0% acharam este documento útil (0 voto)
614 visualizações28 páginas

013 Amostra Te Pego La Fora

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1/ 28

TE PEGO L FORA

contos de

RODRIGO CIRACO
Concepo

editorial

Allan da Rosa, Silvio Diogo,


Rodrigo Ciraco e Mateus Subverso
Ilustraes
Yili Rojas
Fotografias
Rodrigo Ciraco e Tnia Canhadas
So Paulo, Edies Tor, Junho de 2008

VERO

APRENDIZ
Vagabunda no! J lavei, j passei pra fora. J ajudei
minha me a faz coxinha, bolinho de carne, esfiha. Agora
tomo conta dos fio da tia Carla. E ela me paga, num nada
de graa no. Nem pass a mo nos meus peito eu dexei de
graa pra esses muleque. Num s otria. Tudo tem seu preo,
n no? Eles at perguntaro: - E p cum? Me ofereceram
dez real. Mas eu falei no, isso no. Isso a s quando eu tiv
di mai. Na quinta srie.

13

BiA nO QUER MEREndAR


Bia no quer merendar. Bia nunca comeu a merenda mas
ouviu dizer que ruim, que sempre a mesma coisa; que no
presta. Bia v o que alguns alunos fazem com a merenda: do
duas colheradas e deixam no canto; amassam, fazem uma
pasta e jogam uns nos outros. Guerrinha. Raspam o fundo
do prato com a colher de plstico, do uma lambida e pedem:
- Tem mais, Tia? Bia acha engraado. Os merendeiros. Bia diz
pras amigas eu no, eu no sou merendeira. Ela inclusive viu
esta semana uma cala. A tia falou que vai lhe dar um tnis.
J encomendou um celular para a me. Tem nome e marca
de carro: um V8. Bia espera que o seu V8 no demore. Ela
tem medo. No pode deixar de se comunicar com as meninas.
Odiaria ser rejeitada pelas amigas. No ter um grupo. Ser
apenas mais uma do povo. J pensou, comer a merenda,
como todos? O Z-povinho? Ela no. Bia no se importa de
no comer. As modelos no so todas magras? Quem dera
tivesse anorexia. Dizem que doena de rico. Tomar sorvete,
comer lanches, salgados e depois vomitar. Pelo menos esta
dor no estmago, esta fraqueza faria sentido. Bia no quer
merendar. Ela j avisou: no tomou caf, no almoou. No,
15

no dieta. No comeu porque no tinha. Assim como no


intervalo no tinha dinheiro pra cantina. Bia no quis sair
para comer a merenda, ainda que fosse s escondidas. A
ltima coisa que Bia insistiu em dizer, antes de desmaiar de
fome, foi: Professor, eu, eu... Eu no sou merendeira.

16

QUESTO DE POSTURA
O professor observa o menino no canto da sala, sozinho.
Suando frio. Esfregando a mo dentro da cala. Estranha.
Aproxima-se, com calma. O aluno de cabea baixa, concentrado.
No percebe a chegada. Assusta. Coloca de volta, rpido. O
professor, meio sem jeito, pergunta:
- O que isso, Lucas?
O aluno no v outra soluo. Abaixa o zper. Mostra o
revlver.
- Ah! Tudo bem. Pensei que fosse outra coisa.
- , que isso! T tirando, prussr?

21

OUtOnO

cARA- dE- PAU


Me, olha pra cara do seu filho. Olha bem. A senhora me
desculpe, mas... ele retardado. Re-tar-da-do. E o pior que
aqui na frente da senhora faz cara de santo, mas no se
engane. Esse o famoso santinho do pau oco. P de barro.
L dentro da sala que ele se mostra. O co. Safado.
No quer saber de nada. S danar, cantar, brincar. Passar
a mo. E acha engraado. Voc gostaria que eu passasse
a mo na sua florzinha, Joo? Brincasse com a mame de
Ricardo? Hum? Olha pra mim, Joo. Fala. Ento, aqui ele
nem fala. Mas na sala no, num pra. E no aprende. O que
eu fao? J cheguei no ouvido, j troquei de lugar. Coloquei
perto da lousa, coloquei pra fora, mas num d. No abre o
caderno, no faz a lio. No traz lpis, caneta, rgua. S
esse sorriso. Fica a aula inteira olhando pra minha cara e
sorrindo.
Outro dia eu parei do lado dele, fiquei olhando. At falei:
- Voc t com verme, menino?
Ele no entendeu.
Eu j pedi pra direo: temos que fazer alguma coisa, dar
um jeitinho. Todo comeo de ano eu aviso. Pega uma sala,
31

joga s os do tipo dele e pronto. Faz a sesso de descarrego,


despacho, exorcismo. Mas ningum me ouve, ningum me d
ateno. Agora a gente tem essa tal

poltica

de incluso,

sabe? Tem que misturar todo mundo. difcil. Eu queria


ver esses homens da lei dentro da sala de aula, comigo. No
h quem imponha limites pra esses menino. Queria ver na
minha poca voc fazer o que fez. Viu, Joo? Queria ver
o meu professor de portugus, que tinha uma rgua desse
tamanho, te catar com o cu na mo. No ia sobrar nem um
cisco. Mas agora no. s gritar mais alto com eles que
j vem conselho tutelar, juiz, papagaio, vizinho. Eles podem
tudo. Esse a ento, mais do que todos. S por conta dessa
sndrome, desse defeitinho.
Mas, deixando ele de lado, eu chamei a senhora porque
eu preciso lhe dizer: a senhora a grande culpada dessa
histria toda, Dona Conceio. Me desculpe, mas onde j
se viu: trazer seu filho pra escola, esperar que a gente d
conselho, conhecimento, ateno. Como se fosse uma pessoa
normal. Parece que no percebe. preciso dar uma educao
especial para esse menino.

32

SOc PRA dEntRO


- Eu tava na escola, com um escritor convidado, quarenta
alunos ao meu lado e nenhuma sala. A sala reservada na
semana anterior, que inclusive tinham limpado, lavado...
Passaram pra outro.
- Desorganizao total?
- Pois . A me botaram na antiga sala da Direo. Imagina,
da Direo! Uma salinha pequena, apertada. Eu, o escritor e
mais quarenta alunos ali, espremidos. Eu l consegui enxergar
que tinha um interfone ligado diretamente na secretaria
da escola, e que os meninos tavam toda hora apertando,
fazendo barulho?
- E a?
- No, voc no vai acreditar. Bateram na porta, n: Toc, toc. Eu: - Pois no? Abri um pouquinho da porta, era
a secretria da escola. Falou: - Professor, com que turma
o senhor est? Respondi: - Ah, estou com vrias. Da quinta
oitava srie. So os alunos do projeto de Literatura. A
ela me pergunta: - Posso dar um recadinho? Toda educada.
Falei: - Mas claro. Ela entrou, fechou a porta e perguntou,
em alto e bom som: - Pessoal, quem aqui tem hemorrida?
39

- O qu?
- Quem que tem hemorrida?
- No, c t brincando?
- No, no t. Na hora eu estranhei, at fiquei pensando:
nossa, ser que ela vai fazer divulgao igual aqueles cara
que vem na escola, vender curso pra computao, vender
passeio? Mas divulgao para hemorrida? Pomada?
- E a?
- A que um aluno teve uma idia genial n?

Tia,

o que

hemorrida? Rapaz, essa mulher comeou a gritar: Hemorrida a porra dum caralho dum negcio que d no
meio do olho do cu, que d uma coceirinha no dedo que faz
vocs ficarem apertando essa merda de interfone. D pra
parar ou eu vou ter que soc pra dentro? Bateu a porta
plam! e saiu.
- Nossa, vio, eu no acredito.
- Te juro.
- Que rampeira! E os alunos, o que fizeram?
- Comearam a rir, no entenderam nada. Eu fiquei mudo,
perdi a respirao, comecei a suar frio. Pedi mil desculpas
pro escritor, falei que aquilo nunca tinha acontecido, e no
tinha mesmo, pra ele entender.
- Nossa, que louco. No d pra acreditar. J pensou
se fosse um dirigente de ensino que tivesse ali dentro e
ela fizesse isso? Ia dali pra roa, sem assunto. Ia rodar
bonito.
40

- Mas foi justamente por isso. Ela sabia que era eu que
estava l, junto com um escritor. Que perigo que a gente
representa? Em quem que a gente impe respeito?
- Que barato sem noo...
- No, e o pior foi a gozao, a molecada na escola depois.
Qualquer coisinha, qualquer mancada que um aluno dava,
algum gritava: - A, vou soc pra dentro, hein!

41

PAPO RETO
Vou te explicar, s uma vez, porque apesar de parecer
inteligente voc ainda muito novo pra entender. No tem
a malcia, a experincia da vida. Aqui, as coisas no so do
jeito que voc quer. Tudo tem o seu ritmo, o momento certo.
Voc no pode chegar aqui e querer mudar tudo. Fazer a
revoluo, entende? No, aqui voc entra no esquema, no
jogo. Ou entra no jogo ou t fora do baralho. E te digo:
carta fora fica marcada. C t lascado.
T falando isso porque vocs, professores, criticam, mas
no entendem como difcil ficar aqui atrs dessa mesa.
Acham que fcil dirigir uma escola. S reclamam, reclamam:
ah, que no tem organizao, ah, que no tem transparncia
nas coisas; ah, que eu nunca t presente. Vou deixar uma
coisa bem clara, j que voc me questionou: a minha vida
no isso aqui. Isto uma pequena, pequena parte dela. Eu
tenho outras preocupaes, entende? Por exemplo, tenho o
financiamento do meu carro. Tenho a escola particular dos
meus filhos, tenho o meu apartamento. Eu trabalho em trs
empregos, professor. Trs! Veja a minha responsabilidade.
Se vocs no me vem aqui quando precisam, no por
43

que eu t vagabundeando no. V se algum da secretaria


bota falta no meu livro de ponto quando no venho? No,
eles sabem que eu no s pilantra, no t enrolando. T
trabalhando.

Tra-ba-lhan-do.

eles

colaboram

comigo.

Isso se chama confiana, lealdade. Reciprocidade. Fao a


cobertura deles quando fazem umas cagadas por a. Trabalho
de equipe, entende? Por isso, sou bem clara. tua escolha.
Ou entra na dana ou procura outra escola. Sem vacilao.
Voc no pode conosco. Ns somos a maioria.
O negcio aqui srio.

44

INVERNO

A PLACA
A minha aluna virou uma Placa. H trs meses ela deixou
de vir escola por isso: virou uma Placa. E no uma placa
qualquer, de trnsito, que ningum respeita. Ela virou
uma

Placa

publicitria.

Agora

tem

uniforme,

endereo

e identidade. No fica mais margem. Fica na porta dos


shoppings, concessionrias e futuros edifcios, se autopromovendo: A Placa. Com pernas.
A minha aluna virou uma Placa. Ela diz sentir muito
orgulho da empresa em que trabalha. Construtora. Grande.
Bem conceituada. Vende casas de alto padro, para pessoas
de bem, alto poder aquisitivo. Luxo. Seus condomnios
tm quadra de tnis, piscinas, bancos; centro de compras
particular, segurana e conforto. Diz que a tendncia do
futuro so os ricos no sarem mais de suas caixas, seus
bunkers. Para eles tudo ser Prime, Van Gogh. Personalit.
A minha aluna virou uma Placa. Aconteceu na porta da
escola. Um homem parou o carro importado, abaixou o vidro
e disse: - Voc leva jeito para Placa. Um cara branco, alto,
malhado; peito raspado, gel e gravata. Big boss. Ele no
perguntou idade, se tinha experincia ou carteira registrada.
Pediu apenas para tirar o culos, soltar o cabelo. Pronto.
Bonita. Est contratada.
61

A minha aluna virou uma Placa. Ela diz que trabalha numa
empresa tica, sria. No registram, mas pagam todos os
impostos. Todo final do dia ela recebe o seu salrio. E vai
embora pra casa. A empresa s fez uma exigncia: que
deixasse a escola. Questo de escolha. O trabalho das nove
da manh s sete da noite. Segunda a domingo. E sempre h
um novo bico. Setor imobilirio em expanso. As propostas
esto em expanso. Eles precisam de Placas. Ela j uma
Placa. Quem precisa de estudo?
A minha aluna virou uma Placa. Outro dia, pura sorte, eu
a encontrei. Andando sozinha, pela noite, voltava do servio.
Descaracterizada. No parecia ser a menina frgil da sexta
srie que at outro dia eu conheci. A menina tmida que
sonhava em ser modelo, e s estudava. Falei: - E a? Voc
precisa voltar pra escola. Ela respondeu, em tom de deboche:
Eu no! J tinha uma profisso. Tinha seu prprio dinheiro,
ajudava a me em casa. Responsvel, no precisava mais
de conselhos, no precisava de mais ningum. S do big
boss, o chefinho. Aquele que lhe deu valor. Deu emprego,
deu presentes, prometeu castelos. O nico que no lhe fez se
sentir mais como uma qualquer. A transformou numa Placa.
Uma Placa-viva.

62

PRiMAVERA

NS, OS QUE FICAMOS


Alguns me perguntam: t, o que vocs vo fazer?
Estamos descobrindo.
A nica certeza : vamos ficar.
Ns, os que ficamos, somos a nica chance de salvar este
lugar.
Do desespero. Da runa. Do abandono.
Do comum.
No culpamos quem partiu.
Foi uma opo?
Culpamos quem nos abandonou.
Por isso preciso ficar.
Quando as coisas apertam, quando temos dificuldades, no
podemos simplesmente nos mudar.
Abandonar nossa memria, nossa trajetria, nossos amigos
e mudar.
Desistir.
Fazer outro caminho e desistir.
Nem sempre abrir mo o melhor, o mais fcil.
Nem sempre o mais fcil o melhor.
O mais correto.
93

Principalmente quando nos resta uma pergunta: e os que


ficam?
No podemos deix-los.
Convites, propostas no faltam. Argumentos so duros.
Muitos. Principalmente quando vm de dentro de casa.
- isso o que voc quer pro futuro do seu filho? Abandonado
por tiranos, nas mos de carrascos? isso que voc quer de
salrio? Voc tem medo de mudar.
Muitas horas fraquejamos.
Quase nos damos por vencidos e, est bem. Vamos mudar.
Mas a pensamos: poxa, no isso que queremos.
No isso que queremos para nossos irmos, primos,
amigos.
No isso que queremos para ningum.
Por isso preciso ficar.
Para brigar, confrontar, sangrar.
Somar, transformar.
Unir.
Para que nenhum de ns continue sendo humilhado.
Nenhum de ns desprezado, desrespeitado.
Esquecido.
Ficar.
No queremos nos mudar do lugar onde sobrevivemos.
Queremos mud-lo.
Torn-lo mais bonito, mais solidrio.
Mais forte. Mais humano.
94

Ns, os que ficamos.


Somos muito importantes.
Ns, os que ficamos, somos a nica chance.
De mostrar o quanto estamos vivos, pulsantes.
At para dizer: no!
Ns no sairemos daqui.

95

Você também pode gostar