Fábula Eleitoral para Crianças
Fábula Eleitoral para Crianças
Fábula Eleitoral para Crianças
Um dia, as coisas da natureza quiseram eleger o rei ou a rainha do universo. Os trs reinos
entraram logo a confabular. Animais, vegetais e minerais comearam a viver uma vida agitada de surtos
eloquentes, manobras, recados furtivos, mensagens cifradas, promessas mirabolantes, ardis, intrigas,
palpites, conversinhas ao p do ouvido.
Entre os bichos era um tumulto formidvel. Bandos de periquitos saam em caravana eleitoral, matilhas de ces
discursavam dentro da noite, cfilas de camelos percorriam os desertos, formigas realizavam comcios fantsticos, a rainha
das abelhas passava com o seu squito, sem falar nos cardumes de peixes, nos lobos em alcateias pelos montes, nas manadas
de bfalos pelas savanas, nas revoadas instantneas dos pombos-correios.
Todas as qualidades eram postas prova: a astcia da raposa, a agilidade dos felinos, o engenho dos cupins, o siso
da coruja, o poder de intriga das serpentes, a picardia do zorro, a doura da pomba, a teimosia do burro, o cosmopolitismo
dos ratos.
O leo, o tigre, a pantera, o leopardo e outros queriam derramar muito sangue; pssaros coloridos faziam frente
nica para indicar um pssaro colorido; j os pssaros que cantam decidiram apontar como candidatos o rouxinol, a cotovia,
a patativa; as cegonhas, irresolutas, passavam tardes pensando; os patos selvagens desfilavam no cu; as andorinhas,
tmidas, buscavam o refgio das igrejas; e a guia, fascista de nascena, pretendia organizar l no alto uma conferncia de
que s participassem as aves de rapina, como o falco, o condor e o gavio-de-penacho.
Os papagaios viviam a arengar bobagens pelas rvores; a raposa corria as vrzeas articulando uma candidatura,
ningum sabia qual; os macacos eram vaiados quando alegavam a semelhana com o homem; o cavalo se insinuou
candidato, dado a sua condio de antigo senador. O pavo, escondendo os ps, exibia a cauda; nos brejos, os sapos repetiam
slogans montonos; os jacars e as tartarugas ressonavam na beira dos rios, que passavam levando sussurros quase
imperceptveis, a conversar com as pedras e as ervas das margens; o rato do campo ia de vez em quando se aconselhar com
o rato da cidade; os gansos citavam velhos costumes romanos; certos bichos, como o boi e a bis, invocavam direitos
divinos1, que no eram muito levados a srio; as hienas e os chacais opinavam por um conselho de notveis, a ser constitudo
pelos animais ferozes, que lhe deixavam os restos; at a ameba, coitada, queria ser candidata, dizendo-se a origem da vida.
A mosca azul voava e revoava por todos os cantos. Quem ser o rei ou a rainha do universo? De dia, as borboletas
andavam como doidas pelos campos, noite, os vaga-lumes acendiam as suas luzes.
Nas profundezas da terra, o carbono fazia estranhas combinaes com o hidrognio. O diamante e o ouro reluziam
de esperana. As estrelas pretendiam uma coalizo de todo o espao constelado em torno de Vnus, causando cimes Lua.
As flores distribuam perfumes. rvores agitadas recebiam recados que os ventos traziam de longe. A floresta
pensava eleger no um rei, mas um colegiado de carvalhos, velhos, cheios de experincia. E por toda a flora era um
germinar, um brotar, um verdejar, um florescer, os monocotiledneos discordavam dos dicotilednios, os fanergamos
acusavam de hipocrisia os criptgamos. A plena campanha eleitoral com todos os incidentes. S os ciprestes continuavam
fechados em sua indiferena.
A despeito dos interesses em choque, e de tantas contradies, preciso dizer, a bem da verdade, que o pleito
transcorreu com a mxima lisura.
Ao fim de tudo, a escolha no podia ter sido mais feliz, pois os trs reinos unidos elegeram a rosa rainha suprema
do universo.
Sim, a rosa, a rosa na sua simplicidade tocada de esplendor, presa na sua haste entre o cu e a terra, eterna e efmera,
a rosa, carne, esprito e p. E para entronizar a rainha, o dia se iluminou com a sua luz mais clara, o mar se fez manso, os
pssaros cantaram com inspirao, as rvores se puseram mais verdes e mais altas, as flores vestiram roupagens de gala, os
seixos rolaram alegremente nas praias, os juncos das lagoas se inclinaram em reverncia, as nuvens se desfraldaram como
cortinas de gaze sobre o berilo. No fundo do mar era uma alegria silenciosa e solene como um Te-Deum em uma catedral
verde-escuro, os polvos gesticulando em cmara lenta, os peixes e as medusas passando sem barulho.
Entre os seres humanos, s as crianas sabiam que era o dia da entronizao da rosa, e nada contaram a ningum.
Mas pelo jardim onde se achava a rosa, expectante no seu recato soberano, passava naquela manh um homem feio e
preocupado. Era um candidato a qualquer coisa, a vereador, a deputado, a Presidente da Repblica, no se sabe ao certo.
Distrado com as suas ambies, ele colheu a rainha do universo, que entrou logo a fenecer em suas mos midas. Depois,
olhou e viu que se tratava de uma bela rosa, uma rosa digna de se oferecer a uma namorada. Mas ele no tinha namorada.
Malmequer, bem-me-quer, malmequer... Ele comeou a desfolhar a rosa s para saber se dessa vez seria eleito: Cmara
de vereadores, de deputados ou curul da Presidncia da Repblica, no se sabe ao certo. E a rosa morreu. E foi por isso
que o dia se fechou de repente, o cu ficou escuro, os animais uivaram nos bosques, os pssaros sumiram, o vento se desatou
sobre o mar agora encapelado, o raio e o trovo tomaram conta da noite sem estrelas, e as crianas na hora do jantar perderam
a fome. Tinha morrido a rainha do universo.
Mas nas trevas desabrochou outra rosa para iluminar com a sua beleza o jardim amanhecido.
1
A bis uma ave de pescoo longo e bico longo e avermelhado, considerada como sagrada (divina) no Egito, pois diziam que quando a ave aparecia
aconteciam as enchentes do Rio Nilo. O boi considerado um animal divino na ndia, pois nesta cultura ele o animal que ara os campos, ajudando
na alimentao dos homens.