Zanetti A Crise Da Odontologia Brasileira
Zanetti A Crise Da Odontologia Brasileira
Zanetti A Crise Da Odontologia Brasileira
Introdução
A Odontologia brasileira está em franca, acelerada e irreversível reorganização. É
lamentável observar as novas situações as quais a categoria está cegamente exposta,
bem como o grau de embriaguez histórica que caracteriza a reação da categoria frente a
um mundo que ela, apesar de sentir e sofrer, não é capaz de investigar, compreender e
explicar.
O eixo explicativo desse trabalho fundamenta-se inicialmente nessa base teórica. Pois, na
história da Odontologia de Mercado ocorreram movimentos concorrenciais na busca
incessante pelo aumento do valor dos serviços odontológicos, limitados pelas
possibilidades de realização da oferta frente aos padrões de procura.
A prática situacional da maximização e otimização da oferta, levou a realização ótima dos
valores de mercado; ou seja, valores máximos. Para tanto se instituiu ao longo da história
da Odontologia, mecanismos de diferenciação profissional na forma de mecanismos de
diferenciação concorrencial positivos, capazes de agregar valores aos serviços
odontológicos, de forma crescente.
Mas, no mercado, valor máximo é algo impossível de ser realizado por todos os
profissionais. Sendo assim, frente ao desafio comum de maximizar a oferta de serviços
1 Professor do Departamento de Odontologia da Universidade de Brasília – UnB. Mestre em Políticas Públicas e Saúde (Saúde
Pública) pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz – MS.
2 A primeira parte deste artigo, com tema anterior à crise da Odontologia de Mercado nos anos 80, foi redigida, a partir de maio de
1998, em conjunto com os alunos de graduação, ex-orientandos do PIBIC/CNPq, Fernanda Penna Lima e Welber Vaz de Oliveira,
contando com a participação eventual do CD Danilo Sérgio Carvalho Souza, aluno da especialização. A outra parte, pós-crise, foi
redigida no primeiro semestre de 1999, mediante discussão acumulada nos esforços de aula das duas turmas de Metodologia
Científica do curso de graduação em Odontologia da UnB; bem como, de orientação de uma monografia para conclusão do VI
Curso de Especialização em Odontologia em Saúde Coletiva da UnB, com os alunos Benjamin Bernardino Costa Neto, Cristiane
Resende Silva e Fernanda Barros do Nascimento. Este trabalho contou ainda com a interlocução de vários Cirurgiões Dentistas e
professores, em especial, com a CD Marina A. Umbelina Lima. Sou grato a todos os meus alunos e interlocutores que souberam
entender os objetivos das investigações, em especial o de criar bases para uma nova disciplina, em nível de especialização:
“Serviços Privados e Mercado em Odontologia”.
2
disponibilizadas no mercado pela totalidade dos dentistas que nele operam, os demais
profissionais lançados na mesma busca, instituíram mecanismos de diferenciação
profissional com estratégias concorrenciais negativas. Negativas, destrutivas e maléficas,
agudizadas pelo fato de que o objeto complexo e sensível de tais estratégias de mercado
são ações e serviços de saúde. O processo contínuo de instituição dos mecanismos
concorrenciais positivos e negativos no devir da história, modelou e estruturou a Esfera
Privada odontológica em seus marcos, realizações e limites.
O conjunto de buscas pela maximização da oferta, pela maior valorização ou preservação
dos valores dos serviços, pelo desenvolvimento das práticas profissionais e pela
instituição de mecanismos de diferenciação concorrencial na Esfera Privada, definiu-a
como esfera regulatória da Odontologia e levou-a a acelerar ao máximo o seu
desenvolvimento e as suas mudanças estruturais. Nesse movimento, a Odontologia
descortinou realizações, acusou os limites do seu próprio desenvolvimento, gerou as
formas de desgaste das práticas instituídas, bem como apontou as perspectivas de sua
superação histórica. Pela força dos CD na vivência da lógica concorrencial, quase tudo
que aconteceu e quase tudo que acontece hoje tem um nível de radicalidade tal que
coloca em cheque a própria dinâmica da Esfera Privada odontológica nos padrões que a
conhecemos.
categoria estão aí para comprovar a acertiva. Pois, nos congressos, nem sempre os
cirurgiões-dentistas com extração nas universidades são os que proferem as melhores
palestras ou cursos; ou seja, nem sempre são eles os principais produtores e difusores
do conteúdo científico mais atualizado.
Portanto, a prática odontológica na primeira metade do século XX continuou tão artesanal
e pouco científica, quanto as técnicas operatórias continuaram a ser repassadas em
formas mais ou menos iguais. Em resumo, até esse patamar de evolução da categoria e
de sua formação, existiram poucas diferenças entre os antigos “mestres de ofício” e a
maioria dos novos “professores universitários”.
A maior diferença no período se deu quanto aos mecanismos de acesso à formação. O
acesso se afastou mais da lógica familiar e se aproximou de uma lógica pública mais
ampla, seletiva e elitizante: a seleção universitária via provas e concursos. Em resumo,
até a primeira metade do século XX, afora o filtro de acesso, ocorreram poucas
modificações na Odontologia. Isso porque, o conjunto de práticas e conhecimentos que
amparavam a formação e capacitação tanto de diplomados, quanto de práticos,
continuou basicamente o mesmo, bem como, pouco se introduziu distinções no conjunto
de procedimentos e de técnicas pedagógicas.
O terceiro mecanismo de diferenciação concorrencial e de valorização que surgiu na
história do mercado de serviços odontológicos foi a tecnificação da prática.
O processo de tecnificação foi iniciado nos anos 30 e teve seu auge na década de 70,
ocorrendo simultaneamente com a formação de uma poderosa indústria de
equipamentos, insumos e medicamentos médico-odontológicos, acompanhando o
desenvolvimento capitalista nacional.
O fim do milagre econômico, marcado pela crise de 1981, levou os Cirurgiões-dentistas a
reduzir o ímpeto da incorporação acrítica de tecnologia nos atos clínico-odontológicos. A
partir daí, surgiu o cuidado com a eficiência alocativa dos recursos e investimentos; ou
seja, passaram a ser observados os cálculos da relação custo/benefício na incorporação
de novas tecnologias. Mesmo com o fim dessa época, ainda sobrevivem reminescentes
simbólicos sobre tecnologia no imaginário da categoria e da sociedade. O laser em
Odontologia e o anseio pelo uso indiscriminado de aparelhos ortodônticos são fortes
evidências dessas reminiscências.
Os principais agentes de formação da postura de incorporação crescente de tecnologia
na prática clínica odontológica foram, na sua maioria, os profissionais pertencentes à
comunidade acadêmica, na condição de “intelectuais orgânicos” 3.
Há nas Ciências Políticas dois conceitos poderosos: o de “cooptação” e o de “anéis
burocráticos” 4que nos ajudam entender o “papel” dos intelectuais no processo de difusão
das novas tecnologias.
A “cooptação” dos intelectuais pela indústria se fez e ainda se faz correntemente num
processo de confluência de interesses de ambos, mediante a instituição de “anéis
burocráticos” quase nunca revelados publicamente. Há reciprocidade de benefícios
quando a relação torna-se quase que “simbiótica”; pois, aos intelectuais são facultadas
condições privilegiadas de trabalho e de divulgação dos resultados. Além dos
“benefícios”, soma-se o fato de que os intelectuais expostos realizam de forma sinérgica
todos os três mecanismos de diferenciação concorrencial já mencionados: são mestres,
diplomados e portadores das soluções tecnológicas inovadoras. 5
Para as indústrias, ávidas por lucros e por induzir processos de consumo, a modalidade
de marketing dos produtos promovida por intelectuais orgânicos, tornou-se estratégia
extremamente diferenciada e importante, uma vez que as propagandas são capazes de
desencadear efeitos subjetivos poderosos, por serem induzidos com o selo da
“cientificidade” e do “sucesso profissional”. Os CD “coaptados”, na condição de
“intelectuais orgânicos” e no exercício dos “anéis burocráticos”, passaram a figurar como
pontes de veiculação de interesses industriais no interior do imaginário da categoria.
ciência, ainda que feita no mais isolado dos laboratórios universitários, jamais será neutra.
5
A partir dos anos 60, a proliferação crescente dos congressos científicos associados às
feiras de produtos e equipamentos odontológicos, transformaram os encontros, em
verdadeiros “réquiens” de relação simbiótica, como também possibilitaram a multiplicação
e a diversificação dos mecanismos de instituição de novos anéis burocráticos. Sobre tal
processo, GARRAFA (1996, p. 08) aponta para a contribuição das entidades de classe,
das agências de financiamento à pós-graduação e fomento à pesquisa.
Pelo lado da demanda, todo o período do milagre econômico promoveu um aumento da
massa de brasileiros capazes de consumir serviços odontológicos no mercado. A
“emergência” dos novos consumidores se deu num período de pouca “reflexividade
social” 6, quando ainda não havia os mecanismos atuais de difusão ampla de informação.
Os consumidores pouco informados, valorizaram acriticamente a tecnologia “embarcada”
nos consultórios, ao ponto de transformar em signos de status social, tanto a maior
quantidade de tecnologia, quanto os maiores orçamentos realizados. Criou-se assim um
círculo vicioso e acrítico de compra, consumo e valorização de tecnologia supérflua que
passou a funcionar estruturalmente como mecanismo de aumento permanente dos
custos e da densidade tecnológica nos consultórios.
Em tal cenário, ninguém conspirava contra ninguém, pois tudo ocorreu como resultante
histórica de um momento onde era possível instituir mecanismos frágeis e “artificiais” de
agregação de valor e majoração do preço final dos serviços. Utilizando conceitos e
teorias que SOROS (1996) aplica para o entendimento do mercado financeiro, na
Odontologia brasileira criou-se um ciclo de “boom e crise”, ou seja, criou-se uma “bolha”
de desenvolvimento econômico artificial, a qual não poderia ter um fim mais previsível: a
crise e o esgotamento.
Entretanto, foi todo o crescimento e aprimoramento pleno dos mecanismos concorrenciais
na Esfera Privada odontológica que provocou o esgotamento e a necessidade de
superação dos mesmos mecanismos. Em termos filosóficos clássicos (do materialismo
histórico dialético), a história da Odontologia de Mercado Curativo de Massa trouxe dentro
de si os germes da sua própria “destruição” quando, pôs em andamento, o
desenvolvimento de tudo em si; inclusive o desenvolvimento dos seus próprios
contraditórios latentes. Os contraditórios desenvolvidos, acumularam-se e passaram a
tencionar a realidade conflitiva. Sob o peso dos contraditórios sempre presentes, os CD
movimentaram-se cobrando a insurgência das novas possibilidades na história da
Odontologia de Mercado, bem como, o surgimento das necessidades infinitas de
superação das antigas formas de diferenciação profissional competitiva.
As contradições, na condição de antíteses, ou seja, na condição de negações às coisas
consolidadas (as teses) são a própria essência das possibilidades do futuro; pois, é no
âmago dos conflitos surgidos entre as antíteses com as antigas teses que surgiram(ão) as
novas sínteses (as superações dialéticas). A Odontologia não está vivendo isso por
castigo, por imposição, mas sim em função da dinâmica incessante da história. Em
resumo, um padrão de Odontologia de Mercado (a Curativa de Massa) surgiu, floresceu
plenamente, inclusive nas suas contradições e esgotou-se.
A crise e o esgotamento da Odontologia Curativa de Mercado de Massa
Para dar início ao processo de compreensão da crise e esgotamento da Odontologia
Curativa de Mercado de Massa é necessário explorar o assunto a partir de quatro
dimensões teóricas: (i) o desequilíbrio da antiga relação oferta e procura; (ii) o
lançamento das relações sociais odontológicas à dinâmica das relações capitalistas
fundamentais contemporâneas; (iii) as incertezas de investimento frente à queda
tendencial da taxa de lucros em Odontologia; (iv) a heterogenização estrutural frente a
diversificação dos cálculos racionais individuais no mercado de serviços odontológicos.
Também é necessário compreender que tudo tem fim porque teve início. A crise e
esgotamento da Odontologia Curativa de Mercado de Massa é apenas uma fase terminal
de um paradigma, do modo de regulação das relações sociais praticadas por razões
odontológicas na Esfera Privada. Portanto, grosso modo, a vida, paixão e morte dessa
6 Conceito utilizado por GIDDENS, Anthony IN: MILIBAND, DAVID (org.). Reinventado a esquerda. São Paulo : UNESP, 1997. p. 315
– (Biblioteca básica). Não se deve confundir o conceito de “reflexividade” utilizado por GIDDENS (1997) com o conceito de
“reflexividade” utilizado por SOROS (1996). No primeiro, reflexividade refere-se a questões de comunicação social nas sociedades
capitalistas avançadas, no segundo refere-se a questões de comportamento social nas sociedades de mercado em geral.
6
Para se ter uma dimensão de tal impacto, internacionalmente, toma-se como parâmetro
de medida, o registro da história de cárie em dentes permanentes, contado em crianças
com 12 anos (índice CPOD). A partir das medições, pode-se dizer que no Brasil, num
período de um pouco mais de uma década, o CPOD aos 12 anos “despencou” para
valores menores em até cinco ou seis vezes, mudando rapidamente o “padrão endêmico”
da cárie dental no Brasil, observado nos grupos populacionais melhor inseridos no
capitalismo “modernizante”. Muito pode ser discutido sobre a magnitude dos processos 7,
8
; entretanto, ninguém questiona o fato de que tais ganhos ocorreram em proporção
direta às variações do nível de exposição ao flúor que as crianças (e toda a população
que cerca o cotidiano das mesmas) foram expostas.
Assim, na Esfera Privada o acesso às tecnologias de flúor foi processado pela compra de
serviços, informações e produtos das companhias de abastecimento de água, da
indústria de higiene e cosméticos, dos cirurgiões dentistas clínicos em seus consultórios
particulares e da mídia em geral.
Entretanto, para além do mercado, tais tecnologias também foram disponibilizadas na
razão direta da modernização do Estado brasileiro, que, desde os anos 80, está sujeito
às pressões democráticas e às suas próprias mudanças estruturais. Nas localidades com
administração pública mais avançada, a intervenção em Saúde Bucal vem produzindo um
processo assemelhado de modificação no padrão endêmico da cárie para populações
sem condições de acesso ao mercado.
Isso aponta, via Esfera Pública, para a possibilidade de redenção da incompletude do
acesso social à transição epidemiológica em Saúde Bucal; pois, há várias tecnologias
disponíveis e algumas novas em franco desenvolvimento. As tradicionais são as formas
internacionalmente reconhecidas de veiculação de flúor, tais como enxaguatórios,
vernizes, géis, pastilhas, comprimidos, entre outras. Entretanto, no Brasil surgiram
algumas estratégias originais de veiculação de flúor, fundamentalmente aquelas que
fazem uso do gel aplicado com escovas de dente 9. A facilidade de manejo da técnica
vem permitindo “capilarizar” a introdução do flúor em vários espaços sociais (unidades de
saúde, escolas, creches, associações, e – em especial – em domicílios). Associados ou
não a métodos clínico-curativos adequadores e/ou cirúrgico-restauradores, a combinação
de estratégias vem permitindo criar várias tecnologias gerenciais (Procedimentos
Coletivos – PC, Programas de Bebeclínicas, Programas de Inversão, Programas de
Saúde Bucal da Família) cujo impacto e custos atuais projetam caminhos sustentados
rumo a universalização da cobertura.
Para além da água fluoretada, os ganhos assistenciais públicos preventivo-promocionais
certamente alcançarão milhões de brasileiros (cidadãos-usuários) 10 ainda excluídos do
mercado, dando-lhes oportunidades de obter ganhos epidemiológicos efetivos, além de
completar os ganhos daqueles (cidadãos-consumidores) sem plenas oportunidades no
mercado.
Em termos comparativos, pode-se afirmar que o alcance e ultrapassagem dos ganhos em
Saúde Bucal realizados via Esfera Privada é apenas uma questão de tempo e de parcos
investimentos na Esfera Pública. As novas oportunidades rumo à universalização
descortinadas na Esfera Pública são tão potentes e evidentes que, a partir dos dados que
estamos acumulando em nossas pesquisas junto a municípios brasileiros (realizadas com
o Curso de Especialização em Odontologia em Saúde Coletiva da UnB), podemos
inverter a forma tradicional de prestar cooperação técnica e/ou de se conhecer a
organização municipal da assistência.
Hoje, é possível diagnosticar com uma margem considerável de acerto, o padrão de
oferta pública de serviços em Saúde Bucal oferecido pelos municípios à sua população,
7 O que se debate hoje é em que medida e em quanto tudo isso está associado a outras causas e determinações.
8 Para discussões sobre esta e várias outras mudanças na situação de saúde/doença da boca dos brasileiros, os trabalhos de Vitor
Gomes Pinto são referências obrigatórias na literatura da área.
9 Afirmação feita por Vitor Gomes Pinto em suas palestras e debates.
10 Caso seja equacionado o atual impasse no custeio dessas medidas no SUS, mediante a apresentação de alternativas plausíveis
para a sobrevivência e desenvolvimento da atenção em Saúde Bucal a partir da vigência do PAB, em substituição ao financiamento
via fatura de PCs no SIA-SUS. A discussão do PAB em Saúde Bucal é complexa, séria, contraditória, difícil, mas precisa ser
historicamente enfrentada, ainda que a título de “estratégia de transição de padrões de financiamento”.
9
com a simples informação do índice CPOD aos 12 anos. Para orientar os gestores locais
sobre como organizar a oferta pública de serviços, vis-à-vis, basta argüi-los sobre suas
metas com os seguintes termos: “diga-nos qual é o COPD aos 12 anos que você gestor
espera ter em seu município (se entre 8 e 5, se entre 5 e 2.5, se entre 2.5 e 1.5, se entre
1.5 e 1, ou se menor que 1) que somos capazes de dizer, considerando as diversidades
situacionais, frente às inúmeras opções disponíveis, (quais, como, por quanto tempo e
com que custo) as medidas da atenção preventivo-promocional em Saúde Bucal Coletiva
que devem ser programadas para tanto, no interior do SUS - na observância dos seus
princípios fundamentais.” (REZENDE et al., 1998; ZANETTI et al., 1998).
Só para exemplificar, numa das estratégias, a mais impactante, a “Saúde Bucal da
Família” desenvolvida com originalidade mundial 11, por nós na Universidade de Brasília –
UnB, desde fins de 1994 no Paranoá - DF com os cursos presenciais de Especialização
em Odontologia em Saúde Coletiva, foram alcançados resultados 12 recordes para zonas
urbanas complexas ao se assistir toda a família. Com esse novo paradigma programático
em Saúde Bucal, pode-se fixar o CPOD ≤ 1 aos 12 anos, como meta de impacto,
possível a custo anual per capita de “apenas” R$ 7,00 13.
Em outra mão, de forma complementar e mais avançada, os estudos realizados pelos
Cursos de Especialização em Odontologia em Saúde Coletiva desde meados de 1995
em Planaltina -DF alcançaram resultados que nos permitem trabalhar programaticamente
“Saúde Bucal da Família” segundo os princípios do SUS, criticando os modelos de
Programa de Saúde da Família verticais, focalizados, reducionistas e desarticuladores
dos Sistemas Locais de Saúde.
Seguindo os princípios do “Modelo Matricial de Vínculos Assistenciais (MMVA)” para
“Programa de Saúde da Família” 14, criamos a possibilidade de instituir uma “retaguarda
curativa” em toda Regional de Saúde de Planaltina – DF, mediante o uso da estratégia de
universalização por “alavancagem” 15. Assim, pode-se obter a cobertura de todas as
famílias num prazo de 2 anos e meio de programação, desde que conte com equipes de
Odontologia no interior do PSF, numa proporção de 1 Cirurgião Dentista, 1 Técnico de
Higiene Dental e 1 Auxiliar de Consultório Odontológico por 8.000 a 6.000 habitantes 16.
Em resumo, para dimensionar o impacto do processo de mudança do perfil
epidemiológico no mercado, pode-se comparar os cenários que antecederam e os que
11 Em Cuba o espaço domiciliar, se é que foi, foi timidamente descortinado como espaço de práticas, em função da pletora profissional
no sistema público de saúde deste país. Assim, os Cirurgiões Dentistas, quando muito, passaram a visitar as famílias por não mais
existir consultórios em unidades de saúde; ou seja, passaram a visitar sem nenhuma razão e ação preventivo-promocional. Só com
a concepção de Saúde Bucal da Família desenvolvida pelo nosso Curso de Especialização em Odontologia em Saúde Coletiva, no
Paranoá-DF, tais práticas preventivo-promocionais introduzidas no espaço dos domicílios tornaram-se perfeitamente
“desmonopolizáveis”, especialmente quando consideradas em contextos de escassez de recursos. Foram as razões
diametricamente opostas à abundância de recursos que nos levaram a propor o domicílio como espaço de prática original e
racionalizador. Este espaço passou a ser coberto regularmente por um novo profissional para a Odontologia, o Agente Comunitário
de Saúde (ou visitador domiciliar de vizinhança), que junto aos multiplicadores das escolas, creches, associações e unidades de
saúde, transformaram a velha equipe Odontológica, ampliando-a conceitualmente para aquilo que hoje denominamos de Equipe de
Saúde Bucal, a qual têm no Cirurgião Dentista um dirigente, gerente e supervisor de ações coletivas.
12 No Paranoá, trabalhando do 600 famílias, na coorte em que se alcançou regularidade, foram registrados índices históricos de
CPOD aos 12 anos (= 0,87) para regiões urbanas complexas e carentes. Só para se dimensionar o que representa esta cifra, ela
corresponde a resultados três vezes menores que aqueles recomendados como meta pela Organização Mundial da Saúde para
países em desenvolvimento no ano 2.000 (CPOD= 3,0) e corresponde à metade dos casos novos de cárie inferidos em crianças na
mesma idade, moradoras do Plano Piloto, Lago Norte e Lago Sul (regiões mais ricas de Brasília), cujos CPOD medidos são 1.9, 1.8
e 1.5 respectivamente.
13 Custo para a instituição da “frente preventivo-promocional domiciliar”, quando associado aos Programas de Agentes Comunitários
de Saúde (PACS) ou aos Programas de Saúde da Família (PSF). Neste cálculo não foram computados os recursos para uma
possível “retaguarda curativa”, que podem obtidos a partir da realocação dos recursos atuais normalmente despendidos pelos
municípios com Odontologia. Hoje estes gastos variam de R$ 5,00, ou em alguns caso menos, a R$ 15,00, ou em raríssimos casos
mais. Vale lembrar que isso é em si muito pouco, e é pouco também historicamente, já que em 1974, os gastos só do Governo
Federal com procedimentos em Odontologia chegaram a representar 14% dos gastos assistenciais ambulatoriais no extinto
INAMPS/MPAS.
14 Formulado e apresentado por ZANETTI (1996) e ZANETTI & LIMA (1998) nos ENATESPO de Curitiba e Fortaleza,
respectivamente.
15 Conceito redenominado por ZANETTI (apud RAIMUNDO et al., 1999, p. 32) para substituir a formulação original criada pelo mesmo,
em 1996, de estratégia de universalização da atenção, até então denominada de “universalização pela janela da equidade”. Esta
estratégia se contrapõe a forma clássica e linear de universalização, por ele chamada de “universalização por cotas”.
16 A metodologia dos cálculos preliminares de oferta em função da demanda na lógica da “universalização por alavancagem” pode ser
sucederam os anos 80. Antes, esperava-se na maioria das crianças com 12 anos, das
famílias com poder de consumo de serviços odontológicos de mercado, uma média de 6 a
8 dentes com história de cárie. Hoje, espera-se valores em torno de 1,5 dentes. Sob
condições favoráveis, espera-se mais, ou seja, que as crianças sequer venham a ter
dentes cariados; logo, sequer necessitem de tratamento restaurador, endodôntico,
cirurgias e próteses por razões de cárie e suas seqüelas.
O detalhe óbvio que nem sempre tem sido percebido em sua obviedade é que, a parcela
da população brasileira que consome serviços curativos no mercado é exatamente
aquela parcela de melhor inserção nas relações capitalistas e de maior poder de compra.
Assim, ela pode comprar inúmeras outras coisas, entre elas informações, atenção
preventiva e promocional e tudo mais que a leve não demandar por serviços curativos.
Por isso, essa parcela é a que já completou o processo de transição epidemiológica em
Saúde Bucal no Brasil. Daí, ela tem, proporcionalmente a outros segmentos
populacionais, menos necessidades de atenção curativa, mesmo que seja ela que,
decrescentemente, mais demande e ainda sustente o mercado.
Pode-se afirmar que, na dinâmica de mercado, o processo de transição epidemiológica
em Saúde Bucal é um processo social amplo cujo controle ultrapassa em muito os
mecanismos de intervenção social que a categoria dos odontologistas possui; bem como,
que a aceleração da transição se dá na razão direta da modernização capitalista do país
(seja a modernização do Mercado – mais acelerada, seja a do Estado – mais lenta). Tal
modernização tem levado significativos contingentes populacionais a consumir
tecnologias de flúor em níveis nunca antes vistos no país.
Retroceder com a atenção preventivo-promocional para as populações capazes de se
realizar na Esfera Privada tornou-se algo impossível, uma vez que tal público consumidor
vem sendo progessivamente integrado numa sociedade informacional. Com isso, as
práticas desse cunho vêm se transformando numa exigência e numa obrigação cotidiana.
Mais crítico, o cidadão-consumidor exige melhor. Por outro lado, na lógica do prestador,
dentro da categoria, nas disputas de mercado, os Cirurgiões Dentistas qualificam cada
vez mais a atenção preventiva como mecanismo indispensável de diferenciação
concorrencial no exercício da clínica privada.
Retroceder com a atenção preventivo-promocional para as populações capazes de se
realizar apenas na Esfera Pública (Estado) é sempre algo condicionado à natureza
política das relações dessa esfera, em especial, condicionado por um lado, aos padrões
políticos de disputa eleitoral e, por outro, de disputa dos, cada vez mais escassos, fundos
públicos disponíveis para financiar as políticas sociais no país.
Enquanto isso, no seio da categoria, as representações sociais “douradas” sobre
Odontologia e prática odontológica não se esvaíram com a mesma velocidade das
mudanças históricas. Talvez há falta de compreensão, ou saudosismo; ou ainda,
entendimento ingênuo e cada vez menor, de que tudo não passa de uma mera crise
conjuntural.
O fato é que “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não
a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações
mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos” (MARX, 1986, p. 17). Assim, ao
final de duas décadas de crise, com tais legados, a categoria vem seguindo às cegas na
construção da sua história sem fazer coletivamente uma discussão clara e conseqüente
sobre sua situação e suas reais perspectivas num futuro ainda por fazer.
Se coletivamente os fenômenos não estão sendo tratados com a devida atenção,
individualmente, cada Cirurgião Dentista já vem de longe sentindo no seu orçamento
doméstico o peso da realidade concreta. Tal peso pode ser exemplificado com
estimativas da situação atual de Brasília - DF.
Há hoje no Distrito Federal, aproximadamente dois milhões de habitantes. Considerando
a população do Plano Piloto, Lago, parte de Taguatinga e do Guará, bem como uma
parcela bem menor das populações das outras cidades satélites, pode-se estimar, com
muito otimismo que oitocentos mil habitantes tem poder de consumo no mercado de
serviços odontológicos (liberal clássico, convênios, credenciamentos, planos e
11
17 Sem considerar as possíveis intercorrências, tais como manutenção, como também as pressões para acompanhar as “ondas” de
mercado por aquisição de nos equipamentos, materiais, tecnologias e conhecimentos.
18 Sem considerar as possíveis perdas de capacidade laboral inerentes às necessidades de afastamento seja por razões de saúde ou
não, que fazem da prática liberal e autônoma uma prática muito insegura.
12
19 Entende-se “propriedade econômica” como controle econômico real dos meios de produção e produtos; e, “posse” como a
capacidade de colocar em operação os meios de produção. (POULANTZAS apud BOTTOMORE, 1988, p. 38)
20 Os trabalhadores de colarinho branco receberam este nome em alusão à cor do colarinho da camisa que utilizam no trabalho em
distinção à classe trabalhadora tradicional, a de “colarinho azul”, assim denominada em alusão à cor do colarinho do macação que
utilizam no “chão de fábrica”.
14
21 Impossível em função das causas já apresentadas neste trabalho: a recessão econômica e a transição epidemiológica em Saúde
Bucal, no Brasil do pós anos 80.
16
suficientes para sustentar ou mesmo reverter o processo tendencial de queda dos valores
dos serviços praticados no mercado. Em síntese, a crise ocorreu numa conjunção de
fatores que resultaram na egressão acelerada da tendência decrescente da taxa de lucro.
A drástica queda do preço unitário dos procedimentos odontológicos no padrão Curativo
de Massa, pode ser facilmente demostrada com a trajetória de implantação e vigência da
Tabela Nacional de Convênios e Credenciamentos (TNCC), hoje denominada de Valores
Referenciais de Convênios e Credenciamentos (VRCC). Criada em 1987, nos primeiros
anos de sua vigência, os valores definidos na tabela sequer foram adotados pelos CDc
na cobrança de seus “honorários profissionais”: eram demasiadamente “baixos”. Com o
avanço da crise de mercado, ao longo da primeira metade dos anos 90, os Cirurgiões
Dentista alinharam-se à tabela e praticaram os preços sugeridos. Hoje, findados os anos
90, em pouco mais de uma década, uma situação totalmente inversa se configurou. A
maior parte dos profissionais realiza descontos significativos sobre os valores de
referência.
Mesmo a existência e até o recrudescimento da contra-tendência secundária (aumento
da exploração da força de trabalho com baixos salários e sub-assalariamento dos CDt)
não foi capaz de evitar a crise; ao contrário, intensificou-a com o rebaixamento de
contingentes significativos de CDc à condição econômica de CDt.
Para complexificar ainda mais a crise, o avanço no processo de operação dos
mecanismos concorrenciais passou a ser feito com os antigos e com novos mecanismos,
todos operados de forma ambivalente: (i) se ética 22, a operação é positiva e consegue
agregar valor (para aumentar, senão para manter ou evitar maiores depreciações no
preço unitário dos procedimentos odontológicos); (ii) se anti-ética, é negativa praticada
para concorrer com o aviltamento nos preços.
A operação negativa dos mecanismos concorrenciais passou a: corroer o mercado;
acelerar a tendência decrescente da taxa da lucro; destruir as representações sociais
mais amplas sobre a categoria dos Odontologistas e sobre a honradez do trabalho
profissional. A operação negativa, na prática, só tornou-se fenômeno social relevante
quando, uma parcela dos CD, especialmente aqueles com arranjos concorrenciais
precários, vinculados em sua maioria aos planos odontológicos, lançam-se em situações
surrealistas e sabidamente nefastas para a qualidade da atenção: trabalhar com
descontos de até 70 ou 80% na VRCC.
Assim, a crise conseguiu heterogenizar também a massa de investimentos. A invenção
de novos mecanismos concorrenciais, a agressividade na operação positiva e negativa
dos mecanismos, o aumento da massa dos CDt e da exclusão dos CDc do mercado,
passaram a ocorrer em proporções jamais vistas na história da Odontologia brasileira. A
natureza, o aumento e a diversificação dos investimentos conformaram arranjos
concorrenciais flexíveis e apropriados, possibilitando múltiplas formas de inserção num
mercado cada vez mais heterogêneo. Esses serão os assuntos do último item do artigo.
A heterogenização estrutural frente a diversificação dos cálculos racionais
individuais no mercado de serviços odontológicos
Como já mencionado, as mudanças ocorridas ao longo dos anos oitenta, em especial
aquelas decorrentes: da modificação na equação de oferta e procura; do lançamento dos
CDc às relações fundamentais capitalistas; da queda tendencial da taxa de lucro no
mercado de serviços odontológicos, caracterizam a fase de crise e esgotamento da
Odontologia Curativa de Mercado de Massa.
O exercício social de superação da crise vem conformando as bases primárias para a
estruturação do novo paradigma de prestação de serviços odontológicos na Esfera
Privada: a Odontologia de Mercado Segmentado.
A segmentação está se dando com a progressiva perda da característica de massa do
mercado, com flexibilização das demandas e a heterogenização dos arranjos
concorrenciais.
A flexibilização das demandas ocorreu não só pela queda, mas pela mudança dos
padrões de consumo. O consumo vem deixando de ser de massa, homogêneo,
22 Preocupada, no mínimo, em não ferir a autonomia de decisão do paciente, não causar maleficências, ser sempre beneficiente e ser
sempre justa.
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23 Vale destacar que na literatura da pós-modernidade, especialmente na dimensão econômico-política da transição dos modos gerais
de regulação do tipo Fordista (Monopolista) para o Pós-fordista, há uma riqueza de abordagem sobre esses temas de mudança
estrutural do mercado capitalista avançado.
24 Em termos da teoria do capital (aplicável onde há prática da relação capital / trabalho; ou seja, no universo das relações
estabelecidas entre CDk e CDt) o investimento maior tem sido feito no elemento “variável” do capital, incidente e transformado em
força de trabalho, que é capaz de produzir valor não só para sua reprodução, como também um valor a mais, a “mais-valia” para a
acumulação capitalista; em contraposição aos investimentos no elemento “constante” do capital, transformado em meios de
produção, que não sofre nenhuma alteração quantitativa do valor no processo de produção.
25 Não é difícil imaginar porque. Por um lado há, objetivamente, o aumento da exploração da força de trabalho dos Cirurgiões
Dentistas. Por outro, subjetivamente, há uma categoria que secularmente identificou-se como profissão liberal e que só recente,
assustada e aceleradamente vem-se proletarizando, numa sucessão de conjunturas recentes, compostas de instabilidades,
mudanças e indefinições.
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