A Produção Do Espaço Agrário. Luiz Fernando Mazzini Fontoura
A Produção Do Espaço Agrário. Luiz Fernando Mazzini Fontoura
A Produção Do Espaço Agrário. Luiz Fernando Mazzini Fontoura
A Lei de Terras de 1850 substitui a Lei das Sesmarias, d fim ao acesso a terra por meio
de concesses, estabelecendo o mercado como regra para a aquisio. Ao mesmo tempo em que a
abolio do trfico de escravos encaminha para o nascimento do campesinato
(MOREIRA, 1990,3 6). O acesso a terra atravs da compra exclui a maior parte da populao
brasileira - quase sua totalidade - formando trs modalidades, segundo MOREIRA (1990,37):
- a do campesinato que combina em si a condio da reproduo do trabalhador assalariado e
campons como morador, o colono e seringueiro;
- a do campesinato familiar autnomo, como o das colnias de imigrantes;
- e a do campesinato de fronteira, como o posseiro que se localiza na linha de frente do espao
ocupado para dedicar-se a uma policultura livre.
A partir dos anos 1920-30 comeam as bases para a industrializao, liderado por
Getlio Vargas, que costura uma aliana entre a burguesia industrial nascente e a oligarquia
rural. A partir destes anos a produo industrial nacional toma grande impulso, bem como a
movimentao da populao rural em direo s cidades, motivados tambm, pela
regulamentao do trabalho urbano.
Nos anos 50, o processo de industrializao toma um impulso maior orientado mais pelas
"necessidades da acumulao e no as de consumo" (OLIVEIRA, 1984,55), caracterizado pela
produo de bens de consumo ("substituio de importaes"). A populao urbana aumenta
junto com os grandes centros urbanos, e a agricultura fornece alimentos a baixo custo, mantendo
a reproduo da fora de trabalho, por um lado, e por outro, com produtos para a exportao,
contribuindo no balano de pagamentos do pas. No primeiro caso, as unidades de produo de
base familiar fornecem "excedentes alimentcios cujo preo era determinado pelo custo da
reproduo da fora de trabalho rural" (OLIVEIRA, 1987,24) para os produtos generalizados de
consumo interno. Soma-se a isto produtos como o arroz e o trigo que contavam com apoio
governamental (subsdio), gnese da agricultura mecanizada no estado do Rio Grande do Sul. No
segundo caso, o melhor exemplo de interveno oficial no sentido de articular a agricultura aos
interesses do crescimento industrial o caf e a poltica do Instituto Brasileiro do Caf, o IBC.
Todavia, mesmo nos produtos que contavam com a proteo e apoio oficiais, a elevao
da base tcnica no se fez significativa. O aumento da produo se d mais extensivamente do
que intensivamente, e justamente neste perodo, que dentro do latifndio as presses aumentavam,
aumentando tambm as tenses sociais e a necessidade da Reforma Agrria.
O golpe militar de 64 vem colocar uma p de cal nos planos excessivamente
nacionalistas do populismo, direcionando a expanso dos interesses das multinacionais sobre a
agricultura brasileira em uma integrao indstria-agricultura-indstria.
O instrumento utilizado para isto o Estatuto da Terra, que no cria ou soluciona os
problemas j existentes, mas sintetiza e organiza a ao conjunta do Estado no sentido da
integrao campo-cidade luz dos interesses do segundo.
O Estatuto da Terra tinha dois objetivos amplos: promover a Reforma Agrria e
promover uma mudana na base tcnica da agricultura brasileira. O primeiro nunca saiu do
papel. O segundo, mais significativo porque mudou para sempre a regionalizao da agricultura,
ser mais bem analisado. Vejamos o Estatuto (1985,221):
A interdependncia entre o campo e o urbano e industrial contingncia
do prprio desenvolvimento econmico do pas e essa interdependncia
traduz-se nos seguintes aspectos fundamentais do processo de
crescimento e integrao nacionais, dando Poltica de Desenvolvimento
Rural vrias e insubstituveis atribuies:
a) suprir a base alimentar indispensvel intensificao da vida urbana e
industrial;
b) concorrer com produtos de exportao mais diversificados para ajudar
o equilbrio do balano de pagamentos externos;
sim, vinculada aos interesses do Estado e este expanso da produo industrial, bem
caracterizado no Estatuto da Terra.
Em sendo assim, quais seriam os produtos que viabilizariam a modernizao? No estado
do Rio Grande do Sul. segundo BRUM (1988,64), O arroz foi a primeira lavoura a se
modernizar j no incio deste sculo. As condies naturais favorveis, com vrzeas e margens de
lagoas e rios, disponibilidade de mo-de-obra e a existncia de capital disponvel nas mos de
comerciantes e profissionais liberais, fez com que se desenvolvesse em torno de cidades como
Porto Alegre, Rio Grande, Pelotas e Cachoeira do Sul, a lavoura irrigada do arroz.
J a cultura do trigo como a do arroz, contavam com uma poltica protecionista do
Governo Federal tambm surge como uma agricultura mecanizada nas mos de empresrios que
no so colonos, "um grupo de pessoas em estado de organizar empresas mecanizadas de
produo tritcola" nas palavras de FRANTZ (1982, 31).
Portanto, nas condies para a modernizao na agricultura temos:
o interesse do Estado na expanso da produo do arroz e do trigo para a alimentao da
populao urbana (consumo interno e substituio de importaes), proteo esta que vinha se
desenhando desde o incio do sculo para o primeiro e na dcada de 40 para o segundo. No
caso da soja, associada lavoura do trigo, a partir da dcada de 60, como um produto gerador
de divisas;
o interesse de empresas nacionais e principalmente transnacionais em expandir seus negcios
para a agricultura brasileira, tanto na produo de equipamentos, insumos etc, como no
beneficiamento da produo agrcola, a partir da 2a Guerra Mundial, como a poderosa Bunge
y Bom;
a possibilidade do surgimento de atores sociais, os granjeiros, de origem urbana, com interesse
de diversificar seus capitais na agricultura.
Por outro lado, na atividade charqueadora, esta transfere a perda para o criador e
compromete tambm a qualidade do produto, perdendo mercado para os pases vizinhos do Prata
sempre que no houvesse proteo alfandegria para o produto nacional. Esta estrutura gera de
certa forma, um sistema de produo onde a transferncia de recursos para outros setores no
justifica nem estimula ao progresso tcnico, a investimentos no setor produtivo, dada a no
garantia de retorno. Ou seja, uma economia voltada para o consumo interno, portanto de baixa
remunerao.
Ento, o que permite uma remunerao maior ao produtor a rea, em mdia, segundo
ROCHE (1969) apud FONSECA (1983), uma estncia possua 13.000 ha (uma sesmaria),
comportando 10.000 cabeas de gado, um capataz e 10 pees. A reproduo da unidade de
produo (estncia) no exige grandes investimentos. Isto somado a proteo da atividade pelo
Estado - pois a garantia da fronteira est nas mos dos estancieiros - permite que os rendimentos
com a venda do gado possam garantir a compra de outros produtos que fossem necessrios.
Segundo PESAVENTO (1980,17):
"Dentro da sua prpria viso, o estancieiro, proprietrio da terra e do
gado, operava segundo o lucro mercantil, ou seja, aquele obtido pela
venda do gado no mercado. O que lhe importava, basicamente, era
ganhar para si uma renda monetria que lhe permitisse manter o custo
da produo e comprar outros produtos de que necessitava.
Considerando, contudo as condies dadas, de monoplio privado da
terra e do gado, a diferena entre o valor da produo pecuria e o preo
da produo social mdia aparecia como renda da terra... Parte do
capitalismo agropecurio no tem custo monetrio de aquisio (pelo
processo de herana) nem o custo de reproduo (pela reproduo natural
do gado).
O cercamento das terras a partir de 1870 dispensa um grande contingente de pessoas que
viviam nos limites das propriedades, como posteiros e outros agregados. A consequncia imediata
a favelizao nas cidades e o surgimento do "ndio vago" que rodava os caminhos sem ter onde
se estabelecer. Neste perodo, uma boa parte dos estancieiros muda-se para a cidade, terminando
a relao mais prxima com o capataz e os demais empregados. tambm nestes anos, que
comea a introduo de raas europeias, o que se tornaria um diferencial da pecuria gacha
acompanhando a tendncia dos vizinhos do Prata.
A virada do sculo vem acompanhada do fim do auge das charqueadas e o
comeo da era da refrigerao da carne, implicando mudanas no tempo de abate de novilhos. Do
ciclo do couro s charqueadas, o tempo de abate ideal girava em torno dos 7 aos 8 anos, quando
o animal abatido tinha a melhor relao entre espessura do couro, carcaa e gordura. A
frigorificao exige um rebanho mais apurado, e o tempo de abate cai para quatro anos e meio. A
introduo dos banheiros carrapaticidas em 1914, junto com outras medidas na rea de sanidade
animal e manejo, conseguem diminuir o tempo de abate para 3 anos, como no sistema francs
Voisin, encontrando a o limite. A partir dos anos 1960, alguns produtores conseguiram
diferenciar seu produto, obtendo melhores vendas para um mercado restrito. Todavia, desde o
8
tempo das charqueadas, e mesmo com a chegada dos frigorficos, os produtores no mais
conseguiram superar suas crises sem a interferncia do Estado.
Todavia, mesmo com a diminuio do tempo de produo, poucas modificaes so
introduzidas no sistema de produo. Ou seja, as variveis sanidade (sade animal), manejo
(distribuio de animais e campos), gentica (adequao e pureza das raas) e alimentao
(melhoramento dos campos, formao de pastagens, silagens etc), no so integradas e
trabalhadas de forma sistmica. Peio contrrio, nesta pecuria tradicional, a mistura de raas
zebunas ao plantei preferencialmente europeu, desvalorizou o rebanho gacho.
O parcelamento da terra, com certeza, contribuiu para acelerar a falncia dos produtores,
Mantiveram-se, e por vezes ampliaram os negcios, aqueles produtores que diversificaram a
atividade, como a produo de terneiros ou a terminao de novilhos. Outra forma encontrada foi
a transferncia de recursos da pecuria para compra de bens de fcil liquidez em perodos de
inflao, como carros, telefones e mesmo imveis, intercalados em perodos de alta e baixa do boi
gordo.
Esta situao no se modifica na dcada de 80 e nos anos 90. Com a chegada do Plano
Real e a relativa estabilidade da inflao, a diversificao dos produtores no funciona mais
como estratgia, e a decadncia da pecuria tradicional na Campanha pode ser percebida pelo
nmero de imveis para venda e a queda do preo da terra com esse destino (FONTOURA,
2000).
A pecuria tradicional deve, mantida as atuais condies, continuar em crise at que a
oferta do produto se iguale ao mercado que se abastece dela, ou seja, aougues populares e
abatedouros (em sua maioria clandestina), que remuneram mal o produtor. At o momento
nenhum programa, oficial ou no, envolveu de forma efetiva este grupo de produtores, mesmo os
programas dos sindicatos no os alcanam, pois existe a impossibilidade de assimilar a
informao necessria para produo da atividade pecuria em escala empresarial.
A partir da metade dos anos 80, consolidando-se na dcada de 90, ocorre uma mudana
de paradigma na produo pecuria gacha, a que chamamos de pecuria empresarial. As
variveis sanidade, manejo, gentica e alimentao passam a ser integradas e de forma sistmica.
A sade animal passa a ser tratada de forma profiltica, e os potreiros mais divididos. Os
melhores campos foram destinados as matrizes e os novilhos confinados a cu aberto. O padro
gentico definido a partir do resultado desejado pelo produtor empresrio. A alimentao
fornecida aos animais na forma do melhoramento dos campos, resteva de lavouras como arroz e
soja, formao de pastagens e silagens (fermentao). O resultado a melhoria dos ndices de
produtividade como a natalidade, mortalidade animal a diminuio do tempo de abate para dois
anos.
A integrao (ou associao como chamada) com setores industriais montante, e com
setores atacadistas jusante, impe ao produtor uma posio de administrador para alm do seu
estabelecimento, de conhecimento do mercado, e de associao com seus pares na defesa de seus
interesses comuns. O subsdio na forma como ocorreu no "boom" dos anos 70. no existe mais,
onde a regra era ganhar para produzir. Hoje, distante das relaes com o Estado, o subsdio
chega na forma da iseno fiscal, ou produzir para ficar isento. Uma integrao onde os
produtores ficam com a parte mais lenta do processo produtivo, mas que tm maior domnio
tecnolgico e poltico, o que os diferencia das formas de integrao dos produtores de sunos e
aves, por exemplo.
Neste processo de globalizao da economia, os empresrios da pecuria bovina buscam
mercados especficos para a colocao de seus produtos: a carne bovina diferenciada para um
consumidor tambm diferenciado. Nada que surpreenda, pois esta a tnica e o esprito da atual
fase do capitalismo.
montante, a pecuria empresarial vai estabelecer relaes com a indstria gentica, que
vai propiciar animais capazes de diminuir o tempo de produo do gado bovino, ao mesmo
tempo, em que o produtor deve encontrar como aplicar a tecnologia de acordo. A pecuria
empresarial impe um gerenciamento da empresa visando o lucro, no apenas a criao de
animais. Estes passam a ser mercadorias nas quais existe um investimento que deve,
necessariamente, ser recuperado, ampliado no final do processo produtivo. Isto passa tambm,
necessariamente, por novas relaes de trabalho com os funcionrios, com treinamento, respeito
s leis trabalhistas e principalmente participao no crescimento da empresa.
jusante, a pecuria empresarial vai estabelecer vnculos de parceria com frigorficos e
redes de supermercados (com grifes de carne, novilho jovem etc), onde responsvel pelo
fornecimento regular de carne, reduzindo os estoques, diminuindo o tempo entre a sada do
estabelecimento, o matadouro e o balco do mercado. Esta agilidade aumentou o poder de
barganha dos produtores, facultando-lhes o direito de participar da diviso dos lucros na cadeia
produtiva, algo inconcebvel nos tempos da pecuria tradicional.
A esta integrao da pecuria empresarial montante e jusante denominamos de I-P-A
(indstria-pecuria-atacado).
Por estas mudanas na gesto dos negcios e no modo de vida dos pecuaristas, que
acreditamos que a passagem do produtor da pecuria tradicional (ciclo longo), para a empresarial
ou moderna (ciclo curto), no depende somente da vontade do produtor, pois a formao de um e
10
de outro, bem como as relaes que mantm com o mundo externo e o estabelecimento, so
completamente diferentes.
Sobre isso devemos salientar dois comportamentos que bem definem as diferenas entre o
produtor tradicional e o empresarial. A proposta que norteia a associao ou o sindicato rural
outra. Estas entidades passaram a ter o carter aglutinador e dissipador de tecnologias,
procurando sadas para os produtores, respeitando as suas diferenas. As sadas visam uma
reao do produtor frente as suas dificuldades. O tipo de liderana leva em conta as realizaes
do lder, no mais seus vnculos com as esferas de poder. Em muitas situaes isto causa algum
tipo de atrito entre os dois tipos de produtores, mas a insero e o sucesso do empreendimento
empresarial, acaba por se impor frente s antigas estruturas agrrias mais conservadoras. A
legitimidade da atual forma associativa se confirma a partir da participao de toda a gama de
produtores nos cursos de extenso promovidos, bem como a aceitao e a satisfao dos
entrevistados.
A participao nas conexes (programas de metodologias de avaliao gentica) outra
diferena significativa entre o pecuarista tradicional e o empresarial, que pressupe o manejo do
rebanho em conjunto com vrios estabelecimentos, alm do acompanhamento de servios
terceirizados de avaliao gentica (A Granja, nov.,1996).
Em grande parte, o aprimoramento gentico dos bovinos est sob domnio de grupos
multinacionais. Este fato por si s, j causaria a fuga do produtor tradicional, que desde o tempo
da instalao dos frigorficos temia a presena do capital estrangeiro. Ao contrrio, o produtor
empresarial fortalece as conexes, e a partir deste estgio, vislumbra novos mercados para o seu
produto, uma vez que o aumento de produtividade da pecuria empresarial advm dos resultados
dos ganhos genticos a partir do choque de sangue de raas diferentes, a heterose, e da seleo e
avaliao das diferenas esperadas de prognie (DEP). A participao nas conexes tem que ser
constante para obter os resultados desejados, o que mantm os pecuaristas sempre mobilizados
para estas e outras aes que envolvam os interesses do setor.
Esta mudana de ritmo e racionalidade da produo e dos seus atores sociais transforma
tambm a relao cidade-campo. As decises tomadas no campo so geradas muitas vezes em
centros urbanos maiores, e as cidades que so circundadas por zonas rurais tecnologicamente
mais avanadas passam a prestar servios especializados e respondem imediatamente s
transformaes que ocorrem no campo. Por outro lado, sedes urbanas circundadas por atividades
primrias tradicionais tendem a refletir o ritmo e a racionalidade da produo predominante,
diferenciando-se do modelo urbano-industrial. s alteraes de ritmo e racionalidade provocadas
pela elevao do patamar tecnolgico, onde as relaes de produo so alteradas no meio rural,