O Estatuto Da Psicologia - Vladimir Safatle
O Estatuto Da Psicologia - Vladimir Safatle
O Estatuto Da Psicologia - Vladimir Safatle
O estatuto da psicologia
2007 (12 aulas)
Curso ministrado no
Instituto de Psicologia
Universidade de So Paulo
O estatuto da psicologia
Aula 1
Uma questo de mtodo e de objeto
inevitvel que, ao propor-se como teoria geral da conduta, a psicologia faa sua alguma
idia de homem. Faz-se necessrio ento permitir filosofia perguntar psicologia de onde
ela retira tal idia e se no seria, no fundo, de alguma filosofia 1. Esta questo de mtodo
enunciada por Georges Canguilhem em um texto clebre a respeito dos fundamentos
epistemolgicos da psicologia servir de base para o desenvolvimento de nosso curso.
Trata-se aqui de apresentar uma certa tradio de reflexes sobre o estatuto
epistmico da psicologia, da psicanlise e das cincias mdicas que se desenvolveu em solo
francs principalmente entre os anos vinte e sessenta do sculo passado. Tal tradio,
embora no seja, no sentido forte do termo, uma Escola (j que era composta por
pensadores cujos programas de pesquisa eram bastante autnomos entre si), foi marcada
por uma partilha de problemas e de dispositivos de crtica determinantes para a constituio
de um modo particular de encaminhamento de questes derivadas da tentativa em
fundamentar prticas clnicas. Pois no interior desta tradio encontraremos a defesa de que
as prticas clnicas, principalmente aquelas prprias aos fatos psicolgicos, seriam
dependentes, de maneira fundamental, de decises prvias e muitas vezes no tematizadas a
respeito dos padres de racionalidade da observao, da interveno teraputica e,
principalmente, da definio do objeto prprio psicologia. Neste sentido, seguindo a
afirmao de Canguilhem, a reflexo epistmica sobre a psicologia seria, necessariamente,
uma reflexo sobre a maneira com que uma certa antropologia filosfica guiaria, de forma
insidiosa, a racionalidade da direo do tratamento. Como se a psicologia fosse, a todo
momento, remetida a uma raiz metafsica a respeito da qual ela no seria capaz de se livrar.
Raiz metafsica que nos colocaria diante da necessidade em responder uma pergunta maior,
a saber: uma prtica clnica pode abstrair de pr, em seu horizonte de racionalidade, uma
concepo de sujeito que se desdobre em uma teoria da conduta racional, base da definio
do que se define como patologia mental ?
A tradio de reflexo a qual me refiro nunca deixou pois de colocar, clnica dos
fatos psicolgicos, duas questes maiores: o que fundamenta seu mtodo de observao,de
interveno e o que particulariza seu objeto, ou seja, em que condies podemos dizer
estarmos diante de um fato psicolgico que pode ser reportado a um sujeito? Uma questo
de mtodo e uma questo vinculada ao estatuto de seus objetos que converge para um
problema central que guiar o desenvolvimento do nosso curso, a saber; qual o estatuto da
objetividade dos fenmenos subjetivos? Seria ele dependente da objetividade prpria aos
fenmenos fsicos e orgnicos? Ou ainda: h, de fato, algo como fenmenos subjetivos
ou eles nada mais so do que fenmenos orgnicos descritos em um vocabulrio
inflacionado do ponto de vista metafsico? Como dir Michel Foucault, na primeira frase
que abre seu primeiro livro, Doena mental e psicologia: Duas questes se colocam: sob
quais condies pode-se falar de doena no domnio psicolgico? Quais relaes possvel
1
confusa de nomear estados cerebrais e processos fsicos, o que, no limite, nos levaria a
questionar a prpria realidade de uma noo como a de conscincia. Limite este que foi
transposto por alguns nomes maiores da filosofia anglo-sax da mente, como Daniel
Dennet.
Mas, para esta tradio de reflexo sobre a clnica dos fatos psicolgicos que ser
nosso objeto de estudos, tratava-se de recuperar uma perspectiva monista na definio dos
fenmenos vinculados subjetividade, mas sem que isto implicasse em reduo
materialista. No entanto, viabilizar tal monismo no-reducionista significava problematizar
a prpria concepo de sujeito pressuposto pelas prticas clnicas a fim de se livrar do peso
do dualismo. Por outro lado, tratava-se tambm de determinar a especificidade das
determinaes causais em operao na constituio dos fatos psicolgicos, em especial na
definio do que estaria em jogo em uma doena mental.
Assim, duas vias complementares se abriam para a reflexo epistmica sobre a
clnica. A primeira dizia respeito crtica das figuras do sujeito (ou dos modos de negao
do sujeito) pressupostas pelos mtodos e direes do tratamento de prticas clnicas
hegemnicas. Crtica que poderia chegar ao desvelamento de como, atravs da
pressuposio de certas estruturas da subjetividade como horizonte da clnica, a psicologia
mostrava que sua essncia era ser uma prtica disciplinar que visava, na verdade, formar
subjetividades atravs da constituio de quadros de patologias Maneira de submeter a
reflexo epistemolgica a uma crtica do poder, crtica que visava, principalmente,
demonstrar como as exigncias de racionalidade podem ser invertidas em processos de
dominao. Michel Foucault, principalmente atravs de seus trabalhos que visavam
demonstrar como a razo determinava e era solidria do seu Outro (a loucura) um nome
maior desta tendncia. Lembremos, por exemplo, do sentido de sua afirmao: H uma
boa razo para que a psicologia nunca possa dominar a loucura; que a psicologia s foi
possvel no nosso mundo uma vez dominada a loucura e j excluda do drama 7. Ou seja, a
experincia trgica e dramtica da loucura, experincia no interior da qual a prpria partilha
entre razo e loucura advm nebulosa, no objeto da psicologia porque a psicologia
solidria de uma determinao da loucura atravs de processos de constituio de estruturas
nosogrficas que so, na verdade, fenmenos da ordem das prticas de dominao. Como
se a verdadeira mola do poder no estivesse diretamente vinculada determinao positiva
de padres de conduta, mas gesto dos modos de ruptura da norma racional. Uma
perspectiva que, de uma certa forma, encontramos tambm em Jacques Lacan, quando este
afirma: A psicologia veculo de ideais: nela, a psique no representa mais do que o
patrocnio que a faz qualificar de acadmica. O ideal servo da sociedade 8. Ideal que se
manifesta mais atravs da determinao do patolgico do que atravs da enunciao da
norma.
Tais crticas a respeito daquilo que forneceria os fundamentos de decises clnicas
sobre perspectivas de orientao de dispositivos de interveno devem, no entanto, abrir
espao para um conceito positivo de razo que fornecer fundamentos renovados para a
clnica dos fatos psicolgicos. Veremos como cada um dos nomes que estudaremos tentou
dar conta desta questo, seja negando a prpria autonomia da clnica atravs de um recurso
a alguma forma de guinada tica (Foucault), seja atravs da reconstruo da clnica sobre
novas bases fornecidas pela psicanlise (Lacan), por uma reavaliao da medicina
(Canguilhem) ou por gneros de hermenutica (Politzer).
7
8
Estrutura do curso
A fim de viabilizar tais objetivos, o curso ser dividido em quatro mdulos. Cada
mdulo, ir durar de 3 a 5 aulas e ser estruturado a partir de um texto-base a ser
comentado; texto cuja leitura obrigatria. Textos suplementares sero indicados para
fornecer suportes de compreenso. Os mdulos esto dispostos em ordem cronolgica, isto
a fim de permitir a identificao das matrizes de constituio da tradio epistemolgica
que estudaremos.
O primeiro mdulo dedicado a Georges Politzer e o texto-base ser Crtica dos
fundamentos da psicologia. Como texto de apoio, sero disponibilizados Georges Politzer:
sessenta anos da Crtica dos fundamentos da psicologia, de Bento Prado Jnior e dois
captulos de O conceito de mente, de Gilbert Ryle, intitulados: O mito cartesiano e
Psicologia.
O livro de Politzer, escrito em 1928, foi saudado como um acontecimento no que
diz respeito reflexo epistemolgica sobre a psicologia e a psicanlise. Seu tom
panfletrio marcou uma longa gerao de pensadores franceses, em especial MerleauPonty, Sartre, Lacan e Foucault. Por um lado, tratava-se da primeira reflexo sistemtica a
respeito do impacto epistemolgico trazido pela psicanlise freudiana. Vindo de uma
tradio marxista, Politzer desenvolvia sua leitura de Freud a partir de uma perspectiva
marxista que anulava a base biologista da metapsicologia, ainda vinculada psicofsica de
Fechner, Helmholtz, Brcke, Du-Bois Reymond e a relanava em um quadro de redefinio
das condies de compreenso do fato psicolgico em geral. Era a objetividade do
subjetivo que estava em questo.
Politizer compreendia que os movimentos psicolgicos contemporneos - no caso, a
Gestalt, o behaviourismo e a psicanlise - eram ligados entre si pela tentativa de dissolver o
que ele chamava de mito da dupla natureza humana; ou seja, o mito do pretenso dualismo
entre mente e corpo. de Politzer a idia de que a psicologia anterior a estes trs
movimentos teria sido apenas a elaborao nocional de tal mito atravs da oscilao entre
duas sadas possveis.
Por um lado, o subjetivismo espiritualista que restitua alma os seus direitos graas
s iluses da imediaticidade da interioridade. Por outro, o materialismo que interpretava o
comportamento e o pensamento humano atravs de um paradigma reducionista ou
organicismo tal como, por exemplo, a psicologia do reflexo e as diferentes formas de
associacionismo. Faltava aos dois plos a perspectiva de uma cincia da primeira pessoa,
cincia que descreve objetos que s teriam realidade ao serem conjugados na primeira
pessoa, ou seja, cincia que estados que no tm o mesmo estatuto epistmico que estado
de coisas por dependerem da assuno de um sujeito. Estado subjetivos que, por sua vez,
tem seu sentido dependente da relao com os acontecimentos do meio no qual se desenrola
o vivido e na sua relao com o indivduo, enquanto ele o sujeito deste vivido. Uma
perspectiva distinta daquela adotada pelas cincias da terceira pessoa tal como a fsica,
por exemplo.
Vemos, aqui, o materialismo histrico do vis marxista de Politzer. O sentido do
fato psicolgico no se encontra no desvelamento da vida interior. Ele encontra-se no todo
formado pelo drama subjetivo, pelas relaes concretas com os outros e pela relao
conflitual com a sociedade. Da a definio: com efeito, um gesto que eu fao um fato
psicolgico, pois ele um segmento do drama que representa minha vida. A maneira com
que ele se insere neste drama dado ao psiclogo pela narrativa que eu posso fazer sobre
tal gesto. Mas o gesto esclarecido pela narrativa que o fato psicolgico e no o gesto
parte, nem o contedo realizado da narrativa 9. O gesto em si no tem valor psicolgico
algum. Somente o gesto inserido no drama histrico subjetivo atravs da narrativa que o
sujeito dele faz, demonstrando seu sentido, que tem valor para a psicologia. Colocaes
desta natureza sero fundamentais para Foucault e Lacan desenvolverem suas teorias da
doena mental.
Mas antes de analisarmos tais teorias, teremos um segundo mdulo no qual ser
questo de Georges Canguilhem, O texto-base ser O normal e o patolgico, de 1943. Os
textos de apoio, por sua vez, sero: O que a psicologia?, do prprio Canguilhem, La vie: l
experience et la science, de Michel Foucault e Canguilhem et les normes, de Guillaume
Le Blanc
Canguilhem , sem dvida, o nome mais eminente da epistemologia das cincias
mdicas e biolgicas do sculo XX e figura fundamental no desenvolvimento da
epistemologia das cincias humanas. Sua influncia se fez sentir durante muito tempo,
principalmente devido a um de seus alunos, Michel Foucault. Dentre suas obras, O normal
e o patolgico a mais ambiciosa e sistemtica. Trata-se, principalmente, de mostrar como
a partilha entre normal e patolgico solidria do que significa compreender a vida como
atividade normativa. Pois o patolgico no a pura e simples ausncia de norma, mas uma
nova configurao do organismo atravs da implementao de outras normas na sua relao
com o meio. Canguilhem critica, desde cedo, uma perspectiva que define a doena apenas
como variaes quantitativas de funes e rgo isolados em estado normal, seja para mais,
seja sob a forma de dficits orgnicos. Ao contrrio, a doena um acontecimento que diz
respeito ao organismo vivo encarado na sua totalidade Pois: no h um nico fenmeno
que se realize no organismo doente da mesma forma como no organismo so 10. Quando
classificamos como patolgico um sistema ou um mecanismo funcional isolado,
esquecemos que aquilo que os tornam patolgicos a relao de insero na totalidade
indivisvel de um comportamento individual. Canguilhem chega mesmo a afirmar que ser
doente , para o homem, viver uma vida diferente.
Defender tal perspectiva equivale a determinar a sade a partir da relao ativa a um
meio: s possvel definir o estado normal de um ser vivo por uma relao normativa de
ajustamento a determinados meios11. No entanto, esta noo de ajustamento ser
radicalmente complexificada por Canguilhem, j que no se trata aqui de uma adaptao
simples a meios estticos, mas de instaurar o que o filsofo chama de margem de
tolerncia s infidelidades do meio12. Veremos, em outras aulas, o que tal margem de
tolerncia pode querer significar.
Por hora, vale insistir que tal estratgia de vincular o normal a partir de uma relao
normativa de ajustamento ao meio leva Canguilhem a afirmar que no fato algum que seja
normal ou patolgico em si. Eles so normal e patolgico no interior de uma relao entre
organismo e meio ambiente. Colocaes desta natureza sero fundamentais para a
redefinao da causalidade prpria s doenas mentais, j que se trata apenas de tirar as
consequncias da complexificao do meio ambiente humano. Quando se trata de norma
humana, elas so determinadas como possibilidade de um organismo agir em situao
social. No homem, os estmulos patognicos jamais so recebidos como simples fatos
9
fsicos em estado bruto, mas como sinais, dotados de significao, de tarefas ou de provas a
serem realizadas. Com isto, coloca-se a exigncia de recorrer a um conceito de sujeito para
a prpria definio da partilha entre normal e patolgico.
A partir da poderemos abordar duas perspectivas maiores para a reflexo sobre os
fundamentos da clnica dos fatos psicolgicos. Uma, nos vm de Jacques Lacan. Ser
questo aqui da leitura de Proposies sobre a causalidade psquica, texto publicado em
1950. Os textos de apoio sero: Le dveloppement mecaniciste de la psychiatrie labri
du dualisme cartsien, de Henri Ey e Lacan: a formao do conceito de sujeito, de
Bertrand Ogilvie.
Este texto de Lacan problematiza a noo de causalidade psquica a partir da recusa
em submet-la a uma perspectiva organicista. Seu incio j em tom polmico, j que se
trata de criticar a organo-dinamismo proposto pelo psiquiatra Henri Ey. Alinhando-se a
um programa geral de racionalidade da clnica fortemente marcado por Politzer, Lacan
chega a definir a loucura como um fenmeno que: no separvel do problema da
significao para o ser em geral, ou seja, do problema da linguagem para o homem 13.
Maneira lacaniana de definir a causalidade da doena mental a partir da relao entre
organismo e meio ambiente, ou seja, entre sujeito e meio social cuja inteligibilidade se
daria atravs da sua reduo linguagem. Mas, contrariamente ao que poderamos esperar,
no se trata aqui de definir a doena mental como desvio de adaptao em relao ao
universo simblico implicado em todo uso da linguagem. Servindo-se de uma certa
dialtica das identificaes de inspirao hegeliana, trata-se de afirmar, ao contrrio, que a
doena , um pouco como veremos em Canguilhem, a impossibilidade de transcender as
determinaes imediatas da percepo do meio social, impossibilidade de construir uma
margem de tolerncia s infidelidades do meio. A clnica dos fatos psicolgicos vira,
assim, clnica que no teme em re-introduzir conceitos filosficos como transcendncia,
ser do homem, liberdade/alienao; isto a fim de orientar seus dispositivos de
interveno e interpretao a partir de um conceito renovado de sujeito. Como se a clnica
estivesse marcada pelo projeto de reintroduzir o sujeito no interior de um discurso com
aspiraes de objetividade.
Por fim, o ltimo mdulo ser dedicado leitura de Doena mental e psicologia, de
Michel Foucault. Os textos de apoio sero os captulos IV, VI e VII de O nascimento da
clnica.
Creio no ser novidade para ningum aqui a importncia decisiva do trabalho de
Michel Foucault no encaminhamento da reflexo epistemolgica sobre o estatuto da clnica
dos fatos psicolgicos. Nosso curso ir terminar mostrando como tal importncia
indissocivel da maneira com que Foucault se insere no interior da tradio de reflexo que
configuramos atravs dos nomes de Politzer, Canguilhem e Lacan. Para tanto, vamos
analisar um livro, inicialmente escrito em 1954 mas depois totalmente reconstrudo poca
de sua reedio, em 1962. momento em que Foucault j havia defendido sua tese sobre a
Histria da Loucura. Este pequeno livro, Doena mental e psicologia, uma porta de entrada
privilegiada para a compreenso da experincia intelectual de Michel Foucault por retomar
temas articulados no interior da reflexo filosfica francesa desde os anos vinte e por j
indicar os caminhos que Foucault trilhar em direo ao estabelecimento de sua estratgia
maior: submeter a reflexo epistemolgica sobre as cincias humanas a uma genealogia do
poder e das prticas disciplinares. Submisso que aparece no horizonte desde que Foucault
13
14
O estatuto da psicologia
Aula 2
Na aula passada, vimos quais eram as coordenadas gerais responsveis pelo
desenvolvimento deste curso. Tratava-se, principalmente, de apresentar uma certa tradio
de reflexes sobre o estatuto epistmico da psicologia, da psicanlise e das cincias
mdicas que se desenvolveu em solo francs principalmente entre os anos vinte e sessenta
do sculo passado. Tal tradio, embora no seja, no sentido forte do termo, uma Escola (j
que era composta por pensadores cujos programas de pesquisa eram bastante autnomos
entre si), foi marcada por uma partilha de problemas e de dispositivos de crtica
determinantes para a constituio de um modo particular de encaminhamento de questes
derivadas da tentativa em fundamentar prticas clnicas. Pois no interior desta tradio
encontraremos a defesa de que as prticas clnicas, principalmente aquelas prprias aos
fatos psicolgicos, seriam dependentes, de maneira fundamental, de decises prvias e
muitas vezes no tematizadas a respeito dos padres de racionalidade da observao, da
interveno teraputica e, principalmente, da definio do objeto prprio psicologia.
Neste sentido, a reflexo epistmica sobre a psicologia seria, necessariamente, uma reflexo
sobre a maneira com que uma certa antropologia filosfica guiaria, de forma insidiosa, a
racionalidade da direo do tratamento. Como se a psicologia fosse, a todo momento,
remetida a uma raiz metafsica a respeito da qual ela no seria capaz de se livrar. Raiz
metafsica que nos colocaria diante da necessidade em responder uma pergunta maior, a
saber: uma prtica clnica pode abstrair de pr, em seu horizonte de racionalidade, uma
concepo de sujeito que se desdobre em uma teoria da conduta racional, base da definio
do que se define como patologia mental ?
A tradio de reflexo a qual me refiro nunca deixou pois de colocar, clnica dos
fatos psicolgicos, duas questes maiores: o que fundamenta seu mtodo de observao,de
interveno e o que particulariza seu objeto, ou seja, em que condies podemos dizer
estarmos diante de um fato psicolgico que pode ser reportado a um sujeito? Uma questo
de mtodo e uma questo vinculada ao estatuto de seus objetos que converge para um
problema central que guiar o desenvolvimento do nosso curso, a saber; qual o estatuto da
objetividade dos fenmenos subjetivos? Seria ele dependente da objetividade prpria aos
fenmenos fsicos e orgnicos?
Como vimos na aula passada, o primeiro mdulo de nosso curso, este que se inicia
na aula de hoje, ser dedicado a um dos nomes fundamentais no interior deste debate:
Georges Politzer com seu Crtica dos fundamentos da psicologia.
Personagem peculiar, Politzer era filsofo e terico marxista de orgem hngara,
embora vivesse em Paris desde 1921, isto devido a sua participao no movimento
fracassado que levou ao efmero governo socialista de Bela Kun. A partir dos anos 30, ele
dar aulas de materialismo dialtico na Universidade Operria de Paris. Desde cedo
interessado pela psicologia e pela psicanlise, Politzer ir, a partir dos anos 30, tomar
distncia da ltima de maneira ferrenha, isto a fim de se dedicar economia poltica e
difuso do marxismo. Ele morrer fuzilado pelos nazistas em 1942.
Para os que ainda no conhecem Crtica dos fundamentos da psicologia, escrito em
1928, vale a pena lembrar como ele foi rapidamente saudado como um acontecimento no
que diz respeito reflexo epistemolgica sobre a psicologia e a psicanlise. Seu tom
panfletrio marcou uma longa gerao de pensadores franceses, em especial Merleau-
Ponty, Sartre, Lacan e Foucault. Por um lado, tratava-se de uma crtica dos fundamentos
tericos da psicologia que procurava fazer tabula-rasa de sua histria. Isto ficava claro logo
no prefcio: Trata-se, para ns, essencialmente, de colocar os problemas de tal maneira
que a discusso, sem poder nunca retornar a este psicologia que s deve existir para o
historiador, possa ser relanada a partir de uma base nova e desenvolver-se a partir de um
novo plano15. Com Isto, Politzer procurava criar as condies de possibilidade para o
advento daquilo por ele chamado de psicologia concreta, ou seja, uma psicologia no
mais dependente de conceitos e mtodos abstratos incapazes de dar conta da maneira com
que o vivido adquire sentido para os sujeitos.
Por outro lado, Politzer desenvolvia da primeira reflexo sistemtica a respeito do
impacto epistemolgico trazido pela psicanlise freudiana. Vindo de uma tradio marxista,
Politzer desenvolvia sua leitura de Freud a partir de uma perspectiva marxista que anulava a
base biologista da metapsicologia, ainda vinculada psicofsica de Fechner, Helmholtz,
Brcke, Du-Bois Reymond e a relanava em um quadro de redefinio das condies de
compreenso do fato psicolgico em geral. Era a objetividade do subjetivo que estava em
questo. Pois, como veremos, trata-se, a partir desta operao, de fornecer: a definio do
fato psicolgico na esfera do vivido, na perspectiva da primeira pessoa do singular,
rigorosamente destacada dos processos causais objetivos16.
Na aula de hoje, ser questo de um comentrio da Introduo Crtica dos
fundamentos da psicologia. Na aula que vem, nosso objeto de estudos ser o primeiro
captulo, este intitulado: As descobertas na psicanlise e a orientao em direo ao
concreto.
J nas primeiras pginas de nosso texto, o tom polmico se apresenta rapidamente.
Politzer pretende falar da: morte da psicologia oficial, desta psicologia que se prope
estudar os processos psicolgicos, seja procurando apreend-los em si mesmos [ou seja, de
maneira imediata, como um dado imediatamente disponvel introspeco da conscincia],
seja atravs de seus concomitantes ou determinantes fisiolgicos [como se a fisiologia fosse
naturalmente o espao causal capaz de orientar os mtodos prprios clnica], seja atravs
de mtodos bricolados17. Ou seja, trata-se de colocar em suspeio tudo aquilo que se
apresentava como progresso na fundamentao do conhecimento dos fatos psicolgicos
desde que Wundt aparecera como fundador da psicologia moderna por ter sido o
responsvel pelo primeiro laboratrio do mundo dedicado psicologia experimental.
De fato, Politzer lembra como Wundt aparecia enquanto momento mais bem
realizado de uma trajetria visando livrar a psicologia do penso de noes metafsicas de
alma ou da possibilidade de apreenso imediata de dados da conscincia atravs da autoobservao. Da normalmente a maneira de descrever o impacto das pesquisas de Wundt
como um abandono da submisso da psicologia filosofia, abandono da noo de
psicologia como cincia da alma, isto a partir do uso massivo de tcnicas experimentais
de mensurao de constantes fisiolgicas objetivamente identificveis. Uso massivo que
pressupunha reduzir estados e eventos mentais mensurao objetiva de estmulos e
respostas fisiolgicas. Desta forma, aparece uma psicologia fisiolgica que determinava o
fato psicolgico fundamental como a excitao a partir de rgos externos de sentido.
Mas esta submisso da racionalidade da psicologia fisiologia era o resultado de
uma longa tradio racionalista que procurava definir a psicologia como fsica do sentido
15
externo, ou seja, como o que permite o clculo capaz de: determinar as constantes
quantitativas da sensao e as relaes entre tais constantes 18. Devemos ler nesta
perspectiva sua dependncia epistmica de Wundt psicofsica de Fechner, para quem os
princpios gerais da psicofsica envolvem apenas a manipulao de relaes quantitativas,
assim como de Helmholtz e Du Bois-Reymond, para quem, por sua vez, s h, no
organismo, foras fsico-qumicas em atuao.
O que deve ser salientado aqui como a fsica matemtica aparece enquanto padro
de racionalidade para a constituio da objetividade da psicologia. A objetividade do objeto
da psicologia deveria ser pensada tal como a objetividade prpria a fenmenos que so
objetos da fsica, ou seja, a partir de possibilidade de mensurao, de reduo quantitativa e
de abstrao a um padro geral de clculo. Da a esperana em : fazer aparecer, nas leis
dos fatos de conscincia, um determinismo analtico do mesmo tipo que este cuja mecnica
e a fsica permitem esperar uma validade universal a toda cincia19.
Esta perspectiva prpria psicologia fisiolgica de Wundt criticada por Politzer
atravs da acusao de formalismo. Um formalismo que demonstraria como a psicologia
experimental no seria outra coisa que um disfarce responsvel pela sobrevivncia da
psicologia clssica, esta mesma que seria marcada pelas crenas metafsica na noo de
alma.
De fato, tal afirmao de Politzer parece, a primeira vista, o mais completo
contrasenso. Pois em que a psicologia experimental continuaria ainda tributria dos
descaminhos prprios a uma noo pr-cientfica de psicologia? claro que uma parte da
resposta se encontra na prpria definio do que Politzer entende por formalismo. Com
palavras zombeteiras, Politzer lembra que: os fisiologistas se entregam de maneira terrvel
magia dos nmeros e o entusiasmo pela forma quantitativa das leis no passa, neste caso,
de adorao do fetiche (...) Quanto aos psiclogos, de terceira mo que eles recebem as
matemticas; pois eles as recebem dos fisiologistas, que as receberam dos fsicos que, por
sua vez, as receberam dos matemticos20. No entanto, a zombaria no suficiente para nos
explicar qual o verdadeiro vnculo entre a psicologia experimental e a psicologia clssica.
O verdadeiro argumento de Politzer comea a se organizar a partir do pargrafo
sexto. A partir da, ele lembra que a histria da psicologia a partir da psicologia
experimental de Wundt (ou seja, esta histria marcada principalmente pelo advento do
behaviourismo, da Gestalt e da psicanlise) no era, como poderamos esperar, a
consolidao de um corpo no-problemtico de conceitos e de uma partilha tacitamente
aceita de mtodos. Ao contrrio, esta histria no de uma organizao, mas de uma
dissoluo. Da a afirmao central do nosso captulo: O movimento psicolgico
contemporneo apenas a dissoluo do mito da natureza dupla do homem21.
A idia central aqui : a psicologia foi at ento tributria de uma mitologia
vinculada a prpria natureza de seu objeto, ou seja, o sujeito enquanto centro funcional de
condutas e emoes. Esta mitologia deve ser dissolvida para que a psicologia como cincia
possa se instaurar, para que a psicologia possa acordar de seu sono dogmtico. Mas para
que este despertar ocorra, faz-se necessrio o reconhecimento claro do fato de que a
18
psicologia clssica no outra coisa que a elaborao nocional de um mito. Um mito que,
segundo Politzer, seria: a ideologia central da psicologia clssica22..
De fato, devemos insistir neste ponto: a crtica aqui no apenas crtica a ausncia
de uma orientao verdadeiramente cientfica para a observao e clnica dos fatos
psicolgicos. A crtica tambm crtica da ideologia, defesa de que, por trs desta
incompreenso prpria determinao dos fundamentos da psicologia, h uma certa
ideologia em operao, como se no houvesse equvoco cientfico que no fosse animado
por uma orientao ideolgica.
Esta ideologia prpria ao mito da dupla natureza humana pode ser descrita da
seguinte forma. Politzer acredita que a psicologia, sequer a psicologia experimental de
wundt, nunca conseguiu escapar das conseqncias de um pretenso dualismo entre mente e
corpo. Da a oscilao infinita entre duas sadas possveis.
Por um lado, o subjetivismo espiritualista que restitua alma os seus direitos graas
s iluses da imediaticidade da interioridade. Uma psicologia baseada nos usos clnicos da
introspeco, uma certa cincia do sentido interno, seria resultado resultante daquilo que
poderamos chamar de ideologia da vida interior, ou seja, a implementao clnica de um
conceito normativo de sujeito baseada na autonomia espontnea, na transparncia imediata
de si a si e no rebaixamento do corpo enquanto plo de determinao do sentido da
conduta. Da a afirmao: A ideologia da burguesia na estaria completa se no tivesse
encontrado sua mstica. Aps vrias tentativas, ela foi enfim encontrada na vida interior da
psicologia23. Mas sua essncia apenas a abstrao, j que ela implica apenas o homem
em geral, a vida em geral, e no a vida humana inserida na particularidade da histria
de seu desejo.
Por outro, o materialismo objetificador que interpretava o comportamento e o
pensamento humano atravs de um paradigma reducionista ou tal como, por exemplo, a
psicologia do reflexo, as diferentes formas de associacionismo e a psicologia experimental.
Contrariamente a noo de que a conscincia deveria ser distinta das leis causais que
determinam o mundo fsico, tratava-se de insistir que a mesma objetividade prpria a
descrio dos fenmenos fsicos deve ser aplicada apreenso da inteligibilidade dos fatos
psicolgicos. Como veremos, trata-se, para Politzer, tambm de uma ideologia, mas de uma
ideologia da auto-negao do sujeito tambm dependente de operaes de abstrao.
Este ponto pode ser melhor compreendido se lembrarmos das colocaes que
Politzer apresenta a respeito do behaviorismo. Enquanto tentativa de preencher as
condies do que o prprio Politzer define como uma psicologia concreta, o behaviorismo
teve o mrito de renunciar noo de vida interior. Mrito de criticar a noo de vida
interior como resqucio de um pensamento animista no interior da cincia. Watson percebeu
que a nica atitude cientfica possvel para a psicologia consistia em fazer tabula rasa de
tudo o que se apresentava como introspeco e espiritualidade. Mas, ao salvar a
objetividade, o behaviorismo perdia a psicologia. No foi por outra razo que, logo aps
Watson tirar as conseqncias de suas descobertas, a psicologia ps-se cata de um
behaviorismo no fisiolgico. Concluso de Politzer: tudo o que o behaviorismo pode
nos ensinar da ordem da mecnica animal. Continuamos presos entre o subjetivismo e o
objetivismo. Continuamos presos alternativa dualista do dentro ou fora. Ou elegemos a
percepo interna como o fato psicolgico ou, como fazem os behaviorista, escolhemos a
percepo externa: Para suplantar a anttese clssica, dir Politzer, faz-se necessrio
22
23
POLITZER, idem, p. 11
idem, p. 13
drama histrico subjetivo, onde o seu sentido se esclarece. A est a sada que permite
garantir a objetividade do subjetivo. Por fim, vale a pena salientar como a narrativa que o
sujeito d a respeito do seu comportamento no nos remete a nenhuma experincia interior.
Afinal, a narrativa , antes de mais nada, inteno significativa direcionada ao outro28. A
significao desconhece a interioridade; assim como desconhece o inefvel de qualquer
pretensa intimidade.
28
Vinte anos depois, Lacan completar este raciocnio insistindo na alienao que o uso da linguagem impe
ao sujeito e de como ela implica uma relao para alm da intersubjetividade pois inteno significativa
(agora inconsciente) direcionada ao Outro.
O estatuto da psicologia
Aula 3
Na aula passada, comeamos a leitura do livro de Georges Politzer, Crtica dos
fundamentos da psicologia. Vimos como o objetivo deste panfleto que influenciou de
maneira decisiva o debate sobre a epistemologia da psicologia na Frana do sculo XX era
fazer tabula rasa da histria das clnica dos fatos psicolgicos at ento. J nas primeiras
pginas de nosso texto, o tom polmico se apresentava rapidamente. Politzer pretendia falar
da: morte da psicologia oficial, desta psicologia que se prope estudar os processos
psicolgicos, seja procurando apreend-los em si mesmos [ou seja, de maneira imediata,
como um dado imediatamente disponvel introspeco da conscincia], seja atravs de
seus concomitantes ou determinantes fisiolgicos [como se a fisiologia fosse naturalmente
o espao causal capaz de orientar os mtodos prprios clnica], seja atravs de mtodos
bricolados29. Ou seja, tratava-se de colocar em suspeio tudo aquilo que se apresentava
como progresso na fundamentao do conhecimento dos fatos psicolgicos desde que
Wundt aparecera como fundador da psicologia moderna por ter sido o responsvel pelo
primeiro laboratrio do mundo dedicado psicologia experimental.
De fato, vimos como Politzer lembrava que Wundt aparecia enquanto momento
mais bem realizado de uma trajetria visando livrar a psicologia do penso de noes
metafsicas de alma ou da possibilidade de apreenso imediata de dados da conscincia
atravs da auto-observao. Da normalmente a maneira de descrever o impacto das
pesquisas de Wundt como um abandono da submisso da psicologia filosofia, abandono
da noo de psicologia como cincia da alma, isto a partir do uso massivo de tcnicas
experimentais de mensurao de constantes fisiolgicas objetivamente identificveis. Uso
massivo que pressupunha reduzir estados e eventos mentais mensurao objetiva de
estmulos e respostas fisiolgicas. Desta forma, aparece uma psicologia fisiolgica que
determinava o fato psicolgico fundamental como a excitao a partir de rgos externos
de sentido.
Mas esta submisso da racionalidade da psicologia fisiologia era o resultado de
uma longa tradio racionalista que procurava definir a psicologia como fsica do sentido
externo, ou seja, como o que permite o clculo capaz de: determinar as constantes
quantitativas da sensao e as relaes entre tais constantes 30. Devemos ler nesta
perspectiva sua dependncia epistmica de Wundt psicofsica de Fechner, para quem os
princpios gerais da psicofsica envolvem apenas a manipulao de relaes quantitativas,
assim como de Helmholtz e Du Bois-Reymond, para quem, por sua vez, s h, no
organismo, foras fsico-qumicas em atuao.
O que deve ser salientado aqui como a fsica matemtica aparece enquanto padro
de racionalidade para a constituio da objetividade da psicologia. A objetividade do objeto
da psicologia deveria ser pensada tal como a objetividade prpria a fenmenos que so
objetos da fsica, ou seja, a partir de possibilidade de mensurao, de reduo quantitativa e
de abstrao a um padro geral de clculo. Da a esperana em : fazer aparecer, nas leis
dos fatos de conscincia, um determinismo analtico do mesmo tipo que este cuja mecnica
e a fsica permitem esperar uma validade universal a toda cincia 31. Mesmo o recurso
29
POLITZER, idem, p. 2
CANGUILHEM, Etudes dhistoire et de philosophie de la science, p. 370
31
idem, p. 371
30
fisiologia como base de anlise para os fatos psicolgicos deveria ser compreendido como
tributrio desta maneira de constituio da noo de objetividade herdada da fsica.
Em um captulo do Nascimento da Clnica, intitulado Abram alguns cadveres,
Michel Foucault reconstitui a trajetria que permitiu fisiologia e anatomia patolgica
aparecerem como fundamento da clnica. Tal posio da fisiologia s foi possvel a partir
do momento em que o corpo foi reconfigurado, aparecendo como um espao ao mesmo
tempo mais complexo e mais abstrato, onde era questo de ordem, de sucesso, de
coincidncia e de isomorfismo32. Transformao do corpo em um espao abstrato que era
resultado da aplicao de um princpio geral de decifrao do espao corporal semelhante
ao princpio geral de constituio do espao homogneo e geomtrico da fsica moderna.
Tal princpio geral de inteligibilidade era fornecido, no caso da constituio do espao
corporal, pela reduo do corpo a um campo de tecidos orgnicos: A partir dos tecidos, a
natureza trabalha com uma extrema simplicidade de materiais. Eles so os elementos dos
rgos, mas o atravessam, os aproximam e, para alm deles, constituem os vastos sistemas
nos quais o corpo humano encontra a forma concreta de sua unidade. Haver tantos
sistemas quanto tecidos: neles, a individualidade complexa e inesgotvel dos rgos se
dissolve e, de uma vez, se simplifica33.
Tal reduo do volume orgnico a um elementar que , ao mesmo tempo, um
universal aparece como condio para o aparecimento de uma fisiologia que pode se
submeter a um padro de objetividade fundado em dispositivos de mensurao, de reduo
quantitativa e de abstrao a um padro geral de clculo. E pensando a tal processo que a
perspectiva prpria psicologia fisiolgica de Wundt pode ser criticada por Politzer atravs
da acusao de abstrao (que trata objetos vivos como objetos mortos, prontos a serem
descritos em um discurso da terceira pessoa), ou ainda de formalismo. Um formalismo
que demonstraria como a psicologia experimental no seria outra coisa que um disfarce
responsvel pela sobrevivncia da psicologia clssica, esta mesma que seria marcada pelas
crenas metafsica na noo de alma.
A idia central aqui : a psicologia foi at ento tributria de uma mitologia
vinculada a prpria natureza de seu objeto, ou seja, ao sujeito enquanto centro funcional de
condutas e emoes. Esta mitologia deveria ser dissolvida para que a psicologia como
cincia pudesse ser instaurada, para que a psicologia pudesse acordar de seu sono
dogmtico. Mas para que este despertar ocorra, faz-se necessrio o reconhecimento claro
do fato de que a psicologia clssica no outra coisa que a elaborao nocional de um mito.
Um mito que, segundo Politzer, seria: a ideologia central da psicologia clssica 34, o mito
da dupla natureza humana.
De fato, toda a crtica de Politzer psicologia tributria desta crtica ao dualismo e
a suas conseqncias. Um dualismo que instauraria um movimento bi-polar no interior da
histria da psicologia, entre o subjetivismo espiritualista que compreende a introspeco
como dispositivo central de acesso ao fato psicolgico e uma outra perspectiva objetivista
que, contrariamente a noo de que a conscincia deveria ser distinta das leis causais que
determinam o mundo fsico, insiste que a mesma objetividade prpria a descrio dos
fenmenos fsicos deve ser aplicada apreenso da inteligibilidade dos fatos psicolgicos.
Esta perspectiva servir para Politzer se posicionar a respeito do behaviorismo.
Enquanto tentativa de preencher as condies do que o prprio Politzer define como uma
32
43
POLITZER, idem, p. 12
idem, p. 249
45
idem, p. 248
44
O estatuto da psicologia
Aula 4
Na aula de hoje, iremos finalizar o primeiro mdulo de nosso curso, este dedicado ao
comentrio da Crtica dos fundamentos da psicologia, de Georges Politzer. No se tratou de
fazer aqui o comentrio exaustivo do livro, mas de fornecer o quadro de anlise
politzeriano a respeito do programa crtico de reforma da psicologia. Vimos como Politzer
desenvolvia suas crticas a respeito do realismo de quem toma a percepo imediata como
fato psicolgico fundamental, do carter abstrato das generalizaes da psicologia clssica
e do dualismo a respeito do qual sua histria seria tributria. Um dualismo que instauraria
um movimento bi-polar no interior da histria da psicologia, entre o subjetivismo
espiritualista que compreende a introspeco como dispositivo central de acesso ao fato
psicolgico e uma outra perspectiva objetivista que, contrariamente a noo de que a
conscincia deveria ser distinta das leis causais que determinam o mundo fsico, insiste que
a mesma objetividade prpria a descrio dos fenmenos fsicos deve ser aplicada
apreenso da inteligibilidade dos fatos psicolgicos.
Vimos ainda como Politzer reconhecia no behaviorismo e a Gestalt duas correntes
que traziam colaboraes para a constituio desta reforma do entendimento psicolgico
ento pregada. Segundo Politzer, o behaviorismo teria o mrito de renunciar noo de
vida interior e imediaticidade da introspeco pois a verdadeira psicologia s pode ser
uma psicologia sem vida interior. Mas ele seria ainda tributrio da f epistmica na noo
de dado simples e imediatamente perceptvel (a imediaticidade do sentido do
comportamento externamente observvel) ou seja, de objetividade como o que resulta de
alguma forma de observao direta, que Politzer chama de realismo, mito prprio ao
desenvolvimento da psicologia at ento.
Da porque Politzer afirmava: Para suplantar a anttese clssica, faz-se necessrio
renunciar a ver o fato psicolgico em uma percepo qualquer e consentir em colocar, na
base da cincia psicolgica, um ato de conhecimento de uma estrutura mais elevada do que
a simples percepo46. Era a fim de dar conta do que deve ser este ato de conhecimento
de uma estrutura mais elevada do que a simples percepo que Politzer se apoiava na
Gestalt. Aos olhos de Politzer, a Gestalt aparecia como contraponto a uma certa perspectiva
atomista que acredita poder analisar, de maneira isolada, funes intencionais e disposies
regionais de comportamento, como se aquilo que chamamos normalmente de sujeito no
fosse mais do que um feixe de representaes e de disposies constitudas a partir de
estmulos, reflexos e tropismos, mais do que a somatria de funes e rgos que poderiam
ser isolados sem prejuzo para sua inteligibilidade. Vimos, na aula passada, como Khler
lembrava que a psicologia trabalha com sistemas que se organizam como totalidades
funcionais onde, digamos, o todo no o resultado da somatria das partes, onde a funo
de um rgo resultante das interaes com o conjunto do sistema, onde a perspectiva
geral que orienta a conduta em relao a um meio ambiente no o resultado da somatria
da ao de cada rgo, da articulao de cada funo intencional tomada separadamente.
Mas Politzer insiste que introduzir esta dimenso da totalidade implica em
introduzir uma dimenso com impactos maiores na reflexo sobre o fato psicolgico: a
dimenso do sentido. O fato psicolgico sempre um fato que procura realizar uma
exigncia de sentido. Pois trata-se de afirmar que cada conduta e cada reao no
46
Idem, p. 21
FREUD, Die traumdeutung, p. 1
49
POLITZER, idem, p. 41
50
idem, p. 102
48
POLITZER, idem, p. 48
idem, p. 49
53
idem, p. 53
52
A crtica metapsicologia
Mas para Politzer, a metapsicologia depeciona as exigncias da psicologia concreta.
Politzer no pensa apenas no vocabulrio cientista e energtico que Freud herdara da
psicofsica e que ele sempre utiliza para descrever o aparelho psquico e seu
funcionamento como se fosse um processo em terceira pessoa. A prpria noo de
inconsciente , segundo Politzer, uma hiptese suprflua. Abrindo um caminho que
depois ser seguido por Sartre na sua crtica do inconsciente freudiano, Politzer lembrar
que conscincia sinnimo de imputabilidade, de reconhecimento e de identificao.
Neste sentido: toda esta dinmica de representaes que supem censura, recalcamento e
resistncia se relaciona conscincia mesma que o sujeito pode ter de seus prprios
54
55
idem, p. 123
SARTRE, Ltre et le nant,18 ed., Paris:Gallimard, 1989, p. 83
O estatuto da psicologia
Aula 5
Na aula de hoje, iniciaremos o segundo mdulo do nosso curso, este dedicado discusso
do pensamento de Georges Canguilhem. Tal discusso ter por guia o comentrio de seu
livro central: O normal e o patolgico. Como havia sugerido, outros textos de Canguilhem
sero estudados, como O que a psicologia? Textos sugeridos sobre a obra de Georges
Canguilhem so: La vie: lexperience et la science, de Michel Foucault e Canguilhem et
les normes, de Guillaume Le Blanc
Canguilhem , sem dvida, o nome mais eminente da epistemologia das cincias
mdicas e biolgicas do sculo XX e figura fundamental no desenvolvimento da
epistemologia das cincias humanas. Sua experincia intelectual deve ser compreendida no
interior de uma corrente epistemolgica francesa marcada por nomes como: Gaston
Bachelard, Jean Cavaills, Alexandre Koyr, entre outros. No entanto, a posio de
Canguilhem peculiar e resultante de sua dupla formao: mdico e pesquisador em
filosofia. Isto o permitiu construir de todas as peas um campo novo de reflexo
epistemolgica, a saber, a reflexo filosfica sobre a medicina e sobre aquilo que se chama,
na Frana, de cincias da vida. A constituio de tal campo de pesquisas foi desdobrada e
continuada principalmente pelo mais conhecido de seus alunos, Michel Foucault.
Dificilmente poderamos pensar em livros como O nascimento da clnica sem o impacto
gerado por trabalhos como O normal e o patolgico. Por outro lado, a obra de Canguilhem
dialoga com, devido a partilha de temticas, com uma outra tradio de reflexo
epistemolgica, esta de Merleau-Ponty e Politzer marcada sobretudo pela fenomenologia e
pela perspectiva da relao entre sujeito e sentido, do sujeito como plo de produo de
sentido dos fatos prprios a clnica. Basta lembrar como o programa politzeriano de uma
psicologia concreta ainda ressoa, de uma certa forma, nesta afirmao de Canguilhem:
Espervamos da medicina justamente uma introduo a problemas humanos concretos [ou
seja, a problemas cujo sentido exige a atualizao de uma perspectiva que leve em conta os
modos de interao entre o homem e seu meio, assim como suas disposies
teleolgicas]56.
Neste sentido, a experincia intelectual de Canguilhem se coloca em um ponto
privilegiado no interior do qual duas grandes tradies do pensamento francs se
encontram. Isto talvez explique a extenso de uma influncia bem traada por Foucault ao
afirmar: Retirem Canguilhem e vocs no compreendero grande coisa sobre uma srie de
discusses que ocorreram no marxismo francs, vocs no apreendero o que h de
especfico em socilogos como Bourdieu, Castel, Passeron e que os marca de maneira to
forte no campo da sociologia, voc perdero todo um aspecto do trabalho terico feito pelos
psicanalistas e , em especial, pelos lacanianos. Mais: em todo o debate de idias que
precedeu ou seguiu o movimento de 1968, fcil encontrar o lugar destes que, de perto ou
de longe, foram formados por Canguilhem57.
Dentre suas obras, O normal e o patolgico sem dvida a mais ambiciosa e
sistemtica. Resultado de uma tese defendida em 1943 intitulada Ensaio sobre a alguns
problemas relativos ao normal e ao patolgico, o livro, em sua verso final, foi acrescido
56
57
de trs artigos escritos vinte anos depois e agrupados sob o ttulo de Novas reflexes
referentes ao normal e ao patolgico.
Mas do que fala exatamente este livro? Seu ttulo j indica claramente a
configurao do objeto de estudos: trata-se de discutir o estatuto das estruturas de definio
e de partilha entre fenmenos normais e fenmenos patolgicos. Questo central no
apenas para a biologia e para a clnica (seja ela mdica ou psicolgica) mas,
fundamentalmente, uma questo central para a filosofia. Pois, por trs das mudanas e
redefinies do que est em jogo na partilha entre normal e patolgico encontramos um
problema vinculado maneira com que a razo moderna determina a articulao entre vida
e conceito, entre ordem e desordem, entre norma e erro. Uma grande parte do trabalho
canguilhemeano de historiador das cincias est ligada a tentativa de demonstrar como as
decises clnicas a respeito da distino entre normal e patolgico so, na verdade, um setor
de decises mais fundamentais da razo a respeito do modo de definio daquilo que
aparece como seu Outro (a patologia, a loucura etc.). Neste sentido, elas se inserem em
configuraes mais amplas de racionalizao que ultrapassam o domnio restrito da clnica.
Da porque Canguilhem pode afirmar: a filosofia uma reflexo para a qual qualquer
matria estranha serve, ou diramos mesmo para qual s serve a matria que lhe for
estranha58. Pois problemas que parecem obedecer a um desenvolvimento ditado apenas
pelo estado da tcnica ou pela configurao natural do dado so, ao contrrio, espaos
privilegiados nos quais a razo configura, silenciosamente, os campos da experincia
possvel. Tal certeza fornece o sentido de uma afirmao metodolgica central como: A
histria das idias no pode ser necessariamente superposta histria das cincias. Porm,
j que os cientistas, como homens, vivem sua vida num ambiente e num meio que no so
exclusivamente cientficos, a histria das cincias no pode negligenciar a histria das
idias59.
Por outro lado, isto significa que um problema clnico nunca apenas um problema
clnico, at porque, ele s e determinado enquanto problema por partilhar um padro de
racionalidade, historicamente situado, cujas razes no se esgotam apenas no campo da
clnica. Esta e uma das razes que leva Canguilhem a afirmar ser: um grave problema, ao
mesmo tempo biolgico e filosfico, saber se ou no legtimo introduzir a Histria na
Vida60. Esta a razo tambm que permite a Canguilhem operar com um noo ampla de
clnica que, embora privilegiando a nosografia somtica e a fisiopatologia, no deixa de
abrir questes e permitir extenses em direo nosografia psquica e psicopatologia.
Tal posio de Canguilhem a respeito da natureza do problema prprio distino
entre normal e patolgico nos permite lanar luz sobre a estrutura peculiar de seu livro.
Divido em duas grandes partes, o livro inicia passando em revista diferentes verses de
uma mesma tese ento hegemnica no sculo XIX, uma espcie de dogma cientificamente
garantido, dir Canguilhem, a respeito da distino entre normal e patolgico. Augusto
Comte, Claude Bernard e Ren Leriche teriam em comum uma maneira de compreender a
diferena entre normal e patolgico como uma diferena quantitativa que diria respeito a
funes e rgos isolados, como se os fenmenos patolgicos fossem, no organismo vivo,
apenas variaes quantitativas, dficits ou excessos. Como lembra Canguilhem,
semanticamente, o patolgico designado a partir do normal, no tanto como a ou dis, mas
como hiper ou hipo. Assim: a doena no pensada como uma experincia vivida,
58
afirmar que no h fato algum que seja normal ou patolgico em si. Eles so normal e
patolgico no interior de uma relao entre organismo e meio ambiente.
Assim estas duas teorias, ontolgica e dinamista, teriam em comum o fato de
afirmar que: a doena difere da sade, o patolgico do normal, como uma qualidade difere
de outra, quer pela presena ou ausncia de um princpio definido, quer pela reestruturao
da totalidade orgnica66. No h uma continuidade quantitativa entre normal e patolgico,
mas discontinuidade qualitativa.
Ser uma variao desta perspectiva qualitativa e relacional prpria medicina
grega que Canguilhem ir apresentar na segunda parte de seu livro. Nesta segunda parte,
trata-se de uma tentativa de redefinir o problema da distino entre normal e patolgico a
partir de novas bases. Pois Canguilhem no procura simplesmente reatualizar a reflexo
grega sobre a medicina, mas avanar em uma reflexo a respeito da qual podemos
apreender a extenso apenas se lembrarmos das reflexes politzerianas estudadas
anteriormente (embora Canguilhem nunca cite Politzer).
Se quisermos compreender a doena, necessrio desumaniz-la. Na doena, o
que menos importa o homem. Estas duas afirmaes so de Ren Leriche e visavam
insistir como a clnica no poderia ser dependente da expresso da subjetividade do doente,
sempre incerta e insegura, mascarando a certeza que apenas o contato com a fisiologia
poderia revelar. De uma certa forma, Canguilhem parte delas para procurar defender o
contrrio, que o patolgico s comea quando , de uma certa forma, reconhecido como tal
pela conscincia marcada pela experincia da doena. Com um certo acento hegeliano,
Canguilhem no teme em afirmar que: no h nada na cincia que antes no tenha
aparecido na conscincia [no necessariamente na conscincia do sujeito que atualmente
sofre, mas naquelas dos que outrora sofreram e que fornecem ao mdico a orientao do
seu olhar]67.
Uma proposio desta natureza passvel de vrios mal-entendidos por parecer
convidar a uma deriva subjetivista insustentvel para a definio da partilha entre normal e
patolgico. Afinal, a patologia um conhecimento objetivo ou resultado do sentimento
subjetivo do paciente? Na verdade, veremos que Canguilhem tem em vista,. na verdade, o
fato de que: no h cincia da fisiologia humana sem tcnica de restaurao da sade, ou
seja, sem a conscincia da doena por um sujeito. Uma nova afirmao resulta disto: a
anterioridade da clnica, experincia da doena partilhada entre o doente e o mdico, sobre
a fisiologia e a patologia68. Compreender este ponto s ser possvel quando apreendermos
a noo de Canguilhem a respeito do patolgico como aquilo que se define a partir de uma
individualidade biolgica.
Por outro lado, fica claro que o problema do patolgico est vinculado a uma
questo absolutamente central: em que situao ocorre algo como a conscincia da doena?
O que significa, para um organismo, estar doente? Veremos, na segunda parte do livro,
como Canguilhem retoma alguns postulados da medicina grega a fim de insistir no carter
relacional da patologia, a patologia como o que se revela na relao entre o organismo e seu
meio. Isto ficar claro, por exemplo, quando Canguilhem discutir a perspectiva que procura
vincular o normal ao conceito de mdia aritmtica, de frequncia estatstica ou, ainda, de
tipo ideal em condies experimentais determinadas; como se o normal fosse um problema
de biometria. A posio de Canguilhem a este respeito estar sintetizada em afirmaes
66
CANGUILHEM, idem, p. 21
idem, p. 68
68
DEBRU, Georges Canguilhem, science et non-science, p. 33
67
72
O estatuto da psicologia
Aula 6
Na aula de hoje, continuaremos o comentrio de O normal e o patolgico, de georges
Canguilhem, atravs da leitura dos captulos III, IV e V. Ns vimos, na aula passada, o
que estava em jogo nesta primeira parte do nosso livro. Tratava-se de passar em revista
diferentes verses de uma mesma tese ento hegemnica no sculo XIX, uma espcie
de dogma cientificamente garantido, dir Canguilhem, a respeito da distino entre
normal e patolgico. Augusto Comte, Claude Bernard e Ren Leriche teriam em
comum uma maneira de compreender a diferena entre normal e patolgico como uma
diferena quantitativa que diria respeito a funes e rgos isolados, como se os
fenmenos patolgicos fossem, no organismo vivo, apenas variaes quantitativas,
dficits ou excessos. Como lembra Canguilhem, semanticamente, o patolgico
designado a partir do normal, no tanto como a ou dis, mas como hiper ou hipo.
Assim: a doena no pensada como uma experincia vivida, engendrando
transtornos e desordens, mas como uma experimentao aumentando as leis do
normal73. Quer dizer, a doena nada mais do que um sub-valor derivado do normal.
a definio do normal como estrutura valorativa positiva que define o campo da
clnica. Esta experincia clnica exige que o normal esteja assentado em um campo
mensurvel acessvel observao. Tal campo privilegiado a fisiologia que aparece
assim como fundamento para uma clnica que ir se orientar a partir dos postulados de
uma anatomia patolgica: As tcnicas de interveno teraputica s podem ser
secundrias em relao cincia fisiolgica, isto na medida em que o patolgico s
tem realidade provisria por declinao do normal74. A primeira parte do livro
assim um exame crtico da noo que procura definir o patolgico a partir do normal,
como se a experincia do normal fosse anterior determinao do patolgico.
Vimos, na aula passada, como o captulo II de O normal e o patolgico era dedicado
a uma reflexo sobre tais problemas em Auguste Comte. Comear por Comte no era uma
deciso gratuita. No Frana, foi sobretudo o positivismo de Comte que apareceu como
maneira de retomar a indagao sobre a natureza dos processos de racionalizao prprios a
modernidade. Indagao que no deixava de articular uma histria geral das sociedades e
uma discusso a respeito da positividade das cincias. Neste sentido, este comeo indica
claramente os interesses de Canguilhem. Trata-se de mostrar como o problema do
patolgico um setor da reflexo a respeito dos processos de racionalizao em operao
na modernidade, fato que Comte no teria dificuldade em aceitar.
Canguilhem parte lembrando como Comte seguia Pinel ao defender, sob o nome de
princpio de Broussais que: todas as doenas aceitas como tal so apenas sintomas e que
no poderiam existir perturbaes das funes vitais sem leses dos rgos, ou melhor, de
tecidos75. Maneira de assentar o estudo do patolgico na fisiologia e afirmar que a doena
no seria outra coisa que efeito de variaes de intensidade na ao de estimulantes
indispensveis conservao da sade. Maneira de dizer, tambm, que a observao clnica
no pode ser outra coisa que a comparao entre um fenmeno padro e um fenmeno
alterado e que qualquer patologia deve se basear no conhecimento prvio de um estado
normal.
73
Insisti com vocs como vamos claramente, neste ponto, o mtodo de Canguilhem
em operao. Ele lembra que uma afirmao como a de Comte exige o reconhecimento de
um critrio para definir a normalidade de um fenmeno a no ser que Comte se apie em
conceitos usuais de harmonia entre influncias da natureza e exigncias do organismo. No
entanto, um conceito usual carregado de conotaes como o conceito de harmonia s
pode ser visto como um conceito que expressa posies ideolgicas. Da porque
Canguilhem pode afirmar que ele muito mais um conceito esttico e moral do que
exatamente cientfico, j que guarda preceitos normativos de ordem social: O conceito de
normal se transforma em conceito esttico porque exprime um equilbrio possvel entre as
influncias da natureza e do organismo a respeito do qual o espectador advertido que o
cientista pode se maravilhar. Ele vale tambm como conceito moral porque a harmonia
natural sugere uma ordem pr-estabelecida 76. Ou seja, a norma que serve como base para a
determinao de excesso ou falta no outra coisa que o resultado do apego a algum valor,
logo a algo qualitativo. Um valor que no se deixa pr como valor, que no deve se pr
como valor produzido por um projeto, mas como dado imediato fornecido de maneira no
problemtica pela percepo direta. Como se no interior da positividade de um discurso que
procura racionalizar a clnica a partir de uma fisiologia que traz padres de cientificidade
marcados pelas possibilidades de mensurao e quantificao que, como vimos
anteriormente, vinha dos padres de racionalizao dos objetos da fsica matemtica,
esconde-se uma produo de notematizada de valor que da ordem da ideologia
No entanto, claro que podemos tentar fundar o conceito de norma e de normal em
um terreno mais slido e permevel a uma observao que possa apresentar claramente
seus pressupostos. por isto que Canguilhem passa anlise da teoria que suporta a prtica
de dois grandes mdicos: Claude Bernard e Ren Leriche.
Claude Bernard
Claude Bernard foi o fisiologista francs mais importante do sculo XIX e
responsvel por estudos pioneiros sobre a diabete e a funo do acar no corpo humano.
Adepto da idia de que o progresso da medicina s seria possvel atravs da fisiologia
experimental, Bernard utiliza a fsica e a qumica como bases para todo conhecimento
fisiolgico, isto a despeito de qualquer vitalismo que procurasse afirmar que apenas foras
vitais poderiam explicar, de maneira satisfatria, a natureza e a causalidade de fenmenos
vitais. Assim, para Bernard, a biologia segue o determinismo prprio toda e qualquer
cincia do mundo fsico. Maneira de afirmar a onivalncia do postulado determinista e a
identidade material de todos os fenmenos fsico-qumicos. Bernard foi ainda responsvel
pela noo de meio interno (e que hoje ns chamaramos de homeostase) e que diz
respeito a independncia relativa de funes orgnicas em relao flutuaes do meio
ambiente.
Canguilhem comea seu captulo insistindo na herana positivista em operao na
prtica de Claude Bernard. Maneira de abrir espao atualizao das mesmas crticas que
haviam sido empregadas contra Comte no captulo anterior. Bernard partilha esta noo de
Comte segundo a qual o estado patolgico apenas uma variao quantitativa do estado
normal e que a explicao de fenmenos vitais atravs da noo de um conflito entre dois
agentes opostos infundada. Da porque: O bom senso indica que, conhecendo-se
76
LE BLANC, idem, p. 36
idem, p. 57
CANGUILHEM, idem, p. 61
83
idem, p. 62
84
idem, p. 64
85
idem, p. 65
86
DEBRU, Georges Canguilhem, science et non-science, p. 33
82
idem, p. 68
idem, p. 69
89
idem, p. 71
90
idem, p. 72
91
idem, p. 76
88
O estatuto da psicologia
Aula 7
Temas para monografia:
A constatao do comportamento humano resulta, para o psiclogo, no de uma simples
percepo, mas da percepo complexificada por uma compreenso; conseqentemente, o
dado psicolgico no um dado simples. Enquanto objeto do conhecimento, ele
essencialmente construdo.
(POLITZER, Crtica dos fundamentos da psicologia)
Segundo Aristteles, qualquer cincia procede do espanto. Esta afirmao se aplica
tambm fisiologia. Porm o espanto verdadeiramente vital a angstia suscitada pela
doena
(CANGUILHEM, O normal e o patolgico)
H uma boa razo que impede psicologia de dominar a loucura: que a psicologia s foi
possvel em nosso mundo uma vez que loucura j estava dominada e excluda do drama
(FOUCAULT, Doena mental e psicologia)
meio ambiente que lhe prprio. Da a importncia que Politzer dava a processos como a
simbolizao e a verbalizao narrativa na compreenso dos dispositivos de cura. Pois se
tratava de, atravs da fala, recolocar, no interior da relao a um meio ambiente
propriamente humano (meio naturalmente intersubjetivo) , algo que no encontrava mais
lugar a.
Quando passamos leitura de Canguilhem, vimos que a discusso tomava uma
outra proporo. A discusso sobre a especificidade do fato psicolgico parecia no ocupar
mais lugar algum. Por outro lado, o problema da partilha entre normal e patolgico
deslocou-se para o centro. De fato, Canguilhem opera com uma perspectiva mais larga do
que aquela oferecida por Politzer, j que ele simplesmente no est disposto a operar com
forma alguma de distino estrutural entre o orgnico e o psicolgico. Em vrios momentos
de sua obra, Canguilhem age como quem acredita que o orgnico e o psicolgico segue as
mesmas leis, que entre o fato psicolgico e o fato orgnico no h diferenas maiores de
naturezas (mas apenas de complexidade). Mas, no caso de Canguilhem, isto no significa
tentar reduzir todo estado psicolgico atravs de um materialismo reducionista. Trata-se, ao
contrrio, de complexificar nossa compreenso do orgnico, nossa compreenso dos
fenmenos vitais, de uma forma tal que eles escapem do quadro compreensivo de uma
fisiologia mecanicista e, para usar termos de Politzer, realista e abstrata.
No se trata, com isto, de continuar o velho debate entre causalidade somtica e
causalidade psquica, entre organognese e psicognese. A posio de Canguilhem mais
radical pois assentada na pergunta: compreendemos bem um organismo biolgico quando
vemos nele apenas um feixe de funes e rgos que se submetem a padres gerais de
mensurao e quantificao? Esta vida no seria apenas o exemplo de uma razo que se
transformou em princpio de dominao e controle da vida, ou seja, naquilo que um dia
Foucault chamou de biopoder? Por isto, embora no parea ser um livro sobre psicologia,
O normal e o patolgico teve uma influncia decisiva em toda reflexo posterior sobre a
epistemologia da psicologia e das clnicas da subjetividade.
Dentro do quadro de Canguilhem, como fica ento a distino entre normal e
patolgico? Comecemos lembrando desta afirmao to importante para o filsofo francs.
A sade a vida no silncio dos rgos. Esta frase famosa do cirurgio Ren Leriche
indicava como a doena , em ltima instncia, o que faz o corpo falar. a experincia da
doena que rompe uma certa imanncia silenciosa entre sujeito e o seu prprio corpo; ela
que transforma o corpo em um problema que determina exigncias de saber e configura
necessidades de cuidado e interveno. Desde h muito, ouvimos que o homem que pensa
um animal doente. A frase se presta a, pelo menos, duas interpretaes: no apenas que o
pensar uma doena que marca o ponto de exlio em relao a uma naturalidade perdida,
mas, principalmente, que a doena o que provoca o pensar. Pois, se verdade que toda
cincia procede do espanto, ento no haveria como esquecer desta afirmao maior do
filsofo Georges Canguilhem: o espanto verdadeiramente vital a angstia suscitada pela
doena92. Esta era sua maneira de lembrar que a conscincia da doena o fato primeiro e
independente de uma definio positiva do fenmeno normal.
Se assim for, temos sempre o direito de perguntar de onde vem isto que poderamos
chamar de gramtica da doena, ou seja, este modo com que o saber transforma a doena
em discurso pronto para ser lido e interpretado pelo olhar clnico. Discurso que se expressa
em sintomas, nosografias, distrbios, transtornos, sndromes e sinais vitais. Pois uma das
92
idias fundamentais desta tradio epistemolgica que tem nomes como Michel Foucault e
Georges Canguilhem, consistiu em lembrar que a doena, o patolgico, no tem gramtica
prpria. A maneira com que ela fala depende da maneira com que organizamos o que h a
ser visto e ouvido.
Podemos compreender a primeira parte de O normal e o patolgico como uma
cuidadosa anlise da gnese de uma certa gramtica das doenas que parece ter sido
retomada na atualidade. Pois devemos sempre perguntar: o que est pressuposto em
afirmaes como algum sofre de Transtorno Obsessivo-Compulsivo, algum sofre de
Transtorno de Dficit de ateno e de Comportamento Disruptivo, algum sofre de
Transtorno do Desejo Sexual? Dentre vrias coisas, vale sempre a pena perceber como a
doena compreendida, nestes casos, como um fenmeno de funes rgos tomados de
maneira isolada. Por trs da constituio de patologias que permitem a constituio de
diagnsticos e intervenes que privilegiam categorias pontuais, h a crena fundamental
de que a doena nada mais do que alguma forma de distrbio, transtorno, dficit ou
excesso que acontece no nvel de funes e rgos. Isto legitima uma prtica que
compreende a diferena entre normal e patolgico como uma mera diferena quantitativa,
como se os fenmenos patolgicos fossem, no organismo vivo, apenas variaes
quantitativas de base fisiolgica, o que o vocabulrio do dficit expe de maneira bastante
clara.
Esta perspectiva, por sua vez, possibilita tanto uma clnica submetida fisiologia
quanto uma teraputica que se submete de maneira praticamente sem limites
medicalizao, j que ela o caminho mais curto para a regulao de variaes
quantitativas de base fisiolgica.. Pois, a doena aqui nada mais do que um sub-valor
derivado do normal. a definio do normal como estrutura valorativa positiva que define
o campo da clnica. Esta experincia clnica exige que o normal esteja assentado em um
campo mensurvel acessvel observao. Tal campo privilegiado a fisiologia que
aparece assim como fundamento para uma clnica que ir se orientar a partir dos postulados
de uma anatomia patolgica, ou seja, de uma anatomia fascinada pela procura da leso de
rgos e tecidos como causa explicativa para o desvio da conduta.
Desta forma, a gramtica das doenas de nossa poca pode ser atomizada e
quantificadora porque ela se submete a um ideal normativo assentado na crena na
possibilidade de determinar o normal como estrutura valorativa positiva. Neste sentido, o
discurso hegemnico das cincias mdicas e mdico-psiquitricas da contemporaneidade
no inovou. Na verdade, ele simplesmente reatualizou, como dizia Canguilhem, uma
espcie de dogma cientificamente garantido a respeito da distino entre normal e
patolgico que nos remeteu novamente ao sculo XIX.
Que o progresso cientfico aparea como um grande salto para trs, eis algo que no
deveria nos impressionar, at porque no ser a primeira vez que isto ocorre. Historiadores
das cincias gostam de ver sua disciplina como a descrio de um irresistvel progresso em
direo a um espelhamento, cada vez mais acabado, do mundo e de suas propriedades,
assim como a descrio de um aprofundamento reflexivo sobre os limites e desafios do
fazer cientfico. Infelizmente, esta histria , muitas vezes, a descrio da consolidao de
prticas de instrumentalizao e controle ideologicamente orientadas. Neste sentido,
sempre bom lembrar que decises clnicas a respeito da distino entre normal e patolgico
so, na verdade, um setor de decises mais fundamentais da razo a respeito do modo de
definio daquilo que aparece como seu Outro (a patologia, a loucura etc.). Elas se inserem
102
CANGUILHEM, p. 121
idem, p. 126
104
LE BLAnC, idem, p. 66
103
O estatuto da psicologia
Aula 8
Na aula de hoje, terminaremos a leitura de O normal e o patolgico atravs do comentrio
dos dois ltimos captulos da segunda parte. J temos uma idia clara da estrutura do nosso
livro e de suas estratgias. Canguilhem quer fornecer uma definio renovada do que est
em jogo na distino entre normal e patolgico, definio na qual o patolgico no ser
mais pensado como um simples sub-valor derivado do normal. Lembremos, por exemplo,
desta afirmao to importante para Canguilhem. A sade a vida no silncio dos rgos.
Esta frase famosa do cirurgio Ren Leriche indicava como a doena , em ltima
instncia, o que faz o corpo falar. a experincia da doena que rompe uma certa
imanncia silenciosa entre sujeito e o seu prprio corpo; ela que transforma o corpo em
um problema que determina exigncias de saber e configura necessidades de cuidado e
interveno. Maneira de lembrar que a conscincia da doena o fato primeiro e
independente de uma definio positiva do fenmeno normal.
Sendo assim, temos sempre o direito de perguntar de onde vem isto que poderamos
chamar de gramtica da doena, ou seja, este modo com que o saber transforma a doena
em discurso pronto para ser lido e interpretado pelo olhar clnico. Discurso que se expressa
em sintomas, nosografias, distrbios, transtornos, sndromes e sinais vitais. Pois uma das
idias fundamentais desta tradio epistemolgica que tem nomes como Michel Foucault e
Georges Canguilhem, consistiu em lembrar que a doena, o patolgico, no tem gramtica
prpria. A maneira com que ela fala depende da maneira com que organizamos o que h a
ser visto e ouvido.
Podemos compreender a primeira parte de O normal e o patolgico como uma
cuidadosa anlise da gnese de uma certa gramtica das doenas que parece ter sido
retomada na atualidade. Eu havia insistido: devemos nos perguntar sobre o que est
pressuposto em afirmaes como algum sofre de Transtorno Obsessivo-Compulsivo,
algum sofre de Transtorno de Dficit de ateno e de Comportamento Disruptivo,
algum sofre de Transtorno do Desejo Sexual? Dentre vrias coisas, vale sempre a pena
perceber como a doena compreendida, nestes casos, como um fenmeno de funes
rgos tomados de maneira isolada. Por trs da constituio de patologias que permitem a
constituio de diagnsticos e intervenes que privilegiam categorias pontuais, h a crena
fundamental de que a doena nada mais do que alguma forma de distrbio, transtorno,
dficit ou excesso que acontece no nvel de funes e rgos. Neste sentido, o discurso
hegemnico das cincias mdicas e mdico-psiquitricas da contemporaneidade no
inovou. Na verdade, ele simplesmente reatualizou, como dizia Canguilhem, uma espcie
de dogma cientificamente garantido a respeito da distino entre normal e patolgico que
nos remeteu novamente ao sculo XIX.
neste ponto que comea a segunda parte de O normal e o patolgico. Assim, se a
primeira parte do livro: mostrou que a o dogma positivista da identificao entre normal e
patolgico s pde se sustentar devido desconsiderao de toda individualidade biolgica
[j que o normal no fornecido por individualidade alguma, mas um padro fisiolgico
mensurvel de conformao do organismo], a segunda parte reintroduz a individualidade
biolgica nas questes de doena e sade105.
105
idem, p. 126
idem, p. 145
forma, fica claro que. no primeiro caso, a perspectiva do mdico que aparece como
implementao valorativa. No segundo caso, aquele na posio de paciente que aparece
como centro de produo de valor.
Se assim for, fica a questo de saber qual o critrio de valor que permite, a um
indivduo biolgico, distinguir sade e doena. Neste sentido, Canguilhem lembra que, para
um indivduo, uma norma de vida superior a outra quando comporta o que esta ltima
permite e tambm o que ela no permite. Assim: A doena ainda uma norma de vida,
mas uma norma inferior no sentido que no tolera nenhum desvio das condies em que
vlida, por ser incapaz de se transformar em outra norma 112. At porque, o normal viver
em um meio no qual flutuaes e acontecimentos so possveis. Como nos lembrar
Foucault: a vida o que capaz de erro 113. Ela o que demonstra que a errncia, muito
mais do que a segurana da auto-identidade, a condio prpria do organismo, at porque:
o erro no continue o esquecimento ou o atraso da realizao prometida, mas a dimenso
prpria vida dos homens e indispensvel ao tempo da espera114.
Em ltima instncia, a doena a rigidez de quem est completamente adaptado e
restrito a um meio determinado. Ser sadio no significa apenas ser normal em uma situao
determinada, mas ser normativo nesta e em outras situaes eventuais. O homem se sente
em boa sade quando se sente mais do que normal, isto , no apenas adaptados, mas
normativo, capaz de seguir novas normas de vida. Resumindo: a sade e uma maneira de
abordar a existncia com uma sensao de criador de valor, de instaurador de normas vitais.
Como j disse anteriormente, inegvel o acento nietzscheano nesta compreenso da sade
como posio de criador de valores na relao entre indivduo e meio.
Insistamos ainda em um ponto. Afirmar que a sade , no fundo, uma margem de
tolerncia s infidelidades do meio, implica em admitir que o ser vivo no vive
simplesmente entre leis fsico-qumicas, mas entre seres e acontecimentos que diversificam
estas leis, que modificam seus sentidos habituais. Isto significa incluir uma dimenso, no
campo dos fenmenos vitais, que mais da ordem da histria e de suas reversibilidades, do
que exatamente da ordem do mecanicismo causalmente fechado. Se fato que ser vivo vive
em um mundo de acidentes possveis, porque o meio no um sistema mecnico de
relaes funcionais que aparecem como excitao que exige resposta.
Sobre um certo vitalismo
Talvez este ponto fique mais claro se compreendermos a natureza do vitalismo de Georges
Canguilhem. Nosso autor foi um dos ltimos tericos das cincias a defender uma
perspectiva vitalista na compreenso dos fatos prprios s chamadas cincias da vida.
Compreendamos aqui vitalismo como posio terica que defende a irredutibilidade do
organismo vivo a todo tipo de explicao causal de natureza mecanicista. Muitas vezes, o
vitalismo postula alguma forma de princpio vital (como a fora vital de Bichat, o lan vital
de Bergson, a entelquia de Hans Driesch, etc.), isto a fim de mostrar como processos vitais
no so redutveis a processos fsicos. O resultado foi a compreenso do vitalismo como
uma espcie de postulado metafsico travestido de explicao cientfica. Postulado
metafsico que, muitas vezes, parecia recorrer a noes nebulosas como alma a fim de dar
conta do que poderia ser explicado a partir da aplicao de leis fsicas e qumicas. Contra
112
idem, p. 146
FOUCAULT, La vie: lexprience et la science, p. 1595
114
idem, p. 1594
113
tais derivas em direo a uma metafsica suspeita, a cincia teria caminhado em direo ao
aprofundamento de um certo mecaniscismo capaz de fornecer uma perspectiva de avaliao
segura, mensurvel e eminentemente descritiva.
A peculiaridade da posio de Canguilhem vem do fato dele defender um certo
vitalismo, j que, como vimos, a especificidade de um conceito como vida lhe central.
No entanto, este vitalismo tem uma srie de peculiaridades. H vrias maneiras de
compreender este ponto, mas podemos lembrar aqui de um pequeno texto de Canguilhem
chamado Mquina e organismo. Se a viso corriqueira do problema do embate entre
vitalismo e mecanismo passa pelo embate entre a respeito da possibilidade de reduzir o
organismo ao modelo explicativo da mquina, Canguilhem tende a inverter os plos. Ele
lembra como, para a explicao mecnica dos fenmenos orgnicos, faz-se necessrio, ao
lado das mquinas no sentido de dispositivos cinemticos, mquinas como motores que
retiram a energia de algo para alm do prprio circuito maqunico. Ou seja: A construo
da mquina implica na obrigao de imitar um dado orgnico prvio 115. Por outro lado,
devemos lembrar que, em uma mquina, o todo a soma das partes, o efeito dependente
de uma ordem das causas e ele apresenta uma rigidez funcional. No organismo, ao
contrrio, conhecemos uma varincia de funes, uma polivalncia de rgos e uma
tolerncia a monstruosidades. Este era um ponto importante para a compreenso de um
vitalismo como o de Xavier Bichat. Pois, para Bichar, os atos da vida opem,
invariabilidade das leis fsicas, a idia de instabilidade e de irregularidade advinda das
exigncias do ser vivo.
Assim, devemos perguntar sobre qual o princpio vital que Canguilhem coloca
para alm de toda explicao mecanicista e que sustentaria seu vitalismo. Na verdade,
Canguilhem afirma que s o vitalismo pode compreender a relao entre meio e organismo
como uma relao na qual o organismo atua como centro absoluto de referncia, centro
responsvel por atividades estruturadoras como julgamento e valorao que dependem de
uma causalidade que no prpria a dispositivos mecnicos compreendidos de maneira
tradicional: A fsica uma cincia de campos, de meios. No entanto, acabamos por
descobrir que, para que haja meio ambiente, faz-se necessrio um centro. a posio de um
ser vivo referindo-se experincia que ele vive em sua totalidade que fornece ao meio do
sentido de condies de existncia116. O vitalismo , aos menos nas mos de Canguilhem,
uma forma de recuperar a irredutibilidade do sujeito para o interior do campo da clnica.
Da porque ele afirmar que a recuperao do vitalismo nasce da compreenso de que a
reduo do ser vivo figura da mquina (por mais complexa que seja ela) setor de uma
racionalidade que se realiza como mecanizao da vida. Como se a racionalizao fosse
uma mecanizao do organismo. Este talvez seja o sentido da afirmao de Canguihem do
vitalismo como: uma exigncia, mais do que um mtodo, uma moral, mais do que uma
teoria.
Com isto, Canguilhem pode, de um lado, afirma o primado da clnica sobre toda
tentativa de fundar sua racionalidade a partir da fisiologia. O espao da clnica, com as
demandas do paciente e sua palavra, este espao no qual o que da ordem do patolgico
pode se manifestar enquanto conscincia de uma vida que no se afirma mais como
potncia normativa. Pode ser estranho trazer para a clnica conceitos valorativos e
115
116
Duas questes se colocam: sob quais condies pode-se falar de doena no domnio
psicolgico? Quais relaes possvel estabelecer entre os fatos da patologia mental e os da
patologia orgnica?118.
117
118
O estatuto da psicologia
Aula 9
Na aula de hoje, daremos incio ao mdulo dedicado leitura de Doena mental e
psicologia, de Michel Foucault. Este mdulo deve constar de trs aulas dedicadas leitura
do livro. Esta primeira aula ser dedicada ao comentrio de algumas caractersticas gerais
da experincia intelectual foucauldiana e anlise do primeiro captulo de nosso livro:
Doena mental e doena orgnica. A prxima aula ser dedicada anlise da primeira
parte: As dimenses psicolgicas da doena; ficando a segunda parte do livro, Loucura e
cultura, como objeto da ltima aula do mdulo.
Creio no ser novidade para ningum aqui a importncia decisiva do trabalho de
Michel Foucault no encaminhamento da reflexo epistemolgica sobre o estatuto da clnica
dos fatos psicolgicos, do olhar clnico, assim como das cincias humanas em geral. De
fato, as reflexes de Foucault sobre a psicologia so objetos privilegiados de anlise desde
os primeiros escritos do filsofo. Licenciado em psicologia e diplomado em psicologia
patolgica, Michel Foucault nunca deixou de alinhar sua formao filosfica a uma
reflexo ampla sobre a clnica. Este hibridismo do campo de reflexo prprio experincia
intelectual foucauldiana est absolutamente vinculado a maneira com que Foucault
compreende o que significa a prtica filosfica.
Contrariamente a uma posio hegemnica no meio francs de ento, que via a
filosofia como prtica de anlise interna da sistematicidade de textos que compem a
tradio do pensamento filosfico. para Foucault, ler um texto filosfico principalmente
forar a sistematicidade do discurso filosfico a deparar-se continuamente com seus limites
e misturar-se com aquilo que lhe era aparentemente estranho. Foragem que impediria a
filosofia de se transformar em : Perptua reduplicao de si mesma, em um comentrio
infinito de seus prprios textos e sem relao a exterioridade alguma 119. Comentrio
infinito que nos levaria necessariamente simples textualizao de prticas discursivas.
Mas se esta confrontao com a exterioridade fundamento da leitura filosfica de
texto porque: a filosofia no nem historicamente nem logicamente fundadora de
conhecimento, mas existem condies e regras de formao do saber aos quais o discurso
filosfico encontra-se submetido a cada poca, como toda forma de discurso com
pretenses racionais. Isto leva Foucault a afirmar a existncia de uma espcie de
inconsciente do saber que tem suas prprias formas e regras especficas 120. Uma
proposio estruturalista por excelncia, isto na medida em que ela procura definir os vrios
sistemas de saber atravs da reconstituio de uma espcie de macro-estrutura.
Neste sentido, trata-se de inserir a filosofia e seus textos no interior da reconstruo
de prticas discursivas cujas formas e regras compem o inconsciente do saber de uma
poca. Eis o objeto central das exploraes de Foucault a respeito de campos extrafilosficos como a clnica, a epistemologia das cincias humanas, entre outros. Trata-se de
mostrar, por exemplo, como a determinao da racionalidade das prticas clnicas de
interveno um setor privilegiado da razo e de seus modos de racionalizao. Neste
sentido, a tcnica e questes aparentemente tcnicas so pontos maiores de compreenso
dos modos com que uma racionalidade historicamente determinada racionaliza os campos
da praxis. Como j devemos ter percebido, nenhum problema clnico simplesmente um
problema clnico ligado apenas a condies neutras de eficcia de interveno. Problemas
119
120
realizada a partir de uma atuao particular) enquanto que a realidade da doena mental no
permitiria tal abstrao em relao ao meio (j que a cura seria realizada a partir do ponto
de relao entre indivduo e meio).
Tais pontos so levantados por Foucault a fim de afastar o postulado de uma
metapatologia. Como vemos, a distino estrita entre natureza e cultura implica em uma
distino estrita entre doena mental e doena orgnica.
O estatuto da psicologia
Aula 10
Na aula de hoje, daremos seqncia ao nosso mdulo dedicado leitura de Doena mental
e psicologia atravs do comentrio da primeira parte do livro, esta intitulada As dimenses
psicolgicas da doena e que comporta os captulos: Doena e evoluo, Doena e
histria individual e Doena e existncia.
Vimos, na aula passada, como Foucault partia da necessidade de operar uma diviso
estrita entre o que da ordem da doena mental e o que da ordem da doena orgnica, isto
a ponto de perguntar : Se parece to difcil definir a doena e a sade psicolgica, no
seria por que nos esforamos de maneira v em lhes aplicar massivamente conceitos
igualmente destinados medicina somtica? 131. Foucault chegava a fornecer trs aspectos
nos quais a distino estrita entre natureza e cultura produzia a impossibilidade de
estabelecer similitudes entre doena mental e doena orgnica.
O primeiro destes aspectos dizia respeito abstrao. Foucault insistia que as
patologias orgnicas no excluem a possibilidade de abstrao de elementos isolados a fim
de reconstituir uma anlise causal inteligvel. No entanto, no caso da patologia mental, tal
abstrao impossvel devido totalidade constituda pela noo de personalidade. O
segundo aspecto de distino entre doena mental e doena orgnica a partilha entre
normal e patolgico. Foucault afirma neste momento haver distines claras entre normal e
patolgico no domnio dos fenmenos orgnicos. Seguindo Leriche, Foucault afirma existir
algo como uma planificao coerente das possibilidades fisiolgicas do organismo fundado
na anlise dos mecanismos em estado normal. Ou seja, Foucault age como quem admite
que a noo de norma e de normal na anlise dos fenmenos fsicos relativamente noproblemtica. Isto feito para afirmar que: em psiquiatria, ao contrrio, a noo de
personalidade torna particularmente difcil a distino entre o normal e o patolgico 132.
Pois sintomas que podem identificar quadros patolgicos podem tambm ser descrio de
anlises de carter. Por fim, Foucault afirma que a relao entre o doente e seu meio
distinto nos casos de doena mental e nos casos de doena orgnica. Pois a noo de
totalidade orgnica permitiria isolar a individualidade em sua originalidade mrbida (j que
a cura seria realizada a partir de uma atuao particular) enquanto que a realidade da
doena mental no permitiria tal abstrao em relao ao meio (j que a cura seria realizada
a partir do ponto de relao entre indivduo e meio).
Com isto, fica a questo de saber qual a perspectiva adequada de anlise das
patologias mentais, assim como o quadro mais amplo dos fatos psicolgicos em geral. Este
o sentido do primeiro captulo do nosso livro. Trata-se de expor qual seria a perspectiva
capaz de permitir a apreenso adequada do que se manifesta em uma patologia mental
determinada. Neste sentido, a simples compreenso do encadeamento prprio aos ttulos
dos trs captulos que compem a primeira parte j evidencia a estratgia foucauldiana. Ele
comear discutindo a noo, ento clssica, da doena como regresso (da a discusso
entre doena e evoluo), isto a fim de introduzir, no quadro da compreenso da doena, a
dimenso da histria individual. Uma histria individual que, por sua vez, dever se
submeter a uma anlise existencial inspirada por suas leituras de Ludwig Binswanger e que
procura apreender: liberdade fundamental de uma existncia que escapa, de pleno direito,
131
132
arcaica136. Isto nos exige pois passarmos de uma compreenso evolutiva geral a
especificidade da histria pessoal do doente, isto se quisermos compreender o sentido da
doena. Ou seja, passarmos de uma psicologia evolutiva a uma psicologia capaz de levar
em conta a dimenso histrica da constituio da subjetividade. De qualquer forma,
Foucault admite que: a importncia do evolucionismo na psicologia advm, sem dvida,
de que ele foi o primeiro a mostrar que o fato psicolgico s tem sentido em relao a um
futuro e a um passado, que seu contedo atual repousa sobre um fundo silencioso de
estruturas anteriores que o preenchem com toda uma histria, mas ele implica, ao mesmo
tempo, um horizonte aberto para o eventual137.
Foucault comea o captulo III lembrando que evoluo e histria obedecem a
dimenses temporais distintas. A histria doao de sentido ao passado atravs de
exigncias do presente. o presente que organiza e determina o sentido do que
recuperado no passado. J a evoluo marca do passado sobre a determinao do
presente. Ela o peso determinista de um processo de desenvolvimento j previamente
definido. Ou seja, a articulao entre passado e presente obedecem, na histria e na
evoluo, sentidos distintos. Da porque Foucault afirmar: A psicologia da evoluo, que
descreve os sintomas como condutas arcaicas, deve ser completada por uma psicologia da
gnese que descreve, em uma histria, o sentido atual de tais regresses138.
No interior da psicanlise, encontramos as duas tendncias, a evolutiva e a histrica.
Grosso modo, a dimenso evolutiva aparece na metapsicologia atravs da teoria das fases
da libido, enquanto que a dimenso histrica aparece na clnica atravs da compreenso da
regresso no como queda natural no passado, mas como fuga intencional para fora de um
presente conflitual. Tanto que o passado ao qual se retorna , fundamentalmente, o passado
imaginrio das substituies fantasmticas: a doena tem por contedo o conjunto das
reaes de fuga e de defesa atravs da qual o doente responde situao na qual se
encontra; a partir deste presente, desta situao atual que se deve compreender e dar
sentido s regresses evolutivas que aparecem nas condutas patolgicas; a regresso no
apenas uma virtualidade da evoluo, ela uma conseqncia da histria 139. Ou seja, a
regresso um processo vinculado a conflito que se desenrolam no campo de interaes do
sujeito com a configurao do meio no qual ele se insere e age. Vimos algo bastante
parecido com Georges Politzer quando este lembrava que, para a psicanlise, interpretar
no era aplicar esquemas prvios de simbologias (embora Freud nunca tenha deixado de
reconhecer a presena de um certo simbolismo nos sonhos), mas permitir uma reconstruo
de contextos no interior da qual o sujeito aparecia em um papel ativo. Este o sentido de
uma afirmao central de Politzer: a idia [central para a psicanlise] segundo a qual
poderia haver uma dialtica puramente individual qual os atos individuais forneceriam
uma significao puramente individual totalmente estranha psicologia clssica 140. Por
outro lado, esta insistncia foucauldiana na histria individual aparece em Politzer atravs
da exigncia de reconstruo daquilo que ele chama de drama como seqncia de atos na
qual cada ato vai configurando o campo de significao dos atos posteriores.
Foucault chegar mesmo a utilizar o vocabulrio do sentido a fim de, em um acento
claramente politzeriano, insistir que a psicanlise teria trazido a psicologia o problema da
136
FOUCAULT, idem, p. 31
FOUCAULT, Dits et crits, p. 153
138
FOUCAULT, Maladie mentale ..., p. 51
139
idem, p. 43
140
idem, p. 102
137
produo do sentido ao deixar de lado hipteses muito amplas e gerais atravs das quais
explicamos o homem como um setor privilegiado do mundo natural, isto ao insistir no
vnculo entre formao de sintomas e resultado de processos de socializao. Por outro
lado, ele compreende a tendncia, forte nos anos 30 e 40 graas principalmente a Anna
Freud, de transformar a psicanlise em uma anlise dos mecanismos de defesa atravs dos
quais o Eu produz sintomas contra as exigncias pulsionais do isso, em um movimento que
indica a insistncia no uso psicanaltico da histria. Pois analisar os mecanismos de defesa
significaria analisar o modo com que o sujeito reproduz e reconstitui sua histria a partir de
conflitos prprios sua situao presente. Significa compreender como ele mobiliza a
regresso, o isolamento, a introjeo, a projeo, a anulao retroativa, entre outros, isto a
fim de dar conta de contradies nas quais ele se enredou no presente.
Mas Foucault no deixa de fazer uma pergunta fundamental: qual a natureza do
conflito que produz esta fuga em direo ao passado? Conflito que no apenas uma
experincia da contradio e da ambigidade, mas uma experincia contraditria e
ambivalente [como, por exemplo, aquela responsvel pela produo do sintoma fbico no
pequeno Hans]. Freud se servia basicamente da noo de dualidade pulsional a fim de
expor uma gnese (a-histrica e praticamente naturalizada) do conflito. Este recurso a
foras impessoais que agem na antecmara da subjetividade no a perspectiva de
Foucault. Na verdade, ele prefere lembrar que a dimenso afetiva desta contradio interna
que gera o conflito psquico a angstia. Trata-se ento de compreender a quais objetos e
situaes a angstia est normalmente vinculada. Trata-se, por outro lado, de elevar a
angstia a condio para a compreenso do sentido da histria individual, j que a angstia
marca a natureza do conflito psquico responsvel pela doena. Foucault chega mesmo a
afirmar que a angstia o corao da doena.
Lembremos que nem todas as experincias de contradio e conflito so
necessariamente experincias nas quais a angstia aparece como dimenso afetiva
fundamental. A pergunta fica sendo pois: o que faz com que certos conflitos sejam
vivenciados de maneira angustiante e outros no por um sujeito; o que faz com que alguns
sujeitos vivam certos conflitos de maneira angustiante enquanto outros sujeitos no caem
em tal situao. Ao colocar questes desta natureza, Foucault procura uma dimenso para
alm da anlise da histria individual, j que se trata de determinar um elemento
organizador da histria, enquanto campo de conflito, para alm da prpria histria: para
que uma contradio seja vivenciada sob o modo angustiante da ambivalncia, para que, a
respeito de um conflito, o sujeito se feche na circularidade dos mecanismos patolgicos de
defesa, foi necessrio que a angstia j estivesse presente, que ela tenha transformado a
ambiguidade de uma situao em ambivalncia de reaes 141. Da a necessidade de passar
a uma anlise existencial da doena, ou seja, desta maneira com que, a partir da angstia, a
doena se transforma em modo de estar no mundo, em maneira com que a existncia
humana se oferece no mundo142, temporalizando-se, espacializando-se e projetando um
mundo. Foucault chega a falar de um estilo de angstia cuja interpretao fornece a
unidade significativa dos fenmenos de uma personalidade.
De qualquer forma, ao operar a partir desta via, Foucault no inovava. Baseando-se
fundamentalmente em Binswanger, mas sem deixar de sentir os ecos de alguns trablahos de
Jean-Paul Sartre (em especial O ser e o nada, de 1943), Foucault via, na gnese da angstia
um problema que no podia ser resolvido por uma anlise do tipo naturalista, nem por uma
141
142
normal. H sempre a referncia a uma norma partilhada. No entanto, esta referncia feita
no interior da prpria doena e a partir de seus mbiles. Foucault fala, nestes casos, de um
reconhecimento alusivo, de uma conscincia ambgua na qual o normal reconhecido
mas seu valor suspenso. De qualquer forma, tal reconhecimento fundamental por
mostrar como a doena mental posio existencial organizada a partir de uma referncia
de normatividade fornecida pelo meio social. Ou seja, a doena ainda um modo de
participao social. Falta ainda analisar como tal articulao se estrutura.
O estatuto da psicologia
Aula 11
Com a aula de hoje, terminaremos o comentrio de Doena mental e psicologia, de Michel
Foucault. Na aula passada, vimos como, ao tentar definir a natureza do que estaria em jogo
na noo de doena mental, Foucault havia partido da noo, hegemnica ainda no incio
do sculo XX, da doena mental como regresso a um estgio anterior de desenvolvimento.
A doena seria, principalmente, dissoluo de funes complexas de coordenao e
substituio de tais funes por atividades simples e restritas. Tudo se passaria, pois, como
se aceitssemos que: a doena suprime as funes complexas, instveis e voluntrias,
exaltando as funes simples, estveis e automticas146. Isto permitia Foucault afirmar que
a doena aparece aqui no exatamente como uma essncia anti-natural, mas como a prpria
natureza e um processo inverso de involuo.
Vimos ainda como este esquema de compreenso da doena tornou-se hegemnico
principalmente devido a defesa de paralelismo entre filognese e ontognese, entre a
evoluo do que da ordem da espcie e a repetio de tal esquema evolutivo, de maneira
mais rpida, no desenvolvimento do indivduo. Tal noo de doena depende de uma certa
teleologia evolutiva na qual etapas anteriores so superadas e integradas em etapas
subseqentes; noo esta cuja teleologia se organiza a partir da lgica do aperfeioamento
progressivo.
Contra tal perspectiva, Foucault insistia que a regresso apenas um aspecto
descritivo da doena. At porque, por mais profunda que seja a dissoluo de funes
complexas, a personalidade nunca desaparece completamente, o prprio processo de
dissoluo com seus motivos e modos de desenvolvimento sempre vinculado aos quadros
de uma personalidade. Da porque Foucault pode afirmar que: o que a regresso da
personalidade encontra no so elementos dispersos nem uma personalidade mais
arcaica147. Isto nos exige pois passarmos de uma compreenso evolutiva geral a
especificidade da histria pessoal do doente, isto se quisermos compreender o sentido da
doena. Ou seja, passarmos de uma psicologia evolutiva a uma psicologia capaz de levar
em conta a dimenso histrica da constituio da subjetividade.
Vimos como Foucault continuava seu trajeto lembrando que evoluo e histria
obedecem a dimenses temporais distintas. A histria doao de sentido ao passado
atravs de exigncias do presente. o presente que organiza e determina o sentido do que
recuperado no passado. J a evoluo marca do passado sobre a determinao do
presente. Ela o peso determinista de um processo de desenvolvimento j previamente
definido. Ou seja, a articulao entre passado e presente obedecem, na histria e na
evoluo, sentidos distintos. Da porque Foucault afirmar: A psicologia da evoluo, que
descreve os sintomas como condutas arcaicas, deve ser completada por uma psicologia da
gnese que descreve, em uma histria, o sentido atual de tais regresses148.
Esta dimenso histrica aparece na clnica atravs da compreenso da regresso no
como queda natural no passado, mas como fuga intencional para fora de um presente
conflitual. Tanto que o passado ao qual se retorna , fundamentalmente, o passado
imaginrio das substituies fantasmticas. Ou seja, a regresso um processo vinculado a
146
individual, nem na situao existencial do ser humano. At porque, a doena mental s teria
realidade, valor e sentido no interior de uma cultura que a reconhece como tal. As leis
psicolgicas, base para a partilha entre o normal e o patolgico em sade mental, so, ao
menos segundo Foucault, sempre relativas a situaes histricas determinadas. Da porque
nosso captulo chama-se As condies histricas da doena mental.
Aparentemente, estaramos com Foucault diante de um certo relativismo historicista
que definiria a doena mental a partir da norma positivamente enunciada pela mdia
fornecida pelo social. Ou seja, a doena mental seria definida de maneira negativa como
desvio em relao normal e de maneira virtual como possibilidade do comportamento no
sancionada socialmente. Mas Foucault quer complexificar esta relao entre norma e
loucura. Ele lembra, por exemplo, que encontramos situaes nas quais as doenas so
reconhecidas como tais, mas t-las , ao mesmo tempo, condio necessria para que certos
sujeitos possam assumir certos papis sociais. Ele cita, a este propsito, certas patologias
necessrias para que, em certas sociedades, algum seja reconhecido como xam. Esta
uma maneira de mostrar como uma sociedade pode se exprimir positivamente nas doenas
mentais manifestadas por seus membros. O que nos deixa como duas questes maiores:
Como nosso cultura conseguiu dar a doena o sentido de desvio e ao doente um estatuto
de excluso? E como, apenas disto, nossa sociedade se exprime nestas formas mrbidas que
nas quais ela recusa a reconhecer-se?150.
Foucault comea lembrando que a transformao da loucura em doena mental um
fato historicamente determinado. Ele insiste como antes do sculo XIX, largos espectros da
loucura no tinham suporte mdico. Mesmo a noo de internao no estava ainda
vinculada a alguma forma de interveno teraputica; ela era apenas uma medida de
internamento. At a metade do sculo XVII, a loucura pe deixada essencialmente em estado
livre: ela circula, ela faz parte da decorao e da linguagem comuns151.
Lembremos, por exemplo, da maneira com que Foucault aborda este problema em
Histria da loucura. Neste livro, Foucault parte para anlise de um deslocamento maior
operado na partilha entre racionalidade e loucura, ou seja, entre a razo e seu Outro: Antes
que a loucura fosse dominada, por volta de meados do sculo XVII [notemos que se trata
da mesma data que marca o corte epistmico que instaura o pensamento clssico], antes que
velhos ritos fossem ressuscitados a seu favor, ela estava ligada a todas as experincias
maiores da Renascena152. Aos olhos de Focault, isto indicaria uma configurao do saber
no qual a loucura no apareceria como aquilo que se coloca na exterioridade da
racionalidade, mas como um fato interno prpria razo. Analisando textos literrios,
filosficos e morais da Idade Mdia e da Renascena nos quais questo da loucura,
Foucault conclui que, em todos os casos: A loucura um momento duro, mas essencial no
trabalho da razo153. Pois a verdade da loucura est no fato dela ser interior razo, dela
ser uma figura da razo, algo como uma fora e uma necessidade momentnea que a razo
utiliza para melhor se assegurar de si mesma 154. Da porque Foucault fala de uma
conscincia trgica da loucura devida a sua proximidade com a razo. Uma conscincia
150
muito mais forte do que a conscincia crtica que marcar a experincia moderna da
loucura.
Tal conscincia trgica da proximidade da loucura seria responsvel, entre outras
coisas, pela no-excluso do louco atravs da internao: Antes do sculo XVIII, a loucura
no era sistematicamente internada, e era essencialmente considerada como uma forma de
erro ou iluso (....) As prescries dadas pelos mdicos eram de preferncia a viagem, o
repouso, o passeio, o retiro, o corte com o mundo vo e artificial da cidade155.
Vale a pena lembrar aqui que a prpria noo de racionalidade at a renascena
estava fundamentalmente vinculada a uma certa noo de mimesis e de semelhana: At o
fim do sculo XVI, a semelhana desempenhou um papel decisivo no saber da cultura
ocidental156. Procurar o sentido era, fundamentalmente, expor as relaes de semelhana e
a prpria relao da linguagem ao mundo era pensada sob a forma da analogia, e no sob a
forma da representao. No por acaso que a loucura, em especial a psicose, ser vista
mais tarde como um pensamento perdido nas malhas da analogia e das identificaes
imaginrias.
Este quadro de relaes entre razo e loucura se modifica radicalmente a partir de
meados do sculo XVII. Foucault descreve tal mudana em um captulo da Histria da
loucura chamado de A grande internao. Nele, o filsofo escreve como os grandes
leprosrios espalhados por toda a Europa e praticamente desativados depois do fim das
epidemias de lepra foram transformados em asilos para onde eram mandados loucos,
libertinos e desempregados. Longe de ser uma simples medida jurdica, ela expunha uma
nova lgica na relao da loucura: a lgica da excluso e da separao.
Para descrever esta excluso e separao da loucura, Foucault comenta um
pargrafo da primeira meditao de Descartes, texto escrito mesma poca e fundamental
para a constituio da noo moderna de subjetividade. Tal trecho diz respeito a uma etapa
da universalizao da dvida atravs da passagem do argumento do erro dos sentidos ao
argumento do sonho :
Mas, ainda que os sentidos nos enganem s vezes, no que se refere s coisas pouco
sensveis e muito distantes, encontramos talvez muitas outras, das quais no se pode
razoavelmente duvidar, embora as conhecssemos por intermdio deles: por exemplo, que
eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel entre as
mos e outras coisas desta natureza. E como poderia eu negar que estas mos e este corpo
sejam meus? A no ser, talvez que eu me compare a esses insensatos (insanis), cujo crebro
est de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que constantemente
asseguram que so reis quando esto inteiramente nus; ou imaginam ser cntaros ou ter um
corpo de vidro. Mas qu? So loucos (amentes) e eu no seria menos extravagante
(demens) se me guiasse por seus exemplos157.
O que chama a ateno de Foucault a distino, feita por Descartes, entre erro,
iluso e loucura. As experincias do erro dos sentidos e da iluso dos sonhos sero
absorvidas no encaminhamento da razo em direo a sua auto-fundamentao. Elas faro
parte da ordem das razes. Mas a experincia da loucura ser simplesmente desqualificada.
Aparentemente, a recusa do argumento da loucura na crtica a um saber fundamentado na
percepo sensvel total. Foucault sensvel ao fato de Descartes utilizar ao mesmo
tempo um termo mdico (insanis) e jurdico (amens- demens) que indica aqueles que esto
155
fora de todo e qualquer dilogo racional, uma categoria de pessoas incapazes de certos atos
civis, religiosos e judicirios. Insanis um termo caracterizante, amens e demens so
termos desqualificantes.
Isto demonstraria a distncia entre, de um lado, a experincia do erro dos sentidos e
da iluso dos sonhos e, de outro, da loucura. O erro e a iluso dizem respeito ao objeto do
pensamento e invalidam os contedos mentias do pensamento, a loucura diz respeito ao
sujeito que pensa, e eu que penso no posso ser louco j que a loucura seria condio de
impossibilidade do pensamento. Neste ponto, Foucault convoca Montaigne para medir a
distncia que separa esta excluso da loucura da compreenso anterior da sua proximidade
com a razo: assim o perigo da loucura desapareceu do exerccio mesmo da razo. Esta
voltou-se para um plena possesso de si na qual ela s pode encontrar armadilhas com o
erro e perigos como a iluso158. A partir de agora, a loucura estaria exilada da regio do
saber e exilada de sua linguagem originria. A partir de agora, ela seria apenas chamada a
falar no interior do discurso mdico.
No entanto, este processo precisou esperar at o sculo XIX. Pois a partir do
sculo XIX que a internao ganha o sentido no apenas de enclausuramento, mas de
medicalizao e, principalmente, de reconstituio moral. A funo do mdico ser tambm
funo de controle moral atravs da aplicao de um padro de normalidade do
comportamento.At porque: curar significar inculcar no doente as sentimentos de
dependncia, de humildade, de culpabilidade, de reconhecimento que so a armadura moral
da vida em famlia159.
a partir deste momento que a loucura deixa de ser considerada um fenmeno
global que diz respeito ao corpo e alma. Ela ser um fato que concerne essencialmente a
alma e receber, pela primeira vez, estatuto e significao psicolgica. Esta
psicologicizao setor de uma operao mais ampla de insero da loucura em sistemas
de valores e de represso morais. Da, por exemplo, a infantilizao do louco [lembremos
que a criana ser outra figura da ausncia de razo] e a conseqente determinao da
loucura como regresso.
A questo fundamental nesta infantilizao : para que a conduta infantil seja um
refgio para o doente, para que a regresso infncia se manifeste como figura da neurose,
faz-se necessrio que a sociedade instaure uma barreira intransponvel entre o passado e o
presente, entificando uma linearidade do tempo que figura de uma certa noo de
progresso. Da mesma forma, para que o delrio religioso seja estrutura privilegiada da
parania com seus delrios de grandeza e fim do mundo, faz-se necessrio que a laicizao
da cultura aproxime a religio de um delrio sistematizado.
Desta forma, Foucault pode afirmar que a psicologia s pode aparecer a partir do
momento em que a relao loucura foi definida pela dimenso exterior da excluso e do
castigo, assim como pela dimenso interior da moralizao e da culpabilidade. Com a
psicologia, perde-se uma relao essencial entre a razo e a desrazo. A respeito de tal
relao essencial, Foucault fala das obras de Hlderlin, Nerval, Roussel e Artaud, obras que
ainda permitiriam aquilo que ele chama de grande confrontao trgica com a loucura
[Contra a psicologia, Foucault parece procurar um certo recurso esttica na formalizao
no redutora da alteridade].
A doena mental ser assim apenas a loucura alienada na psicologia. Foucault
insiste em um programa de liberao da loucura e de restituio sua linguagem de origem.
158
159
Pois o advento da psicologia deve ser inserido no interior dos modos gerais de relao
alienada que o homem ocidental estabeleceu consigo mesmo.
O estatuto da psicologia
ltima aula
Esta a ltima aula de nosso curso. Enquanto ltima aula, trata-se de um momento
adequado para recapitular nosso trajeto e apontar algumas questes que devem ser
desdobradas.
Na primeira aula, eu inicie nosso curso lembrando da seguinte afirmao de
Georges Canguilhem: inevitvel que, ao propor-se como teoria geral da conduta, a
psicologia faa sua alguma idia de homem. Faz-se necessrio ento permitir filosofia
perguntar psicologia de onde ela retira tal idia e se no seria, no fundo, de alguma
filosofia160. Uma afirmao desta natureza indicava que prticas clnicas, principalmente
aquelas prprias aos fatos psicolgicos, seriam dependentes, de maneira fundamental, de
decises prvias e muitas vezes no tematizadas a respeito dos padres de racionalidade da
observao, da interveno teraputica e, principalmente, da definio do objeto prprio
psicologia. Neste sentido, seguindo a afirmao de Canguilhem, a reflexo epistmica
sobre a psicologia seria, necessariamente, uma reflexo sobre a maneira com que uma certa
antropologia filosfica guiaria, de forma insidiosa, a racionalidade da direo do
tratamento. Como se a psicologia fosse, a todo momento, remetida a uma raiz metafsica a
respeito da qual ela no seria capaz de se livrar. Raiz metafsica que nos colocaria diante da
necessidade em responder uma pergunta maior, a saber: uma prtica clnica pode abstrair de
pr, em seu horizonte de racionalidade, uma concepo de sujeito que se desdobre em uma
teoria da conduta racional, base da definio do que se define como patologia mental ?
Ns vimos, no decorrer de nosso curso, como esta antropologia filosoficamente
orientada apareceria no interior da reflexo psicolgica. Ela estaria presente no interior do
movimento central de constituio de toda e qualquer clnica, ou seja, nos modos de
partilha entre o normal e o patolgico. A idia central do curso foi, pois, que o prprio
critrio de distino entre normal e patolgico pressuposto pela clnica dos fatos
psicolgicos j porta uma antropologia filosoficamente orientada. Normal
necessariamente um conceito valorativo e uma questo maior para toda epistemologia da
psicologia : qual a gnese de conceitos valorativos que operam no interior da clnica?
Uma questo desta natureza s adquire importncia se problematizarmos, de
antemo, toda e qualquer tentativa de naturalizao dos critrios de normalidade. Foi desta
problematizao que partimos quando insisti na fragilidade de se tentar medir a correo da
clnica a partir da eficcia em relao cura do sofrimento enquanto dado imediatamente
fornecido percepo mdica. Esta profisso de f da soberania da clnica nos lembraria:
para alm de toda e qualquer questo de mtodo e de definio de objeto, a clnica est
sempre diante de uma realidade inabalvel, a saber, o sofrimento do paciente. Minorar o
sofrimento nossa funo e o nico critrio de orientao da clnica. Um pouco como se a
eficcia teraputica em relao a uma categoria fenomnica extremamente normativa como
o sofrimento fosse condio suficiente para assegurar a validade de dispositivos clnicos.
Desde o incio, eu insisti no que tal perspectiva teria de ideolgica. Pois
ideolgico todo sistema de saber e de orientao da praxis que procura naturalizar seus
dispositivos de justificao como se estivssemos diante de fatos que falam por si
mesmo. Neste sentido, podemos perguntar: afinal, o sofrimento um fato que fala por si
160
quantificveis. Uma subsuno que visava definir a distino entre normal e patolgico a
partir da noo de variao quantitativa de funes e rgos tomados de maneira isolada.
Vimos como, para Politzer, a fundao de algo como uma psicologia fisiolgica,
esta fundada no uso massivo de tcnicas experimentais de mensurao de constantes
fisiolgicas objetivamente identificveis, um uso que pressupunha reduzir estados e eventos
mentais mensurao objetiva de estmulos e respostas fisiolgicas, era um dos resultados
possveis de um certo mito da natureza dupla do homem. Politzer acredita que a psicologia
at ento nunca conseguiu escapar das conseqncias de um pretenso dualismo entre mente
e corpo. Tal dualismo teria produzido, por um lado, o subjetivismo espiritualista que
restitua alma os seus direitos graas s iluses da imediaticidade da interioridade. Uma
psicologia baseada nos usos clnicos da introspeco, uma certa cincia do sentido interno,
seria resultado resultante daquilo que poderamos chamar de ideologia da vida interior,
ou seja, a implementao clnica de um conceito normativo de sujeito baseada na
autonomia espontnea e na transparncia imediata de si a si. Por outro, teramos as
mltiplas figuras de um materialismo objetificador que interpretava o comportamento e o
pensamento humano atravs de um paradigma reducionista tal como, por exemplo, a
psicologia do reflexo, as diferentes formas de associacionismo, a psicologia experimental
ou mesmo o behaviorismo. Contrariamente a noo de que a conscincia deveria ser
distinta das leis causais que determinam o mundo fsico, tratava-se de insistir que a mesma
objetividade prpria a descrio dos fenmenos fsicos deve ser aplicada apreenso da
inteligibilidade dos fatos psicolgicos.
Politzer lembrava que o importante a renunciar a fim de se livrar do mito da
natureza dupla humana a perspectiva realista ingnua que acredita ver, no fato
psicolgico, um dado simples que corresponde a uma realidade perceptvel, seja ela interna
ou externa. neste ponto que o psiclogo da introspeco e o behaviorista se tocam: todos
os dois acreditam na premissa epistemolgica do fato naturalmente dado. Enquanto os
primeiros acreditam que nada mais bem conhecido pela mente do que ela prpria e, por
isto, os estados mentais esto diretamente presentes conscincia, os segundos invertem a
posio terica afirmando que so os estados fsicos que naturalmente so dados
conscincia e recaem no realismo metafsico.
Abandonar a premissa metodolgica do fato psicolgico como fato naturalmente
dado significava assumir que todo fato psicolgico um fato construdo, fato socialmente
construdo, ou seja, ao que procura realizar uma inteno significativa, um telos.
Teleologia da ao que s pode ser revelada no interior dos modos de relao entre sujeito e
aquilo que lhe aparece como meio social. A psicologia aparece assim como uma teoria da
ao.
No entanto, esta teoria da ao deve levar em conta a inteno significativa,
inteno esta que pode no aparecer como um pensamento sob o regime do para-si da
conscincia, mas que sempre se manifesta no endereamento a um outro, sempre est
implicada na constituio do campo no qual a ao ir se desdobrar. A pergunta pelo
sentido do fato psicolgico assim uma pergunta pela subjetividade do sentido, pergunta
esta que encontra, no mtodo psicanaltico, uma inspirao maior. Notemos ainda que se
trata de um conceito de subjetividade claramente vinculado ao primado da
intersubjetividade, isto atravs da defesa da centralidade da noo de meio social.
Mas o que seria a doena mental, para Politzer? Ela s poderia ser uma alienao,
no sentido marxista da palavra, ou seja, uma impossibilidade de reconstruo da totalidade
das relaes de sentido pressupostas pela ao subjetiva. Da porque tal ao ser alienada
orgnico e o psicolgico segue as mesmas leis, que entre o fato psicolgico e o fato
orgnico no h diferenas maiores de naturezas (mas apenas de complexidade). Mas, no
caso de Canguilhem, isto no significa tentar reduzir todo estado psicolgico atravs de um
materialismo reducionista. Trata-se, ao contrrio, de complexificar nossa compreenso do
orgnico, nossa compreenso dos fenmenos vitais, de uma forma tal que eles escapem do
quadro compreensivo de uma fisiologia mecanicista e, para usar termos de Politzer,
realista e abstrata.
No se trata, com isto, de continuar o velho debate entre causalidade somtica e
causalidade psquica, entre organognese e psicognese. A posio de Canguilhem mais
radical pois assentada na pergunta: compreendemos bem um organismo biolgico quando
vemos nele apenas um feixe de funes e rgos que se submetem a padres gerais de
mensurao e quantificao? Esta vida no seria apenas o exemplo de uma razo que se
transformou em princpio de dominao e controle da vida, ou seja, naquilo que um dia
Foucault chamou de biopoder? Por isto, embora no parea ser um livro sobre psicologia,
O normal e o patolgico teve uma influncia decisiva em toda reflexo posterior sobre a
epistemologia da psicologia e das clnicas da subjetividade.
Lembremos mais uma vez da maneira como Cnaguilhem organiza a distino entre
normal e patolgico. O homem normal o homem normativo, o ser capaz de instituir
novas normas, mesmo orgnicas. Uma norma nica de vida sentida de modo privativo, e
no positivamente168. Isto nos permite sintetizar uma definio de sade no mais
vinculada entificao de constantes fisiolgicas. Sade a posio na qual o organismo
aparece como produtor de normas na sua relao ao meio ambiente. At porque a norma,
para um organismo, exatamente sua capacidade em mudar de norma. O que implica em
uma noo de relao entre organismo e meio ambiente que no pode ser compreendida
como simples adaptao e conformao. Um organismo completamente adaptado e fixo
doente por no ter uma margem que lhe permita suportar as mudanas e infidelidades do
meio. A doena aparece assim como fidelidade a uma norma nica. Da esta definio:
uma vida s, uma vida confiante na sua existncia, nos seus valores, uma vida em flexo,
uma vida flexvel (...) Viver organizar o meio a partir de um centro de referncia que no
pode, ele mesmo, ser referido sem com isto perder sua significao original169.
O que isto significa para uma reflexo sobre patologias que so objeto da
psicologia? O que isto significa, por exemplo, para uma reflexo sobre o critrio de
normalidade que deve orientar a clnica, sobre a antropologia que estaria atuando em toda
psicologia? H algo aqui de defesa de uma soberania capaz de se afirmar como
potencialidade criadora, mas uma soberania que s se afirma quando o sujeito capaz de
transcender as configuraes determinadas de seu meio. H uma inadequao fundamental
entre sujeito e meio que aparece como condio para a afirmao da soberania criadora da
subjetividade. Mas no se trata aqui simplesmente de viver conforme outras regras, como
se estivssemos aqui a estetizar o autismo, ou de operar em um mundo interno. Trata-se de
assumir o meio no mais como o que se oferece em uma resistncia esttica, mas como o
que porta, em si mesmo, o princpio de indeterminao. A mudana maior uma mudana
na compreenso do meio, mudana que permite uma afirmao da potencialidade criadora
de novas normas. Vale para os fatos psicolgicos aquilo que Canguilhem afirmara a
respeito dos fatos orgnicos: anomalias podem aparecer como novas normas.
168
169
idem, p. 105
CANGUILHEM, La connaissance de la vie, p. 188