O Que É Cultura Visual
O Que É Cultura Visual
O Que É Cultura Visual
www.culturavisual.eu
ARMANDO VILAS-BOAS
Professor de Cultura Visual
e Design Visual no IADE
e investigador da UNIDCOM.
doutorado pela Universidade do Porto, com uma
tese sobre cultura visual
desportiva. As suas reas de
investigao so a cultura
visual e o design visual.
A sua produo escrita
tem-se repartido por livros,
artigos e comunicaes em
congressos. Sobre cultura
visual publicou dois livros:
A Cultura Visual
Desportiva (2006) e O
Estudo da Cultura
Visual Desportiva (2009).
ARMANDO VILAS-BOAS
O que a
Cultura Visual?
Sumrio
Introduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
A funo da teoria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Cultura visual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
Visualidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34
Alfabetos icnicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
Signos alfabticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56
Escopolia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
Produo de signicado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
Literacia visual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
Percepo visual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
O olhar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
A mercantilizao da cultura . . . . . . . . . . . . . . . . . 92
Corpos falantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
O mito da verdade fotogrca . . . . . . . . . . . . . . . . 116
O canto da sereia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120
Bibliograa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125
ndice onomstico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
ndice de guras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131
Introduo
No h muito tempo, o conhecimento era um bem
precioso: no havia disseminao global do conhecimento atravs da Internet e os mass media, como
seu costume, deformavam mais do que informavam.
Os livros eram a fonte primordial de aquisio de conhecimento especializado, mas os circuitos de distribuio estavam geralmente pouco oleados e as obras
eram muitas vezes onerosas. No nosso pas, por falta
de interesse popular as bibliotecas pblicas nunca
foram verdadeiramente fomentadas. Por tudo isto,
o acesso ao conhecimento tendia a ser restrito.
Mesmo depois da implantao global da Internet,
podemos ainda pensar que o acesso informao de
qualidade restrito: quem a tem ou a produz tenta
rentabiliz-la ao mximo. Mas a informao disponibilizada gratuitamente j no s a de fraca qualidade. Com algum risco, pode-se hoje em dia armar
que qualquer pessoa alfabetizada e com um mnimo
de acesso informao (em livro ou na Internet) poder com relativa facilidade informar-se sobre qualquer tipo de assunto. O que no implica que, por
termos acesso a tanta informao, saibamos o que
fazer com ela.
achar necessria outra sistematizao cultural do fenmeno para alm daquela que eles prprios efectuam individualmente. No fundo, a atitude geral
destes prossionais quase se resume noo do senso
comum com que muitas vezes me tenho confrontado:
se cada pessoa tem o dom da viso, para que serve algum sistematizar um fenmeno cuja descodicao
aparece perante os nossos olhos clara como gua?
Em certa medida, o senso comum at tem razo.
De facto, no se pode ensinar cultura visual a pessoas
que colhem uma enormidade de estmulos visuais em
cada dia das suas vidas. Mas ainda que no possamos
dizer-lhes o que elas vem, podemos sensibiliz-las
sobre como ver, guiando-as pela profuso de mensagens visuais quotidianas, na tentativa de desenvolver
um esprito crtico criterioso, caracterstico de cidados plenamente formados. O estudo da cultura visual no ensina, mas conrma. No se adquire s
conhecimento, mas antes reconhecimento.
Se para qualquer cidado esta uma questo de formao cultural, no caso dos prossionais da rea eu
diria mesmo que se trata de uma necessidade de consubstanciao cultural: sobreviver no mercado sempre possvel, mas uma maturao cultural apurada
ser tanto mais ecaz e consistente quanto melhor
conseguirmos sistematizar o panorama visual que
nos rodeia. o incio dessa viagem que este livro pretende instigar cada um a fazer.
As citaes frequentes de outros autores, traduzidas
para portugus e devidamente referenciadas, visam
precisamente indicar fontes alternativas, que complementaro e enriquecero grandemente a abordagem
cultura visual, que este livro apenas introduz.
A FUNO DA TEORIA
H muitas justificaes sobretudo no campo da
filosofia para a necessidade de se teorizar. Walker e Chaplin (p. 58) afirmam que em primeiro
lugar, a teoria crucial e incontornvel, porque
sem teorias e hipteses seramos esmagados por
uma massa de impresses, por quantidades imensas de dados empricos [...] Em segundo lugar, o
discurso verbal e escrito sobre cultura visual contm muitos conceitos e termos especializados/tcnicos que colocam questes de definio, possuem
mltiplos significados e tm histrias de uso. A
teorizao algo de cultural e duas culturas distintas no formulam necessariamente teorias idnticas. Walker e Chaplin entendem que no
possvel dispensarmos a teoria, mas que no ser
por isso que qualquer teoria serve, referindo que
a multidisciplinaridade tpica dos estudos de cultura visual implica que muitos acadmicos adoptem uma atitude eclctica e pragmtica em relao
s teorias pedem emprestados conceitos e mtodos de um espectro de disciplinas (p. 60), sublinhando que as teorias geradas pelos praticantes
devem ser tidas to em linha de conta quanto as
outras, uma vez que, por exemplo em relao
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centram na estrutura interna dos artefactos culturais, enquanto outras so comparativas, colocando
frente a frente espcimes de teor similar. As modalidades de anlise podem ser divididas em dois
gneros estruturantes:
as que se centram no contedo;
as que se centram na forma.
Existem duas fontes principais de contedo: eventos, cenas e pessoas reais (contedos factuais) e
contedos produzidos pela imaginao humana
(contedos ficcionais). A mistura dos dois, no
sendo integralmente real, ter de ser considerada
ao nvel da fico. Esta bipolarizao , desde sempre, controversa, mas tem a virtude de catalogar
todo o tipo de imagens.
Vrios analistas distinguem entre contedo manifesto e contedo latente. O primeiro refere-se representao de objectos facilmente reconhecveis, enquanto o segundo designa os significados
menos imediatos que um objecto possa espoletar.
So, no fundo, a denotao (percepo literal, de
primeira ordem) e a conotao (percepo associativa, de segunda ordem).
Vejamos, de seguida, as modalidades de anlise de
artefactos visuais mais utilizadas:
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Intencionalidade e produo de significado dos sinais (Joly, 2005, pp. 3940). Diagrama do autor.
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CULTURA VISUAL
Importa clarificar a abrangncia do conceito cultura, no mbito deste livro. Sturken & Cartwright
(p. 4) definem cultura como um processo, no
um conjunto fixo de prticas ou interpretaes
[...] um processo fludo e interactivo fundado
em prticas sociais, no somente em imagens,
textos ou interpretaes. Esta definio no parece compadecer-se com estratificaes rgidas de
nveis culturais, no que concordam com Lupton
& Abbott Miller (p. 157), que afirmam que No
podemos simplesmente traar uma linha entre
baixa e alta, ou entre o interior e o exterior da cultura, ou entre as experincias pblicas e privadas
dos mass media. Baixa e alta um padro, uma
concha conceptual, cujo valor se desloca de situao para situao. O que alta num contexto
baixa noutro.
A globalizao cultural uma das caractersticas
do tempo presente, ainda que no seja uma novidade, como refere Alexandre Melo, que caracteriza
o processo de globalizao cultural como uma
tendncia notria da evoluo em curso e no [...]
uma situao final, fechada e totalizada (p. 38).
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O autor acrescenta que A dinmica da globalizao cultural produz, ao mesmo tempo, mais uniformidade e mais diversidade (p. 42), explicando:
A globalizao no um processo de supresso
das diferenas segmentao, hierarquizao
mas sim de reproduo, reestruturao e sobredeterminao dessas mesmas diferenas. um processo dplice de simultnea revelao/anulao
de diferenas, diferenciao/homogeneizao e
democratizao/hegemonizao cultural (p. 39).
Miguel Furones, Worldwide Chief Creative Officer
da Leo Burnett, acredita que estejamos na terceira
gerao da globalizao (sendo a primeira tecnolgica e a segunda econmica): a globalizao dos sentimentos e das emoes, afirmando que A emoo
foi convertida num vrus que navega atravs da
rede (Pincas & Loiseau, p. 313).
Outra marca cultural da contemporaneidade a esteticizao, que Bragana de Miranda (p. 202) define
como a transformao do mundo em imagem, em
aparelho produtor de imagens, que visam um enformar total da matria numa imagem total.
Mario Perniola (p. 32) caracteriza a sociedade actual como sociedade do sentir, afirmando que da
que a nossa poca pode ser definida como esttica:
no por ter uma relao privilegiada e directa
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tura foi outrora sinal distintivo de uma classe pensadora privilegiada, mas actualmente o termo
cultura passou a ser empregue englobando qualquer faceta da vida quotidiana que se relacione
com um determinado contexto social, tornando-se assim um conceito inclusivo que ajuda a explicar e caracterizar as mudanas contemporneas.
Mesmo aceitando a cultura como uma caracterstica transversal a toda a sociedade, persiste ainda
assim a distino, na literatura ou no senso comum, entre vrios nveis de cultura.
Bourdieu afirma que as diversas classes sociais definem outros tantos nveis de gosto, e que a fruio
da arte se origina na vontade das classes mais elevadas de marcarem a distncia em relao aos nveis
inferiores. Walker e Chaplin (p. 157) esclarecem
que o apreo pela arte moderna tende a ser limitado
elite intelectual e que o gosto popular se rege
ainda por ideais renascentistas.
Evidentemente que se trata de uma formulao
global que, como os autores admitem, rude e no
faz justia complexidade da sociedade contempornea. lacunar, no entanto, devido a ignorar as
culturas alternativas, a vanguarda, a contracultura, por ser esttica, por estratificar as pessoas de
acordo com o seu estatuto social e no com as suas
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preferncias, por no tomar em conta a desproporcionalidade mutvel entre as classes, para alm de
outros factores.
Esta estratificao anterior ignora a questo das
transferncias entre nveis culturais (pressupondo que estes existem). Assim, como justificar a euforia colectiva que rodeou a campanha da seleco
portuguesa de futebol no Euro 2008, a qual, em
certa medida, se havia verificado j dois anos
antes, no Mundial da Alemanha e, em 2004, no
Euro portugus? A mobilizao social em torno do
Euro 2008 foi enorme. De tal forma a insistncia
da imprensa e da mquina publicitria se fez sentir, que mesmo quem no se interessava pelo
evento teve de ficar a conhecer o perfil dos nossos
heris, o resultado dos jogos e todos os pormenores dos bastidores da competio.
Estas manifestaes de baixa cultura tornam-se
apetecveis, pela sua amplitude, para os estudos de
cultura visual. O alargamento do espectro que estes
acontecimentos proporcionam, em relao alta
cultura habitualmente estudada e analisada no
passado, imenso e culturalmente revelador. Esta
noo expandida de cultura gera um campo de anlise to vasto que nenhum estudioso consegue
abarc-lo sozinho. Da o surgimento de ramifica-
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Antropologia
Arqueologia
Crtica de Arte
Crtica Literria
Desconstruo
Economia Poltica
Esttica
Estruturalismo
Estudos Culturais
Estudos do Patrimnio
Estudo dos Media
Estudos tnicos
Estudos Fotogrficos
Estudos e Teoria do Cinema
Feminismo
Fenomenologia
Filosofia
Formalismo Russo
Histria e Teoria da Arquitectura
Histria da Arte
Histria do Design
Histria Social
Lingustica
Marxismo
Psicanlise
Psicologia da Percepo
Ps-Estruturalismo
Semitica
Sociologia
Teoria Crtica
Teoria da Recepo
Objecto de
contemplao
ESTUDOS DE
CULTURA VISUAL
Objecto de
estudo
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ria-prima da cultura visual (sendo um desses artefactos o corpo humano), Walker e Chaplin (p. 65)
entendem que a cultura visual se integra no
campo mais vasto da produo cultural, o qual por
seu turno integra um campo de fabricao geral,
associado a uma forma particular e histrica de
produo: a forma capitalista.
Cada retrato que se faa desta rea do conhecimento ser sempre caduco. Na figura da pgina ao
lado podemos observar a constituio do campo da
cultura visual, segundo Walker e Chaplin. Os autores ressalvam que um diagrama mostrando o estado da cultura visual na Europa em 1500 incluiria,
evidentemente, muito menos itens (p. 31).
Pela heresia que parecia configurar contra a cultura verbal, a cultura visual foi desde logo atacada
por defensores da literatura, sobretudo em pases
de crtica fcil, como a Frana e a Inglaterra. Passado o impacto inicial, e assimilada que foi a importncia dos estudos de cultura visual na descodificao da profuso de estmulos visuais com
que a nossa sociedade nos confronta, a disciplina
comeou a assumir a sua vertente mais social e
popular, secundarizando a importncia conferida s artes visuais e alargando o espectro das
suas preocupaes histria social da arte, dos
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negcios e do comrcio em geral. Os factores econmicos, sociais e institucionais tornaram-se tanto mais relevantes para o estudo da cultura visual
quanto mais crescia o seu impacto colectivo, sendo pilares no s da formao da contemporaneidade como tambm da compreenso da mesma.
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VISUALIDADE
A tendncia para uma comunicao cada vez mais
baseada nas imagens (fotogrficas) faz-se sentir
acutilantemente na publicidade. Jonathan Cranin
(Wiedemann, 2005, p. 262) confirma que As revistas esto cheias de anncios de poucas palavras
e grandes imagens e explica porqu: possvel
que as imagens no captem as emoes to bem
quanto as palavras, mas certo que o fazem mais
rapidamente. Assim, medida que a publicidade se
tornou mais emocional tambm a imagem aumentou a sua importncia. O director criativo mundial da McCann vai mais longe e atribui s imagens
um papel fundamental: o facto de a publicidade
impressa depender cada vez mais de imagens arrojadas ajudou a cimentar a importncia das imagens
[] Os leitores passaram a contar com afirmaes
visuais nos seus anncios (ibidem). Mas h tambm quem desconsidere as imagens: o director de
criatividade da Euro rscg de Londres, Gerry Moira,
peremptrio ao classificar o uso de imagens como
chamariz sem contedo: no fundo, no mais do
que uma estratgia tipo tiro e queda, uma espcie
de grafito comercial (ibidem, p. 378), acrescentando que a esmagadora maioria da publicidade tem
falta de qualidade.
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atingir doutra forma [...] As possibilidades ideolgicas de uma linguagem pictrica so evidentes
(pp. 1920). Admitindo que as novas geraes adquiriram j uma forma iconogrfica de comunicar,
o autor afirma que O desvio do uso convencional
do alfabeto como a nossa principal ferramenta de
comunicao desafiou muitas das nossas instituies culturais e aqueles que podemos chamar de
language makers. Artistas, designers, autores,
editores, escolas e universidades, todos tiveram de
reformular a sua abordagem linguagem e encontrar novas formas de falar para uma gerao que
tem uma nova forma de ler (p. 19), sustentando
esta sua convico na constatao de que Num
cenrio ps-moderno onde o mundo do comrcio
e o mundo do design emprestam e trocam ideias
um com o outro, h um indcio evidente de que
tudo isto empurra a nossa cultura visual crescentemente em direco imagem (p. 21).
Ellen Lupton (p. 74) desmente que os cones sejam
um modo de comunicao mais universal do que o
texto, afirmando que estes so fulcrais nos interfaces grficos dos computadores mas sublinhando que
o texto pode frequentemente constituir uma pista
mais especfica e compreensvel do que uma figura
(como o prova a sinalizao de trnsito nos eua):
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es simpticas, nuns hibridismos, e muito pluralismo. Nada que nos salve, nem que nos leve
perdio. Tudo minsculas agitaes que dissimulam algo mais essencial.
Vimos j que a televiso amplificou grandemente o
poder das imagens e, como resultado, a informao
alfabtica foi suplantada por outros tipos de informao simblica e icnica como fora dominante.
Tal como a televiso, os designers de hoje reinventam o quotidiano e constroem novas relaes a partir de amostras do que j existia, usando o software
para criar espaos virtuais alucinognicos, cujas representaes hiper-realistas infalveis esbatem a
fronteira entre a realidade e a fico. Esse poder
est agora tambm na mo dos amadores.
A prov-lo esto as gravaes de imagens feitas com
recurso a telemveis, que ilustram os telejornais
sempre que algo de importante sucede sem que um
operador de cmara profissional esteja no local. O
cidado tornado reprter fica assim empossado
pelo poder que a tecnologia lhe confere (a qual cabe
dentro do bolso). Como Crow refere, A adio de
uma cmara ao telemvel tem tido um gigantesco
efeito na disponibilidade das imagens. Tem-nos
oferecido uma ferramenta para a produo das nossas identidades que tem todos os sinais de criativi-
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tante excitao, que nos leva a privilegiar a emoo do momento e a aceitar tudo o que seja espectacular como vlido.
A proliferao de imagens, causada pela democratizao dos meios tecnolgicos, molda a cultura
visual. Cada indivduo um produtor de imagens,
o que tem obrigado artistas e designers a reequacionarem o seu papel e a sua abordagem visual.
Muitos artistas tm tomado como matria-prima a
pliade de imagens disponvel. Devemos desenvolver um entendimento histrico e crtico das
tecnologias contemporneas. O bombardeamento
dirio de material visual efmero poder vir a diminuir seriamente a nossa capacidade de apreenso e compreenso e corremos o perigo de perder o
deslumbramento esttico. As tecnologias contemporneas esfumam o encantamento com o que
nos rodeia e as pequenas coisas do quotidiano, tornando-nos impacientes. A televiso e a publicidade cada vez mais saturam os nossos sentidos,
emitindo vrios tipos de informao em simultneo. Como consequncia, ou a nossa competncia
visual entra em retrocesso, devido a um esvaziamento da percepo, ou habituar-nos-emos a processar fluxos mais rpidos de imagens, tornando
antiquadas formas anteriores de cultura visual.
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ALFABETOS ICNICOS
Tm existido diferentes tentativas ocidentais de
se estabelecer linguagens visuais (escritas iconogrficas) capazes de eventualmente (ou pretensamente) substiturem a escrita alfabtica tal como
a conhecemos. J no sculo XVII, o filsofo Gottfried Wilhelm von Leibniz sonhou com um sistema de escrita em que as imagens pudessem ser
usadas para descrever todas as comunicaes humanas. Apesar de todos os sistemas deste tipo virem a padecer de insuficiente eficcia, a sua abordagem torna-se consequente no s pelo que os
mesmos revelam da cultura que lhes subjaz, mas
tambm pelas possibilidades que auguram de
efectiva comunicao iconogrfica (atravs da
forma como os seus signos so construdos).
David Crow mostra-se cptico quanto eficcia
destes sistemas: A abordagem lingustica aceite
a de que aos pictogramas falta algo e que esse algo
o som. Os signos so de facto demasiado abertos.
A justificao diz que eles so imprecisos e que
lhes falta claridade e detalhe. A sua interpretao
deixada sensibilidade e ao passado cultural do leitor e consequentemente o seu significado susceptvel de mudar de leitor para leitor (p. 58).
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SIGNOS ALFABTICOS
A partir do incio da dcada de 1990, a tecnologia
digital j estava a ser usada por qualquer utilizador
de computadores como forma de expresso pessoal, e o software de criao e manipulao tipogrfica inaugurou novas capacidades expressivas.
Como afirma Crow, o design tipogrfico tornou-se numa arena para jovens designers se expressarem, manipulando o software para produzir marcas autogrficas altamente pessoais ou criar
constructos conceptuais de linguagem, de um
modo que devia muito ascenso da imagem e ao
crescente interesse na teoria ps-moderna que se
seguiu [...] Um novo plano estava a ser formado
para a tipografia atravs da reviso das relaes no
cerne da linguagem (pp. 2021).
No entanto, havia sido na Inglaterra de finais dos
anos 1970 que a tipografia comeara a ser fortemente questionada na sua aparente rigidez formal, sendo atacada e convertida num instrumento de expressividade pictrica. A responsabilidade foi do movimento Punk e da nova gerao de
designers que a iniciou o seu trabalho tipogrfico.
O carcter efmero que o Punk veio trazer cultura foi um sopro libertador, e nomes como Neville
Brody, Malcolm Garrett, Peter Saville ou Vaughan
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pp. 206207), vemos hoje proliferar a criao tipogrfica mais no sentido do rigor tecnicista do que
em direco experimentao artstica. H, ainda
assim, uma inquestionvel evoluo no trabalho
tipogrfico, e a tecnologia digital pesou decisivamente nesse desenvolvimento de um discurso tipogrfico menos impessoal, mais personalizado:
hoje em dia fcil podermos escolher entre centenas de famlias de tipos possveis para compormos
um livro de texto, tendo cada uma delas no s excelentes caractersticas de legibilidade (e flexibilidade no escalonamento em tamanho), como uma
voz prpria e peculiar.
O que creio que de algum modo se perdeu (apesar
de no se ter desperdiado, porque essa aprendizagem foi incorporada na cultura mainstream) foi o
uso da tipografia como imagem. Ela subsiste, no
mundo globalizado, em nichos como as revistas e os
sites de actividades desportivas radicais como o
surf, o BTT ou o skating, onde esse tipo de linguagem
visual instigado pelo carcter subversivo das actividades. Genericamente, no entanto, a imagem
parece ter ganho ascendente sobre o texto, relegando assim um estudo tipogrfico srio mais para
os meios experimentalistas. Em termos de comunicao de massas, foi curiosamente tambm nos
anos 1990 que anunciantes como a Nike sintetiza-
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Contraste e Manifestao, exerccios tipogrficos acadmicos de Rodrigo Feijo e Joo Gama Campos, 2009.
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ESCOPOFILIA
O voyeurismo um componente importante na
cultura visual de hoje, nomeadamente atravs da
fotografia, pelo seu carcter de representao
fiel da realidade. O fenmeno Big Brother no
de todo novo, na medida em que os seus pressupostos (espreitar a vida dos outros, ansiando nela
ver todos os pecados), se manifestam desde h dcadas em fenmenos como a existncia dos paparazzi, ou, mais recentemente, e com uma validade
cultural conferida por editoras de prestgio, o fenmeno da photo trouve.
O termo refere-se recolha de fotografias encontradas (de preferncia em stios onde se depositem os escolhos annimos, como contentores de
lixo), que so seleccionadas para determinada exposio ou obra impressa por comissrios ou editores imbudos de uma determinada carga cultural
e com interesses conjunturais. Em termos artsticos, o pretexto da actividade o de encontrar imagens que, totalmente descontextualizadas da sua
gnese, remetam inequivocamente para a mesma,
ou, por oposio, permitam leituras plenamente
abertas. Seja qual for o pressuposto, inevitvel
que, no caso de fotografias efectivamente anni-
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PRODUO DE SIGNIFICADO
A cultura visual alicera-se no que vemos. Conhecer as imagens que nos rodeiam significa tambm
alargar as possibilidades de contacto com a realidade; significa ver mais e perceber mais (Munari,
pp. 1920). Ou, como afirmou o dramaturgo florentino Feo Balcari em 1449: O olho a primeira
das portas / por onde o esprito pode aprender e
provar (citado por Le Goff & Truong, p. 155).
Atentemos na fotografia seguinte: o que vemos l
representado?
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A resposta mais provvel ser: rvores. Ou arvoredo. Ou floresta, ou algo similar. Pelo menos esta
ser a interpretao, normalmente expectvel, da
pessoa urbana e informada que se supe estar a ler
este livro. Nenhuma destas descries estar factualmente errada. No entanto, assim como uma
fotografia de um relvado de futebol no nos mostra um jardim mas sim um recinto de jogo, um observador conhecedor faria uma descrio precisa
da fotografia e, em vez de englobar todas as rvores sob um mesmo epteto, nome-las-ia uma por
uma, como quem indica o nome dos seus parentes
num retrato familiar.
A cultura visual no consiste s no que vemos, mas
tambm no que sabemos. Ver algo implica descodificar esse algo, o que fazemos contextualizando-o.
Esse contexto proporcionado pelo nosso conhecimento prvio: como dizia Bruno Munari, Cada
um v aquilo que sabe (p. 19). Assim, a nossa cultura visual constri-se com base no s na nossa
capacidade de ver, mas tambm apoiando-se no
nosso saber. Na nossa mente, os estmulos visuais
geram uma imagem mental, a qual ou tem origem
no universo visual ou para ele remete. O conceito
subjacente o de que a cultura visual pode ser um
processo mais cultural e menos visual, ou seja,
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pode ser mais consequncia de um enquadramento cultural do que resultado directo dos estmulos
visuais que lhe do corpo. Se, num determinado
contexto, virmos a cor vermelha (ou simplesmente a ouvirmos ser pronunciada ou pensarmos nela),
poderemos associ-la ao Sport Lisboa e Benfica.
Esta uma imagem mental, resultante da nossa
cultura. No entanto, vermelho por si s no um
significado possvel do SL Benfica, mas somente
um estmulo cromtico (portanto, da ordem do visual) que remete para o clube.
Daqui decorre que uma parte importante dos estudos de cultura visual recai sobre os aspectos estritamente culturais (a percentagem em que isso
sucede varia consoante os autores, dependendo da
sua formao, sensibilidade e interesses). A questo relevante neste ponto acaba por ser a tradicional dicotomia forma/contedo, na qual se v a
forma e se conhece o contedo. A cultura visual
mais do que um conjunto de formas visveis: um
processo que conjuga forma e contedo e cujo carcter ora remete mais para a ordem do visual, ora
para o cultural, ora para ambos.
Sturken & Cartwright (p. 2) entendem que importante considerar a cultura visual como um
todo complexo e ricamente variado por uma razo
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IMAGEM
Informao em bruto
O significado no intrnseco,
mas antes produzido no acto
CONTEXTO
Panorama cultural
Influencia a imagem e a
percepo do observador
OBSERVADOR
Viso, memria e emoo
Projecta-se na imagem mas
tambm instrudo por ela
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LITERACIA VISUAL
Aparentemente, a noo de ler uma imagem poder parecer desadequada: a leitura habitualmente
pressupe a interpretao de uma sequncia de
signos alfabticos para a obteno de significado,
e tradicionalmente acreditamos abarcar toda uma
imagem com um s olhar, o que a tornaria no legvel. Porm, a banda desenhada, a fotonovela, o
filme ou o diaporama, solicitam um processo mental temporal semelhante leitura de um texto, e
mesmo uma imagem fixa constri o seu significado s depois de um trajecto do olhar pela mesma, numa sucesso de esgares que acumulam a
descodificao dos diferentes signos visuais que a
compem. A leitura linear aqui dispensada, porque as imagens podem apresentar ligaes espaciais simultneas em qualquer direco.
Kress & van Leeuwen entendem que a comunicao visual est a tornar-se cada vez menos o domnio de especialistas e cada vez mais crucial nos
domnios da comunicao pblica. Inevitavelmente, isto conduzir a novas e mais regras e a
um ensino normativo mais formal. No ser visualmente letrado comear a suscitar sanes
sociais. A literacia visual comear a ser uma
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PERCEPO VISUAL
Jacques Aumont (p. 241), apesar de admitir que
Podemos por vezes at ter a impresso na nossa
vida diria de que as imagens nos invadiram, defende que este sentimento nos impede de reconhecer que esta proliferao de imagens s um
epifenmeno de uma convulso mais profunda.
Aumont esclarece que ao longo dos sculos o estatuto das imagens se tem alterado de espiritual
para visual, ou seja, hoje as imagens perderam o
poder de transcendncia e foram reduzidas a simples registos (ainda que expressivos) de aparncias: Hoje em dia, a multiplicao massiva de
imagens pode parecer assinalar um retorno da
imagem, mas a nossa civilizao permanece, quer
gostemos quer no, uma civilizao de linguagem. Muitas imagens so ricas em efeito e pobres
em sentido: Enquanto o sentido um produto do
sistema cognitivo, o efeito mais vivenciado
como uma transformao de estado sofrida por
um sujeito: o primeiro activo, o segundo passivo (Vandendorpe, p. 79).
A rotina de contemplao que a imparvel proliferao de imagens acarreta uma de enorme velocidade e insacivel apetite, o que faz com que os
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fotgrafos considerem natural apresentar centenas de imagens sobre um mesmo assunto, passando o nus da triagem para o observador, na
convico de que este no s no se importa de ser
inundado com imagens como tambm o deseja, de
modo a poder exercer o seu olhar predador. Os fceis meios de divulgao electrnica, imediatos e
quase grtis, como galerias on-line, e-mail, telemvel, instant messengers, entre outros, facilitam
a tarefa e estimulam emissores e receptores.
No deixa de ser intrigante como a comercializao da msica, a mais abstracta das artes, depende
hoje em dia tanto das imagens que lhe conferem
visibilidade. Na indstria Pop, sobretudo, os videoclips so instrumentos simultaneamente de visualizao e de promoo. So declaraes de estilo
que, para Sturken & Cartwright, representam
uma afirmao primordial do estilo ps-moderno,
com a sua mistura de elementos narrativos variados, muitas vezes desconexos, as suas combinaes de diferentes tipos de imagens e o seu estatuto simultaneamente de anncios publicitrios
e textos televisivos (p. 259).
Um tero do nosso crebro dedicado ao processamento de estmulos visuais, que representam
70% da informao que nos chega do exterior
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(Walker & Chaplin, pp. 1820). Este indicador d-nos a medida da importncia que o nosso organismo atribui comunicao visual. Sabendo isso,
artistas e designers tm adquirido conhecimentos
especficos sobre o funcionamento da viso e do
processamento dos sinais visuais, e muitos produtos visuais tm reflectido esse estudo. O carcter
visual do nosso imaginrio, no entanto, extrapola
largamente o mecanismo visual: h uma imensido de imagens mentais que se formam no crebro sem que tenham origem num estmulo visual
directo.
Bragana de Miranda (p. 81) define o imaginrio do
seguinte modo: De forma ainda preliminar e, de
algum modo, brutal, diremos que imaginrio o
arquivo das imagens e dos procedimentos da sua
agilizao, tendo a ver com a transformao incorporal do existente, ou seja, com o facto de que,
para alm do fabrico de objectos ou de sujeitos, se
fabricam relaes, com que se ligam e desligam
os fragmentos que mobilam o mundo, que povoam a existncia. o caso dos sonhos e das alucinaes, mas tambm da memria e da imaginao.
Da que existam noes populares contraditrias
como ver para crer (a viso no engana) e as aparncias iludem (a viso engana).
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Nenhum destes extractos de sabedoria popular inteiramente verdadeiro. Tanto assim, que o mecanismo da viso est ancorado num processo
psicolgico: como Walker & Chaplin apontam, a
viso condicionada pelos vrios interesses e desejos do observador e pelas relaes sociais existentes
entre este e o observado (p. 22). Os autores citam,
como exemplo, as diferentes formas pelas quais
uma jovem camponesa (que se ocupasse do gado na
Inglaterra de finais do sculo XIX) teria sido percepcionada por diferentes observadores, como turistas,
antroplogos, o pintor Paul Gauguin, etnlogos, o
seu apaixonado, os seus pais, os amigos, o empregador e os colegas de trabalho. E, se neste caso de viso
no mediada (o termo com que alguns autores designam a recepo de comunicao no intencional), poderia haver tantas interpretaes da
camponesa quantos os observadores, imagine-se a
aco que teria uma viso no mediada de algum
como Paul Gauguin, ou ainda Vincent Van Gogh.
Se h pouco mais de 100 anos a observao directa
de uma camponesa ainda era fcil, tal como era
fcil ter-se um conhecimento vasto do trabalho do
campo, hoje em dia uma tal viso s se torna possvel, em muitas urbes do planeta, com a intermediao dos mass media, os quais nos moldam cada
vez mais a percepo do mundo real.
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O OLHAR
Talvez somente as imagens de ns mesmos num espelho estejam esvaziadas do potencial voyeurista,
na medida em que acusam a nossa prpria presena
e o nosso envolvimento. Mas, como referem Walker & Chaplin, sempre que encontramos um olho
numa imagem ou filme sentimos um efeito de espelho e somos lembrados que os nossos prprios
olhos esto empenhados no acto de olhar (p. 104).
Da a importncia que o olhar dos retratados possui:
na contemplao de uma imagem sentimos que o
mesmo se dirige a ns, e s a ns, e podemos ainda
pensar narcisicamente que aquele o olhar que devolvemos a ns mesmos, o que nos conferiria
algum poder sobre o personagem retratado.
Os olhares domesticados so o prato forte nas imagens que pretendem cativar-nos, seja para nos oferecer a contemplao de uma mulher em biquni
numa revista ou para nos convencer a comprar um
novo dentfrico. Como sucede em muitos anncios
sensuais, uma mulher que abraada por um
homem no olha para ele mas para o observador,
como que dizendo a ti que eu prefiro. A programao televisiva est cheia de olhares domesticados, que so aqueles com que os(as) apresentado-
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afirma-se na sua individualidade e questiona frontalmente a nossa condio de observadores. Confrontados com ele, ns prprios passamos a ser
postos em causa, e um profundo incmodo ou um
intenso fascnio podero surgir. Como o resultado
inseguro, actividades de seduo como a moda e a
publicidade preferem no arriscar e adoptam olhares domesticados. O mesmo j no sucede na arte,
onde a comoo gerada por pinturas como Olympia
(1863), de Manet, reside precisamente no facto de
uma personagem neste caso, a principal e que
deu nome ao quadro (uma mulher nua deitada)
nos contemplar frontalmente com um olhar rebelde, um olhar que revela uma postura de inconformidade com a situao passiva de modelo dcil
destinada ao agrado ertico dos observadores masculinos. No caso de Olympia, a mulher parece querer deixar bem claro que encara a sua profisso
como um ofcio mundano, sem emotividade, e que
se no o transmite pela pose expressa-o pelo olhar.
No limite extremo do olhar rebelde (que no se importa com o que pensamos dele) encontramos o
olhar imperativo, aquele tipo de olhar que se impe
sobre ns vigilantemente. o caso dos retratos de
ditadores, massivamente produzidos e distribudos
por todos os edifcios pblicos e lares, e que Fou-
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1. O olhar de
artistas e fotgrafos e suas
cmaras, em
direco ao
motivo ou
cena a serem
registados
2. Os olhares
trocados pelos
personagens
retratados
dentro das fotograas ou
lmes
3. O olhar do
espectador
em direco
imagem
4. Os olhares
trocados
entre os personagens retratados e os
espectadores
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91
A MERCANTILIZAO DA CULTURA
A cultura visual baseia-se na existncia de artefactos visuais, os quais podem ir da materialidade de
um automvel at imaterialidade de um spot de
vdeo. A avaliao de artefactos visuais uma
componente importante na cultura visual, no s
pela parte dos analistas, mas tambm (e sobretudo)
pela parte do pblico que usufrui desses artefactos
visuais. A avaliao molda toda a produo cultural (objectos mal recebidos so descartados pelos
seus produtores), definindo a mediania que a maioria do pblico aceita mais facilmente. No obstante, h diferentes tipos de valor, de seguida explicados por Walker & Chaplin (p. 165):
valor artstico: refere-se ao apreo do valor qualitativo, ao nvel da qualidade esttica e do contedo significante;
valor de uso: avaliao da performance funcional de um objecto ou da funo de um artefacto
imaterial (decorativa, simblica, memorial,
ideolgica ou poltica);
valor pessoal ou sentimental: medida do papel
desempenhado na vida privada, biogrfica ou
emotiva de um indivduo;
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valor monetrio ou de troca: clculo extremamente varivel, que reflecte o preo que uma
quantidade de indivduos estar disposta a
pagar pelo objecto.
Este ltimo valor o mais mundano de todos, mas
eventualmente o mais pragmtico, e reflecte a influncia dos trs anteriores. Provas da variabilidade do valor monetrio de um objecto, edifcio ou
artefacto cultural abundam, e no se passa muito
tempo sem que mais uma obra de arte atinja um
novo recorde num leilo, marcando o paradigma da
relao objectividade/subjectividade na fixao de
preos, naquele que ser eventualmente o tema
comercial mais subjectivo de todos a arte. Walker & Chaplin referem Andy Warhol, que, segundo
eles, apesar de ter sido influente e significativo, produzia pinturas e filmes de fraca qualidade (p. 167).
Mas poderamos acrescentar um exemplo como o
de Van Gogh, que, sendo um pintor singular, s obteve reconhecimento pstumo (o que uma das
perversidades do funcionamento da mquina crtica que avalia o valor artstico, o qual serve de base
para o clculo do valor monetrio).
Os artefactos culturais assim criados podero facilmente inserir-se num sistema de valorao artstica, adquirindo o estatuto de obras de arte,
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pelo acesso generalizado aos meios de comunicao social, o que democratizou a cultura, reforando o imaginrio social colectivo e tornando-o
mutvel velocidade da televiso ou da Internet.
A imediaticidade e a disponibilidade dos meios de
comunicao visual de massas tm duas facetas
perversas: tendem a homogeneizar o gosto e a tornar a procura dependente da oferta. Por exemplo,
como deixa implcito o produtor cinematogrfico
Lawrence Bender, a indstria cinematogrfica,
molda o gosto popular de acordo com objectivos
de maior popularidade: A forma como os comits
[da indstria] fazem filmes antecipando o que as
audincias desejam ver. No h nenhuma pessoa
l com uma paixo por filmes dizendo o que o
filme deveria ser, eles dizem habitualmente
penso que precisamos de um final acelerado aqui,
um pouco de interesse amoroso ali. deixar o
marketing criar o filme, em vez de ser o filme a
criar o marketing (citado por Walker & Chaplin,
p. 188). Mero entretenimento significa consumo
passivo, o que resulta numa perda de integridade
ideolgica.
Vivemos num mundo fortemente consumista e
uma parte substancial da nossa cultura visual est
imbuda de interesses comerciais. Cada vez mais o
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CORPOS FALANTES
O nosso corpo sempre foi um elemento primordial na comunicao interpessoal e no estabelecimento do nosso lugar na sociedade. A cultura
visual reflecte essa mesma realidade, conferindo
um lugar de destaque representao de pessoas.
Nesse sentido, a contemporaneidade invade-nos o
olhar com uma profuso de rostos e corpos, muitos deles modelares, que servem interesses comerciais e promovem esteretipos culturais amplamente difundidos.
Se falarmos por exemplo de Gisele Bndchen
como sendo um corpo modelar, no poderemos ao
mesmo tempo esquecer-nos de que h muitas outras Giseles, que s no so consideradas modelares porque vivem no anonimato, sem os holofotes da ribalta. O inverso tambm verdade. Poderia elencar dezenas de casos conhecidos de fisionomias comuns e triviais com projeco planetria, como a cantora e empresria Jennifer Lopez,
que so premiados precisamente pela sua vulgaridade, ou seja, por representarem fielmente um
certo esteretipo que agrada no momento a um
determinado pblico. Hoje em dia no podemos
falar portanto num culto nico de figuras verda-
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quarto da casa faz com que cada membro da famlia veja, sozinho, os programas de que mais gosta.
A televiso, outrora elemento aglutinador, comea a transformar-se, como forma de responder
perda de predominncia, a qual vai transitando
para a Internet e os suportes videogrficos.
Este contexto civilizacional leva a que cada um de
ns se assuma como uma entidade destacada das
restantes. A forma mais evidente dessa manifestao o nosso corpo. Nesse mbito, muito se tem
escrito nos ltimos anos, e uma rea para a qual
converge uma multiplicidade de saberes, desde a
medicina moda, passando pelas artes e a filosofia. Sendo uma manifestao visual da nossa unicidade, o corpo encarado como um bem pessoal
precioso e como carto de visita. medida que a
precariedade do emprego aumenta em toda a
parte e que, cada vez mais, todos os profissionais
se vo tornando trabalhadores por conta prpria
(ainda que trabalhem dentro de organizaes),
natural que a preocupao individual com a aparncia aumente, porque disso depende a nossa
aceitao social.
Nos tempos comunitrios de antigamente a situao era diferente. No s os esteretipos culturais
ligados ao corpo se faziam sentir com menos in-
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rar-se com uma atraco fsica que poder ser inatingvel (idem, p. 36). O poder normativo destas
imagens imenso, porque pertencem a todo um
sistema de imagens semelhantes, veiculadas pela
televiso e publicidade e isso aumenta o seu semblante de normalidade (idem, p. 37).
Para Poynor, torna-se cada vez mais claro que os
seres humanos, na sua componente biolgica, sero o expoente mximo do design: a remodelao
pessoal tornou-se a nossa mais fundamental tarefa
de design (ibidem, p. 187).
Otl Aicher afirmou (p. 38): Antes dizia-se: saber
poder. Muito antes pde dizer-se: poder fazer
poder. Hoje poder-se- dizer: a beleza poder. S
quem oferece beleza tem esperana de dominar o
mercado. S quem adopta uma existncia esttica
tem qualidades de dirigente.
Definindo o conceito de beleza, Eco f-lo assentar
essencialmente numa prtica de contemplao:
belo aquilo que, se fosse nosso, nos faria felizes,
mas que continua a s-lo, apesar de pertencer a
qualquer outro (p. 10). Segundo o autor, a histria da beleza feita documentando-nos em obras
de arte, na medida em que foram os artistas, os
poetas, os romancistas que nos contaram atravs
dos sculos o que consideravam belo e nos deixa-
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ram exemplos disso (idem). Mas o prprio admite que medida que nos aproximamos da modernidade, poderemos dispor tambm de documentos que no tm fins artsticos, de mero entretenimento, de promoo comercial ou de satisfao de pulses erticas, como imagens que nos
chegam do cinema de massas, da televiso e da publicidade (p. 12), acrescentando que no s obras
de arte reconhecidas como tambm objectos sem
valor artstico so vlidos para definir o ideal de
beleza num dado momento.
Sobre a eterna questo da preferncia por corpos
femininos como veculo de seduo, John Berger
(pp. 4546) afirma que a presena social da mulher diferente em gnero da de um homem. A
presena do homem depende da promessa de
poder que ele personifica [...] O poder prometido
pode ser moral, fsico, temperamental, econmico, social, sexual mas o seu objecto sempre
exterior ao homem. A presena de um homem indicia o que ele capaz de lhe fazer a si ou de fazer
por si. A sua presena pode ser forjada, no sentido
em que ele possa fingir ser capaz do que no .
Mas a presena sempre em face de um poder que
ele exerce sobre os outros. Ao invs, a presena de
uma mulher expressa a sua atitude consigo
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casos em funo de imperativos comerciais) e servem para contar histrias, entreter e excitar
(Wiedemann, 2001, p. 10). Apesar de no passarem
de um conjunto de pixels, podemos considerar
estas imagens de sntese como uma representao
genuna das idealizaes do corpo, em virtude de
serem moldadas com uma facilidade de manipulao que nenhuma outra tecnologia permite.
Sturken & Cartwright encaram as tecnologias visuais como sendo um produto de contextos sociais
e histricos especficos (p. 116). A tecnologia imagtica crucial na nossa experincia da cultura visual, uma vez que atravs dela que recebemos
uma grande percentagem das imagens.
A tecnologia relevante na forma atravs da qual
actividades criativas, como a fotografia, contribuem para a cultura visual: O surgimento da imagtica electrnica no final do sculo XX, com a
fotografia digital, a Internet e a World Wide Web,
alterou radicalmente a distribuio e o significado
social das imagens. Da que, tanto as convenes
imagticas como os conceitos do visual se tenham
alterado atravs da histria (idem, p. 109).
Por oposio virtualidade dos corpos digitais, o
corpo desportivo uma referncia na contemporaneidade. A virilidade fsica um dos principais
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mos encontrar neles, mesmo a olho nu (uma anlise especializada revelaria muito mais) a consequncia directa do tipo de solicitaes musculares e nutrio a que os mesmos esto sujeitos (de
forma dinmica e varivel).
A sociedade procede da mesma forma, ao instigar
ideais de beleza que muitos corpos se esforam
por cumprir. A moda sujeita os seus modelos e manequins a uma preocupao fsica similar dos
atletas de alta competio, s que no sentido visual e no do rendimento fsico.
Com a proliferao das migraes entre desporto,
moda e media, no ser surpreendente que possam
surgir corpos hbridos, que misturem com sucesso a
componente visual e a do rendimento fsico, estando igualmente vontade a saltar vara ou a desfilar
numa passerelle. Tudo depender da capacidade de
o mundo dos media aproximar o seu cnone esttico aos corpos desportivos, e destes trabalharem a
sua modelao menos no sentido do rendimento fsico e mais na direco dos paradigmas de beleza.
Alguns atletas possuem, nos dias de hoje, a aura de
vedetas cinematogrficas. Na sua obra In Praise of
Athletic Beauty, Hans Ulrich Gumbrecht, um acadmico que combina a reflexo sobre o desporto
com uma paixo por vedetas desportivas, escla-
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das fotografias, defendendo que se a imagem fotogrfica credvel por ser completamente objectiva, mas que s a consideramos assim devido a
uma ideologia artstica que atribui fotografia a
funo de representar e em ltima anlise expressar o real e nada mais.
A aura de objectividade maquinal cola-se s imagens mecnicas e electrnicas, devido herana da
crena. Esta combinao do subjectivo e do objectivo uma tenso central nas imagens geradas por
cmaras (Sturken & Cartwright, p. 16), sendo pior
na imagem digital, a qual para as autoras desgastou
a crena popular na veracidade da imagem (p. 20).
Acrescentam que um paradoxo que [...] muito do
poder da fotografia ainda resida na crena partilhada de que as fotografias so registos verdicos de
acontecimentos (p. 17).
Martine Joly (2003, p. 123) prope como explicao da expectativa de verdade das imagens fotogrficas o desejo contagiante de tomar qualquer
imagem por um vestgio daquilo que ela representa, qualquer coisa de consubstancial com o que
ela representa, mais do que como imitao. Devendo o visual, como colheita, ou amostra do
mundo, ser absolutamente credvel, ou seja, verdadeiro, e acrescenta que Uma imagem , com
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O CANTO DA SEREIA
A publicidade a cultura da sociedade de consumo (Berger, p. 139). O autor acrescenta: A publicidade torna-se numa espcie de sistema filosfico. Ela explica tudo nos seus prprios termos.
Ela interpreta o mundo (idem, p. 149).
Apesar de a funo da publicidade ser, segundo
Steven Heller (2006, p. 6), vender, o autor aceita
que em certos momentos da histria, devido
fora criativa de pessoas orientadas e brilhantemente artsticas, a publicidade tem definido a Gestalt cultural to apuradamente quanto a msica, o
cinema e a literatura.
Jelly Halm, professor de publicidade e ex-director
criativo da agncia de publicidade Wieden+Kennedy, explica a funo da publicidade: O objectivo da publicidade, claro, faz-lo querer algo.
Criar desejo. Isso comea tornando-o infeliz com o
que actualmente tem ou no tem. A publicidade
alarga o fosso entre o que voc tem e o que voc
deseja. Querer comprar algo , ento, uma resposta aos sentimentos de insatisfao, inveja e
splica (cit. por Poynor, 2001, pp. 146147). Para
Baudrillard, a profuso de objectos o trao descritivo mais evidente da nossa civilizao (p. 16).
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o e suas causas [...] ou ele vive continuamente sujeito a uma inveja que, junto com a sua sensao de
impotncia, se dissolve em fantasias recorrentes.
isto que torna possvel entender porque que a publicidade permanece credvel (p. 148).
A publicidade hoje em dia uma linguagem autnoma. No s a publicidade possui cdigos audiovisuais especficos e endgenos, como, pelo seu
historial, criou j um universo de referncias culturais que servem de bitola ao publicitrio e de estmulo audincia. A acumulao destes estmulos de tal forma grande (sobretudo em pases
como os EUA e o Japo), que ela constitui parte
fundamental do imaginrio colectivo e individual:
a criatividade publicitria ilumina a nossa vida
com histrias, que apesar de serem muitas vezes
comerciais, ainda tm o poder de nos tocar e tornar-nos conscientes do mundo nossa volta
(Wiedemann, 2005, p. 639).
No obstante, a publicidade no criou um pblico
global nico. Ao invs, os anncios so dirigidos a
faixas da populao, j no (s) numa base geogrfica, mas divididas por idade, nvel cultural, gnero
e classe. Se outrora a abrangncia colectiva era o fio
condutor da histria da publicidade, hoje em dia a
situao alterou-se profundamente e o marketing
dita que se apontem baterias ao indivduo.
123
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Bibliograa
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Colnia: Taschen.
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128
129
ndice onomstico
Afonso, Pedro 16
Aicher, Otl 52, 54
Alcobia, Isabel 16
Balcari, Feo 67
bci 51
Bender, Lawrence 97
Big Brother 60
Bliss 51
Blitz, Karl Kasier 51
Brody, Neville 56
Bndchen, Gisele 101
Campos, Joo Gama 59
Costa, Joana 119
Cranin, Jonathan 34
Dias, Nuno 80
Dreamstime.com 91
eua 37, 123
Euro 2004 29
Euro 2008 29
Euro rscg 34
Europa 32
Faisco, Joaquina 16
Feijo, Rodrigo 59
First Things First Manifesto 99
Frana 25, 32
Frutiger, Adrian 52
Furones, Miguel 22
Garrett, Malcolm 56
Gauguin, Paul 84
Genesis 52
130
ndice de guras
Olympia 89
onu 53
Oxford 49
Panofsky, Erwin 13, 14
Paquete, Ana 16
Partages 52
Peirce, Charles S. 18, 19
Pop 82, 95
Punk 56
Reading University 50
Rgo, Isabel 86
Saville, Peter 56
Sebeok, Thomas 18
sl Benfica 69
Starck, Philippe 99
van Gogh, Vincent 84, 93
Vilas-Boas, Armando 1, 4,
47, 66, 67, 74, 90, 100, 115, 132
von Leibniz, Gottfried
Wilhelm 48
Warhol, Andy 93
Wieden + Kennedy 120
131
Agradeo a cedncia
de imagens aos alunos
Ana Paquete (iade, 0910)
Bruno Gis (ismt, 0910)
Elsa Incio (iade, 0910)
Isabel Alcobia (iade, 0910)
Joana Costa (ipca, 0708)
Joo G. Campos (ipca, 0809)
Joaquina Faisco (iade, 0910)
Nuno Dias (ipca, 0809)
Pedro Afonso (iade, 0910)
Raquel Neves (iade, 0910)
Rodrigo Feijo (ismt, 0910)
www.culturavisual.eu
ARMANDO VILAS-BOAS
Professor de Cultura Visual
e Design Visual no IADE
e investigador da UNIDCOM.
doutorado pela Universidade do Porto, com uma
tese sobre cultura visual
desportiva. As suas reas de
investigao so a cultura
visual e o design visual.
A sua produo escrita
tem-se repartido por livros,
artigos e comunicaes em
congressos. Sobre cultura
visual publicou dois livros:
A Cultura Visual
Desportiva (2006) e O
Estudo da Cultura
Visual Desportiva (2009).
ARMANDO VILAS-BOAS
O que a
Cultura Visual?