidade de um dos melhores hotis de Veneza ou mesmo de toda a
Europa.
Tess fica de p no atracadouro, tirando fotos mentais das gndolas, da laguna, da torre do
relgio de San Marco e minhas, estupefato com aquele lugar.
Contente de termos vindo?, pergunto.
No seja bobo, responde ela, segurando meu brao.
A Mulher Magra no estava de brincadeira.

Este lugar bacana, afirma Tess, observando o cho de mrmore polido marrom do saguo
do Bauer, os tecidos Bevilacqua e Rubelli[16] emoldurando as janelas. Quem est pagando
por isso?
No estou muito certo, confesso.
Uma vez feito o check-in, fomos para o quarto para nos revigorarmos. Para os quartos, digo:
dois quartos, dois banheiros e uma elegante sala de estar com portas-balco de trs metros de
altura que se abrem para uma sacada sobre o Grande Canal.
Tomamos uma ducha, trocamos de roupa e vamos para o restaurante do terrao, a fim de
almoar. De nossa mesa, ao olhar para um lado vemos a laguna; para o outro, toda a Praa de
San Marco. , como o guia havia alardeado, o melhor ponto de observao em Veneza. E o mais
elevado.
Sabe como eles chamam este restaurante? digo. Il Settimo Cielo. Adivinhe o que
significa.
No falo italiano, pai.
Stimo Cu.
porque fica no stimo andar?
Deem menina uma boneca kewpie!
O que uma boneca kewpie?
Esquea.[17]
O almoo chega. Truta grelhada para mim, spaghetti alla limone para Tess. Comemos
vorazmente, como se passar as ltimas horas olhando a nossa volta tivesse nos deixado com
apetites ferozes.
O que aquele lugar? pergunta Tess, apontando, do outro lado do canal, para a cpula
branca e as elegantes colunas da Chiesa della Salute.
Uma catedral, respondo. Na verdade, uma das igrejas da peste construdas no sculo XVII.
Igreja da peste?
Eles a construram como proteo quando uma doena terrvel a peste negra chegou a
Veneza. Dizimou quase metade da populao. Eles no tinham remdios para combat-la na
ocasio, ento acharam que a nica coisa a fazer era construir uma igreja e esperar que Deus os
salvasse.
E ele salvou?
A peste por fim acabou. Como teria acabado, com ou sem a construo de uma igreja. Tess
faz um novo rolo de espaguete com seu garfo.
Eu acho que foi Deus. Mesmo que voc no ache, ela diz de maneira decidida. A garfada
que ela pe na boca enche suas bochechas. Ela mastiga e sorri ao mesmo tempo.

Nessa noite, cansados mas excitados, samos para uma curta caminhada pelas tortuosas
calles[18] prximas ao hotel antes de ir para a cama. Eu tenho um senso de direo acima da
mdia (decorrncia do estudo dos mapas de guias de viagem) e posso ver nossa rota em minha
mente: trs lados irregulares de uma praa, e ento de volta. S que, logo depois de sairmos,
surgem curvas inesperadas, a rua se dividindo em duas fondamenta[19] menores cortadas por
um canal, forando-me a uma deciso esquerda? direita? que eu no imaginara que teria
de fazer. Ainda assim, continuo me aferrando ideia de dar a volta na praa e retornar ao
Grande Canal, mesmo que leve mais tempo.
Depois de meia hora, estamos perdidos.
Mas tudo bem. Tess est aqui. Segurando minha mo, sem se dar conta dos meus clculos
internos, minhas tentativas de distinguir o norte do sul. O velho no avio estava errado. Perderse em Veneza to encantador como os livros afirmam. S depende de quem anda a seu lado.
Com Tess, eu poderia ficar perdido para sempre. Ento me ocorre, com o forte peso da emoo,
que, enquanto eu estiver com ela, nunca estarei realmente perdido.
Quando estou prestes a abandonar toda a minha masculinidade e pedir informaes a algum,
chegamos porta do Harrys Bar. Hemingway teve uma mesa cativa aqui no inverno de 1950.
Essa informao do guia de viagem volta minha mente, junto com a lembrana, mais til, do
mapa da regio. No estamos muito longe. Provavelmente nunca estivemos. O Bauer est logo
ali.
Estamos em casa, digo a Tess.
Estvamos um pouco perdidos agora mesmo, no?
Talvez um pouco.
Pude ver pela sua cara. Voc faz essa coisa s vezes, diz, endurecendo o semblante, quando
est pensando.
Sua cara faz a mesma coisa.
claro que faz. Eu sou igual a voc, e voc igual a mim.
A verdade simples de sua observao faz com que eu pare, mas Tess continua a andar. Minha
guia, levando-me para a porta do hotel.
No dia seguinte o plano fazer um pouco de turismo, visitar o endereo que a Mulher Magra me
deu naquela tarde, tirar dos ombros o assunto de negcios e desfrutar desta noite e do dia de
amanh livres com Tess. Mas quando comeamos o passeio de gndola, Tess maravilhada com
o suave avano do barco, comeo a suspeitar que meu clculo do tempo esteja totalmente
errado. Eu deveria, em primeiro lugar, ter resolvido o assunto de trabalho (qualquer que seja
ele), porque minhas especulaes sobre o que me pediram para analisar aqui cresceram, at
mesmo durante o caf da manh, ao nvel de uma preocupao minuciosa. A estranheza de minha
tarefa foi meio que emocionante nas ltimas vinte e quatro horas, uma distrao de realidades
indesejveis. Eu podia ver o incidente se desenrolando como algo a ser contado na sala de aula,

uma anedota sedutora e amalucada nos queijos e vinhos de conferncias. Agora, no entanto, na
bruma dourada da luz veneziana, o nervosismo se transformou em pnico total.
Como a Mulher Magra definiu? Um caso. Um fenmeno. No a anlise de um texto descoberto
ou a interpretao de um verso (o nico tipo de trabalho de campo ao qual posso esperar
emprestar minha percia). Ela veio a mim pelo meu conhecimento do Adversrio, um dos muitos
nomes da Bblia para o Demnio. Documentao apcrifa de atividade demonaca no mundo
antigo.
Nada disso, claro, pode ser discutido com Tess. Ento eu banco o animado guia de viagem o
melhor que posso. Ao mesmo tempo que luto para me convencer de que este um dia apenas um
pouco fora da rotina, de que eu no devo temer o inusitado apenas porque me tira do meu habitat
de biblioteca, estudos e aulas. Na verdade, talvez dias como este tivessem me tornado uma
pessoa mais presente, como Diane queria que eu fosse. A excitao torna voc mais vivo.
Mas o fato que, medida que o Sol sobe no horizonte para se abater sem sombras sobre a
cidade velha, sinto cada vez menos excitao e mais medo.
Comeamos pelo Palcio do Doge. uma rpida caminhada do hotel at San Marco, e, assim
que entramos na ampla praa, percebemos a enorme estrutura a distncia. verdade o que um
dos guias de viagem disse: a longa arcada de colunas no andar trreo do imvel d ao andar
superior a iluso de flutuar. Eu no esperava tamanho volume, as toneladas de pedra, no
importa o quo graciosamente reunidas, a sugerirem histrias h muito enterradas de trabalho,
danos, vidas perdidas.
Entre essas vidas perdidas, conto a Tess, estavam as dos condenados, trazidos aqui para uma
ltima chance de salvao.
Por que eles foram condenados?, ela pergunta.
Eles fizeram coisas ruins. E ento tinham de ser punidos.
Mas foram trazidos para c antes?
o que contam.
E o que contam?
Eu lhe explico sobre a coluna. Segundo o livro, no Canal de San Marco, de frente para a ilha
de San Giorgio. Conte trs colunas, e l est: com sua base de mrmore gasta por todos os
prisioneiros e, por muitos sculos, turistas curiosos tentando o impossvel. O desafio colocar
suas mos para trs (j que as mos dos prisioneiros estariam atadas) e, de costas para a coluna,
tentar fazer a volta completa. Para os condenados, era uma cruel oferta de uma possvel
liberdade, j que, reza a lenda, o desafio nunca foi superado.
Tess acha que devo ir primeiro. Coloco meus dedos no cinto e subo na base da coluna. Um
passo em falso e deso.
No consigo, digo.
Minha vez!

As costas de Tess abraam o mrmore, ela me olha, rindo. Ento comea. Seus ps pouco
vacilam, avanando centmetro a centmetro. E avanam. Eu fico ali com a cmera do iPhone
pronta para filmar seu tombo, mas em vez disso ela desaparece medida que d a volta na
coluna. Um segundo depois ela reaparece, ainda tateando com os ps. S que agora o riso
desapareceu. Em seu lugar h um olhar sem expresso, que eu imagino ser uma enorme
concentrao. Coloco o iPhone de volta em meu bolso.
Quando ela retorna ao ponto de partida, fica ali parada, olhando para a gua, como se ouvindo
as instrues murmuradas pelas ondas que se sobrepem.
Tess! Um grito que visa a despert-la de onde quer que ela esteja, tanto como para
comemorar seu feito. Voc conseguiu!
Ela desce. E, ao recordar-se de quem sou eu e onde ela est, seu sorriso volta.
O que eu ganho?, ela pergunta.
Seu lugar na Histria. Aparentemente, ningum nunca fez isso antes.
E a salvao. Ganho isso tambm?
Tambm. Venha, digo, tomando sua mo, vamos sair desse sol infernal.
Atravessamos a praa j lotada de gente at a baslica. O Sol, distante mas abrasador, torna essa
travessia, ainda que curta, cansativa. Ou talvez o fato de acordar cedo depois de um longo voo
tenha me deixado mais fraco do que eu imaginava. De qualquer modo, quando entramos no
frescor da catedral, estou me sentindo inclinado, como se estivesse no deque de um barco a
vela.
Quando paro para mostrar o mosaico da cpula acima de ns, em parte uma desculpa para
recuperar meu equilbrio. As imagens contam a histria do Gnesis: Deus criando a luz, Ado
no jardim, a serpente e a tentao de Eva, a Queda. H uma assombrosa simplicidade nas
imagens, especialmente considerando-se o contexto da esmagadora arquitetura bizantina.
como se aqueles que a construram quisessem nos distrair da verdadeira substncia da f, em
lugar de represent-la. Ainda assim, aqui, neste receptculo acima de nossas cabeas, est a
narrativa familiar do Gnesis, em uma disposio semelhante de uma ilustrao de livro
infantil, e seu impacto de tirar o flego.
De incio, acho que isso uma resposta esttica: um homem que reverencia uma faanha
artstica superior. No entanto, no a beleza que me deixa petrificado. o sublime. A
inquietante presena da serpente e suas implicaes, no apenas na icnica Eva, porm nas
duas pessoas de verdade retratadas no mosaico, um homem e uma mulher tocados no por um
smbolo, mas pelo mal fisicamente encarnado. Um corpo longo, coberto de escamas verdes. A
lngua bfida.
E ento, no silencioso sepulcro da igreja, um murmrio junto a meu ouvido. Os olhos da
serpente focados no em uma mulher estendendo sua mo para uma ma, mas em mim.
Pai?

Tess tem as duas mos apoiadas nas minhas costas.


O que houve?
Comigo?, ela responde. O que houve com voc? Eu estou te segurando.
Desculpe. Por alguns segundos, eu me senti tonto.
Ela franze o rosto. Sabe que no vou dar detalhes e est pensando se precisa ou no ouvi-los
agora.
Vamos voltar para o hotel, sugere. Podemos descansar um pouco antes da sua reunio.
Ela sua filha, explica uma imaginria OBrien em minha mente enquanto Tess me conduz
para fora, de volta ao burburinho da praa. Ela conhece mais coisas do que voc jamais
poderia esconder.

Capitulum 5

CAPITULUM 5

Sinto-me muito mais forte depois do almoo. A bab que a recepo providenciou chega a
nosso quarto para cuidar de Tess enquanto eu estiver fora. Robusta, do tipo matrona, totalmente
registrada, conforme me assegurou o hotel. Confio nela de imediato. Tess tambm. As duas se
dedicam a aulas de italiano antes mesmo de eu chegar porta.
Volto logo, digo a Tess, que corre para me dar um beijo de despedida.
Arrivederci, papai!
Ela fecha a porta atrs de mim. E estou s. Somente quando me vejo em meio a outras pessoas
no ordenado vaivm do saguo que me sinto capaz de pegar o endereo que a Mulher Magra
me deu.
Santa Croce, 3.627.
Uma tpica indicao veneziana. Sem o nome da rua,[20] sem o nmero do apartamento, sem o
cdigo postal. Mesmo a mais exaustiva busca em mapas on-line s chegaria a me indicar
algumas centenas de metros quadrados onde isso pode ser. Para encontrar a porta na qual devo
bater, preciso estar no cho, buscando sinais.
Tomo um vaporetto no embarcadouro do hotel e volto pelo Grande Canal at a parada de
Rialto. A ponte est to cheia hoje como quando passamos sob ela ontem, e enquanto luto para
atravess-la para chegar ao sestiere Santa Croce, do outro lado, minhas relutncias sobre o que
quer que me espere no nmero 3.627 desaparecem, e eu sou apenas mais um entre os visitantes,
passando pelas barracas dos vendedores e perguntando Quanto custa? nas lnguas do mundo.
Ento comeo a seguir o caminho relativamente simples indicado no mapa que tiro do bolso.
H outras pessoas aqui tambm, lendo mapas como eu, apesar de elas diminurem medida que

prossigo. Logo, h apenas moradores voltando para suas casas com sacolas de mercado.
Crianas chutando bolas de futebol contra muros antigos.
Devo estar perto. Mas como saber? Apenas algumas das portas tm nmeros. E eles no
seguem muito bem uma ordem. Depois do 3.688 vem o 3.720. Ento volto, pensando que os
nmeros vo diminuir, s para descobrir que o 3.732 vem antes do 3.720. Durante quase todo o
tempo, fico tentando me lembrar de marcos passveis de guardar na memria visual: aquelas
jardineiras floridas com a gua escorrendo, os velhos carrancudos bebendo espresso na porta
de um caf. Mas quando me volto e sigo um caminho que tenho certeza de j ter percorrido, o
caf sumiu, no lugar da jardineira est uma camiseta pendurada para secar.
Somente quando decido voltar na direo (ou o que eu acredito ser a direo) de Rialto que
eu encontro.
Pintado em tinta dourada, j um pouco descascada, em uma porta de madeira menor que todas
as outras, est o nmero 3627. A porta deve ser a original, mantida desde o tempo em que se
construa para venezianos mais baixos, do sculo XVII. Seu tamanho, bem como os nmeros
diminutos, d a impresso de que h tempos ela vem fazendo o possvel para passar
despercebida.
Uma campainha brilha com uma lmpada acesa, mesmo agora, ao meio-dia. Toco duas vezes.
Impossvel saber se faz ou no algum som l dentro.
Rapidamente, a porta aberta. Do interior escuro, surge um homem de meia-idade vestindo
um terno de flanela cinza, quente demais para a temperatura do dia. Seus olhos piscam enquanto
me olham atravs das lentes sujas dos seus culos de armao fina, a nica mostra de desalinho
em sua aparncia excessivamente formal.
Professor Ullman, ele diz. No uma pergunta.
Se voc sabe meu nome, ento devo estar no lugar certo, respondo, com um sorriso cujo
objetivo convid-lo a contribuir com algum humor para reduzir a estranheza de nosso
encontro, mas nada em sua expresso indica que ele tenha registrado qualquer outra coisa alm
de minha presena em sua porta.
Voc est atrasado, ele diz em um ingls com sotaque, mas perfeitamente pronunciado. Ele
abre mais a porta e faz um movimento impaciente com a mo, indicando-me que entre.
Pelo que sei, no foi especificada uma hora para minha vinda at aqui.
Est atrasado, repete ele, um sinal de cansao em sua voz, sugerindo que ele est se
referindo a outra coisa que no o tempo.
Entro no que parece ser algum tipo de sala de espera.
Cadeiras de madeira encostadas na parede. Uma mesa de centro com revistas italianas que, a
julgar pelos filmes de terror e blockbusters citados nas capas, j tm alguns anos de idade. Se
for uma sala de espera, no h ningum esperando. E no h nada nenhuma sinalizao, ou
mesa de recepo, ou psteres explicativos que indique o servio prestado.

Sou um mdico, diz o homem de terno.


Este seu consultrio?
No, no. Ele balana a cabea. Fui incumbido. Por outros.
Quem?
Ele balana a mo. Recusa, ou, talvez, incapacidade de responder.
Estamos s ns aqui?, pergunto.
Neste momento, sim.
H outros? Em outras horas?
Sim.
Ento devemos esperar que eles cheguem?
No preciso.
Ele se dirige a uma de trs portas fechadas. Gira a maaneta.
Espere, digo.
Ele abre a porta, fingindo no ouvir. Esta revela uma estreita escadaria que leva ao andar
superior.
Espere!
O mdico se volta. Seu rosto no esconde a ansiedade. Est claro que ele tem um trabalho a
fazer conduzir-me escada acima , e que tem tambm o firme propsito de faz-lo o mais
rapidamente possvel.
Sim?
O que tem l em cima?
No entendo.
Voc vai me mostrar algo, certo? Diga-me o que .
quase possvel ler as vrias respostas que ele pode me dar atravs de seus olhos. O
processo parece causar-lhe dor.
para voc, diz, finalmente.
Antes que eu possa perguntar qualquer outra coisa ele comea a subir a escada. Seus
engraxados sapatos Oxford de couro batem nos degraus de madeira com uma fora
desnecessria, seja para evitar escutar mais comentrios meus, seja para alertar alguma outra
pessoa sobre minha presena.
Eu o sigo.
A escadaria quente e escura, o calor aumentando a cada degrau, as paredes de gesso midas
de condensao. como entrar em uma garganta. E, assim que me vem essa ideia, escuto algo: a
respirao amortecida de outra pessoa, alm de mim e do mdico. Ou, melhor dizendo, duas
respiraes, que se sobrepem, de maneira regular. Uma aguda e fraca, um estertor de morte.
Outra, um tremor em tom baixo, mais sentido que ouvido.
Est um breu quando chego ao segundo andar. Mesmo olhando para trs, de onde vim, mal se
v uma rstia de luz entrando pela porta da sala de espera.

Doutor?
Minha voz parece reanimar o mdico, que acende uma potente lanterna, que me cega.
Le mie scuse,[21] diz, dirigindo o facho de luz para o cho.
As lmpadas no esto funcionando?
A energia. Cortaram a energia do imvel.
Por qu?
No perguntei. Acho que porque..., ele busca encontrar a expresso, ...est fora da rede
de distribuio.
Analiso o rosto dele pela primeira vez. Seus traos so iluminados de baixo pela lanterna, de
modo que sua expresso de quase pnico uma caricatura.
Por que voc est fazendo isso?, pergunto. S isso j lhe provoca uma contrao de
desconforto.
No posso dizer.
Algum est forando voc a fazer isso?
No h ao sem escolha, ele responde, as palavras ditas em um sotaque levemente
recitado, como se ele citasse a resposta de outra pessoa mesma pergunta.
Estamos seguros aqui?
A urgncia queixosa de minha pergunta surpreende a mim, mas no ao mdico, que por um
segundo fecha os olhos como se quisesse evitar a lembrana de algum remorso irreparvel.
Ento, com um movimento sbito, ele se vira para pegar algo em uma mesinha atrs dele, e a
lanterna na sua outra mo gira, mostrando que estamos em um patamar onde h pelo menos trs
portas fechadas. O lugar no tem qualquer elemento de arte ou decorao. Apenas o ligeiro
brilho da umidade nas paredes brancas.
O mdico dirige a lanterna de novo para mim, com o raio de luz em meu peito. E eu o vejo
estendendo o que parece ser uma cmera de vdeo digital novinha em folha.
Para voc, ele diz.
Eu no quero.
Para voc.
Ele coloca a cmera em minhas mos.
O que eu devo fazer com isso?
No me disseram o que voc deve fazer. Apenas para d-la a voc.
Isso no era parte do acordo.
No h acordo, diz, retraindo-se como para evitar uma gargalhada grosseira. O que fazer
com ela, voc quem decide, professor.
O mdico comea a andar. Inicialmente, penso que ele vai me acompanhar para dentro de uma
das portas que abrir, ou talvez guiar-me para um andar superior. Mas ele passa por mim sinto
um cheiro de suor azedo neste momento e percebo que ele vai descer a escada.
Aonde voc vai?

Ele para. Joga a luz na porta mais distante.


Per favore, diz.
Voc vai esperar por mim? L embaixo? Voc estar aqui se eu precisar, certo?
Per favore, ele repete. Ele tem aquela aparncia amarelada de algum aguentando o mximo
possvel at chegar ao banheiro mais prximo, para poder vomitar.
Um minuto.
tudo o que eu penso enquanto me aproximo da porta.
Um minuto para fazer minhas observaes, relat-las a esse homem ou a quem quer que
esteja me esperando l embaixo, depois partir. Aproveitar o passeio, pegar o dinheiro e fugir.
Honrar minha promessa.
A verdade? Eu abro a porta e entro, no pelo pagamento da Mulher Magra ou para cumprir o
acordo que fiz com ela. mais simples que isso.
Eu quero ver.
Um homem sentado em uma cadeira.
Ele parece dormir. Sua cabea cada frente, o queixo encostado no peito. Apesar de no
permitir a visualizao de seu rosto, essa posio d uma boa viso de seus rarefeitos cachos
grisalhos, a pequena mancha cor-de-rosa no alto de sua cabea que o emblema da meia-idade.
Ele usa uma cala social, uma camisa de listras finas, mocassins de couro. Anel de casado. Sua
figura magra quebrada por uma barriga levemente avantajada, de algum acostumado boa
comida, mas ainda vaidoso o bastante para combater seus efeitos obrigando-se a fazer
exerccios. Tudo sobre ele, em uma avaliao inicial, passa a ideia de um homem de bom gosto
que no gosta de se arriscar, um executivo, um pai. Um homem como eu.
Mas ento, ao me aproximar mais um passo, outros detalhes, invisveis h um instante,
despontam.
Ele est empapado de suor. Sua camisa pregada em suas costas, manchas escuras nas axilas.
Sua respirao. Um estertor rouco to grave que parece que o ar vem de outro lugar que no
seus pulmes.
E ento vejo a cadeira: cada perna aparafusada no cho de madeira com parafusos industriais.
Tiras de couro rstico, do tipo usado em arreios de cavalo, envolvem o peito do homem,
segurando-o no lugar.
Um sequestro. Capturaram este homem e o mantm aqui para pedir resgate.
Ento para que me trouxeram aqui? No me pediram nada alm da minha presena.
Voc tambm ficar preso aqui. Ou pior. Deram-lhe a cmera para que voc grave algo
terrvel. Tortura. Assassinato. Algo que eles faro com esse homem.
Mas para que trazer uma testemunha, se isso o que sou, de to longe, de Nova York?
Eles tambm vo te sequestrar.
Para qu? No pode ser dinheiro. No tenho o bastante para que valha a pena. E se eles

querem me sequestrar, por que esperaram tanto tempo assim?


Intriga Internacional, de Hitchcock. Eles pegaram o cara errado.
Mas a Mulher Magra sabia exatamente quem eu era. Assim como sabia o funcionrio da
companhia area no aeroporto, o recepcionista do Bauer, todos aqueles que olharam meu
passaporte. Ela queria David Ullman aqui. E aqui estou.
Essa discusso interior, percebo, ocorreu com uma OBrien imaginria. Sinto uma dor no
peito quando penso que gostaria que ela estivesse aqui comigo agora. Ela teria respostas que a
OBrien da minha imaginao no tem.
Ligo a cmera.
No tento correr, no tento chamar a polizia. Por algum motivo, tenho a certeza de que no fui
trazido aqui para ficar preso em uma cadeira.
O homem minha frente a razo de eu estar aqui. ele o caso. O fenmeno.
Pressiono o boto REC e olho pelo visor da cmera, enquadro o homem na cadeira. No canto
do visor, o relgio digital comea a marcar o tempo medida que a gravao corre. Por um
segundo, o homem fica borrado at que o foco automtico se ajuste na tela. Ainda dormindo.
Testo o boto do zoom. Eu me aproximo para tirar do enquadramento o cho, as paredes.
1:24
Ento mais perto, de maneira que apenas a parte superior de seu corpo e sua cabea
preencham o quadro.
1:32
De repente, sua cabea se endireita, afastando da testa anis de cabelo molhado. Olhos
totalmente abertos, ao mesmo tempo alertas e brilhando de exausto. No importa quanto tempo
sua cabea descansou em seu peito, seus olhos no se fecharam. Ele nunca adormeceu.
Ele olha diretamente para a lente da cmera. E eu a mantenho firme. Gravando sua expresso
enquanto esta muda de um receio inexpressivo ao reconhecimento. No do ambiente, mas de
mim. Um sorriso se espalhando em seu rosto como se na chegada de um velho amigo.
Mas o sorriso se estende demais, sua boca se esticando at que nos cantos reabrem antigas
feridas da ltima vez em que ele fez esse mesmo truque. Todos os seus dentes esto expostos.
Ele rosna.
Luta contra as correias que o mantm preso. Jogando seu torso para um lado, depois para o
outro, testando a fixao da cadeira no cho. Os parafusos ficam no lugar, mas a fora com que
ele se debate provoca rangidos em toda a estrutura do ambiente, a luminria balanando sobre
minha cabea. Para o caso de cair, dou um passo frente. Um passo mais perto dele.
Uma ligeira pausa antes de ele jogar sua cabea na minha direo. Esticando seu pescoo e
ombros para a frente, o mximo que as correias permitem. E mais ainda. Seu corpo elastificado,
esticando-se para a frente muitos centmetros mais do que eu esperava que o comprimento
natural de sua espinha fosse permitir.

Dou um passo para trs em busca de uma distncia segura. Gravo o que parece ser minuto
aps minuto de seu ataque. Latidos. Baba de espuma branca. Vozes que emanam dele, rosnando
e sibilando.
Ele insano. Um louco violento em meio a uma crise prolongada.
Ou disso que eu tento me convencer. No funciona.
Tudo o que ele faz proposital demais para ser sinal de doena mental. Parece ser um
sofrimento aleatrio, sem sentido, de alguma corroso neurolgica avanada, mas no . O que
est sendo mostrado a revelao de uma identidade, ainda que estranha. Tem os padres, os
crescendos, as pausas dramticas que vm de alguma conscincia interna. Uma conscincia que
visa ser gravada pela cmera. Que visa a mim.
Mais perturbadores que seus choques mais explcitos a gargalhada feminina, o relincho
torturante, os olhos virados para trs revelando globos oculares to injetados que lembram
pequenos mapas de dor so os momentos em que ele repentinamente para e olha para mim.
Nenhuma palavra, nenhuma contoro. Sua persona normal, ou o que parece restar de seu
saudvel eu antigo: um homem mais ou menos da minha idade, incerto sobre seu paradeiro e
tentando imaginar quem eu sou, como ele pode mudar sua situao, encontrar o caminho de volta
para casa. Um homem inteligente.
E, a cada vez, sua expresso se altera. Ele se lembra de quem ele , e uma cascata de
sensaes imagens? emoes? memrias? volta para ele em um mpeto.
E nesse momento ele grita.
Uma voz que totalmente sua. A nota subindo em sua garganta, despedaando-se ento em uma
espcie de soluo. O pavor to instantneo e cristalino que o desumaniza de tal forma que nem
as suas mais grotescas exibies podem se igualar.
Ele olha para mim e estende sua mo.
Isso me faz lembrar de quando Tess tinha dois anos e estava aprendendo a nadar em uma
colnia de frias em Long Island. Ela dava um passo a mais na gua e sentia a areia
escorregando sob seus ps, ao mesmo tempo que uma onda a varria. A cada vez que ela cuspia
gua do mar, esticava sua mozinha para que eu a salvasse. Ela podia repetir essa experincia
de quase afogamento uma dezena de vezes numa mesma tarde. E ainda que eu a tomasse em
meus braos em uma frao de segundo a cada vez, seu desespero era sempre o mesmo.
A diferena entre Tess e este homem era que, enquanto Tess sabia qual era a razo de seu
medo a gua, a profundidade , ele no tem nenhuma ideia.
No uma doena. uma presena. Uma vontade mil vezes mais forte que a dele. No h luta.
Apenas a admisso do fato de que ele est condenado voltando renovada a ele a cada vez.
Finalmente, ele para. Cai em um sono que no sono.
4:43
Somente agora minhas mos comeam a tremer. Nos momentos anteriores, a cmera poderia
muito bem estar em um trip, to firme que eu a segurava. Agora, que o impacto de tudo o que vi

finalmente me atingiu, o enquadramento oscila com nauseabundos solavancos e correes, como


se pela imobilidade do homem a cmera tivesse adquirido vida.
5:24
Uma voz.
O som dela paralisa minhas mos. Enquadro novamente o homem na cadeira. Mas ele no se
move. A voz vem dele deve vir dele , mas no h nada em sua figura que confirme isso.
Professor Ullman.
Levo um tempo para perceber que a voz se dirigiu diretamente a mim. E sua lngua no o
ingls, mas o latim.
Lorem sumus.
Estvamos esperando.
A voz masculina, mas apenas em seu timbre, no em suas caractersticas. Na verdade, apesar
de se expressar de uma maneira semelhante humana, estranhamente desprovida de gnero.
Uma mdia desabitada, j que at o mais sofisticado sistema computadorizado de voz
percebido como o sucedneo de uma presena humana real.
Espero que a voz continue. Mas h apenas a terrvel respirao, agora em tom mais baixo.
6:12
Quem voc?
Minha voz. Soa metlica e arranhada como um velho disco em 78 rotaes.
Sua cabea se ergue novamente. Desta vez sua expresso no pertence nem ao louco que
rosnava nem a seu apavorado eu normal, mas a algo novo. Apaziguado. Seu rosto apresenta o
sorriso insinuante de um padre, de um vendedor ambulante. Ainda assim, com uma fria por
debaixo da superfcie. Um dio contido pela pele, mas no pelos olhos.
Ns no temos nomes.
Preciso contestar o que ele diz. Porque o que acontecer depois vai decidir tudo. De alguma
maneira eu sei disso. crucial no deix-lo perceber que eu penso que pode no ser uma
doena mental. Isso no real. A frmula para tranquilizar uma criana que l uma histria de
bruxas ou gigantes. Isso no existe. No se pode permitir que o impossvel leve vantagem sobre
o possvel. Voc resiste ao medo negando-o.
Ns, comeo, fazendo o melhor possvel para suavizar o tremor das minhas palavras.
Voc no quer dizer que seu nome Legio, pois voc muitos?
Ns somos muitos. Mas voc no vai encontrar ningum.
No estamos nos encontrando agora?
No com a intimidade de algum que voc vai conhecer.
O Demnio?
No o mestre. Algum que se senta com ele.

Estou ansioso.
Ele no responde nada. O silncio ressalta o vcuo da minha mentira.
Ento voc pode prever meu futuro? Continuo. Isso to comum como a iluso de algum
que se acredita possudo por espritos.
Ele faz uma pausa para respirar. Uma inspirao to profunda que, por um momento, esvazia o
aposento de seu oxignio. Fico em um vcuo. Sem peso e sufocando.
Suas tentativas de dvida no convencem, professor, diz.
Minha dvida real, afirmo, mas o tom de minha voz trai minhas palavras. Voc est
ganhando, o que este na verdade expressa. Voc j ganhou.
Voc precisa se preparar, aprendendo sobre o que assusta voc.
Por que no comear agora?
Ele sorri.
Logo voc estar entre ns, diz.
Nisso, parte de mim flutua para alm do meu corpo. Olha para baixo, para mim, para ver
minha boca perguntar algo que j perguntei.
Quem voc?
O homem nos deu nomes, apesar de no termos nenhum.
No. Voc no vai me dizer quem porque h poder em conhecer o nome de seu inimigo.
No somos inimigos.
Ento o que somos?
Conspiradores.
Conspiradores? E qual a nossa causa?
Ele ri. Um ronco grave e satisfeito que parece vir das fundaes da casa, do cho sob ela.
Nova York 1259537. Tquio 996314. Toronto 1389257. Frankfurt 540553. Londres 590643.
Ao parar, os olhos do homem giram para trs em suas rbitas para mostrar o branco injetado.
Faz uma pausa inacreditavelmente longa para respirar. Prende a respirao. Solta-a em palavras
que carregam o cheiro acre de carne carbonizada.
No dia 27 de abril... o mundo ser marcado por nossos nmeros.
A cabea cai frente. O corpo do homem fica imvel de novo. Apenas a respirao grave o
mantm aqum da morte.
8:22
Trs minutos. Essa a durao da conversa com ele. Com eles. Trs minutos que j parecem
todo um captulo da minha vida, um perodo como a Adolescncia ou a Paternidade, no qual as
condies de um indivduo so, fundamentalmente, redefinidas. O perodo de tempo entre 5:24 e
8:22 ser Quando eu falei com o homem em Veneza. E ser um perodo marcado pelo remorso.
Uma perda cuja dimenso ainda no posso adivinhar.
Hora de ir.
Se fui trazido aqui para testemunhar os sintomas da mente doente desse homem, ento j vi o

bastante. No fundo, o desejo de que eu nunca tivesse entrado nesse aposento to grande que
percebo que estou arrastando os ps para trs na direo da porta, aumentando, centmetro a
centmetro, a distncia entre eu e o homem adormecido, tentando fingir que eu poderia
retroceder nesse ltimo quarto de hora e apag-lo da minha memria to facilmente quanto
poderia apag-lo da cmera que grava minha retirada.
Mas no haver esquecimento. A cmera guardar as palavras do homem de maneira to
vvida como eu.
E ento ele faz algo que ser ainda mais impossvel de apagar da minha mente.
Ele acorda e ergue a cabea. Desta vez, devagar.
o rosto do homem, ainda que alterado de uma maneira que talvez s eu possa perceber.
Alguns ajustes fluidos, mnimos, em suas feies, que, em conjunto, mudam sua identidade de
quem quer que ele um dia tenha sido para outra pessoa, algum que eu conheo. Os olhos
levemente mais prximos, o nariz mais longo, os lbios mais finos. O rosto do meu pai.
Tento gritar. Nada sai. O nico som a voz com que o homem fala, meu pai vindo de dentro
dele. Sua acusao fervorosa, sua amargura. A voz de um homem morto h mais de trinta anos.
Deveria ter sido voc, ele diz.

Capitulum 6

CAPITULUM 6

Aos tropeos, saio do quarto e deso as escadas. Eu me recomponho, atravesso balanando a


sala de espera vazia nem sombra do mdico e chego rua estreita. Saio correndo do
nmero 3.627 sem olhar para trs, ainda que parte de mim queira faz-lo, uma parte que sabe
que, se eu olhar, o homem estar parado junto janela do segundo andar, livre das correias,
olhando-me com um sorriso irnico.
Somente depois que, totalmente sem flego, paro para descansar contra uma parede protegida
do sol que percebo que ainda estou com a cmera. E que ela ainda est gravando.
11:53
Meu polegar aperta o boto STOP . A tela se apaga.
De repente me dobro, agarrando-me aos tijolos. Uma dor em meus ossos, aguda e sbita.
Lembra todas as gripes que tive, mas h algo diferente, alm do fato de ter surgido
repentinamente. A melhor descrio que posso dar que no algo fisiolgico, nem ao menos
uma doena, mas um pensamento. A infeco de uma ideia virulenta.
Limpo meus lbios no ombro da jaqueta e continuo.
Tess.
Tenho de voltar para ela. Assegurar-me de que ela est bem, ento pegar o primeiro voo para
Nova York para qualquer lugar esteja eu com malria ou coisa pior. Temos de partir.
Em primeiro lugar, porm, tenho de descobrir como chegar ao Grande Canal. Qualquer parada
de vaporetto serve. No deve ser muito difcil. No que eu tenha alguma ideia de onde estou.
Mas se continuar andando, chegarei gua.
S que no funciona.

Estou ainda mais perdido do que estava quando sa para passear com Tess na noite passada. E,
em lugar do charme, o que sinto agora um pnico to esmagador que estou rangendo meus
dentes, em lgrimas. H a necessidade de voltar para Tess, a ansiedade de no saber onde estou,
a febre que retorce a calle minha frente, transformando-a em um tnel ondulante. E h tambm
a certeza de que estou sendo perseguido. Algo pesado e prximo, logo atrs de mim.
Comeo a correr de novo. Viro uma esquina. E, antes mesmo de ver o que h do outro lado,
sinto o cheiro. O mesmo cheiro de fazenda que cercava a Mulher Magra.
Mas no ela que est parada na viela minha frente. uma vara de porcos.
Uma dzia ou mais deles. Todos virados para mim, as narinas abertas. Impossvel, mas
inegavelmente ali. Com a aparncia detalhada demais para ser o efeito colateral do que quer
que esteja me envenenando. Conscientes demais de quem eu sou.
Os animais vm na minha direo. Guinchando como se escaldados. Seus cascos batendo na
pedra.
Eu me viro, contorno novamente a esquina. Espero que seus dentes encontrem a minha pele.
Que a rasguem e me comam.
Mas eles no aparecem. Olho do outro lado da esquina. O ramo[22] est vazio.
No pare para tentar compreender. Provavelmente voc nunca vai entender nada disso.
Minha OBrien interior de novo.
Apenas continue andando.
Ento eu continuo andando.
E no fim da prxima calle em que entro que estou certo de ter percorrido pelo menos uma
vez, talvez trs est o Grande Canal. Surgindo do nada, como se eu virasse uma pgina.
No pare.
Algo est acontecendo.
Mas ela est segura.
Isso no existe mais.
Como voc sabe?
Porque essa coisa sabe quem ela .

Capitulum 7

CAPITULUM 7

Sento na parte traseira do barco, buscando ar. Tento pensar apenas em Tess, em voltar para Tess,
em escapar com Tess. Dispensar a bab, ligar para a companhia area, chamar um taxi aqutico.
Deixar essa cidade que afunda para trs.
Mas outros pensamentos foram a passagem. Meu crebro de professor inventa notas de
rodap, interpretaes. O texto disponvel a ltima hora que vivi. E a leitura absurda,
incontrolvel que minha experincia reflete o que j foi escrito sobre encontros anteriores
entre homem e demnio.
Tento trazer mente o rosto de Tess. Em vez disso, aparece o homem na cadeira. Sua pele
saindo, para revelar a verdadeira face da coisa dentro dele.
Isso desvia meus pensamentos para outra coisa.
O demnio do geraseno.[23] Episdio contado duas vezes nos Evangelhos, por Lucas e
Marcos. Segundo eles, Jesus encontrou um homem nu, desabrigado, que vivia nas catacumbas,
um homem que h muito tempo tinha demnios. Ao ver o Cristo, o demnio suplicou para que
no fosse atormentado. Jesus perguntou seu nome, e este respondeu Legio, pois no era um
nico demnio, mas muitos a possurem o homem. E o Salvador os expulsou, fazendo com que
eles fossem para uma vara de porcos que passava.
Ento os demnios deixaram o homem e entraram nos porcos: e a vara se precipitou pelo
declive escarpado para o lago, e todos morreram na gua.[24]

O homem atado cadeira em Santa Croce, 3.627, amarrado como o homem possudo em Grasa
havia sido repetida e inutilmente amarrado, tambm afirmava no ter nome, ainda que composto
por muitos. E a vara de porcos correndo em minha direo no labirinto de ruelas. Eu tive uma
alucinao ou uma coincidncia muito alm do aleatrio.
Pare com isso!, afirma a OBrien em minha cabea.
Mas no posso parar.
Outro texto antigo, este apcrifo. O Compendium Maleficarum, escrito pelo irmo Francesco
Maria Guazzo em 1608, foi considerado pelo Vaticano e outras entidades teolgicas como um
guia bsico para assuntos de possesso demonaca e exorcismo. Guazzo estabelece cinquenta
maneiras de estabelecer se a possesso verdadeira, entre elas a sensao de formigas sob a
pele, previses acuradas de eventos futuros e vozes em sua cabea dizendo coisas alm de sua
compreenso, mas que so, todavia, verdadeiras.
Esses trs sinais especficos me vm mente, assim como meus sintomas semelhantes aos da
gripe, que incluem uma coceira enlouquecedora em todo o corpo que me levou a pensar em me
jogar do vaporetto para me refrescar nas guas do Grande Canal. E o que fazer com a lista de
cidades proferida pelo espectro dentro daquele homem, junto com os nmeros? Um cdigo?
Endereos? Telefones? Seja l o que for, eles vieram ligados a uma data que ocorrer dentro em
breve. O dia 27 de abril. Quando o mundo ser marcado por nossos nmeros.
E a voz de meu pai. Dizendo que deveria ter sido eu.
Eu lhe disse para no pensar, afirma OBrien.
Todos os pontos de referncia que aprendi dos guias de viagem passam por mim medida que
o vaporetto se aproxima do hotel, mas no consigo me lembrar dos seus nomes agora, ainda
menos das anedotas que aprendi sobre suas histrias. So apenas belas construes antigas.
Livres da reverncia que lhes prestei ontem, as fachadas insinuam hoje apenas falsidade, uma
decorao elaborada que visa a disfarar a luxria e a cobia de seus proprietrios originais.
Como consigo ver isso? Parece que, com minha gripe-que-no--gripe, veio uma viso de raios
X, capaz de olhar dentro das estruturas das pessoas que as fizeram e ver suas vis
motivaes. Uma perspectiva que traz consigo um terrvel desespero. A claustrofobia de ser
humano.
uma sensao que precede o retorno de uma lembrana. Algo que eu habilmente ignorei
durante os estudos e a vida em famlia, os milhares de pequenos truques de fuga que treinamos a
mente a executar todos os dias. Mas agora ela volta de uma maneira to vvida que sou incapaz
de remover suas imagens.
Meu irmo se afogando.
Seus braos se debatendo nas guas do rio atrs do chal de nossa famlia, sua cabea
submersa, sem vir tona. E ento seus braos param tambm. Ele desce o rio, seguindo a
correnteza. Mais lentamente que esta, como se seus ps se arrastassem no leito do rio, resistindo
mesmo na morte.

Eu tinha seis anos.


Senhor Ullman?
Algum est parado junto a mim. Um homem de terno preto, esticando o brao.
Sim?
Bem-vindo de volta ao Bauer. Aproveitou sua tarde?
Subo correndo para nossa sute. O que levaria um ou dois minutos parece tortuosamente mais
demorado. O que prolonga esse tempo so as novas e horrveis imagens do que vou encontrar no
quarto quando abrir a porta.
Tess ferida.
Tess rosnando e xingando como o homem naquele aposento, a bab incapaz de cont-la.
Tess desaparecida.
Falhei com ela. Fui enganado, enviado a uma casa em Santa Croce s para despistar. O
objetivo no era gravar um fenmeno, mas separar-me de minha filha em uma cidade
estrangeira, para que pudessem lev-la embora.
Ainda assim, quando escancaro a porta de nossa sute, ela est l. As portas-balco da sala de
estar totalmente abertas, o Grande Canal cintilante l fora. Tess escreve em seu dirio no sof, a
bab acompanha uma novela, sem som, na TV.
Pai!
Tess corre para mim. Ela me presenteia com um abrao que quase o bastante para acabar
com minha doena.
Voc est quente, ela diz, tocando meu rosto.
Vou ficar bem.
Seus olhos.
O que tm eles?
Eles esto, sabe, muito vermelhos.
Apenas um pouco de gripe. No se preocupe, querida.
A bab est atrs de Tess, tentando manter o sorriso. Mas ela tambm se mostra aflita com
minha aparncia. Um olhar para o espelho me faz perceber o motivo.
Obrigado. Grazie.
Dou-lhe um mao de euros de quase o dobro do valor acordado, mas ela pega as notas com
uma certa relutncia, como se aquilo que me aflige possa ser transmitido a ela pelo papel.
Quando ela sai, digo a Tess que temos de ir embora.
Porque voc est doente?
No, querida. Porque... no gosto daqui.
Eu gosto daqui.
No o lugar. O que quero dizer..., comeo, tentando pensar em uma mentira palatvel.
Decido, em vez disso, falar a verdade. Quero dizer que no sei se estamos seguros.

No quero assust-la. E ela no est assustada. Seu rosto mostra alguma outra coisa, que no
consigo decifrar. Algo como determinao. Uma careta que mostra vontade de brigar.
Seja o que for, minha culpa. Que diabos eu estava pensando ao dizer isso?
A resposta que no fui eu que disse isso. E sim a coisa que me seguiu at aqui. Um ser que
no eu nem Tess est neste quarto.
Faa suas malas, eu digo. Tenho ligaes a fazer.
Talvez seja a concentrao necessria para, pelo iPhone, ligar para as empresas areas, a fim de
encontrar um voo partindo na mesma noite (tendo sorte com a Alitalia para Londres, e ento
com a British Airways para Nova York). Ou talvez seja apenas uma questo de me distanciar do
homem no 3.627. De qualquer maneira, sinto-me melhor quase instantaneamente. A brisa que
entra pelas portas abertas refresca o suor em minha nuca, e meu estmago se acalma. O que
melhor ainda, os pensamentos sombrios que me afligiram quando voltava no vaporetto bateram
em retirada, deixando-me mais alegre do que me lembro de ter estado nas ltimas semanas. O
dia foi estranho? Certamente. Uma conspirao produzida no inferno? Difcil.
Mas e a cmera? Quando acabo com os telefonemas, eu a vejo sobre a mesa de centro. O olho
da lente me encarando. Dentro da mquina est o homem naquele aposento. Rangendo os dentes
e se debatendo. Mas tambm as cidades e os nmeros. A voz sem vida. Meu pai.
Penso em deix-la ali, mas rapidamente a coloco na mala, enterrando-a sob minhas meias,
como se o fato de escond-la pudesse anular seu contedo. Estou muito aturdido no momento
para explicar como sei disso, mas o que est documentado ali pode ser importante. No que eu
jamais v olhar seu contedo de novo. Mas o acadmico dentro de mim o arquivista, o
opositor iluminado de qualquer destruio de registros histricos no gosta da ideia de que
isso desaparea. Assim como qualquer texto, pode ter algo crucial a dizer que no evidente na
primeira leitura.
Fecho minha mala. Penteio os cabelos com os dedos.
Adeus sute de hotel gloriosamente cara. Adeus magnfica Chiesa della Salute, enquadrada
pela janela como um carto-postal. Adeus Veneza. No vou voltar. E quando a prxima peste
vier, v e construa outra igreja. Curem doenas ou no, elas certamente so lindas.
Tess? Hora de partir, docinho.
Empurro a mala at a sala de estar, esperando encontrar Tess ali. Ela no est l, mas sua mala
sim. A ala puxada, mas a mala deitada no cho, como se tivesse sido abandonada.
Tess?
Olho seu quarto. Os dois banheiros. Abro a porta da sute e vou at o hall vazio.
Tess!
A janela da sala de estar. As portas-balco abertas, as cortinas ondulando na brisa morna.
Corro para a sacada, olho para baixo. As chegadas e partidas do embarcadouro do hotel. Mas
nada de Tess.

Chamo a recepo. o que eu deveria ter feito. Mandar a equipe do hotel olhar em todos os
lugares ao mesmo tempo. A polcia tambm. Se ela deixou o hotel, em um instante estaria
perdida no labirinto que a cidade.
No fique correndo de um lado para outro. Pense. Tenho de ordenar os prximos passos. O
que fizer agora vai decidir tudo...
Ela est no telhado.
A voz de OBrien me interrompe de novo. S que desta vez no minha OBrien imaginria,
mas, de alguma forma, a real. Minha amiga aqui comigo.
Il Settimo Cielo. V, David. Agora.
Enquanto saio em disparada pela porta e subo correndo as escadas, comeo a pensar se essa
voz, entre todas as vozes do dia, digna de crdito. Poderia ser uma mentira. Talvez tudo o que
eu tenha escutado naquele aposento no 3.627 tenha sido uma mentira.
Mas esta verdadeira.
Eu corro para o restaurante, no terrao do hotel, e l est ela.
Minha filha, de p na beira do telhado, de costas para o canal. Seus olhos encontram os meus
em meio multido de garons e fregueses em pnico.
Tess!
H algo de oficial em meu grito eu sei o nome dela que faz com que a multido se
afaste, silenciando os pedidos para chamar a polcia, para que algum fizesse algo. Isso permite
que eu me aproxime no que espero ser um ritmo calmo, meus passos to firmes quanto possvel.
Todo esse tempo os olhos de Tess esto em mim. Mas medida que me aproximo, vejo que
estou errado. So seus olhos, azuis como os meus. Mas no Tess que olha atravs deles. No
minha filha que est de p na beira do telhado, os braos estendidos para o lado, os dedos
abertos como para sentir o vento passando entre eles. H uma rigidez em sua postura que trai
uma falta de familiaridade com o equilbrio e a fora. Sua postura a de algum limitado por
uma priso de ossos e pele. O corpo dela, mas no ela.
Quando estou perto quase o suficiente para toc-la, ela se move. Estica uma das pernas para
trs, de modo que fica equilibrada em um p, o outro vacilando no ar.
O objetivo fazer com que eu pare. Funciona.
Ol, David.
Uma voz completamente diferente desta vez. Masculina, comedida, a pronncia agradvel que
marca um desejo de sofisticao. Uma voz no muito diferente daquelas que ouvi em
conferncias na universidade, ou das de parentes de estudantes que frequentam clubes chiques e
doam dinheiro a fim de ter seus nomes nos prdios do campus.
Voc aquele que disseram que eu ia encontrar, digo.
Ns nos tornaremos muito prximos. No amigos, talvez. No, certamente no amigos. Mas
certamente prximos.
Ele baixa a perna de Tess, de modo que agora ela est de novo sobre os dois ps. Mas, para

mostrar que isso no um gesto de concesso, ambos os ps recuam dois centmetros. Isso
deixa seus calcanhares para fora da beirada do prdio.
Deixe-a ir.
Ele responde no que parece a voz de Tess, mas no . A mesma expresso, a mesma entonao
que ela usou quando eu disse, h menos de uma hora, que queria deixar Veneza. Uma imitao
perfeita, mas destituda de vida.
Eu gosto daqui.
Por favor. Farei o que voc quiser.
No se trata de eu pedir a voc que faa algo, diz, falando novamente em sua prpria voz.
Isso para voc, David. Uma jornada de sua autoria. Como um errante.
Essa palavra de novo. Errante.
O coroa no avio usou esse termo tambm, errar pelas ruas. E a Mulher Magra disse isso
sobre ela, no foi? Que ela no era uma viajante, mas uma errante. Mesmo naquele momento eu
percebi que esse termo tem um significado especial para Milton. Sat e seus lacaios erram pela
Terra e pelo inferno, autodirigidos, mas sem qualquer destino. Sem razes, sem amor.
E ento, como que lendo meus pensamentos, a voz cita Paraso Perdido.
Erro por esse deserto sombrio, pois meu caminho
Jaz atravs de seu imprio espaoso at a luz
Sozinho, e sem guia, meio perdido, eu busco...[25]
Ento me diga, afirmo, minha voz traindo o nervosismo. O que voc est procurando?
Prometo que vou ajud-lo a encontrar.
J encontrei o que procurava. Encontrei voc.
Os ps de Tess recuam mais um centmetro. Todo o seu peso agora est nos dedos, como um
atleta de saltos ornamentais.
H muito a descobrir, David. Mas pouco tempo.
Quanto tempo?
Quando voc vir os nmeros, ter apenas at a Lua surgir.
Por qu? O que acontecer ento?
A criana ser minha.
Eu me precipito frente. Agarro a mo de Tess.
Ainda que eu puxe com toda a fora apesar de ela ser uma menina de onze anos com menos
da metade do meu peso , s o que consigo fazer segur-la ali. Sua fora no pertence a ela,
mas voz. E o que sinto ao tocar a mo de Tess tambm do seu desgnio. Uma colagem de
dores, colidindo e queimando.
Meu irmo engolindo a gua do rio.
Tess gritando, sozinha, em uma floresta escura.
O rosto de meu pai. Perto demais para que eu possa ver todos os seus traos de uma vez, cada

parte dele enviando seus prprios sinais de dio.


Um polegar decepado, esguichando sangue.
Os lbios de Tess se abrem. Dizem algo que consigo ouvir, mas cujo sentido no compreendo
de imediato. Porque ela est indo e eu estou tentando segur-la. No h nada alm do esforo de
no deix-la cair. Seus dedos se fechando. Escorregando pelos meus.
TESS!
E ela se vai.
Suas mos soltas esticadas como asas. Ela no se afasta da borda, apenas cai para trs,
retardada pela fora contrria do ar. Seu rosto uma mscara de terror o rosto novamente
dela, os olhos dela , mas seu corpo imvel e sereno, sua trana apontando para cima de sua
cabea, como uma corda.
Corro para a beirada e a vejo despencar no canal.
E com o impacto vm as palavras que ela sussurrou antes de cair. Sussurradas no em
segredo, mas porque ela precisou de todas as suas foras para afastar o outro ser que estava
com ela. Uma brecha quando ela estava no comando de sua prpria lngua, longa o bastante para
proferir um apelo.
Uma menina, a minha. Pedindo que eu a leve para casa.
Encontre-me.

Capitulum 8

CAPITULUM 8

A tristeza tem uma cor.


H outras caractersticas, sei agora, que, coletivamente, formam uma espcie de
personalidade. Uma figura hostil que entra em sua vida e se recusa a sair, ou a se sentar longe de
voc, ou a parar de sussurrar em seu ouvido o nome daquele que partiu. Mas para mim, mais
que tudo, a tristeza se expressa essencialmente como um tom de tinta. O mesmo turquesa
desalentador das paredes da cozinha do chal onde passvamos nossos veres e, depois de
vendermos nossa casa na cidade, onde vivemos at o dia em que nosso pai foi para o bosque um
domingo de julho levando apenas uma foto do meu irmo e uma espingarda, e nunca mais voltou.
a cor de minha me chorando de p junto pia, de costas para mim. A cor de meu pai
sentado sozinho mesa da cozinha durante toda a noite, levantando apenas para atender ao
telefone que no estava tocando e dizer Al para a linha muda. A cor do rio em que meu
irmo se afogou.
E agora Nova York est toda pintada de turquesa. Eu vejo a cor em toda parte. As menores
gotas saltando minha frente e demandando minha ateno, uma campanha publicitria de
guerrilha anunciando nada. Um turquesa sangrento que toca todas as coisas, como uma aquarela
que se espalha a partir do ponto em que o pincel toca o papel. Vejo a cidade atravs de um gel
azul-claro, o edifcio Chrysler, os txis que tomam a cidade de assalto, os cnions dos prdios
que sombreiam o Centro com um verniz subaqutico. At minhas plpebras fechadas tm a
tristeza iluminando-as por trs. a cor das casas de idosos, dos banheiros de rodovirias. A cor
do Grande Canal.

J faz dois dias que voltei de Veneza, cinco desde que Tess despencou do terrao do Hotel
Bauer, caindo na gua. Eu teria voltado antes, mas a polcia de Veneza estava buscando por seu
corpo todo aquele tempo, e eu no podia voltar enquanto eles ainda estivessem procurando.
Eles nunca a acharam. Aparentemente, no era inusitado que aqueles que se afogavam no canal
desaparecessem, arrastados para fora da cidade pelas correntes traioeiras, mais fortes do que
se imaginava, atravs da lagoa, para alm das ilhas externas e at o Mar Adritico. E ainda
havia as muralhas e tneis submarinos, bem como os esgotos da cidade, uma rede de bolses
invisveis onde um corpo poderia se alojar. Eles colocaram mergulhadores trabalhando no caso
(o nosso chegou a ser manchete dos jornais, com direito a uma foto dos homens-r pulando no
canal com um gondoleiro de blusa listrada ao fundo), mas estes no acharam nada, o que no
pareceu surpreend-los.
Ningum nem ao menos aventou a hiptese de que ela ainda estivesse viva. Nem eu achava
que fosse possvel. Mas era preciso perguntar, e eu perguntei. Cada vez que fazia isso, recebia o
mesmo olhar em resposta. O tipo de olhar que voc d a algum que sofreu um dano cerebral
que o privou da coerncia, fazendo com que no haja qualquer resposta possvel alm de um
olhar de compaixo.
A questo que Tess nunca voltou para mim, e, quando eles suspenderam as buscas
(prometendo manter uma comunicao diligente e frequente), fui encorajado a voltar para casa,
como se no houvesse nada mais que eu pudesse fazer em Veneza. Nunca me senti to traidor
como quando subi no avio e deixei o corpo de minha filha em algum lugar no fundo das guas.
Diane e eu conversamos, claro, tanto pelo telefone como pessoalmente, algumas vezes, aqui
em Nova York. E OBrien deixou vrias mensagens, oferecendo-se para mudar para meu
apartamento enquanto eu precisasse de companhia. Eu declinei por meio de mensagens de texto.
Em vez de aceitar convites para ser confortado, eu entupia o servio de recados da polcia de
Veneza com perguntas para todos os departamentos que tivessem alguma importncia na busca
por vtimas de afogamentos. Isso e ficar errando pela cidade turquesa. Recordando Tess.
Errando.
Talvez fosse isso o que a voz queria dizer quando disse o que me esperava. Mover-se assim,
sem rumo, o mais perto que os vivos podem chegar dos mortos. Caminhar de Wall Street at o
Harlem, depois voltar, tomando desvios a esmo. Despercebido e ausente como um fantasma.
medida que ando, algumas vielas da minha mente fazem conexes impossveis.
Esse o princpio da loucura. A culpa to insuportvel que entorta a mente. Ter esses
pensamentos equivale a renunciar ao mundo e, acreditando neles, ainda que em parte, nunca
retornar.
Saber disso no me impede de ter esses pensamentos.
Talvez a voz que tenha sado da boca de Tess tenha sido uma presena independente, um
esprito que assumiu o controle dela nos ltimos vinte minutos de sua vida. Talvez tenha sido
isso que puxou a mo dela da minha. Talvez no tenha sido suicdio o que levou minha filha

(como o legista e as autoridades inevitavelmente concluram, assim que a suspeita sobre minha
pessoa foi eliminada graas aos relatos das testemunhas), e sim um assassinato cometido
interiormente. Talvez a voz pertencesse ao demnio que o homem da cadeira afirmou que me
visitaria.
Certamente no amigos. Mas inquestionavelmente prximos.
Talvez essa presena tivesse sado montada nas minhas costas daquele aposento onde estava o
homem da cadeira, chegando at o hotel e ali passando para Tess. Explicaria algumas coisas.
Porque eu me senti doente de maneira to repentina quando fugi de Santa Croce, 3.627 e to
rapidamente melhorei assim que estava de volta ao Bauer. Porque vi os porcos guinchando na
rua. Porque Tess foi para o telhado. Porque as ltimas palavras pronunciadas por ela pediam
que eu a encontrasse. Porque seu corpo no foi achado.
Isso o quo baixo eu desci.
No. No verdade. Eu desci mais baixo que isso.
E se os traos de personalidade que eu e Tess compartilhvamos, a quase sempre disfarvel
marca de nascena da melancolia, fossem no nosso temperamento, mas um sinal de que
havamos sido escolhidos desde o incio? Se isso fosse uma sala de aula, e a pergunta que
acabei de fazer a mim mesmo viesse de um estudante, eu saberia o precedente a ser recitado.
Marcos 9. Outro relato de Jesus expulsando o demnio de uma alma aflita. Um menino dessa
vez. Seu pai implorando ao salvador que liberte seu filho de um esprito imundo que sempre o
leva para o fogo, para as guas, para destru-lo.
As guas.
Suicdio. Provocado por demnios.
Cristo perguntou ao pai h quanto tempo o menino sofria daquela forma.
E ele respondeu: Desde a infncia.
Eis outra caracterstica de um ser errante: emoes to grandes que requerem superstio para
explic-las. Esse o cerne do meu campo de estudos, no fim das contas. O medo da morte,
da perda, de ser abandonado a gnese da crena no sobrenatural. Quando algum como eu
subitamente se v cogitando mitos primitivos, isso s pode ser visto como o sintoma de algum
tipo de surto psictico. Sei que isso to comprovvel como os nmeros das casas pelas quais
passo, como as horas marcadas em meu relgio. Estou sugerindo que um demnio tomou
minha filha de mim. Apenas pare e diga isso algumas vezes em voz alta. Apenas escute isso.
o tipo de teoria que justifica, com toda razo, que algum seja trancado no hospcio para uma
observao de longo prazo.
Ento sigo em frente. Cercado por pessoas azul-turquesa em quarteires azul-turquesa.
E no sinto quase nada.
Isto , sinto saudades de Tess, estou de luto por ela, estou inconsolvel. Mas ter saudade,
estar de luto, admitir que se est de corao partido so termos to inadequados que

beiram ofensa. No se trata de encontrar uma maneira de seguir em frente. No se trata de


ficar com raiva de Deus. Trata-se de morrer. De querer estar morto.
A nica coisa que causa alguma impresso em mim so crianas. Sempre foi assim.
Provavelmente no h um pai vivo no mundo que possa ver filhos de desconhecidos brincando
sem pensar nos seus prprios. O riso, os convites para brincar de pique, a angstia de um joelho
arranhado ou de um brinquedo surrupiado. Tudo isso nos leva a pensar em como nossos filhos
faziam as mesmas coisas, as sutilezas que os tornam tanto semelhantes como totalmente distintos
de todas as outras crianas do mundo.
Ali: uma menina brinca de esconde-esconde com a me entre as pedras e rvores no Laguinho
das Tartarugas, no Central Park. Isso me lembra de quando brincava da mesma coisa com Tess.
Sempre que ela se escondia ainda que fosse em nosso apartamento havia um meio
segundo de verdadeiro pnico quando eu procurava nos lugares habituais e no a encontrava. E
se, desta vez, ela tiver realmente sumido? E se ela tiver se escondido to bem que procurar
entre as rvores, embaixo das camas ou nos cestos de roupa suja no seja o bastante?
E ento, no momento em que o pnico comeava a tomar conta de mim, ela aparecia. Em um
pulo, minha primeira confisso de Eu desisto!.
Desta vez, Tess est escondida e nunca mais vai voltar.
Ainda assim, ela pediu que eu no desistisse.
Encontre-me.
Paro junto a um porto de ferro e vejo a me parar para procur-la. Fingindo estar confusa
sobre o esconderijo de sua filha. Mas quando ela caminha p ante p at uma rvore e estica a
cabea Peguei! , a menina no est ali. E, num segundo, vem a preocupao. A ideia de
que, desta vez, o jogo no um jogo.
Mame!
A menina vem correndo do gramado que circunda o laguinho e a me a pega no colo, as pernas
da criana voando. Ento a me me v. Um homem parado, sozinho, junto ao porto. a
primeira vez que algum se d conta de minha presena desde que voltei a Nova York.
Dou as costas a elas, envergonhado da minha invaso negligente da privacidade delas. Mas a
me j est partindo, com a criana em seus braos. Protegendo-a do homem que, visivelmente,
sente falta de algo essencial que perdeu. Algum que no est totalmente aqui, e que se torna
mais perigoso por causa disso.
Um errante.
Os dias turquesa se transformam em noites turquesa. Eu volto para o apartamento e fao
torradas. Passo manteiga nas fatias de po e corto em tiras, como Tess gostava. Salpico com
canela em p. Jogo fora sem nem ao menos provar.
Preparo uma vodca com gelo. Ando pelo apartamento e percebo a luz acesa no quarto de Tess.
O pster de O Rei Leo sobre a cama (ns a levamos trs vezes ao espetculo da Broadway,

pedidos de dois aniversrios e um Natal). Um mapa de Dakota do Norte na parede (parte de um


trabalho escolar, um estudo detalhado de um dos cinquenta estados). Os desenhos a giz de cera
que eu honestamente elogiei e mandei enquadrar. Os bichos de pelcia no cho, perto da
cmoda, brinquedos h muito ignorados, ainda que amados o suficiente para evitar a remoo
para o armrio. O quarto de uma menina em transio, da infncia para as sombrias confuses
do que quer que venha depois.
Estou quase saindo do quarto quando vejo o dirio de Tess em sua mesa de cabeceira (eu o
coloquei ali depois de t-lo trazido de Veneza, deixando-o no lugar onde costumava ficar depois
de suas anotaes). Nunca pensei em l-lo quando ela estava viva, o medo de que ela
descobrisse minha traio superando em muito qualquer curiosidade que eu pudesse ter sobre
seus pensamentos secretos. Agora, no entanto, a necessidade de ouvi-la, de traz-la de volta,
importa mais.
O canhoto de uma entrada de cinema marca a anotao do dia que partimos para Veneza. O
que significa que ela deve ter escrito isso quando estvamos no avio.
Papai no sabe que eu percebo o quanto ele est tentando. Os sorrisos engraadinhos,
o oba-oba sobre tudo o que vamos ver. Talvez ele esteja realmente animado. Mas ele ainda
usa a Coroa Negra.
Consigo v-la hoje melhor que nunca. Parece at que ela est se mexendo. Como se
houvesse algo vivo nela, fazendo um ninho. Rastejando.
O problema com mame faz parte disso. Mas no tudo. H algo esperando por ns, e
ele nem desconfia. A Coroa Negra est indo conosco. Ele a est usando, mas no sabe que
est aqui (como ele pode NO saber que est aqui??).
Talvez a coisa que est esperando do outro lado queira conhecer o papai tambm.
S sei que ela quer me conhecer.
Depois disso vem pouco mais de uma pgina sobre o voo, o vaporetto at o hotel. E ento a
ltima entrada do dirio. Datada do dia em que ela caiu. Escrita no nosso quarto no Bauer,
enquanto eu visitava aquele endereo em Santa Croce.
Est aqui.
Papai tambm sabe. Eu posso sentir. Como ele est apavorado.
Ele est conversando com aquilo AGORA MESMO.
No vai deix-lo partir. Gosta que estejamos aqui. Ele est quase feliz.
Talvez tenha sido um erro virmos para c. Mas ficar longe no era uma escolha. Aqui ou
l. Mais cedo ou mais tarde.

melhor que esteja acontecendo agora. Porque estamos juntos, talvez haja algo que
possamos fazer. Se no houver, melhor que nos levem ao mesmo tempo. Eu no quero
ficar para trs. E se tivermos de ir para L, eu no quero ir SOZINHA.
Ele est chegando agora.
Eles esto chegando.
O dirio cai das minhas mos com as pginas fazendo um leve rudo.
Ela foi a Veneza para encar-lo.
Apago a luz e fecho a porta. Corro para o banheiro e ajoelho, com nsia de vmito, junto
privada.
Ela foi assumir a Coroa, para que eu no tivesse mais de us-la.
Assim que me sinto capaz, volto para a cozinha para renovar minha bebida. Percebo ento que
a porta de Tess est aberta. A luz acesa.
um apartamento antigo, mas nunca houve uma corrente capaz de abrir uma porta. E nunca
tivemos problemas eltricos. Ento eu no fechei a porta e apaguei a luz.
Apago a luz. Fecho a porta. Eu me afasto.
E paro.
A alguns passos do quarto de Tess, ouo o clique da maaneta sendo girada. O ranger das
dobradias.
Eu me volto, a tempo de ver a luz acesa. No j acesa. O quarto clareando aos poucos,
medida que consigo acertar o foco da minha vista.
Tess?
Seu nome atravessa meus lbios antes que a confuso se acomode em minha mente. De alguma
maneira eu sei que isso no uma alucinao, que no estou sonhando acordado. Tess. No
quarto dela. Talvez o nico lugar onde ela fosse forte o bastante para me alcanar. Para me dizer
que ela ainda est aqui.
Corro. Paro no meio do quarto com os braos estendidos, os dedos tentando agarrar algo.
Tess!
Nada a sentir alm do vazio do quarto, preenchido pelo ar-condicionado. Apesar de a luz
ainda estar acesa, ela no est mais aqui.
Sou, como dizem os reprteres policiais de suas fontes, uma testemunha altamente
qualificada. Tenho um doutorado pela Universidade Cornell, um punhado de eminentes prmios
acadmicos, artigos assinados nas mais respeitadas publicaes da minha rea, um histrico
clnico sem problemas mentais. Mais ainda, sou do tipo insistentemente racional, um estragaprazeres no que diz respeito ao fantstico. Constru toda uma carreira com base na dvida.

Ainda assim, aqui estou. Vendo o que no pode ser visto.


De manh, sou acordado por quatro mensagens em meu telefone. Uma de Diane, pedindo, com a
voz e as palavras de um cobrador, que eu ligue para ela o mais breve possvel para resolver
um problema pendente. Outro do detetive em Veneza com o qual venho me correspondendo,
para me dar a notcia de que no h nenhuma notcia. E dois de OBrien, o primeiro exigindo me
ver, o segundo avisando que eu vou pirar de vez a sozinho se no falar com algum, e por
algum eu quero dizer eu.
Porque ela a me de Tess, e porque eu s posso administrar uma nica conversa com um ser
humano esta manh, eu me apoio contra a cabeceira da cama e ligo para Diane. S quando o
telefone dela comea a tocar que percebo que dormi no quarto de Tess.
Al?
David.
David.
Ela pronuncia meu nome, seu marido por treze anos, como se fosse um tempero obscuro do
qual ela busca se recordar se j provou antes.
uma hora ruim?
Pergunta idiota.
, foi. Desculpe.
Ela faz uma pausa. No a hesitao de algum que reluta em magoar outra pessoa, mas apenas,
novamente, a pausa do cobrador, puxando a folha correta de dilogo para uma subcategoria
especfica de delinquente.
Eu queria oficializar, ela diz. Minha mudana. Comear o processo.
Processo?
Divrcio.
Certo.
Voc pode usar Liam se quiser, ela diz, referindo-se ao advogado em Brooklyn Heights que
fez nossos testamentos. Eu j falei com outra pessoa.
Algum tigre do Upper East Side para enfrentar o gatinho Liam.
Voc pode escolher o advogado que quiser.
No queria fazer com que voc se sentisse culpada. Eu s estava... sendo eu mesmo.
Ela faz um som que poderia ser o de uma pequena risada, mas no .
Eu s no entendo qual a pressa, digo.
J se passou um bom tempo, David.
Eu sei. No estou lutando contra. Eu serei o corno mais prestativo e submisso da histria da
legislao matrimonial do estado de Nova York. S estou perguntando, por que esta manh?
Menos de uma semana depois do desaparecimento de Tess.
Tess no desapareceu.
Eles ainda esto procurando.

No, no esto. Eles esto esperando.


Eu ainda estou procurando.
Silncio. Ento: Procurando o qu?
Voc pode pirar o quanto quiser. Minha OBrien interior, vindo em meu auxlio. Mas voc
precisa deixar que ela saiba que voc endoidou?
Nada, respondo. No estou falando coisa com coisa.
Ento voc vai conversar com Liam? Ou com qualquer outra pessoa? Agilizar os papis?
Vou agilizar. Voc nunca viu tanta agilizao.
Est bem. timo.
Ela tambm est sofrendo. No que ela me tenha demonstrado isso. S posso assumir que Will
Junger a est reconfortando e aguentando o rojo, ainda que eu no acredite que ele seja muito
do tipo que aguenta rojes, ao menos no por muito tempo. De qualquer modo, Diane a me de
Tess, e agora que sua filha se foi, isso s pode estar destruindo-a pouco a pouco, assim como
est fazendo comigo.
Mas a que est: no posso evitar pensar se eu estaria enganado sobre isso. H uma privao
na sua voz, bem como firmeza. Mas tambm h uma horrvel satisfao. No com o fato de que
Tess nunca mais vai voltar, nada to monstruoso assim. Mas a satisfao de que era eu quem
estava l de que foi a minha falha quando aconteceu.
Eu no ligo se voc acha que a culpa minha. Se voc me odeia. Eu no ligo se nunca mais
nos falarmos, digo. Mas voc tem de saber que eu tentei salv-la. Eu no a abandonei. No
fiquei apenas olhando. Eu lutei por ela.
Eu reconheo o que voc est tentando...
Todo pai diz ou ao menos pensa que ele sacrificaria sua vida por seu filho. Eu no sei
se, na hora da verdade, todos fazem isso. Mas eu fiz.
Voc no fez!
Esse grito vem to claro e violento pela linha que eu tenho de afastar o fone do ouvido. Voc
no sacrificou sua vida por ela, diz Diane. Porque voc ainda est aqui. E ela no.
Voc est errada em uma coisa, tenho vontade de dizer. Eu no estou aqui.
Em vez disso, comeo a balbuciar despedidas, um reconhecimento pelo tempo que passamos
juntos e pela nica coisa que fizemos direito, a nica coisa da qual nunca nos arrependeremos,
mas ela desliga.
Quem senta em uma igreja no meio da tarde de um dia de semana? Bbados, fugitivos, todo tipo
de viciados. Os que se perderam e s podem culpar a si prprios. Eu sei disso porque me sento
entre eles. Rezando pela primeira vez na minha vida adulta.
Ou tentando rezar. Os smbolos religiosos, o silncio forado, os vitrais, tudo parece forado.
Sim, uma igreja: espera-se que o ambiente seja igrejeiro. Mas no me sinto mais prximo da
santidade do que me sentia na 43rd Street, h alguns minutos.

Voc se sente desconectado?


Eu me volto e dou de cara com um homem grisalho, de cinquenta e poucos anos. Um
empresrio ou ex-empresrio que pertence classe dos alcolatras, este o meu palpite.
Como?
Sua linha de orao. Com o Grando. Ele deixou voc na espera? Faz isso comigo o tempo
todo. E a, com os diabos, desliga na minha cara.
Eu nem disquei o nmero.
Melhor assim. Se voc tivesse completado a ligao, escutaria tecle 1 para milagres, tecle
2 para ter o nome do cavalo vencedor do oitavo preo em Belmont, tecle 3 para Sinto pelo
que fiz mas no o bastante para no fazer de novo.
mais ou menos como fazer anlise.
Ah ? E a sua analista boa em escolher cavalos?
Ela. A maior parte dos analistas so mulheres? Ou ser que eu conheo esse cara? Um cara
que conhece tanto OBrien quanto eu?
Ela no faz apostas, respondo.
No? Bem, voc sabe o que dizem. No d para ganhar se no jogar.
Ele apoia seus braos no encosto do banco. Com o gesto vem um bafejo do desodorante
recm-aplicado. Um perfume bruto que visa a enterrar o cheiro vulgar debaixo dele.
No quero me meter, mas voc parece um pouco perdido, amigo, ele diz.
Seu olhar exprime uma verdadeira preocupao. E ento me ocorre: ele um desses
missionrios de rua. Algum paisana, recrutando fiis para a igreja, perambulando pelos
bancos.
Voc trabalha aqui?
Aqui? Ele olha em volta, como se percebendo, pela primeira vez, onde estamos sentados.
Eles tm empregos aqui?
Eu apenas no estou em busca de uma oferta de salvao. Se isso o que voc faz.
Ele balana a cabea. Como aquela camiseta? Youve mistaken me for someone who gives
a shit. Eu apenas percebi uma alma semelhante sentada aqui e pensei em dar um oi.
No quero ser antiptico. S prefiro ficar sozinho.
Sozinho. Soa bem. difcil encontrar um momento de paz onde eu vivo. Pandemnio. Um
homem no consegue pensar. E acredite, amigo. Eu sou um pensador.
Essa palavra de novo. A mesma que OBrien usou para descrever a estao Grand Central. O
inferno de Milton.
Pandemnio.
Eu me chamo David, digo, estendendo a mo. Depois de um momento, ele a toma.
Prazer em conhec-lo, David.
Espero que ele diga seu nome, mas ele apenas solta minha mo.
Acho que vou indo, digo e me levanto. S entrei aqui para sair do sol por um minuto.

No posso culp-lo. Mas, pessoalmente, sou um gato caseiro.


Vou para o corredor central da igreja e, com um aceno de despedida, dirijo-me porta. Do
lado de fora, o dia arde.
Enquanto ando, o homem recita parte de um poema, em um murmrio piedoso, como em uma
prece.
Sol, dizer-vos o quanto odeio vossos raios
Que me trazem a lembrana daquele estado
Do qual ca[26]
Milton. Escrevendo as palavras de Sat.
Eu me viro. Deslizo pelos bancos at onde ele est sentado, sua cabea agora baixa, mos
reverentemente juntas. Agarro seu ombro e dou-lhe um puxo brusco.
Olhe para mim!
Ele se afasta, em um movimento defensivo. E se encolhe, esperando um golpe. No o homem
que estava sentado aqui h um segundo. um padre. Jovem e barbeado, seu rosto afogueado
pelo susto.
Sinto muitssimo, digo, j recuando. Eu o confundi com outra pessoa.
Enquanto volto para o corredor, a expresso do jovem padre muda. Sua surpresa se transforma
em um sorriso.
Estou pronto para ouvir sua confisso, diz.
Sua risada me segue at a rua.
Era a voz de novo. Tenho essa certeza enquanto me afasto, cambaleando, da igreja de Santa
Agnes em direo Lexington Avenue, me apoiando na entrada de um bar irlands para
recuperar meu flego. Foi a mesma presena que passou de mim para Tess, que falou comigo no
terrao do Bauer. Que recitou trechos de Paraso Perdido, assim como o homem na igreja acaba
de fazer. E como fez a Mulher Magra, ainda que eu no tenha tanta certeza de que ela fosse uma
encarnao da voz o ser no qual comeo a pensar como o Inominvel , e sim talvez um
representante humano, terreno. Por alguma razo, eu tive de ir a Veneza, a Santa Croce, 3.627,
para que o Inominvel entrasse na minha vida, e foi tarefa da Mulher Magra fazer com que eu
aceitasse o convite para tal. O que sugere que ela no trabalhava para a Igreja ou uma de suas
organizaes, como eu havia pensado.
Sol, dizer-vos o quanto odeio vossos raios
No poema de Milton, este Sat falando. Amaldioando a luz do dia como uma dolorosa
lembrana da sua queda, de tudo o que ele perdeu em seu autoimposto exlio nas trevas. este o

Inominvel? O Adversrio? O homem na cadeira ou a pluralidade das vozes que falavam por
meio dele disse que no era o mestre que eu em breve encontraria, mas aquele que se
senta com ele. Em Paraso Perdido, isso significaria os anjos cados que formam o Conselho
Estgio dos principais demnios do inferno, presidido por Sat. Eles eram treze, cada um com
personalidade e habilidades distintas, atribudas pelo poeta. Talvez o Inominvel seja um deles.
Um demnio originrio, expulso do paraso. Um ser capaz de mudanas de forma e imitaes
absolutamente convincentes, assumindo feies humanas o velho no avio, o bbado na
igreja.
Ou melhor, talvez sejam sombras emprestadas de quem j viveu e morreu. Talvez o Inominvel
esteja limitado a habitar as peles daqueles que esto no inferno.
Agora certo. Enlouqueci.
Em vez de simplesmente chorar por Tess, estou criando distraes gticas, quebra-cabeas
miltonianos, dilogos demonacos tudo, menos encarar aquilo que no pode ser encarado.
Estou usando minha mente para proteger meu corao, e isso uma trapaa, uma desonra para
com a memria de Tess. Ela merece um pai que fique de luto por ela, no que construa uma
elaborada rede de disparates paranoicos. Estou certo de que os psiquiatras tm uma palavra
para isso. Eu me contento com covardia.
Quando volto ao apartamento e checo a secretria eletrnica, h mais recados: algumas
mensagens de condolncias de colegas da universidade, e dois avisos srios de OBrien de que,
se eu no ligar logo, ela ser forada a tomar uma atitude.
Por que eu no telefono para OBrien? Honestamente, no sei responder. Cada vez que meus
dedos pairam sobre o teclado, perdem a vontade de apert-lo. Eu quero falar com ela, v-la.
Mas o que eu quero tem sido anulado por outra determinao, uma influncia que sinto nas
minhas veias como algo alheio, pesado e frio. Uma molstia entorpecedora que, acima de tudo,
no quer OBrien por perto.
Alm disso, estou ocupado.
Abro o armrio de remdios do banheiro e pego o frasco de Zolpidem esquecido por Diane.
Encho um copo dgua e vou para o quarto de Tess. Sento-me na beirada da cama dela e engulo
os comprimidos, um a um.
Suicdio? E com remdio para dormir? Covarde e clich.
OBrien est aqui comigo, mas distante. Fcil de ignorar.
Encontrarei voc, Tess, quando acabar?
Sim. Ela est esperando, diz uma voz, que no nem a minha nem a de OBrien. V em frente,
professor. Beba. Engula. Engula. Beba.
No acredito no que ela diz. Mas impossvel resistir.
Beba. Engula.
CRASH!

Um porta-retratos cai no cho. Cacos de vidro cintilando sobre o tapete, ou encaixados nas

frestas do assoalho. O prego ainda firme na parede, a moldura ainda intacta e firme no lugar.
Sei que foto essa, mas vou at ela do mesmo jeito. Eu me abaixo e pego a foto.
Tess e eu. Ns dois rindo na praia perto de Southampton, h alguns veres. Abaixo de ns,
fora do enquadramento, nosso castelo de areia era dissolvido pelas ondas. O engraado eram
nossos esforos inteis para salv-lo, para escorar as muralhas com mais areia, proteger o ptio
com nossas mos. A foto mostra o prazer que temos em ficar juntos ao sol, de frias. Mas
tambm mostra a alegria em fazer algo com algum que voc ama, mesmo se a tarefa grande
demais para ser cumprida.
Tess?
Ela est aqui. No apenas na memria evocada pela foto. Foi ela quem arrancou a foto da
parede.
Eu me arrasto at o banheiro. Enfio o dedo na garganta. Esvazio meu estmago da gua
tornada rosa pelos tranquilizantes. Quando dou descarga, aquilo que pesava em meu sangue vai
junto.
Fico um momento contra a parede de azulejos, minhas pernas esticadas frente. Se eu no me
mexer, fcil fazer de conta que este no meu corpo. No conseguiria dar uma ordem para que
qualquer parte dele se movesse.
Encontre-me.
Sou de novo o velho David, o homem de inao que Diane provavelmente estava certa em
abandonar. Porque ainda h algo a fazer. Uma tarefa reconhecidamente impossvel: encontrar e
recuperar os mortos ou meio-mortos do mais escuro limbo.
E ainda h a questo de no ter a menor ideia de por onde comear.
Fico embaixo do chuveiro aberto, sem tirar as roupas. Sinto as referncias acadmicas e os
fragmentos de poemas deslizarem como leo. Logo no resta mais nada.
Exceto pela sensao de que no estou sozinho.
Abro meus olhos contra o esguicho da gua quente. O vapor enche no apenas o box
envidraado, mas todo o banheiro, de modo que o local parece vivo com uma nvoa ondulante.
Nada ali. Mas fico olhando do mesmo jeito.
E vejo surgir Tess.
Tremendo de fome, de medo. Sua pele queimada pelo frio. Tentando me alcanar, mas
impedida pelo vidro. As palmas de suas mos com linhas escuras, como mapas antigos.
Tess!
Ela abre a boca para falar, mas um par de braos a cerca e a puxa de volta para o nevoeiro.
Braos longos demais, com msculos grotescos demais para pertencerem a um homem.
Escurecidos por pelos que parecem os de um animal. Suas garras manchadas de terra, como as
de um quadrpede.

Capitulum 9

CAPITULUM 9

Assim que coloco roupas novas e, ao menos em parte, limpo minha cabea, pego a cmera
digital que o mdico me deu em Veneza e baixo para meu laptop o vdeo que gravei do homem
na cadeira. A razo pela qual fao isso s me ocorre depois de terminar.
Isso importante.
Eu ainda no sei o por qu. Mas o mdico insistiu nisso. Para voc. Ento quem quer que
fosse que estivesse dando instrues a ele queria que eu ficasse com ela. Apontar a cmera para
o homem na cadeira e gravar o que ele dissesse, o que ele fizesse. Seno, para que me dar a
cmera?
Ento o que o homem fez e disse?
Vejo a gravao na tela do meu laptop. Sinto sua realidade vibrando de uma forma que nunca
me ocorreu nem mesmo com os mais vvidos noticirios ou documentrios. Um golpe fsico em
meu peito, que me faz recuar no sof. E no apenas por causa dos sons e imagens
perturbadores. H algo sobre o efeito que a gravao tem que diferente de seu contedo.
Como descrev-lo? Uma aura da dor da qual ele se origina. Um vislumbre subliminar do caos.
Uma Coroa Negra.
H as vozes, as palavras, as contores torturantes do corpo. Mas a nica coisa que anoto em
meu caderno enquanto vejo a gravao a lista de cidades e nmeros que a voz disse que
seriam relevantes no dia 27 de abril. Depois de amanh.
Nova York 1259537
Tquio 996314

Toronto 1389257
Frankfurt 540553
Londres 590643
A presena ofereceu isso como uma parte do que estaria por vir. Um instantneo de um futuro
imperceptvel que, se correto, provaria sua habilidade, seu poder. Sua realidade.
medida que a gravao prossegue, fecho meus olhos no momento em que o rosto do homem
se transforma no de meu pai. Isso no evita que eu escute a voz do velho.
Deveria ter sido voc.
Por mais terrvel que seja interpretar suas palavras, no posso evitar a sensao de que ele
quer dizer algo muito pior do que seu desejo de que eu tivesse me afogado no lugar de meu
irmo.
Volto. De novo. De olhos abertos desta vez.
Vejo essa imagem na tela e sei, sem sombra de dvida, que o meu pai falando comigo de
seja l para onde ele foi depois que o enterramos. E ele est revelando um segredo que ainda
no consigo entender completamente. Um convite para procur-lo, quase to irresistvel quanto
o de Tess.
Depois que termino de rever a gravao, fecho o laptop e o recoloco em seu estojo de viagem.
Ento guardo a cmera em uma velha bolsa de joias de Diane e coloco ambos em uma pasta de
couro. Penso em simplesmente deix-la na prateleira superior do closet de meu quarto, mas algo
me diz que necessrio ter mais cuidado. No h nenhum esconderijo bom o bastante no
apartamento.
Comeo pela pasta, com a ideia absurda de ir a uma casa de penhores e comprar um par de
algemas de modo que eu possa prender a ala ao meu pulso. medida que vou andando, porm,
surgem ideias melhores. O que preciso fazer esconder a pasta em um lugar onde nem mesmo
eu tenha acesso a ela at que passe o dia 27, quando a previso contida na cmera prove ser
falsa ou verdadeira, sem qualquer hiptese de que eu adultere algo.
Ser que os bancos alugam cofres particulares grandes o bastante para uma pasta? Eis uma
coisa que aprendo sobre bancos nas trs horas seguintes: eles tm cofres particulares grandes o
suficiente para um sed se voc estiver disposto a pagar. E eles vo fazer quase qualquer coisa
por dinheiro, tambm. Por exemplo, tenha voc uma conta ou no (eu escolhi uma agncia em
Midtown Manhattan na qual nunca havia entrado), eles vo colocar seus pertences em um cofre
dentro de uma caixa-forte que s pode ser aberta por meio de um cdigo numrico elaborado
por voc. Eles traro o scio snior, de cabelos prateados, de um proeminente escritrio de
advocacia, a fim de preparar um documento assegurando que nenhum escriturrio ou gerente do
banco permitir que qualquer pessoa incluindo eu mesmo acesse o cofre antes de 27 de
abril, e ento o gerente ir assinar e registrar as cpias, uma para o banco, uma para os
advogados e outra para um envelope no meu bolso. Eles daro uma garantia por escrito de que o

cofre no ser aberto por pelo menos noventa e nove anos, a no ser que eu ou algum com uma
permisso escrita por mim e o cdigo numrico aparea. Eles at oferecem uma xcara de um
caf razoavelmente decente enquanto voc espera que tudo seja feito.
No caminho de casa, ligo para um cara que conheo no Departamento de Informtica da
Columbia. Depois de alguns rodeios, de uma conversa esse-calor-no--um-inferno?, eu fao
algumas perguntas. Especificamente, quero saber se seria possvel alterar o horrio de registro
em que um vdeo foi baixado em um HD depois que isso foi feito, ou, ento, fazer sumir qualquer
registro de que o download aconteceu.
Ele fica em silncio por um momento, e eu imagino o dilogo dentro de sua mente:
Pergunta: Por que um professor de literatura iria querer saber isso?
Resposta: Pornografia.
Finalmente, ele responde que no. Seria difcil pra caramba apagar totalmente um download
ou fazer com que algo baixado no dia 25 parecesse do dia 28. Coisas assim sempre deixam
pegadas, ele diz como quem pisca o olho, um aviso para a prxima vez que eu quiser pegar
algo indecente na internet sem que minha esposa saiba.
O que eu no digo a ele que a esposa se foi. E que eu no quero apagar meu download. O
que eu quero assegurar que o momento em que transferi o arquivo da cmera para o meu
laptop expresse a mesma data e hora gravadas no vdeo: que o registro reflita eventos e cite
cidades e nmeros que ocorreram antes de 27 de abril.
Como um mgico mostrando que no h nada escondido nas mangas, sinto que fiz tudo o que
podia para criar as condies para um verdadeiro truque. Se eu for capaz de descobrir o que as
cidades e nmeros significam no dia 27, e se eles corresponderem a uma realidade verificvel,
a magia da gravao verdadeira.
E como o irmo Guazzo, do Compendium Maleficarum, observaria, se o milagre uma das
maneiras de o Salvador provar sua identidade, a magia a maneira de os demnios provarem a
deles.
Mais tarde, outra igreja. Esta nossa, ainda que s de nome, j que nossa frequncia foi limitada
a trs vsperas de Natal das ltimas cinco, alm de uma doao anual feita por Diane. Igreja de
St. Paul e St. Andrew, na West 86th Street. Escolhida por Diane por sua congregao
progressista e por sua denominao instintivamente inofensiva (Metodista Unida). Uma
comunidade que escolhemos, mas qual, na prtica, no pertencemos.
Mas hoje h um propsito. Uma cerimnia em memria de Tess. Marcada s pressas por
Diane e s comunicada a mim ontem, em um e-mail carregado com encerramento, processo
e cura. Vim por causa dela, para mostrar uma unio parental. o que se faz em ocasies como
essa: voc aparece.

Mas agora que estou aqui, em p diante da igreja, olhando para sua torre octogonal que, nunca
havia percebido antes, hoje parece ameaadoramente veneziana, olhando para os colegas em
terno escuro, alguns conhecidos e membros da extensa famlia de Diane, todos arrastando
coroas de flores e a si prprios escada acima, pelas portas abertas e escuras como uma
garganta, eu sei que no posso entrar. Entrar seria admitir que Tess morreu. Se ela no morreu,
isso poderia afast-la de mim. E se ela morreu, eu no preciso da ajuda de quase estranhos para
me lembrar de quem ela foi.
Vejo o ltimo deles colocar o celular de volta no bolso e entrar. S que, antes que eu me
afaste, Diane sai ao sol. Ela devia estar recepcionando os convidados na porta, deixando que
eles segurassem sua mo e respondendo com as frases adequadas que ela sempre foi boa em
repetir. Agora, com o rgo comeando seu preldio, ela d uma ltima olhada para fora. Um
ltimo olhar em busca de mim.
Espero at que ela me encontre. No h nada em seu rosto. Uma expresso mais honesta que
qualquer outra que ela pudesse mostrar. seu sentimento de vazio, percebo agora, que
intolervel para ela, e a cerimnia de hoje parte de um esforo para preencher esse vcuo.
Com atos, com palavras, com partir daqui para chegar l.
Ela ergue a mo, como se para me mostrar as linhas desenhadas nela e pedir a leitura de seu
significado. um meio-aceno, ou talvez apenas uma mera contrao muscular. Ento, assim que
seu brao volta a se abaixar, ela volta para a escurido e as portas se fecham.
H algum esperando por mim na rua, em frente ao meu prdio.
Quer dizer, h um homem de uns trinta anos, de p, com as mos nos bolsos, perto da entrada
do meu prdio, olhando casualmente para os carros passando, como se esperasse um txi, mas
quando um aparece ele d as costas, como se mudasse de ideia. No h qualquer indcio,
quando o vejo no momento em que viro a esquina da Columbus Avenue, de que ele esteja
esperando por mim. Nunca o vi antes em toda minha vida. E ele , pelo menos a essa distncia,
um composto quase perfeito do indefinvel: camisa branca de algodo com as mangas
arregaadas at o cotovelo, cala jeans, cabelo escuro cortado bem curto. No alto, mas slido,
uma estrutura usada para distribuir e absorver golpes. Ele poderia ser um ex-militar. E ele
poderia ter um desses empregos meio toscos que muitos ex-combatentes assumem em Nova
York. Motorista de limusine, guarda-costas, porteiro de boate, barman.
Ento o que faz com que ele se destaque? O fato de ele no ter nenhuma caracterstica que
salte aos olhos. Sua postura, a maneira como sua camisa est enfiada na cala, a ondulao
estudada de seu lbio inferior. Ele algum que foi treinado para no se destacar. E, dadas as
visitas que recebi na ltima semana, quando um homem desses fica em frente ao meu prdio, ele
est esperando por mim.
Ainda assim, quando me aproximo, ele parece nem perceber. Estou quase passando por ele
quando ele me aborda.

David Ullman?
Quem voc?
Meu nome George Barone.
No me diz nada.
Nem deveria.
Eu o encaro por um momento.
Es vos vir aut anima? pergunto em latim. Voc um homem ou um esprito?
Ele no parece entender a pergunta. Mas tambm no parece surpreso com o fato de eu ter me
dirigido a ele em uma lngua antiga.
Posso lhe pagar um caf?, ele diz. Talvez a rua no seja o melhor lugar para
conversarmos.
Quem disse que estamos conversando?
Estou certo de que essa rea cheia de cafs. Ficaria contente se voc me levasse ao seu
favorito, diz, ignorando minha pergunta e se colocando ao meu lado, de modo que seu ombro
emparelha com o meu. A uma distncia de uns vinte metros, pareceramos velhos amigos
decidindo para que lado ir a fim de tomar um drinque.
Por que eu deveria falar com voc?, pergunto.
no seu melhor interesse.
Voc est aqui para me ajudar?
Eu no iria to longe.
Normalmente, eu fugiria de uma conversa com um desconhecido como este. Mas agora tenho
de abrir todas as portas, aceitar qualquer convite. Mesmo se tiver a impresso de que no vai
levar a nada de bom.
Para me aproximar de Tess, terei de dizer sim a tudo.
Uma jornada de sua autoria.
Claro, respondo. H um lugar timo aqui perto.
Andamos na direo da Amsterdam Avenue, virando a esquina no The Coffee Bean, onde
encontramos uma mesa junto janela. O homem que diz se chamar George Barone me paga um
cappuccino, mas no pede nada.
lcera, explica, entregando-me meu caf e sentando minha frente. Relaxado e amigvel,
mas apenas parecendo relaxado e amigvel. No sou especialista nessa rea, mas algo sobre
esse homem me sugere uma capacidade para a violncia, para a execuo de tarefas
impensveis. O que o entrega o fato de ele s prestar ateno em mim. Nenhuma garota ou
garoto bonita que se aproxime de nossa mesa atrai o menor olhar que seja da parte dele.
Quando um barista derruba uma bandeja de xcaras e elas se espatifam no piso de ladrilhos, ele
nem pisca. Seu foco o de uma ave de rapina.
Estresse, digo. sempre assim com lceras.

Meu mdico diz outra coisa.


Ah, ? O qu?
Caf. Cigarros. lcool. Ele recomenda evitar o prazer.
Sinto muito.
No se preocupe. Isso me mantm forte.
O que voc faz, senhor Barone? Para que precisa se manter forte?
Sou freelancer.
Voc escreve?
No.
Seu negcio mais prtico, ento?
Eu persigo, digamos assim.
Um perseguidor profissional. E seu alvo atual sou eu?
S indiretamente.
Ele aguarda, como se eu que tivesse de inform-lo sobre algo. Provo meu caf. Coloco
acar. Mexo. Provo de novo.
Voc um assassino?, pergunto, por fim.
Voc ainda est vivo?
Tanto quanto posso perceber.
Ento no nos preocupemos com isso.
E com o que deveramos nos preocupar?
Com nada. Se voc me ajudar, agora mesmo, com absolutamente nada.
Com a ponta do dedo, ele pega um cristal de acar da mesa. Olha para ele como se avaliasse
a qualidade de um diamante lapidado.
O homem que voc viu em Veneza, diz. Voc sabe quem ele era?
O que voc sabe sobre isso?
Um bocado, em alguns aspectos. Embora eu tenha sido informado apenas dos fatos que vo
me ajudar a cumprir minha tarefa. Tenho certeza de que voc tem dvidas que eu no posso
esclarecer.
Para quem voc trabalha?
Esta uma delas.
a Igreja? Voc sabe quem mandou aquela mulher ao meu escritrio?
No sei de mulher nenhuma. S estou sabendo de ns. Aqui. Agora.
E verdade. Ele s quer saber de ns. Sua concentrao calma nega o mundo com o olhar fixo
de um hipnotizador.
Isso muito budista, digo.
? Eu no saberia dizer. Sou apenas um coroinha de Astoria[27] com um trabalho a fazer.
Ento voc algum tipo de rufio do Vaticano? isso?
Espero que voc no esteja sendo grosseiro.

Para quem mais voc estaria trabalhando? O Diabo contrata fortes estpidos como voc
desculpe, perseguidores? De qualquer maneira, eles me colocaram na primeira classe, e voc
sabe disso. Seja l quanto esto pagando a voc para me molestar, melhor pedir aumento.
Vou perguntar de novo, diz, ignorando minha agresso. Voc sabe quem era o homem em
Santa Croce, 3.627?
Era? O que aconteceu com ele?
Suicdio. Foi o que as autoridades afirmaram, de qualquer forma. Histrico de depresso,
comportamento estranho e atpico recentemente, ento sumiu. um caso bastante fcil de
resolver.
Como ele morreu?
Dolorosamente.
Explique.
Ingesto de produto txico. Mais especificamente, cido de bateria. Uma coisa difcil de
engolir, ainda mais um litro, mesmo que voc queira acabar com a sua vida. Acredite. Essa
coisa queima.
Talvez algum o tenha ajudado.
A est. Agora voc est pegando a ideia, professor.
Voc acha que ele foi assassinado.
No no sentido convencional da palavra.
Qual o sentido no convencional?
Uma operao traioeira, ele diz, sorrindo com a expresso. O mais provvel que tenha
havido alguma operao traioeira pra caralho.
Voc fez isso.
No, eu no. Algo pior.
Sinto meus joelhos se juntarem embaixo da mesa, e levo um segundo para separ-los de novo.
Voc no respondeu minha pergunta, retoma o Perseguidor.
Esqueci que voc perguntou algo.
Voc sabe quem ele era?
No.
Ento vou contar. Ele era voc.
Como assim?
Dr. Marco Ianno.
J ouvi esse nome.
Achei que sim. Um companheiro acadmico. Um professor de estudos cristos em
Sapienza[28] j h alguns anos. Casado, dois filhos. Muito respeitado em seu pas natal por sua
defesa da Igreja, ainda que, curiosamente, ele mesmo no a frequentasse. Seus trabalhos diziam
respeito necessria relao entre a imaginao humana e a f.
Parece uma das minhas aulas.

Mais uma vez, voc pega o esprito da coisa. Eles no distribuem esses ttulos de ph.D. a
troco de nada.
Por que voc est me dizendo isso? Voc veio entregar um aviso?
No sou um mensageiro.
Ento o que voc quer de mim?
Ele esmaga o cristal de acar em seu dedo contra a mesa, com um rudo fraco, mas audvel.
Acredito que voc tem um documento, ele diz.
Em profuso. Voc deveria ver meu escritrio.
Pode ser algo escrito, ou uma fotografia. Mas minha aposta que um vdeo. Estou certo?
No respondo. Ele d de ombros, como se bastante acostumado a essa resistncia inicial.
O que quer que seja, prossegue, voc tem algo que pegou naquele quarto em Veneza que eu
gostaria que me entregasse.
No me diga. Voc vai escrever uma soma astronmica nesse guardanapo, em troca do
documento.
No. uma questo de contabilidade. Rastros de papelada. No pode haver registro para a
transao.
Eu apenas tenho de entregar essa coisa esse documento. isso?
Sim.
E por que eu faria isso?
A fim de evitar uma possvel repetio do destino do professor Ianno. E tambm para me
evitar, claro.
V para o inferno.
Algo passa em seu rosto. To rapidamente que eu posso apenas ter imaginado. Um tremor no
alto de sua bochecha. A troca de uma marcha.
Voc no quer brincar desse jeito, David.
Houve um tempo, bastante recente at, quando um tipo como voc, dizendo as coisas que est
dizendo, iria me assustar. Mas isso acabou.
Sugiro que voc reconsidere isso.
Por qu?
Porque eu terei de assustar voc. E se no eu, outra coisas. Coisas realmente
extraordinrias.
As coisas que mataram Marco Ianno.
Sim.
Voc controla essas coisas?
No. Ningum controla. Mas elas parecem interessadas em voc.
Levanto minha xcara, mas a viso do caf lamacento, a ilha flutuante de leite, quase me faz
vomitar.
O homem naquele aposento estava mentalmente doente, digo. Ele estava vulnervel e podia

ser convencido de coisas impossveis.


Ns todos somos, o Perseguidor quase sorri. Talvez ningum mais do que voc.
Ele se matou.
o mesmo que dizem que sua filha fez. E como podem acabar falando de voc.
Voc est me ameaando?
Sim. Com certeza.
Levanto. Meus joelhos batem contra a mesa, derrubando minha xcara. O cappuccino ainda
quente se derrama na mesa, respingando nas pernas do homem. Deve queim-lo. Mas ele nem
reage. Agarra meu pulso quando comeo a me afastar.
Entregue o documento.
No sei do que voc est falando.
Sinto os olhares dos outros clientes sobre mim. Mas ele no se d conta.
Voc no est entendendo, diz, devagar e pacientemente. No sou um incmodo do qual
voc pode simplesmente se distanciar.
Ele solta meu pulso. Espera que eu saia andando. Mas, em vez disso, eu me abaixo tanto que
meu rosto fica a poucos centmetros do dele.
Eu no quero saber o que voc far. No vou lhe dar porra nenhuma, falo. Quando se perde
o que eu perdi, voc se agarra a qualquer coisa que tenha ficado. Na minha posio, no se
protege a si prprio, porque no h mais um eu a proteger. Ento v em frente. Persiga. E diga a
seus patres que vo se foder. Ok?
Agora eu parto.
Subo a Amsterdam uma quadra e meia, viro direita na minha rua. No olho para trs. Mas
mesmo depois que eu viro a esquina, ele est me vigiando.
Sei disso da mesma maneira que sei quem era o dr. Marco Ianno.

Capitulum 10

CAPITULUM 10

Eu no o reconheci como o homem na cadeira na ocasio. Mas assim que ouvi o nome de Marco
Ianno, h alguns instantes, a lembrana veio. Um colega que testemunhou um dos momentos mais
no profissionais da minha carreira.
Era uma conferncia surpreendentemente badalada, que teve lugar em Yale h sete ou oito
anos. Dizia-se que Roma estava discretamente tomando notas. O nome da conferncia era
Futuro/F, como se a crena fosse um produto esgotado que precisasse de uma vigorosa
recauchutagem, o que eu acho que precisa. Eminentes acadmicos e filsofos, assim como
articulistas eruditos de todo o mundo, estavam reunidos para debater as questes que o
cristianismo enfrenta no novo milnio. Minha tarefa era apresentar uma verso repaginada em
PowerPoint da minha palestra padro sobre como o Sat de Milton um defensor precoce da
dissoluo do patriarcado. O Diabo tem problemas com o pai era a minha frase de abertura
para desanuviar os nimos.
Depois da palestra, as luzes da sala foram acesas para uma breve sesso de perguntas e
respostas. O primeiro a se levantar foi um telogo cujo trabalho eu conhecia, um padre (de colar
clerical e tudo para a ocasio), que, sabia-se, era um consultor do Vaticano, arquitetando
barreiras que pusessem um limite s crescentes modernizaes da doutrina crist. Ele foi corts,
perguntando simplesmente sobre uma citao ou outra que ele no conseguira anotar. Ainda
assim, algo em sua figura instantaneamente me colocou contra ele. Assumi uma postura
estranhamente agressiva em minhas respostas s suas perguntas, at que, em alguns instantes, eu
havia chegado ao ponto de cuspir insultos do oratrio (Talvez essa coisa em volta do seu
pescoo esteja bloqueando a circulao para o seu crebro, padre!). A sala parecia aumentar e

diminuir, respirando como os pulmes de um gigante ao acordar. No havia nada que me


parasse, nenhum controle. Era como se, involuntariamente, eu estivesse representando um papel,
sendo uma pessoa completamente distinta.
Eu me lembro da pelcula acobreada na minha boca quando mordi a parte de dentro da
bochecha e sangrei.
A as coisas ficaram realmente estranhas.
O padre me olhou, perplexo, vendo algo que apenas ele observara. Ele deu um passo atrs,
esbarrando nas pernas de quem quer estivesse sentado atrs dele. Suas mos se agitavam,
buscando equilbrio.
Qual o seu nome?, perguntou ele.
E eu no podia responder, porque eu j no sabia mais.
Professor Ullman?
Uma nova voz, vinda do fundo da sala. Gentil e solidria. Uma voz com sotaque, que pertencia
a um homem que se dirigia frente com um propsito firme e com um sorriso familiar, de tal
forma que, quando ele finalmente parou ao meu lado e segurou meu brao, tive a sensao de
que o conhecia desde sempre.
Acho que o tempo designado acabou, disse o dr. Marco Ianno, ao mesmo tempo que dava
acenos de cabea que significavam Eu cuido disso para as pessoas na sala e me levava em
direo porta. Talvez voc queira tomar algo comigo, David.
Assim que samos, no ar revigorante do ptio, me senti eu mesmo outra vez. Pelo menos o
bastante para agradecer Ianno, assegur-lo de que eu estava bem, de que s precisava voltar ao
hotel para descansar um pouco. Foi o fim de um desempenho embaraoso, que depois exigiu
cartas pedindo perdo, com a desculpa fantasiosa de que uma febre me atacara subitamente. Um
incidente perturbador, claro, mas que passara.
Ainda assim Ianno, um homem que eu s conhecia por meio de seus trabalhos publicados e
que nunca mais vi at aquele quarto em Santa Croce, procurou por mim depois que eu o deixei
parado, de p, no frio de New Haven. Uma mensagem que ignorei na ocasio pensando ser uma
m traduo do italiano, e da qual s me lembrei quando o Perseguidor mencionou o nome de
Ianno, h alguns instantes.
O que aconteceu ali aconteceu comigo tambm, afirmou. Acho que ns estvamos
errados em pensar que h apenas palavras em uma pgina, professor!
No volto diretamente para casa. No por temor de que o Perseguidor v me seguir at l e
arrombar a porta assim que eu estiver dentro de casa. No serviria de nada: ele sabe que o que
procura no estar no apartamento. Ele muito provavelmente j vasculhou o apartamento. Ele
procurou em todos os lugares bvios e agora exige que eu lhe conte o que ele quer saber. Hoje
ele pediu de maneira corts. Da prxima vez ele usar mtodos de persuaso mais enrgicos.
Por que simplesmente no entregar o documento a George Barone? Seria muito fcil. E

acredito que, se o fizesse, ele me deixaria em paz. Ele se mostrou preocupado com rastros:
matar um professor da Columbia deixaria ainda mais marcas que um pagamento em dinheiro.
Seria a coisa mais simples do mundo acompanhar meu Perseguidor ao Banco Chase na esquina
da 48th Street com a Sixth Avenue em dois dias (quando as instrues legais me permitiro o
acesso ao cofre) e entregar-lhe o laptop e a cmera, as nicas provas de minha conversa com o
falecido dr. Ianno.
Mas no posso fazer isso. Porque se o Perseguidor quer essas provas ou que seja quem for
que o estiver pagando pelo trabalho precise delas tanto como aparenta , ento elas tm valor.
Sem elas, posso no fazer mais jus a qualquer visita, posso no receber mais qualquer sinal.
Mesmo se guardar o que o Perseguidor chama de documento represente um risco, no tenho
escolha seno ficar com ele e continuar sendo um alvo. Somente como um homem procurado
poderei conservar minha parte da histria. E, mesmo sem ter a menor ideia de por que eles me
querem, preciso permanecer no show se quiser encontrar um caminho para Tess.
Uma coisa est clara agora que o Perseguidor se apresentou: h menos tempo do que eu
esperava.
Ligo para OBrien, e ela atende ainda ao primeiro toque.
David, diz com alvio, onde voc est?
Aqui. Em Nova York.
Ento por que voc est me evitando? Sou sua amiga, seu paspalho.
Desculpe.
O que est acontecendo?
No sei se consigo dar um nome a isso.
No se autodiagnostique. Apenas me conte o que voc tem feito. Porque eu sei que alguma
coisa est acontecendo. Viagem surpresa para Veneza, o que ocorreu com Tess. E nenhum
telefonema seu desde que voc voltou. No do seu feitio, David.
Eu estou bem, mas realmente confuso.
claro que est. Voc sofreu uma enorme perda. algo quase inimaginvel.
No s Tess. H alguns aspectos de seu desaparecimento que eu no posso explicar.
Desaparecimento? Foi suicdio, David.
No tenho certeza disso.
Ela absorve essa informao. Voc est se referindo a como aconteceu?
Ao por qu.
Ok. Que mais?
Eu recebi visitas.
Posso ouvir OBrien avaliando isso. Dando-me uma oportunidade para compartilhar tudo.
Mas, de repente, na rua, no telefone, tenho medo de que o que estamos conversando no seja
particular. Telefone grampeado. Pode-se fazer isso agora com muita facilidade, certo? E a

ltima coisa que quero colocar minha amiga em perigo. Ela j tem problemas demais para que
eu mande um Perseguidor bater a sua porta.
Voc parece realmente muito estranho, ela diz.
Voc tem razo. So coisas emocionais no processadas que se transformam em coisas
distorcidas e paranoicas. Coisas, coisas, coisas.
OBrien faz uma pausa. Parece entender que minha averso a falar qualquer coisa a mais no
uma fuga do assunto, mas uma preocupao com privacidade. De qualquer modo, quando ela
fala, em um cdigo que s ns conhecemos.
Bem, eu gostaria que pudssemos nos ver, diz. Mas estou at o pescoo com uma anlise
de dissertao agora. E ainda h uma imensido de trabalhos atrasados de calouros para
corrigir. Pandemnio completo.
A palavra. O palcio do demnio. Nosso ponto de encontro.
Chato ouvir isso. Seria timo nos encontrar.
Fica para outra vez. At breve, ok? Cuide-se, David.
Obrigado. Cuide-se voc tambm.
Ela desliga.
E eu chamo um txi.
Estao Grand Central, digo ao motorista, e damos uma guinada para as ondas dos carros
que seguem em direo ao Centro.
Ao menos deveramos estar indo para o Centro. O motorista deve ser novo. Ou est chapado.
Ou ambos. Ele pega a Columbus Avenue na direo sul, antes de fazer uma agressiva e
espontnea curva direita que me joga contra a porta. Ele ento d a volta no quarteiro e,
mesmo tendo a chance de corrigir seu caminho, continua seguindo em direo avenida que
circunda o Central Park.
Eu falei Grand Central. A estao de trem, reclamo pela janelinha do dinheiro na divisria
de acrlico. Voc sabe de algo que eu no sei?
Ele no responde. Encosta no meio-fio, na altura do nmero setenta e pouco.
Por que voc parou?
Bato no acrlico. Ele no se vira.
Eu preciso seguir naquela direo, digo, apontando frente.
Voc est aqui diz o motorista. Mal se escuta sua voz, mas ela tem um som nitidamente
molhado, como se ele tivesse acabado de passar por uma cirurgia dentria que deixou sua boca
cheia de saliva e dormente.
Eu vou para o Centro.
para c que voc deve ir.
Ele no se move. No espelho retrovisor, apenas parte de seu rosto pode ser visto. E metade
dessa parte est oculta por culos escuros do tipo aviador, alm de uma barba negra, at o peito,

no estilo Oriente Mdio. Em resumo, ele se parece com um motorista de txi.


Exceto pela lngua. Deslizando por entre seus lbios, brilhante e obscena. A ponta se
contorcendo. Provando o ar.
Assim que saio e bato a porta, ele arranca. Tento anotar sua placa, mas em um segundo a viso
do carro bloqueada pelo trfego. Um sed amarelo detonado como todos os outros.
Agora estou aqui. A meio quarteiro ao norte da 72nd Street. Onde o grandioso e velho
edifcio Dakota domina o parque. No o lado sul, mais famoso, onde John Lennon foi
assassinado (ponto de parada para um nmero inesgotvel de turistas vampirescos), mas a
esquina norte, famosa por nada. Se o motorista queria que eu visse uma das manchas de sangue
mais amadas de Nova York, ele errou at nisso.
Decido que h uma razo.
tanto um ato de vontade da minha parte como deduo. No h mais acidentes, apenas
significados e profecias. Subitamente, sou um intrprete fundamentalista, buscando a
confirmao de algum Grande Plano no rosto da Virgem que surge no contorno de uma nuvem ou
no que aparece escrito na minha sopa de letrinhas.
Ele me largou na esquina norte do edifcio. Norte do Dakota.
Dakota do Norte.
O mapa na parede de Tess. O estado que ela escolhera para seu trabalho da escola. Ou, agora
que penso nisso, o estado que lhe foi indicado.
Por que Dakota do Norte?, lembro-me de perguntar no dia em que ela levou o mapa para
casa e comeou a vasculhar tudo em busca da fita adesiva para prend-lo na parede.
No sei. Foi indicado para mim.
Pela professora?
No, ela respondeu, fingindo estar ocupada fuando uma gaveta na cozinha.
Ento quem, minha linda?
Ela no respondeu. Mas ser que seus ombros se enrijeceram quando a resposta passou pela
sua mente, antes de ela tirar o rolo de fita da gaveta e correr para o quarto? Certamente como
eu me lembro desse momento agora, ainda que no tenha significado nada na ocasio alm de
uma impacincia de pr-adolescente com a rabugice do pai.
Significa muito mais que isso agora.
Se o propsito de eu errar por a a busca de sinais, talvez este seja um deles. Fosse ele um
dos caras bons, ou um dos malvados, o motorista me trouxe aqui por uma razo. Estou
destinado, como os apstolos, a ver significado nas coincidncias. Eu tenho de ver, pelo bem de
Tess.
F cega. Ainda que, no meu caso, no no cu, mas naqueles em guerra com ele.

Capitulum 11

CAPITULUM 11

No telefono para ningum. E para quem ligaria? Diane no precisa saber. E ainda que Tess no
esteja aqui, talvez ela saiba.
H OBrien. Em quem eu dei um cano. Eu poderia mandar um torpedo para avisar que no
vou, mas estou no metr, indo para meu escritrio no campus da universidade. L, rapidamente
pego as nicas coisas que acho que sero de alguma utilidade, alm dos cartes de crdito em
minha carteira. Livros. Monto s pressas uma biblioteca pessoal de demonologia com o que est
nas minhas prateleiras, que enfiada em uma bolsa de couro. Paraso Perdido. A Anatomia da
Melancolia. A Bblia. Junto com o necessrio, mas sem qualquer relao com os outros, Atlas
das Estradas dos Estados Unidos.
Vou do campus para o Harlem e compro um carro. Alugar certamente sairia mais barato, mas
temo que meu paradeiro fique mais fcil de traar se eu estiver comprometido com a Budget ou
a Avis em devolver a propriedade deles em algum momento. E h um revendedor de carros
usados na 142nd Street pelo qual passei uma vez a caminho de um bom mexicano (ou seja, de
um lugar que tem uma boa margarita) onde OBrien e eu estivemos algumas vezes. Eles aceitam
o pagamento total em cartes de crdito e no pedem um documento quando informo, para fazer
o registro, que meu nome John Milton.
A melhor deciso seria provavelmente um modelo genrico, algum confivel quatro portas
japons cinza ou bege. Em vez disso, compro um Mustang preto customizado. No um modelo
genuinamente antigo, mas um novinho em folha dois anos, com pouco mais de doze mil
quilmetros rodados, a confiar no odmetro com calotas cromadas e forro de pelcia de
oncinha nos bancos. Sutil para um padro de traficante de drogas, mas ainda assim algo que se

destaca nas discretas autoestradas e desvios da Amrica de hoje. Nunca dirigi um carro como
esse na verdade, nunca fui muito chegado a carros , e agora, andando pelo estacionamento
repleto de Mercedes tomadas por falta de pagamento e utilitrios com traseiras enormes, a
contradio de algum como eu, usando culos de armao metlica e Levis tradicional (o
eterno visual de estudante, como Diane chamava), montado em um carango de subrbio me
deixa empolgado. engraado. Se Tess estivesse aqui, ela tambm acharia engraado. Ela
pularia no banco do carona, acomodando-se na pele falsa de oncinha, e me diria para mandar
bala. Ento fao uma tentativa, em sua honra. Uma educada cantada de pneus e tomo a direo
sul, para o apartamento, onde jogo algumas roupas em uma bolsa. Junto com o dirio de Tess.
Ento, norte de novo, para as faixas que se unem e levam ponte George Washington, que me
conduz para fora da ilha. De l, na direo oeste na I-80, entrando na malha das interestaduais,
com seus restaurantes COMIDA BOA! e seus hotis CRIANAS GRTIS!, um mundo prprio, de
pontos de exclamao. Um porto asfaltado para espaos abertos e cada vez menos gente.
Deixando as certezas de Nova York para trs, na direo das possibilidades mais selvagens das
cidades e vilarejos menos explorados, das plancies esquecidas. Dakota do Norte. O Estado
Esquecido.
No que eu v chegar ao menos perto dele hoje. Uma fadiga acumulada me atinge quando
estou rodando pela divisa com a Pensilvnia, e comeo a procurar uma parada. Tambm para
ligar para OBrien. Ela no merecia minha rudeza, mais cedo, e provavelmente estar
preocupada com o fato de eu no ter aparecido. Mas eu senti que tinha de cair fora da cidade
imediatamente, uma urgncia alimentada tanto pelo Perseguidor como pela oportuna pea do
quebra-cabea que foi o edifcio Dakota.
Este lugar parece bom. Uma rea de piquenique sem mato, apenas alguns papis de
hambrguer rolando junto s latas de lixo entupidas. Paro no canto mais afastado do
estacionamento e ligo.
Voc est bem? OBrien pergunta ao atender. A preocupao em sua voz triplica minha
culpa.
Sim. Escute, desculpe por no ter aparecido esta tarde.
Ento voc entendeu meu cdigo.
Ah, sim. Alis, aquilo foi timo.
Estou corando.
Eu estava a caminho do Centro quando tive de mudar de ideia.
O que aconteceu?
Como responder? Recebi um sinal, digo.
Um sinal. Do tipo um sinal dos cus?
No do cu.
David, voc poderia por favor me dizer o que est acontecendo?

Como responder a isso? Que tal a verdade? A verdade impossvel que estou a meio caminho
de acreditar, mas no me permiti dizer isso em voz alta e nem mesmo pensar nisso at agora.
Acho que Tess pode estar viva, digo.
Voc ouviu algo? A polcia italiana eles a encontraram? Algum a viu?
No, ningum a viu.
Por Deus, David! Ela contatou voc? No pensamento seguinte, OBrien se torna sombria.
um sequestro? Algum est com ela?
Sim, algum est com ela.
Ningum me procurou, digo, em vez disso. A polcia no achou nada. Na verdade, eles
meio que desistiram de procurar. S esto esperando que seu corpo aparea. Eles acham que ela
est morta.
E voc no?
Parte de mim sabe que ela deve estar. Mas h outra parte que est comeando a achar outra
coisa.
Onde ela est ento?
No na Itlia. Nem aqui.
Ok. Imagine que eu estou segurando um mapa. Onde devo olhar?
Boa pergunta.
Voc no sabe?
No. Mas sinto algo. Que ela est viva, mas no viva. Esperando que eu a encontre.
OBrien respira. como um suspiro de alvio. Ou talvez seja o sinal de que ela est reunindo
as foras necessrias para levar adiante uma sesso com um amigo que, com essas ltimas
palavras, comprova que pode ser judicialmente interditado.
Mas acaba sendo outra coisa. Ela est ajustando a direo de sua mente, de modo a poder
viajar junto com minha linha de pensamento. No que ela aceite o meu raciocnio. Ela apenas
entrou no modo diagnstico.
Voc est falando sobre o esprito dela?, comea. Como um fantasma?
No, acho que no. Isso implicaria que ela se foi totalmente.
O purgatrio, ento.
Algo parecido.
Ela disse isso a voc?
Eu tentei me matar ontem, digo, e isso sai assim simplesmente, de maneira casual, como se
eu contasse que acabei de fazer uma limpeza nos dentes.
Oh, David.
Tudo bem. Tess me impediu.
A lembrana dela, voc quer dizer? Voc pensou nela e no pde faz-lo.
No. Tess me impediu. Ela atirou uma foto que estava na parede para que eu soubesse que ela
estava l. Que eu tinha um trabalho a fazer.

E que trabalho esse?


Seguir sinais.
Como isso funciona, precisamente?
No h nada preciso sobre isso.
Como funciona imprecisamente?
Acho que se trata de abrir minha mente. Usar o que eu conheo do mundo, de mim. Tudo o
que estudei e ensinei, tudo o que eu li. Pensar e sentir ao mesmo tempo. Destampar minha
imaginao, para que eu possa ver aquilo que treinei a mim mesmo que todos ns nos
treinamos para no ver.
A escurido visvel, ela diz.
Talvez. Talvez seja para o inferno que estou sendo atrado. Mas, se for isso, talvez Tess
tambm esteja l.
OBrien suspira de novo. S que desta vez eu sei o que . Um calafrio.
Voc est me assustando, diz.
O que te assusta? O fato de eu acreditar que Tess quer que eu procure por ela no inferno? Ou
o fato de eu soar como um doente mental em fuga?
Posso dizer que ambos?
Ela ri um pouco disso. No porque seja engraado, mas porque ela acaba de ouvir coisas que
fazem qualquer pessoa s rir.
Onde voc est agora?, ela pergunta.
Pensilvnia. Estou na estrada.
Voc acha que Tess pode estar l?
Estou apenas dirigindo. Procurando por sinais que me levem para mais perto dela.
E voc vai achar esses sinais na Pensilvnia?
Dakota do Norte, espero.
O qu?
complicado. Eu me sentiria como um idiota se contasse.
David? A verdade? Voc j soa como um cara meio idiota.
Obrigado.
Srio. Eu no sei o que fazer com tudo isso.
Estou louco.
Talvez no completamente louco. Mas eu preciso dizer isso, voc me deixou preocupada.
Voc est prestando ateno no que diz?
Sim. Tambm me deixou preocupado pra caralho.
Uma pausa. OBrien se preparando para chegar aonde ela tem de ir.
David?
Sim.
O que realmente aconteceu em Veneza?

Tess caiu, digo, concluindo que j falei demais. Eu a perdi.


No estou falando disso. Estou falando do que levou voc at l em primeiro lugar. Por que
Tess fez o que fez. Porque voc sabe, no? Voc no acredita que foi suicdio.
No, no acredito.
Ento me conte.
Eu quero. Mas compartilhar a histria da Mulher Magra, do homem na cadeira e da voz do
Inominvel demais. Eu me arriscaria a romper o frgil elo que ainda mantenho com OBrien, e
preciso dela ao meu lado. E tambm h o problema da segurana dela. Quanto mais ela souber,
maior o perigo a que eu a exponho.
No posso, respondo.
Por que no?
Apenas no posso. No ainda.
Tudo bem. Mas responda uma coisa.
Ok.
OBrien respira fundo. Devagar e ruidosamente. Ela no quer fazer essa pergunta, mas ela no
poder ficar ao meu lado se no o fizer.
Voc tem algo a ver com o que aconteceu com Tess?
Alguma coisa como? No entendi.
Voc a machucou, David?
Por mais chocante que seja a pergunta, eu imediatamente entendo de onde ela veio. Minha
conversa sobre sinais, espritos e purgatrio pode ser resultado de culpa. OBrien certamente
viu isso em seus anos de prtica psiquitrica. Uma conscincia insustentvel que busca alvio
por meio da fantasia.
No. Eu no a machuquei.
Assim que digo isso, eu me dou conta dos aspectos no to verdadeiros dessa resposta. No
fui eu quem levou o Inominvel de Santa Croce, 3.627, para o hotel? Tess no estaria aqui hoje
se eu no tivesse aceitado o dinheiro da Mulher Magra? Eu no machuquei minha filha. Mas
ainda h culpa.
Perdoe-me, diz OBrien. Mas eu tinha de perguntar, certo? Para pr tudo em pratos
limpos.
No precisa se desculpar.
muita coisa para digerir.
Entendo. OBrien?
Sim?
No chame os caras de jaleco branco para me buscar. Por favor. Eu sei como isso deve soar.
Mas no tente me impedir.
Isso no fcil para ela. Percebo pelo tempo que ela leva calculando os riscos de fazer tal
promessa, a responsabilidade que ela agora vai carregar se algo de ruim acontecer comigo. Ou,

acaba de me ocorrer, se eu fizer algo de ruim com algum.


Ok, ela finalmente diz. Mas voc ter de manter contato. Entendeu?
Pode deixar.
Ela quer saber mais, mas no pergunta nada. Isso me d uma chance para perguntar como ela
est sentindo, o que os mdicos esto dizendo, se ela est enfrentando algum mal-estar. Alm de
um pouco de rigidez pela manh, ela afirma que est se sentindo bem.
E quem liga para os mdicos?, acrescenta. Eles me deram receitas suficientes de opiceos
para divertir uma dzia de drogados em tratamento por um ms. Os mdicos romperam comigo.
E eu rompi com eles.
Eu sei que OBrien fala srio. Ela vai lidar com sua doena e, quando chegar a hora, com sua
morte, com firmeza e dignidade. Mesmo assim, ao falar do cncer, escondida logo abaixo da
superfcie de suas palavras, h uma aresta de raiva tambm. Do mesmo modo que eu. Ambos
decidimos soltar os cachorros contra os ladres invisveis que invadiram nossas vidas.
Eu vou voltar para a estrada, digo quando percebo que ela no quer mais falar do assunto.
Espero que voc encontre o que est procurando.
Mesmo se voc acha que uma miragem.
s vezes as miragens acabam sendo reais. s vezes h gua no deserto.
Eu te amo, OBrien.
Conte uma novidade, ela diz e desliga.
Viajo pelo cinturo do ao da Pensilvnia, a interestadual aproximando-se dos arredores de
cidades que giravam em torno de fbricas de celulose e fundies, os enormes cartazes
desbotados prometendo que ali era UM GRANDE LUGAR PARA VIVER! e sugerindo D UMA PARADA...
VOC VAI GOSTAR! Mas eu no paro. Continuo rodando at o incio da noite, o Sol dormitando
atrs das chamins e rvores.
De repente, uma joaninha pousa sobre o painel do carro. Os vidros esto fechados, e eu no a
havia visto antes. Ainda assim, l est ela, olhando para mim.
Isso me faz pensar como quase tudo agora em Tess. Uma memria que me surpreende
por suas possibilidades de releitura. O que diz sobre ela. Sobre ns. As coisas que ela deve ter
sido capaz de ver desde o incio, enquanto eu aperfeioava minha cegueira para elas.
Uma vez, logo depois de ela ter feito cinco anos, Tess me pediu para deixar a luz acesa
quando eu a estava colocando na cama. At ento, ela nunca havia demonstrado ter medo do
escuro. Quando eu perguntei sobre isso, ela balanou a cabea, expressando uma frustrao
voc-no-entendeu-papai.
No do escuro que eu tenho medo, ela corrigiu. do que tem no escuro.
Ok. O que tem no escuro que te assusta?

Esta noite? Ela estudou a questo. Fechou os olhos, como se convocando uma imagem em
sua mente. Abriu-os de novo assim que conseguiu.
Esta noite, uma joaninha.
No fantasmas. No a Coisa que Mora Embaixo da Cama. Nem mesmo aranhas ou vermes.
Uma joaninha. Tentei disfarar, mas mesmo assim ela me pegou rindo.
O que to engraado?
Nada, docinho. s que joaninhas? Elas so to pequenas. Elas no picam. Elas tm essas
pintas bonitinhas.
Tess me encarou com uma seriedade que arrancou o sorriso da minha cara.
No a aparncia de uma coisa que a torna m, afirmou.
Prometi a ela que, fossem boas ou ms, no havia joaninhas no apartamento. (Era pleno
inverno. Para no dizer que eu nunca vi uma o tempo todo em que moramos l, ou em qualquer
outro lugar de Manhattan, na verdade.)
Voc est errado, papai.
? Como voc tem tanta certeza disso?
Ela puxou a coberta at o queixo e voltou seus olhos para a mesinha de cabeceira. Quando
acompanhei seu olhar, vi uma joaninha na mesa. No estava l um segundo antes.
Pensando tratar-se de um brinquedo ou da casca seca de algum pavoroso inseto rastejante
morto h muito tempo, encontrada embaixo de um tapete e colocada ali por um truque esperto
das mos de Tess , eu me aproximei para examin-la. Quando meu nariz estava a poucos
centmetros dela, ela rapidamente se virou para me encarar. Abriu os litros para testar suas
asas negras.
s vezes, os monstros so reais, disse Tess, virando de lado e me deixando sozinho com a
joaninha me encarando. Mesmo se eles no se parecem com monstros.
Quando o Mustang d um pinote e eu acordo num pulo para descobrir que deslizei para o
cascalho do acostamento, chego concluso de que hora de procurar um lugar para passar a
noite. A prxima cidade? Milton. Populao 6.650. Outro sinal. Ou no. Ou uma coincidncia
vazia. Estou cansado demais para decidir.
H um Hampton Inn prximo autoestrada (C&C GRTIS. CDM! TV A CABO!). Eu me registro,
compro meia dzia de cervejas e um hambrguer e como no meu quarto, as cortinas fechadas.
L fora, a interestadual sussurra e boceja. A propaganda da televiso vive entre essas quatro
paredes.
Quando ela era menor, um dos jogos habituais entre Tess e eu era Quente/Frio. Ela escolhia
um item no apartamento e contava, baixinho, para Diane sua marionete de princesa, o
espremedor da cozinha e eu tinha de procurar, sendo guiado apenas por seus avisos de
Quente! e Frio!. s vezes, o item secreto era ela mesma. E eu me aproximava dela, as mos

esticadas frente, tateando como um cego. Quen-te! Queeeeeen-te! Mais quente! PELANDO!
Minha recompensa era um abrao risonho enquanto eu fazia cosquinha na minha presa, sem
piedade.
Agora estou aqui, em Milton, Pensilvnia. Procurando no escuro.
Estou ficando quente?, pergunto ao quarto.
O silncio traz uma nova onda de preocupao. E um grunhido do meu estmago, que no foi
acalmado pelo duplo bacon com queijo. Sentir a falta de algum como ter fome. Um vazio
insacivel no cerne de si prprio. Se eu me deixar ficar aqui, pensando nela, isso vai me
consumir.
E eu no posso sumir agora.
Pego o dirio de Tess no carro. Comeo pelo princpio desta vez. Muito do que ela escreve
o que se esperava. A normalidade de suas observaes os garotos amalucados de sua turma,
a perda de sua melhor amiga que se mudou para o Colorado, as humilhaes no quadro-negro do
seu professor de matemtica que cheira a cebola um alvio para mim. Quanto mais as
anotaes ficarem nesse patamar, mais eu posso alimentar a ideia de que ela era aquilo que
parecia. Uma menina esperta, uma amante de livros meio parte, defensora dos companheiros
nerds, feliz de todas as maneiras que importam.
Mas at mesmo a recordao da felicidade pode ter um efeito contrrio. Saber que um
momento no apenas passou, mas pode nunca mais ser citado de novo, traz um tipo
completamente novo de dor.
Sou provavelmente a nica criana da escola que gosta de ir ao mdico, ao dentista e ao
cara que examina os seus olhos. No porque eu goste de dentistas ou de mdicos ou dos
caras dos olhos. porque, a maior parte das vezes em que papai marca para eu fazer
essas coisas, na verdade estamos fugindo da escola.
Comeou, talvez, h um ano. Papai tinha de me levar ao dentista, e quando terminamos,
em vez de ele me levar de volta para a escola, tiramos o dia livre e visitamos a Esttua da
Liberdade. Eu me lembro de que o vento no barco que ia para l estava to forte que o
bon de beisebol dos Mets com as manchas de suor na borda que deixa a mame LOUCA
saiu voando e caiu no rio. Papai fez de conta que ia pular para pegar o bon, e essa dona
pensou que ele ia mesmo fazer isso e gritou pra caramba! Depois que papai conseguiu
acalm-la ele disse que s um idiota pularia no Hudson para recuperar um bon dos
Mets. Se fosse dos Rangers? Ento, talvez
Depois disso, comeamos a perder as aulas de propsito.
O esquema funciona assim:
Papai me pega aparecendo do nada, ento nunca sei quando vou ser liberada e s
decidimos o que vamos fazer quando estamos na rua. Na maior parte das vezes ns

apenas andamos e andamos pela cidade, olhando coisas, conversando e conversando.


Papai chama isso de Brincar de turista no seu quintal. Eu chamo de Passeando em
Nova York. No importa, TUDO.
Este ano, j acabamos nessa rua em Chelsea com umas galerias de arte esquisitas (tinha
uma escultura de um homem com flores crescendo do seu traseiro!), fizemos no um, nem
dois, mas TRS passeios de carruagem em torno do Central Park, e fizemos um piquenique
com macarro vietnamita no meio da ponte do Brooklyn.
Esta semana entramos em uma fila sem nem saber para que era. Acabou que era para o
Empire State Building. Eu nunca tinha ido l. Papai tambm no.
Eu vi as fotos, ele disse.
Fotos nunca so a mesma coisa que ao vivo, eu disse.
Depois de cerca de uma hora, tomamos o elevador e chegamos ao local de onde voc
pode ver Manhattan inteira. O parque, os dois rios, o que pareciam pequenas TVs em Times
Square.
Foi estranho ver como a cidade parece quieta vista de cima. O que barulho na rua fica
como um zumbido. Algo sendo ajustado. Voc no consegue saber se est se preparando
para uivar como um animal ou cantar como um anjo.
Continuo lendo. No tenho certeza do que estou procurando. Mais, suponho. Mais dela. Mais do
que eu sabia, bem como do que no sabia.
E encontro.
H um garoto que tem me visitado muito ultimamente. No neste mundo, mas no Outro
Lugar. Um garoto que no mais um garoto.
Seu nome TOBY.
Ele to triste que quase impossvel ficar com ele. Mas ele diz que foi destinado a
ns. Porque algo Muito Ruim de onde ele vem tem uma mensagem para o papai. E TOBY vai
entregar essa mensagem.
TOBY diz que sente muito. Que ele queria poder apenas ficar comigo, mostrar que
apenas uma criana, como eu. Uma vez, ele disse que gostaria de me beijar. Mas eu sei
que, se a coisa pedisse isso a ele, ele arrancaria minha lngua com os seus dentes se ns
nos beijssemos.
No conheo nenhum Toby. E por mais que eu no queira conhecer este, acredito que logo isso
ir acontecer.
Ela voc, disse OBrien. Mas Tess admitiu a existncia de seus demnios nossos
demnios de uma maneira que eu nunca consegui.
At agora.

Na pgina seguinte h um desenho. Como eu, Tess era mais de escrever e falar que de
desenhar, e a imagem que ela rabiscou aqui rudimentar. Ao mesmo tempo, talvez por sua
simplicidade, a imagem mais surpreendente. Os poucos detalhes que a distinguem, que a
tornam algo mais que apenas Um homem do lado de fora da casa, indicam a inteno por trs
dela. Em uma olhada eu pude ver que Tess testemunhara essa cena antes. Ou que esta lhe fora
mostrada.
Um horizonte plano. To amplo que passa de uma pgina para a outra, ainda que na segunda
pgina no haja nada alm da linha reta do cho e o cu acima. Isso funciona para isolar ainda
mais o assunto do desenho.
Na primeira pgina, uma casa quadrada com uma nica rvore no quintal, um caminhozinho de
cascalho frente. Um enorme vespeiro na ponta superior do telhado. Um ancinho encostado na
rvore. E eu. Aproximando-me da varanda com os lbios apertados para mostrar irritao, ou
talvez dor.
Apenas duas palavras na pgina. Sombriamente gravadas sob o cho sobre o qual estou, como
uma rede de razes.
Pobre PAIZINHO
Fecho o dirio com as mos trmulas.
TV. Entendo agora. a esmagadora solido dos quartos de hotel que faz com que todos liguem
a TV imediatamente ao entrar.
Vou trocando os canais at chegar CNN. E l est: o grande espetculo americano da
distrao. Abro uma lata de cerveja Old Milwaukee e deixo minha vista ficar embaada com as
telas divididas e as faixas de notcias que correm na parte inferior. Contagens de corpos,
celebridades entrando e saindo de clnicas de desintoxicao, a arrecadao das bilheterias. Os
apresentadores usando tanta maquiagem que parecem bonecos engenhosamente animados do
Museu de Cera Madame Tussaud.
No estou realmente assistindo. Nem ouvindo. Mas algo me atrai para perto da tela.
Leva um tempinho para que eu consiga atingir o nvel de ateno plena e compreenda que o
que me atraiu no uma notcia passando nem um nome que foi dito, mas nmeros. Uma srie de
algarismos deslizando pela parte inferior da tela. Cada um deles precedido por uma cidade. Os
ndices de fechamento das bolsas de valores no dia 27 de abril.
... NYSE 12595,37... TSE 9963,14... TSX 13892,57... DAX 5405,53... LSE 5906,43...
Nova York. Tquio. Toronto. Frankfurt. Londres.
O mundo ser marcado por nossos nmeros.
E foi.

Mas o que isso significa? Prova. o que o homem na cadeira prometera. Na ocasio, a voz
que queria ser reconhecida como um coletivo de demnios no respondeu o que os nmeros
provariam. Isso ficaria claro quando chegasse a hora. Que agora. A projeo correta dos
ndices de fechamento das bolsas prova que a voz estava certa, que previu uma srie de eventos
alm de qualquer chance razovel de coincidncia ou oportunidade de truque, algo que um
homem em um sto em Veneza, so ou qualquer outra coisa, nunca poderia fazer. Foi vencido
um dos testes do irmo Guazzo. Aquele que determina a voz como no humana.
Isso real.
Levanto. Jogo a lata de cerveja no lixo, de onde ela tenta escapar jogando espuma para o alto.
Ando de um lado para outro, desde o banheiro, onde lavo as mos, at a porta, onde espio pelo
olho mgico para a estrada noite.
O Inominvel fez sua promessa.
Quando voc vir os nmeros, voc s ter at a Lua aparecer.
A Lua, em si, no uma marcao de tempo. Mas ela tem um ritmo, uma maneira de medir o
tempo. O comeo do ciclo sendo a Lua nova, quando a superfcie est totalmente escura. O mais
prximo da ausncia total da luz do Sol a que o mundo chega. por isso que ela tem um papel
to grande na magia, sendo uma ferramenta tanto para adivinhadores bblicos como para
mgicos egpcios. Para demnios, tambm. uma forma de prever a morte de algum, entre
outras coisas. Lembro-me de ter lido sobre um mtodo em particular, no qual os judeus da
Morvia[29] enquadravam a Lua nova entre os ramos de um galho de rvore. Com o tempo, o
rosto de uma pessoa querida aparecia. Se as folhas cassem, essa pessoa estava destinada a
morrer.
Ento a prxima Lua ser a hora mais escura para mim, tambm. O momento em que Tess
estar para sempre fora do meu alcance.
A criana ser minha.
Pego meu celular, procuro um site que mostre um calendrio lunar global detalhado. Encontro
a data da prxima Lua nova. Confiro duas vezes. Mais uma vez, bem devagar. A data exatos
hora, minuto e segundo inscrita na memria.
Se eu no encontr-la antes, minha filha morrer s 6h51min48s da noite do dia 3 de maio.
Daqui a seis dias.

Capitulum 12

CAPITULUM 12

Eu tive um professor que certa vez, em um discurso inflamado desvairadamente fora do tema,
possivelmente estimulado pelo lcool, argumentou que se perguntssemos ao americano mdio o
porqu de termos nos dado o trabalho de combater na Europa na ltima guerra, se o americano
mdio fosse totalmente honesto, a essncia de sua resposta seria algo como Um Dennys 24
horas em todas as cidades.[30] Todos riram. Em parte porque provavelmente verdade.
Ento um brinde ao Mac n Cheese Big Daddy Patty Melt (do menu especial Viva o Queijo!)
com acompanhamento de anis de cebola frita s 23h24 no Dennys de Rothschild, Wisconsin.
Um brinde s garonetes cadeirudas com bules de caf grudados nas mos. Um brinde ao
conforto de um lugar limpo e bem iluminado, um osis da fritura ao longo da autoestrada. Um
brinde liberdade.
Estou fora de mim.
Tendo dirigido o dia todo, dando oi e tchau ao volante do Mustang para as paisagens de Ohio,
Illinois e Indiana, girando o boto do rdio AM, indo de coros evanglicos Lady Gaga, depois
desligando para embarcar em longos, assombrados silncios, estou faminto e solitrio. E o
Dennys proporciona alvio para as duas condies.
Mais caf?, pergunta a garonete, o bule de caf j meio inclinado na direo da minha
xcara. Eu preciso de mais cafena assim como preciso de um Louisville Slugger[31] na cabea,
mas aceito. Seria uma grosseria, talvez at falta de patriotismo, agir de outra forma.
Meu celular vibra em meu bolso. Um ratinho acordado de seu cochilo no ninho do bolso.
Estive pensando, diz OBrien quando eu atendo.
Eu tambm. Nem sempre algo bom de se fazer. Acredite em mim.

Tenho uma sugesto.


O sundae Maple Bacon?
Do que voc est falando?
Deixa pra l.
David, acho que voc est recriando sua prpria mitologia.
Tomo um gole de caf. Sabor de ferrugem lquida. Entendo.
um delrio, claro. Estou certa de que parece uma experincia bastante real para voc; no
entanto, um delrio.
Ento voc chegou concluso de que eu estou doido.
Cheguei concluso de que voc est se mortificando. Seu luto levou sua mente em uma
determinada direo, levou-a para um lugar onde sua culpa pode ser expiada de uma maneira
compreensvel.
Ahn-h.
Voc um professor de mitologia, certo? Voc d aulas sobre isso, vive isso, respira isso: a
histria dos esforos do homem para dar sentido dor, perda, ao mistrio. Ento onde voc
est, o que voc est ativamente criando. Uma fico que funciona em uma tradio de fices
anteriores.
Sabe, OBrien? Estou cansado. Voc pode me dar a verso do curso de frias?
OBrien suspira. Espero por ela, olhando pela janela prxima da minha mesa. O
estacionamento inundado de luz, como se espera de um evento esportivo, uma partida de
futebol a ser jogada entre as picapes e as minivans. Ainda assim, h cantos escuros, nos quais a
luz no chega. No mais distante deles, um carro de polcia, sem identificao, estacionado. A
silhueta escura da cabea do motorista apenas visvel no assento. Um patrulheiro tirando um
cochilo.
Conhece Ccero?, comea OBrien.
No pessoalmente. Acho que foi uns dois mil anos antes do meu tempo.
Ele tambm foi pai.
Tlia.
Isso. Tlia. Sua amada filha. E quando ela morreu ele ficou arrasado. No podia trabalhar,
no podia pensar. At Csar e Brutus enviaram cartas de psames. Nada ajudava. Ento ele leu
tudo que estava disponvel sobre a superao da dor, sobre o domnio da fria realidade da
morte. Filosofia, teologia, provavelmente alguma coisa de magia negra tambm. No final, no
entanto...
Minha dor derrota toda consolao.
Um ponto extra pela citao correta, professor. Todas as leituras e pesquisas de Ccero de
nada adiantaram. No havia nenhum feitio que ele pudesse invocar para trazer Tlia de volta.
Fim da histria.
Exceto pelo fato de que no foi o fim da histria.

No. Porque a que nascem os mitos. No ponto onde terminam os fatos e a imaginao
prossegue, disfarada de fato.
A chama eterna.
Exato. Algum em Roma encontra o tmulo de Tlia no sculo XV e encontra uma
lamparina! Ainda acesa depois de todos aqueles sculos!
O amor imortal de Ccero.
Impossvel, certo? Uma chama literal nunca poderia queimar por tanto tempo assim. Mas
uma chama figurativa, sim. O smbolo poderoso o bastante til o bastante para todos
aqueles que j perderam um ser amado, ou seja, todo o mundo para que o mito se sustente.
Talvez at que se torne crvel.
Voc est dizendo que sou Ccero. Exceto que, em meu caso, em vez de chamas eternas,
minha inveno consiste em espritos maus que me enviam em uma caada intil.
A questo no essa. A questo que voc um pai. Isso que voc est enfrentando, esses
sentimentos, tudo normal. At mesmo os sinais secretos e pressgios devem ser vistos como
normais.
Ainda que eles no sejam reais.
E eles no so. Com quase toda a certeza, eles no so.
Quase. Voc disse com quase toda a certeza.
Tive de dizer.
Por qu?
Porque voc.
L fora, no estacionamento, o policial que cochilava acorda. Sua cabea se ergue, uma mo
ajusta o espelho retrovisor, para afastar o sono de seus olhos. Mas ele ainda no liga o motor.
No sai do carro.
H um problema com a sua analogia, digo.
Sim?
No estou alegando que encontrei uma lamparina queimando h centenas de anos. Tudo que
vi, vi com meus prprios olhos. E nada, falando rigorosamente, cientificamente impossvel.
Talvez no. Eu no saberia. Voc no me contou o que voc viu. Mas veja aonde isso o
levou. Atravessar o pas dirigindo seguindo pistas deixadas por por quem? Tess? A Igreja?
Demnios? Anjos? E com que objetivo? Recuperar sua filha das mos da morte.
Eu no disse isso.
Mas nisso que voc est pensando, no ?
Algo assim.
No estou dizendo que est errado. Estou falando que est tudo bem. Quantos cursos voc
deu sobre Orfeu e Eurdice? Dez? Vinte? Faz sentido que, neste momento de aflio, seu crebro
recupere essa velha histria e a refaa sua moda.

Estou em uma jornada para o inferno. isso?


Eu no estou dizendo isso. Voc sim. Para encontrar aquela que voc mais ama. A velha nsia
humana de ultrapassar as fronteiras da mortalidade.
Orfeu tinha uma lira que encantou Hades. O que eu tenho? Uma mente cheia de dissertaes.
Voc tem erudio. Voc conhece o territrio. Mesmo que esse territrio seja completamente
inventado.
Voc esperta, OBrien.
Ento voc vai voltar para Nova York?
Eu disse que voc era esperta. No que voc estava certa.
Enquanto isso, a luz dentro do carro do patrulheiro estadual se acende. Revela detalhes
suficientes do interior para mostrar que eu estava errado. Apesar de ser um desses enormes
modelos Crown Victoria da Ford usados pela polcia, no um patrulheiro que est ao volante.
Barone. O Perseguidor. Mostrando-me um sorriso irnico pelo espelho retrovisor.
Ligo para voc depois, digo, levantando e largando uma nota de cinquenta na mesa para
sair.
David? O que est acontecendo?
Orfeu tem de correr.
Eu desligo e caminho para o carro. Mas, antes disso, a garonete me chama. Era para ser um
gracejo, mas, no estilo do Meio-Oeste, soa como uma ordem.
Tenha um bom dia!
S que este no um bom dia.
Dirigindo podre de cansado noite adentro, pegando atalhos a esmo, parando nas estradinhas de
acesso s fazendas com os faris apagados para ter certeza de que no estou mais sendo
seguido.
Parece funcionar. Quando as primeiras cores da aurora surgem no horizonte, no h mais
qualquer sinal do Perseguidor. Isso me permite consultar o mapa e traar meu progresso para
Dakota do Norte. Decido me manter nas estradas secundrias e evitar as interestaduais. Ponho o
sono de lado e apenas continuo dirigindo. Uso a energia nervosa de quem vara a noite e vejo o
quo longe ela vai me levar.
O problema que esse tipo de coisa tem seus efeitos colaterais. Suor pastoso. Indigesto.
Alm de ver coisas.
Como a pessoa frente, por exemplo. Uma garota com o polegar esticado, no gesto universal
do carona. S que a garota Tess.
Piso forte no acelerador a fim de deixar a viso para trs. Quando passo por ela, fao questo
de no olh-la, pois sei que no pode ser ela, e se no ela, ento muito provavelmente
alguma coisa srdida. Uma mscara de pesadelo usada pelo Inominvel para se divertir. Pela
dor que ela causa.
Ainda assim arrisco uma olhada no retrovisor ao passar, e ela continua l. No Tess de

forma alguma, e sim uma garota alguns anos mais velha. Parecendo muito mais assustada que eu.
Paro o Mustang e ela corre pelo acostamento, uma mochila suja de Dora, a Aventureira,
balanando-se contra seu quadril. O mpeto de arrancar. Mesmo que ela no esteja envolvida no
que OBrien acredita ser meu delrio de fabricao de mitos, no pode haver nada de bom em
pegar pessoas perdidas nas estradas do interior de Iowa. Estou violando a regra nova-iorquina
de no se envolver.
medida que ela se enquadra melhor no retrovisor, sua corrida agora uma caminhada, posso
ver que ela tem aquele olhar inexpressivo dos que esto h muito tempo sozinhos. Tentando
escapar. Ela se parece cada vez menos com Tess a cada passo. Mas ela tem mais coisas em
comum comigo.
Ela abre a porta e desaba no banco de carona antes mesmo de me olhar. E quando ela o faz,
no para meu rosto que ela olha, e sim minhas mos. Calculando se elas so capazes de fazer
algum mal.
Para onde voc est indo?, pergunto.
Ela fixa o olhar frente. Direto.
Isso no um lugar.
Acho que no tenho certeza de para onde vou.
Voc est encrencada?
Ela me olha pela primeira vez. No me leve para a polcia.
No vou. Nem se voc quisesse. S preciso saber se voc est machucada.
Ela sorri, mostrando um bocado de dentes surpreendentemente amarelos. No sentido de
machucada de hospital, no.
Ela se vira para olhar pelo vidro traseiro, como se tambm estivesse sendo seguida. Retomo a
estrada e deixo passar um quilmetro e meio antes de olhar para ela novamente.
Voc parece um pai, ela diz.
por causa do cabelo grisalho?
No. Voc apenas parece. E acrescenta: Voc lembra o meu pai.
Engraado, porque voc lembra um pouco a minha filha. Mas ela mais jovem. Quantos anos
voc tem?
Dezoito, ela responde. E agora, nessa proximidade do Mustang, ela no se parece nem um
pouco com Tess, o que faz com que eu tambm tenha contado uma mentira.
Voc ainda vive com sua famlia?, pergunto.
Mas ela no est prestando ateno. Ela pegou meu iPhone do apoio para copos do carro,
onde eu o havia deixado, e est tocando em sua tela, seus dedos pulando a cada reao que
provocam, como se ela nunca tivesse visto tal coisa.
um telefone, explico. Voc quer falar com algum?
Ela considera isso um momento. Sim.
V em frente. Voc sabe qual o nmero?

Eles no tm um nmero.
As linhas telefnicas no chegam l onde eles vivem?
Ela faz um som como se sugasse por entre os dentes, que poderia ser uma demonstrao
sufocada de riso. Continua a brincar com a tela, passando de um aplicativo para outro com
rapidez cada vez maior, medida que ela aprende as funes do aparelho. Isso me permite
espi-la sem que ela se d conta. Cabelo avermelhado em um rabo de cavalo, sardas grandes,
um vestido leve imundo com padro de pintinhas rosa. Uma boneca. Uma enorme boneca de
pano que ganhou vida. Ela , isso me ocorre em meio a uma onda de vergonha, um fetiche
ambulante. A Menina Sardenta do Campo. A Boneca de Pano Obscena. Algo que faltava nela foi
preenchido por detalhes ordinrios, vagamente sexualizados.
Ela fecha uma janela no celular e gira a cabea em volta, pegando-me a olhar para ela. Pela
primeira vez, seus olhos simulam um brilho ao encontrar os meus. Isso me d a sensao de que
ela me pegou no meio de algum ato lascivo, na indulgncia de alguma perverso particular. E
seus olhos dizem que tudo bem. Meu segredo est a salvo com ela.
Voc acredita em Deus?, ela pergunta. Uma renascida. Talvez seja tudo o que essa menina
seja. Talvez apenas uma inofensiva fantica da Bblia, pegando uma carona para algum
churrasco saudosista mais acima na estrada. Isso explicaria sua voz inspida, os olhos ao mesmo
tempo observadores e opacos. Sua aparncia bizarra, semelhante de uma boneca, teria sido
aprendida. Um subproduto da f.
No sei se h um Deus ou no, respondo. Se existe, nunca o vi.
Ela me encara. No se mostra aborrecida com minha resposta. Apenas espera para ouvir o
resto.
Mas eu vi o Demnio. E, eu garanto a voc, ele real.
Isso leva um momento para alcan-la. Como se ela estivesse do outro lado de uma ligao
interurbana ruim, esperando que o significado chegasse. Quando chega, ela faz novamente
aquele som de sugar os dentes.
Volto os olhos para a estrada. Corrijo a inclinao para a esquerda que levou o Mustang para
a contramo.
Como ele ?, ela pergunta.
Ele no se parece com ningum. Ele se parece com voc, quase digo.
Inicialmente, quando sinto meu colo quente, penso que mijei nas calas. Muito cansao, muito
caf. Um fluxo incessante de ardor desce por minhas pernas.
Mas quando olho para baixo, esperando encontrar meus jeans molhados, vejo em vez disso a
mo da garota. Meu zper aberto. Sua mo dentro.
Voc acredita aqui, ela diz, colocando o indicador de sua mo livre contra minha tmpora.
S que a voz no mais a da garota. a voz que falou pela boca de Tess no terrao do Bauer.
Ao mesmo tempo viva e sem vida.
Agora voc precisa acreditar aqui, diz o Inominvel.

Com isso, ela aperta.


Arranco a mo dela com um puxo em seu pulso, mas isso resulta em uma virada quase total
do volante, o que faz o carro resvalar no acostamento antes de dar uma guinada violenta para o
outro lado, oscilando pelas duas pistas. Pisar no freio agora nos faria rodopiar, e nessa
velocidade o ponteiro encostando em 100 km/h ns sairamos voando para um campo
prximo. O melhor a fazer realinhar o carro para ento reduzir a velocidade. E me encarrego
de fazer isso, soltando a garota, de modo a manter as duas mos no volante, compensando o
movimento da traseira do carro ao mover as rodas dianteiras na outra direo.
Estamos nos endireitando, e eu comeo a pisar no freio, quando a garota enterra as unhas no
meu rosto. o que d incio derrapagem.
Cu.
Asfalto.
Lua em pleno dia.
Um espetculo de giros e luzes.
Paramos no meio da estrada. Se alguma coisa vier do outro lado da elevao vai nos acertar
antes que tenha tempo de frear.
Mas agora a garota est arranhando, guinchando e rangendo os dentes como um animal
raivoso, como o homem na cadeira em Veneza. Eu a empurro contra a porta do passageiro e sua
cabea bate no chassi. Ela nem sente. Apenas d um novo bote. Busca meus olhos.
Balano meus punhos sem parar acertando sua mandbula, suas costelas, um golpe direto
em sua orelha. Ento, quando ela parece estar enfraquecendo, eu me debruo sobre suas pernas
e abro a porta.
Estou voltando ao lugar quando ela morde.
Dentes que se enterram, rosnando, na parte de trs do meu pescoo. No sei se o grito
estridente que se segue dela ou meu. O vvido choque da dor subitamente me traz uma nova
fora. o bastante para empurrar a garota porta afora, e ela cai de bunda na estrada com um
suculento ploft!
Retomo o volante. Engato a primeira.
Mas a garota vem junto.
Nos dois segundos que levei para comear a andar ela deve ter se erguido, agarrando-se
firmemente na janela aberta da porta do carona. A garota agora est sendo arrastada pelo carro.
A porta abre, de modo que ela sai raspando o cascalho do acostamento. Ento, quando fecha de
novo, ela bate contra a lateral do carro.
O Mustang voa por cima da elevao.
A garota uiva.
Deixo meu p afundar no pedal at o cho.
Por favor!
Uma nova voz. No a falsa, que pertencia Boneca de Pano, nem a do Inominvel. A voz real

da garota. Aquela que lhe pertencia quando ela estava viva. Tenho certeza disso. Essas palavras
abriram caminho por sobre a muralha da morte para pedir uma ajuda que eu no posso dar.
Essa impresso se confirma quando me viro para olhar. A garota agora est sendo aoitada na
lateral do carro, ainda agarrada porta, que continua a abrir e fechar. Mas eu no reduzo a
velocidade. Porque ela j se foi. J pertence a ele.
Me ajuda!
Ela sabe que eu no posso. Uma garota que nadou at a superfcie apenas para dar de cara
com um estranho que est se afogando igual a ela.
Mas eu lhe estendo a mo de qualquer forma. E ela faz o mesmo. Solta sua mo esquerda da
maaneta e a estica sobre o banco do carona, de modo que, por um breve instante, nos tocamos.
A pele fria como carne retirada do fundo do congelador.
Ainda assim, tentamos de novo.
Isso fora seu peso para trs e a porta se escancara. Sangue escorre de suas pernas que se
arrastam pelo asfalto, dando pulos como uma fileira de latas amarrada a um para-choque onde
se l RECM-CASADOS!. Ela olha para mim e, segundos antes de ela soltar a porta, vejo a
opacidade retornar a seus olhos. Quem quer que ela tenha sido na vida afundou de novo nas
guas. Agora s resta essa marionete animada, essa casca de rosto sardento.
Ento ela se vai.
As unhas de uma das mos arranham a lateral do carro, buscando onde se agarrar. Um baque
nauseante quando a roda traseira do Mustang passa por cima da garota.
Paro.
Saio do carro e vou para trs. Eu me ajoelho para olhar debaixo do chassi, procuro ao longo
das valas nos dois lados da estrada. Nada da garota.
Passo a mo na parte de trs do pescoo e ela volta suja de sangue. E o iPhone. Ainda ligado.
Ainda guardando os minutos que se passaram desde que ela encontrou o aplicativo do gravador
e o ligou.
Volto. Teclo PLAY.
Voc acredita em Deus?
Quem quer que ela tenha sido, ela estava aqui. No uma parte da minha construo de mitos.
No um delrio. Toda a conversa foi gravada.
...E, eu garanto a voc, ele definitivamente real.
Desligo o gravador para no ter de ouvir o pedido de socorro da verdadeira garota. Um som
mais assustador at mesmo que o tom de voz vazio do Inominvel.
A ideia de que eu deveria apagar esse arquivo me passa pela cabea. o que quero fazer mais
do que qualquer outra coisa.
Em vez disso eu lhe dou um nome. Chamo o arquivo de BONECA. Salvo.

Capitulum 13

CAPITULUM 13

Encosto para tirar cochilos de vinte minutos. Dirigir. Dormir. Dirigir. tarde atravesso a divisa
de Dakota do Norte sem que ningum perceba. Eu mesmo mal me dou conta.
Em Hankinson, depois de um borrachudo misto-quente e um bule inteiro de caf, eu me sinto
inutilmente revigorado. Estou em Dakota do Norte. E agora? Espero um telegrama? Vou de porta
em porta, escancarando minha carteira com uma foto de Tess de cinco anos atrs e pergunto se
algum viu minha filha? Imagino a cena:
VELHINHA FOFA

Oh cus. Que coisa horrvel. Ela desapareceu por aqui?


HOMEM

No, aqui no. Em Veneza, na verdade.


E ningum alm de mim acredita que ela possa estar viva.
VELHINHA FOFA

Entendo. E o que voc acha que aconteceu com ela?


HOMEM

Eu? Eu acho que um demnio a mantm prisioneira.


VELHINHA FOFA

Henry! Chame a polcia!


BAM!

A porta bate bem no nariz do HOMEM.


Ele o esfrega e vai embora, e se ouvem SIRENES ao longe.
Resolvo, j que estou aqui, dar uma olhada nas atraes de Hankinson. No demora muito. Hot
Cakes Caf. Golden Pheasant Bar & Lounge. Banco Estadual Lincoln. Umas poucas igrejinhas
brancas, revestidas de madeira, recuadas. Um dos maiores orgulhos da cidade, a julgar pela
placa de tinta descascada, OKTOBERFEST... EM SETEMBRO!
Mas nenhum sinal de Tess ou do Inominvel. Nem um sinal de qualquer sinal. Quando chego
Biblioteca Pblica de Hankinson uma estrutura de aspecto provisrio, de blocos de concreto
e janelas minsculas , entro com a ideia de tomar as rdeas da situao. Afinal de contas, sou
um pesquisador profissional. Eu deveria ser capaz de achar uma aluso encoberta, uma
piscadela escondida em um texto. Mas qual o texto? O nico livro com o qual estou
trabalhando o mundo real minha volta. Um material em cuja traduo eu nunca fui muito
bom.
Adquiro um carto da biblioteca por um dlar e cinquenta, acesso um dos terminais de
computador. Acho que posso muito bem comear por onde todos os meus graduandos
preguiosos iniciam suas pesquisas para dissertao estes dias. Google.
Dakota do Norte traz os resultados-padro da Wikipdia sobre populao (672.591, o que o
coloca em quadragsimo stimo lugar entre os estados em densidade), capital (Bismarck),
senadores (um democrata, um republicano), o ponto mais elevado (que Colina Branca, o que
provoca uma catalogao mental de possveis trocadilhos).[32]
Mas tambm h, bem no fim dos resultados, uma lista dos jornais estaduais. Beulah Beacon.
Farmers Press. McLean County Journal. E um que salta aos olhos: Devils Lake Daily Journal.
para l que devo ir? O nome adequado, ainda que a pista me parea muito bvia para o
Inominvel, cujo carter (se que se pode dizer que tenha carter) tem se mostrado mais sutil,
deleitando-se com sua inteligncia. Ento no, no vou pegar a estrada para Devils Lake.[33]
No vou pegar a estrada para lugar algum at descobrir o porqu de eu estar aqui.
Talvez seja essa a questo. Talvez no seja o caso de eu me mover, de errar ainda mais, mas
sim de chegar.
O que me leva a pensar se eu no vim a Dakota do Norte no para encontrar outro enigma para
decifrar, e sim uma histria. Como Jesus encontrando o homem em Grasa possudo por uma
legio de demnios, como eu voando para ver o colega acadmico amarrado em uma cadeira em
Santa Croce, talvez eu esteja aqui para testemunhar outro fenmeno. Talvez meu papel e

meu caminho para encontrar Tess no seja como acadmico ou intrprete, mas como um
cronista. Algum que rene antievangelhos. Ou provas.
Era a tarefa dos discpulos. Mas eles s conquistaram suas vagas depois de professar sua f
inquestionvel no messias. Eu? No estou seguindo o Filho de Deus, mas um agente profanador
do outro time. E, por Tess, eu o farei. Por ela, verei o que quer que seja que nunca deveramos
ver.
Um problema. Se estou aqui para procurar por um novo caso, este certamente no vai pular
na minha frente nas ensolaradas e muito amplas ruas de Hankinson. Mais uma vez, as indicaes
da presena demonaca provavelmente no estaro totalmente visveis por a, mas antes
disfaradas como alguma outra coisa, assumindo uma mscara, a exemplo de quando o
Inominvel me visitou como a garota no carro, o homem na igreja, o velho no avio. Ser um
acontecimento que poderia ser racionalmente explicado, mas que tem algo de muito estranho e
errado. O tipo de histria que obtida nas agncias de notcias e divulgada junto a outras
esquisitices nas interminveis pginas da internet. O mistrio passageiro que pode ser
encontrado nas pginas finais dos jornais das cidades pequenas. Algo que, aparentemente, no
falta em Dakota do Norte.
Uma nova busca. Demnios Dakota do Norte. O que me leva diretamente pornografia.
Outra tentativa.
Inexplicvel Dakota do Norte.
Mistrio Dakota do Norte.
Desaparecimento Dakota do Norte.
Fenmeno Dakota do Norte.
Depois de algum tempo procurando, uma histria chama mais a ateno que as outras. Um
texto bem curto, que no aparenta ser mais do que um fim de linha deprimente e comum para as
inmeras almas negligenciadas, algo mais para o lado triste que exatamente perturbador.
A histria apareceu inicialmente em 26 de abril no jornal Emmons County Record, de Linton.
H apenas trs dias.
M U LH ER D E ST RA SBU RG , 77, SU SP EITA D O
D ESA PA RECIM EN T O D A IRM G M EA

Delia Reyes assegura que sua irm,


Paula Reyes, seguiu vozes.
Por Elgin Galt
LINTON

Delia Reyes, de 77 anos, que passou a vida trabalhando em uma pequena fazenda em
Strasburg com sua irm gmea, Paula Reyes, foi classificada como uma pessoa-chave
pelo delegado que conduz as investigaes sobre o desaparecimento desta ltima.
Delia Reyes procurou a polcia h seis dias, em 20 de abril, para informar o
desaparecimento de sua irm. Ao ser interrogada pelos policiais, no entanto, a mulher deu
uma verso dos fatos que deixou as autoridades intrigadas.
Segundo Delia, h algum tempo Paula ouvia vozes vindo do poro, contou o delegado
Todd Gaines ao Record. Vozes que a chamavam, para descer e juntar-se a elas.
Delia disse polcia que ela prpria no ouvia essas vozes e estava preocupada com o
estado mental de sua irm. Temendo que esta pudesse se machucar, ela fez Paula prometer
que no desceria sozinha.
Ento, segundo Delia, uma noite Paula no conseguiu mais resistir. Ela declarou ter visto
Paula abrir a porta que dava para o poro e descer as escadas. Quando Delia que tem
algumas limitaes fsicas conseguiu descer, Paula havia sumido.
Foi a ltima vez em que ela, ou qualquer outra pessoa, viu Paula Reyes, disse o
delegado Gaines.
Com a permisso da srta. Reyes, os investigadores vasculharam exaustivamente o interior
e o exterior da propriedade das irms, mas at agora no encontraram qualquer sinal da
idosa.
Perguntado se havia algum indcio de crime, o delegado Gaines disse que no. um caso
de desaparecimento que consideramos um pouco fora do comum, apenas isso, afirmou.
Apesar de diversas tentativas de contato, Delia Reyes recusou-se a comentar as
investigaes.

Demncia em idosos no nenhum sinal de demnios. No entanto, vozes que convidam voc a
juntar-se a elas em um velho poro em Dakota tm algo que pode ser til. , pelo menos esta
semana, o melhor que o quadragsimo stimo estado mais densamente povoado da nao tem a
oferecer em termos de pistas deixadas pelo Adversrio.
Penso em ligar diretamente para o reprter, Elgin Galt, mas depois acho melhor no faz-lo. O
Emmons County Record no precisa saber que um professor de Nova York ligou para saber da
irm Reyes sobrevivente. melhor que ningum fique sabendo. Nenhum telefonema antecipado,
nenhum pedido por alguns minutos do tempo da senhorita Delia.
De qualquer maneira, no quero informaes. No isso o que o Inominvel espera de mim.
Ele espera que eu seja uma testemunha. Que eu documente. Que eu construa uma narrativa
sombria de seus feitos.
O Livro de Ullman.

Capitulum 14

CAPITULUM 14

A viagem de Hankinson para Linton to completamente destituda de pontos de referncia ou


de interesse que chega a ser uma verso do inferno. No as ardentes, lotadas de almas, cavernas
das pinturas de Giotto, mas um lugar de tortura onde o tdio o principal castigo.
Ainda assim, medida que tomo a sada da autoestrada 83 que conduz a Linton, tenho a
sensao cada vez mais forte de que tinha razo em vir para c. Ou seja, no vem nada de bom
por a.
Um desconforto que a paisagem afvel que as plantaes de gros no incio da estao e as
chcaras com longas veredas no conseguem disfarar por completo. Uma espcie de som. Uma
nota de alta frequncia que nunca desaparece totalmente.
De incio acho que o canto das cigarras, mas, mesmo quando fecho totalmente as janelas,
continuo ouvindo. Eu acharia que seria uma espcie de zumbido nos ouvidos se s vezes eu no
distinguisse algo no meio disso. Palavras. Um monlogo indiscernvel ou uma declamao
transmitida em uma altura fora do alcance da audio. Uma voz sibilada se dirigindo ao mundo.
E agora, medida que me aproximo da fazenda Reyes, comeo a desenvolver a indesejada
capacidade de compreender sua mensagem.
Quando chego a Linton h como que uma triste escurido pulverizada sobre a cidade. Uma luz
esparsa que parece realar as bandeiras esquecidas do lado de fora de metade das lojas, as
enormes faixas APOIEM NOSSAS TROPAS amarradas nos troncos de olmos e nas varandas das
casas. Agora j tarde para procurar a fazenda Reyes. Ento, em primeiro lugar, uma pizza

havaiana para viagem na Hot Spot Pizza. O quarto mais afastado do Dons Motel. Uma ducha
pelando. Uma surfada na TV, entre vtimas da fome e shows de calouros. Cama.
Durmo apenas para ser acordado em poucos minutos. o que sinto, mas o relgio na mesa de
cabeceira marca 3:12 AM. A nica luz uma plida rstia que vem do estacionamento, que se
espalha na parede vindo por baixo das cortinas fechadas. E nenhum som. Nenhuma razo para
ter acordado, afinal.
Ao mesmo tempo tenho esse pensamento, eu ouvi algo. O rangido de uma mola metlica. O
roar de pele contra borracha. Um som de quintal, de infncia.
Algum pulando numa cama elstica, sem parar. Um jogo triste, sem risadas ou gritos.
Levanto e dou uma espiada pela janela da frente, sabendo que no vou ver nada l. O som vem
de trs do anexo do hotel.
... Riic-TIC. Riic-TIC. Riic-TIC...
O pulador continua pulando. O som mais alto no banheiro.
A cama elstica est perto da janela de ventilao. As cortinas de nilon repetidamente
sopradas e sugadas, como se os pulos fossem o som da respirao noturna, o fragmento
enferrujado de suas inspiraes e expiraes.
Abro a cortina da janela de ventilao. A brisa agora direto em meu rosto. A janela muito
pequena para que se possa ver muita coisa sem chegar perto. Para ver qualquer coisa alm de
parte do gramado dos fundos e do charco mais frente, tenho de encostar o nariz na tela de
proteo.
... Riic-TIC. Riic-TIC...
Olho para a direita. Nada ali.
Pressiono com mais fora at que a tela sai de sua moldura. Ponho a cabea para fora. Meu
pescoo apoiado no peitoril.
... Riic-TIC...
Olho para a esquerda. L est ela.
Os braos de Tess artificialmente rgidos ao lado do corpo. Suas pernas s se dobram nos
joelhos em compasso perfeito com a lona, de modo que seus pulos tm sempre a mesma altura.
Os ps descalos retos como madeira serrada.
Seu corpo, ainda que no esteja sob seu prprio controle. Seu rosto. Do queixo para cima
minha filha que me olha com ar confuso, em pnico. Sem saber bem por que est aqui, como
fazer isso parar. Ela mantm seus olhos em mim porque tudo o que pode fazer. A nica coisa
que a prende a este mundo.
Sua boca se abre. Nada sai. Posso ouvir, de qualquer forma.
Papai...
Tento me enfiar pela janela, mas ela pequena demais para que meus ombros passem. Ento
retiro minha cabea de l e corro para a porta. Os ps descalos se apressam no

estacionamento, depois deslizam pela grama mida de orvalho quando viro a esquina.
Mesmo quando vejo que ela no est l, continuo correndo. Coloco minhas mos na superfcie
da cama elstica, buscando um resqucio do calor dela.
Contorno o prdio na tentativa de conseguir v-la. Eu entro no charco e afundo at a cintura
em uma escurido que libera arrotos de enxofre.
claro que ela no est aqui.
claro que eu continuo procurando.
Por mais de uma hora, caminho por toda a extenso do terreno do hotel. Gritando seu nome a
cada cinco minutos, mesmo depois de um hspede abrir a porta e avisar que, se eu no calar a
boca, ele prprio vai cuidar disso. Em algum momento, seu nome se transforma em lgrimas na
minha garganta. Um louco enlameado andando na noite, uivando para a Lua minguante.

No foi o que se poderia chamar de uma boa noite de sono.


Pela manh, vou cidade para fazer a primeira refeio do dia no Harvest Restaurant & Grill
e estaciono na rua. Ao me dirigir para a porta do restaurante, um vira-lata abanando o rabo se
aproxima para um afago. Digo-lhe bom dia e ele responde com uma lambida em meu pulso.
Fique de olho no meu carro, sim?, peo, e ele parece compreender, sentando na calada e
me olhando partir, suas orelhas de p como duas tendas no alto de sua cabea.
L dentro, pego uma mesa perto da cozinha, de costas para a porta. por isso que, um minuto
depois, no vejo se aproximar o homem que se senta minha frente, jogando o New York Times
de ontem na mesa.
Pensei em trazer um gostinho de casa para voc, afirma o Perseguidor.
Olho em volta. Nenhum dos outros clientes parece ver algo de estranho na sua sbita apario.
E por que deveriam? Dois estranhos, viajando juntos, reunindo-se para tomar o caf da manh.
Pensando bem, essa afirmao mais ou menos verdadeira.
Voc me achou, digo.
Eu nunca perdi voc.
Cascata.
Ok. Precisei dar alguns telefonemas para recuperar a pista.
Telefonemas para quem?
Ele coloca o indicador sobre os lbios. Segredo comercial.
A garonete chega para servir caf para ns dois. Pergunta se estamos prontos para pedir. Eu
aponto o Especial n4, o Festim do Fazendeiro.
Torrada, diz o Perseguidor, devolvendo o cardpio sem tirar seus olhos dos meus.
Vem a minha mente a ideia de que, agora que ele me achou de novo, este homem vai me matar.
No aqui neste restaurante, no neste momento. Mas certamente aqui, em Linton. estranho, mas
mais do que meu iminente assassinato, a ideia de morrer em Dakota do Norte que me deixa

abalado. Sempre achei que minha vida montona chegaria ao fim em casa, na cama, sedado e
sem sentir dor, recitando os poetas na hora da minha partida. Levar um tiro em Caipiralndia
pertenceria histria de outro homem. Mas claro, estou vivendo a histria de outro homem
agora.
Bem, Dave, ele diz. Aqui. Olhe para mim.
Devo correr? Apenas levantar e sair em disparada, na esperana de chegar ao Mustang mais
rapidamente que o Perseguidor consiga chegar ao seu Crown Victoria?
Eu perderia. Posso enganar esse homem por algum tempo eu o enganei, seno no estaria
aqui , mas no fim ele vai me encontrar. E ele far o que tiver de fazer.
No vou entregar para voc, afirmo.
Tudo bem. Meus clientes alteraram minhas instrues.
No consigo continuar olhando para o quadrinho de um caador atirando em um pato, pregado
na parede acima da geladeira de tortas. Ento olho para ele. Percebo que ele parece quase
amigvel.
Como assim?
Voc se tornou interessante, responde.
Voc precisa me ver depois de alguns drinques.
Meu cliente quer saber qual o seu rumo.
Nenhum.
Ele toma um gole de caf. O gosto, pelo visto, o faz lembrar-se de sua lcera, pois ele bate a
xcara contra o pires como se tivesse visto uma aranha se afogando nela.
Suas instrues, afirmo. Voc disse que elas mudaram.
Temporariamente. claro que nosso interesse principal continua em obter o documento.
Que voc ainda nem havia mencionado.
Sabemos que voc no est viajando com ele. Sabemos que voc tem cincia de sua
localizao, e voc vai acabar revelando-a para mim. No entanto, por enquanto, esse momento
foi suspenso.
Quanto tempo eu tenho?
No muito, pelo meu palpite.
Seu cliente impaciente.
Compartilhamos isso.
Chega o Festim do Fazendeiro. Um ninho de ovos mexidos, mais a oferta completa de carnes
para o desjejum: salsicha embrulhada em bacon em cima do presunto. O Perseguidor olha sem
disfarar a inveja.
Quer um pouco?, ofereo.
Isso um cimento louco para as suas artrias.
Todos ns partiremos um dia.
. Mas para onde voc vai partir no dia seguinte, professor?

Ele morde sua torrada. Uma enorme chuva de farelos cai sobre a frmica.
O que voc est fazendo aqui, de qualquer modo?, digo. Se voc est apenas me seguindo,
siga-me.
Estou aqui para inculcar em voc a gravidade da situao. Porque acho que voc ainda no
entendeu direito.
Eu entendi.
Jura? Ento me diga. O que voc est procurando aqui?
Isso no lhe diz respeito.
pessoal. Entendo. Meu cliente j viu pessoas em situaes parecidas. Pessoas para as
quais se abriu uma porta. O tipo de porta que se deve fechar. Ou fugir dela. A maioria faz isso.
Mas, s vezes, as pessoas pensam que podem entrar por elas, dar uma olhada, pegar uma
lembrancinha na loja de suvenires a caminho da sada. Nunca acaba bem.
Espere a, digo, calculando se eu conseguiria agarrar o colarinho dele de onde estou
sentado. Voc sabe quem est com ela?
Viu? disso que estou falando. Voc est buscando algo que no deveria.
Esse o conselho do seu cliente?
No, o meu. Meu cliente s est interessado em ter aquilo que est com voc e, se possvel,
saber o que voc sabe.
Ento essa preocupao que voc est mostrando por mim isso vem s de voc?
Farei aquilo para o qual sou pago, professor. Eu farei qualquer maldita coisa. Mas, como
disse antes, no fundo sou apenas um coroinha de Astoria.
Ele pega outra fatia de torrada, mas, desta vez, parece no ter estmago para comer.
Ento vamos tentar de novo, David, ele diz. O que traz voc a Linton?
Estao de caa.
Caando sua filha. Tess.
Voc sabe onde ela est?
No vou querer saber, para falar a verdade.
Ento o que voc sabe?
Que ela se foi. Que voc acha que pode consertar isso. Nada indito, do ponto de vista do
meu cliente. Ainda que, preciso admitir, voc seja considerado um caso um tanto especial.
Por causa do documento.
Porque o que quer que voc ache que tem sua filha agora tem interesse em voc. por isso
que voc tem o documento, para incio de conversa.
Voc est dizendo que eu estava destinado a ter o documento?
Voc pensa que era s porque voc muito esperto?
A garonete para junto mesa a fim de encher de novo nossas xcaras de caf. Leva alguns
segundos a mais do que deveria. Ela d uma boa olhada. No no mercenrio do outro lado da
mesa, mas para um repentinamente suado, trmulo, eu.

Voc e eu temos objetivos diferentes, retoma o Perseguidor assim que ela se vai. Ainda
assim, se voc analisar bem, se desculpar alguns dos meios usados, ns dois estamos do lado
dos bons propsitos, David.
Mas voc no pode trazer minha filha de volta.
Voc acha que ele pode?
Ele?
Ele. Ela. Eles. Aquilo. Sempre pensei no Diabo em termos masculinos. Voc no?
O que o Diabo tem a ver com isso?
Tudo. Ele a razo de voc estar aqui, dirigindo pelas plancies. De voc ficar escondendo a
coisa que eu quero. De Tess no estar mais com voc.
Tudo me atinge de uma vez. Uma vertigem to severa que eu agarro a beirada da mesa para
poder continuar sentado no banco. Estou falando demais. Estou ouvindo algum demais. E o
Inominvel no gosta disso.
Ele...
Fale claramente, professor.
Ele tem minha filha.
Talvez, ele d de ombros. Mas se ele estiver com ela, voc nunca a ter de volta.
Preciso falar com ele.
Ele um mentiroso, David. O Diabo mente. Ele quer algo de voc. E neste momento, seja o
que for que voc esteja fazendo, voc est a caminho de entregar essa coisa para ele.
Voc quer algo de mim.
Sim. Mas talvez eu possa ajud-lo.
Voc pode trazer minha filha de volta?
No.
Ento voc no pode me ajudar.
Levanto. E a cada centmetro que me afasto do Perseguidor, meu equilbrio melhora. O que ele
vai fazer? Parar-me no meio do movimento matinal no Harvest Grill?
exatamente o que ele faz.
Sua mo agarra meu ombro no momento em que empurro a porta. Ele me faz virar de lado.
Seus lbios to prximos que quase roam minha orelha.
Fui um cavalheiro esta manh, diz, e enterra seus dedos abaixo do msculo de meu ombro.
Torce. Mas quando a chamada vier, isso no vai significar nada para mim. Entendeu?
Ele me solta um segundo antes que um grito de dor escape. E me empurra para o lado a fim de
sair primeiro.
Devo ter ido at o Mustang de cabea baixa, porque s percebo o cachorro quando pego as
chaves, abrindo a porta do motorista. Seu corpo em cima do cap. Uma espessa camada de
sangue escorrendo em direo aos faris. Olhos abertos, orelhas ainda de p em alerta.

Eu farei qualquer maldita coisa.


Deslizo minhas mos sob o corpo e o levo at a rua, o que me deixa encharcado. O sangue
morno como gua do banho no meu rosto e pescoo.
Penso em coloc-lo na mala e ir at uma loja de ferramentas, comprar uma p e cavar uma
sepultura para ele em algum lugar, mas acabo deixando-o onde est.
Aninhado contra o meio-fio, encarando o Sol da campina.
Quanto tempo eu tenho?
No muito, pelo meu palpite.
Quando sento atrs do volante, arrisco uma olhada para o Sol. Queima.
De volta ao hotel, sento na beira da cama, pensando em que diabos estou fazendo aqui. No, no
bem isso: eu sei o que estou fazendo aqui, apenas no sei como faz-lo. Na improbabilidade
de que eu esteja certo em perseguir um demnio de verdade pela paisagem americana, que
meios eu poderia usar para enfrent-lo? No tenho gua benta nem crucifixo, nem mesmo um
punhal de ouro com sinetes de aprovao de Roma. Sou um professor cuja carteira da academia
de ginstica caducou. No exatamente So Miguel Arcanjo bramindo ao descer do alto.[34]
Mas o Perseguidor tinha razo. O demnio atrs do qual estou andando se interessa por mim.
Deu-se o trabalho de assumir forma humana para conversar comigo, mais recentemente como a
garota que espremia braguilhas. O poema de Milton trazia um alerta exatamente sobre isso.
Pois os espritos, quando lhes apetece
Qualquer um dos sexos assumem, ou ambos[35]
E qual era a mensagem da Boneca de Pano? Que eu tenho de me esforar mais para acreditar.
No apenas em minha mente, mas em meu corpo.
E o Verbo se fez carne e habitou entre ns...
Os Evangelhos contam a histria de Deus e de Seu Filho. Mas tambm contam a histria da
tentao, do pecado, de estorvos, demnios. E se tudo isso fosse no simplesmente uma aluso,
mas histria literal, um relato de personagens desempenhando aes verificveis, tanto no
passado como no presente? Agora, certamente, depois de tudo o que vi, eu seria forado a
admitir que isso seria possvel. Imaginar todas as palavras e histrias que estudei como sendo
fsicos, habitando o mundo. Como no sendo histrias.
Agora voc precisa acreditar aqui.
Destino. O fator que determina para onde vai um personagem nos textos antigos sobre os quais
dou aula, mas que pressupomos no ter influncia no eu moderno. No entanto, e se a
pressuposio moderna estiver errada? E se essa caa ao demnio tiver sido traada como meu
destino desde que as bolsas de estudo me tiraram do mundo turquesa em que eu vivia e me
permitiram a liberdade de seguir uma vida intelectual?

bem verdade que, quando fui para a universidade, mais que as panelinhas endinheiradas e as
lindas calouras, foi a abundncia de escolhas que me deixou atnito. Meu objeto de devoo era
a literatura, eu sabia. Mas em qual de seus muitos tneis eu entraria? Houve breves flertes com
Dickens, com James, com os romnticos. Ento, para minha surpresa ateia, a Bblia assumiu um
lugar fixo na minha carreira de estudos. E Milton logo depois. Seus versos sem rimas pareciam
defender o indefensvel. O poema que, em minha primeira leitura, me fez chorar ao reconhecer
a mim mesmo quando o vilo tenta colocar seu passado de lado e encontrar uma maneira de sair
da escurido, usando apenas sua mente para se dissuadir de seu sofrimento.
Que importa se a batalha for perdida?
Nem tudo est perdido[36]
Eu me lembro das noites como um estudante da graduao na velha Biblioteca Uris em Cornell,
lendo essas linhas e decidindo: isso. Um grito de encorajamento dirigido a mim, tambm um
forasteiro que buscava a vitria no pelo otimismo, mas pela negao. Decidi que iria dedicarme a fazer a defesa desse personagem, desse Sat, como faria a defesa de mim mesmo, tambm
cado, tambm solitrio.
Ainda que eu nunca tenha admitido isso a ningum, eu s vezes via outra pessoa comigo, em
meio s estantes, naquelas noites. Uma presena que parecia me empurrar para ir mais fundo em
meu compromisso com o rumo escolhido para meus estudos. Pelo menos, foi como interpretei os
vislumbres de meu irmo afogado. Lawrence. Pingando gua no cho enquanto ficava sentado,
as pernas balanando na cadeira, do outro lado da mesa, ou deslizava por trs de uma estante,
deixando uma poa de gua verde do rio. Contudo, talvez o que tomei como encorajamento
tenha sido, na verdade, um aviso. Talvez Lawrence tenha aparecido para mim a fim de mostrar
como os mortos tanto aqueles conhecidos na vida como os imaginados em livros nunca
esto to mortos como ns nos foramos a acreditar.
Ento, se essa jornada na qual embarquei meu destino, qual o meu papel nela? Eu sempre
me vi como estando fora das coisas, um inofensivo especialista em histria cultural, um
intrprete de uma linguagem esquecida. Mas talvez a Mulher Magra estivesse mais correta em
nomear minha verdadeira vocao. Demonologista. Chegar at Tess vai exigir que eu use todo o
meu conhecimento de uma maneira prtica que nunca imaginei antes. Comeando por levar a
mitologia do mal a srio.
O primeiro passo em uma partida como essa determinar com que verso da demonologia
estamos lidando. Velho Testamento? Ou o Novo? Os shedim[37] judeus do Talmude ou os
demnios platnicos (espritos intermedirios, nem deuses nem mortais, mas algo entre eles)?
Plato, penso nisso agora, definia daimon como sabedoria. O poder demonaco procede no
do mal, mas do conhecimento das coisas.
No Velho Testamento, sats (pois os registros da palavra vm quase sempre no plural) so

como guardas na Terra, colocando prova a f dos homens em sua capacidade de serem
servidores devotos de Deus. At no Novo Testamento, o prprio Sat uma das criaes de
Deus, um anjo que se extraviou. Como? Pelo abuso da sabedoria. No foi a partir da escurido
que o Anticristo se formou, mas a partir da inteligncia. Prescincia.
Como saber o resultado das bolsas de valores do mundo com uma semana de antecedncia.
Visivelmente meu demnio queria demonstrar seu poder dessa maneira. Mostrar sua
inteligncia tanto quanto sua capacidade de possuir, de roubar.
Aquilo.
Ele. Ela.
O Inominvel.
Durante todo o tempo, em todos os encontros, da Mulher Magra Boneca de Pano, a presena
se recusou a fornecer um nome. outra forma de zombar de mim. Mas tambm uma de suas
vulnerabilidades. De acordo com o rito oficial de exorcismo da Igreja Catlica, usar o nome do
demnio contra ele mesmo uma das principais maneiras de negar sua autoridade.
Preciso decifrar a identidade do demnio. A partir disso, posso descobrir o que ele quer.
Encontrar Tess.
Se eu abordar a questo usando toda a biblioteca de possibilidades, colocando nisso todas as
figuras demonacas de todas as fs e tradies folclricas, ser impossvel apontar um suspeito.
Mas meu demnio me escolheu. Um miltoniano. Suas vrias citaes de Paraso Perdido no
podem ser vistas como coincidncia. a verso do universo demonaco pela qual ele deseja ser
visto.
O que nos leva ao Pandemnio. s cmaras do conselho em que Milton descreveu Sat
reunindo seus discpulos para discutir as melhores formas de minar o domnio de Deus.
MOLOCH.
QUEMS.
BAAL.
ASTAROTH.
TAMUZ.
ASTARTE.
DAGON.
REMON.
OSRIS.
SIS.

HRUS.
BELIAL.

Meu Inominvel est entre eles. E eu tenho apenas trs dias para descobrir qual deles ele .
O prprio Sat pode ser eliminado, se eu confiar na voz que falou por meio de Marco Ianno.
Na verdade, o fato de o Inominvel ter organizado uma introduo prvia, uma espcie de
fanfarra antes de sua apario, diz algo sobre seu carter. Orgulho. Vaidade. Teatralidade. E o
fato de ele usar Milton fornece mais do que pistas. Mostra que a presena tambm se v como
um acadmico. Uma afinidade assim como uma competio comigo.
Terei de descobrir o nome do Inominvel por meio de uma interpretao de sua personalidade.
Milton imputou caractersticas aos membros do Conselho Estgio, uma maneira de distingui-los,
de humaniz-los.
Ento isso o que farei. Traar o perfil de demnios.

Capitulum 15

CAPITULUM 15

Encontrar a fazenda Reyes mostra-se to fcil como abrir a lista telefnica em meu quarto de
hotel e mapear o endereo pelo meu iPhone. No longe. A apenas dez quilmetros de onde
estou, aparentemente. Se eu partir agora, estarei l bem antes do almoo.
H o problema com o Perseguidor, claro. Se eu dirigir at a fazenda Reyes com ele na minha
cola, no apenas eu chamaria sua ateno para o pequeno mistrio das irms gmeas, mas
poderia ser uma provocao suficiente para que o cliente dele desse a ordem para me abater.
Preciso descobrir se estou certo ou errado sobre a vinda para Linton. Sem ele.
Estava pensando em como fazer isso quando olho pela janela da frente e vejo o Crown
Victoria do Perseguidor estacionado a apenas seis metros do Mustang. Pelo visto, ele agora
tambm um hspede aqui. E no se importa que eu fique sabendo.
Consciente de que ele est vigiando todos os meus movimentos, vou at a recepo do hotel e
peo emprestados uma chave de fenda e um balde de gelo. Encho este com gua. Caminho de
volta para meu quarto (com o ar de um homem pronto para jogar uns cubos de gelo em seu
refrigerante) e paro ao lado do carro do Perseguidor. Uso a chave de fenda para arrancar a
portinhola do tanque de gasolina, tiro a tampa. Despejo a gua que est no balde no tanque.
E saio correndo.
J estou ao volante do Mustang, dando r, quando o Perseguidor sai de seu quarto de incio
sem pressa, depois, quando ele v a tampa do tanque no cho, soa o alarme , de modo que sou
capaz de ver toda a fria em seu olhar.
Agora tudo mudou, o que ele est me dizendo. No mais ameaas com cachorros mortos,
nenhum aviso mais. Quando vier a ordem, ele no apenas vai execut-la, ele vai degust-la.

Mas no posso continuar olhando, principalmente porque ele agora comeou a correr. Na
minha direo. Suas mos frente como se estivesse preparado para rasgar uma passagem pelo
para-brisa.
Meu p afunda no acelerador e passo por ele, propositadamente pegando a direo errada e
depois dando a volta no quarteiro para tomar a direo sul e sair da cidade sem ser visto. No
vai demorar para que ele arrume novas rodas.
Mas as minhas j esto rodando. J se foram.
No demoro a tomar a sada sul de Linton at a encruzilhada para o vilarejo de Strasburg,
depois uns trs quilmetros a oeste at a fazenda Reyes. No h muita coisa crescendo na terra
neste momento. Os campos nos dois lados da estradinha que conduz casa foram lavrados mas
no semeados, ento agora apenas algumas ervas daninhas brotam do solo. Isso faz com que a
casa das Reyes seja ainda mais visvel. Um brinquedo de madeira branca que se destaca no
horizonte infinito.
A mesma casa o mesmo horizonte que Tess desenhou em seu dirio.
Do lado de fora, a nica rvore com um ancinho apoiado nela, o cabo com rachaduras devido
longa exposio ao Sol. Junto ponta formada pelas duas guas do telhado, um vespeiro, um
buraco negro na parte inferior com furiosas idas e vindas. No solo, ervas daninhas crescem
espessas e espinhosas como rolos de arame farpado ao longo do caminho da frente. como se
toda a fazenda e o trabalho que costumava ser feito nela tivessem parado h alguns anos, e agora
o lugar est a meio caminho de se tornar outra coisa, um retorno vegetao desordenada.
E eu. Agora caminhando para a varanda, os msculos do rosto rijos de apreenso.
Tess viu tudo isso. Sabia que eu viria.
Pobre PAIZINHO.
A porta da frente est entreaberta. A polcia? Um vizinho para deixar uma cesta de ovos? Por
algum motivo, eu no esperava concorrncia pelo tempo de Delia Reyes. Enquanto bato na
moldura da porta externa de tela, comeo a editar em minha mente as mincias que planejara.
Quanto mais eu demorar a entrar, maiores as chances de algum mais aparecer e me arrastar
para fora.
Vou bater de novo quando a porta interna se abre totalmente para revelar uma mulher vigorosa,
vestida com camadas de velhos suteres e uma saia jeans at o tornozelo. Seu longo cabelo
preso atrs com um elstico que deixa as pontas enfeixadas como uma vassoura. Olhos
castanhos grandes e vivos, oscilantes de caprichos.
Senhora Reyes?
Sim?
Meu nome David Ullman. No sou da polcia. No trabalho para nenhum jornal.
Fico contente em ouvir isso.

S vim para falar com voc.


Acho que voc j est fazendo isso.
Vou ento ao ponto. Parece que algo incomum aconteceu com voc, nesta casa,
recentemente.
Diria que sim.
Algo semelhante aconteceu comigo. Estava pensando se poderia fazer algumas perguntas,
para ver se voc poderia me ajudar a encontrar algumas respostas.
Voc tambm tem algum que desapareceu?
Sim.
Algum prximo.
Minha filha.
Cus.
por isso que vim at aqui, aparecendo na sua porta sem ser convidado.
Ela abre a porta de tela.
Considere-se convidado, diz.
A cozinha ampla e fresca, com uma mesa de madeira grossa no meio, usada, aparentemente,
tanto para preparar como para fazer as refeies. Uma velha geladeira Frigidaire soprando e
suspirando num canto. Duas pias de gata lado a lado. Uma imensa planta fazendo o possvel
para bloquear a luz que entra pela janela. Tudo contribuindo para uma natureza honesta, de
museu, de velha cozinha de fazenda de Dakota. Um lugar animador, se no fossem as paredes
turquesa. A cor da melancolia. Da dor.
Fico de p junto mesa, e a mulher se esquiva de retomar o lugar onde estava sentada antes
que eu chegasse. Isso pelo menos o que eu suponho, devido solitria xcara de caf em suas
mos. No entanto, olhando para dentro da xcara, ela no parece apenas vazia, mas limpa, como
se recm-tirada da prateleira, como um brinquedo ou pea de cenrio teatral.
Paula Reyes, ela diz, estendendo a mo. Somente quando a tomo que me dou conta do
significado do nome.
Paula? Achei que voc estivesse desaparecida.
Eu estava. Mas agora fui encontrada, certo?
O que aconteceu com voc?
Ela passa o dedo pela borda da xcara.
No sei exatamente. No espantoso?, ela diz, respondendo a si mesma com uma breve
gargalhada. Devo ter batido a cabea ou algo assim. Algum disparate de velha! S me lembro
de entrar pela porta de tela hoje e Delia estar sentada bem a, onde voc est se apoiando,
tomando caf desta mesma xcara, e ns duas nos abraando e Delia fazendo ovos como se nada
tivesse se passado entre ns.
Essa a xcara de Delia?
Ahn-h.

Est vazia.
Ela terminou o caf.
Mas parece intocada.
Ela olha para o fundo da xcara, depois para mim. Realmente, diz.
Voc est bem?
Ela no parece ouvir a pergunta.
Voc tem uma irm, senhor Ullman? ela pergunta.
No. Eu tinha um irmo, no entanto. Quando era jovem.
Bem, ento voc sabe o lugar que um familiar assim ocupa em seu corao. No se pode
fazer esse tipo de marca desaparecer, por mais que se esfregue, no ? Ela balana a cabea.
O sangue fala alto.
meno do sangue percebo, pela primeira vez, as manchas no suter que a mulher usa por
cima de todas, um cardig com os bolsos para fora. Um borrifo fino bem no meio. Junto com
terra e sujeira. Borres aqui e ali, na roupa e embaixo de suas unhas.
O que isso?
Ela olha para baixo. Limpa o sangue e a terra com as costas da mo.
No sei como veio parar aqui, a mais pura verdade, diz, ainda que com um tremor de
incerteza desta vez. Mas quando se trabalha em uma fazenda, voc para de se perguntar como a
terra e outras coisas grudam em voc.
Parece no ter muito trabalho por aqui h algum tempo.
Seus olhos me encaram, imediatamente esvaziados de calor. Voc est dizendo que eu e
minha irm somos preguiosas?
Saiu sem querer. Perdoe-me.
No estou no negcio do perdo, senhor Ullman, ela diz, subitamente sorrindo de novo.
Voc quer isso? De joelhos.
No consigo saber se ela disse isso literalmente ou no. Algo rijo por trs de seu sorriso
sugere que essa ltima observao no foi uma piada, mas uma ordem. No tenho escolha a no
ser fazer de conta que no entendi.
As vozes que voc ouviu, digo. Aquelas que a chamavam do poro.
Sim?
O que elas diziam?
Ela analisa minha pergunta. Franze as sobrancelhas como se buscasse a resposta em um
passado distante, como se eu tivesse perguntado o nome do garoto que sentava a seu lado no
jardim de infncia.
engraado, ela finalmente responde. Ainda que eu saiba que havia palavras, no me
lembro delas como palavras. Mais como uma sensao, entende? Um som que colocava uma
sensao dentro de voc.
O zumbido em meus ouvidos ao dirigir para Linton. Um som que colocou uma sensao

dentro de mim.
Voc poderia descrev-la?, pergunto.
Algo horrvel. Voc preferiria estar duplamente doente. Voc preferiria cravar um prego na
palma da sua mo.
Porque era doloroso.
Porque abria voc de dentro para fora. Tornava as coisas to claras que elas eram moldadas
na mais pura escurido, em vez de na luz. Uma escurido na qual voc poderia ver melhor que
em qualquer luz.
Nenhuma luz, mas antes escurido visvel
Que s servia para revelar vises de pesar[38]
A pergunta pode parecer estranha digo. Mas voc j leu John Milton? Paraso Perdido?
No sou de ler, sinto muito. Alm do Grande Livro, claro. Ocupada demais com o dia a
dia.
Claro. Posso voltar sensao que voc mencionou? O que voc viu nessa escurido
visvel?
Como a verdadeira liberdade poderia ser. Sem regras, sem vergonha, sem amor para conter
voc. Liberdade como um vento frio pelos campos. Como estar morto. Como no ser nada. Ela
faz que sim com a cabea. Sim, acredito que isso capta a ideia. A liberdade de no ser
absolutamente nada.
Sei algo sobre isso. a sensao que levei comigo de Santa Croce, 3.627, at o Hotel Bauer.
A doena que contaminou Tess. Que a fez cair. Como estar morta. Mas pior. Uma morte no
natural porque era mais final que a morte. Como no ser absolutamente nada.
Onde est Delia agora, Paula?
Ela desceu para o poro um pouco antes de voc chegar.
O poro?
Disse que tinha de arrumar algo. Agora que eu voltei e tudo.
Voc se importa se eu descer e falar com ela?
vontade. No que eu v acompanh-lo.
Por que no?
Porque tenho medo. Ela me olha como se eu fosse estpido. Voc no?
No respondo. Apenas me afasto da mesa e vou at a porta que, de alguma forma, sei que se
abre no para um closet, uma despensa ou uma escada para o segundo andar, mas para baixo,
para o amplo vo embaixo da casa.
Paula assiste enquanto eu pego a maaneta e a giro. Sinto seus olhos nas minhas costas,
empurrando-me para a frente, para o alto da escada. Seu dedo passando pela borda da xcara
ainda mais rapidamente, de modo que agora a cermica emite um silvo de advertncia.

Um interruptor acende um par de lmpadas l embaixo, mas ainda no posso v-las da altura
em que estou, apenas os dois crculos amarelos que elas jogam no piso de concreto. Ento,
quando estou na metade da escada, a lmpada esquerda se apaga. No com o estouro de
queimado, mas com o silvo de uma lmpada mal atarraxada no soquete. Eu poderia andar no
escuro e arrum-la com apenas uma volta. Mas uma perspectiva menos convidativa que ficar
de olho no crculo remanescente de calor, direita.
Quando meus ps chegam ao cho, consigo observar alguns dos detalhes que a luz
proporciona. Mesas de carpintaria contra as paredes, entulhadas de ferramentas, tesouras de
podar, potes de conserva cheios de porcas e parafusos. Velhas latas de tinta empilhadas em
torres oscilantes. Sacos de lixo de papel empilhados no canto mais distante, o fundo deles preto
devido lenta dissoluo de seu contedo.
desses sacos que vem o cheiro. Uma putrefao decididamente orgnica, penetrante e forte.
A ccega no fundo da garganta de acar queimado.
Nenhuma Delia vista. Ela pode estar na escurido do lado esquerdo. Mas mesmo que
estivesse sentada no cho tricotando meias eu no conseguiria v-la. S agora me ocorre que,
antes que eu acendesse a luz, ela estaria na mais completa escurido. Caso realmente estivesse
aqui.
O que passou pela minha cabea, ao confiar em uma senhora idosa suja de terra e sangue que
acaba de voltar de uma estada de dez dias sem saber como passou o tempo? Uma velha com o
dom de ouvir coisas que o resto do mundo reza para nunca ouvir? Uma mentirosa porque nem
uma gota de caf esteve naquela xcara esta manh. Tambm no havia nenhum cheiro de caf na
cozinha, nenhum bule no fogo.
Eu no estava confiando nela, claro. Tive de abrir mo das deliberaes que a confiana
requer. No h tempo. A desvantagem do avano precipitado, porm, cair direto em uma
armadilha. E isto uma armadilha. Paula provavelmente est fechando a porta no alto da escada
neste instante. No havia um ferrolho pelo lado de fora, prateado e novo? Ela deve estar
colocando o cadeado enquanto me viro e piso no primeiro degrau. Fechando-o...
Aqui.
Uma voz como a de Paula mas no a de Paula me interrompe. Permite que eu veja que a
porta no alto da escada do poro continua meio aberta, da mesma maneira que a deixei.
Quando me viro, h um raspar metlico pelo cho. E l est ela. Delia Reyes. Puxando uma
banheira virada para o alcance da luz com um suspiro cansado.
Bom dia, falo.
Dia. mesmo? Leve o Sol embora e voc perde a noo do tempo aqui.
Voc no acendeu as luzes.
No? Voc vive tempo bastante em um lugar e, acho, consegue ver algumas coisas muito bem
no escuro.
De incio, assumi que sua postura curvada e seus olhos semicerrados se devessem fadiga.

Mas, com essa ltima frase, percebo que estava errado. Apesar de sua afabilidade, suas
palavras so esvaziadas por uma tristeza imensurvel, dbil e tnue. Eu sei porque dessa
forma que escuto minha voz agora.
Meu nome David Ullman. Eu vim...
Eu ouvi, ela me interrompe, erguendo seus olhos para o teto. Meio que ouvi.
Voc deve estar satisfeita. Com Paula.
Ela volta seus olhos para mim. Voc real?
Tanto quanto posso ver.
O que voc fez?
Desculpe. No sei se...
Se voc est aqui, voc deve...
Ela deixa o pensamento se afastar. Passa uma mo sobre o rosto, como se afastasse uma teia
de aranha.
Voc acha que est frio aqui?, ela pergunta.
Um pouco, digo, ainda que, na verdade, nos ltimos segundos, a temperatura do poro
parea ter cado uns dez graus ou mais.
Delia esfrega seus ombros. Esta sempre foi uma casa fria. Mesmo no vero, ela nunca
esquentava, o calor nunca chegava a todos os cantos. Como se os prprios aposentos
detestassem ser tocados pelo Sol.
Ela parece prestes a se levantar, depois muda de ideia. Sua mente foi transportada para
alguma parte especfica de seu passado.
Eu e Paula sempre andando com longos casacos em agosto, diz. E cachecis em torno das
orelhas na manh de Natal!
Sua risada faz lembrar a de sua irm, mas, ao contrrio desta ltima, sinaliza mais perda que
divertimento.
Que bom que vocs tinham uma outra aqui, digo.
Talvez. Ou talvez fssemos prximas demais uma da outra.
Como assim?
Gmeas. Voc pode perder a compreenso do que o qu em uma casa fria por sessenta
anos. E somente outro voc com quem conversar. Outro voc para olhar.
Dou um passo na direo dela. disso que ela parece precisar. Uma mo em seu cotovelo
para ajud-la a ficar de p. Algum para dizer-lhe que tudo acabou, que no preciso ficar
remoendo antigas inquietaes aqui na escurido malcheirosa. Mas, quando me aproximo, ela
ergue um dedo para me fazer parar. Tenho a curiosa sensao de que no apenas ela quer
terminar seu pensamento, mas evitar que eu me aproxime demais.
Eu pedi aos cus que a levassem, diz. uma coisa vergonhosa, mas verdade. Desde que
eu era menina eu desejava que minha irm ficasse com o brao preso na debulhadeira, ou
adormecesse ao volante voltando da cidade, ou que engasgasse com um pedao de carne e no

conseguisse cuspir. Eu conseguia ver as maneiras como isso aconteceria. To simples. Coisas
terrveis de se desejar! Mas tudo parecendo perfeitamente natural. Acidentes.
Ela est chorando. Um som confuso que parece destacado de sua voz, como se ela estivesse
fazendo um truque de ventriloquismo, soluando e falando ao mesmo tempo.
Por que voc desejava que houvesse um acidente?
Para que eu ficasse sozinha de vez! No metade de um todo, no os nomes pelos quais as
pessoas nos chamaram a vida inteira. No a Dupla Dinmica ou as Gmeas Reyes ou As
Garotas. Somente eu. Ela engole, mas prossegue sem limpar a garganta, de modo que sua voz
fica ainda mais baixa. Eu rezei. Mas os cus nunca fizeram nada. Ento comecei a rezar para o
outro lado. Dessa vez, algo respondeu.
Devemos subir agora, digo.
Subir? Por qu?
Sua irm voltou para casa. Lembra?
Eu matei minha irm.
No, Delia. Ela est bem.
A velha mulher balana a cabea. Eu a matei.
Mas eu estava falando com ela agora mesmo l em cima. Paula no est mais desaparecida.
Ela est aqui.
Aquela coisa. No Paula.
Quem ?
Aquela que respondeu s minhas preces.
A idosa ergue sua mo para apontar algo sobre meu ombro, na escurido por trs de mim.
No h escolha. No posso deixar que haja uma escolha. Dou-lhe as costas e avano, com
minha prpria sombra frente como outra camada de escurido. Mantenho as mos erguidas,
para que elas encontrem o fio da outra lmpada pendurada. No momento em que estava achando
que havia passado, o fio faz ccegas em meu rosto. Meus dedos o seguem at a lmpada.
Apertam bem. O calor me alerta que funcionou antes da revelao da luz.
As irms lado a lado no canto. Suas costas contra a parede, na ponta do alcance da luz, de
modo que seus rostos ficam apenas fracamente iluminados. o bastante para ver que elas so
reais. Que a espingarda atravessada no colo de Delia, a mancha escura e fresca contra os tijolos
causados pela sada do tiro na parte de trs de sua cabea, a boca aberta onde o cano da arma
fora encaixado, so reais. Os restos de Paula, salpicados pela terra que se agarra a ela, os
pedaos de razes e as pedrinhas do cho de onde ela foi retirada, a pele roxa e entumescida,
so reais.
Passam-se alguns segundos entre a captao dessa imagem e a primeira luta com o seu
significado. E nesse perodo em que o crebro corre para recuperar o atraso que o resto do
corpo se adianta. Ele me faz dar a volta. Evita que eu vomite aqui e agora.
Por que voc a trouxe para c?, pergunto a Delia, que agora est sentada esfregando os ns

dos dedos contra seu nariz reluzente, que escorre.


Pediram que eu o fizesse.
Diga-me o nome dele.
No tem.
Vo pensar que voc fez isso.
Eu fiz.
Voc foi mandada.
Disseram que eu podia.
Mas tudo o que voc me disse a coisa com a qual falei l em cima, suas preces
ningum nunca vai saber.
Voc sabe.
Agora a vez de a outra lmpada tremeluzir e se apagar. A Delia com a qual eu estava
conversando volta para a escurido.
Voc sabe que vai matar tambm, no sabe?, ela diz, muito mais prxima agora.
No...
o que ele quer. Para que voc saiba o que ele faz. Para mostrar que voc tambm pode
faz-lo. Para que voc acredite. Matar.
A velha to prxima que eu consigo ler o contorno de seu rosto a centmetros do meu, mesmo
na escurido. O marfim manchado de seu sorriso.
Algum prximo, sussurra.
Recuo e comeo a subir a escada. Primeiro devagar, assegurando-me dos passos nos degraus
estreitos. Depois correndo para o topo. Minha respirao um suspiro trabalhoso em meus
prprios ouvidos. Atravesso correndo a cozinha a solitria xcara de caf ainda l, a cadeira
vazia e saio pela porta, at o meu carro.
Deixo para trs o terreno da fazenda e saio em disparada pelo caminho que leva estrada,
batendo no volante para fazer a volta e acertando a caixa de correspondncia onde se l REYES.
Sua portinhola se abre, de modo que, quando olho para trs depois de alguns metros, parece
uma figura curvada cambaleando atrs de mim, sua boca escancarada em um grito estridente.

Capitulum 16

CAPITULUM 16

Rumo ao Sul. Parece a direo menos previsvel. Venho do Leste, a direo lgica para uma
retirada. E para o Norte est o Canad. No uma opo desejvel para mim. Sa de l h muito
tempo, com a inteno de traar uma fronteira entre minhas origens e como eu poderia me
reinventar. J me bastam os espritos que tenho no momento; no preciso que fantasmas h muito
enterrados se insinuem para uma visita.
Ento adeus Dakota do Norte, ol Dakota do Sul. E quando eu estava pensando que nunca
houve uma razo menos intil para uma divisa, entro em Nebraska, que se parece mais com
Dakota do Norte que Dakota do Norte. Finalmente, Kansas. Sem nada que o diferencie dos
estados anteriores, mas j bafejado pela fama, com Dorothy, Tot e estacionamentos de trailers
destrudos por tornados. Tambm h algo na aparncia dos campos (ou talvez do dia) que me
lembra da sequncia do pulverizador de plantaes em Intriga Internacional, de Hitchcock.
Cary Grant se abaixando para escapar dos ataques do avio, pensando em onde raios havia se
metido. Um dos prediletos de OBrien.
E agora, de repente, a lembrana dela provoca um aperto no meu corao. Como sinto falta
dela. Como dirigir na plancie pode duplicar a solido de uma viagem j solitria.
Quo terrvel e inabalavelmente assustado estou.
A estrada pode limpar completamente as ideias. Tambm pode resgatar memrias ao acaso, de
maneira desordenada e negligente, atirando-as contra o para-brisa com tanta fora que voc pula
no assento devido ao impacto.
Agora mesmo, por exemplo. Minha primeira viagem para acampar com Tess.

Diane no gostava muito do que chamava de ao ar livre. Isso me deixava livre para dirigir
at as montanhas Adirondack com Tess quando ela tinha cinco anos, para ensinar-lhe algumas
das habilidades que eu aprendi em minha juventude no norte de Ontrio: fazer uma fogueira,
guardar a comida numa rvore para mant-la fora do alcance dos ursos, a virada correta do
pulso com o remo ao conduzir uma canoa.
No caminho, brincamos de O que , o que ? e compusemos algumas das trovinhas
malcriadas que Diane proibia em casa (Era uma vez um menino chamado Riquinho/ Que
apitava sempre que usava o peniquinho). A verdade que eu estava preocupado durante toda a
viagem. Com a chuva, com os mosquitos, com no nos divertirmos.
No queria que Tess, nascida em Nova York, surtasse com todos os incmodos de um fim de
semana prolongado na floresta. Mais do que isso, eu no queria falhar. Voltar para casa com
uma criana toda inchada pelo contato com plantas venenosas, alm de promessas de seu pai de
nunca tentar isso de novo.
Em vez disso, a viagem foi sensacional. Borboletas pousaram nos ps de Tess depois que ela
ficou parada por quase uma hora em meio a arbustos de mirtilo, fingindo ser uma flor gigante,
at que as monarcas se aproximaram, confiando nela. Nadar noite no lago, o movimento de
nossos corpos distorcendo o luar refletido na superfcie da gua. Aperfeioar a rotao da
vareta para garantir que os marshmallows ficassem tostados por igual.
Mas tudo isso s vem depois. Depois da lembrana que me deixou sem flego enquanto eu
dirigia pelos interminveis campos.
Depois do segundo dia, Tess pediu que eu a acordasse no meio da noite para que ela pudesse
ver o que eu descrevera como as verdadeiras estrelas. Ela acreditou na minha histria de Via
Lctea, de cus onde o bordado de luz igualava a escurido. Marquei o relgio para as trs da
madrugada. Quando chegou a hora, abrimos a barraca e ficamos de p no meio do acampamento,
as cabeas para trs. O domo do cu brilhava.
Nenhum de ns falou. Apenas voltamos para a barraca depois de algum tempo, dormimos de
novo. De manh, acordamos exatamente na mesma hora. Olhamos um para o outro e comeamos
a rir. No a rir de alguma coisa. No compartilhamos nenhum pensamento em silncio. Apenas
os dois se encontrando na alvorada com uma gratido espontnea.
Foi isso que quase me fez encostar o carro para recuperar o flego e esperar que minhas mos
parassem de tremer ao volante: eu me lembro de, mesmo enquanto aquele momento ocorria, ter
a ideia clara de que Voc nunca foi to feliz.
E nunca mais fui.
Desde ento.
A uma hora de distncia da cidade de Wichita eu paro em um posto de gasolina e entro em uma
cabine telefnica que cheira a mostarda e peido.
Veja como estou, diz OBrien quando atende. Sentada ao lado do telefone como uma

adolescente sem companhia para o baile de formatura.


Voc iria ao baile comigo, Elaine?
Sem chance. Nunca vou perdoar voc.
Por que no?
Voc no ligou, boc.
J faz algum tempo desde a ltima vez que me chamaram disso.
mesmo? Ento vamos recuperar o tempo perdido. Onde est voc, boc?
Kansas.
Onde em Kansas?
Perto de Wichita. Talvez passe a noite aqui. Vi um cartaz do Scotsman Inn h alguns
quilmetros. Acho que vou dar uma conferida no haggis[39] deles.
Haggis em Kansas.
Diga isso trs vezes, bem rpido.
Como foram as coisas em Dakota do Norte?
Bem, eu acho. Conversei com um demnio encarnado em uma velha morta, logo depois com
o fantasma da irm gmea dela. Fui o primeiro a encontrar os restos mortais do verdadeiro
assassinato-suicdio delas. Ah, e um matador de aluguel ou algo parecido est atrs de
mim porque pensa que eu possuo provas que indiscutivelmente demonstram a existncia de
demnios. E eu tenho mesmo.
Estranhas, respondo.
Algo mais foi revelado a voc?
Acho que sim.
Como o qu?
Por exemplo, que o demnio que estou tentando encontrar precisa de mim como uma
testemunha de sua influncia nos assuntos humanos. Ele precisa de mim como um apstolo.
No sei se voc entenderia, digo.
Tente.
Acho que Tess est tentando me alcanar tanto quanto eu estou tentando alcan-la.
Ok. Isso bom, certo?
A no ser que eu no consiga chegar at ela.
Um silncio enquanto ambos pesam o significado disso.
Algo mais?, ela finalmente pergunta.
Acho que me foi mostrado como a presena como o Inominvel trabalha. Busca uma
porta, um caminho para o seu corao. Tristeza. Mgoa. Inveja. Melancolia. Encontra uma
abertura e entra.
Os demnios afligem os fracos.
Ou aqueles que pedem por ajuda sem se incomodar com quem est pronto a d-la.
E ento?

Rompe a parede entre o que voc imagina fazer e aquilo que voc nunca faria.
Voc se d conta de que acaba de descrever sua prpria situao?
Como voc chegou a essa concluso?
Um homem que sofreu uma grande perda. Fazendo agora algo que ele nunca faria
normalmente.
No se aplica totalmente ao meu caso.
E a diferena ?
O Inominvel no quer me possuir. Ele quer que eu ou pelo menos a melhor parte de mim
continue sendo eu mesmo.
Com que finalidade?
Isso eu ainda no consegui entender por completo.
Certo, diz OBrien, puxando o ar com tanta fora que posso ouvir.
H algo mais.
Manda.
Tenho razo.
Sobre o qu?
Tudo. Estou ainda mais seguro de que, ainda que as coisas que esto acontecendo minha
volta sejam insanas, eu no estou louco.
Delrios, por si s, no fazem de voc um louco.
Talvez no. Mas eu pensei que estava. At agora. Respiro fundo. Isso acende imediatamente
toda a fadiga em meus ossos, de modo que eu apoio a mo contra a cabine em busca de
equilbrio. No sei bem para onde ir agora.
Voc est esperando um sinal.
Voc podia ao menos disfarar seu sarcasmo.
No estou sendo sarcstica. S que difcil falar desse assunto e no soar, mesmo sem
querer, sarcstica.
Uma pausa. Quando OBrien volta a falar, sua ironia mal-humorada substituda por sua voz
de mdica. Se ela no consegue fazer uma brincadeira comigo nem por um minuto, devo estar
pior do que imaginava.
Voc parece destrudo, David.
Estou destrudo.
Voc no acha que seria uma boa ideia deixar essa histria de busca por um tempo?
Descansar? Recompor-se?
Isso faria sentido se eu tivesse alguma preocupao com meu prprio bem-estar, mas no
tenho. Estou pendurado na ponta de uma corda esfiapada. E no posso solt-la.
Mesmo que ela leve voc para um lugar ruim?
J levou.
Fora da cabine telefnica, os carros vm e vo. Todos os motoristas olham na minha direo.

Eu, um sujeito que precisa se barbear, em um telefone pblico. H apenas cinco anos eu
pareceria um vendedor estressado fazendo um interurbano para a esposa. Hoje, na era do
telefone celular, sou uma provvel curiosidade criminal. Um viciado em crack tentando comprar
drogas. Um sujeito marcando um encontro com uma prostituta. Um terrorista.
H coisas neste mundo que a maioria de ns nunca v, acabo por falar. Ns nos treinamos
para no v-las, ou tentamos fingir que no vimos se elas ocorrem. Mas h uma razo para o
fato de, no importa o quo sofisticadas ou primitivas, todas as religies terem demnios.
Algumas podem ter anjos, outras no. Um Deus, deuses, Jesus, profetas a figura de
autoridade mxima varia. H muitos tipos diferentes de criadores. Mas o destruidor sempre
toma, essencialmente, a mesma forma. O progresso do homem tem sido, desde o incio,
frustrado por provadores, mentirosos, corruptores. Criadores de pragas, loucura, desespero. A
experincia demonaca a nica verdadeiramente universal de todas as experincias religiosas
do homem.
Isso pode ser verdade, no que diz respeito observao antropolgica.
verdade porque muito difuso. Por que esse aspecto da f compartilhado por tantos, por
tanto tempo? Por que a demonologia mais comum que a reencarnao, que os sacrifcios, que a
maneira pela qual rezamos, que nossos locais de culto ou a forma pela qual ocorrer o
apocalipse no fim dos tempos? Porque demnios existem. No como uma ideia, mas aqui, na
Terra, no mundo cotidiano.
Minha respirao fica presa na garganta, ento percebo que estou arfando como se tivesse
ficado prendendo a respirao. E durante todo esse tempo OBrien no diz nada. impossvel
saber se ela est digerindo tudo o que eu falei ou se est alarmada por perceber a que ponto
cheguei. H uma qualidade no silncio que deixa claro que, no ltimo minuto, ou eu a conquistei
ou a perdi de vez.
Tenho pensado muito em voc, ela acaba por dizer.
Eu tambm. Como voc est se sentindo?
Dolorida. Meio enjoada. mais como uma ressaca. Uma ressaca crnica, sem a diverso da
noite anterior.
Eu sinto muito, Elaine.
No sinta. Apenas me escute.
Estou escutando.
No estou tentando fazer com que voc se sinta culpado ou algo do gnero, mas no sei
quanto tempo eu ainda tenho. E voc meu melhor amigo. Deveramos ficar juntos.
Eu sei.
Mas voc est em Wichita.
Sim.
Wichita um bocado longe.
Eu tenho sido um amigo de merda. Sei disso. Voc sabe que eu estaria a com voc se

pudesse. Mas eu preciso...


Voc precisa fazer isso. Eu aceito isso. J desisti de tentar convencer voc do contrrio. S
quero pedir algo.
V em frente.
J ocorreu a voc que seja l que foras que voc acredita estar combatendo podem querer
isolar voc?
O que voc quer dizer com isso?
Voc acha que est fazendo o certo ao me deixar de fora. Mas isso pode no estar fazendo
nenhum bem a voc. A distncia entre ns essa pode ser uma parte do plano do demnio.
Pense nisso. Se se tratasse apenas de torn-lo um crente, isso poderia ser feito em Nova York.
Mas voc foi conduzido para longe de casa. E de mim.
Que escolha eu tenho?
Leve-me com voc.
No posso arriscar que voc se machuque.
Pelo amor de Deus, estou morrendo. meio tarde para isso.
Elaine? Escute. Vou pedir que voc me prometa algo.
Eu prometo.
No fale de novo sobre vir comigo. muito difcil para mim dizer no. Mas eu preciso dizer
no.
Minha vez.
Certo.
Diga-me uma coisa. Por que os homens sempre acham que tm de agir como super-heris
autodestrutivos quando surge algum problema?
a nica maneira de amar que conhecemos.
Os carros vm e vo. uma das maiores verdades sobre a Amrica. Eles do r, estacionam,
retornam estrada. Seria uma espcie de consolo se um dos carros, em algum lugar a
quilmetros daqui, na noite infinita da pradaria, no contivesse o Perseguidor.
Preciso desligar agora, digo.
Voc no vai me dizer quem est atrs de voc, vai?
Sem chance.
Mas algum est atrs de voc?
Sim.
Uma pessoa de verdade. Um ser humano.
To verdadeiro e humano como pode ser.
Ele est a?
Ainda no. Mas est vindo.
Ento v, David. E mantenha-se a salvo, ela diz e, para minha surpresa, desliga. uma
prova mais eficaz de sua crena em mim do que qualquer declarao que ela pudesse fazer.

Entro no Mustang e vou para Wichita. A noite cai sobre a interestadual to abruptamente como
se puxassem o fio da tomada. Penso em ligar o rdio, mas todas as vezes em que fao isso ouo
algo uma cano, uma propaganda de automvel, uma previso do tempo que me faz
lembrar de Tess.
O verdadeiro inferno dirigir noite em busca de uma criana desaparecida.
Encontro o Scotsman Inn sem precisar procurar. Adequadamente sem vista, sem charme, sem
qualquer coisa de escocs. perfeito.
Caminho em crculos enquanto espero pela pizza da Dominos que encomendei e, depois de
comer s uma fatia e jogar o resto no lixo, ligo e desligo a TV trs vezes, o boto de volume no
ficando baixo o suficiente para evitar irritantes guinchos e soluos do horrio nobre. Tentaria
dormir, mas Delia e Paula aparecem sempre que fecho os olhos. E acho que no posso lidar com
mais nenhuma surpresa do dirio de Tess. No esta noite.
No fim das contas, vou at o carro, abro a mala e pego o exemplar de Paraso Perdido que
ficava no meu escritrio. O volume engrossado por anos de anotaes nas margens e leituras em
voz alta na sala de aula. O mais prximo de um amigo aqui no Kansas.
Mas esta noite, no adianta. Todas as tentativas de adentrar a linguagem familiar so
infrutferas, as palavras nadam na pgina, deriva. como se o prprio livro estivesse vivo,
alinhado com algum propsito novo. Enquanto olho para a pgina, o poema se reescreve,
pegando as letras como se fossem pedras do jogo de tabuleiro Palavras Cruzadas, formando
sacrilgios e blasfmias ao acaso.
Levanto da poltrona e deixo o livro aberto no assento. Rastejo para baixo das cobertas e
espero o sono chegar. No demora.
Ou talvez eu no esteja totalmente adormecido quando eu olho e a vejo.
Tess.
Sentada na mesma cadeira da qual acabei de levantar. Meu Paraso Perdido aberto em suas
mos.
Ela est olhando diretamente para mim. Seus lbios entreabertos, formando palavras que no
consigo ouvir, apenas leio enquanto ela lhes d forma. De alguma forma, no parece ser um
discurso, no parece que ela est tentando conversar comigo. por isso que ela segura o livro.
Ainda que no olhe para o livro, ela est lendo suas pginas em voz alta.
Tess...
O som da minha voz me desperta. Tambm faz com que ela v embora. O livro est aberto,
virado para baixo, na poltrona, como o deixei.
No sonho se que era um sonho , ela me olhava. Mas suas palavras vinham do livro em
suas mos.

Meu exemplar de Paraso Perdido est aberta na poltrona perto da porta, no mesmo lugar em
que o coloquei antes de ir para a cama. Mas outra pgina. Algum o pegou enquanto eu
dormia, apenas para larg-lo na pgina setenta e quatro.
Leio a pgina e, quase instantaneamente, vejo as linhas que Tess recitava para mim.
Sol, dizer-vos o quanto odeio vossos raios
Que me trazem a lembrana daquele estado
Do qual ca...
A queixa sincera de Sat contra a luz do Sol, um dos muitos confortos para os quais ele deu as
costas ao prosseguir em sua rebelio ambiciosa contra Deus e suas criaes. Sentir a luz s lhe
trazia lembrana o que ele um dia tivera. Uma metfora da dor. De fato, pode-se argumentar
como fao agora, aqui, no quarto 12 do Scotsman Inn em Wichita, Kansas que todo o
poema a histria da ira impossvel de Sat contra sua prpria iminente, irrefrevel morte.
Mas foi Tess que escolheu essas linhas. No apenas Sat, mas minha filha que vive em um
lugar ao qual negada a luz do Sol. E foi ela que, por meio de esforos inimaginveis, veio ao
meu quarto noite pegar meu livro e falar comigo em um cdigo que esperava que eu
entendesse. Talvez ela estivesse apenas fazendo o que seu captor havia mandado. Talvez fosse o
Inominvel assumindo a forma de Tess. Mas eu no acredito. At agora, ele no se fez passar
por Tess. E por que no? Ele ainda no a possui totalmente.
H alguns momentos, ela segurou o livro que j havia tentado ler e abandonado vrias vezes,
tentando ver o que eu via nele, mas frustrada pela densidade das palavras, as aluses resumidas
e as camadas de significados. Mas talvez ela tenha conseguido mais em suas tentativas do que
eu jamais acreditara. Pois ela leu aquelas linhas sem olhar para a pgina. Ela as conhecia de
cor.
E ela estava ali. o que importa. Ela estava ali.
Mas poderei encontr-la de novo?
Sol.
O Sol brilha em todos os lugares ao longo do dia, no importa o quo limpo ou nublado o cu,
no importa quo longa foi a noite. Deve haver algo que d forma ao conceito de sol que
ainda no captei. Algo que carregue um onde.
H um onde no trecho, claro. Sat no cai do paraso, mas de um estado. Uma condio
do ser, mas, em meu caso, talvez um lugar. Como Dakota do Norte.
O estado do Sol.
Ou Flrida.
O Estado Ensolarado.

tnue. Mas assim foram as concluses a que cheguei depois de ser largado perto do Dakota
e que pareceram funcionar bem. E, de qualquer modo, o que mais eu tenho?
O sono desta vez realmente toma conta de mim. No traz imagens, apenas uma sensao
crescente de calor. Multiplicando-se sobre meu corpo em ondas, como uma espcie de cobertor
fluido, intocvel.
E ento acordo.
Um pnico de chutar os lenis. Um pesadelo de cujo fim no consigo me lembrar, o
travesseiro esponjoso com uma mistura de suor e lgrimas. tarde. 11h24. Dormi toda a noite, e
mais um pouco. Mas eu me sinto mais podre que descansado.
por isso que, quando escuto um nico som de algum batendo porta, abro sem nem ao
menos olhar pelo olho mgico. Sem perguntar quem est ali.
Pertena aos vivos ou aos mortos, estou pronto para ouvir o que ele quer.

Capitulum 17

CAPITULUM 17

Caf?
No a reconheo de imediato. Perdeu peso. Sua pele branca como giz. A mudana to
surpreendente que, por um ou dois segundos, tomo OBrien pela Mulher Magra.
Voc est aqui.
Em carne doentia e osso.
Como voc me encontrou?
Quantos Scotsman Inns voc acha que existem em Wichita?
Voc voou at aqui?
Um nibus no parecia ser a melhor opo em termos de tempo.
Meu Deus! Elaine, voc est aqui!
Sim, estou. E voc vai pegar este caf ou no? Est queimando minha maldita mo.
Pego o caf. E ele queima minha maldita mo.
Mas OBrien est em meu quarto. Fecha a porta atrs dela e desaba na cama, abrindo braos e
pernas nos lenis midos, como se fizesse um anjo na neve.
Suores noturnos, ela diz, sentando. Conheo bem.
Como voc est?
Qual a minha aparncia?
tima. Como sempre.
David, se minha aparncia sempre tivesse sido esta, eu teria me matado h muito tempo.
Sento ao lado dela na cama. Tomo sua mo nas minhas.
Voc est mais magra, digo.

Eu como. Mas h um monstrinho insacivel dentro de mim, que devora tudo. Seria fascinante
se no estivesse acontecendo comigo.
Voc pode estar aqui? Sem seus mdicos, quero dizer?
Eu j lhe disse o que eu penso dos meus mdicos. E trouxe tudo o que a moderna medicina
pode oferecer. Est bem aqui. E puxa um frasco de comprimidos do bolso de seu jeans.
Morfina. Divido com voc se voc for bonzinho.
Este caf est timo por enquanto, obrigado.
Este caf tem gosto de coc de rato fervido.
Ah, bem que eu achei.
Tomo outro gole. Quase ponho para fora quando OBrien comea a rir e eu vou atrs.
Conseguimos retomar o controle um minuto depois, e eu limpo o caf que saiu pelas minhas
narinas, enquanto OBrien fica vermelha por causa de uma tosse convulsiva que a assola.
Espere, digo. Voc havia prometido que no viria.
No verdade. Eu prometi que no perguntaria mais se poderia vir.
Ento voc embarcou num corujo...
...e voei a noite inteira para socorr-lo.
No preciso ser socorrido.
discutvel. Mas voc certamente precisa de mim.
No h como discutir isso.
Sabe, OBrien? Preciso lhe dizer isso. Estou apavorado.
Com o que, especificamente?
Com a possibilidade de perder Tess.
Mas no somente isso, certo?
No, no s isso. H as coisas que tenho visto. O Inominvel, do qual acho que estou me
aproximando. O cara que est me seguindo.
Aposto que ainda h outra coisa.
O qu?
Que eu esteja certa. Que voc tenha pirado. Que voc seja apenas um cara que precisa
seriamente de ajuda.
Talvez. Talvez isso tambm.
Deixe eu me preocupar com isso um pouquinho, ok?
Esse o problema. Agora que voc est aqui, estou preocupado com voc tambm.
Ela vai at a janela. Abre a cortina um centmetro e d uma espiada no entorno, no cu azulclaro.
Vamos deixar uma coisa bem clara, ela diz ao se voltar para mim. Na semiescurido a
doena ainda mais visvel que em plena luz. Revela o quando dela j se dissolveu nas
sombras que a circundam. Voc est escutando?
Estou.

Esta a ltima viagem que jamais farei. No sei quanto tempo vou durar, mas vou deixar
claro, irei at o fim com voc. No posso explicar completamente o porqu, mas isso to
importante para mim como para voc.
Eu quero que voc viva. Que fique curada...
Mas eu no vou, David. E tudo bem. Eu s preciso que voc saiba que eu no estou buscando
compaixo, nem por algum que limpe minha fronte ou que escute as memrias ensolaradas da
minha infncia. Estou aqui por minhas prprias razes. Ento, quanto mais tempo voc passar se
preocupando comigo em vez de manter sua mente focada no assunto em questo, mais puta da
vida eu vou ficar.
Vou at ela. Envolvo-a nos braos.
Estou contente que voc esteja aqui, digo.
Com cuidado agora. Fico toda roxa.
Desculpe.
Ela se afasta de mim. Desvia o olhar. Assoa o nariz.
Precisamos comear, ela diz.
OBrien se dirige porta, mas eu a seguro pelo cotovelo. O osso parece uma pequena bola
macia em meus dedos.
Por que voc veio?, pergunto.
Seus olhos encontram os meus.
Para ajudar voc, ela responde.
Ajudar-me a voltar para Nova York?
Ela segura meu rosto com ambas as mos. Puxa-me para perto, de modo que a nica coisa que
vejo ela.
Eis uma promessa, diz. Nada mais de perguntas, nada mais de dvidas, nada mais de
conversa de terapeuta. Estou com voc. Entendeu?
Est comigo para qu?
Encontrar Tess. E quando a encontrarmos, vamos lev-la de volta para casa.
Tess.
Casa.
Ouvir essas duas palavras na mesma frase, ditas por algum que parece sentir que talvez seja
possvel conect-las, bem como que vale a pena tentar conect-las o bastante para
destampar o pote das emoes acumuladas nos ltimos dias. Estou chorando. Chorando como
no me lembro de jamais ter chorado. Um desmoronamento bagunado, escandaloso, de rosto
vermelho, curvado no meio do quarto 12 do Scotsman Inn de Wichita.
um espetculo e tanto. No que OBrien me deixe aproveitar por muito tempo.
D-me as chaves, diz. Eu dirijo.
Enquanto OBrien se concentra na estrada, eu lhe conto tudo. Ou quase tudo fica de fora o

dirio de Tess, que, por alguma razo, acho que pessoal demais para compartilhar. Mas eu
conto sobre a Mulher Magra. O professor na cadeira em Veneza. A previso correta dos
resultados das bolsas de valores globais. O Perseguidor. O Inominvel surgindo sob diversas
formas, ainda que todas de pessoas j mortas. Dakota. O Estado Ensolarado. Tess
silenciosamente me chamando.
Sobre como temos apenas dois dias e meio at a Lua nova.
Durante todo esse tempo, OBrien no me interrompe, no pergunta nada. Apenas me deixa
divagar e empilhar fatos, interpretaes e impossibilidades. Quando termino, ela ainda dirige
por alguns quilmetros antes de falar.
Para onde voc acha que essas pistas esto lhe conduzindo?, pergunta.
Realmente no sei. Desconfio que esto me levando para mais perto do Inominvel.
Para fazer o qu? Destruir voc?
Poderia ter feito isso a qualquer hora, provavelmente.
Est seguro disso? Aquela carona atacou voc.
Nem me lembre, disse, involuntariamente cobrindo minhas partes.
Ento como voc pode ter tanta certeza de que ele no quer voc morto?
Provavelmente quer. No fim. Mas ainda no.
Ainda no. No antes disso?, OBrien mostra com a mo o interior do carro, entulhado de
embalagens de fast-food, copos descartveis de caf e o mapa em meu colo. Por que voc tem
de seguir farelos de po por todo o pas?
Lembro o que a voz de apresentao falou por meio daquele homem em Veneza. Sobre como
no ramos inimigos, mas conspiradores.
Ele quer me pedir que seja parte de algo, afirmo.
Voc est dizendo que ele tem um propsito para voc.
Sim. Ainda que no tenha dito qual.
O documento. Voc tem isso. E se ele tudo isso que voc diz, prova de algo que, at
ento, s existia na imaginao dos homens. Apenas assimile isso por um segundo.
Realmente, algo.
algo enorme, ela diz, socando o painel. Os demnios so reais e vivem entre ns. No
de maneira metafrica, mas literalmente. aterrador.
Eu certamente teria de reescrever todos os meus ensaios.
Faz pensar no que eles esto tramando.
So Joo diria que eles esto nos preparando.
Para o qu? O Grande Final?
Isso vem um pouco depois. Primeiro, a queda. O apocalipse. O Anticristo.
Muito obrigado, senhor Desmancha-Prazeres.
Isso a Bblia, no Danielle Steel.
Seguimos em silncio por algum tempo. Ambos tentando disfarar os tremores que nossas

concluses provocam.
Certo, no vamos especular, OBrien finalmente se pronuncia. Vamos apenas dizer que, em
curtssimo prazo, seu documento potencialmente representa a maior revelao na histria social
e religiosa dos, pelo menos, ltimos dois mil anos.
Meu crebro est doendo.
E acho que isso faz parte, ela diz, ganhando energia. No podemos lidar com isso. como
ocorre com esses ufologistas ou seja l como se chamem. O pessoal da teoria da conspirao da
rea 51.
Roswell.
Quem sabe? Talvez nossas pistas nos levem para l. Roswell citado alguma vez nas
Obras Completas de Milton?
Voc quer chegar a algum lugar?
A questo , qual o argumento sempre usado pelo pessoal dos aliengenas-construram-aspirmides? Por que eles acham que as idas e vindas dos extraterrestres so um enorme segredo
que os governos mantm?
Porque ficaramos aturdidos.
isso. Pnico em massa. O Dow Jones[40] despencaria a zero. Anarquia global e horror.
Todos se escondendo em seus abrigos nucleares, o restante iria saquear e estuprar. Seria o Fim
dos Tempos fabricado por ns mesmos. Por que regular qualquer de nossos atos? Por que se
incomodar com a moral ou a lei? Eles esto vindo! Todos ns esperando pelos homenzinhos
verdes para nos dissecar, dizimar ou transformar em mato.
Voc acha que com os demnios a mesma coisa?
No. Eu no acho que o governo saiba mais sobre Sat e sua corte que qualquer aluno de
catecismo.
Ento o que o documento significa?
Verificao. Legitimidade. H todo tipo de textos religiosos por a, todo tipo de crena. Mas
no h prova. Ningum acha que jamais poderia haver prova.
por isso que chamam de f.
Exato.
Exceto que agora h provas.
Isso se David Ullman resolver abrir seu cofre em um banco de Manhattan. E se suas
implicaes forem as que imaginamos, isso transforma o vdeo de um E.T. em um saco para
cadveres em uma notcia sem importncia.
Eu me inclino frente para olhar pelo espelho lateral. Checando a autoestrada l atrs, em
busca da grade frontal do Crown Victoria.
por isso que o Perseguidor o quer, digo.
E talvez o Inominvel queira a mesma coisa.

Por qu? Ele me mostrou o que queria. Eu no roubei nada, ele me deu.
Talvez seja essa a questo.
Se for, no estou entendendo.
Temos de supor que o Inominvel, apesar de todos os seus poderes, tem limitaes.
Ele no pode assumir a forma dos vivos, apenas dos mortos.
Essa uma grande limitao. Se ele tem uma mensagem para este mundo, ele precisa de um
mensageiro.
Um discpulo.
Algo assim. Um demnio no pode aparecer na TV e apresentar sua prpria defesa, e Deus
tambm no pelo menos, nenhum deles tomou esse caminho at agora, pelo que sabemos.
E ele me v como um potencial porta-voz.
Por que no? Voc tem legitimidade. Um professor da Columbia, especialista nesse assunto.
Inteligente. Sem laos com o governo, nenhum desejo de lucro pessoal. Eu tambm escolheria
voc.
Conto a OBrien sobre o professor Marco Ianno, a identidade do homem na cadeira. Um
homem muito parecido comigo.
Talvez ele fosse um candidato ao mesmo servio, conclui OBrien.
O Inominvel tomou algo de Ianno talvez sua filha, sua mulher, sua amante e ele foi
atrs deles, assim como eu. Mas, no fim, ele no selou o acordo.
Ou a viagem ficou dura demais para ele.
Como assim?
Talvez tudo isso ver fantasmas, seguir sinais, ser caado por algum seja um teste. Para
ver se voc tem o carter certo.
No Velho Testamento, o Diabo ajudou Deus a pr prova a f de um homem, digo. Uma
espcie de encarregado do Pai Celestial.
O Livro de J.
Sim, esse seria o principal exemplo. Um homem bom que tem de passar por perdas e
calamidades para ver se consegue suport-los e, ao aguent-los, prova seu amor por Deus.
Esse um amor muito duro.
O ponto central dessas histrias, no entanto, no diz respeito a J ou a quem aguenta o qu.
Nem diz respeito f. De uma perspectiva demonaca, trata-se de Sat receber uma lio, no o
homem.
E qual a lio?
Que o homem pode triunfar sobre o mal por meio do amor.
Certo. Ento voc um J do novo sculo.
Exceto, que neste caso, no so chagas em todo o corpo ou a perda de meus bois e camelos.
um teste para ver se eu posso ir at o fim em busca de Tess, sem vacilar.

E como voc acha que est indo?


O corpo fraco...
...mas o corao forte.
No iria to longe. Mas ainda bate. tudo o que eu peo.
Passada cerca de meia hora, os cafs fazem seu efeito, e ns dois precisamos urinar.
Estacionamos na prxima parada, um bloco de concreto onde se l DELES e DELAS em meio a um
bosque de lamos. Eu acabo antes de OBrien e fico do lado de fora, esperando que ela saia,
pronto para assumir minha vez ao volante, quando escuto sons distantes de luta. O baque de
braos e pernas contra vidro temperado. As ordens de um homem, ferozmente sussurradas. Os
gritos sufocados de uma mulher.
O estacionamento da parada estreito e comprido, um caminho projetado para se entrelaar
discretamente nas rvores. difcil saber de onde vem o som, se da esquerda ou da direita.
uma sensao, mais que um juzo, que me atrai para a rea atrs dos banheiros, onde o terreno
se une ao bosque e termina em uma clareira com algumas esparsas mesas de piquenique. Uma
sensao de que na velha picape Dodge, estacionada isoladamente, que um estupro est
ocorrendo.
Enquanto eu corro os quarenta metros que me separam da caminhonete, a opo de ignorar o
que ouvi sacode minhas ideias. Seja l o que for que est acontecendo dentro daquele Dodge,
h uma grande chance de ser algum tipo de crime. E crimes requerem denncia, declaraes
polcia, a abertura de um processo. Crimes vo atrasar voc.
Mesmo pensando nisso, no hesito. H uma agresso. H um estupro.
Os sons ficam mais distintos quando eu paro, a poucos metros da caminhonete. Grunhidos.
Latidos guturais. Animais famintos disputando o ltimo pedao de carne da caa.
Quem est l dentro no percebeu minha aproximao. Isso me permite chegar mais perto.
Olho pela janela do carona, meio aberta.
Um homem e uma mulher. O homem mais velho que ela, a julgar por camisa listrada, as calas
cqui na altura dos joelhos. O cabelo se rendendo ao grisalho e precisando de um corte, com
cachos que foram uma imagem de juventude contra sua nuca. Embaixo dele, apenas os braos
plidos da mulher podem ser vistos, alm de alguns cabelos acobreados sobre o banco. Suas
mos sardentas cerrando-se nas costas dele, no que pode ser dor, resistncia ou um impulso
desesperado.
De incio, impossvel saber se o ato consentido. Os sons que eles fazem parecem agora
guinchos de hiena, imprudentes e cruis. Eu me enganei quando, mais cedo, pensei ter ouvido
ordens. No h fala, nada que possa ser reconhecido como humano. Os dois corpos fundidos em
agonia.

Chego perto o suficiente para colocar minhas mos na borda da janela aberta. Algo tem de ser
feito agora. Hesitar por mais tempo, de alguma forma, me torna um cmplice. Um voyeur.
No instante em que abro a boca para falar, eu os reconheo.
Ei.
Eles param ao som da minha voz. Como se estivessem esperando apenas por isso. No a
consumao do ato, porque isso nunca mais ser possvel para eles. Eles esto mortos. E eles s
esto aqui por minha causa.
A cabea do homem se vira sem qualquer movimento do resto de seu corpo. Sua cara oleosa
rindo ironicamente sobre seu ombro, em triunfo.
Pobre David, diz Will Junger. Voc pode ao menos foder essa puta doente que est andando
com voc agora?
Quero cair fora, mas minhas mos se recusam a largar a porta. Tenho de permanecer por
tempo suficiente para ouvir o que preciso ouvir.
Mas a prxima voz no vem dos lbios cinzentos de Will Junger, mas da garota cujo rosto
desliza de debaixo dele. A carona. A Boneca de Pano.
Vivei enquanto puderdes, Casal ainda feliz,[41] ela diz. Mostra seus dentes enegrecidos.
Agora eu largo. Pronto para correr. Mas o homem que um dia foi Will Junger comea a mudar,
e fico para ver no que ele se transforma. Uma mudana sutil nos traos de seu rosto, que no o
transforma totalmente em outra coisa, mas, ainda assim, revela a coisa dentro dele.
Quem voc?
O Inominvel responde no mesmo tom de falsa erudio com o qual j falou. As palavras
claras, mas frgeis, inanimadas.
No me conhecer demonstra vossa ignorncia.[42]
Comeo a recuar. Mas a mo do Inominvel se estica para me agarrar. A esse toque, uma dor
que se irradia me atravessa, tensa e atordoante, uma espcie de angstia destilada. O vislumbre
da perda me segura mais do que sua fora.
Diz a mesma coisa que Will Junger disse, exatamente na mesma voz, na ltima vez em que o vi
nos degraus da Biblioteca Low, em um agradvel dia de primavera no fim do ano escolar.
Vai ser um dia quente.
Por meio desse toque, ele me mostra Tess.
O mundo real a parada, a rea de piquenique cheia de mato, a alameda de lamos, o cu
limpo tudo isso escurece, como se uma cortina de veludo fosse puxada em um palco. Ento,
da escurido, surge uma figura. Suas mos frente, tateando por uma sada. Para evitar um
ataque.
Tess!
Meu grito vem de um ponto a milhares de quilmetros de distncia. Mas ela o ouve. Ela me
ouve e corre...
A cortina negra puxada para mostrar o mundo novamente. E agora sou eu que estou correndo.

Primeiro de marcha a r para me afastar do Dodge, depois eu me viro para apressar o passo em
direo ao DELES e DELAS. Em direo a OBrien, que claudica em minha direo, gritando algo
que no consigo escutar.
Quando a alcano passo meu brao em torno dela, afastando-a da caminhonete. Mas ela me
surpreende com a firmeza de sua postura.
Voc viu algo?
Na picape.
Ela se afasta de mim. Seu quadril visivelmente dolorido, os joelhos rgidos. Mas mais
rapidamente que o esperado.
Elaine!
Ela chega caminhonete e imediatamente coloca a cabea dentro da cabine. Atira metade do
seu corpo para dentro antes que possa ver o que a espera ali.
Ento corro para ela, tentando pux-la para fora. No que eu consiga ver o que est na
caminhonete com ela na frente. No que eu consiga ouvir o que quer que seja, alm de OBrien
me mandando tirar as malditas mos de cima dela.
Eu a largo. E ela desliza para fora, deixando mostra uma cabine vazia. Nada no banco alm
de uma embalagem amassada de cigarros.
Eles se foram, digo.
No vi ningum saindo.
No sei como. Mas eles estavam aqui. E agora no esto mais.
Simples assim.
Eu no pedi que voc olhasse. Na verdade, eu no pedi que voc...
EI! Quem diabos so vocs?
OBrien e eu nos viramos para quem fez a pergunta. Um homem de meia-idade com um terno
um nmero menor saindo das rvores com uma mulher que ajeita sua saia, o brilho labial para
fora do contorno de sua boca. Ambos retirando as folhas presas em suas blusas e cabelos.
Estvamos...
Que porra vocs pensam que estavam fazendo na minha caminhonete?
Apenas verificando algo, diz OBrien.
Ah, ?
Havia... sons, acrescento. Vindo l de dentro.
Sons, repete o homem, distraidamente afastando-se um pouco da mulher cheia de brilho
labial, que parece indecisa entre a necessidade premente de rir ou de ir ao banheiro.
Espere a, diz o homem. Guenta a. Vocs trabalham para a minha mulher?
O qu?
Ela contratou detetives ou algo assim?
No. No, no. Isso apenas...

Vagabunda!
OBrien j est se retirando. Ela agarra meu cotovelo ao passar por mim, ns dois
murmurando desculpas. Ento nos viramos e nos afastamos o mais rapidamente que
conseguimos sem correr.
Quando chegamos ao Mustang eu comeo a explicar o que vi na picape, mas OBrien j est
abrindo a porta do passageiro e entrando.
Dirija, ela diz. Voc pode me contar sem se preocupar com algum fodedor de secretria
tentando dar um tiro na minha bunda magra.
Voltamos para a interestadual. Eu checando o retrovisor para ver se o Dodge est nos
seguindo, OBrien checando mensagens de e-mail e a secretria eletrnica no celular.
Voc est aguardando uma chamada?
Um tique nervoso, ela diz. Eu fico ansiosa e comeo a brincar com os botes dessa coisa.
Todo mundo tem esse tique nervoso.
OBrien se recompe. Pergunta o que eu vi na caminhonete.
A Boneca de Pano. Voc se lembra da carona sobre a qual contei?
Sim. Inesquecvel Boneca. Mas ela no est sozinha, certo?
Voc no vai acreditar.
tarde demais para voc introduzir qualquer assunto com essa frase.
A Boneca estava fazendo sacanagem com algum. Uma sacanagem da grossa.
Achei que ela estava morta.
E est. E acho que o homem que estava com ela tambm.
OBrien olha fixamente para a tela de seu celular. Ento ela d um suspiro e se endireita no
banco. Seus olhos fascam com uma espcie de excitao enlouquecida.
Diga-me quem era, ela diz.
Will Junger.
Ela puxa o ar com tanta fora que parece um sinal de dor.
Deixe-me perguntar uma coisa, ela consegue falar.
Ok.
Voc checou as mensagens no seu celular hoje?
No. Alm disso, fiquei sentado ao seu lado o dia todo. Voc me viu olhando o celular?
No.
Por que isso importante?
O ltimo e-mail que li veio de Janice, do Departamento de Psiquiatria de Columbia.
O que dizia?
Um acidente de carro. Na noite passada. Um nico carro bateu na murada da via expressa de
Long Island, ela diz, puxando novamente o ar com fora. Will Junger morreu h quatro horas,
David.

Capitulum 18

CAPITULUM 18

Dois faladores profissionais em uma longa viagem de carro com estranhas notcias rodopiando
em suas cabeas de Ivy League, e nem eu nem OBrien dizemos muita coisa alm de Fome? e
Quer mais Dr. Pepper?[43] entre Denton, no Texas, e Alexandria, na Louisiana. Talvez
estejamos tentando entender as coisas. Talvez estejamos em choque. Talvez estejamos pensando
se algum dia voltaremos para casa. A nica certeza a estrada que se desenrola a nossa frente,
indiferente e brilhante. Assim como o Sol que fura as janelas, lambidas de ar pegajoso em
nossas nucas. Damos boas-vindas ao Sul com um silncio cismado e aumentando cada vez mais
o ar-condicionado.
Decidimos passar a noite em Opelousas. O Oaks Motel tem quartos por menos que um gimlet
no Algonquin,[44] observa OBrien, ento ocupamos dois, com uma porta de comunicao
entre eles.
Dormir impossvel. Nem preciso tentar para saber disso. Ento, mais uma vez, abro o dirio
de Tess. Encontro outra anotao que prova que minha filha sabia muito mais do que jamais
imaginei sobre o mundo no qual estou agora.
Eu sei de onde vm os valentes.
H uma valentona na minha turma. Ela se chama Rose. Provavelmente o nome mais
errado jamais dado a algum no mundo.
Todos tm medo de Rose. At os garotos. No que ela seja violenta, ou algo assim. Se
voc visse uma foto dela, no pensaria ASSUSTADORA! Mas se ela est na mesma sala que

voc, voc sente. Quando ela olha para voc, voc deseja que ela pare.
(Rose um pouco cheinha. Seus peitos esto crescendo, tambm. A primeira em nossa
turma. E suas unhas so longas e sujas, como se ela as usasse para cavar. Ela uma
garota quase gorda com unhas sujas e peitos.)
Ela nunca me perturba. Isso porque eu sei por que ela desse jeito. Eu at sussurrei
isso na orelha dela uma vez.
Voc pensa que tem um amigo secreto, mas no um amigo
E depois que eu fiz isso, ela me olhou estranho. Um olhar do tipo Como voc sabe disso?
Agora ela me deixa em paz. Como se ela que tivesse medo de mim.
A senhorita Green deu uma aula especial sobre esses valentes no incio do ano. Ela
disse que eles fazem coisas ruins apenas porque eles esto assustados e sozinhos. Ela s
estava meio certa.
Os valentes tm medo. Mas eles no esto sozinhos.
H um amigo secreto dentro deles. Algo que comea dizendo coisas bacanas, fazendo
companhia a eles, prometendo nunca ir embora.
E a eles dizem outras coisas. Do ideias.
assim que sei sobre Rose. Eu posso ver seu amigo secreto.
Depois de mais algumas pginas eu encontro outro trecho perturbador. Perturbador em parte
pelo que diz sobre os horrores que ela vivenciou. E em parte porque ela escreveu com o intuito
de que eu lesse agora que ela se foi.
Eles esto no meio de ns.
Abra sua mente para eles, e eles estaro com voc. Dentro de voc. quase fcil demais
depois que voc faz isso algumas vezes. E mesmo que voc no goste, difcil parar.
O que eles querem? Mostrar coisas para ns. O que eles sabem, ou que querem que a
gente pense que eles sabem. O futuro. Como preparar o mundo para eles.
Eles esto no meio de ns.
Eu reli a passagem. E mais uma vez. Antes mesmo da piedade, antes da culpa, vem a
comprovao de que ela estava certa. Sobre tudo. Eu abri minha mente e fechei meus olhos, e,
agora, tambm vi algumas das coisas que eles querem nos mostrar. Ainda que haja muito mais
coisas que ela viu e que ainda no me foram reveladas. Quando ns caminhvamos pelo Central
Park para alimentar os patos nos fins de semana, quando eu lia para ela O Jardim Secreto[45]

na hora de dormir, quando ela me dava um beijo jogando seus braos de passarinho em torno do
meu pescoo na hora de entrar na escola, ela sabia.
Uma batida na porta de comunicao. Quando eu abro, depois de guardar o dirio longe da
vista, OBrien est ali de p com a lngua para fora, numa pantomima de sede mortal.
Vamos tomar um trago, diz.
Atravessamos a rua, at o Brass Rail, e pedimos Budweisers antes mesmo de sentar a uma
mesa no canto. A cerveja no tem gosto, mas est espumante e gelada, e cumpre a mgica do
lcool de soltar a lngua.
Ele devia estar apenas indo ou voltando de uma visita a Diane, eu comeo.
Provavelmente.
Talvez eu devesse ligar para ela.
Voc quer?
No. Por uns dezoito motivos diferentes, no, no quero.
Ento no o faa. Acho que esta no hora para falta de sinceridade.
Eu no desejava que ele morresse.
Srio?
Machucado, talvez. Algo que tirasse aquele sorrisinho da cara dele, com certeza. Mas no
morto.
Mas ele est mortinho da silva agora.
E a primeira coisa que ele faz com seu tempo do outro lado me encontrar.
Parece que essa deciso no foi s dele.
O Inominvel.
Escolheu Will para falar com voc. O que disse?
No repito a crueldade sobre a condio de OBrien. Mas eu mantenho isso em mente. No
por sua obscenidade, mas pelo fato de o Inominvel ter se referido de cara a OBrien. Isso
significa que estamos sendo vigiados. Mas talvez isso tambm signifique que OBrien possa ter
razo ao dizer que eu teria sido atrado para c, longe de Nova York, a fim de perder o apoio de
minha amiga. De qualquer modo, pela centsima vez hoje, estou grato por ela ter pegado um voo
at Wichita para juntar-se a mim.
A Boneca falou primeiro, na verdade, conto uma mentirinha. Vivei enquanto puderdes,
Casal ainda feliz.
Nem precisa dizer. Milton.
Quem mais?
Por que essa linha? Ela estava se referindo a voc e Tess?
No. A voc e eu. Mas o tom era nitidamente sarcstico.
A voc e eu, repete OBrien, abraando a si prpria.

do Livro IV. Sat chegou ao den e est tramando a perdio de Ado e Eva. Ele tem um
cime odioso de tudo o que eles tm o gozo de seus corpos, a natureza, a proteo de Deus.
Ento ele lhes diz para se divertirem enquanto puderem, porque isso no vai durar muito. Vivei
enquanto puderdes,/ Casal ainda feliz; aproveitai, at minha volta,/ Curtos prazeres, pois
longas penas se sucedero.[46]
Uma ameaa.
Certamente. Assim como uma piada. Ele est nos comparando a Ado e Eva no jardim.
E aqui estamos na Louisiana. Na meia-idade, um de ns buscando uma criana perdida, o
outro murchando com uma doena terminal. O mais longe da alegria sem pecado que um casal
pode ficar.
Mas h algo a, digo, ficando animado. Algo que podemos usar.
O qu?
Uma indicao de sua sensibilidade.
Um comediante.
Um humorista nato. O tempo todo, ele vem citando um texto cannico, uma obra-prima da
forma potica, mas com um objetivo irnico. Isso diz algo sobre sua personalidade.
Quem liga para sua personalidade?
Eu ligo. Eu preciso.
OBrien recosta na cadeira e leva a garrafa aos lbios, surpresa por encontr-la vazia. Ela
acena para o garom, fazendo um sinal de dois com os dedos. E ento se corrige, levantando
mais dois dedos.
Para garantir, diz.
Quando as cervejas chegam, conto a OBrien como o Inominvel respondeu com outra citao
de Milton quando eu perguntei quem ele era.
No me conhecer demonstra vossa ignorncia.
Certo, professor, diz OBrien. Traduza.
outra fala de Sat. Ele parado por anjos que guardavam a Terra, e eles exigem saber sua
identidade. Ele no lhes d uma resposta direta. Seu orgulho muito grande. O Diabo acha que
eles deveriam saber quem ele por todos os seus feitos, por sua fama, pelo medo que ele
provoca.
Ento nosso demnio acha que deveramos saber quem ele .
Penso que ele quer que eu descubra isso.
Outro teste.
Diria que sim.
Por que necessrio que voc decifre o nome dele?
Fiquei pensando nisso. E acho que tem a ver com intimidade. Se eu for capaz de pronunciar o
nome dele, ns ficaremos mais prximos. E necessrio que estejamos muito prximos. No

amigos, talvez, lembro-me novamente de sua voz morta vaticinando pela garganta de Tess. No,
certamente no amigos. Mas inquestionavelmente prximos.
Talvez ele no possa revelar primeiro seu nome, sugere OBrien, batendo a garrafa de
cerveja na mesa. Ele precisa que voc o diga, para dar a ele uma autoridade maior. O
anonimato um dos inconvenientes demonacos. Isso lhes nega um grau de poder. Pense nisso.
Meu nome Legio. Sat no se identifica nos portes do den.
O primeiro passo do exorcista descobrir o nome.
Exatamente! Nomes tm poder, e isso funciona nas duas direes. No caso dos demnios
nosso demnio , no se diz quem por no ser capaz. Mas se voc consegue descobrir seu
nome e diz-lo em voz alta, abre um canal para ele, de alguma maneira. Atravs de voc.
OBrien pousa sua mo sobre a minha. Seu sangue pulsa com tanta fora atravs de sua pele
fina como papel que eu posso sentir cada batida do seu corao.
Acho que voc est certa, digo. S que eu daria um passo alm.
Ento d.
No me conhecer demonstra vossa ignorncia. uma rua de mo dupla. S estaremos
unidos quando eu descobrir quem ele e quando eu descobrir quem eu sou.
O verso diz vs, David. Plural. Acho que eu tambm fao parte dessa autodescoberta.
Bebemos mais um pouco. Comeamos nossa terceira rodada s para garantir.
Ento essa a pergunta de um milho de dlares, diz OBrien, limpando o sbito suor de
sua testa com as costas da mo. Qual o nome do Inominvel?
Ainda no tenho certeza. Mas acho que um dos integrantes do Conselho Estgio citados na
verso de Milton do Pandemnio.
Voc est certo de que no Sat?
Estou. Ainda que ele ambicione ter a fama de seu mestre.
Ambicioso. Some isso a suas caractersticas.
E propenso literatura. Usando Paraso Perdido como uma espcie de cdigo.
Linguagem. Ele compartilha com voc uma paixo por palavras, David.
Parece que sim, admito. E parece que ele gostaria de conversar comigo tanto quanto eu
gostaria de conversar com ele.
Ento OBrien escancara sua boca em um sbito bocejo.
Mesmo aqui, nesse restaurante de beira de estrada iluminado apenas por anncios de cerveja
em non e velhas mquinas de fliperama, a doena de OBrien est claramente desenhada em
suas feies. Por alguns perodos de tempo, o humor e a animao dela disfaram o contnuo
estrago que lhe est sendo infligido interiormente e que, de repente, fora a passagem para se
mostrar. como o Inominvel fazendo seu truque de metamorfose no rosto de Will Junger na
caminhonete, ou no do homem em Veneza que se transformava em meu pai. Cncer tambm um
tipo de possesso. E, como um demnio, antes de reclamar a pessoa, ele a devora aos poucos,

apaga o rosto que ela sempre apresentou ao mundo, para mostrar a coisa indesejada que est por
dentro.
Vamos levar voc para a cama, digo, levantando e oferecendo a mo a OBrien.
Eu pensaria que voc estava dando em cima de mim se voc no estivesse com essa cara de
menininho preocupado.
Eu sou um menininho preocupado.
Eis a algo que aprendi da maneira mais difcil, ela diz, levantando-se sem segurar minha
mo. Todos vocs so.
Voltamos para o hotel, mas quando chego a minha porta OBrien se pe ao meu lado. Eu me viro
para olh-la, e ela coloca no bolso as chaves de seu quarto.
Tudo bem se eu ficar com voc esta noite?
Claro, respondo. Mas s h uma cama.
por isso que estou perguntando.
L dentro, ela tira os jeans e a suter, ficando, sob a luz do abajur, apenas de camiseta e roupa
de baixo. No quero olhar, mas no consigo evitar. Sua perda de peso confirmada pelos ossos
quase furando sua pele, com as curvas substitudas por calombos e arestas. Mas, apesar disso,
ela ainda bonita, ainda uma mulher elegante capaz de seduzir com seu porte, com as
promessas de sua silhueta. Talvez amanh a doena roube isso tambm. Porm ainda no o fez.
Esta noite, ela uma mulher na qual meus olhos se demoram mais com desejo que com pena.
Devo estar horrvel, ela diz. Mas no se cobre, no se esconde sob as cobertas.
Pelo contrrio.
Srio? No estou pavorosa?
Acho voc adorvel.
Ento faa amor comigo.
Eu no...
Eu posso no conseguir amanh. Voc pode no querer mais, ela diz, como se lendo a
avaliao que fiz em meu ntimo h alguns instantes.
Voc tem certeza?
Pense no que estamos perseguindo aqui, David. No que est atrs de ns. Se somos realmente
alguma coisa, somos duas pessoas que deixaram de ter certeza do que ficou para trs.
Elaine...
Nem pense nisso. Nada de Elaine. Apenas venha aqui.
Ela abre os braos, e eu me coloco entre eles. Beijando seu rosto. Segurando-a em um abrao
que ela repele porque se parece muito com o que fizemos antes, o contato carinhoso e polido
com que conclumos nossas noitadas em Nova York. Ela quer que isso seja diferente. Ento ela
desafivela meu cinto, abre o boto. Desliza sua mo.
Ok, ela sussurra. Ok. bom.

Ela apaga a luz e me puxa para a cama. Tira minha roupa com mais destreza do que eu
conseguiria. A chega minha vez.
Sua pele fresca com sabor de grama e um toque de limo. Ela uma mulher que eu conheo
muito bem, mas de quem, de um momento para outro, no sei nada. Uma estranha arrebatadora.
Uma sbita descoberta de novos gestos, novas maneiras de agradar e ser agradado.
Ela me deita e monta em minhas coxas, excitando-me, acariciando-me com as duas mos. Para
me deixar pronto.
Estvamos to prximos que eu s via os olhos, o rosto e o corpo de OBrien. Mas agora que
ela est sentada, o quarto est parcialmente visvel de novo.
E h algo aqui que no estava antes.
Uma sombra mais escura que as demais sombras do quarto, que cerca OBrien como uma aura.
Ainda assim, sem outra luz alm do que ocasionalmente atravessa as cortinas ou passa por baixo
da porta, ela no poderia projetar, por si, qualquer sombra. Ento no uma sombra, mas algo
feito de sombra. Parado ao p da cama, logo atrs de OBrien.
Quando ela se ergue, a coisa se move. D um passo para o lado a fim de mostrar o perfil de
seu rosto. Um homem olhando para baixo, para algo prximo, paralisado. Sem movimento,
exceto pelos esforos feitos h pouco por seus braos trmulos. Ele poderia estar calculando
uma perda, ele poderia estar esperando novas instrues. O branco dos seus olhos projeta sua
prpria luz fraca, revelando a gua que pinga de seu queixo, seu cabelo emaranhado. A boca e o
nariz reconhecveis, por serem passados de gerao a gerao, como os meus.
Pai?
No falo isso em voz alta. Mas escuto. Minha voz aos seis anos, pronunciando a mesma
palavra com a mesma perplexidade imensurvel no dia em que Lawrence se afogou. Meu
pai, tarde demais para salv-lo, parado na gua da mesma maneira que ele est parado com
sombras at a cintura neste quarto.
David?
OBrien ajoelhada sobre mim, sua respirao agora desacelerada. Seu olhar de preocupao
tornando-se outra coisa medida que ela v a expresso do meu rosto mudar. O horror que eu
senti quando criana, quando meu pai virou-se para mim no dia em que meu irmo morreu e eu
vi um estranho.
Assim como aquele estranho se volta para mim agora.
NO!

Tiro OBrien de cima de mim e ela cai de lado, agarrando os lenis para evitar cair da cama.
O que houve?
Voc o v?, pergunto, com os olhos fechados, mas apontando para onde meu pai estava.
Quem? OBrien acende o abajur da cabeceira. No h ningum aqui.
Meu pai estava aqui, explico a ela depois de abrir os olhos e confirmar que ele se foi.
Est tudo bem. Estamos seguros agora.

No. No creio.
OBrien coloca a camiseta. Fica de p no mesmo lugar onde meu pai estava h um segundo.
Jogue isso para mim, por favor, ela pede, apontando meu exemplar de Paraso Perdido
sobre a mesa. Jogo o livro para ela, e, em seu voo, as pginas se movem como asas em pnico.
Mesmo quando ela o pega, o livro parece agitado em suas mos, a capa se abrindo a cada
segundo em que ele no est fechado, como uma boca em busca de ar.
OBrien se dirige ao banheiro. No caminho, coloca a mo contra a parede, buscando o
equilbrio.
Voc est bem?
Sim, ela responde, no parecendo nada bem. S preciso fazer xixi.
E voc est levando isso com voc para uma leitura leve?
Quero entender toda essa zona.
Ela fecha a porta atrs dela. Antes disso, consigo ver seu reflexo no espelho. Espero ver
frustrao com nosso fracasso. Meu fracasso. Ou talvez frustrao com onde estamos, com o
fato de ela ter se deixado levar para uma situao como esta, que, se no fosse por mim e por
seus dias estarem contados, ela teria evitado. Em vez disso, vejo que ela est assustada. Ela no
precisa ir ao banheiro. Ela s no quer que eu veja seu medo.
Quase que imediatamente, eu a ouo chorar. Nunca presenciei OBrien emitindo esses sons e
demoro alguns segundos para ter certeza de que isso que ela est fazendo. Uma respirao
pesada, fungando, e pequenos sufocamentos, como um nadador que estava se afogando puxado
para fora da gua.
Como voc est a?, pergunto do outro lado da porta.
Olhe para mim. Pareo uma garota que perdeu a virgindade em uma festinha no salo de
jogos.
Tecnicamente, ns no fizemos.
E tecnicamente eu no sou virgem.
Ah. Uma analogia, ento.
Achei que voc estivesse habituado com elas.
Posso entrar?
Voc vai trazer seu pai junto?
Pelo que posso ver, no.
Ento pode.
OBrien est sentada na privada, mas com a tampa abaixada. O Paraso Perdido aberto em
seu colo, suas mos limpando o rosto e o nariz com lenos engomados. Nos ltimos trs
minutos, ela envelheceu vinte anos. Mas, ao mesmo tempo, ela senta com os joelhos colados e
os ps virados para dentro, como uma criana.
Desculpe pelo acontecido, digo. Estava gostando muito.
Eu tambm.

Parece que nosso amigo no quer que a gente se divirta.


Pode ser, ou ento voc tem srios problemas sexuais.
Ela ri e d uma tossida. E continua tossindo. Uma das mos segurando a bancada, a outra
contra a parede, mantendo o corpo erguido enquanto este se agita com alguma nova obstruo
em seu peito. Em alguns segundos, sua pele ganha cor. No rosa, mas azul.
Caio de joelhos e me aproximo dela, sem saber como ajudar. Compresso do diafragma? Boca
a boca? Nenhuma dessas opes parece boa.
De repente, OBrien para de tossir. Para de respirar. Um olhar desesperado, que protesta.
Joga sua mo em meu rosto com tanta fora que quase me derruba para trs.
Ela puxa o pouco de ar que consegue em um longo trago, forando-se a se acalmar. Isso leva
um bom tempo. Uma sbita calma, exceto pelo livro que cai, aberto, no cho. As duas mos
escoradas contra meus ombros.
Solta o ar.
Algo se solta dentro de suas costelas, com um clique audvel.
Um hlito de leite azedo, vindo do fundo de seus pulmes, sobe neste instante. E, ao final dele,
um fino jato de sangue. Pingos mornos em suas coxas, meu peito, meu rosto.
E ento ela respira de novo. Tenta limpar o que respingou em mim com o tapete do banheiro.
Cus, me perdoe. Isso foi horrvel, ela diz.
Por um segundo, voc me deixou apavorado.
Eu apavorei voc? Eu estava me afogando.
Meu irmo. O rio. Meu pai parado em meio correnteza, transformado. Afogando. A palavra
parece proposital. Mas a nica coisa que contei a OBrien sobre Lawrence foi que ele morreu
acidentalmente quando eu era criana. Se ela est fazendo uma conexo comigo, vem de outra
fonte.
Devemos ir a um hospital. Para examinarem voc.
Nada de hospitais, ela diz. Nem fale em hospitais de novo. Entendeu?
Dou espao para que ela se levante e lave seu rosto na pia, em frente ao espelho. Estou prestes
a levantar tambm quando percebo a cpia de Paraso Perdido apoiada contra a borda da
banheira. Abro na pgina oitenta e sete, onde Sat toma uma deciso sobre seu plano de arruinar
a humanidade ao tentar Eva com o conhecimento.
Pode ser um pecado o conhecimento,
Pode ser a morte?[47]
a mesma pgina em que aparece Vivei enquanto puderdes,/ Casal ainda feliz. Assim como
uma nica gota do sangue de OBrien, perto da parte de baixo da pgina oitenta e seis.
Do esguicho expelido por seus pulmes, apenas uma parte caiu no livro. Um brilhante
asterisco junto a Jpiter.

Sorriu com amor superior, como Jpiter


Sobre Juno sorri[48]
OBrien?
Ela se volta, e eu lhe estendo o livro aberto. Fico olhando enquanto seu crebro passa pelas
mesmas interpretaes que o meu acabou de passar.
Voc no usa uma caneta vermelha, usa?
No.
Ento h uma parte de mim aqui, ela diz. E no parece um acidente.
Nada mais parece.
O Estado Ensolarado.
H uma cidade chamada Jpiter na Flrida.
Sim, h.
Depois de uma breve pausa ela sai do banheiro. Deita na minha cama e puxa as cobertas at
seu queixo.
Uma hora de sono primeiro, ela diz.
Acho que no vou conseguir dormir.
Entre aqui e me mantenha aquecida, pelamordedeus.
Eu a abrao, de alguma maneira seu corpo mais frio e ossudo do que h apenas alguns
instantes. Cada respirao uma pequena luta. minha volta, a escurido ponderando que forma
assumiria agora.
Eu me enganei sobre no ser capaz de dormir.
Voc tem de estar dormindo para acordar e perceber que alguma coisa mudou no quarto. Que a
cama agora est vazia. Que o som que me acordou foi o clique de uma porta fechando por
dentro.
OBrien?
No consigo ver nada. O que significa apenas que meus olhos ainda precisam recuperar seu
foco na escurido, e no que no h nada ali.
Porque h algo ali.
O silncio de um sapato de sola de couro pressionado contra o carpete. Um cintilar metlico
que flutua cada vez mais alto. Mais perto.
No grite, diz o Perseguidor.
A voz serena, que pode ser confundida com gentileza. Um mdico alertando sobre um breve
incmodo enquanto a agulha entra.
No vai fazer qualquer diferena, ele diz, colocando agora um joelho no colcho, ao meu
lado.

Sua face semivisvel. Perfeitamente calma, quase distrada, seus pensamentos distantes. A faca
de caa no ar, imvel como a luminria na mesa atrs dela.
Por favor. Ainda no, acho que digo, pois a presso do sangue em meus ouvidos torna
impossvel ter certeza. Cheguei to perto.
por isso que estou aqui.
Suas costas se endireitam. O p ainda no cho se prepara para o golpe frente, quando ele
descer a lmina.
Mas quando ela vem, ele vem junto. Ele tomba pesadamente em cima de mim, de modo que
tenho de me contorcer para sair de debaixo dele.
Assim que fico de p, busco o abajur da mesa de cabeceira. Mas o do outro lado se acende
primeiro. Uma nica lmpada de 60 watts revela um grupo de elementos que no consigo
conciliar.
Os cabelos do Perseguidor escorrendo sangue, deixando um halo molhado em torno de sua
cabea nos lenis.
A faca de caa, polida e limpa, repousando sobre o travesseiro em cima do qual caiu.
OBrien de p atrs dele, a tampa de cermica do reservatrio de gua do vaso sanitrio
apoiada contra suas pernas finas. Uma meia-lua de sangue em uma das pontas.
Eu a encaro, mas ela no me v. Ela est ocupada demais levantando de novo o pesado objeto,
afastando com o p as pernas do Perseguidor para poder se enfiar entre elas e bater com a
tampa na cabea dele de novo.
O peso da tampa a faz ir junto. Por um longo momento ela fica deitada sobre as costas do
Perseguidor, como se tivesse adormecido enquanto lhe fazia uma massagem. Mas ento ela
comea a puxar o ar. Sacudindo suas mos at que eu entenda que devo peg-las.
Levanto OBrien, e ns dois batemos contra a parede e deslizamos para o cho. Olhamos o
corpo, esperando que ele se mova. Ele no se move.
Voc consegue me carregar para o carro?, OBrien pergunta diretamente no meu ouvido.
Claro. Com certeza.
O quarto est silencioso. A enorme quietude que se segue abrupta interrupo do barulho.
Mas os eventos dos instantes anteriores ocorreram em um quase silncio. Uma violenta dana de
sombras de sussurros, evasivas e suspiros.
David?
Sim?
Eu quis dizer agora.

Capitulum 19

CAPITULUM 19

Assumimos turnos durante a noite. Um cochila, o outro conduz o barco, ento paramos no
acostamento e trocamos de lugar. No conversamos, no no incio. O ar morno que o Golfo do
Mxico sopra borrifa as janelas. Os pneus zunindo em busca de alguma melodia esquecida.
Era ele, no era?, OBrien finalmente pergunta.
Sim.
Ele ia matar voc.
E voc tambm, assim que ele acabasse comigo.
Ento podemos fazer nosso pequeno julgamento aqui e agora e chamar isso de autodefesa?
No precisamos de um julgamento.
Me faa rir.
Ok. A Corte est suspensa.
S me prometa uma coisa.
Qualquer coisa.
No me pergunte como foi. Fazer aquilo.
Certo.
Mas depois que acaba de tocar Hotel California, pedido de um ouvinte da rdio AM, ela
pousa sua mo na minha.
O mais horrvel como isso fcil, ela diz. Voc se d uma justificativa, e matar se torna
muito fcil.
Ela tenta controlar o riso enquanto toca Bad Moon Rising. Depois chora durante metade de
Stairway to Heaven.

No tocamos no assunto de novo. O que significa que ns perdoamos a ns mesmos,


reconhecemos a necessidade de nossas aes. Ou isso, ou o demnio que estamos procurando j
uma parte maior de ns do que gostaramos de acreditar.
Quando amanhece o dia j estamos bem dentro da Flrida, tomando caf da manh em uma
Waffle House nos arredores de Tallahassee. Enquanto devoro minha torrada aucarada, OBrien
mexe na tela do meu iPhone, buscando uma razo para Jpiter ser nosso destino.
Estamos procurando o que, precisamente?, ela pergunta, dando um gole de caf e sacudindo
a cabea por causa do amargor. Rituais de magia? Bebs que nasceram com garras?
Nada assim to bvio. Apenas uma histria que no bate.
Parece que h cada vez mais disso por a. Sempre achei que isso era apenas o show de
horrores crescente da Internet.
Talvez. Ou talvez haja mesmo cada vez mais disso por a.
OBrien l em voz alta algumas das histrias recentes que ela puxou da costa leste da Flrida
Central, vrias delas divertidamente bizarras. Um gato encontrou o caminho de casa depois de
ser largado na estrada a dezesseis quilmetros de distncia (Ns certamente vamos ficar com
ele agora, prometeu o dono). Um homem ganhou duas loterias multimilionrias uma semana
atrs da outra (A primeira coisa? Vou quitar meu maldito caminho!). Um tubaro comeu o p
de um turista australiano (Eu sabia que algo estava errado quando pulei fora da gua e as
pessoas comearam a gritar.). Mas nada que parecesse levar o carimbo do Inominvel.
Teremos de farejar por ali quando chegarmos, digo. Mas OBrien no est me ouvindo.
Absorta por alguma coisa que est lendo na tela do celular. Achou algo?
OBrien termina de ler a histria, e eu fao um sinal para a garonete trazer mais caf.
Aconteceu h apenas dois dias.
Foi quando eu estava em Wichita, digo. O dia em que recebi a pista Sol, dizer-vos o
quanto odeio vossos raios.
O que significa que isso acontecia ao mesmo tempo que voc estava sendo atrado para c.
Uma conexo simultnea.
Voc vai me dar um resumo, ou eu mesmo vou ter de ler?
OBrien pega seu copo de suco de laranja, mas, franzindo as sobrancelhas ao ver os gomos
boiando na superfcie, o coloca de volta na mesa sem beber.
Todos os relatos asseguram que eles eram bons garotos, ela comea. O que s torna isso
mais inacreditvel. S torna tudo pior.
Uma escola primria na zona oeste de Jpiter, conhecida pelo envolvimento na comunidade e
pelo elevado desempenho em testes padronizados, bem como pelas fortes ligaes com grupos
de igrejas locais. Crianas que, em sua maioria, se conheciam desde o jardim de infncia.
Filhos e filhas da classe mdia alta, do corao da Amrica Deus-gosta-mais-de-ns, como
explica OBrien.

Terceiro ano primrio. Oito anos de idade. Brincando na pracinha atrs da escola antes do
jantar, depois que os professores haviam ido para casa, e os garotos mais velhos, para onde
quer que passem o fim da tarde. Nada de excepcional sobre aquele dia, em qualquer aspecto.
Mas em algum momento entre 15h40 e 16h10, quando o primeiro adulto chegou ao local, todas
as crianas todas as sete atacaram um coleguinha. Um menino cujo nome no foi
divulgado pela polcia. Algum que pais de alunos, professores e os prprios agressores
asseguram que era querido, um menino sem qualquer distino racial, religiosa ou demogrfica,
que crescera em Jpiter como todos eles. Mas que eles, usando pedras e galhos de sicmoro,
alm de seus prprios punhos e ps, colocaram em coma.
Animais. Essa palavra tem aparecido muito nas reportagens. Eles agiram como animais,
disse esse vizinho ou aquele vereador. Mas, como corrigiu a me de um dos acusados, Animais
no fazem isso um com o outro sem um motivo.
Os investigadores analisaram as possibilidades de uso de drogas, abusos, gangues. Mas eles
tiveram de concluir que no houve motivos para a violncia. Pelo menos um biruta local sugeriu
a hiptese de um envenenamento qumico de algum tipo, uma nuvem de gs que levou insanidade
temporria a uma nica pracinha, mas no h, o que no surpreende, qualquer prova que sustente
essa afirmao. A psicloga do conselho da escola afirmou que o caso est alm de sua
experincia. OBrien concorda com essa observao.
Garotos de oito anos no fazem isso com garotos de oito anos, ela diz, obrigando-se agora a
beber um pouco de suco para combater a tosse que arranha na sua garganta.
E aqueles dois garotos na Inglaterra? Aqueles que assassinaram um menininho raptado em um
shopping?[49]
Aquilo era uma dinmica entre dois garotos. E a vtima era um desconhecido, algum que
eles consideravam o objeto de sua experincia. Estamos falando de sete crianas aqui trs
garotos e quatro meninas , todos participando. E a vtima era amiga deles.
O que as crianas esto falando sobre isso?
Ningum se lembra de nada, exceto do ato em si. Com relao ao porqu, todos do a mesma
explicao.
Qual ?
Toby me disse para faz-lo.
O aposento gira. Um carrossel engordurado de laranjas e vermelhos plastificados.
Toby. Aquele que foi visitar Tess, vindo do Outro Lugar. Aquele que tem uma mensagem para
mim.
Um garoto que no mais um garoto.
Quem Toby?, consigo perguntar depois de fingir ter engasgado com alguma coisa.
Boa pergunta. Ningum sabe.
O que eles sabem sobre ele?
Todas as crianas disseram que ele era novo na cidade, algum que no ia escola deles,

mas que apareceu naquela tarde e conversou com eles. E dentro de dez minutos, Toby os deixou
convencidos de que deveriam destroar o coleguinha.
A polcia est procurando por ele?
Claro. Mas eles no tm pistas. Acha que vo conseguir?
No.
Porque...
Porque no h qualquer Toby. Ou, pelo menos, no h mais qualquer Toby.
OBrien e eu ficamos nos olhando por sobre a mesa. Um reconhecimento silencioso passa
entre ns. Se um de ns estava louco antes, agora os dois esto.
As crianas deram alguma descrio de Toby?, perguntei, pegando dinheiro para pagar a
conta.
Outra coisa estranha. Nenhuma delas conseguiu dar detalhes fsicos suficientemente precisos,
ento no foi possvel fazer um retrato falado. Mas eles esto seguros em relao sua voz.
Vinha de um garoto, mas usava palavras de adulto. Soava como um adulto.
O tipo de voz qual voc no consegue dizer no, digo. , j ouvi uma dessas.
Dirigimos pela rodovia interestadual I-10 at Jacksonville, quatro pistas inchadas por cascalho
empilhado para evitar que algum afunde no pntano ou se embrenhe na floresta que existe dos
dois lados da estrada. Depois pegamos a I-95 para o sul, passando por inmeras sadas para
resorts, oportunidades para a aposentadoria e ofertas de buf da rede Early Bird, com o
Atlntico a alguns poucos quilmetros ao leste.
Isso inclui o que resta de hoje.
E eu ainda nem sei o que devo fazer. Onde vou encontrar o Inominvel.
por isso que, fora as pausas para abastecer e usar o banheiro, no paramos at chegar a
Jpiter. Dirigimos pela cidade at sermos parados pelo oceano, um acontecimento muito
alardeado, e duvidado, ondas marrons a rolarem na areia. Estacionamos, e OBrien, sem dizer
uma palavra, sai do Mustang, chuta os sapatos e comea a andar em direo agua, em um
passo teso, que contemplo sentado no cap do carro. O ar chega como uma colnia agradvel de
gua salgada e algas, e est sempre presente, dentro ou fora do carro, o bafo distante de fritura.
OBrien entra na gua sem tirar qualquer pea de roupa, sem enrolar as pernas das calas. Ela
se move com dificuldade, como algum que no pretende sair da gua. Penso que deveria ir at
l, para o caso de ela ter alguma dificuldade, ficar presa na contracorrente ou simplesmente
deslizar para baixo da superfcie. Mas ento ela para, com a gua na altura do peito, cada onda
a levantando e pousando de novo, com os ps no fundo, a espuma massageando seu corpo.
Ela leva algum tempo para voltar ao carro. Ensopada, as roupas agora penduradas, revelando
sua magreza, de tal modo que ela parece algum que acaba de nadar para a praia depois de dias
no mar agarrado a um resto de naufrgio.

Esta a ltima vez em que vou sentir o mar, ela diz, assim que se senta ao meu lado.
No diga isso.
No estou sendo dramtica. Eu apenas escutei as guas, e foi o que elas me disseram. Foi
reconfortante, de verdade. Uma despedida de velhos amigos.
Eu quero negar isso que seja isso que est acontecendo com ela enquanto tomamos sol
depois de uma longa jornada, que ela esteja morrendo mesmo agora neste instante de um prazer
quase esquecido , mas ela tem razo, e agora no hora para um consolo intil. Ento,
quando estou prestes a ir at a mala do carro pegar uma toalha roubada depois da limpeza
precipitada e incompleta do hotel na ltima noite, OBrien me segura pelo pulso.
possvel que no consigamos. Voc sabe disso, no sabe?
Isso nunca se afasta da minha mente.
O que estou dizendo que aquilo que enfrentamos mais forte que ns, David. anterior a
tudo, quase onisciente. E o que ns somos?
Um par de ratos de biblioteca.
Perfeitos para serem esmagados.
Isso um papo encorajador? Se for, no est funcionando.
Em vez de rir, OBrien aperta meu pulso com mais fora.
Andei ouvindo uma voz, tambm, ela conta. Comeou depois que voc voltou de Veneza,
mas nos ltimos dias, na estrada com voc at mesmo nas ltimas vinte e quatro horas ,
tornou-se mais ntida.
o...?
No o Inominvel. alguma coisa boa, apesar de tudo. E ainda que eu chame de voz, no
fala comigo. Ela me ilumina. Parece ridculo, eu sei, mas a nica maneira de explicar.
E o que ela est lhe dizendo?
Que qualquer coisa pode ser suportada quando no se est sozinho.
Ela me d um beijo no rosto. Enxuga as marcas molhadas que deixa na minha pele.
O Demnio aquele com o qual estamos lidando, pelo menos no entende o que voc
sente por Tess, diz OBrien, em algo que um pouco mais que um sussurro. Ele pensa que
entende o amor. Decorou todas as falas, leu todos os poetas. Mas apenas uma imitao. Esta
nossa nica e bem superficial vantagem.
Foi isso o que essa sua voz disse?
Mais ou menos.
Por acaso ela mencionou como ns podemos usar essa nica, muito superficial, vantagem?
No, responde OBrien enquanto desliza da frente do carro para tiritar no calor escaldante.
At agora no deu nem uma porra de um pio sobre isso.

A Escola Primria Jpiter um prdio baixo, de tijolos amarelos, com a bandeira dos Estados
Unidos, pendendo de seu mastro na zona de parada (LIMITE 5 MIN. INFRATORES SERO
REBOCADOS). O prprio retrato da normalidade americana. E tambm, cada vez mais, pano de
fundo para que os reprteres da TV relatem histrias de horror inexplicveis. O solitrio com a
bolsa de nilon cheia de armas. O bilhete de despedida do garoto perseguido pelos colegas. O
rapto na volta para casa.
Aqui, algo um pouco diferente. Algo que faz menos sentido ainda.
H alguns carros de estaes locais estacionados na rua, ainda que inicialmente, quando
encostamos no meio-fio, as cmeras no estejam vista. Mas ento soa o sinal da escola. Ao
mesmo tempo que as portas se abrem e as crianas saem arrastando os ps, exauridas depois de
um dia repleto de conselhos sobre luto e tristes assembleias no ginsio, as equipes de TV
concorrentes surgem do nada, enfiando-se entre pais que aguardam ansiosamente por seus filhos
e agitando microfones na cara das pessoas.
Qual era o clima na escola hoje?
Como voc est lidando com o que aconteceu?
Voc conhecia as crianas que fizeram isso?
E as respostas meio rasas, meio exageradas.
como um filme.
H muitas pessoas que esto realmente sofrendo.
Eram crianas normais.
Enquanto atravessamos a rua e nos juntamos multido que se move em crculos, vou na
direo de uma garota que parece ter oito ou nove anos. Eu me agacho, na postura que sinaliza
um adulto amigvel, o policial compreensivo. E ela reage como se tivesse sido treinada. Vem
direto para mim, como se eu tivesse mostrado um distintivo.
Sou o policial Ullman, digo. S queria fazer uma ou duas perguntas.
Ela olha de relance para OBrien, que sorri para a menina.
Tudo bem, ela responde.
Voc conhecia essas crianas que bateram no coleguinha?
Sim.
Voc poderia me lembrar do nome do garoto machucado?
Lembrar voc?
Sim, digo, batendo em meus bolsos, fingindo procurar um bloco de notas. Minha memria
no mais aquela.
Kevin.
Kevin de qu, docinho?
Lilley.

Certo! Agora, sabe essas crianas da sua turma que machucaram o Kevin? Voc se lembra de
elas falarem de um garoto chamado Toby?
A menina junta as mos e as segura junto do corpo. Um gesto de vergonha. Todo mundo
falava com Toby, conta.
Como ele era?
Como ns. Mas diferente.
Diferente em que sentido?
Ele era s. Ele no ia escola. Fazia o que queria.
Algo mais?
Ela pensa sobre isso. Ele tinha um cheiro estranho.
Ah ? Como o qu?
Como algo de dentro da terra.
Suas narinas se abrem lembrana do cheiro.
Ele lhe disse coisas?, pergunto.
Sim.
Coisas ruins?
Ela desvia o olhar. No. Mas elas faziam a gente se sentir mau.
Voc se lembra de alguma das coisas que ele disse?
Na verdade, no, ela responde, seus braos rgidos com o esforo de buscar as palavras
certas. como se ele no falasse. Ou como se a gente estivesse falando sozinho.
A menina olha para OBrien de novo. Comea a chorar.
Calma. Est tudo bem, digo, aproximando-me da menina para segur-la. No ...
No toque nela!
Eu me viro e vejo um homem caminhando pelo gramado da escola. Um cara enorme, irritado,
em uma blusa do time de futebol americano Miami Dolphins extra-extragrande. O tecido
turquesa balanando ao ritmo dos braos dele.
No h necessidade... comea OBrien, mas ela deixa a frase incompleta. Como poderia
acabar? No h necessidade de arrebentar a cara do meu amigo.
A menina corre para o pai. Ele a pega e se aproxima de mim com um olhar ameaador. Agora,
outros pais e crianas esto olhando na nossa direo, chegando mesmo a se aproximar um
pouco para ver melhor.
Quem so vocs?, ele pergunta.
Jornalistas.
De onde?
Do Herald, ocorre a OBrien.
O pai olha para ela, depois para mim. J falei com o cara do Herald, ele diz. O que faz de
vocs um par de mentirosos nojentos.
No discutimos com ele sobre isso. OBrien no est em condies de evitar o que viria

depois disso, e eu nem consigo pensar em uma maneira de levantar e me colocar fora do alcance
de seus pulsos e ps com rapidez suficiente para evitar os golpes. Ns trs ficamos parados, em
aceitao mtua do inevitvel.
Neste momento eu percebo que estava errado sobre o porqu da raiva do homem. Ele no est
com raiva de ns porque falamos com sua filha. Na verdade, ele nem est com raiva. Ele est
apavorado com o que sua filha pode ter falado sobre Toby, o garoto que no existe. O garoto que
disse a ela e a seus colegas para sonharem com a coisa mais terrvel que pudessem fazer, e
ento que a fizessem.
Minha filha sumiu, eu digo ao homem, baixo o suficiente para que apenas ele e a menina
ouam. Isso o deixa ainda mais paralisado. Estou procurando minha garotinha.
Algo em seu rosto mostra que no somente ele acredita em mim, como percebe que minha
busca tem algo a ver com Toby, com a agresso na pracinha e com as coisas que ele no entende
por que desabaram em seu mundinho outrora bom. Ele percebe, apesar de nem vagamente
entender isso. E por isso que ele puxa sua filha para ainda mais perto dele e se afasta.
Isso me permite voltar para o Mustang, com OBrien logo atrs. Os rostos dos pais, das
crianas e dos reprteres de laqu assimilando nossa retirada, com a gratido daqueles que
sabem que, no importa o quo ruins as coisas estejam, sempre h algum para quem elas esto
piores.
Talvez porque OBrien se parea mais com um paciente que a maioria dos pacientes, foi fcil
entrar no pavilho principal da enfermaria do Centro Mdico de Jpiter, perguntar pelo nmero
confidencial do quarto de Kevin Lilley, assegurar que somos parentes e receber a indicao do
caminho para a cama do mais famoso paciente de UTI da Flrida.
Dali para o terceiro andar, ns dois especulamos, no elevador, sobre o que descobriramos de
um garoto em coma.
Uma marca, talvez, sugere OBrien.
Tipo 666? Um pentagrama?
No sei, David. Foi voc que nos trouxe aqui. O que voc est procurando?
Outro sinal. O ltimo.
Vou saber quando encontrar.
Nossa sorte continua. Ao chegar ao quarto de Kevin, no encontramos os pais segurando sua
mo nem visitantes em volta. Uma enfermeira trocando sua alimentao intravenosa explica que
eles saram h alguns instantes, para passar a noite em casa.
Vocs no esto com eles?, ela pergunta.
Somos de Lauderdale,[50] responde OBrien, como se isso eliminasse todas as dvidas que
algum pudesse ter sobre ns.

Logo depois ela nos deixa sozinhos com Kevin e suas mquinas, apitando e resfolegando. Um
garoto to inchado e sem cor que parece estar usando uma segunda pele, que ficou pequena para
ele e em breve vai se soltar, revelando o novo menino por baixo. Sua cabea o aspecto mais
preocupante. O crnio envolto em uma complexa combinao de toucas e gaze, que protegem
seu crebro nos lugares onde o osso foi quebrado. Mas o mais difcil de olhar so suas
plpebras. Espessas e brilhantes como linleo.
Kevin?
OBrien me surpreende ao se dirigir antes ao garoto. No caminho, ela dizia achar que vir aqui
no serviria para muita coisa, e ela pode ter razo. Mas sua piedade pela criana faz com que
ela busque o contato. Chegar at ele, em um lugar to distante e desconhecido como seja l onde
for que Tess est.
As mquinas apitam. Kevin respira, os tubos em suas narinas sugados como canudos em um
copo vazio. Mas ele no escuta.
Por qu?, sussurra OBrien, enxugando as lgrimas.
Para provar que eles esto entre ns. Que eles sempre estiveram entre ns.
Eu no sei, respondo.
Fomos trazidos para c para ver isso?
A corrupo do homem. O maior feito deles. Uma obra de arte em andamento.
Eu no sei.
OBrien vai at a janela. As nuvens do fim da tarde se renem como pensamentos confusos no
horizonte do oceano. Em algumas horas estar escuro, e o hospital ser supervisionado pela
reduzida equipe noturna. E Kevin estar aqui, sozinho com um amontoado de cartes Melhore
Logo na mesa lateral e um buqu de bales flcidos na beirada da janela.
Voc no me conhece, sussurro para ele, indo para a lateral da cama. Mas Toby tambm
falou comigo. Parte de mim a parte insensata, que fica mais audaciosa em seu raciocnio
infantil, mgico espera que isso extraia uma reao do garoto. Porque essa busca na qual o
Inominvel me lanou tem seu centro em mim, ento eu sou a chave para todas as fechaduras.
Mas a verdade que todo mundo perde algum sem o qual eles acham impossvel viver. Todos
ns temos um momento como este, quando acreditamos que nossa prece dirigida aos cus, nosso
melanclico sortilgio, vai produzir um milagre.
Kevin? Eu sou o homem que Toby mencionou a voc, falo, inclinando-me junto ao seu
ouvido, a pele cheirando a antissptico. Eu tenho uma garotinha, no muito maior que voc.
Algo ruim tambm aconteceu com ela. por isso que eu vim de muito longe para ver voc.
Nada. Talvez at menos que nada. Sua respirao soa mais baixo aqui, to prximo a ele. Sua
conexo com a vida algo mais silencioso do que parecia inicialmente.
Ento eu toco nele.
Coloco minha mo sobre a sua e a ergo um centmetro. Seguro-a sem apertar. Empresto a seu
antebrao o movimento simples que provavelmente ele nunca mais far sozinho.

Mas quando eu interrompo o movimento, a mo no para.


Um dedo. O indicador, estendendo-se quase reto para me apontar.
Eu me inclino mais para perto. Minha orelha quase tocando seus lbios. Perto o bastante para
ouvir a voz de Kevin. To fraca que s algum que h muito tempo memorizou os versos
poderia ouvi-los como eles so.
Enquanto ele forma as palavras hesitante, lutando para lembrar a sequncia exata ,
percebo que Kevin tambm as memorizou. algo que Toby pediu que ele fizesse, e, para manter
viva sua esperana de nadar para a luz, ele est sendo o melhor pupilo que pode.
Uma horrvel masmorra, todos os lados redondos
Uma enorme fornalha flamejava, mas dessas flamas
Nada de luz, antes escurido visvel[51]
Seu nariz suga os tubos com um puxo ligeiramente mais forte por um minuto, uma recuperao
quase silenciosa de seu esforo. Ele volta, ento, para o dorme-no-dorme.
OBrien pe a mo no meu ombro. Quando me endireito, noto que ela no ouviu o que eu ouvi.
Precisamos ir, ela diz.
Ela vai em direo porta, mas eu me demoro um pouco. Volto para a cabeceira da cama e
sussurro palavras de um livro diferente no ouvido de Kevin.
Ainda que eu seja sitiado por um exrcito,
meu corao no ter medo.[52]

Capitulum 20

CAPITULUM 20

Depois de sairmos do hospital, conto a OBrien sobre o que Kevin recitou. Ela no pergunta o
que eu acho que significa, para onde nos aponta agora. Ela apenas assume o volante, e rolamos
pelas ruas ladeadas de palmeiras de Jpiter, um mundo de estacionamento prtico e sinalizaes
gigantescas. Poucos andam nas ruas. Busco encontrar algum entrando ou saindo dos carros,
mas nunca consigo. Suas expresses humanas reduzidas s piadas sem graa das placas
personalizadas dos veculos.
Estou cansada, anuncia OBrien. Ela parece. Um cansao mais que cansao, algo que vai at
os ossos. Ao olhar para ela, eu me dou conta de que a nova viso que ela tem do mundo mais
responsvel por tirar a cor de seu rosto que sua doena.
Vamos voltar para o hotel, afirmo. Voc precisa descansar.
No h tempo.
Apenas deite por meia hora. No haver problema.
O que voc vai fazer?
Continuar dirigindo por a.
Depois de deixar OBrien, vou direto para um destino que no tinha em mente. A pracinha. O
local onde sete crianas derramaram o sangue de outra na areia dos balanos.
No h ningum. a hora de escovar os dentes. Minha parte favorita do dia com Tess. O ritual
de banho, pijama e livro. Uma sucesso de confortos que eu podia proporcionar com segurana
noite aps noite. Por meio de nada mais que essas simples repeties, eu conseguia tornar as
coisas melhores.

No esta noite. Seja onde ela estiver, ela est fora do meu alcance. Para alm de ouvir um
sussurrado Era uma vez ou a cano You are my Sunshine.
Mas canto para ela de qualquer modo. Sento em um dos balanos e luto para no desafinar.
Uma cano de ninar imperfeita no crepsculo.
You make me happy when skies are gray...
Um garoto caminha sobre o gramado.
Ele tem a mesma idade de Kevin Lilley e seus colegas. Um garoto de boa aparncia com
cabelo um pouco comprido e uma camiseta pequena com a imagem da lngua de fora dos Rolling
Stones, sobre fundo preto. Ele se move de maneira incerta, rgida, como se tivesse acabado de
acordar depois de dormir muito tempo em uma posio desconfortvel.
O garoto senta no balano ao lado do meu. Olha para seus ps. quase como se ele no
tivesse percebido que estou aqui.
Voc Toby.
Eu era.
Mas voc est morto agora.
Isso parece confundi-lo. Ento, quando ele consegue entender, assume uma expresso de dor
lancinante antes de se recuperar, simplesmente desanimado.
Eu perteno a ele, diz.
Quem ele?
Ele no tem um nome.
H uma garota com voc, no lugar onde voc est?, pergunto. Uma garota chamada Tess?
H muitos de ns.
Isso o que ele mandou voc dizer. Mas voc sabe mais do que isso, no ? Conte-me a
verdade.
Ele fica mudando de posio, fazendo caretas, com se tivesse engolido uma faca e estivesse
tentando, em vo, encontrar a posio menos dolorosa para sentar.
Tess, ele diz. Sim. Eu falei com ela.
Ela est no mesmo lugar que voc?
No. Mas ela est perto.
Voc pode encontr-la agora?
No.
Por que no?
Porque ela no deve ser encontrada.
Aperto os olhos. Esfrego uma manga molhada sobre meu rosto.
O que aconteceu com voc, Toby? pergunto. Quando voc estava vivo.
Ele chuta um pouco de areia com a ponta dos ps.

Havia um homem que me machucava, ele responde.


Quem?
Um amigo que no era um amigo.
Um adulto?
Sim.
Machucava voc como?
Com as mos. As coisas que ele fazia. As coisas que ele dizia que faria se eu contasse.
Sinto muito.
Eu tinha de fazer aquilo parar, s isso. Minha me tinha esses comprimidos. Eu tinha de fazer
aquilo parar.
Ele me olha. Apenas um garoto. Indescritivelmente assustado, que se despedaou antes de ter
uma chance de ser completo.
De repente, o rosto de Toby fica imvel. Sem qualquer alterao fsica, sem a metamorfose
que eu vi nos rostos dos outros que foram possudos pelo Inominvel, a parte Toby do garoto se
esvai, ficando apenas uma casca. Um garoto que j foi humano sentado em um balano, sem vida
de uma maneira alm da morte.
Ento ele volta a se mexer.
Os olhos giram e se fixam em mim. Quando fala, com a voz que eu conheo to bem agora
que parece uma parte de mim, emanando de dentro de minha prpria cabea, como dizem que
obturaes metlicas podem captar ondas de rdio em seus dentes.
Ol, David.
Eu sei quem voc .
Mas voc sabe meu nome?
Sim.
Diga-me.
Diga voc mesmo.
A no seria um teste, seria?
Voc no o diz porque no pode.
Seria um erro presumir que sabe o que eu posso e no posso fazer.
Voc precisa que eu reconhea voc.
mesmo? E por qu?
Se eu pronunciar seu nome, darei a voc a substncia de uma identidade, ainda que
superficial. Quando voc recebe um nome, pode fingir ser mais totalmente humano.
O garoto franze a cara ao ouvir isso. E, apesar de ser a expresso de uma criana petulante,
que seria quase risvel em outro contexto, ela suficiente, nesse garoto, para fazer o corao
disparar.
Tess est chorando, David, diz. Voc consegue ouvi-la?
Consigo.

Ela no acredita mais que voc chegar. O que significa que ela me pertencer quando vier a
Lua...
No!
DIGA MEU NOME!

Desta vez, a voz revela o dio, seu verdadeiro carter. As palavras passam pelos lbios
rachados de Toby em bolhas brancas de saliva.
Belial.
Este sou eu. O nome do demnio escapa de meus lbios e voa pelo ar como uma criatura alada
que estava escondida dentro de mim e agora, com pressa, volta para seu guardio.
Estou muito satisfeito, diz o garoto. E est satisfeito, a voz voltou ao que era antes. Um
sorriso vago faz sua boca se escancarar, como se puxada por anzis invisveis. Quando voc
chegou a essa concluso?
Acho que uma parte de mim sabia desde que ouviu voc falar por meio de Tess, em Veneza.
Demorou todo esse tempo para que eu confirmasse. Aceite isso.
Intuio.
No. Foi a sua arrogncia. Suas pretenses de civilidade. Uma sofisticao de araque.
O garoto sorri de novo. No com prazer, desta vez.
tudo?
E sua retrica, prossigo. Incapaz de parar de querer prender a ateno dele. Voc era o
grande articulador do Conselho Estgio.
Pelo outro lado elevou-se
Belial, em gesto mais gracioso e humano;
Ningum to belo parecia ter perdido o Paraso;
Feito com tamanha dignidade e bravura:
Mas tudo era falso e vazio[53]
A voz elegante que acalmava o raivoso apelo s armas de Moloch, ao argumentar que se
deveria esperar que a clera de Deus se amainasse antes de armar um ataque surpresa ao
paraso. Nosso Supremo Adversrio pode com o tempo suspender/ Sua clera, e talvez, ainda
que bem frente/ No se importar que no cometamos ofensa.[54] Adorador da fama e da
erudio vazia. Ainda que agradasse os ouvidos... seus pensamentos eram vis.[55] Este o
significado de seu nome, no fim das contas. Belial. Sem valor.
O rosto do garoto ficou rgido de novo. Inaltervel, imvel. Ainda que seus ps raspem a terra
embaixo do balano. Para a frente e para trs, devagar, obrigando a mover a cabea para seguilo. Um pndulo estonteante.
Voc e John tm muito em comum, diz.
Estudei a obra de Milton. S isso.

Voc se perguntou o por qu de ter sido to atrado por ela?


Toda arte merece ser estudada.
Mas muito mais do que isso! Ele o autor do mais eloquente registro da dissidncia da
histria. Rebelio! por isso que, em seus versos, John apresenta um argumento to
complacente para com meu mestre. Ele est do nosso lado, ainda que secreta e
inconscientemente. Assim como voc.
Voc est errado. Nunca prejudiquei ningum.
No se trata de prejudicar, David. Violncia, crimes estes so o detrito do mal, questes
menores comparadas quelas do esprito. E o que voc e John compartilham o esprito de
resistncia.
Resistncia a qu?
O garoto no responde. Fica se balanando para a frente e para trs sem dar impulso com as
pernas, sem tocar no cho, sem tirar seus olhos dos meus. As correntes rangendo na repetio de
uma mgoa infligida sempre da mesma maneira.
Em toda a sua vida adulta voc estudou religio, cristianismo, os atos dos apstolos e
ainda assim no acredita em Deus, prossegue depois de um tempo, fazendo nova pausa.
No, mais que uma pausa. Um buraco aberto no tempo. Um retorno.
H um instante ns dois estvamos sentados em balanos de lona em uma pracinha em um
subrbio da Flrida. Agora, ao erguer a vista, percebo que, apesar de permanecermos nos
balanos, imediatamente depois de nosso quadrado de areia est a floresta. As rvores estreis,
prximas demais umas das outras, morrendo da falta dgua, impossvel de ser retirada da terra
salpicada de cinzas. Olho por entre os troncos, mas a nica coisa a ver so mais rvores
curvadas, o cho plano e sem fim. uma viso dos bosques na margem mais afastada do rio,
que meu irmo e eu temamos quando ramos crianas. Intocada pelo ar, pelo canto dos
pssaros ou qualquer outra voz, exceto a do garoto, sussurrando as Escrituras em minha cabea.
Ento o Senhor disse a Satans: Donde vens?[56]
No consigo ver, mas sei que algo observa por entre as rvores. Uma densidade to forte que
faz o ar se curvar, uma espcie de gravidade lateral que puxa e distende tudo em volta. No
comunica nada por meio de seu silncio inchado, apenas privao, interminvel e insacivel.
Este o territrio por onde ele vaga, sem cessar. Magoado e faminto.
Ento Satans respondeu ao Senhor, dizendo:
De dar a volta pelo mundo, e de passear nele.[57]
Meus olhos se voltam para a areia do parquinho. Tento mant-los ali. No deixar nada passar,
exceto as palavras do garoto, agora ditas em voz alta.

Por que no?, diz, continuando como se tivesse parado o tempo e, agora, ligado de novo.
Porque voc no pode aceitar a noo de sua bondade absoluta! Voc sofreu muito, sua
maneira com sua melancolia , para servir sem questionar um Senhor sempre amoroso,
sempre tirnico. A bondade dele outro nome para Autoridade, uma ordem por escrito de um
pai ausente. Sua mente crtica no lhe d outra chance a no ser ver isso. E, nisso, voc me faz
pensar em John.
O garoto olha para o cu. De incio eu me sinto grato por no ter mais os olhos dele pousados
em mim. Mas ento ele fala com a voz de outro sua voz verdadeira, um sibilar mido e
odioso e percebo que isso, no seu olhar, que jamais esquecerei. Essa voz, recitando o
poeta, vai narrar o que resta dos pesadelos na minha vida.
Fazer o bem absoluto nunca ser nossa tarefa,
E fazer sempre o mal, nosso nico gozo,
Por ser contrrio alta vontade
Daquele a quem resistimos.[58]
Ao acabar, o garoto olha para mim de novo. Novamente a voz que ele escolheu para falar
comigo.
Resistncia intrpida. isso que nos une, David.
Eu no estou com vocs.
Est sim!, grita o garoto antes mesmo que eu pronuncie a ltima palavra. Voc sempre
soube disso. John estava conosco desde o princpio, assim como voc.
mentira.
mesmo? O melhor amigo de infncia dele morre no mar. A primeira esposa o deixa logo
depois do casamento. Suspenso de Cambridge por discutir com seu orientador. Uma passagem
pela priso por causa de suas opinies divergentes. Ele, como voc e eu como meu mestre,
seu heri mais magnificamente traado resistia servido. Um rebelde, sensvel a todas as
perdas e injustias de sua vida. Paraso Perdido uma belssima descrio enganosa, voc no
acha? Simula justificar os mandamentos dirigidos por Deus aos homens, mas na verdade uma
justificativa para a independncia, a liberdade. Foi, em seu tempo, a melhor obra do que se
pode chamar de propaganda demonaca. Minha obra-prima.
Sua obra-prima?
Toda poeta tem sua musa inspiradora. Eu fui a inspirao de John. Mais do que isso. Eu dei
as palavras para ele. Ele apenas assinou seu nome.
Sua arrogncia deixou voc cego.
Cego! John estava cego quando escreveu seu poema! Voc esqueceu? Foi quando ele pediu
ajuda. Ele implorou escurido que o cercava que lhe desse inspirao. E eu apareci. Sim! Eu
apareci e sussurrei minhas palavras doces em seu ouvido.

O Diabo mente, David.


Babaquice.
No seja grosseiro, professor. Obscenidade uma prova na qual voc no pode me vencer.
Na borda do quadrado de areia dos balanos, um par de gaivotas disputa o que parece,
primeira vista, uma pilha de ossos de galinha. As pequenas costelas, o pequeno crnio. No
estava ali antes. No so ossos de galinha.
Os pssaros bicam os olhos um do outro, atacam a parte de trs do pescoo, arrancando e
rascando penas e carne. As rvores se aproximam para ver os primeiros pingos de sangue.
Toby ergue a mo e a balana no ar. As gaivotas partem. Seus guinchos se juntam a outros que
vm da floresta.
Eu sei o que voc est pensando, diz o garoto. Se eu era a voz nos ouvidos de John, por
que ele teria nos retratado de maneira to desfavorvel? Voc sabe qual a resposta, professor.
Ele estava limitado por sua poca. Elogiar abertamente Sat e seus anjos cados teria sido
ilegal, impossvel. Ento ele nos nomeou como os antagonistas do poema, enquanto claramente
mostrava sua simpatia por ns. Responda-me. Quem o verdadeiro heri do poema? Deus?
Ado?
Sat.
Como voc mesmo argumentou, repetida e apaixonadamente, em suas admirveis
dissertaes.
Simplesmente um argumento acadmico.
Voc no acredita nisso! Seno, por que devotar sua vida a essa opinio? Por que se importar
em convencer seus colegas e doutrinar seus alunos no que, na poca de John, seria chamado de
blasfmia? porque voc est conosco, David. E voc est longe de estar sozinho.
Seu discurso a lgica tortuosa de sua retrica to desorientador que eu mantenho os
olhos baixos, para ter certeza de que meus ps esto no cho, mantendo-me no lugar. Mas o que
cho aqui? O que manter? Basta olhar novamente para o garoto, a sensao de
movimento volta. Mareado em terra firme.
Por que Tess?, pergunto, engolindo em seco. Por que eu?
Eu a mantenho comigo para que voc se concentre. Todo poeta todo contador de histrias
precisa de motivao.
assim que voc me v?
O que voc chama de documento a prova de nossa existncia. Mas voc, David, o meu
mensageiro. E a mensagem o seu testemunho. Tudo o que voc viu, tudo o que voc sentiu.
No o fato de eu estar num balano que me faz sentir to tonto. o mundo inteiro, o jardim
murcho, que est girando.
Voc vai deixar que eu a veja? Que fale com ela?
Este ainda no o fim da sua jornada, David.
Ento diga-me para onde ir.

Voc j sabe.
Diga-me o que fazer.
Deixe a mulher para trs. Complete sua peregrinao.
Porque no fim os errantes encontraro o caminho at voc.
No sua capitulao que eu busco! No quero escraviz-lo, e sim libertar voc. No
entende? Sou sua inspirao, como fui a de John.
Parte de mim sabe que h fragilidade no argumento dele. Mas no consigo captar a substncia
do que ele diz, como algo que comi e que fica no meu estmago, pesando e sem me alimentar.
No tenho outra escolha seno continuar falando, continuar perguntando. Tentar no pensar na
coisa faminta no bosque, que, mesmo sem olhar, sei que saiu para se mostrar. Aproximando-se.
Propaganda, digo. assim que voc v o documento, certo? assim que voc me v.
Posso defend-lo onde voc no pode se defender por sua conta.
A guerra contra o paraso nunca foi travada no inferno, nem na Terra. O campo de batalha
est em todas as mentes humanas.
A mente tem seu prprio lugar, e neste/ Pode fazer do inferno um paraso, do paraso um
inferno.
John viu isso. Assim como o outro Joo.
O Apocalipse de So Joo.
Um livro que no deve ser levado muito ao p da letra.
Qual a sua interpretao?
O Anticristo vir portando armas de persuaso, no de destruio, diz o garoto, cada vez
mais alto e com mais firmeza. A Besta no se erguer das guas, mas de dentro de vocs. De
cada um de vocs, um de cada vez. E de uma maneira adequada a suas prprias dvidas,
frustraes. Sua dor.
Voc est travando uma guerra.
Uma cruzada!
O garoto abre sua boca como para rir, mas nenhum som sai. uma habilidade que o Toby
original possua, mas que aquele que agora ocupa seu corpo ignorava.
O apocalipse uma viso do futuro do homem, afirmo, com rapidez. Mas Mateus prope
uma viso do seu futuro. Que tens a ver conosco, Filho de Deus? Vieste aqui para nos
atormentar antes do tempo?[59] Sua cruzada vai fracassar. Foi previsto. O tempo. Vocs esto
destinados a morrer no lago em chamas.
O garoto pisca ao ouvir isso. Subitamente, seu semblante se escurece, como se ele fosse
chorar. Pela primeira vez, o garoto parece realmente um garoto.
H muito a fazer antes disso, afirma.
Mas vai acontecer. Voc no nega isso.
Quem vai negar a ordem do Pai Celestial?, cospe o garoto.
Vocs vo perder.

Eu vou morrer! isso que tenho em comum com voc, com toda a humanidade. Todos ns
carregamos o conhecimento de nossas prprias mortes. Mas Deus? claro que ele continua!
Eterno. Indiferente. A bondade pura fria, David. por isso que eu abrao a morte. Por isso eu
abrao voc.
Por um terrvel momento eu temo que ele esteja prestes a me puxar para ele. Tento ficar de p
e ir para longe de seu alcance, mas continuo sentado imvel no balano, as mos brancas de
tanto apertar as correntes.
Mas o garoto no tenta me agarrar. Ele mostra mais uma vez seu sorriso vazio.
Eu espero que voc tenha apreciado meu presente.
No sei a que voc se refere, digo, mas, no mesmo instante, compreendo.
O homem que estava desfrutando de sua esposa de uma maneira que voc talvez nunca tenha
imaginado. No se preocupe. O professor Junger nunca mais dar prazer a quem quer que seja.
O garoto d um sorriso irnico.
Vai ser um dia quente, ele fala na voz de Will Junger.
Em algum lugar, no longe dali, o rudo surdo e o arranhar de algo pesado se movendo entre as
rvores mortas. Talvez muitas coisas, ainda que com uma nica mente.
Deixe ver se entendi, falo, na esperana de que uma nova pergunta possa apagar o horrvel
formato da boca escancarada do garoto. Voc me considera um cruzado? Para voc? Para seu
mestre?
Os tempos mudaram desde que John escreveu o poema, sussurra o garoto em uma tristeza
nostlgica. Estamos vivendo na Era do Documentrio. As pessoas exigem veracidade. A
verdade sem intermedirios. No mais a poca para o poema nos defender, e sim as provas.
Mas s isso no basta. Precisamos de voc, David. O relato pessoal. Uma voz humana, falando
por ns.
Afirmando que h demnios de verdade no mundo.
uma histria antiga, ele diz, pulando do balano. E tambm verdadeira.
O garoto comea a se afastar. O espao entre ns enrijecido pelo frio que ele deixa em seu
rastro.
Eu o farei! Por favor! Apenas a deixe ir!
Ergo meus olhos, e a floresta escura sumiu. H apenas uma pracinha limitada por uma cerca de
correntes e, alm dela, casas humildes com as cortinas fechadas. O zumbido rouco dos
aparelhos de ar-condicionado lembra um coro gregoriano.
O garoto se volta. Ainda que nada tenha mudado de forma visvel em sua expresso, a
potncia de sua ira pode ser sentida com mais fora agora, a uma curta distncia, o vu de seu
encanto levantado para mostrar algo mais prximo de sua verdadeira natureza. A vvida agonia
de uma lmina partindo o nervo. Um odor ranoso de putrefao.
Como algo de dentro da terra.
Voc tem uma ltima descoberta a fazer. Uma ltima verdade. A sua verdade, David.

O garoto vai caminhando. Continua me olhando, mesmo de costas para mim. Uma criana cuja
sombra se estende longamente pelo gramado, como a de uma enorme besta.

Capitulum 21

CAPITULUM 21

S depois de cruzarmos a divisa entre a Flrida e a Georgia que OBrien se arrisca a


perguntar por que estou to seguro de que Toby nos tenha direcionado para o Canad.
No foi Toby, explico.
Ento como voc sabe?
Kevin Lilley me contou.
David, isso no possvel.
Por que no?
Aquele garoto no pode falar.
Ele falou comigo.
Bom, eu no ouvi.
No era para voc ouvir.
Por um instante, o rosto de OBrien se franze em uma careta de cimes. Ela tenta esconder
isso de mim olhando para fora da janela, mas eu percebo mesmo assim. No possvel
conquistar as bolsas de estudo, verbas e cadeiras de pesquisadora que ela conquistou sem ser
competitiva.
Belial fez Kevin memorizar algo. Algo que ele conseguiu sussurrar para mim, explico,
esperando atrair OBrien de volta com a isca de uma pergunta implcita. Funciona.
Paraso Perdido, ela diz. Que versos?
Uma horrvel masmorra, todos os lados redondos/ Uma enorme fornalha flamejava...
...mas dessas flamas /Nada de luz, antes escurido visvel.
So estes.

No entendo. Vamos para uma masmorra? Uma fornalha?


No a sute da cobertura.
Explico como, inicialmente, tambm no havia entendido. No havia palavra que saltasse aos
olhos como destino, nenhuma cidade ou estado velados pela poesia. Ainda que eu tivesse a
noo de que, no importa o que fosse, teria de ter alguma relao comigo. O que acabou sendo
confirmado pelo adeus de Toby.
A sua verdade, David.
Se pessoal para voc, ento deve ser pessoal para mim, tambm, devaneia OBrien. No
me conhecer demonstra vossa ignorncia. Lembra?
Lembro.
Como podem duas vidas conduzir mesma verdade?
No sei. Mas acho que sei onde isso vai acontecer.
Os versos que Kevin recitou falam de Sat inspecionando o inferno, o seu lar. Tambm sua
priso. Uma masmorra no nome, ainda que no necessariamente em substncia, j que um local
frequentemente descrito como um lago em chamas.
Assim que pensei nisso, percebi que havia entendido.
timo. Mas eu ainda preciso de alguma ajuda.
Lago. Fogo. Vivemos em uma cabana por alguns anos, quando eu era criana. Um dos
perodos de desemprego inspirado pelo usque do meu pai.
Uma cabana junto ao lago, diz OBrien, batendo o punho no painel. Deixe-me adivinhar.
Que pegou fogo.
Quase isso. Uma cabana junto a um rio. Um rio que desgua no lago Erva-de-Fogo.
O rio em que seu irmo se afogou.
Eu nunca contei a voc que ele morreu afogado.
Mas eu estou certa, no estou?
Sim.
Certo, ela diz, sua voz se tornando um sussurro spero. Considere-me convencida.
Peo a OBrien que dirija um pouco e finjo dormir no banco de trs. Na verdade, abro o dirio
de Tess, a partir de onde parei na ltima vez. Lendo suas palavras tanto pelo que elas expressam
como pelo formato das letras. A mo dela, escrevendo naquelas pginas. O trao de uma
presena que quase posso tocar, quase posso chamar vida.
Papai sempre me conta coisas de quando eu era criana. Coisas das quais no me lembro
porque eu era muito pequena. Mas elas parecem minhas memrias agora, de tantas vezes
que ouvi essas histrias.
Como esta:
Quando eu no tinha nem dois anos, eu subia na cama com meus pais de manh cedinho.

Meu pai era sempre o primeiro a acordar. Ele tentava deixar minha me dormir, ento
normalmente era ele que me levava ao banheiro e servia meu cereal etc. etc. Ele diz que
era sua parte predileta do dia. Mas ele dizia a mesma coisa sobre ler histrias na hora de
dormir. E sobre ver meu rosto quando me buscava no jardim de infncia. E ns dois
sentados no balco da cozinha comendo sanduches de atum. E pentear meu cabelo depois
do banho.
De qualquer maneira, ele acordava primeiro e eu ficava l OLHANDO para ele. A alguns
centmetros da cara dele. (Papai sempre dizia que era perto o bastante para sentir meu
hlito. Cheirava a qu? Po quentinho, ele dizia.)
Eu fazia a mesma pergunta todos os dias:
Voc feliz, paizinho?
Estou feliz agora, ele respondia toda vez.
O engraado que eu ainda quero perguntar ao meu pai a mesma coisa. Mesmo agora.
No somente porque estou interessada na resposta. Eu quero ser capaz de faz-lo feliz s
em perguntar. Respirar perto dele, para que ele sinta, e que isso seja o suficiente.
De repente, junto a anotaes como esta, algo estranho.
Anotaes que no tm relao com o que as precede ou as segue. Uma segunda voz, mais
poderosa que a primeira, abrindo caminho.
Papai pensa que pode fugir daquilo que o segue. Talvez ele nem veja, ou diga a si prprio
que no v. NO IMPORTA. Est vindo atrs dele do mesmo jeito. Como est vindo atrs de
mim.
Uma vez vi um documentrio sobre ursos-pardos. Dizia que, se voc esbarrar com um
urso-pardo na floresta, nunca deve fugir, e sim ficar firme no lugar. Conversar com ele.
Fugir marca voc como presa. Como comida.
Aqueles que fogem nunca escapam.
Mas talvez, se encarar o urso, voc pode mostrar a ele que no tem medo. Voc pode
ganhar um pouco de tempo. Encontrar uma maneira de escapar de vez.
Quando chegar a hora, no vou correr. Vou olhar para ele DE FRENTE. Talvez seja o
bastante para dar uma chance a papai.
Porque se o urso no levar um de ns, levar os dois.
Como Tess soube disso tudo? Como ela pde ver o que eu tinha escondido to bem que eu
mesmo no conseguia ver? Sempre estive consciente de nossa proximidade, da quantidade de
informaes no ditas que podamos transmitir em um olhar sobre a mesa de jantar ou em uma

mirada pelo retrovisor do carro. Mas eu no nos achava mais especiais que os mais sortudos
pais e filhas igualmente conectados.
No fim das contas, ela conseguia ler sinais muito mais profundos. Como compartilhvamos a
ddiva indesejada da melancolia, o fardo da Coroa Negra foi o que acabou abrindo para ns
uma porta pela qual outras coisas podiam entrar e sair. As entidades que normalmente atendem
pelo nome de espritos, mas que pesam mais e so deliberadamente mais destrutivas que as
frgeis aparies que o termo implica. Seres h muito separados de seus corpos, mas to
ardentes na busca por novas peles que no se importam com o mal que provocam, no fundo at
sentem prazer nesse dano, enquanto entram novamente nos vivos por algum tempo. O que eles
deixam para trs nunca volta a ser o mesmo, aqueles que andam entre ns, mas cujos olhares
passam vazios por ns.
Isso me faz pensar em meu pai. Como aquilo que marca Tess e eu tambm o marcou. Um
homem de luto antes mesmo de perder qualquer coisa, que sofria sem qualquer motivo bvio
para sofrer. Por meio de sua distncia de ns, sua famlia, por meio de suas mudanas
constantes de cidade, por meio do lcool, ele tentou fugir do urso que o acossava. E no fim, Tess
tinha razo. Aqueles que fogem nunca escapam.
Talvez eu tambm esteja fugindo desde aquela poca. Mas agora acabou.
Ligo para minha mulher de um reservado no banheiro masculino do KFC.
No que haja algo a dizer quer dizer, h muito que no pode ser dito , mas h a
compulso inevitvel de tentar. Que eu faa essa tentativa sentado em uma privada com a tampa
abaixada, lendo algumas das pichaes mais nojentas que eu jamais vi, parece estranhamente
adequado.
A voz de Diane. Ela no mudou a gravao desde antes de Veneza, ento ainda h uma leveza
nessa voz, quase uma promessa de flerte. Seria diferente agora.
Esta a caixa postal de Diane Ingram. Por favor deixe o seu recado aps o sinal.
Oi, Diane. Sou eu. No sei se vai dar para ligar depois...
Depois de qu? Alguma coisa final, seja l o que for. Ento eu deveria pelo menos dizer
adeus. Ou talvez seja tarde demais para isso.
Desculpe. Merda! Se voc ganhasse uma moeda por cada vez que me ouviu dizer isso, no ?
Apenas no h outra maneira de dizer isso, acho. Isso cobre tudo. Tess. Voc e eu. Will. Eu
soube do acidente e, mesmo que voc no acredite, sinto muito por isso tambm.
A porta do banheiro se abre e algum entra para lavar as mos. A torneira aberta at o fim,
derramando pingos no cho, que posso ver por baixo da porta do reservado.
Diane. Escute, h... comeo, abaixando a voz. Mas a ideia de algum estar escutando o que
nem sei o que vou dizer me paralisa. Espero por quem quer que esteja na pia acabe. Mas ele
continua. A gua caindo na pia. Os pingos formando poas no ladrilho do cho.

Eu s espero que voc encontre uma maneira de ser feliz de novo, sussurro. Espero que eu
tambm no tenha levado isso.
Tambm? O que eu quis dizer com isso? Que eu levei sua felicidade, assim como os anos
desperdiados em nosso casamento? Assim como a filha dela?
O sujeito que lava as mos limpa sua garganta. Solta uma respirao ofegante. Comea a rir.
Abro a porta do reservado de supeto. A gua ainda correndo, uma nvoa embaando o
espelho. Ningum ali.
Depois estou no corredor, abraando a parede para sentir sua fresca realidade contra meu
rosto. Visvel para aqueles sentados nas mesas de plstico, desenterrando pedaos de galinha de
dentro de baldes. Alguns deles olham para mim. Seus pensamentos de Drogado ou Maluco ou
No se aproxime, porra escritos em seus rostos enquanto eles mastigam.
Confiro o celular e desligo. Uma mensagem de quase trs minutos. A primeira parte, uma
desculpa gaguejada; a segunda, uma torrente de gua; para terminar; a risada de algum morto. O
que Diane vai pensar disso? Ela provavelmente chegar mesma concluso dos comedores
de coxinhas que me olham agora. No h como ajudar algum assim.
O engraado que eu queria confort-la. Eu queria soar como uma pessoa s.
Entramos no Tennessee com OBrien cantando o pouco que lembra de Chattanooga Choo
Choo. Deixamos a Chattanooga real para trs, com os costumeiros hotis de beira de estrada,
fbricas abandonadas e armazns de estocagem. H uma cidade de verdade para alm dessas
ruazinhas distantes. Bairros com famlias sustentadas pelos mesmos afetos ou abaladas pelos
mesmos crimes que outros bairros, aqueles nos quais vivemos e, por isso, consideramos mais
reais. Pessoas que, pelo que sei, devem estar levando adiante buscas igualmente impossveis.
Conversando com os mortos e fazendo preces para quem quer que se disponha a escutar.
Vai haver
Uma festana na estao
Logo a fita de asfalto est fazendo zigue-zagues pelos Apalaches, mas ningum reduz a
velocidade, uma negao coletiva de caminhes de carga de oito rodas e penhascos
escancarados. E ningum mais indiferente do que ns. Revezando-nos ao volante durante a
noite, mordiscando tacos e produtos de galinha reconstituda, regando tudo isso com um caf
quase slido de tanto adoante.
De tempos em tempos, OBrien pergunta sobre meu pai. Isso me leva a recordar mais coisas
do que conto a ela.
Porque eu era to novo quando ele morreu, s consigo trazer memria fragmentos, o gosto
deixado no ar por seu estado de esprito cada vez mais sombrio nos meses que antecederam o
acidente do meu irmo. Um comportamento que, tendo em vista minhas recentes experincias,

adquire uma ressonncia maior. Como ele, um homem que nunca foi religioso, comeou a ler a
Bblia de cabo a rabo, comeando tudo de novo ao acabar. Os longos silncios quando ele
interrompia o que quer que estivesse fazendo aparando a grama, preparando caf instantneo
na caneca e parecia ouvir instrues que nenhum de ns conseguia escutar. E seus olhares.
Isso mais do que qualquer coisa. Como eu o pegava olhando para mim, seu filho, no com
orgulho ou afeio, mas com um estranho apetite.
S conto a OBrien as coisas superficiais. Sua depresso, seu alcoolismo. Os empregos que
perdia. Ele me instando a no ser como ele. E, at bem pouco tempo atrs, eu achava que tinha
conseguido.
Mas h mais dele em voc do que voc imaginava, diz OBrien.
por isso que ns vamos v-lo.
Ainda que ele esteja morto.
No parece que isso o tenha impedido de voltar, certo?
Ele no o nico.
No disse tudo a OBrien.
No porque tenho medo de que ela no v acreditar em mim. No contei porque entre Tess e
eu. Sua revelao traria o risco de romper o tnue fio que ainda nos conecta. Falar disso em voz
alta poderia levar a existncia desse fio a Belial.
Por exemplo, no conto a OBrien todos os motivos que me fazem saber que temos de ir at a
velha cabana junto ao rio. No falo da anotao no dirio de Tess em que ela conta do sonhoque-no--um-sonho.
Parada s margens de um rio em chamas.
Tess levada para a outra margem, onde eu e meu irmo nunca nos aventuramos quando garotos.
No falvamos disso, mas sabamos, de alguma maneira, que era um lugar ruim. L as rvores
cresciam inclinadas, suas folhas nunca retornando totalmente no vero, de modo que a floresta
parecia faminta.
O mesmo lugar mostrado por Belial naquele balano em Jpiter. A pracinha cercada pela
floresta escura. Uma besta que surgia.
A divisa entre este lugar e o Outro Lugar.
E minha filha do lado errado. A ouvir-me buscando por ela, chamando por ela. A ver o corpo
do meu irmo boiando.
Braos que me puxam para trs. Pele que cheira a terra.
Tess implorando para que eu a encontre.
No palavras que saem da minha boca atravessando o ar, mas que saem do meu corao
atravessando a terra, para que ns dois possamos ouvi-las.
Eu no tinha me dado conta do que era aquilo. De que o som que s vezes percebo por baixo
do zumbido nos ouvidos, da tagarelice dos programas de rdio e do ar contaminado que entra

pela janela aberta vem dela.


Chegamos a Ohio e tomamos a I-90 em Toledo, de modo que agora aceleramos ao longo do lago
Erie, montono como papel-alumnio na noite. A ironia de uma placa para uma cidade chamada
den nos faz sair da interestadual e estacionar nos fundos do restaurante Red Lobster, para
cochilar por meia hora, ainda que somente OBrien deite o seu banco e feche os olhos.
Enquanto OBrien arfa e assovia no tpico sono dos doentes, eu folheio A Anatomia da
Melancolia, de Burton. Corro o polegar pela borda, passando as pginas, at que elas se abrem
em um marcador que eu ignorava estar ali. Uma fotografia. Com as beiradas recortadas, as
bordas brancas amarelecidas com o tempo. Uma foto minha.
Pelo menos, quem eu imagino, num primeiro momento, que seja. Mas logo percebo que
meu pai. A nica foto que tenho dele. Sei disso porque durante muito tempo acreditei ter
destrudo todas. O choque da semelhana me deixa levemente sem flego, lutando por ar da
mesma maneira que OBrien faz ao meu lado.
Ele deveria ter praticamente a mesma idade que tenho agora quando foi para a floresta com a
espingarda Mossberg que herdara do seu pai, colocou o cano em sua boca em posio que lhe
permitisse alcanar o gatilho e disparou. Na foto, tirada poucas semanas antes do acidente com
meu irmo, sua expresso pode parecer a de satisfao parental. O sorriso de pouco sono de um
pai cujo trabalho foi interrompido por sua esposa, que o sentou ali, em uma poltrona junto
lareira, para tirar uma foto daquele que sustentava a casa, no auge de sua vida.
Mas uma avaliao mais cuidadosa revela os esforos tanto do retratado como da fotgrafa:
os olhos vtreos, tristes, os ombros e as mos apertadas formando um ngulo em uma pose
relaxada. Um tipo de homem no qual nem se repara, cuja tristeza quase desesperada era
evidente em seus detalhes, das profundas olheiras s articulaes avermelhadas pela psorase.
Penso em abrir a porta do carro e deixar a foto escorregar para o concreto, quando percebo a
nica passagem sublinhada nas duas pginas entre as quais a foto ficara presa.
O Diabo um esprito, e ele tem meios e oportunidades para se misturar aos nossos
espritos e, algumas vezes mais maliciosamente, outras mais abruptas e abertamente, a
insinuar pensamentos diablicos em nossos coraes. Ele ultraja e tiraniza especialmente
na melancolia e em fantasias destemperadas.
Por que esse trecho? No me lembro de ele ter qualquer significado especial na minha
pesquisa, e nunca o citei em qualquer de minhas palestras. Mas deve ter atrado minha ateno,
de qualquer maneira. E eu coloquei a nica fotografia do meu pai entre essas pginas para
marc-las, apesar de nunca ter retornado a elas em todos esses anos.
Uma prescincia. Deve ter sido isso. Eu li essas palavras melancolia, fantasias
destemperadas, Diabo e mandei uma mensagem para meu futuro eu que no podia entender

naquela poca. Devo ter reconhecido o diagnstico de meu pai na observao de Burton. Um
homem razoavelmente promissor, abenoado por uma sorte melhor que a maioria, mas ainda
assim uma runa, a testemunha da morte de uma criana, um suicdio violento.
Como Robert Burton pde saber tanto sobre essas coisas? Um acadmico recluso no incio do
sculo XVII? Eis uma resposta: provavelmente da mesma maneira que eu sei tanto sobre isso
agora, um acadmico recluso quatro sculos depois. Experincia prpria.
OBrien acorda tossindo. Escondo a fotografia no meio das pginas e fecho o livro.
Voc quer que eu dirija?, ela pergunta, vendo meu olhar nublado.
No. Apenas descanse, respondo, ligando o Mustang. Vou nos levar pelo resto do
caminho.
No sei se os pensamentos de OBrien se voltaram ou no para o Perseguidor, mas os meus,
certamente, sim. Nenhum de ns o mencionou, de qualquer modo. Suponho que seja porque no
h motivo. OBrien salvou a minha vida ao fazer algo que, h apenas alguns dias, seria
impensvel. Ela saiu da cama ao ouvi-lo mexendo na fechadura e encontrou a nica arma que
um quarto de hotel oferecia, ento se escondeu atrs da porta, esperando no ser notada quando
ele a abrisse. A, quando ele puxou a faca, ela fez o que fez.
difcil imaginar o quanto esse ato pesa sobre ela. Talvez ela se preocupe com quem eles
mandaro atrs de ns agora. Ou talvez, como eu, ela apenas calcule quanto tempo ainda lhe
resta.
Cruzamos a fronteira junto s Cataratas do Nigara, em plena escurido. OBrien insiste para
que paremos o carro e andemos, por alguns minutos, beira das quedas dgua, olhando sobre o
guarda-corpo. Um largo rio que corre suavemente para baixo, at explodir em uma nuvem
mida, ainda que sua extenso acinzentada traga mais a inquietao da fumaa que da gua.
Somos ns, no somos?, comenta OBrien, observando a queda dgua. Descendo as
cataratas em um barril.
S que sem o barril.
OBrien toma minha mo.
O que quer que encontremos, para onde formos, estou pronta, ela diz. No despreocupada,
mas serena.
Voc est sempre serena.
No estou falando da mente. Estou falando de todo o resto.
Ento somos dois.
No verdade. H Tess.
Sim. Tess. Ela a nica coisa segura para mim. Abrao OBrien. Voc tambm.

Quando os respingos de gua atravessam nossas roupas, gelando nossa pele, voltamos para o
Mustang e retomamos a estrada. Contornamos a parte oeste do lago Ontrio, atravessando os
pomares de pssego e as vincolas da pennsula, depois a crescente densidade das vilas de
periferia e das cidades industriais antes de Toronto. Um vislumbre de suas torres, ento
tomamos o rumo norte de novo. Os novos subrbios parecendo velhos. As ondulantes
plantaes.
Algumas horas depois as pistas mltiplas se encolhem, tornando-se uma estrada inconstante,
espremendo-se nas curvas arborizadas, os sbitos beirais de pedras destrudas. Passamos os
lagos Muskoka, com seus multimilionrios condomnios de vero e campos de golfe privativos,
bem como os lagos menores que vm depois. Logo estamos seguindo, uma aps outra, as
milhares de curvas que atravessam a terra despovoada. Um fio de asfalto dividia um cenrio de
florestas infinitas, de modo que no h qualquer deciso a tomar, seno avanar ou recuar. O
que, em nosso caso, significa nenhuma deciso.
madrugada quando paramos no acostamento e eu deso, com as pernas duras, para abrir o
porto de metal da Alameda do lago Erva-de-Fogo. Ainda que alameda dificilmente seja
adequado: uma trilha sem manuteno pelo meio do mato, duas marcas de roda na terra e
galhos se dando as mos por cima do vo. A cobertura das rvores to densa que escurece o
caminho, em uma noite esverdeada.
Quanto falta?, pergunta OBrien quando volto para o carro.
Cerca de um quilmetro. Talvez um pouco mais.
OBrien se inclina. Primeiro acho que ela quer sussurrar algo em meu ouvido, mas, em vez
disso, ela me d um beijo. Um de verdade, quase morno, nos lbios.
Hora de ver o que ele quer que vejamos, ela diz.
S nas ltimas horas sua pele ficou ainda mais repuxada em suas bochechas, em seu queixo.
Quilos essenciais perdidos, apesar da dieta regular de cheeseburguer e milk-shake de baunilha.
Mas ela ainda est aqui. A essncia de Elaine OBrien, o que sobra dela, olhando-me nos olhos.
Eu...
Eu disse a voc. Eu j sei, afirma ela, endireitando-se em seu banco, olhando para as
rvores sombreadas. Agora vamos.

Capitulum 22

CAPITULUM 22

O Mustang deixa o acostamento e somos instantaneamente engolidos pelo verde.


Eu me lembro de fazer esse caminho no banco de trs do Buick do meu pai, um monstro com
painis de madeira que conseguia habilmente abrir caminho pelas poas de lama e sobre as
pedras maiores, com a suculenta suspenso daquela poca. O Mustang, no entanto, nos deixa
sentir cada pancada, e cada hesitao dos pneus nos faz temer um atolamento.
Finalmente atravessamos o ltimo vu de arbustos, e o velho chal Ullman se descortina para
ns. No que alguma vez tenha sido realmente nosso. No que tenha sido realmente um chal.
Um bangal forrado de alumnio com um par de janelas meio estrbicas, com cortinas, uma de
cada lado da porta. O tipo de kit caseiro para construo rpida que se encontra nos bairros
pobres das cidades industriais, ainda que, neste caso, estatelado nos bosques do norte de
Ontrio, como se levado por um tornado e h muito esquecido.
Samos do carro e nos apoiamos nele por um momento, respirando o ar surpreendentemente
frio e recuperando a circulao em nossas pernas. Nenhum outro rastro de pneus no quintal
cheio de folhas. Nenhum sinal de que algum tenha estado aqui nas ltimas semanas,
possivelmente mais tempo ainda.
O que fazemos agora?, pergunta OBrien.
Dar uma olhada, acho.
O que devemos procurar?
No importa. Vai nos achar.
A porta de tela, presa apenas pela dobradia inferior, se abre com a ondulao de uma brisa e
solta um ganido enferrujado. Eu me dirijo a ela, sem qualquer inteno clara de abrir a porta por

trs dela. Mas o que acabo fazendo. Puxando com fora pela maaneta, forando com o ombro
para o caso de ela estar apenas presa no umbral.
Trancada, concluo.
H uma porta nos fundos?
Provavelmente tambm est trancada.
Vamos dar uma olhada, de qualquer jeito.
Sigo OBrien at o outro lado da casa, e subitamente o rio est a nossa frente, setenta metros
depois de um declive de grama ondulante salpicado de arvoretas. A correnteza parece mais
forte do que eu me lembrava, redemoinhos bem no meio do rio, galhos soltos correndo pelas
margens. No largo para atravessar talvez uns trinta metros , mas eu no gostaria de
tentar. No sei se alguma vez algum fez isso.
Na margem oposta, a floresta escura. Nodosa e seca.
Voc tinha razo, anuncia OBrien atrs de mim, esquerda, sacudindo a porta dos fundos
em cima de um deque enegrecido pelo mofo. Absolutamente trancada.
H uma pedra no cho, do tamanho de uma bola de futebol, perto de onde estou parado. Eu a
pego com as duas mos e me junto a OBrien.
Vamos ter de arrombar, digo, e golpeio a maaneta, arrancando-a. A porta abre uns vinte
centmetros.
OBrien a primeira a entrar. Ela abre as cortinas e deixa que a luz existente se espalhe no
cho. Tenta os interruptores, mas nenhum funciona. D uma espiada no banheiro, que eu sei que
logo ao lado da cozinha. Tudo antes que eu d o primeiro passo dentro da cabana.
Isso parece familiar a voc?
Eu era apenas um garoto na ltima vez em que estive aqui, respondo.
Isso no responde minha pergunta.
tudo muito diferente. Nos detalhes. Mas sim, realmente familiar.
Ento por que voc no entra?
Porque tem cheiro de passado.
Para mim, apenas cheira mal.
Acertou na mosca.
Mas eu entro. E realmente cheira mal. Madeira e folhas de pinheiro midas, que, juntas,
disfaram algo ranoso, uma criatura que um dia viveu e que agora est presa, ou morta,
embaixo das tbuas do piso ou dentro da parede. Uma surpresa srdida para quando os atuais
donos decidirem voltar, se eles um dia o fizerem.
E as paredes turquesa da cozinha. A cor original da perda.
Vou para fora, diz OBrien ao passar por mim, parecendo ainda mais doente que antes.
Voc est bem?
que difcil respirar.
Entendo. Est um pouco nauseabundo aqui dentro.

No apenas dentro, mas fora. Ela segura meus braos. H algo errado com esse lugar,
David.
Sempre houve, eu quase digo. Mas antes que eu possa ajud-la, OBrien me solta e sai se
arrastando pela porta dos fundos. Eu a ouo arquejando, de p no deque, mos nos joelhos.
Agora que estou dentro inspiro profundamente. E a vida que enterrei enche meus pulmes
imediatamente, de modo que as recordaes vm de dentro para fora.
A primeira coisa a surgir o meu irmo. Lawrence. De p, fora do meu alcance, olhando para
mim com a mesma mistura de afeto e dever que tinha em vida. Dois anos a mais que eu e sempre
alto para sua idade, o que significa que sempre pensavam que ele era mais maduro, mais capaz
de se arranjar, como dizia meu pai, quando aquilo que devia ser arranjado era ele prprio.
Ele s vezes o chamava de Larry, mas eu nunca fiz isso. Ele no era um Larry, assim como eu
no era um Dave, ns dois srios demais, cismados e reservados demais para usar
adequadamente um apelido. No que Lawrence fosse um garoto tmido. Enquanto amos de
escola em escola, ele me protegia de todos os valentes, me resguardava do escrnio de todas
as panelinhas, sacrificando suas prprias oportunidades de incluso (ele era um garoto atltico,
tinha convites) a fim de evitar que eu ficasse sozinho.
Quem sabe o quo feliz ele teria crescido para ser o quo feliz qualquer um de ns poderia
ter sido se tivssemos um pai diferente. Um que no bebesse to prodigiosamente, com
orgulho at, como se algum o tivesse desafiado para uma competio autodestrutiva, e ora com
os diabos se ele iria perder. Alm do usque, seu principal interesse era buscar aluguis cada
vez mais baratos, em lugares cada vez mais remotos, dedicando-se a rebaixar nossas despesas,
j no nvel da indigncia, da mesma maneira que outros pais se dedicavam a encontrar empregos
melhores em cidades melhores.
Minha me ficava porque o amava. Nos dezessete anos que se passaram at sua morte, de
causas naturais (do que eles, na poca, ainda chamavam enfisema ligado ao tabaco), ela nunca
me ofereceu outra razo. Ainda que, talvez, a autopiedade tambm tivesse domnio sobre ela,
um gosto pelo trgico e o delicioso sofrimento da nostalgia sobre aquilo que poderia ter sido.
Quanto a nosso pai, ainda que ele nunca tenha encontrado uma maneira de nos amar ele
estava ocupado demais para isso, totalmente absorvido em evitar cobradores, em conseguir
adiantamentos em servios estranhos , ele nunca foi particularmente cruel. Sem tabefes, sem
surras de cinto, sem castigos trancado no quarto. Nada de castigos, na verdade, a no ser o fato
de ele no estar presente em nossas vidas. Um vazio mvel que ocupava o espao das poltronas
da sala e da cabeceira da mesa de jantar, estendido no cho dos banheiros pelos quais
pagvamos por alguns meses, sendo depois despejados pelos meses no pagos.
Naquela poca, ningum chamava depresso de doena. Ningum chamava aquilo de
depresso. Pessoas tinham problemas de nervos, estavam indispostas ou se permitiam
definhar em nome de um corao partido. Nosso pai, que ainda arrastava uma meia dzia de
caixas de livros que comprara nos seus primeiros anos de preparao e breve carreira como

professor primrio, e que gostava de se considerar um homem de erudio subestimada, preferia


o termo melancolia nas raras ocasies em que tocava no assunto. O fato de beber era justificado
com o argumento de que era a nica maneira que ele conhecia de se manter dentro de limites
administrveis. Nunca havia me dado conta, at este momento, de que eu havia aprendido a
palavra com ele.
Do lado de fora, encontro OBrien sentada na beirada do deque, mexendo os ps na grama.
Voc est melhor?
Isso deve ser pedir demais, ela responde.
Voc no prefere esperar no carro?
Estou bem aqui. S preciso colocar minhas coisas no lugar.
Se precisar de mim, s gritar.
Aonde voc vai?
Vou apenas at o rio. Dar uma olhada, respondo.
No faa isso.
Qual o problema?
O rio.
O que tem ele?
Eu posso ouvir. Vozes. Milhares de vozes. Ela estende uma mo trmula e segura as pontas
dos meus dedos. Eles esto sofrendo, David.
Os dedos dos meus ps tocam o rio, e o som se propaga dolorosamente.
Tess tambm ouviu. E, ainda que eu no consiga ouvir, acredito que OBrien consegue. O que
significa que para l que eu tenho de ir. Uma concluso a que OBrien chega antes mesmo de
mim, pois ela solta meus dedos sem que eu precise pux-los. Volta a mirar seus prprios ps
que se mexem.
A caminhada mostra que o declive mais ngreme do que parecia visto da cabana. Isso tem o
efeito de atrair voc para mais perto da gua mais rapidamente do que seria desejvel, uma
contracorrente invisvel. Esta parte do terreno foi limpada vrias vezes ao longo dos anos,
ento, mesmo que a floresta esteja a caminho de reclam-la com rvores, ela ainda um pedao
de solo sem sombras. A luz me cega durante todo o caminho at a margem do rio. O rio vivo
com o furor do Sol, de modo que sua superfcie parece me alcanar, a gua flamejante.
Mas apenas um rio. Retendo memrias e vozes, mas apenas na extenso em que ns as
retemos.
A mente seu prprio lugar, digo em voz alta.
Palavras mgicas que trazem de volta meu irmo. Ou, se no ele, a memria de seu grito.
Eu caminhei pelo declive no qual acabo de caminhar e fiquei aqui onde estou agora quando
tinha seis anos. Procurando por Lawrence, que tinha tido permisso para deixar a mesa do caf
da manh antes de mim. Eu sabia que ele estaria l embaixo. Talvez pescando, ou colocando
sapos em um vidro, ou encenando uma pea improvisada da qual eu queria participar. O rio era

o local para onde amos a fim de ficar livres de nossos pais, dos sons e cheiros do lar, que eram
um conforto na vida dos outros garotos.
Lawrence poderia ter ido para a esquerda ou para a direita a partir daqui. Uma trilha estreita
seguia a margem pelo que pareciam ser quilmetros a partir do nosso terreno, nas duas
direes, e ns tnhamos nossos lugares prediletos, secretos, espalhados por ela. O eu de seis
anos ficou parado ali, limpando os farelos do queixo, tentando adivinhar para que lado ir. Ento
ouvi o grito de Lawrence na direo leste. Assim como eu o ouo agora.
Corro de cabea baixa, por baixo dos ramos em arco do salgueiro, cujas pontas chicoteiam
minhas costas. Por duas vezes, quase escorrego da terra mida para dentro dgua, mas consigo
recuperar um pouco do equilbrio balanando os braos. Enquanto corro, a mesma pergunta
urgente que me veio mente na primeira vez.
A gente grita assim quando est se afogando?
Duvidei disso na poca. No que meu irmo pudesse ter escorregado na gua ou sofrido um
acidente que o tivesse colocado em risco, mas que tivesse emitido aquele som nesse caso.
Porque seu grito tinha mais o frmito de um choque do que de um pedido de socorro. O horror
de que outra coisa, no o rio, o tivesse levado.
Uma resposta me vem agora. Uma que eu no tinha conhecimento o bastante para perceber
quando era garoto.
A gente s grita assim quando algum est nos afogando.
Lawrence me v surgir dentre as rvores e parar em uma pedra achatada. Segurando-se,
minha espera. Esperneando descontroladamente contra as pedras a trinta centmetros abaixo da
superfcie, esticando seu pescoo para evitar que sua boca aspirasse a corrente fria para seu
peito. Um momento que, na primeira vez em que aconteceu, durou talvez menos de um segundo.
Mas que agora, na sua batalha de retorno, est desacelerado. Revelando uma verdade que
passou muito rapidamente por mim na poca, e que eu era muito novo para ler. Um par de
verdades.
Meus olhos encontram os de Lawrence, na outra margem do rio. O Outro Lugar para o qual
nunca atravessamos. A margem que temamos, aquela em que Tess ficou em seu sonho real.
A segunda coisa que vejo que meu pai est sobre Lawrence. Uma de suas mos enormes na
parte mais estreita das costas de meu irmo, a outra apertando o pescoo dele.
No tentando pux-lo. Empurrando-o para baixo.
E ento ele consegue.
Meu pai tambm estava esperando por mim. Para ser uma testemunha. Para deixar sua marca
em minha alma.
Lawrence jogado no banco de areia. Segurado ao comprido, como se tentasse aprender a
nadar, sem sucesso, e meu pai fosse seu professor desatento. um conjunto que provocou meu
mal-entendido na ocasio. Meu pai incapaz de conseguir um ponto de apoio para pux-lo, meu

irmo se debatendo s dificultava o socorro. Confuso o bastante para construir uma histria
alternativa em torno disso. Uma mentira para contar a mim mesmo, desde aquela poca at hoje.
Mas quando Lawrence fica imvel e meu pai olha para mim, no h dvida sobre o que seus
olhos esbugalhados expressam. Um dio triunfante. A autocongratulao pelas trs vidas
roubadas de uma vez.
meu pai quem afoga Lawrence, mas meu pai apenas em corpo. Enquanto olho para ele, seu
rosto se altera para mostrar a presena dentro dele. Um crnio pontudo. O queixo comprido e
muito fino. As bochechas muito largas, muito altas inchadas contra sua pele. Como o
Inominvel realmente . O rosto de Belial.
A malignidade do demnio no ficou satisfeita nem com isso.
Meu pai no est mais sob o domnio dele, e eu o vejo retornar a si prprio. A olhar o que
havia feito. E, a, olhar para mim.
Meu pai. No mais Belial, no mais um esprito. Foi meu pai que olhou nos olhos de seu filho
caula e falou a verdade que estava em seu corao.
Deveria ter sido voc.
De dentro da escurido, a voz de OBrien. Um grito distante.
David!
Corro pelo caminho pelo qual vim. No mais que uma centena de metros, mas a volta parece
mais longa, o rio transbordando pelas margens e se espalhando sob meus ps. Meu corao um
n de dor, encontrando seu caminho de sada entre minhas costelas.
A voz dela novamente. Mais fraca desta vez. No realmente um grito, mas um eco vazio.
Corra!
Ela est me incitando a ir mais rapidamente ou me alertando para que eu me afaste? No que
isso importe. Belial est aqui. Eu sei disso. Eu o vi. Mas o som do desespero de OBrien
varreu, pelo menos por este instante, a influncia dele. Quando saio dentre os salgueiros e
comeo a subir, a primeira coisa que vejo a van. Branca, nova. Alugada. Placa de Ontrio.
PARA VOC DESCOBRIR. Visvel ao lado da cabana, estacionada na frente do Mustang.
Ento vejo OBrien. Deitada na soleira da porta de trs da cabana, a cabea
desconfortavelmente apoiada contra a madeira e o resto de seu corpo estirado. Suas pernas se
sacudindo em espasmos. Sua lngua lambendo, sem parar, seus lbios descorados, como se em
uma intil preparao para um discurso.
Vejo as feridas por ltimo, ento j estou ajoelhado ao lado dela quando percebo como o que
quer que tenha sido usado para cort-la formou uma cruz em seu peito. O sangue colorindo sua
camiseta.
Voc tem de partir, ela diz. Sua voz uma srie de pequenos estalos.
No vou a lugar algum. Temos de levar voc direto para um hospital.
Sem hospitais.

Isso diferente.
Estou dizendo que no vou conseguir, mesmo que voc ainda tente.
Ela inspira profundamente, e com isso as feridas se abrem, pulsando. Tento cobri-las com as
mos, mas h muitos cortes. Seu corpo morno rapidamente vai se resfriando com a exposio ao
ar.
Mas ela est calma. Seus olhos virados, mirando um ponto em algum lugar acima da minha
cabea. Sem medo, sem mostra de dor. Um ltimo jato de adrenalina. Uma viso ou percepo
final, verdadeira ou falsa.
Posso v-la, David.
Ver quem?, pergunto, mas j sabendo.
Ela est esperando voc.
Elaine...
Ela est aguentando. Mas di. Ela...
Elaine. No...
... precisa que voc tambm acredite.
O olhar de OBrien desce e me toma. a nica maneira de explicar. Seus olhos me abraam
como se ela me tivesse tomado nos braos e me apertado para que eu sentisse as ltimas batidas
do corao. Ela no tem fora para levantar a mo, que dir me abraar, ento ela o faz com os
olhos. Um sorriso que se apaga.
Quando eu deito sobre ela, ela se foi.
Tudo quieto. No no sentido de que os pssaros pararam de cantar ou que a brisa parou de
soprar em respeito ocasio, mas quieto da maneira como esteve silencioso todo o tempo. H
apenas o rio atrs de mim. A gua passando sobre as pedras em um aplauso contnuo.
Eu me apoio contra a soleira, em frente a OBrien. No cu, uma coleo de nuvens, daquelas
em que se pode ver animais ou rostos, mas nada disso se mostra para mim. H essa sensao de
que deveria sentir alguma coisa agora, alguma coisa clara. Tristeza. Raiva. Mas h somente a
rasura montona da exausto.
E o fato de saber que quem quer que tenha feito isso com OBrien ainda est aqui.
Como se aparecendo graas ao poder do meu pensamento, h uma figura que eu no havia
percebido antes, metida no rio at a canela. Inclinada, mos na gua. Fazendo algo que no
consigo ver daqui.
Por um brevssimo momento, a ideia de tentar fugir vem mente. Poderia ser possvel levantar
sem ser notado, dar a volta na cabana e chegar ao Mustang, ser o primeiro a retornar para a
estrada pela trilha. Mas ele sabe que estou aqui. Sabe que estou acalentando esses exatos
pensamentos e se importa tanto com eles quanto com um cordo de sapato desamarrado.
O Perseguidor s se volta uma vez depois que deso o declive e fico de p a trs metros dele.
Perto o bastante para ver o curativo sujo amarrado em sua cabea. Para ver que ele est lavando
uma faca. A faca que deixamos junto dele no travesseiro do hotel.

Ele olha por sobre o ombro e, ao me ver, d um sorrisinho de boas-vindas. Mas no h


qualquer simpatia nele. o olhar de um animal para outro animal, a fim de tranquiliz-lo antes
de atacar.
Devagar, ele se volta, de modo a ficar com todo o corpo de frente para mim. Seu ps ainda na
gua. Seu movimento dispersa manchas descoloridas lavadas da lmina da faca, das pernas de
suas calas, pingando das pontas de seus dedos.
Voc desceu s para se lavar ou para me dar uma chance de escapar?
Voc no vai a lugar algum, ele responde. Tirei as velas do seu carro.
Eu poderia correr.
Voc no iria longe.
Ainda h a sua van.
, ele diz, tirando as chaves do seu bolso. Com ar sarcstico, balana-as no ar. Aqui
esto.
De repente, a totalidade de suas intenes comea a me queimar, a partir de minhas pernas, e
impossvel no tremer. O Perseguidor nota isso. Sorri seu no sorriso de novo.
Tira um dos ps da gua e pisa na margem.
Por que uma van?, pergunto, ao perceber que falar melhor que no falar.
Remoo.
Eu achava que este lugar era ideal para dar sumio em dois corpos.
Enterrar no a maneira de lidar com isso, ele diz, balanando a cabea como se
desapontado por ainda ver pessoas cometendo esse erro. E sabe o que mais? Eu no gosto
daqui.
O Perseguidor tira seu outro p da gua e fica totalmente ereto. Percebo ento o sangue em sua
jaqueta. No o que respingou de OBrien ainda que este esteja espalhado nele, em suas
bochechas, na ponta de seu nariz , mas de um talho em seu flanco, logo acima do quadril.
Algo oval que atravessa o algodo.
Ele segue meu olhar. Acena com a cabea para o rombo em seu corpo como se fosse uma
tarefa vagamente inconveniente com a qual ele ter de lidar mais tarde. Como pegar a roupa na
lavanderia. Como retirar dinheiro no caixa eletrnico.
Sua namorada lutou um bocado para uma mulher doente, ele diz.
Voc gosta de matar mulheres?
No h o que gostar ou no nisso.
Seus chefes, replico. Do que eles tm medo?
Eles no tm de justificar suas decises para mim.
Seu palpite.
Acho que voc est muito perto de algo, ele diz, subindo. Ele para, ainda abaixo de mim,
mas reduziu a distncia entre ns metade com uma nica passada larga.
A Igreja no aprovaria que o documento viesse a pblico?, pergunto, minha mente girando,

buscando um plano que no est l. Ela poderia ganhar alguns milhes de convertidos somente
graas ao efeito do pnico.
Eles no esto preocupados em mudar as ideias. Trata-se de manter o que eles j tm. Manter
o equilbrio. Algo como, se no est quebrado, no deixe um babaca qualquer foder com tudo.
E voc est muito feliz em ajud-los nisso.
Estou sob contrato, diz com um cansao que surpreende at a ele mesmo. J fiz isso
algumas vezes.
Um assassino pela Igreja. Isso alguma vez perturba a conscincia de um coroinha de
Astoria?
Voc catlico, David?
Meus pais eram. Pelo menos em princpio.
Ainda assim. Voc sabe o que cumprir ordens sagradas.
No matars.
A exceo mais frequente. Mas, ei, voc o especialista, certo?
Sua risada neste momento autntica, mas cortada por uma dor lancinante em seu flanco, que
o faz dobrar-se por um instante.
Voc poderia dizer-lhes que eu fugi, digo.
Nada em sua expresso indica que ele ouviu isso. Apenas um passo mais para perto. E outro.
Ele acha que vou correr. Seus braos levemente abertos, os joelhos um pouco flexionados,
pronto para pular quando eu comear a correr morro acima. Ele provavelmente pensa que estar
em cima de mim antes que eu consiga dar um passo.
por isso que ele se assusta quando corro em sua direo.
Nem penso na faca. No penso em nada, a no ser na velocidade. Em alcan-lo antes que ele
tenha chance de ligar seus reflexos treinados.
Quase d certo. As palmas das minhas mos batem no peito dele quando ele ergue a faca, de
modo que esta passa por cima de mim, em vez de me atingir. Faz um corte atravs da minha
camisa. Uma linha vermelha de ombro a ombro.
Ele ergue novamente a faca sem hesitar, ao contrrio de mim, que paro neste dcimo de
segundo para inutilmente pensar quando avano outra vez sobre ele. pouco mais que uma
cotovelada, o contato brusco que se pode ter andando de metr na hora do rush. Mas o que
basta para que ele perca um pouco o equilbrio, para que um de seus ps recue em busca de um
cho mais firme. Em vez disso, o p arranca um tufo de grama pela raiz e escorrega. E eu pulo
em cima dele de novo.
Ns dois camos. Um estranho abrao que nenhum de ns desfaz. Ele fica por baixo, e eu por
cima. Ainda nessa posio, camos na gua.
Um ataque insano. Punhos para um lado. Vmito aguado.
No h briga, apenas o reflexo de manter nossas cabeas acima da superfcie. Debaixo de
mim, posso sentir o medo do Perseguidor to vivamente como o meu prprio. Em vez de me

fazer hesitar, o terror dele me d um ponto de concentrao. Eu quero que ele experimente mais
disso. Essa expectativa faz tudo se acelerar.
Posiciono meu joelho sobre seu cotovelo. Se o vaivm de sua faca no pode atingir meu
abdome ou meu peito, ele pode alcanar minhas mos, que esto agora apertando sua garganta.
Encontram a traqueia. Pressionam com o peso do meu corpo, os braos firmemente retos. O
estalo de alguma coisa macia cedendo dentro de seu pescoo. Mas ele continua agitando a faca
em minha direo, at que a lmina aterrissa na base do meu polegar. Ganha apoio com o
primeiro furo, o jato de sangue. Ento comea a cortar. Serrando firmemente o tecido. Depois o
osso. Mesmo enquanto seu rosto passa de vermelho a prpura e quase preto, ele continua
serrando. Mas fico firme. A dor guincha como um animal trancado dentro de mim, mordendo a si
prprio, usando suas garras para sair. Mas fico firme. Com um movimento brusco, a faca do
Perseguidor corta at o outro lado, e meu polegar cai na correnteza. Afasta-se flutuando, em um
bamboleio alegre, deixando uma mancha oleosa na superfcie. Eu o observo. Sinto a vida
escorrendo de mim assim como acabou de escorrer do homem cuja cabea eu agora mergulho na
gua. Eu a mantenho ali. Observando as bolhas que escapam de suas narinas e lbios,
desacelerando aos poucos. Ento param.
O branco da inconscincia joga um vu sobre meus olhos. Eu fico firme. Mesmo escorregando
para a frente, ou para trs, ou para baixo, escorregando para longe.
Fico firme.

Capitulum 23

CAPITULUM 23

Branco.
Ento, pedao a pedao, o mundo de novo.
Sentado em um carro junto ao rio. Uma van logo minha frente com placa de Ontrio. PARA
VOC DESCOBRIR.
Sangue.
a viso do sangue que acelera a precipitao dos detalhes o volante com a marca Ford na
buzina, o iPhone no painel, a faca de caa tolamente aninhada em cima dos copos de caf vazios
no cho do carro , junto com a dor. Fortalecendo meu carter medida que cresce.
Improvisar.
Seu polegar foi cortado fora. Amarre isso.
Uma voz em minha cabea. Prestativa mas imperativa.
Estanque esse sangramento agora ou voc vai desmaiar e nunca mais acordar.
A voz de Tess. Nunca foi conhecida como especialista em primeiros socorros, nunca foi boa
com coisas nojentas. Mas, neste instante, ela parece saber do que est falando.
Olho para o banco de trs e vejo minha bolsa de viagem aberta, roupas de baixo e camisetas,
alm de um tubo de pasta de dente derramando gel azul sobre um monte de meias. Agarro uma
das camisetas e fao um lao, bem apertado, em volta do toco. Observo o sangue se infiltrando.
Um mapa de ilhas em expanso.
Pego o iPhone e teclo o nmero da emergncia, 911, com a outra mo. A resposta o apito que
aponta falha de ligao. Sem sinal.

Alguma coisa me faz abrir outra tela no celular. Entro no aplicativo do gravador, onde h uma
lista de gravaes. Escolho uma. Aperto o play.
Um rugido de ar. Dirigindo rpido com as janelas abaixadas. Ento uma voz. Atravessando os
rudos de fundo como se os comandasse.
Voc acredita em Deus?
A voz jovem, feminina, mas no pertence a uma garota. Uma voz feita de ausncias sem
modulao, sem hesitao. Que nada nela cause uma impresso o que a torna inumana.
No sei se h um Deus ou no. Se existe, nunca o vi.
Minha voz. A familiar aspereza da corroso pela dor. Junto a algo novo. O embargo
descarnado do medo.
Mas eu vi o Demnio. E, eu garanto a voc, ele definitivamente real.
As chaves balanam na ignio, e eu as viro, mas o motor no liga. As velas de ignio. Ele
no estava blefando sobre elas.
Empurro a porta com os joelhos e experimento pisar no cho. H algo aqui que no posso
deixar para trs. Algo que preciso aprender.
Os trs primeiros passos vo bem. Depois meus joelhos se dobram e eu caio, meu rosto
cavando um buraco no cho. Mas fico de p novamente antes mesmo de perceber que estou
tentando. Dou a volta para encontrar o corpo na porta dos fundos.
Minha amiga.
Seu rosto to tranquilo que sugere uma mensagem sobre como ela se sentiu no fim. Algo como
beatitude. Mas isso tambm pode ser mais uma interpretao errnea. Pois no h algo
potencialmente zombeteiro em seus olhos escancarados, olhando o Sol? Seu sorriso no poderia
ser o que restou de uma gargalhada cruel? Divertindo-se com o pensamento sobre o que me
espera na margem do rio?
Porque para l que meus ps esto me levando agora. Arrastando-se pela grama at a
correnteza cinza. A gua lambendo e voluteando em torno das pedras que despontam na
superfcie como crnios descorados.
... mas dessas flamas
Nada de luz, antes escurido visvel
O homem morto est a apenas alguns metros rio abaixo. Pernas balanando da esquerda para a
direita na gua corrente, como refrescando-se do calor.
Ajoelho-me junto ao corpo. Pego as chaves de seu bolso, ento pouso minha mo em seu peito
imvel. Procuro um batimento cardaco que sei que no estar l. Mas tambm sei, com a
mesma certeza, que ele ainda vai falar comigo.
Os olhos do homem morto se abrem.
Um lento deslizar das plpebras molhadas que eu me recuso a aceitar mesmo enquanto vejo

acontecer. Seus lbios tambm. Abrindo-se com o som de pginas de um livro coladas.
Eu me curvo e aproximo a orelha. Ouo o rudo molhado da respirao, semelhante ao som de
areia sendo despejada em um poo.
Ele fala comigo. No mais a voz do homem. A voz de um mentiroso, na qual no tenho outra
escolha seno acreditar.
O homem morto murmura uma nica palavra, ento tudo volta minha mente.
Pandemnio...
Vou na direo sul na van do Perseguidor. Pensando apenas na estrada. No deixando o branco
tomar conta de mim de novo.
A primeira placa de um hospital me direciona para Parry Sound, e eu entro cambaleante na
emergncia com uma mo ensanguentada e um papo furado sobre uma reforma amadora que deu
errado em casa. H algumas exigncias de detalhes, e eu dou uma vaga resposta sobre a perda
do controle de uma serra rotativa. O mdico afirma que a ferida parece muito mastigada para
isso, mas eu apenas imploro por morfina, e consigo uma risada ao dizer que mastigado como
vou ficar quando a patroa souber disso.
Eles perguntam sobre o paradeiro do polegar, e consigo me controlar quando estava prestes a
dizer Provavelmente j desceu o rio at o lago neste momento. Admito que no me lembro.
No deve servir para mais ningum a essa altura, no ? O que se foi, se foi. s um polegar.
No serve muito para digitar no celular mesmo.
J estou remendado e costurado quando o mdico diz que eu deveria passar a noite, j que
perdi uma quantidade considervel de sangue. Invento um irmo que mora perto. Ele est vindo
me buscar neste exato momento. Tudo bem se, em vez disso, eu ficar com ele?
Vinte minutos depois estou andando pelo estacionamento at a van do Perseguidor, na
esperana de que ningum l dentro me veja pular na cabine e sair dirigindo.
Quando encontro o acesso autoestrada, estou esperando ouvir o uivo de um carro de polcia
me mandando parar, mas as ruas esto vazias. Disparo de volta para a cidade e, alm dela, para
a fronteira. Se conseguir chegar l.
Porque logo haver mais gente atrs de mim. No apenas porque algum pode encontrar os
corpos de OBrien e do Perseguidor esta noite (ou mesmo de manh, e possivelmente apenas na
temporada de caa, no outono), mas porque quem contratou o Perseguidor espera um telefonema
para avisar que o trabalho foi feito. Quando eles no tiverem notcias dele, mandaro algum
para investigar. E quando encontrarem o que h para encontrar, eles colocaro o Plano B em
ao, procurando por mim com todos os meios disponveis. O que deve incluir a polcia. E
coisa pior.
Eles sabero, pelas descobertas na cabana, que estou muito perto de fazer aquilo que o
demnio me pediu. Eu provavelmente fui mais longe do que qualquer um j foi. E, se antes eles
queriam me seguir para saber do que eu estava atrs, agora s uma questo de me abater.

Eu poderia me esconder. Tentar esperar as coisas se acalmarem. Mas h alguns inconvenientes


bvios. Um, eles vo me encontrar. Dois, as pessoas para as quais o Perseguidor trabalhava
querem o documento agora com um desespero que vai redobrar seus esforos a cada hora que eu
passar fora do alcance deles.
E trs, se h alguma chance de trazer Tess de volta, tem de ser agora. Porque s 18h51min48s,
ela ter partido.
O que significa ir para Nova York o mais rpido possvel.
Pandemnio.
Posso ser capaz de chegar ao aeroporto de Toronto e me enfiar no prximo voo para o
LaGuardia. Mas aeroportos tm controles de fronteira mais rgidos que as pontes. Cmeras,
controle de passaporte, alfndega. Quando se est fugindo no importa de quem o
aeroporto no uma boa opo.
O que me resta ficar na estrada. Mas neste momento estou dirigindo o veculo de um homem
morto. Um homem que eu matei.
Contorno o centro de Toronto e deixo para trs as torres dos bancos e os arranha-cus
residenciais enquanto tomo a estrada para Nova York. Passo duas vezes por carros da polcia
de Ontrio parados no acostamento, em busca de apressadinhos, mas eles no vm atrs de mim.
uma boa sorte que no deve durar se eu tentar atravessar a ponte Rainbow, junto s Cataratas
do Nigara, dirigindo uma van alugada no nome de George Barone ou de qualquer pseudnimo
que ele tenha usado. E tambm no acredito que eles me deixariam atravessar a p. No um
sujeito com uma jaqueta ensanguentada e um polegar recentemente decepado.
Na cidade de Grimsby, paro num 7-Eleven e compro Tylenol, seis latas de Red Bull, culos
escuros, um sanduche de salada de ovo e, na seo de roupas, que consiste em uma nica
prateleira ao lado dos chicletes, um bon de beisebol dos Red Sox, uma camiseta GO! LEAFS! GO!
e uma jaqueta esportiva da Goodyear Racing Team. Todos teis. Mas ainda preciso substituir a
van.
Ao passar pela cidade de St. Catherines, pego uma sada para a zona rural e dou algumas
voltas a esmo. Saio da estrada e entro em um pomar de cerejas, jogando a van em uma vala de
irrigao. Cubro a capota o melhor que posso com galhos cados. Atravesso furtivamente
alamedas at chegar a uma casa de fazenda com um velho Toyota frente. Entro pela porta
lateral na ponta dos ps, enquanto murmuro uma prece (endereada a OBrien, percebo no meio
dela).
Funciona. A porta abre com um rangido, e estou em um vestbulo lotado de casacos, botas,
luvas de crianas, tacos de hquei contra a parede.
Fazendeiros gostam de ter cachorros, no gostam? Se este gosta, uma questo de segundos
antes que eu o desperte. A no terei outra escolha seno tentar correr os trs quilmetros at a
autoestrada e ento fazer o qu? Pedir carona para atravessar a fronteira?

Outra prece para OBrien.


Nenhuma chave em nenhum dos bolsos. O que me fora a subir os degraus at a cozinha. Olho
no cesto de frutas, na vasilha de balas cheia de moedinhas junto ao telefone, explorando os
cantos escuros da bancada.
L em cima, um corpo pesado rola na cama. Outro corpo igualmente pesado se move para se
aninhar no primeiro. Ou talvez para chegar perto o suficiente para perguntar Voc ouviu isso?
A geladeira.
Isso me chega sbita e claramente. Mas quem guarda coisas valiosas na geladeira?
Ningum. Mas s vezes eles pregam um plstico com ganchos na porta para pendurar as
chaves.
Mais uma vez do lado de fora, o carro pega e l vou eu.
Ao chegar estrada junto fazenda, nada de latidos ou tiros quando abaixo os vidros do
carro. No querendo me arriscar em mais uma invaso, eu digo a mim mesmo que esta foi bemsucedida, pelo menos pelas prximas horas, quando sr. e sra. Pomar de Cerejas acordarem e
descobrirem que o Camry 2002 desapareceu.
Normalmente, h uma fila na ponte antes de chegar a sua vez de encarar o agente alfandegrio
em sua cabine, entregar seu passaporte, suportar o olhar escrutinador que faz com que voc se
sinta como se tivesse costurado pacotes de herona nos bancos do carro, em vez de apenas tentar
passar com uma ou duas garrafas na mala. Conto com essa demora para organizar minha
histria, ensaiar respostas s perguntas mais provveis.
Este carro no seu, senhor.
Trabalho no pomar de cerejas. Eles me mandaram fazer umas compras antes de comear o
servio.
Umas compras nos Estados Unidos?
Sim.
E do que se trata?
De escadas. Para colher as cerejas.
No h escadas no Canad?
Claro que sim! S no so boas como as escadas americanas.
Nem me incomodo em rezar desta vez.
Quando chego l, no h fila. Baixo a janela para olhar para o cinquento com a pele enrugada
de fumante. Alm do ar desconfiado, ele parece profundamente infeliz.
Cidadania?
Americana. E canadense. dupla.
Ah ? Ele pisca. O que aconteceu com seu polegar?
Ele se pendura na janela da cabine, interessado na minha mo enfaixada.
Cortei o desgraado fora, respondo.
Como voc conseguiu isso?

Colhendo cerejas.
Ele faz um aceno com a cabea, imediatamente entediado de novo. Como se ele tivesse essa
mesma conversa uma dezena de vezes todas as noites.
Cuide-se agora, diz com tristeza, fechando a janela por causa do frio.
Evito a I-90, tomando em vez disso as estradas estaduais que levam at Nova York. Abandono o
Toyota atrs de um Pizza Hut na cidade de Batavia. Uma revenda de carros usados acaba de
abrir, e eu entro com meu disfarce culos escuros e bon, a gola do bluso Goodyear de p
e uso o carto de crdito para levar o Charger em exposio no gramado. Dez minutos
depois estou jogando um mapa do estado no banco de trs e acelerando em direo I-90,
depois de concluir que me perder no labirinto das estradas secundrias mais provvel que ser
parado no caminho mais direto para Manhattan.
A m notcia vem em um posto nos arredores da cidade de Schenectady, onde paro para dar
uma busca pelo meu nome no Google, usando o celular.
O primeiro resultado dispara o alarme em minhas entranhas: Professor de Columbia
considerado possvel suspeito em assassinatos macabros. Penso em abrir a histria, mas chego
concluso de que eu a conheo melhor do que ningum.
Deso do Charger e caminho.
Revendas de carros esto fora de cogitao, j que meu Visa vai apitar no momento que
chegar ao terminal de autorizao. A sada andar at a rea residencial mais prxima e abrir a
porta da primeira casa que encontrar sem nem olhar pela janela para saber se h algum. As
chaves esto bem em cima da mesa de jantar. Uma descarga no poro me mostra que eu tenho
um segundo, talvez dois.
s disso que eu preciso.
Menos de noventa minutos depois estou prximo o suficiente de Nova York para abandonar
este carro tambm e embarcar em um trem da Linha Hudson at a cidade. Junto-me aos demais
ternos e sobretudos que buscam seus assentos e se escondem atrs do Times ou de seus
smartphones, sacudindo-se at seus cubculos e guichs de trabalho.
Mantenho a gola levantada e a aba do bon abaixada. Olho pela janela, de modo que os nicos
a verem meu rosto sejam os pedestres pelos quais o trem passa rapidamente.
A cada quilmetro estou mais perto de voc, Tess.
E, com um frio perturbador que me controla como um vrus, mais perto daquele que a mantm
presa, tambm.

Capitulum 24

CAPITULUM 24

Grand Central s cinco da tarde, no meio do rush, e estou me espremendo pelos tneis quentes,
em um slido congestionamento de humanidade, metade de ns em busca de txis que, quando
chegamos rua ofuscada pelo Sol, no esto l. Uma dupla de policiais nas portas da estao
mantm-se sombra do toldo de metal, examinando quem passa em uma performance ritual de
vigilncia. Esta tarde, ser que suas prioridades incluem um alerta para um tal David Ullman,
visto pela ltima vez usando um ridculo guarda-roupa da 7-Eleven e sem o polegar da mo
direita? Nesse caso, esses caras fazem um pssimo servio. Eles me pegam olhando para eles e
do em troca aquele breve olhar v andando, chapa dos tiras de Nova York, depois murmuram
uma piada suja entre eles, olhos alertas para terroristas e minissaias.
Mesmo assim, duvido que eu tenha muito tempo para continuar despercebido. Agora, cada
minuto em que eu me esquivo pelo concreto em direo ao Banco Chase na 48th Street sem que
algum grite Eu vi esse cara no noticirio! ou sem ser derrubado por homens com coletes do
FBI pulando de utilitrios pretos um minuto com o qual no posso contar. E em vez de ficar
sombra dos prdios, estou pulando do meio-fio a cada quarteiro, acenando por um txi, me
expondo a cada carro de polcia que passa. Finalmente chego concluso de que o perigo de
tentar chamar um txi maior que o de apenas andar direto at o banco, mantendo-me
camuflado, da melhor maneira possvel, entre os grupos de turistas vestidos como eu. O calor
me cozinha dentro da jaqueta de nilon, mas eu continuo com ela, temendo ficar exposto se no
tiver mais a gola levantada para esconder meu queixo.
Ao entrar no banco, reparo em todas as cmeras em suas redomas negras, em todos os
seguranas com microfones. E a, no balco de Atendimento ao Cliente, mais preocupaes

quando tenho de dar meu nome e pedir para retirar o que est no meu cofre. A vice-gerente surge
para me cumprimentar (um excruciante teatrinho de relaes-pblicas) e sugere que eu me
refresque um pouco. Mas quando ela volta para seu escritrio no fim do salo, ser que ela
olha para mim e para o caixa que me conduz caixa-forte? Quando ela se detm para falar com
um cara em uma mesa, ser que ela olha para mim por coincidncia ou para dar instrues?
De qualquer modo, agora no possvel recuar. J so quase seis da tarde. Menos de uma
hora para para o qu? Tento no pensar nisso, apenas dar o prximo passo. E, neste
momento, trata-se de pegar o contedo daquele cofre.
O funcionrio me traz a enorme caixa e fecha a porta, para me dar privacidade, deixando-me
tirar a pasta. Verifico cuidadosamente para confirmar que o laptop e a cmera digital ainda
esto ali. Dois equipamentos que uma dzia de lojas de eletrnicos a duas quadras de onde
estou venderiam por uns dois mil dlares, no total. Antes com arquivos de no muito valor,
como alguns trabalhos de fim de perodo de estudantes e um vdeo de Tess danando de tutu no
recital de bal da primavera. Agora contendo uma nova histria para o mundo.
Fecho a pasta e saio com um brevssimo aceno para o caixa. Mantenho meus olhos nas portas
que se abrem para a rua que brilha com o calor. Se eu no olhar para nada alm das portas, no
serei parado.
E no sou. Ainda no.
Um txi encosta no meio-fio bem em frente ao banco, e entro no banco de trs pela porta que
d para a rua antes mesmo que o outro passageiro acabe de pagar. Deslizo no banco de modo
que apenas meu bon fique visvel para os carros em volta. Meus olhos pregados nos meus ps,
para evitar o motorista pelo retrovisor.
Grand Central, eu lhe digo quando entramos no fluxo do trnsito. Eu me dou conta de que a
ltima vez que dei esse endereo a um taxista acabei no edifcio Dakota.
Mas no desta vez. No vamos a lugar algum. Presos no engarrafamento, o trfego da 5th
Avenue um estreito estacionamento de seds, txis amarelos e vans.
Tente outro caminho, digo ao motorista.
Que outro caminho?
Passo uma nota de cinquenta pela janelinha interna para pagar a corrida de nove dlares. Saio
e me enfileiro pelos para-choques dos carros at a calada. Depois de olhar para os dois lados
e no ver nenhum policial, saio correndo.
Uma corrida arfante ao longo da 46th Street at a Park Avenue. As pessoas na calada
levantam o olhar enquanto falam em seus celulares no exato momento de sair do meu caminho.
Alguns levemente divertidos (Ho-ho!) ou vagamente impressionados no estilo nova-iorquino
de j-vi-de-tudo (Filho da puta!), outros se assustam e expressam sua raiva (Vem c,
babaca!). Mas ningum tenta parar um louco furioso de quase noventa quilos e barba por fazer.
Viro a esquina sem desacelerar, e uma enfermeira grita quando eu quase a derrubo junto com o
homem na cadeira de rodas que ela empurrava. Ao passar por ele, seus olhos parecem se

acender, como se ele tivesse passado todo o dia esperando para me ver, com o olhar
ensandecido e balanando os braos.
S reduzo quando chego s portas da estao. E somente l dentro que me dou conta de que
deixei a carteira no txi. Cartes de crdito, identidade, o ltimo dlar que tinha. E tarde
demais para voltar e ver se o txi ainda est l. No que isso importe. Que utilidade tm essas
coisas agora? Estou prestes a entrar em um lugar diferente. Um lugar onde o dinheiro no tem
qualquer serventia. Onde mesmo o meu nome no significa nada.
Deso a rampa de pedra at o saguo principal, junto com todos aqueles que buscam o porto
de seus trens ou uma foto de si prprios com a imensa bandeira americana que pende do teto ao
fundo. Ningum est ciente de que, em algum lugar entre eles, um esprito antigo habita a pele de
um morto. E que um homem vivo viajou onze mil quilmetros para encontr-lo.
Fico parado quase no centro do saguo, olhando em volta, comeando por examinar os bares e
restaurantes do mezanino para ver se Belial est minha espera no parapeito. Mas o que estou
procurando? Que forma ele ter escolhido assumir? Eu me mantenho alerta para uma reprise.
Will Junger.
Toby. Uma das irms Reyes. Boneca de Pano. Mas ningum familiar se apresenta, tanto entre
os vivos como entre o resto.
Em meio a uma sbita nusea, vem o pensamento de que eu estou errado.
As pistas nunca foram pistas, a trilha apenas uma peregrinao que eu mesmo inventei. O
demnio, se que um dia existiu, apenas se deleitou em me ver dando voltas em dois pases.
Um homem perdido em todos os sentidos da palavra.
O que significaria que Tess tambm est perdida.
Logo viro os policiais. E vo me encontrar aqui. Chorando em meio multido no trreo do
terminal, amaldioando as estrelas pintadas no teto e o cruel arquiteto que as aparafusou no cu,
convidando aqueles na Terra a buscarem padres que nunca existiram.
Ento, adeus esperana, e com a esperana, adeus medo.[60]
Ele est de p junto ao relgio dourado, no mesmo lugar onde OBrien ficava quando nos
encontrvamos. Olhando-me com uma expresso de satisfao da qual ele parecia incapaz
quando estava vivo.
Meu pai. A ltima piada de Belial.
Eu me aproximo e sinto o triunfo maligno que irradia dele, um ar imundo que entra em meus
pulmes sem sabor, mas repugnante mesmo assim. Mas o arranjo de seu rosto permanece igual.
Uma mscara de prazer paternal ao rever seu filho depois de uma longa separao. A volta do
prdigo.
Voc no imagina o quanto esperei por algum como voc, diz meu pai em sua prpria voz,
mas a entonao, tristemente montona, pertence ao demnio. Outros chegaram perto, mas no
tiveram fora para aguentar. Mas voc, David, um homem de uma disciplina incomum. Um
verdadeiro discpulo.

No sou seu discpulo, afirmo, em uma voz que mal se escuta.


Voc no respondeu ao chamado? Voc no testemunhou milagres? Ele olha diretamente
para a pasta que carrego. No est voc de posse de um novo evangelho?
Fico imvel. a luta contra o desmaio. Pontos de sombra pululam em torno da cabea do meu
pai. Uma Coroa Negra.
Entregue para mim, ele diz.
Inconscientemente, dou um passo atrs para me afastar de sua mo, agora esticada.
Pensei que voc queria que eu o tornasse pblico, afirmo. Que eu falasse por voc.
Voc vai falar por mim! Mas o documento vai preceder voc. E a, na hora certa, voc vai
contar sua histria. Voc vai personalizar o documento, oferecer s pessoas um caminho para
aceit-lo.
A polcia est atrs de mim. E h outros.
Submeta-se a mim, David, e eu protegerei voc.
Submeter-me? Como?
Deixe-me entrar.
Meu pai d um meio passo frente, mas que de alguma maneira compensa o meu recuo, ento
agora ele tudo o que eu vejo, tudo o que eu ouo.
A forma de apresentao de nossa histria to importante quanto o que ela expressa, ele
diz. O narrador precisa ter uma histria prpria extremamente cativante, e no h nada que
cative mais que o autossacrifcio. Milton tambm foi preso. Scrates, Lutero, Oscar Wilde. E,
claro, ningum menos que o prprio Cristo compreendeu que transmitir sua mensagem
acorrentado torna a mensagem mais fcil de ser ouvida.
Voc quer que eu seja um mrtir.
Esta a maneira pela qual vamos ganhar nossa guerra, David. No a partir de uma posio
de domnio, mas de resistncia! Vamos conquistar os coraes de homens e mulheres, mostrando
a eles como Deus reprimiu desde o incio sua busca pelo conhecimento. O fruto proibido.
Por isso vou incitar suas mentes/ Com mais desejo de saber, e de rejeitar/ Ordens
invejosas.[61]
Sim! Voc vai alimentar o desejo dos homens de saber a verdade daqueles da minha classe,
nossa queda injusta, a crueldade de Deus e a emancipao que Sat nos oferece. Igualdade. No
esta a causa mais nobre? Democracia! isso que eu trago. No uma praga, no o sofrimento
arbitrrio. Verdade!
Meu pai sorri para mim com um entusiasmo to estranho aos msculos de seu rosto que suas
bochechas comeam a tremer.
Coragem para nunca se submeter ou se render.
Certamente!, ele diz. A promessa de Nosso Senhor Sat.
Mas voc est se esquecendo dos versos precedentes. Nem tudo est perdido a vontade
indomvel,/ E desejo de vingana, dio imortal.[62]

Como eu havia lhe dito, fala a voz do meu pai, ainda que agora sem o humor vazio de alguns
instantes atrs. John foi obrigado a disfarar suas verdadeiras simpatias.
No h disfarce. Vingana. dio. Estas so suas nicas motivaes. Todo bem para mim est
perdido;/ Mal, sejas tu o meu Bem.[63]
Um jogo de palavras.
Isso o que voc faz! Virar as palavras do avesso. Voc no pode deix-las representarem o
que voc sente porque voc no sente nada. Bem pelo mal, mal pelo bem. uma distino que
est alm da sua compreenso.
David...
Belial. Sem valor. A maior mentira que voc conta a de que voc uma criatura
compassiva para com a humanidade. por isso que quem entrega o documento to importante
quanto o prprio documento.
Meu pai se aproxima ainda mais. A fora e o tamanho de sua figura to evidentes para mim
agora como quando eu era criana. Mas no posso parar de dizer as palavras que digo a ele.
Convices que assumo enquanto elas passam por meus lbios.
Todo esse tempo achei que havia sido escolhido por minha especializao. Mas isso era
apenas fachada. Voc me escolheu porque minha histria a de um homem que ama sua filha. E
a sua uma histria de nada. Nada de filhos. Nada de amor. Nada de amigos. Em todas as
maneiras que realmente importam, voc no existe.
Tenha cuidado.
Por qu? Voc no pode me devolver Tess. Isso foi uma mentira desde o incio. Eu descobri
seu nome, trouxe o documento at aqui antes da Lua nova. Nada disso importa.
David...
Voc tem o poder de destruir, mas no de criar, de unir. No importa onde ela est agora,
voc no pode traz-la de volta.
Como voc pode estar certo disso?
Porque estou aqui por outra razo que no ajudar voc.
mesmo?, ele diz, subitamente seguro de si de novo, sabendo agora que venceu. Ento me
conte.
No posso responder. Olho minha volta, vejo a agitao do terminal. Escuto, como se fosse
a primeira vez, no sua cacofonia, mas um coro de vozes humanas. Quem dentre essas pessoas
sentiria minha falta se essa serpente fosse bem-sucedida? O que significaria o fim sem Tess?
Sem ela, eu tambm no tenho valor.
Mas, mesmo que eu esteja sozinho, essas pessoas que passam por mim no esto. A jovem
me que empurra um carrinho de beb com uma das mos e, com a outra, leva uma criana que
cantarola o alfabeto. Um casal de idade em um beijo de despedida, os dedos tortos do homem
no rosto da mulher. Duas mulheres de burca passam por uma dupla de judeus hassdicos, a
corrente da multido se junta a eles por um momento como se em um encontro secreto dos

devotos todos-de-preto da cidade. Um homem caminha de salto alto e vestido de festa vermelho,
sua peruca estilo Marilyn precisando ser arrumada.
Estranhos absortos em suas tarefas, cruzando o terminal. Mas v-los apenas dessa forma seria
assumir o ponto de vista do demnio. Apagar seus nomes, seus prprios motivos para o
sacrifcio.
Isso no seu, afirmo, agarrando a ala da pasta com ambas as mos.
Sua filha...
Eu no vou...
Sua filha est sentindo DOR!
Um guincho ensurdecedor. Seu eco despedaando as paredes de pedra do saguo principal.
Mas ningum nossa volta parece ouvir. Assim como ningum ouve o que ele grita a seguir.
Ela est QUEIMANDO, David!
Dou um passo para mais perto do rosto de meu pai morto. Encaro a presena dentro dele
atravs de seus olhos.
Se Tess est no inferno, diga-lhe que em breve estarei l tambm.
Ele est prestes a responder com um tipo imprevisvel de fora. A prontido da violncia.
Ombros erguidos, dedos espalmados, como garras. Mas alguma coisa alm da minha
provocao o detm. Sua cabea se vira como se alertada por um grito.
Dou um passo para trs, e meu pai me v recuar. Seu dio puro como a necessidade, como um
animal faminto devorando suas crias.
Eu me viro, e o uivo de Belial me segue. Opressivo, metlico. Ouvido apenas por mim.
Se eu continuar olhando para ele, estarei perdido. No porque ele vai me caar, mas porque eu
irei at ele. Posso sentir isso como um peso maior que o da pasta que esbarra em minhas pernas,
seu contedo repentinamente slido como uma placa de granito.
Ento caminho. De costas para meu pai, sentindo-me envolto pela dor sufocante que pertence
parte a ele, parte coisa dentro dele.
Estou quase chegando s escadas rolantes quando vejo a polcia. Dois pares de uniformes
emergindo do tnel que conduz ao Oyster Bar. E ento, um segundo depois, descendo as escadas
do outro lado do saguo, trs homens de terno que murmuram entre si, dando instrues de
deslocamento. Homens que esto aqui atrs de mim.
Nenhum deles parece j ter me visto. O que significa que eu tenho de me mexer.
Mas no consigo deixar o lugar onde estou. Congelado pelo grito atormentado de Belial. Sua
superfcie o som do caos. Mas, debaixo dela, sua voz viva dentro da minha cabea.
Venha, David.
Soando mais paternal do que meu pai jamais soou. Mais falsamente gentil, falsamente
amorosa.
Venha para mim.

No h mais escolha, no h mais recusa. Estou me virando para voltar para o meu pai, ainda
de p sob o relgio dourado, quando vejo uma mulher que se parece com algum que eu
conheo. Algum que eu conheci.
So apenas suas costas. Apenas um vislumbre. Mas no segundo seguinte consigo ver que
OBrien. No a mulher com a postura frgil e curvada de OBrien em seu fim, mas a garota alta
e atltica de Connecticut que nunca deixou de ser, em sua maneira inteligente, provocadora,
classe A, a garota alta e atltica de Connecticut.
Ela no olha na minha direo. Apenas vai para os guichs, de costas para mim. Atravessando
as correntes de viajantes em um sobretudo cinza, sua marcha em linha reta e acelerada.
Parto atrs dela. O que transforma o guincho de Belial em um uivo estrondoso. A mulher que
se parece com OBrien compra uma passagem e volta para o meio da multido, dirigindo-se aos
portes. Isso me obriga a mudar de rumo para segui-la, atravessando a linha de viso dos
policiais uniformizados, que agora do pulos para perscrutar as cabeas que passam frente
deles em ondas. No procuro me esconder, por achar que agachar e sair correndo representa um
risco maior de chamar a ateno que uma agitao do tipo estou atrasado para uma reunio.
Tento no perder a mulher de cabelos escuros de vista.
medida que me aproximo, o lamento de Belial subitamente se eleva em vrias oitavas antes
de se partir em dois, jogando parte de seu rudo para um registro abaixo do de uma trovoada, um
contrabaixo nauseante. To estrondoso que parece querer derrubar as estrelas do teto em cima
de ns. Por reflexo, olho para cima.
E quando volto a olhar para a multido, OBrien sumiu.
Pelo menos no est onde estava h um segundo. Mas quase imediatamente eu a vejo de novo,
a cerca de dez metros esquerda de onde estava. Como ela pde vencer essa distncia em um,
no mximo dois segundos? No h tempo para calcular como isso possvel. J estou
seguindo-a de novo, empurrando pessoas e murmurando Desculpe-me medida que ela, de
alguma forma, abre caminho por entre esses mesmos corpos sem toc-los.
Quando eu a alcano, s me ocorre tarde demais que eu no deveria pr a mo em seu ombro.
O cheiro animal de celeiro. O bolor da palha molhada.
Ela se vira. Quero dizer, sua cabea faz uma rotao sobre seu pescoo, mas todo o resto dela
parece congelado, uma esttua de cera que ganhou vida parcialmente.
como se seu rosto fosse naturalmente capaz de olhar para trs, e ela apenas tivesse afastado
os cabelos para me mostrar seus olhos enormes, os ossos salientes das mas do rosto e do
queixo, os dentes enegrecidos.
Vamos, professor?, pergunta a Mulher Magra.
Comeo a me afastar dela, mas me dou conta de que ela est segurando meu brao. Um contato
to gelado como o de uma algema. Cada vez que puxo o brao, uma labareda de dor no cotovelo
e no ombro deixa claro que os ossos esto se separando, que os ligamentos esto sendo
esticados ao mximo.

Eles, de mos dadas e passos lentos e hesitantes, recita a Mulher Magra, a voz calma
enquanto ela me puxa de volta para o relgio dourado onde Belial aguarda. Atravs do den
seu caminho solitrio tomaram.
Eu me movo sem dar um passo, como se danasse com os ps em cima dos de minha parceira.
Sobre seu ombro, em um espao vazio no meio da multido, vejo meu pai esperando por mim.
Seus gritos angustiantes agora se transformando em outra coisa. Mil crianas rindo com o
espetculo da dor da vtima escolhida.
Tento pensar em uma orao. Um nome sagrado. Um trecho da Bblia. Mas nenhuma palavra
sente que pode ser pronunciada e objeto de f ao mesmo tempo. Nenhuma, a no ser o nome
dela.
Tess.
Primeiro apenas um pensamento. Ento eu digo. Um murmrio que mesmo eu mal posso
ouvir. Mas faz a Mulher Magra parar, reduz seu progresso flutuante. Permite que eu libere meu
brao com minha mo livre, enquanto chuto as pernas dela.
Algo estala na base do meu pescoo. a clavcula, algum diz, e ento percebo que fui eu
mesmo. Logo vem a dor, duplicada e violenta.
Mas estou livre.
Recupero minha firmeza no piso de mrmore e recuo, a Mulher Magra parecendo surpresa por
um instante antes que seu meio sorriso sem vida retorne. Ela olha para o relgio acima de
Belial. O ponteiro dos minutos encostando no dez.
Dois minutos at 18h51. At a Lua nova. At que ela pertena a ele.
Venha, meu pai prope de novo. Est na hora, David.
Dou as costas para os dois e vejo a outra OBrien, sumindo no caminho em direo ao Porto
Quatro. Minha caminhada se transforma em corrida. E, com isso, Belial retoma seu guincho.
Mais alto que antes.
Se conseguir chegar ao porto, estarei fora de vista. Nada importa, a no ser me aproximar
dela. Porque, a cada passo que se interpe entre meu pai e eu e a cada passo com que me
aproximo do porto o uivo do demnio diminui. Perdendo seu domnio, como se o estivesse
cedendo a outrem.
Silncio.
Instantneo e total. Chego plataforma, com as outras pessoas terminando suas chamadas e
jogando latas de refrigerante no lixo antes de embarcarem e buscarem um bom lugar. E consigo
ouvir novamente o mundo dos vivos. Seus sapatos no cho, seus Logo estarei em casa.
Ela no est aqui. A mulher que achei que era OBrien mas que no era, que no poderia
ser sumiu. Algum parecido, na minha imaginao. Uma lembrana evocada de como ela era
quando nos encontrvamos aqui para os nossos no encontros.
Por mais que a iluso tenha sido til, agora j no adianta mais. No h retorno. Se tenho uma
chance de escapar, no aqui na estao, mas no trem. S que eu no tenho um bilhete nem

posso comprar um , o que significa que eles vo me colocar para fora na primeira parada, ou
chamar os seguranas. Ainda assim, estarei fora daqui. Longe, ainda que por alguns minutos, da
polcia. Daquela coisa que, posso sentir, ainda est esperando por mim embaixo do relgio.
Uma mo em meu ombro. Firme e segura.
Adorei o modelito, professor.
Giro e a vejo a centmetros de mim. Parecendo saudvel e repousada. Mais que isso.
Divertida.
Elaine. Jesus Cristo.
Hein? Ele tambm est aqui?
Quero abra-la, mas subitamente uma onda fria se abate sobre mim e quase me derruba.
Por favor. No me diga que voc...
No se preocupe, ela responde, beliscando a pele de seu rosto. No h ningum aqui alm
de mim.
Mas voc no pode estar aqui.
Eu tenho uma refutao conclusiva para isso. Ela fica perto o bastante para que eu possa
sentir o perfume em seu pescoo. Eu obviamente estou aqui.
Voc est...?
Eles no lhe do asas, ou uma aurola ou coisa parecida. Mas sim, tanto quanto posso
perceber. Eu diria que sim.
Centenas de perguntas disputam a ateno em minha mente, e OBrien l todas elas,
rejeitando-as com um aceno de cabea.
Desa na estao Manitou, ela diz, entregando-me o bilhete que comprara. Haver um
Lincoln branco no estacionamento, e as chaves estaro embaixo do pneu dianteiro esquerdo.
O documento. Preciso coloc-lo em um lugar seguro. Ou destru-lo.
Essa escolha sua.
Eles ainda vo me pegar.
Intriga Internacional.
No entendo...
Voc Cary Grant, lembra? Um homem bom pego em um negcio ruim. Troca de identidade.
A polcia j conhecia o Perseguidor, pelas coisas que ele fez. Voc? Voc um professor
universitrio que no tem nem uma multa por excesso de velocidade. Voc se defendeu da nica
maneira que conhecia.
Isso vai funcionar?
Falta de provas. Funciona para os culpados com bastante frequncia. preciso supor que as
chances so ainda melhores para os inocentes.
Ela segura meu rosto entre suas mos.
Voc agiu muito bem, diz. No apenas depois de Veneza. Toda a sua vida. Eu sabia disso,
imagino, mas agora posso ver. Voc lutou desde que era criana.

Lutei pelo qu?


Para fazer as coisas difceis que a maioria de ns finge que so fceis. Para ser bom. Voc
sempre se manteve firme. Voc foi testado e voc passou, David.
No h tempo para um abrao, posso ver isso em seu sorriso vacilante. Mas ela me abraa
mesmo assim. Uma fora que serpenteia atravs de mim, aliviando o peso da pasta em minhas
mos.
Voc tem de subir neste trem, diz, soltando-me bruscamente. Este trem. Agora.
Eu...
Sim, sim. Eu sei.
Fao o que ela manda. Entro pela primeira porta, que se fecha atrs de mim. O trem j comea
a andar.
O vago em que entrei est cheio, ento caminho pelo corredor me curvando para espiar a
plataforma, mas OBrien no est mais l. Junto ao acesso, um policial v o trem partindo e o
segue com seu faro, como se tentando detectar o trao de alguma pista no ar ranoso da
plataforma.
No tenho nada a fazer, seno procurar um lugar para sentar. Vou para o vago seguinte, que
tem apenas um quarto dos assentos ocupado. Olho para as fileiras de bancos, a parte de trs das
cabeas, tentando julgar que lugar tem menos possibilidades de atrair um passageiro tagarela
para sentar ao meu lado.
Engasgo com o ar na minha garganta.
No meio do vago, sentada sozinha junto janela, olhando a escurido do tnel que
atravessamos. Uma trana dourada, da cor do vinho Riesling, visvel entre as duas poltronas.
Demoro o que parece um longo tempo para sentar ao lado dela. Por um tempo mais longo
ainda, nenhum de ns se move. O cheiro familiar de laranja de sua pele, agora misturado a leves
traos de palha molhada, de animais mantidos em um cercado sujo.
Pela sua imobilidade, poderia estar dormindo. Mas o reflexo na janela mostra os olhos
abertos de Tess. Mirando ns dois. Fantasmas plidos no vidro. O hlito de sua voz jogando
uma nvoa sobre ns.
Papai?
Sim.
Se eu me virar, voc ainda vai estar aqui?
Estou aqui se voc estiver.
O trem acelera por dentro da terra, sob uma ilha de milhes. Logo sairemos do outro lado do
rio.
Ela se volta e eu vejo que ela.
ela, e eu acredito.
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FINIS
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Posfcio

posfcio
JOHN MILTON (1608-1674) considerado um dos maiores escritores ingleses, no s de seu
tempo, o sculo XVII, mas de toda a histria da poesia anglo-sax. Paraso Perdido, sua obraprima, debrua-se sobre uma das mais caras e conhecidas histrias da civilizao ocidental: a
expulso de Ado e Eva do Jardim do den, tentados pelo anjo cado Lcifer. O propsito de
Milton, declarado por ele no Livro I, justificar os caminhos escolhidos por Deus para com os
homens. Ele faz isso, porm, no de uma maneira a reverberar e reafirmar acriticamente a lgica
crist catlica. Insere e reconta a clssica histria da origem do Homem e da Terra sob uma
tica protestante, crtica monarquia dos Stuart que ento reinavam sobre a Inglaterra,
idolatria dominante nos pases catlicos e Guerra Civil Inglesa, e que procura colocar a
relao entre Ado e Eva em uma perspectiva de igualdade, e no de dominao misgina e
paternalista. Alm disso, Deus pode ser interpretado como algum to mal e perverso como
Lcifer.
Poema pico em versos brancos que possuem mtrica, mas no rima (no confundir com
verso livre) , foi publicado inicialmente em 1667 em dez livros com mais de 10 mil linhas de
versos. A segunda e definitiva edio apareceu em 1674, reorganizada em 12 livros, maneira
da Eneida, de Virglio, aumentada e com pequenas revises, e a base para as edies usadas
com mais frequncia desde ento e tambm a verso para a conhecida traduo feita pelo
mdico, poltico, militar, professor e escritor portugus Antnio Jos de Lima Leito (17871856).
Seguindo a tradio pica, o poema comea a narrar a histria a partir da metade in medias
res, como se diz em latim , e os personagens, cenrios e conflitos sendo introduzidos no
decorrer, atravs de flashbacks ou de personagens que discorrem sobre eventos passados.
Recurso utilizado tambm em outras obras clssicas como a citada Eneida, de Virglio, alm
de a Ilada, de Homero , obras renascentistas como Os Lusadas, de Lus de Cames , sem
falar em obras mais recentes caso de Corao das Trevas, de Joseph Conrad , chegando at
ao cinema contemporneo como Star Wars, de George Lucas, Os Bons Companheiros, de
Martin Scorcese, e Pulp Fiction, de Quentin Tarantino.
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ENREDO
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A histria de Milton segue dois arcos narrativos, o primeiro sobre Lcifer e o segundo sobre
Ado e Eva. Paraso Perdido comea com Lcifer o mais belo entre todos os arcanjos e
outros anjos rebeldes sendo derrotados e expulsos para o Inferno, ou Trtaro, como tambm
chamado no poema, depois de tentar tomar o controle do Paraso. Em Pandemnio, Lcifer se
utiliza do dom da retrica para organizar seus seguidores, auxiliado por Mamon e Belzebu, bem
como por Belial e Moloch. Ele ento se oferece para envenenar a recm-criada Terra e
sobretudo a nova e preferida criao de Deus, a Humanidade. Enfrenta os perigos do Abismo
sozinho e, depois de uma rdua travessia do Caos fora do Inferno, adentra ao Jardim do den.
Esta Guerra Anglica, com batalhas entre anjos fiis e as foras de Lcifer, dura trs dias e
narrada por diferentes perspectivas ao longo do poema. Por fim, na batalha decisiva, o Filho de
Deus derrota sozinho toda a legio de anjos rebeldes e os expulsa do Paraso. Em seguida, Deus
cria o Mundo, alm de Ado e Eva, a quem d total liberdade e poder sob toda a criao, com
apenas uma ordem explcita: no se alimentar da rvore do conhecimento sobre o bem e o mal
sob pena de morte.
A histria da tentao de Ado e Eva, sob o ponto de vista de Milton, um novo tipo de
pico, fundamentalmente diferente da tradio bblica. Aproxima-se muito mais de uma histria
familiar, com o casal descrito pela primeira vez na literatura crist tendo uma relao completa
e efetiva enquanto ainda vivem sem pecado, com paixes e personalidades distintas, em uma
relao de mtua dependncia e no uma relao de dominao e hierarquia.
Disfarado em forma de serpente, Lcifer seduz e convence Eva a experimentar da rvore do
conhecimento, aproveitando-se de sua vaidade e enganando-a com sua retrica. Ao descobrir
que Eva havia pecado, Ado conscientemente faz o mesmo. Declara sua amada que, uma vez
que ela feita de sua carne, eles esto ligados um ao outro e, se ela morrer, ele tambm deve
seguir o mesmo caminho. Assim, Milton retrata Ado como uma figura heroica, mas igualmente
pecadora como Eva, com conscincia de que no est fazendo a coisa certa, segundo os
princpios divinos.
Depois de experimentar da fruta do pecado, Ado e Eva fazem sexo de forma altamente
lasciva e devassa. Em um primeiro momento, Ado se convence dos benefcios que podero vir
ao comer o fruto da rvore do conhecimento, como tambm acreditava Eva. No entanto, ao
adormecer ambos tm pesadelos terrveis e, ao acordar, experimentam pela primeira vez a culpa
e a vergonha. Dando-se conta do terrvel ato que cometeram contra Deus, comeam a
recriminar-se um ao outro.
Eva implora a Ado para que se reconciliem. Sua coragem faz com que eles se aproximem de
Deus, para se curvar e pedir a graa ajoelhados, em splicas e receber esta graa de Deus. O
anjo Miguel apresenta-lhe uma viso onde Ado testemunha tudo o que acontecer humanidade
at o Grande Dilvio. Ado fica perturbado com o que v e Miguel tambm lhe conta sobre a
possibilidade de redeno da Humanidade do pecado original atrves do Messias.
Expulsos do den, e mais distantes de Deus, onipresente e invisvel (e diferente do Pai

tangvel at ento), Ado e Eva devem encontrar um paraso dentro de si, mais feliz agora,
segundo o que lhes diz o anjo Miguel.
Embora muitos dos estudiosos e crticos de Milton e de sua obra-prima acreditem que Lcifer
se enquadra na genuna moralidade crist, outros argumentam que a complexa caracterizao de
Lcifer por Milton resulta em uma maior ambiguidade, comparvel em muitas maneiras aos
heris trgicos da clssica literatura grega, embora sua hubris, seu orgulho excessivo e
desafiador a Deus, os ultrapasse.
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VIDA
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John Milton nasceu em 1608, em Londres, no incio de um sculo marcado pela revoluo na
poltica, na imprensa, nas cincas e nas artes. Faleceu em 1674 na mesma cidade, aos 65 anos,
depois de a Gr-Bretanha ter passado pelo governo monrquico comando por trs herdeiros dos
Stuart, o protetorado de Oliver Cromwell e um curto governo republicano.
Alm de poeta, foi um intelectual, polemista e funcionrio pblico ingls, apesar de sua defesa
do republicanismo. Em meio a este perodo turbulento no qual viveu, o controle governamental
sobre a imprensa variou consideravelmente, com a mais profunda iseno de censura entre 1640
e 1641, no incio da Guerra Civil Inglesa, entre puritanos e anglicanos, bem como entre
parlamentares e monarquistas. Mas o controle sobre a imprensa ocorreria no perodo
entreguerras e, em parte devido a estas mudanas polticas, o mundo da escrita comea a
apresentar uma extraordinria e profunda variedade de formas, de pequenos poemas escritos
mo em um nico manuscrito a tratados impressos sobre os mais variados assuntos, de panfletos
incendirios que custavam alguns centavos a flios encadernados grossos e mais caros. Com o
recrudescimento da censura, Milton escreve e publica em 1644 seu clebre Areopagtica, onde
condena a censura prvia, e considerado uma das mais influentes e apaixonadas defesas da
liberdade de expresso e de imprensa, fundamental para a primeira emenda da Constituio dos
EUA, de 1789, que probe qualquer restrio liberdade da imprensa a priori.
Nestes anos conturbados, Milton adiou suas aspiraes poticas e dedicou-se prosa
polmica, teolgica e histrica. Com a restaurao da monarquia em 1660, retomou sua obra
potica, j cego, e produziu suas grandes obras-primas, a comear com o pico Paraso
Perdido, imediatamente saudado como um dos poemas mais sublimes que esta poca e nao
jamais produziram, segundo o poeta John Dryden.
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EDIO DA OBRA
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John Milton estava prximo dos 60 anos quando Paraso Perdido foi publicado em 1667.
Segundo afirma o estudioso de Milton, John Leonard, na introduo da edio inglesa da
Penguin, o escritor John Aubrey (162697) nos conta que o poema comeou a ser escrito em
torno de 1658 e foi finalizado por volta de 1663. Mas algumas partes provavelmente foram
escritas antes, e suas razes remetem juventude de Milton. A Guerra Civil inglesa teria
interrompido os esforos iniciais de Milton em comear o seu pico que englobasse todo o
tempo e o espao. De acordo com Leonard, o plano inicial do poeta no se direcionava a um
pico bblico, j que geralmente os picos focavam nas glrias de reis e rainhas, envolvendo
deuses pagos. A princpio, Milton imaginou a sua histria baseada em algum rei lendrio,
britnico ou pago, nos moldes da lenda do rei Artur.
John Milton ficou completamente cego em 1652 e Paraso Perdido foi inteiramente ditado
para seus ajudantes, amigos, e at mesmo filhas, como nos faz crer o pintor Eugne Delacroix,
em seu quadro Milton Dita o Paraso Perdido a suas Trs Filhas, de 1826. O poema foi
concebido enquanto o poeta encontrava-se frequentemente doente, sofrendo de gota, e de luto
pela perda de sua segunda mulher, Katherine Woodcock, em 1658, e de sua filha mais nova.
A edio definitiva surge em 1674, com pequenos mas decisivas alteraes, alm da
reorganizao em 12 livros, ao modo da Eneida, de Vrgilio. Esta edio que se consagraria
utilizada at hoje para o estudo e novas edies do clssico. O ano o mesmo da morte de
Milton.
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INSPIRAO E INFLUNCIA
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Obra de reconhecimento instantneo, Paraso Perdido tornou-se um livro imprescindvel em
sua poca e segue assim at hoje. Alguns dos seus mais notveis ilustradores foram William
Blake, Gustave Dor, Henry Fuseli, John Martin, Edward Burney, Richard Westall, Francis
Hayman, entre tantos outros. O livro inspirou outros trabalhos visuais, como os quadros de
carter biogrfico produzidos por Eugne Delacroix nos anos 1820 e as gravuras coloridas
produzidas por Salvador Dal em 1974.
Na literatura, muita da poesia mstica de Blake uma resposta direta ou mesmo a reescrita de
Paraso Perdido. Mary Shelley incluiu uma citao do livro X na abertura de Frankenstein
(1818) e o clssico de Milton um dos trs livros que a criatura encontra e influencia seu
desenvolvimento psicolgico. Seu marido, Percy Bysshe Shelley, tambm construiu seu
Prometeu como uma tentativa de aprimorar o Lcifer de Milton. A influncia chega at os
nossos dias pelas mos de Sandman, graphic novel de Neil Gaiman, onde Lcifer um
personagem e cita o poema. Sem falar as inmeras bandas de metal e seus derivados que
abusam das menes. E ainda h os filmes, peas de teatro, obras de arte e, mais recentemente,

sries de TV e o universo dos games. Algo que s uma verdadeira e poderosa obra de arte
poderia alcanar, onde uma ideia carrega tal fora que fica difcil de ser desassociada dela, a
saber: A mente no deve e no pode ser modificada pelo tempo e pelo lugar.
A mente onde eles habitam, e nela
Podemos fazer do inferno um paraso, do paraso um inferno.
Bruno Dorigatti, 2015

Agradecimentos
Milhares de obrigados a Sarah Knight, Marysue Rucci, Kate Mills, Jemima Forrester, Kevin
Hanson, Alison Clarke, Amy Cormier, Dominick Montalto, Jonathan Evans, Jackie Seow, Molly
Lindley, Esther Paradelo, Chris Herschdorfer, Jackie Levine, Anne McDermid, Monica
Pacheco, Martha Magor, Chris Bucci, Stephanie Cabot, Peter Robinson, Sally Riley, Liv Stones,
Howard Sanders, Jason Richman, bem como a meu crculo de anjos: Heidi, Maude e Ford.

ANDREW PYPER (1968) o premiado autor de seis romances, entre eles Lost Girls (1999),
vencedor do Arthur Ellis Award, selecionado pelo New York Times como um dos livros do ano,
e best-seller nas listas do New York Times e do Times (Inglaterra). Seu livro The Killing Circle
(2008) foi eleito o melhor romance policial do ano pelo New York Times. Trs romances de
Pyper, incluindo O Demonologista, esto sendo adaptados para o cinema. Pyper mora em
Toronto. Saiba mais em andrewpyper.com.

Copyright Andrew Pyper Enterprises Ltd, 2013


All rights reserved.
Todos os direitos reservados.
Traduo para a lngua portuguesa
Cludia Guimares, 2015
Ttulo original: The Demonologist
Diretor Editorial
Christiano M enezes
Diretor Comercial
Chico de Assis
Editor Assistente
Bruno Dorigatti
Assistente de M arketing
Bruno M endes
Capa e Projeto Grfico
Retina 78
Reviso
Joana M illi
Retina Contedo
Ilustraes
Gustave Dor
Produo de ebook
S2 Books

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP)


Anglica Ilacqua CRB-8/7057
Py per, Andrew
O demonologista / Andrew Py per ; traduo de Cludia Guimares
Rio de Janeiro : DarkSide Books, 2015.
322 p. : il.
ISBN: 978-85-66636-70-3
Ttulo original: The Demonologist
1. Literatura americana 2. Fico I. Ttulo II. Guimares, Cludia
15-0120

CDD 813
ndices para catlogo sistemtico:
1. Literatura americana

DarkSide Entretenimento LTDA.


Rua do Russel, 450/501 - 22210-010
Glria - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
www.darksidebooks.com

[1] Livro XII. No original: Some natural tears they dropped, but wiped them soon;/ The world was all before them, where to
choose/ Their place of rest, and Providence their guide:/ They hand in hand with wandring steps and slow,/ Through Eden took
their solitary way. [Todas as notas so da Tradutora]
[2] Grupo que rene as mais tradicionais universidades americanas. Alm de Columbia, inclui Brown, Cornell, Harvard, Princeton,
Dartmouth e Pennsylvania.
[3] Livro I. No original: The mind is its own place, and in itself/ Can make a heaven of hell, a hell of heaven.
[4] Nos Estados Unidos, como em diversos outros pases do Hemisfrio Norte, o ano letivo comea no outono, em setembro, e
termina no vero, ou julho, do ano seguinte.
[5] Modelo de teoria fsica que, em vez de partculas, parte do princpio da existncia de objetos unidimensionais, semelhana de
cordas.
[6] Robert Burton (1577-1640), professor da Universidade de Oxford, na Inglaterra. Apesar de matemtico, o fato de ter
frequentes crises de depresso o levou a escrever o que hoje considerado um tratado sobre a melancolia. No Brasil, h uma
edio em quatro volumes pela Editora UFPR (2011-2013, trad. Guilherme Gontijo Flores).
[7] Construda em 1895 pelo ento presidente da Universidade de Columbia, Seth Low, em homenagem a seu pai, Abiel Low.
[8] Na formao acadmica, nota mxima para quem se gradua.
[9] Auguste Rodin (1840-1917), escultor francs. O Pensador, uma de suas obras mais famosas, tem 28 rplicas feitas por Rodin
espalhadas pelo mundo.
[10] Livro IV. No original: Hail wedded love, mysterious law, true source/ Of human offspring, sole propriety/ In Paradise of all
things common else.
[11] No original, North by Northwest, de 1959, dirigido por Alfred Hitchcock, com Cary Grant e Eva Marie Saint.
[12] Pandemnio um neologismo criado pelo prprio Milton, unindo as palavras gregas pan (todo) e daimon (demnio).
[13] Provncia do Canad, famosa pelas ostras Malpeque.
[14] Cape Cod, em Massachusetts, tradicional local de veraneio.
[15] TK: to come (depois explico); WTF?: what the fuck? (que porra essa?). WTF tambm muito usado no Brasil.
[16] Fabricantes de tecidos de luxo de Veneza, fundadas no sculo XIX.
[17] Bonecas com carinhas de anjo, surgidas no incio do sculo XX. O nome, derivado de cupido, acabou designando bonecas
dadas como prmio em parques de diverses e deu origem expresso popular usada quando algum acerta um palpite, ou
ironicamente quando erra por muito.
[18] Como so chamadas as ruas em Veneza.
[19] As ruas que margeiam um canal ou um rio, em Veneza.
[20] Santa Croce um dos sestieri, ou bairros, de Veneza. A numerao por bairro, no por rua.
[21] Peo desculpas.
[22] Como so chamados os becos em Veneza.
[23] Relativo antiga cidade de Grasa, localizada no norte da Jordnia.
[24] Evangelho segundo So Mateus, 8:32.
[25] Livro II. No original: Wandering this darksome desert, as my way/ Lies through your spacious empire up to light/ Alone, and
without guide, half lost, I seek
[26] Livro IV. No original: O sun, to tell thee how I hate thy beams/ That bring to my remembrance from what state/ I fell.
[27] Bairro de Nova York, na regio de Queens.
[28] Tambm conhecida como Universidade de Roma I, fundada em 1303.
[29] Regio oriental da Repblica Tcheca.
[30] Cadeia de restaurantes dos EUA cujo lema funcionar 24 horas por dia, sete dias por semana.
[31] Marca famosa de basto de beisebol.
[32] No original, White Butte, que remete a white butt, bunda branca.
[33] Lago dos Demnios, em traduo literal.
[34] No Apocalipse, So Miguel Arcanjo ajuda Deus a derrotar Sat na batalha dos cus.
[35] Livro I. No original: For spirits when they please/ Can either sex assume, or both.
[36] Livro I. No original: What though the field be lost?/ All is not lost.
[37] Palavra em hebraico para demnios. Usada sempre no plural.
[38] Livro I. No original: No light, but rather darkness visible/ Servd only to discover sights of woe.
[39] Prato tpico escocs, que consiste em bucho de carneiro recheado com vsceras.
[40] O principal ndice da Bolsa de Valores de Nova York, a NYSE.

[41] Livro IV. No original: Live while ye may, Yet happy pair.
[42] Livro IV. No original: Not to know me argues yourselves unknown.
[43] Marca de refrigerante.
[44] Gimlet, drinque feito com gim e suco de limo. Algoquin, hotel de Nova York cujo restaurante foi ponto de encontro, por
dcadas, dos principais intelectuais da cidade.
[45] The Secret Garden (1911), romance infantil de Frances Hodgson Burnett.
[46] No original: Live while ye may,/ Yet happy pair; enjoy, till I return,/ Short pleasures, for long woes are to succeed.
[47] Livro IV. No original: Can it be sin to know,/ Can it be death?
[48] Livro IV. No original: Smiled with superior love, as Jupiter/ On Juno smiles.
[49] Referncia ao caso de James Bulger, assassinado em 12 fev. 1993, quando tinha 2 anos de idade, por dois garotos de 10
anos.
[50] Cidade ao norte de Miami.
[51] Livro I. No original: A dungeon horrible, on all sides round/ As one great furnace flamed, yet from those flames/ No light, but
rather darkness visible.
[52] Salmo 27, do Livro dos Salmos, Velho Testamento.
[53] Livro II. No original: On the other side up rose/ Belial, in act more graceful and humane;/ A fairer person lost not Heaven;
he seemed/ For dignity composed and high exploit:/ But all was false and hollow.
[54] Livro II. No original: Our Supreme Foe in time may much remit/ His anger, and perhaps thus far removed/ Not mind us not
offending.
[55] No texto original de Milton, a ordem invertida.
[56] Na Bblia, Livro de J, 1:7 e 2:2.
[57] Idem.
[58] Livro I. No original: To do aught good never will be our task,/ But ever to do ill our sole delight,/ As being the contrary to his
high will/ Whom we resist.
[59] Evangelho segundo So Mateus, 8:29.
[60] Livro IV. No original: So farewell hope, and with hope farewell fear.
[61] Livro IV. No original: Hence I will excite their minds/ With more desire to know, and to reject/ Envious commands.
[62] Livro I. O trecho no original, na ordem correta, : All is not lost th unconquerable will,/ And study of revenge, immortal
hate,/ And courage never to submit or yield.
[63] Livro IV. No original: All good to me is lost;/ Evil be thou my Good.

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