O Estatuto Da Psicologia - Vladimir Safatle

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Curso Integral

O estatuto da psicologia
2007 (12 aulas)

Curso ministrado no
Instituto de Psicologia
Universidade de So Paulo

Prof. Vladimir Safatle

O estatuto da psicologia
Aula 1
Uma questo de mtodo e de objeto
inevitvel que, ao propor-se como teoria geral da conduta, a psicologia faa sua alguma
idia de homem. Faz-se necessrio ento permitir filosofia perguntar psicologia de onde
ela retira tal idia e se no seria, no fundo, de alguma filosofia 1. Esta questo de mtodo
enunciada por Georges Canguilhem em um texto clebre a respeito dos fundamentos
epistemolgicos da psicologia servir de base para o desenvolvimento de nosso curso.
Trata-se aqui de apresentar uma certa tradio de reflexes sobre o estatuto
epistmico da psicologia, da psicanlise e das cincias mdicas que se desenvolveu em solo
francs principalmente entre os anos vinte e sessenta do sculo passado. Tal tradio,
embora no seja, no sentido forte do termo, uma Escola (j que era composta por
pensadores cujos programas de pesquisa eram bastante autnomos entre si), foi marcada
por uma partilha de problemas e de dispositivos de crtica determinantes para a constituio
de um modo particular de encaminhamento de questes derivadas da tentativa em
fundamentar prticas clnicas. Pois no interior desta tradio encontraremos a defesa de que
as prticas clnicas, principalmente aquelas prprias aos fatos psicolgicos, seriam
dependentes, de maneira fundamental, de decises prvias e muitas vezes no tematizadas a
respeito dos padres de racionalidade da observao, da interveno teraputica e,
principalmente, da definio do objeto prprio psicologia. Neste sentido, seguindo a
afirmao de Canguilhem, a reflexo epistmica sobre a psicologia seria, necessariamente,
uma reflexo sobre a maneira com que uma certa antropologia filosfica guiaria, de forma
insidiosa, a racionalidade da direo do tratamento. Como se a psicologia fosse, a todo
momento, remetida a uma raiz metafsica a respeito da qual ela no seria capaz de se livrar.
Raiz metafsica que nos colocaria diante da necessidade em responder uma pergunta maior,
a saber: uma prtica clnica pode abstrair de pr, em seu horizonte de racionalidade, uma
concepo de sujeito que se desdobre em uma teoria da conduta racional, base da definio
do que se define como patologia mental ?
A tradio de reflexo a qual me refiro nunca deixou pois de colocar, clnica dos
fatos psicolgicos, duas questes maiores: o que fundamenta seu mtodo de observao,de
interveno e o que particulariza seu objeto, ou seja, em que condies podemos dizer
estarmos diante de um fato psicolgico que pode ser reportado a um sujeito? Uma questo
de mtodo e uma questo vinculada ao estatuto de seus objetos que converge para um
problema central que guiar o desenvolvimento do nosso curso, a saber; qual o estatuto da
objetividade dos fenmenos subjetivos? Seria ele dependente da objetividade prpria aos
fenmenos fsicos e orgnicos? Ou ainda: h, de fato, algo como fenmenos subjetivos
ou eles nada mais so do que fenmenos orgnicos descritos em um vocabulrio
inflacionado do ponto de vista metafsico? Como dir Michel Foucault, na primeira frase
que abre seu primeiro livro, Doena mental e psicologia: Duas questes se colocam: sob
quais condies pode-se falar de doena no domnio psicolgico? Quais relaes possvel
1

CANGHUILHEM, Georges, Quest ce que la psychologie?, p. 367

estabelecer entre os fatos da patologia mental e os da patologia orgnica? 2. Estas questes


esto no horizonte de toda e qualquer reflexo epistmica sobre as prticas clnicas de fatos
psicolgicos.
Algum que ouve questes desta natureza, poderia tentar esvazi-las afirmando que
aquele que se interessa pela clnica no precisa perder seu tempo tentando resolver
intrincadas questes filosficas sobre a essncia do sujeito, assim como questes
epistemolgicas a respeito da objetividade de fenmenos subjetivos. Pois a clnica mediria
sua correo a partir da eficcia em relao cura do sofrimento. Esta profisso de f da
soberania da clnica nos lembraria: para alm de toda e qualquer questo de mtodo e de
definio de objeto, a clnica est sempre diante de uma realidade inabalvel, a saber, o
sofrimento do paciente. Minorar o sofrimento nossa funo e o nico critrio de
orientao da clnica. Um pouco como se a eficcia teraputica em relao a uma categoria
fenomnica extremamente normativa como o sofrimento fosse condio suficiente para
assegurar a validade de dispositivos clnicos.
Lembremos apenas o que tal perspectiva tem de ideolgica. Pois ideolgico todo
sistema de saber e de orientao da praxis que procura naturalizar seus dispositivos de
justificao como se estivssemos diante de fatos que falam por si mesmo. Neste sentido,
podemos perguntar: afinal, o sofrimento um fato que fala por si mesmo ou um
fenmeno que levado a falar no interior de contextos scio-histricos determinados?
Podemos, por exemplo, tirar as conseqncias de afirmaes como esta, de Foucault:
Desde o sculo XVIII, a medicina tem tendncia a narrar sua prpria histria como se o
leito dos doentes tivesse sido sempre um lugar de experincias constante e estvel, em
oposio s teorias e sistemas que teriam estado em permanente mudana e mascarado, sob
sua especulao, a pureza da evidncia clnica. Na verdade, tudo se passaria como se : Na
aurora da Humanidade, antes de toda crena v, antes de todo sistema, a medicina residia
em uma relao imediata do sofrimento com aquilo que alivia 3. Tal pressuposio de
imediaticidade, no entanto, esquece como o que nos faz sofrer muda constantemente de
configurao. Poderamos tentar dizer que a experincia da dor algo que ancora o
sofrimento em um solo inquestionvel e indiferente a contextos. Mas, novamente, no seria
difcil lembrar como no h nenhuma relao imediata entre a dor fsica e o desprazer de
um sofrimento vivenciado como doena que leva sujeitos a se submeterem clnica. Basta
lembrar aqui das palavras de um psiclogo, Nietzsche: S a grande dor, esta longa e
lenta dor na qual queimamos como madeira verde nos obriga, a ns filsofos, a descer em
nossas profundezas e a nos desfazer de toda confiana (...) Duvido que tal dor nos deixe
melhor, mais eu sei que ela nos aprofunda4
Sendo assim, se aceitarmos a inconsistncia de um discurso sobre a soberania da
clnica que procure se legitimar atravs de uma pretensa imediaticidade do sofrimento,
ento poderemos comear a medir a importncia de questes vinculadas ao mtodo e a
definio do objeto da clnica dos fatos psicolgicos.
No interior da tradio que estudaremos, as respostas a tais questes foram distintas
e nem sempre convergentes. No entanto, elas constituiro um sistema de relaes no qual
respostas posteriores nunca deixaro de fazer referncia, mesmo que de maneira
relativamente implcita, as respostas precedentes. a este sistema de relaes dialgicas
2

FOUCAULT, Michel; Maladie mentale et psychologia, p. 1


FOUCAULT, O nascimento da clnica, pp. 59-60
4
NIETZSCHE, A gaia cincia - introduo
3

onde a resoluo de um problema sempre, ao mesmo tempo, posio em relao a um


modo precedente de enunciar tal problema, que damos o nome de tradio.
Georges Politzer, Maurice Merleau-Ponty, Georges Canguilhem, Michel Foucault,
Jacques Lacan. Todos estes nomes fazem parte de uma tradio de reflexo sobre a clnica
dos fatos psicolgicos que marcou, de maneira decisiva, o cenrio intelectual francs. ela
que ser nosso objeto de estudos neste semestre.
Em comum, tais nomes partilham uma base terica que parte, em maior ou menos
grau, da sensibilidade s questes epistmicas postas clnica pelo advento da psicanlise
freudiana e da Gestalttheorie (e, em alguns casos, pelo behaviourismo). Sensibilidade que
os levam a questionar todo privilgio dado noes como vida interior e introspeco, a
criticar toda perspectiva atomstica na compreenso dos fatos psicolgicos e todo
materialismo reducionista, isto em prol da defesa do centralidade das relaes entre
organismo e meio ambiente, entre sujeito e meio social. A Gestalttheorie teria demonstrado
como o fato psicolgico no era a simples percepo de dados sensoriais, mas um ato de
conhecimento que implica a atualizao de estruturas globais de orientao da conduta, o
que, como veremos, significa deslocar o objeto de preocupao da psicologia, da anlise
atomizada das funes intencionais (como, por exemplo, ateno, memria, emoo,
sentimento, volio etc.) para as estruturas que determinam o modo global de relao entre
indivduo e meio. A psicanlise, por sua vez, teria sido responsvel no apenas pela
desmedicalizao das prticas clnicas atravs da compreenso da fora performativa da
fala e da auto-reflexo, mas principalmente pela determinao dos sintomas como modos
de manifestao de demandas sociais de reconhecimento que revelam processos de
formao da histria do desejo de um sujeito com suas representaes maiores de confronto
com instncias de socializao. Como se a psicanlise exigisse a submisso de toda direo
do tratamento a uma elaborao de processos de formao subjetiva.
Por outro lado, todos eles esto tambm engajados em um combate sem trguas
contra o que aparece como uma falha epistmica aberta no corao da clnica dos fatos
psicolgicos. Como dir Politzer, em um acento aceito por todos eles: Sabemos que a
histria da psicologia h cinqenta anos apenas uma epopia de desiluses e que, ainda
hoje, novos programas so lanados todos os dias para fixar as esperanas novamente
disponveis5. Canguilhem continuar com a mesma verve ao dizer: Na verdade, vrios
trabalhos de psicologia do a impresso de misturar, a uma filosofia sem rigor, uma tica
sem exigncia e uma medicina sem controle6.
Esta falha epistmica estaria vinculada, principalmente, a uma herana dualista que
ainda guiaria os desenvolvimentos da psicologia. Ou seja a definio do objeto da
psicologia, assim como seu desenvolvimento, estariam ainda marcados por um certo
dualismo cartesiano a respeito da relao entre mente e corpo (dualismo que, diga-se de
passagem, no completamente imputvel a Descartes, como veremos em outras aulas).
Isto teria feito com que o desenvolvimento da psicologia oscilasse, indefinidamente, entre
um certo privilgio da liberdade da espontaneidade da conscincia a despeito da
causalidade orgnica, isto atravs de um subjetivismo assentado no uso clnico de noes
como instrospeco, interioridade, intuio e uma acentuao inversa vinculada
pura essencialidade da causalidade orgnica, isto atravs de um materialismo reducionista
para o qual todo fato psicolgico deve ser reduzido a fatos orgnicos. Diramos atualmente
que tal perspectiva materialista v todo estado mental apenas como uma maneira mais
5
6

POLITZER, Georges; Critique des fondements de la psychologie, p. 2


CANGUILHEM, idem, p. 366

confusa de nomear estados cerebrais e processos fsicos, o que, no limite, nos levaria a
questionar a prpria realidade de uma noo como a de conscincia. Limite este que foi
transposto por alguns nomes maiores da filosofia anglo-sax da mente, como Daniel
Dennet.
Mas, para esta tradio de reflexo sobre a clnica dos fatos psicolgicos que ser
nosso objeto de estudos, tratava-se de recuperar uma perspectiva monista na definio dos
fenmenos vinculados subjetividade, mas sem que isto implicasse em reduo
materialista. No entanto, viabilizar tal monismo no-reducionista significava problematizar
a prpria concepo de sujeito pressuposto pelas prticas clnicas a fim de se livrar do peso
do dualismo. Por outro lado, tratava-se tambm de determinar a especificidade das
determinaes causais em operao na constituio dos fatos psicolgicos, em especial na
definio do que estaria em jogo em uma doena mental.
Assim, duas vias complementares se abriam para a reflexo epistmica sobre a
clnica. A primeira dizia respeito crtica das figuras do sujeito (ou dos modos de negao
do sujeito) pressupostas pelos mtodos e direes do tratamento de prticas clnicas
hegemnicas. Crtica que poderia chegar ao desvelamento de como, atravs da
pressuposio de certas estruturas da subjetividade como horizonte da clnica, a psicologia
mostrava que sua essncia era ser uma prtica disciplinar que visava, na verdade, formar
subjetividades atravs da constituio de quadros de patologias Maneira de submeter a
reflexo epistemolgica a uma crtica do poder, crtica que visava, principalmente,
demonstrar como as exigncias de racionalidade podem ser invertidas em processos de
dominao. Michel Foucault, principalmente atravs de seus trabalhos que visavam
demonstrar como a razo determinava e era solidria do seu Outro (a loucura) um nome
maior desta tendncia. Lembremos, por exemplo, do sentido de sua afirmao: H uma
boa razo para que a psicologia nunca possa dominar a loucura; que a psicologia s foi
possvel no nosso mundo uma vez dominada a loucura e j excluda do drama 7. Ou seja, a
experincia trgica e dramtica da loucura, experincia no interior da qual a prpria partilha
entre razo e loucura advm nebulosa, no objeto da psicologia porque a psicologia
solidria de uma determinao da loucura atravs de processos de constituio de estruturas
nosogrficas que so, na verdade, fenmenos da ordem das prticas de dominao. Como
se a verdadeira mola do poder no estivesse diretamente vinculada determinao positiva
de padres de conduta, mas gesto dos modos de ruptura da norma racional. Uma
perspectiva que, de uma certa forma, encontramos tambm em Jacques Lacan, quando este
afirma: A psicologia veculo de ideais: nela, a psique no representa mais do que o
patrocnio que a faz qualificar de acadmica. O ideal servo da sociedade 8. Ideal que se
manifesta mais atravs da determinao do patolgico do que atravs da enunciao da
norma.
Tais crticas a respeito daquilo que forneceria os fundamentos de decises clnicas
sobre perspectivas de orientao de dispositivos de interveno devem, no entanto, abrir
espao para um conceito positivo de razo que fornecer fundamentos renovados para a
clnica dos fatos psicolgicos. Veremos como cada um dos nomes que estudaremos tentou
dar conta desta questo, seja negando a prpria autonomia da clnica atravs de um recurso
a alguma forma de guinada tica (Foucault), seja atravs da reconstruo da clnica sobre
novas bases fornecidas pela psicanlise (Lacan), por uma reavaliao da medicina
(Canguilhem) ou por gneros de hermenutica (Politzer).
7
8

FOUCAULT, Maladie mentale e psychologie, p. 104


LACAN, Ecrits, p. 832

Estrutura do curso
A fim de viabilizar tais objetivos, o curso ser dividido em quatro mdulos. Cada
mdulo, ir durar de 3 a 5 aulas e ser estruturado a partir de um texto-base a ser
comentado; texto cuja leitura obrigatria. Textos suplementares sero indicados para
fornecer suportes de compreenso. Os mdulos esto dispostos em ordem cronolgica, isto
a fim de permitir a identificao das matrizes de constituio da tradio epistemolgica
que estudaremos.
O primeiro mdulo dedicado a Georges Politzer e o texto-base ser Crtica dos
fundamentos da psicologia. Como texto de apoio, sero disponibilizados Georges Politzer:
sessenta anos da Crtica dos fundamentos da psicologia, de Bento Prado Jnior e dois
captulos de O conceito de mente, de Gilbert Ryle, intitulados: O mito cartesiano e
Psicologia.
O livro de Politzer, escrito em 1928, foi saudado como um acontecimento no que
diz respeito reflexo epistemolgica sobre a psicologia e a psicanlise. Seu tom
panfletrio marcou uma longa gerao de pensadores franceses, em especial MerleauPonty, Sartre, Lacan e Foucault. Por um lado, tratava-se da primeira reflexo sistemtica a
respeito do impacto epistemolgico trazido pela psicanlise freudiana. Vindo de uma
tradio marxista, Politzer desenvolvia sua leitura de Freud a partir de uma perspectiva
marxista que anulava a base biologista da metapsicologia, ainda vinculada psicofsica de
Fechner, Helmholtz, Brcke, Du-Bois Reymond e a relanava em um quadro de redefinio
das condies de compreenso do fato psicolgico em geral. Era a objetividade do
subjetivo que estava em questo.
Politizer compreendia que os movimentos psicolgicos contemporneos - no caso, a
Gestalt, o behaviourismo e a psicanlise - eram ligados entre si pela tentativa de dissolver o
que ele chamava de mito da dupla natureza humana; ou seja, o mito do pretenso dualismo
entre mente e corpo. de Politzer a idia de que a psicologia anterior a estes trs
movimentos teria sido apenas a elaborao nocional de tal mito atravs da oscilao entre
duas sadas possveis.
Por um lado, o subjetivismo espiritualista que restitua alma os seus direitos graas
s iluses da imediaticidade da interioridade. Por outro, o materialismo que interpretava o
comportamento e o pensamento humano atravs de um paradigma reducionista ou
organicismo tal como, por exemplo, a psicologia do reflexo e as diferentes formas de
associacionismo. Faltava aos dois plos a perspectiva de uma cincia da primeira pessoa,
cincia que descreve objetos que s teriam realidade ao serem conjugados na primeira
pessoa, ou seja, cincia que estados que no tm o mesmo estatuto epistmico que estado
de coisas por dependerem da assuno de um sujeito. Estado subjetivos que, por sua vez,
tem seu sentido dependente da relao com os acontecimentos do meio no qual se desenrola
o vivido e na sua relao com o indivduo, enquanto ele o sujeito deste vivido. Uma
perspectiva distinta daquela adotada pelas cincias da terceira pessoa tal como a fsica,
por exemplo.
Vemos, aqui, o materialismo histrico do vis marxista de Politzer. O sentido do
fato psicolgico no se encontra no desvelamento da vida interior. Ele encontra-se no todo
formado pelo drama subjetivo, pelas relaes concretas com os outros e pela relao
conflitual com a sociedade. Da a definio: com efeito, um gesto que eu fao um fato
psicolgico, pois ele um segmento do drama que representa minha vida. A maneira com
que ele se insere neste drama dado ao psiclogo pela narrativa que eu posso fazer sobre

tal gesto. Mas o gesto esclarecido pela narrativa que o fato psicolgico e no o gesto
parte, nem o contedo realizado da narrativa 9. O gesto em si no tem valor psicolgico
algum. Somente o gesto inserido no drama histrico subjetivo atravs da narrativa que o
sujeito dele faz, demonstrando seu sentido, que tem valor para a psicologia. Colocaes
desta natureza sero fundamentais para Foucault e Lacan desenvolverem suas teorias da
doena mental.
Mas antes de analisarmos tais teorias, teremos um segundo mdulo no qual ser
questo de Georges Canguilhem, O texto-base ser O normal e o patolgico, de 1943. Os
textos de apoio, por sua vez, sero: O que a psicologia?, do prprio Canguilhem, La vie: l
experience et la science, de Michel Foucault e Canguilhem et les normes, de Guillaume
Le Blanc
Canguilhem , sem dvida, o nome mais eminente da epistemologia das cincias
mdicas e biolgicas do sculo XX e figura fundamental no desenvolvimento da
epistemologia das cincias humanas. Sua influncia se fez sentir durante muito tempo,
principalmente devido a um de seus alunos, Michel Foucault. Dentre suas obras, O normal
e o patolgico a mais ambiciosa e sistemtica. Trata-se, principalmente, de mostrar como
a partilha entre normal e patolgico solidria do que significa compreender a vida como
atividade normativa. Pois o patolgico no a pura e simples ausncia de norma, mas uma
nova configurao do organismo atravs da implementao de outras normas na sua relao
com o meio. Canguilhem critica, desde cedo, uma perspectiva que define a doena apenas
como variaes quantitativas de funes e rgo isolados em estado normal, seja para mais,
seja sob a forma de dficits orgnicos. Ao contrrio, a doena um acontecimento que diz
respeito ao organismo vivo encarado na sua totalidade Pois: no h um nico fenmeno
que se realize no organismo doente da mesma forma como no organismo so 10. Quando
classificamos como patolgico um sistema ou um mecanismo funcional isolado,
esquecemos que aquilo que os tornam patolgicos a relao de insero na totalidade
indivisvel de um comportamento individual. Canguilhem chega mesmo a afirmar que ser
doente , para o homem, viver uma vida diferente.
Defender tal perspectiva equivale a determinar a sade a partir da relao ativa a um
meio: s possvel definir o estado normal de um ser vivo por uma relao normativa de
ajustamento a determinados meios11. No entanto, esta noo de ajustamento ser
radicalmente complexificada por Canguilhem, j que no se trata aqui de uma adaptao
simples a meios estticos, mas de instaurar o que o filsofo chama de margem de
tolerncia s infidelidades do meio12. Veremos, em outras aulas, o que tal margem de
tolerncia pode querer significar.
Por hora, vale insistir que tal estratgia de vincular o normal a partir de uma relao
normativa de ajustamento ao meio leva Canguilhem a afirmar que no fato algum que seja
normal ou patolgico em si. Eles so normal e patolgico no interior de uma relao entre
organismo e meio ambiente. Colocaes desta natureza sero fundamentais para a
redefinao da causalidade prpria s doenas mentais, j que se trata apenas de tirar as
consequncias da complexificao do meio ambiente humano. Quando se trata de norma
humana, elas so determinadas como possibilidade de um organismo agir em situao
social. No homem, os estmulos patognicos jamais so recebidos como simples fatos
9

POLITZER, pag. 248


CANGUILHEM, O normal e o patolgico, p. 52
11
idem, p. 117
12
idem, p. 159
10

fsicos em estado bruto, mas como sinais, dotados de significao, de tarefas ou de provas a
serem realizadas. Com isto, coloca-se a exigncia de recorrer a um conceito de sujeito para
a prpria definio da partilha entre normal e patolgico.
A partir da poderemos abordar duas perspectivas maiores para a reflexo sobre os
fundamentos da clnica dos fatos psicolgicos. Uma, nos vm de Jacques Lacan. Ser
questo aqui da leitura de Proposies sobre a causalidade psquica, texto publicado em
1950. Os textos de apoio sero: Le dveloppement mecaniciste de la psychiatrie labri
du dualisme cartsien, de Henri Ey e Lacan: a formao do conceito de sujeito, de
Bertrand Ogilvie.
Este texto de Lacan problematiza a noo de causalidade psquica a partir da recusa
em submet-la a uma perspectiva organicista. Seu incio j em tom polmico, j que se
trata de criticar a organo-dinamismo proposto pelo psiquiatra Henri Ey. Alinhando-se a
um programa geral de racionalidade da clnica fortemente marcado por Politzer, Lacan
chega a definir a loucura como um fenmeno que: no separvel do problema da
significao para o ser em geral, ou seja, do problema da linguagem para o homem 13.
Maneira lacaniana de definir a causalidade da doena mental a partir da relao entre
organismo e meio ambiente, ou seja, entre sujeito e meio social cuja inteligibilidade se
daria atravs da sua reduo linguagem. Mas, contrariamente ao que poderamos esperar,
no se trata aqui de definir a doena mental como desvio de adaptao em relao ao
universo simblico implicado em todo uso da linguagem. Servindo-se de uma certa
dialtica das identificaes de inspirao hegeliana, trata-se de afirmar, ao contrrio, que a
doena , um pouco como veremos em Canguilhem, a impossibilidade de transcender as
determinaes imediatas da percepo do meio social, impossibilidade de construir uma
margem de tolerncia s infidelidades do meio. A clnica dos fatos psicolgicos vira,
assim, clnica que no teme em re-introduzir conceitos filosficos como transcendncia,
ser do homem, liberdade/alienao; isto a fim de orientar seus dispositivos de
interveno e interpretao a partir de um conceito renovado de sujeito. Como se a clnica
estivesse marcada pelo projeto de reintroduzir o sujeito no interior de um discurso com
aspiraes de objetividade.
Por fim, o ltimo mdulo ser dedicado leitura de Doena mental e psicologia, de
Michel Foucault. Os textos de apoio sero os captulos IV, VI e VII de O nascimento da
clnica.
Creio no ser novidade para ningum aqui a importncia decisiva do trabalho de
Michel Foucault no encaminhamento da reflexo epistemolgica sobre o estatuto da clnica
dos fatos psicolgicos. Nosso curso ir terminar mostrando como tal importncia
indissocivel da maneira com que Foucault se insere no interior da tradio de reflexo que
configuramos atravs dos nomes de Politzer, Canguilhem e Lacan. Para tanto, vamos
analisar um livro, inicialmente escrito em 1954 mas depois totalmente reconstrudo poca
de sua reedio, em 1962. momento em que Foucault j havia defendido sua tese sobre a
Histria da Loucura. Este pequeno livro, Doena mental e psicologia, uma porta de entrada
privilegiada para a compreenso da experincia intelectual de Michel Foucault por retomar
temas articulados no interior da reflexo filosfica francesa desde os anos vinte e por j
indicar os caminhos que Foucault trilhar em direo ao estabelecimento de sua estratgia
maior: submeter a reflexo epistemolgica sobre as cincias humanas a uma genealogia do
poder e das prticas disciplinares. Submisso que aparece no horizonte desde que Foucault
13

LACAN, Ecrits, p. 166

admite que: o homem s se transformou em uma espcie psicolgizvel a partir do


momento em que sua relao loucura permitiu uma psicologia 14. Como se a prpria
normatizao da vida produzisse seu outro.

14

FOUCAULT, Maladie mentale et psychologia, p. 88

O estatuto da psicologia
Aula 2
Na aula passada, vimos quais eram as coordenadas gerais responsveis pelo
desenvolvimento deste curso. Tratava-se, principalmente, de apresentar uma certa tradio
de reflexes sobre o estatuto epistmico da psicologia, da psicanlise e das cincias
mdicas que se desenvolveu em solo francs principalmente entre os anos vinte e sessenta
do sculo passado. Tal tradio, embora no seja, no sentido forte do termo, uma Escola (j
que era composta por pensadores cujos programas de pesquisa eram bastante autnomos
entre si), foi marcada por uma partilha de problemas e de dispositivos de crtica
determinantes para a constituio de um modo particular de encaminhamento de questes
derivadas da tentativa em fundamentar prticas clnicas. Pois no interior desta tradio
encontraremos a defesa de que as prticas clnicas, principalmente aquelas prprias aos
fatos psicolgicos, seriam dependentes, de maneira fundamental, de decises prvias e
muitas vezes no tematizadas a respeito dos padres de racionalidade da observao, da
interveno teraputica e, principalmente, da definio do objeto prprio psicologia.
Neste sentido, a reflexo epistmica sobre a psicologia seria, necessariamente, uma reflexo
sobre a maneira com que uma certa antropologia filosfica guiaria, de forma insidiosa, a
racionalidade da direo do tratamento. Como se a psicologia fosse, a todo momento,
remetida a uma raiz metafsica a respeito da qual ela no seria capaz de se livrar. Raiz
metafsica que nos colocaria diante da necessidade em responder uma pergunta maior, a
saber: uma prtica clnica pode abstrair de pr, em seu horizonte de racionalidade, uma
concepo de sujeito que se desdobre em uma teoria da conduta racional, base da definio
do que se define como patologia mental ?
A tradio de reflexo a qual me refiro nunca deixou pois de colocar, clnica dos
fatos psicolgicos, duas questes maiores: o que fundamenta seu mtodo de observao,de
interveno e o que particulariza seu objeto, ou seja, em que condies podemos dizer
estarmos diante de um fato psicolgico que pode ser reportado a um sujeito? Uma questo
de mtodo e uma questo vinculada ao estatuto de seus objetos que converge para um
problema central que guiar o desenvolvimento do nosso curso, a saber; qual o estatuto da
objetividade dos fenmenos subjetivos? Seria ele dependente da objetividade prpria aos
fenmenos fsicos e orgnicos?
Como vimos na aula passada, o primeiro mdulo de nosso curso, este que se inicia
na aula de hoje, ser dedicado a um dos nomes fundamentais no interior deste debate:
Georges Politzer com seu Crtica dos fundamentos da psicologia.
Personagem peculiar, Politzer era filsofo e terico marxista de orgem hngara,
embora vivesse em Paris desde 1921, isto devido a sua participao no movimento
fracassado que levou ao efmero governo socialista de Bela Kun. A partir dos anos 30, ele
dar aulas de materialismo dialtico na Universidade Operria de Paris. Desde cedo
interessado pela psicologia e pela psicanlise, Politzer ir, a partir dos anos 30, tomar
distncia da ltima de maneira ferrenha, isto a fim de se dedicar economia poltica e
difuso do marxismo. Ele morrer fuzilado pelos nazistas em 1942.
Para os que ainda no conhecem Crtica dos fundamentos da psicologia, escrito em
1928, vale a pena lembrar como ele foi rapidamente saudado como um acontecimento no
que diz respeito reflexo epistemolgica sobre a psicologia e a psicanlise. Seu tom
panfletrio marcou uma longa gerao de pensadores franceses, em especial Merleau-

Ponty, Sartre, Lacan e Foucault. Por um lado, tratava-se de uma crtica dos fundamentos
tericos da psicologia que procurava fazer tabula-rasa de sua histria. Isto ficava claro logo
no prefcio: Trata-se, para ns, essencialmente, de colocar os problemas de tal maneira
que a discusso, sem poder nunca retornar a este psicologia que s deve existir para o
historiador, possa ser relanada a partir de uma base nova e desenvolver-se a partir de um
novo plano15. Com Isto, Politzer procurava criar as condies de possibilidade para o
advento daquilo por ele chamado de psicologia concreta, ou seja, uma psicologia no
mais dependente de conceitos e mtodos abstratos incapazes de dar conta da maneira com
que o vivido adquire sentido para os sujeitos.
Por outro lado, Politzer desenvolvia da primeira reflexo sistemtica a respeito do
impacto epistemolgico trazido pela psicanlise freudiana. Vindo de uma tradio marxista,
Politzer desenvolvia sua leitura de Freud a partir de uma perspectiva marxista que anulava a
base biologista da metapsicologia, ainda vinculada psicofsica de Fechner, Helmholtz,
Brcke, Du-Bois Reymond e a relanava em um quadro de redefinio das condies de
compreenso do fato psicolgico em geral. Era a objetividade do subjetivo que estava em
questo. Pois, como veremos, trata-se, a partir desta operao, de fornecer: a definio do
fato psicolgico na esfera do vivido, na perspectiva da primeira pessoa do singular,
rigorosamente destacada dos processos causais objetivos16.
Na aula de hoje, ser questo de um comentrio da Introduo Crtica dos
fundamentos da psicologia. Na aula que vem, nosso objeto de estudos ser o primeiro
captulo, este intitulado: As descobertas na psicanlise e a orientao em direo ao
concreto.
J nas primeiras pginas de nosso texto, o tom polmico se apresenta rapidamente.
Politzer pretende falar da: morte da psicologia oficial, desta psicologia que se prope
estudar os processos psicolgicos, seja procurando apreend-los em si mesmos [ou seja, de
maneira imediata, como um dado imediatamente disponvel introspeco da conscincia],
seja atravs de seus concomitantes ou determinantes fisiolgicos [como se a fisiologia fosse
naturalmente o espao causal capaz de orientar os mtodos prprios clnica], seja atravs
de mtodos bricolados17. Ou seja, trata-se de colocar em suspeio tudo aquilo que se
apresentava como progresso na fundamentao do conhecimento dos fatos psicolgicos
desde que Wundt aparecera como fundador da psicologia moderna por ter sido o
responsvel pelo primeiro laboratrio do mundo dedicado psicologia experimental.
De fato, Politzer lembra como Wundt aparecia enquanto momento mais bem
realizado de uma trajetria visando livrar a psicologia do penso de noes metafsicas de
alma ou da possibilidade de apreenso imediata de dados da conscincia atravs da autoobservao. Da normalmente a maneira de descrever o impacto das pesquisas de Wundt
como um abandono da submisso da psicologia filosofia, abandono da noo de
psicologia como cincia da alma, isto a partir do uso massivo de tcnicas experimentais
de mensurao de constantes fisiolgicas objetivamente identificveis. Uso massivo que
pressupunha reduzir estados e eventos mentais mensurao objetiva de estmulos e
respostas fisiolgicas. Desta forma, aparece uma psicologia fisiolgica que determinava o
fato psicolgico fundamental como a excitao a partir de rgos externos de sentido.
Mas esta submisso da racionalidade da psicologia fisiologia era o resultado de
uma longa tradio racionalista que procurava definir a psicologia como fsica do sentido
15

POLITZER, Critiques des fondements de la psychologie, p. VIII


PRADO JR., Filosofia da psicanlise, p. 15
17
POLITZER, idem, p. 2
16

externo, ou seja, como o que permite o clculo capaz de: determinar as constantes
quantitativas da sensao e as relaes entre tais constantes 18. Devemos ler nesta
perspectiva sua dependncia epistmica de Wundt psicofsica de Fechner, para quem os
princpios gerais da psicofsica envolvem apenas a manipulao de relaes quantitativas,
assim como de Helmholtz e Du Bois-Reymond, para quem, por sua vez, s h, no
organismo, foras fsico-qumicas em atuao.
O que deve ser salientado aqui como a fsica matemtica aparece enquanto padro
de racionalidade para a constituio da objetividade da psicologia. A objetividade do objeto
da psicologia deveria ser pensada tal como a objetividade prpria a fenmenos que so
objetos da fsica, ou seja, a partir de possibilidade de mensurao, de reduo quantitativa e
de abstrao a um padro geral de clculo. Da a esperana em : fazer aparecer, nas leis
dos fatos de conscincia, um determinismo analtico do mesmo tipo que este cuja mecnica
e a fsica permitem esperar uma validade universal a toda cincia19.
Esta perspectiva prpria psicologia fisiolgica de Wundt criticada por Politzer
atravs da acusao de formalismo. Um formalismo que demonstraria como a psicologia
experimental no seria outra coisa que um disfarce responsvel pela sobrevivncia da
psicologia clssica, esta mesma que seria marcada pelas crenas metafsica na noo de
alma.
De fato, tal afirmao de Politzer parece, a primeira vista, o mais completo
contrasenso. Pois em que a psicologia experimental continuaria ainda tributria dos
descaminhos prprios a uma noo pr-cientfica de psicologia? claro que uma parte da
resposta se encontra na prpria definio do que Politzer entende por formalismo. Com
palavras zombeteiras, Politzer lembra que: os fisiologistas se entregam de maneira terrvel
magia dos nmeros e o entusiasmo pela forma quantitativa das leis no passa, neste caso,
de adorao do fetiche (...) Quanto aos psiclogos, de terceira mo que eles recebem as
matemticas; pois eles as recebem dos fisiologistas, que as receberam dos fsicos que, por
sua vez, as receberam dos matemticos20. No entanto, a zombaria no suficiente para nos
explicar qual o verdadeiro vnculo entre a psicologia experimental e a psicologia clssica.
O verdadeiro argumento de Politzer comea a se organizar a partir do pargrafo
sexto. A partir da, ele lembra que a histria da psicologia a partir da psicologia
experimental de Wundt (ou seja, esta histria marcada principalmente pelo advento do
behaviourismo, da Gestalt e da psicanlise) no era, como poderamos esperar, a
consolidao de um corpo no-problemtico de conceitos e de uma partilha tacitamente
aceita de mtodos. Ao contrrio, esta histria no de uma organizao, mas de uma
dissoluo. Da a afirmao central do nosso captulo: O movimento psicolgico
contemporneo apenas a dissoluo do mito da natureza dupla do homem21.
A idia central aqui : a psicologia foi at ento tributria de uma mitologia
vinculada a prpria natureza de seu objeto, ou seja, o sujeito enquanto centro funcional de
condutas e emoes. Esta mitologia deve ser dissolvida para que a psicologia como cincia
possa se instaurar, para que a psicologia possa acordar de seu sono dogmtico. Mas para
que este despertar ocorra, faz-se necessrio o reconhecimento claro do fato de que a

18

CANGUILHEM, Etudes dhistoire et de philosophie de la science, p. 370


idem, p. 371
20
POLITZER, idem, p. 5
21
POLITZER, idem, p. 7
19

psicologia clssica no outra coisa que a elaborao nocional de um mito. Um mito que,
segundo Politzer, seria: a ideologia central da psicologia clssica22..
De fato, devemos insistir neste ponto: a crtica aqui no apenas crtica a ausncia
de uma orientao verdadeiramente cientfica para a observao e clnica dos fatos
psicolgicos. A crtica tambm crtica da ideologia, defesa de que, por trs desta
incompreenso prpria determinao dos fundamentos da psicologia, h uma certa
ideologia em operao, como se no houvesse equvoco cientfico que no fosse animado
por uma orientao ideolgica.
Esta ideologia prpria ao mito da dupla natureza humana pode ser descrita da
seguinte forma. Politzer acredita que a psicologia, sequer a psicologia experimental de
wundt, nunca conseguiu escapar das conseqncias de um pretenso dualismo entre mente e
corpo. Da a oscilao infinita entre duas sadas possveis.
Por um lado, o subjetivismo espiritualista que restitua alma os seus direitos graas
s iluses da imediaticidade da interioridade. Uma psicologia baseada nos usos clnicos da
introspeco, uma certa cincia do sentido interno, seria resultado resultante daquilo que
poderamos chamar de ideologia da vida interior, ou seja, a implementao clnica de um
conceito normativo de sujeito baseada na autonomia espontnea, na transparncia imediata
de si a si e no rebaixamento do corpo enquanto plo de determinao do sentido da
conduta. Da a afirmao: A ideologia da burguesia na estaria completa se no tivesse
encontrado sua mstica. Aps vrias tentativas, ela foi enfim encontrada na vida interior da
psicologia23. Mas sua essncia apenas a abstrao, j que ela implica apenas o homem
em geral, a vida em geral, e no a vida humana inserida na particularidade da histria
de seu desejo.
Por outro, o materialismo objetificador que interpretava o comportamento e o
pensamento humano atravs de um paradigma reducionista ou tal como, por exemplo, a
psicologia do reflexo, as diferentes formas de associacionismo e a psicologia experimental.
Contrariamente a noo de que a conscincia deveria ser distinta das leis causais que
determinam o mundo fsico, tratava-se de insistir que a mesma objetividade prpria a
descrio dos fenmenos fsicos deve ser aplicada apreenso da inteligibilidade dos fatos
psicolgicos. Como veremos, trata-se, para Politzer, tambm de uma ideologia, mas de uma
ideologia da auto-negao do sujeito tambm dependente de operaes de abstrao.
Este ponto pode ser melhor compreendido se lembrarmos das colocaes que
Politzer apresenta a respeito do behaviorismo. Enquanto tentativa de preencher as
condies do que o prprio Politzer define como uma psicologia concreta, o behaviorismo
teve o mrito de renunciar noo de vida interior. Mrito de criticar a noo de vida
interior como resqucio de um pensamento animista no interior da cincia. Watson percebeu
que a nica atitude cientfica possvel para a psicologia consistia em fazer tabula rasa de
tudo o que se apresentava como introspeco e espiritualidade. Mas, ao salvar a
objetividade, o behaviorismo perdia a psicologia. No foi por outra razo que, logo aps
Watson tirar as conseqncias de suas descobertas, a psicologia ps-se cata de um
behaviorismo no fisiolgico. Concluso de Politzer: tudo o que o behaviorismo pode
nos ensinar da ordem da mecnica animal. Continuamos presos entre o subjetivismo e o
objetivismo. Continuamos presos alternativa dualista do dentro ou fora. Ou elegemos a
percepo interna como o fato psicolgico ou, como fazem os behaviorista, escolhemos a
percepo externa: Para suplantar a anttese clssica, dir Politzer, faz-se necessrio
22
23

POLITZER, idem, p. 11
idem, p. 13

renunciar a ver o fato psicolgico em uma percepo qualquer e consentir em colocar, na


base da cincia psicolgica, um ato de conhecimento de uma estrutura mais elevada do que
a simples percepo24.
O importante a renunciar a perspectiva realista ingnua que acredita ver, no fato
psicolgico, um dado simples que corresponde a uma realidade perceptvel, seja ela interna
ou externa. neste ponto que o psiclogo da introspeco e o behaviorista se tocam: todos
os dois acreditam na premissa epistemolgica do fato naturalmente dado. Enquanto os
primeiros acreditam que nada mais bem conhecido pela mente do que ela prpria e, por
isto, os estados mentais esto diretamente presentes conscincia, os segundos invertem a
posio terica afirmando que so os estados fsicos que naturalmente so dados
conscincia e recaem no realismo metafsico. O behaviorista prefere ignorar que a
percepo de um estado fsico depende do que estamos acostumados a ver 25. Ela
inferencial e no imediata.
Aqui est a intuio fundamental de Politzer: o fato psicolgico, enquanto objeto do
conhecimento, no um dado simples mas, como a compreenso do comportamento
humano resulta de uma percepo apoiada pela compreenso; trata-se de um dado
construdo. Da a definio: com efeito, um gesto que eu fao um fato psicolgico, pois
ele um segmento do drama que representa minha vida. A maneira com que ele se insere
neste drama dado ao psiclogo pela narrativa que eu posso fazer sobre tal gesto. Mas o
gesto esclarecido pela narrativa que o fato psicolgico e no o gesto parte, nem o
contedo realizado da narrativa26. O gesto em si no tem valor psicolgico algum.
Somente o gesto inserido no drama histrico subjetivo atravs da narrativa que o sujeito
dele faz, demonstrando seu sentido, que tem valor para a psicologia
Este um ponto absolutamente central no interior de nossa discusso. Ele fica claro
se levarmos a srio uma afirmao como: O termo vidadesigna um fato biolgico, ao
mesmo tempo em que a vida propriamente humana, designa a vida dramtica do homem.
Tal vida dramtica apresenta todas as caractersticas que permitem a constituio de um
domnio a ser estudado cientficamente [e que o domnio da psicologia concreta]. E
mesmo que a psicologia no existisse, deveramos invent-la em nome desta
possibilidade27.
Ou seja, a vida humana, objeto de uma psicologia concreta, no aquilo que pode
ser redutvel determinao do disiolgico enquanto campo de produo do sentido da
conduta. A vida humana uma vida dramtica no sentido teatral de drama, ao que
procura realizar um telos , uma teleologia da ao que s pode ser revelada no interior de
uma narrativa.
Com isto, Politzer no admite a reduo do sujeito a um centro funcional que opera
a sntese entre a multiplicidade de fenmenos psquicos; ou seja, o um nada, a no ser o
lugar convergente de uma multiplicidade de sensaes, desejos e imagens. Adotar tal
posio significaria permitir isolar, de um lado, o sujeito e, de outro, os fenmenos
psquicos a fim de trat-los como objetos em si, como objetos de uma cincia que adota a
perspectiva da terceira pessoa. Ao contrrio, devemos recusar tal formalismo abstrato e
apreender o fato psicolgico como a encarnao em ato de um sujeito, ou seja, um
indivduo dotado de inteno significativa. Por isto, o fato psicolgico deve ser inserido no
24

POLITZER, Georges; Critique des fondements de la psychologie; pag. 249.


Ver, RORTY, Richard; Behaviorismo in A filosofia e o espelho da natureza, pp. 83-89.
26
idm, pag. 248
27
POLITZER, idem, p. 12
25

drama histrico subjetivo, onde o seu sentido se esclarece. A est a sada que permite
garantir a objetividade do subjetivo. Por fim, vale a pena salientar como a narrativa que o
sujeito d a respeito do seu comportamento no nos remete a nenhuma experincia interior.
Afinal, a narrativa , antes de mais nada, inteno significativa direcionada ao outro28. A
significao desconhece a interioridade; assim como desconhece o inefvel de qualquer
pretensa intimidade.

28

Vinte anos depois, Lacan completar este raciocnio insistindo na alienao que o uso da linguagem impe
ao sujeito e de como ela implica uma relao para alm da intersubjetividade pois inteno significativa
(agora inconsciente) direcionada ao Outro.

O estatuto da psicologia
Aula 3
Na aula passada, comeamos a leitura do livro de Georges Politzer, Crtica dos
fundamentos da psicologia. Vimos como o objetivo deste panfleto que influenciou de
maneira decisiva o debate sobre a epistemologia da psicologia na Frana do sculo XX era
fazer tabula rasa da histria das clnica dos fatos psicolgicos at ento. J nas primeiras
pginas de nosso texto, o tom polmico se apresentava rapidamente. Politzer pretendia falar
da: morte da psicologia oficial, desta psicologia que se prope estudar os processos
psicolgicos, seja procurando apreend-los em si mesmos [ou seja, de maneira imediata,
como um dado imediatamente disponvel introspeco da conscincia], seja atravs de
seus concomitantes ou determinantes fisiolgicos [como se a fisiologia fosse naturalmente
o espao causal capaz de orientar os mtodos prprios clnica], seja atravs de mtodos
bricolados29. Ou seja, tratava-se de colocar em suspeio tudo aquilo que se apresentava
como progresso na fundamentao do conhecimento dos fatos psicolgicos desde que
Wundt aparecera como fundador da psicologia moderna por ter sido o responsvel pelo
primeiro laboratrio do mundo dedicado psicologia experimental.
De fato, vimos como Politzer lembrava que Wundt aparecia enquanto momento
mais bem realizado de uma trajetria visando livrar a psicologia do penso de noes
metafsicas de alma ou da possibilidade de apreenso imediata de dados da conscincia
atravs da auto-observao. Da normalmente a maneira de descrever o impacto das
pesquisas de Wundt como um abandono da submisso da psicologia filosofia, abandono
da noo de psicologia como cincia da alma, isto a partir do uso massivo de tcnicas
experimentais de mensurao de constantes fisiolgicas objetivamente identificveis. Uso
massivo que pressupunha reduzir estados e eventos mentais mensurao objetiva de
estmulos e respostas fisiolgicas. Desta forma, aparece uma psicologia fisiolgica que
determinava o fato psicolgico fundamental como a excitao a partir de rgos externos
de sentido.
Mas esta submisso da racionalidade da psicologia fisiologia era o resultado de
uma longa tradio racionalista que procurava definir a psicologia como fsica do sentido
externo, ou seja, como o que permite o clculo capaz de: determinar as constantes
quantitativas da sensao e as relaes entre tais constantes 30. Devemos ler nesta
perspectiva sua dependncia epistmica de Wundt psicofsica de Fechner, para quem os
princpios gerais da psicofsica envolvem apenas a manipulao de relaes quantitativas,
assim como de Helmholtz e Du Bois-Reymond, para quem, por sua vez, s h, no
organismo, foras fsico-qumicas em atuao.
O que deve ser salientado aqui como a fsica matemtica aparece enquanto padro
de racionalidade para a constituio da objetividade da psicologia. A objetividade do objeto
da psicologia deveria ser pensada tal como a objetividade prpria a fenmenos que so
objetos da fsica, ou seja, a partir de possibilidade de mensurao, de reduo quantitativa e
de abstrao a um padro geral de clculo. Da a esperana em : fazer aparecer, nas leis
dos fatos de conscincia, um determinismo analtico do mesmo tipo que este cuja mecnica
e a fsica permitem esperar uma validade universal a toda cincia 31. Mesmo o recurso
29

POLITZER, idem, p. 2
CANGUILHEM, Etudes dhistoire et de philosophie de la science, p. 370
31
idem, p. 371
30

fisiologia como base de anlise para os fatos psicolgicos deveria ser compreendido como
tributrio desta maneira de constituio da noo de objetividade herdada da fsica.
Em um captulo do Nascimento da Clnica, intitulado Abram alguns cadveres,
Michel Foucault reconstitui a trajetria que permitiu fisiologia e anatomia patolgica
aparecerem como fundamento da clnica. Tal posio da fisiologia s foi possvel a partir
do momento em que o corpo foi reconfigurado, aparecendo como um espao ao mesmo
tempo mais complexo e mais abstrato, onde era questo de ordem, de sucesso, de
coincidncia e de isomorfismo32. Transformao do corpo em um espao abstrato que era
resultado da aplicao de um princpio geral de decifrao do espao corporal semelhante
ao princpio geral de constituio do espao homogneo e geomtrico da fsica moderna.
Tal princpio geral de inteligibilidade era fornecido, no caso da constituio do espao
corporal, pela reduo do corpo a um campo de tecidos orgnicos: A partir dos tecidos, a
natureza trabalha com uma extrema simplicidade de materiais. Eles so os elementos dos
rgos, mas o atravessam, os aproximam e, para alm deles, constituem os vastos sistemas
nos quais o corpo humano encontra a forma concreta de sua unidade. Haver tantos
sistemas quanto tecidos: neles, a individualidade complexa e inesgotvel dos rgos se
dissolve e, de uma vez, se simplifica33.
Tal reduo do volume orgnico a um elementar que , ao mesmo tempo, um
universal aparece como condio para o aparecimento de uma fisiologia que pode se
submeter a um padro de objetividade fundado em dispositivos de mensurao, de reduo
quantitativa e de abstrao a um padro geral de clculo. E pensando a tal processo que a
perspectiva prpria psicologia fisiolgica de Wundt pode ser criticada por Politzer atravs
da acusao de abstrao (que trata objetos vivos como objetos mortos, prontos a serem
descritos em um discurso da terceira pessoa), ou ainda de formalismo. Um formalismo
que demonstraria como a psicologia experimental no seria outra coisa que um disfarce
responsvel pela sobrevivncia da psicologia clssica, esta mesma que seria marcada pelas
crenas metafsica na noo de alma.
A idia central aqui : a psicologia foi at ento tributria de uma mitologia
vinculada a prpria natureza de seu objeto, ou seja, ao sujeito enquanto centro funcional de
condutas e emoes. Esta mitologia deveria ser dissolvida para que a psicologia como
cincia pudesse ser instaurada, para que a psicologia pudesse acordar de seu sono
dogmtico. Mas para que este despertar ocorra, faz-se necessrio o reconhecimento claro
do fato de que a psicologia clssica no outra coisa que a elaborao nocional de um mito.
Um mito que, segundo Politzer, seria: a ideologia central da psicologia clssica 34, o mito
da dupla natureza humana.
De fato, toda a crtica de Politzer psicologia tributria desta crtica ao dualismo e
a suas conseqncias. Um dualismo que instauraria um movimento bi-polar no interior da
histria da psicologia, entre o subjetivismo espiritualista que compreende a introspeco
como dispositivo central de acesso ao fato psicolgico e uma outra perspectiva objetivista
que, contrariamente a noo de que a conscincia deveria ser distinta das leis causais que
determinam o mundo fsico, insiste que a mesma objetividade prpria a descrio dos
fenmenos fsicos deve ser aplicada apreenso da inteligibilidade dos fatos psicolgicos.
Esta perspectiva servir para Politzer se posicionar a respeito do behaviorismo.
Enquanto tentativa de preencher as condies do que o prprio Politzer define como uma
32

FOUCAULT, La naissance de la clnique, p. 128


idem, p. 129
34
POLITZER, idem, p. 11
33

psicologia concreta, o behaviorismo teve o mrito de renunciar noo de vida interior.


Mrito de criticar a noo de vida interior como resqucio de um pensamento animista no
interior da cincia. Mas, segundo Politzer, o behaviorismo continuava preso uma
alternativa dualista do dentro ou fora. Ou elegemos a percepo interna como o fato
psicolgico ou, como fazem os behavioristas, escolhemos a percepo externa. Richard
Rorty ver claramente isto ao afirmar: Os cartesianos pensavam que os nicos gneros de
entidades que naturalmente se ajustavam como diretamente presente conscincia eram os
estados mentais. Os behavioristas, no seu melhor momento epistemolgico, pensavam que
o nico gnero de entidade diretamente presente conscincia eram os estados de objetos
fsicos. Os behavioristas se orgulhavam de fugir s noes de Essncia vtrea o do Olho
interno, mas permaneceram fiis epistemologia cartesiana ao conservarem a noo de um
Olho da mente que apanhava algumas coisas em primeira mo (...) Os behavioristas
desistiram da noo de que nada conhecido pela mente do que ela prpria, mas
conservaram a noo de que algumas coisas eram diretamente conhecidas naturalmente e
outras no, e o corolrio metafsico de que somente as primeiras eram realmente reais 35.
Maneira de ignorar que o que conhecemos de modo no inferencial depende daquilo com
que estamos familiarizados. esta f epistmica na noo de dado simples e
imediatamente perceptvel, ou seja, de objetividade como o que resulta de alguma forma
de observao direta, que Politzer chama de realismo, mito prprio ao desenvolvimento
da psicologia at ento.
Da porque Politzer pode afirmar: Para suplantar a anttese clssica, faz-se
necessrio renunciar a ver o fato psicolgico em uma percepo qualquer e consentir em
colocar, na base da cincia psicolgica, um ato de conhecimento de uma estrutura mais
elevada do que a simples percepo36. Aqui est a intuio fundamental de Politzer: o fato
psicolgico, enquanto objeto do conhecimento, no um dado simples mas, como a
compreenso do comportamento humano resulta de uma percepo apoiada pela
compreenso; trata-se de um dado construdo.
Gestalt e a noo de totalidade funcional
a fim de dar conta do que deve ser este ato de conhecimento de uma estrutura
mais elevada do que a simples percepo que Politzer se apia na Gestalt: O valor da
Gestalttheorie grande, sobretudo do ponto de vista crtico: ela implica sa negao deste
encaminhamento fundamental da psicologia clssica que consiste em romper a forma das
aes humanas para tentar posteriormente reconstituir a totalidade que sentido e forma,
isto a partir de elementos sem significao e amorfos 37. Ou seja, a Gestalt aparece como
contraponto a uma certa perspectiva atomista que acredita poder analisar, de maneira
isolada, funes intencionais e disposies regionais de comportamento, como se aquilo
que chamamos normalmente de sujeito no fosse mais do que um feixe de representaes e
de disposies constitudas a partir de estmulos, reflexos e tropismos, mais do que a
somatria de funes e rgos que poderiam ser isolados sem prejuzo para sua
inteligibilidade.
No entanto, a Gestalt insiste exatamente na impossibilidade de uma compreenso do
fato psicolgico que negligencie a maneira com cada ato isolado do indivduo, cada
35

RORTY, A filosofia e a espelho da natureza, p. 88


POLITZER, Georges; Critique des fondements de la psychologie; pag. 249.
37
Idem, p. 17
36

percepo isolada de objeto atualiza uma estrutura global de conduta e de inteligibilidade.


Wolfgang Khler, por exemplo, um dos nomes-chaves da Gestalt juntamente como
Wertheimer e Kelner, chega a aplicar tal postulado anlise dos fatos orgnicos: Se os
organismos se assemelhassem mais com os sistemas com os quais o fsico se ocupa, um
grande nmero de seus mtodos poderiam ser empregados em nossa cincia e sem grandes
mudanas. Mas, na verdade, tais semelhanas so raras. O trabalho do fsico oferece a
vantagem da simplicidade dos seus sistemas (...) A modificao que intervm em um fator
implica ordinariamente em modificaes correlativas em vrios outros e estes ltimos, por
sua vez, modificam o primeiro. No entanto, o isolamento de relaes funcionais e a reduo
de variveis em ao em um fenmeno dado so grandes artifcios que facilitam as
investigaes exatas em fsica. Como esta tcnica no aplicvel psicologia, posto que se
deve apreender o organismo aproximadamente da maneira como ele , toda espcie de
observao que nos envia ao comportamento de nossos sujeitos como unidades complexas
e ativas ser bem-vindo38.
A afirmao no poderia ser mais clara. A psicologia exige um paradigma
diferenciado de objetividade porque seu objeto no se presta a processos de racionalizao
em operao na apreenso de fenmenos fsicos. Se Khler pode afirmar que, comparado,
ao trabalho do psiclogo, o trabalho do fsico facilitado pela simplicidade de seus
sistemas, fundamentalmente porque a psicologia no admite procedimentos de abstrao e
de decomposio prprios fsica. Ela trabalha com sistemas que se organizam como
totalidades funcionais onde, digamos, o todo no o resultado da somatria das partes,
onde a funo de um rgo resultante das interaes com o conjunto do sistema, onde a
perspectiva geral que orienta a conduta em relao a um meio ambiente no o resultado
da somatria da ao de cada rgo, da articulao de cada funo intencional tomada
separadamente. Desta forma: situao e reao se vinculam interiormente por sua
participao comum a uma estrutura na qual se exprime o modo de atividade prprio de um
organismo39. Canguilhem compreendeu isto claramente ao afirmar: As formas vivas,
sendo totalidades cujo sentido reside na tendncia a se realizar como tal no curso de
confrontao com o meio, podem ser apreendidas em uma viso, no em uma diviso 40.
Da porque Canguilhem costumava insistir no estar seguro de que um organismo, aps a
ablao de um rgo, seja o mesmo organismo diminudo de um rgo.
Tal perspectiva permitir, mais a frente, uma reorientao profunda do que se
compreende por doena (assim como permitir uma reorientao profunda do que se
compreende por doena mental). Pois se trata de insistir na necessidade de deixar de dividir
a doena em uma multiplicidade de mecanismos funcionais alterados, isto a fim de
consider-la como um acontecimento que diz respeito ao organismo vivo encarado como
totalidade. Pois: no h um nico fenmeno que se realize no organismo doente da mesma
forma que no organismo so41. No organismo, todas as funes so interdependentes, o
que impede a disperso da doena em sintomas e mecanismos funcionais isolados: Quando
classificamos como patolgico um sintoma ou um mecanismo funcional isolados,
esquecemos que aquilo que os torna patolgicos sua relao de insero na totalidade
indivisvel de um comportamento individual42. Veremos, mais a frente, como um
38

KHLER, Psicologia da forma, p. 50


MERLEAU-PONTY, la structure du comportement, p. 140
40
CANGUILHEM, La connaissance de la vie, p. 14
41
CANGUILHEM, O normal e o patolgico, p. 52
42
idem, p. 65
39

perspectiva desta natureza trar impactos na determinao do que exatamente uma


patologia mental.
Mas Politzer insiste que introduzir esta dimenso da totalidade implica em
introduzir uma dimenso com impactos maiores na reflexo sobre o fato psicolgico: a
dimenso do sentido. O fato psicolgico sempre um fato que procura realizar uma
exigncia de sentido. Pois trata-se de afirmar que cada conduta e cada reao no
resultado de um automatismo funcional, mas s pode ser inteligvel se as reportarmos sua
relao com uma estrutura global que orienta o organismo em sua confrontao com o meio
ambiente. Ou seja, cada conduta e cada reao dotada de um sentido, de uma teleologia
prpria ao e que s pode ser apreendida se transcendemos o domnio do que se oferece
como dado imediato e como reao automtica.
A grande contribuio de Politzer neste contexto consiste pois em insistir que o
modo de acesso a tal estrutura global de conduta, responsvel pelo sentido do fato
psicolgico, atravs daquilo que ele chama de drama. Da uma afirmao-chave como: :
O termo vidadesigna um fato biolgico, ao mesmo tempo em que a vida propriamente
humana, designa a vida dramtica do homem. Tal vida dramtica apresenta todas as
caractersticas que permitem a constituio de um domnio a ser estudado cientficamente
[e que o domnio da psicologia concreta]. E mesmo que a psicologia no existisse,
deveramos invent-la em nome desta possibilidade43.
Politzer quer dizer, com isto, que a psicologia deve dar conta de condutas e
disposies que procuram realizar exigncias de sentido e que a unidade de tais exigncias
atravs de uma estrutura que se manifesta atravs da confrontao com o meio ambiente no
decorrer do tempo um drama. Isto o leva a afirmar: O drama implica o homem tomado
em sua totalidade e considerado como o centro de um certo nmero de acontecimentos que,
exatamente por se reportarem a uma primeira pessoa, tm um sentido 44. Ou ainda: o fato
psicolgico no o comportamento simples, mas precisamente o comportamento humano,
ou seja, o comportamento enquanto ele se reporta, de um lado, aos acontecimentos dos
meios nos quais se desdobra a vida humana e, de outro lado, ao indivduo enquanto ele
sujeito desta vida. Em suma, o fato psicolgico o comportamento que tem um sentido
humano45.
Quer dizer, Politzer traz da Gestalt a noo de que o verdadeiro objeto da psicologia
a totalidade da estrutura global de conduta que determina o modo de relao entre o
indivduo e seu meio ambiente, totalidade que impe a cada conduta e a cada reao uma
teleologia da ao, uma exigncia mais ampla que sentido que deve ser reconstituda pelo
psiclogo atravs de uma noo aparentemente desprovida de objetividade cientfica, como
o caso da noo de drama. Um drama que s pode ser objetificado atravs da narrativa
que o sujeito dele faz. Da porque, se Politzer trs da Gestalt a noo de totalidade
funcional de sentido, ele ir procurar na psicanlise a perspectiva capaz de expor quais
devem ser as exigncias de uma clnica capaz de responder pela objetividade do fenmenos
ligados subjetividade.

43

POLITZER, idem, p. 12
idem, p. 249
45
idem, p. 248
44

O estatuto da psicologia
Aula 4
Na aula de hoje, iremos finalizar o primeiro mdulo de nosso curso, este dedicado ao
comentrio da Crtica dos fundamentos da psicologia, de Georges Politzer. No se tratou de
fazer aqui o comentrio exaustivo do livro, mas de fornecer o quadro de anlise
politzeriano a respeito do programa crtico de reforma da psicologia. Vimos como Politzer
desenvolvia suas crticas a respeito do realismo de quem toma a percepo imediata como
fato psicolgico fundamental, do carter abstrato das generalizaes da psicologia clssica
e do dualismo a respeito do qual sua histria seria tributria. Um dualismo que instauraria
um movimento bi-polar no interior da histria da psicologia, entre o subjetivismo
espiritualista que compreende a introspeco como dispositivo central de acesso ao fato
psicolgico e uma outra perspectiva objetivista que, contrariamente a noo de que a
conscincia deveria ser distinta das leis causais que determinam o mundo fsico, insiste que
a mesma objetividade prpria a descrio dos fenmenos fsicos deve ser aplicada
apreenso da inteligibilidade dos fatos psicolgicos.
Vimos ainda como Politzer reconhecia no behaviorismo e a Gestalt duas correntes
que traziam colaboraes para a constituio desta reforma do entendimento psicolgico
ento pregada. Segundo Politzer, o behaviorismo teria o mrito de renunciar noo de
vida interior e imediaticidade da introspeco pois a verdadeira psicologia s pode ser
uma psicologia sem vida interior. Mas ele seria ainda tributrio da f epistmica na noo
de dado simples e imediatamente perceptvel (a imediaticidade do sentido do
comportamento externamente observvel) ou seja, de objetividade como o que resulta de
alguma forma de observao direta, que Politzer chama de realismo, mito prprio ao
desenvolvimento da psicologia at ento.
Da porque Politzer afirmava: Para suplantar a anttese clssica, faz-se necessrio
renunciar a ver o fato psicolgico em uma percepo qualquer e consentir em colocar, na
base da cincia psicolgica, um ato de conhecimento de uma estrutura mais elevada do que
a simples percepo46. Era a fim de dar conta do que deve ser este ato de conhecimento
de uma estrutura mais elevada do que a simples percepo que Politzer se apoiava na
Gestalt. Aos olhos de Politzer, a Gestalt aparecia como contraponto a uma certa perspectiva
atomista que acredita poder analisar, de maneira isolada, funes intencionais e disposies
regionais de comportamento, como se aquilo que chamamos normalmente de sujeito no
fosse mais do que um feixe de representaes e de disposies constitudas a partir de
estmulos, reflexos e tropismos, mais do que a somatria de funes e rgos que poderiam
ser isolados sem prejuzo para sua inteligibilidade. Vimos, na aula passada, como Khler
lembrava que a psicologia trabalha com sistemas que se organizam como totalidades
funcionais onde, digamos, o todo no o resultado da somatria das partes, onde a funo
de um rgo resultante das interaes com o conjunto do sistema, onde a perspectiva
geral que orienta a conduta em relao a um meio ambiente no o resultado da somatria
da ao de cada rgo, da articulao de cada funo intencional tomada separadamente.
Mas Politzer insiste que introduzir esta dimenso da totalidade implica em
introduzir uma dimenso com impactos maiores na reflexo sobre o fato psicolgico: a
dimenso do sentido. O fato psicolgico sempre um fato que procura realizar uma
exigncia de sentido. Pois trata-se de afirmar que cada conduta e cada reao no
46

POLITZER, Georges; Critique des fondements de la psychologie; pag. 249.

resultado de um automatismo funcional, mas s pode ser inteligvel se as reportarmos sua


relao com uma estrutura global que orienta o organismo em sua confrontao com o meio
ambiente. Ou seja, cada conduta e cada reao dotada de um sentido, de uma teleologia
prpria ao e que s pode ser apreendida se transcendemos o domnio do que se oferece
como dado imediato e como reao automtica.
O recurso psicanlise
Era exatamente neste ponto que Politzer introduzia seu recurso massivo psicanlise
freudiana: ao refletir sobre a psicanlise que percebemos a verdadeira psicologia 47, dir
Politzer. Ou seja, a psicanlise direciona o mtodo de abordagem e determina o estatuto do
fato psicolgico a partir das exigncias de uma psicologia concreta, psicologia que
abandonou os postulados de abstrao e realismo. E ela faz isto, principalmente, atravs da
descoberta do sentido concreto individual do sonho. Toda a reflexo de Politzer sobre a
psicanlise baseia-se, principalmente, na Traumdeutung.
O sonho o elemento fundamental desta reorientao do estatuto do fato
psicolgico porque ele coloca em cena a centralidade do problema do sentido: todo sonho
aparece como uma produo psquica dotada de significao (sinnvolles)48, dir Freud,
contrariando os julgamentos hegemnicos da psicologia da poca que relegavam o sonho
ao estatuto de puro produto da atividade cerebral submetida a excitaes e estmulos
somticos e sensoriais. Ao insistir que o sonho era dotado de sentido, Freud colocava em
circulao a afirmao cannica: o sonho a realizao de um desejo. Desta forma, o
sonho podia ser visto como um certo ato de julgamento que deveria ser, necessariamente,
reportado a um Eu para quem o desejo a funo intencional central. A interpretao
analtica do sonho impedia assim o primado de procedimentos de abstrao que
desvinculavam o sonho e o sujeito que sonha tratando o sonho e seus contedos como algo
produzido por causas impessoais: O que a psicanlise procura em todo lugar, dir
Politzer, a compreenso dos fatos psicolgicos em funo do sujeito. pois legtimo ver
nisto a inspirao fundamental da psicanlise49.
Sendo o sonho a realizao de um desejo vinculado particularidade do sujeito que
sonha ento a interpretao deve reconstituir o contexto de significao prprio a tal
particularidade. Neste sentido, a grande inovao de Freud estava vinculada a uma questo
de mtodo, assim como ao reconhecimento da subjetividade do sentido. A questo de
mtodo dizia respeito a um princpio de interpretao que se fundava no reconhecimento da
particularidade dos contextos de significao. Interpretar no era assim aplicar esquemas
prvios de simbologias (embora Freud nunca tenha deixado de reconhecer a presena de
um certo simbolismo nos sonhos), mas permitir uma reconstruo de contextos no interior
da qual o sujeito que sonho aparecia em um papel ativo. Este o sentido de uma afirmao
central de Politzer: a idia [central para a psicanlise] segundo a qual poderia haver uma
dialtica puramente individual qual os atos individuais forneceriam uma significao
puramente individual totalmente estranha psicologia clssica 50. Isto implicava na
defesa de uma subjetividade do sentido que permitir Politzer afirmar: o carter mais
evidente dos fatos psquicos de serem em primeira pessoa. E aqui ficamos sabendo que
47

Idem, p. 21
FREUD, Die traumdeutung, p. 1
49
POLITZER, idem, p. 41
50
idem, p. 102
48

um fenmeno na primeira pessoa aquele cuja forma resultado de seu pertencimento ao


Eu. Ou seja, um fenmeno de primeira pessoa aquele cuja forma sintetizada pelo Eu e
s pode ser compreendida atravs de remisso ao Eu como centro ativo.
Mas, lembra Politzer, sempre podem dizer que a psicologia clssica j admitia que
os fatos psicolgicos so manifestaes de uma conscincia individual. neste ponto que
Politzer submete a crtica da cincia a uma teoria do sujeito. Pois a questo fundamental
aqui saber qual o conceito de sujeito pressuposto pela psicologia. Este, seria um sujeito
anterior crtica kantiana que determinava o sujeito como responsvel ativo pela
constituio da sntese das faculdades do conhecimento, um sujeito mais prximo de uma
leitura ento corrente do empirismo ingls: o Eu como feixe de representaes e de
funes: o Eu simples causa, um puro centro funcional cujos fenmenos e funes
poderiam ser analisados de maneira isolada, ou ainda, um olho, no esquema da reflexo 51.
Cada funo tratada como um elemento impessoal e no como a encarnao da forma do
Eu.
De fato, Politzer trabalha com um conceito de totalidade advindo da Gestalt, esta
totalidade onde as partes no podem ser decompostas e analisadas de maneira separada,
mas onde cada parte deve, ao contrrio, sempre ser reportada a uma totalidade pressuposta
como condio para a revelao do sentido. Da porque Politzer pode dizer: A totalidade
que os psiclogos querem admitir no homem apenas uma totalidade funcional, uma
sobreposio de noes de classe. Ora, uma tal sobreposio no um ato e no supe um
sujeito52. A totalidade que Politzer procura, por sua vez, aquela que me permite
encontrar, em cada ao humana, a implicao de um sentido que transcende as exigncias
imediatas do meio no qual a ao est inserida.
Mas esta totalidade s poder ser desvelada se apreendermos o sujeito como sujeito
daquilo que Politzer chama de vida dramtica: O psiclogo ter pois algo do crtico
dramtico: um ato lhe aparecer sempre como um segmento do drama, ele s existe no e
pelo drama. Seu mtodo no pois um mtodo de observao, mas um mtodo de
interpretao53. Notemos, o drama esta seqncia de atos na qual cada ato vai
configurando o campo de significao dos atos posteriores, um campo de significao que
normalmente ultrapassa a inteno dos sujeitos que agem.
Sendo assim, a questo que fica : como o psiclogo pode ter acesso estrutura
deste drama que aparece como totalidade que orienta a conduta do sujeito na realizao de
um sentido. neste ponto que Politzer afirma: a maior contribuio clnica da psicanlise
encontra-se no abandono da noo de introspeco em prol da noo de narrativa. Por um
lado, a narrativa implica um regime de objetividade mais prximo do comportamento do
que da intuio. No entanto, ela um comportamento que deve ser interpretado, e no
apenas observado. Pois a narrativa sempre animada por uma inteno significativa,
inteno esta que pode no aparecer como um pensamento sob o regime do para-si da
conscincia, mas que sempre se manifesta no endereamento a um outro, dimenso prpria
a toda e qualquer narrativa. Por isto, Politzer no cansar de lembrar: em todo uso da
linguagem, h sempre um primado da atividade teleolgica, atividade orientada em direo
a fins.
A narrativa do sujeito aparece pois como o verdadeiro campo do tratamento j que
ela que constitui esta totalidade da vida concreta do sujeito qual o fato psicolgico
51

POLITZER, idem, p. 48
idem, p. 49
53
idem, p. 53
52

necessariamente se reporta. Notemos, a narrativa tem um poder constitutivo, e no apenas


descritivo, j que ela modo de rememorao e de simbolizao reflexiva da multiplicidade
de atos de um sujeito. Isto explica a predominncia que a psicanlise d palavra, isto a
despeito da centralidade de procedimentos de medicalizao.
Notemos, para finaliza, que este esquema interpretativo politzeriano estar presente
em vrios recursos epistemolgicos psicanlise, como estes operados por Habermas e por
Ricoeur. Por exemplo, para Habermas, a psicanlise forneceria o modelo de uma cincia
que recorre de maneira sistemtica auto-reflexo, j que trataria de levar o paciente a
apreender, de maneira reflexiva, as conexes causais que determinaram as deformaes
sintomticas nas quais o inconsciente se expressa.
Neste sentido, as formaes do inconsciente (como os sonhos) deveriam ser
compreendidas como: cicatrizes de um texto alterado ao que o autor [de tais alteraes]
confrontou-se como quem se confronta com um texto incompreensvel (HABERMAS,
1973, p.252). Pois tais cicatrizes seriam marcas de uma linguagem desgramaticalizada
(entgrammatikalisiert). Noo astuta, j que no se trata de compreender as formaes do
inconsciente como frutos de uma linguagem privada mas de uma linguagem privatizada
que poderia ser retraduzida na esfera na linguagem pblica. Pois isolar certos smbolos
individuais da comunicao pblica equivale a privatizar seus contedos semnticos. No
entanto, subsiste uma conexo lgica entre a lngua deformada e a lngua pblica na medida
que este dialeto privado suscetvel de ser traduzido exatamente nisto que consiste o
trabalho de anlise de linguagem ao qual o terapeuta se dedica (HABERMAS, 1973,
p.274). Da porque o progresso analtico seria um reaprendizado da gramtica, um
treinamento intensivo para a retomada competente dos diversos jogos de linguagem
(PRADO JR. 2000, p.17). Reaprendizado que, no fundo, simbolizao dos ncleos
traumticos e formaes do inconsciente atravs dos mbiles da rememorao.
Simbolizao convergente que, em ltima instncia, concebe o final de anlise como
totalizao narrativa capaz de dar expresso pblica histria do desejo do sujeito atravs
da rememorao. Habermas poder ento afirmar: Esta histria representada
esquematicamente como um processo de formao que progride atravs dos estgios de
uma objetivao de si e que tem seu fim (Telos) na conscincia de si de uma histria da
vida cuja apropriao foi realizada pela auto-reflexo. (HABERMAS, 1973, p.290). Nada
mais politzeriano.

A crtica metapsicologia
Mas para Politzer, a metapsicologia depeciona as exigncias da psicologia concreta.
Politzer no pensa apenas no vocabulrio cientista e energtico que Freud herdara da
psicofsica e que ele sempre utiliza para descrever o aparelho psquico e seu
funcionamento como se fosse um processo em terceira pessoa. A prpria noo de
inconsciente , segundo Politzer, uma hiptese suprflua. Abrindo um caminho que
depois ser seguido por Sartre na sua crtica do inconsciente freudiano, Politzer lembrar
que conscincia sinnimo de imputabilidade, de reconhecimento e de identificao.
Neste sentido: toda esta dinmica de representaes que supem censura, recalcamento e
resistncia se relaciona conscincia mesma que o sujeito pode ter de seus prprios

comportamentos54. os ditos contedos mentais inconscientes (contedos latentes de


sonhos, crenas no-conscientes, acontecimentos traumticos denegados, etc.) no podiam
ser realmente inconscientes. Como tais contedos mentais seriam o resultado de um
processo de recalcamento, chega-se rapidamente a um certo paradoxo : para que exista
recalcamento, faz-se necessrio que exista conscincia prvia do recalcamento. Como dir
Sartre : "Eu devo saber muito precisamente esta verdade [a verdade dos contedos mentais
inconscientes] para que eu a esconda de mim com mais cuidado"55. Acento colocado aqui
sobre o saber. Se levarmos em conta as resistncias correntes de um analisando, veremos
que elas demonstram : a) uma representao do recalcado ; b) uma compreenso do alvo
para onde tendem as questes do psicanalista.
Assim, Politzer afirmar que o sonho s tem um contedo: o contedo latente. Mas
tal contedo, o sonho o tem imediatamente, e no posteriormente a um mascaramento. Ou
seja, a significao do sonho no est em uma outra cena, mas est implicada na prpria
montagem do sonho, no prprio trabalho do sonho. Politzer fala de uma montagem presente
no sonho tal como ele atualmente se manifesta. Este mecanismo que determina o processo
de montagem do sonho o que objeto da narrativa que o sujeito faz a respeito do que foi
sonhado. Esta latncia do sonho o que ganha corpo no interior da narrativa. Esta funo
da narrativa demonstra como, para Politzer, a negao do inconsciente no implica em
entificao da conscincia. Implica apenas em abandono do pretenso carter privilegiado da
dimenso do para-si do pensar.

54
55

idem, p. 123
SARTRE, Ltre et le nant,18 ed., Paris:Gallimard, 1989, p. 83

O estatuto da psicologia
Aula 5
Na aula de hoje, iniciaremos o segundo mdulo do nosso curso, este dedicado discusso
do pensamento de Georges Canguilhem. Tal discusso ter por guia o comentrio de seu
livro central: O normal e o patolgico. Como havia sugerido, outros textos de Canguilhem
sero estudados, como O que a psicologia? Textos sugeridos sobre a obra de Georges
Canguilhem so: La vie: lexperience et la science, de Michel Foucault e Canguilhem et
les normes, de Guillaume Le Blanc
Canguilhem , sem dvida, o nome mais eminente da epistemologia das cincias
mdicas e biolgicas do sculo XX e figura fundamental no desenvolvimento da
epistemologia das cincias humanas. Sua experincia intelectual deve ser compreendida no
interior de uma corrente epistemolgica francesa marcada por nomes como: Gaston
Bachelard, Jean Cavaills, Alexandre Koyr, entre outros. No entanto, a posio de
Canguilhem peculiar e resultante de sua dupla formao: mdico e pesquisador em
filosofia. Isto o permitiu construir de todas as peas um campo novo de reflexo
epistemolgica, a saber, a reflexo filosfica sobre a medicina e sobre aquilo que se chama,
na Frana, de cincias da vida. A constituio de tal campo de pesquisas foi desdobrada e
continuada principalmente pelo mais conhecido de seus alunos, Michel Foucault.
Dificilmente poderamos pensar em livros como O nascimento da clnica sem o impacto
gerado por trabalhos como O normal e o patolgico. Por outro lado, a obra de Canguilhem
dialoga com, devido a partilha de temticas, com uma outra tradio de reflexo
epistemolgica, esta de Merleau-Ponty e Politzer marcada sobretudo pela fenomenologia e
pela perspectiva da relao entre sujeito e sentido, do sujeito como plo de produo de
sentido dos fatos prprios a clnica. Basta lembrar como o programa politzeriano de uma
psicologia concreta ainda ressoa, de uma certa forma, nesta afirmao de Canguilhem:
Espervamos da medicina justamente uma introduo a problemas humanos concretos [ou
seja, a problemas cujo sentido exige a atualizao de uma perspectiva que leve em conta os
modos de interao entre o homem e seu meio, assim como suas disposies
teleolgicas]56.
Neste sentido, a experincia intelectual de Canguilhem se coloca em um ponto
privilegiado no interior do qual duas grandes tradies do pensamento francs se
encontram. Isto talvez explique a extenso de uma influncia bem traada por Foucault ao
afirmar: Retirem Canguilhem e vocs no compreendero grande coisa sobre uma srie de
discusses que ocorreram no marxismo francs, vocs no apreendero o que h de
especfico em socilogos como Bourdieu, Castel, Passeron e que os marca de maneira to
forte no campo da sociologia, voc perdero todo um aspecto do trabalho terico feito pelos
psicanalistas e , em especial, pelos lacanianos. Mais: em todo o debate de idias que
precedeu ou seguiu o movimento de 1968, fcil encontrar o lugar destes que, de perto ou
de longe, foram formados por Canguilhem57.
Dentre suas obras, O normal e o patolgico sem dvida a mais ambiciosa e
sistemtica. Resultado de uma tese defendida em 1943 intitulada Ensaio sobre a alguns
problemas relativos ao normal e ao patolgico, o livro, em sua verso final, foi acrescido
56
57

CANGUILHEM, O normal e o patolgico, p. 16


FOUCAULT, La vie: lexprience et la science in Dits et crits II, p. 1983

de trs artigos escritos vinte anos depois e agrupados sob o ttulo de Novas reflexes
referentes ao normal e ao patolgico.
Mas do que fala exatamente este livro? Seu ttulo j indica claramente a
configurao do objeto de estudos: trata-se de discutir o estatuto das estruturas de definio
e de partilha entre fenmenos normais e fenmenos patolgicos. Questo central no
apenas para a biologia e para a clnica (seja ela mdica ou psicolgica) mas,
fundamentalmente, uma questo central para a filosofia. Pois, por trs das mudanas e
redefinies do que est em jogo na partilha entre normal e patolgico encontramos um
problema vinculado maneira com que a razo moderna determina a articulao entre vida
e conceito, entre ordem e desordem, entre norma e erro. Uma grande parte do trabalho
canguilhemeano de historiador das cincias est ligada a tentativa de demonstrar como as
decises clnicas a respeito da distino entre normal e patolgico so, na verdade, um setor
de decises mais fundamentais da razo a respeito do modo de definio daquilo que
aparece como seu Outro (a patologia, a loucura etc.). Neste sentido, elas se inserem em
configuraes mais amplas de racionalizao que ultrapassam o domnio restrito da clnica.
Da porque Canguilhem pode afirmar: a filosofia uma reflexo para a qual qualquer
matria estranha serve, ou diramos mesmo para qual s serve a matria que lhe for
estranha58. Pois problemas que parecem obedecer a um desenvolvimento ditado apenas
pelo estado da tcnica ou pela configurao natural do dado so, ao contrrio, espaos
privilegiados nos quais a razo configura, silenciosamente, os campos da experincia
possvel. Tal certeza fornece o sentido de uma afirmao metodolgica central como: A
histria das idias no pode ser necessariamente superposta histria das cincias. Porm,
j que os cientistas, como homens, vivem sua vida num ambiente e num meio que no so
exclusivamente cientficos, a histria das cincias no pode negligenciar a histria das
idias59.
Por outro lado, isto significa que um problema clnico nunca apenas um problema
clnico, at porque, ele s e determinado enquanto problema por partilhar um padro de
racionalidade, historicamente situado, cujas razes no se esgotam apenas no campo da
clnica. Esta e uma das razes que leva Canguilhem a afirmar ser: um grave problema, ao
mesmo tempo biolgico e filosfico, saber se ou no legtimo introduzir a Histria na
Vida60. Esta a razo tambm que permite a Canguilhem operar com um noo ampla de
clnica que, embora privilegiando a nosografia somtica e a fisiopatologia, no deixa de
abrir questes e permitir extenses em direo nosografia psquica e psicopatologia.
Tal posio de Canguilhem a respeito da natureza do problema prprio distino
entre normal e patolgico nos permite lanar luz sobre a estrutura peculiar de seu livro.
Divido em duas grandes partes, o livro inicia passando em revista diferentes verses de
uma mesma tese ento hegemnica no sculo XIX, uma espcie de dogma cientificamente
garantido, dir Canguilhem, a respeito da distino entre normal e patolgico. Augusto
Comte, Claude Bernard e Ren Leriche teriam em comum uma maneira de compreender a
diferena entre normal e patolgico como uma diferena quantitativa que diria respeito a
funes e rgos isolados, como se os fenmenos patolgicos fossem, no organismo vivo,
apenas variaes quantitativas, dficits ou excessos. Como lembra Canguilhem,
semanticamente, o patolgico designado a partir do normal, no tanto como a ou dis, mas
como hiper ou hipo. Assim: a doena no pensada como uma experincia vivida,
58

CANGUILHEM, O normal e o patolgico, p. 15


idem, p. 25
60
idem, p. 13
59

engendrando transtornos e desordens, mas como uma experimentao aumentando as leis


do normal61. Quer dizer, a doena nada mais do que um sub-valor derivado do normal.
a definio do normal como estrutura valorativa positiva que define o campo da clnica.
Esta experincia clnica exige que o normal esteja assentado em um campo mensurvel
acessvel observao. Tal campo privilegiado a fisiologia que aparece assim como
fundamento para uma clnica que ir se orientar a partir dos postulados de uma anatomia
patolgica: As tcnicas de interveno teraputica s podem ser secundrias em relao
cincia fisiolgica, isto na medida em que o patolgico s tem realidade provisria por
declinao do normal62. O que nos deixa como uma questo maior: o que deve acontecer
ao corpo para que a fisiologia possa aparecer como campo de determinao da
normatividade da vida, campo de identificao daquilo que deve valer para a clnica como
norma? Questo que ser retomada por Foucault, em O nascimento da clnica, ao lembrar
que: o que modificado com o advento da medicina anatomo-clnica no a simples
superfcie de contato entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido; a disposio mais
geral do saber que determina as posies recprocas e o jogo mtuo deste que deve
conhecer e o que h a conhecer63.
A primeira parte do livro assim um exame crtico da noo que procura definir o
patolgico a partir do normal, como se a experincia do normal fosse anterior
determinao do patolgico. J no primeiro captulo, intitulado Introduo ao problema,
Conguilhem lembra que h uma outra perspectiva de anlise das distines entre normal e
patolgico que insiste na distino qualitativa, e no meramente quantitativa, entre os dois.
Tal perspectiva teria, ao menos, duas verses. Uma deveria ser chamada de teoria
ontolgica devido ao fato de encarar a doena como o resultado da presena do que tem
realidade ontolgica distinta do corpo so. A teoria microbiana das doenas contagiosas
(Pasteur) seria um caso paradigmtico aqui por fornecer, atravs do micrbio, uma
representao ontolgica do mal positivamente localizada, segundo Canguilhem. J a
outra deveria ser chamada de teoria dinamista ou funcional e encontra na medicina grega
seu exemplo fundador. Contrariamente a uma noo de doena determinada a partir da
possibilidade de localizao, a medicina grega estaria marcada por um certo dinamismo
relacional que j vimos em operao ao estudar o problema da natureza do sintoma segundo
um Georges Politzer profundamente marcado pela Gestalttheorie: A natureza (physis)
tanto no homem como fora dele, harmonia e equilbrio. A perturbao desse equilbrio,
dessa harmonia, a doena. Nesse caso, a doena no est em alguma parte no homem.
Est em todo o homem e toda dele 64. A doena aparece assim como um acontecimento
que diz respeito ao organismo vivo encarado na sua totalidade Pois: no h um nico
fenmeno que se realize no organismo doente da mesma forma como no organismo so 65.
Quando classificamos como patolgico um sistema ou um mecanismo funcional isolado,
esquecemos que aquilo que os tornam patolgicos a relao de insero na totalidade
indivisvel de um comportamento individual. Canguilhem chega mesmo a afirmar que ser
doente , para o homem, viver uma vida diferente. Notemos ainda que tal estratgia de
vincular o normal a partir de uma relao normativa de ajustamento ao meio implica em
61

LE BLANC, Conguilhem et les normes, p. 34


idem, p. 42
63
FOUCAULT, La naissance de la clinique, p. 139
64
CANGUILHEM, idem, p. 20
65
CANGUILHEM, O normal e o patolgico, p. 52
62

afirmar que no h fato algum que seja normal ou patolgico em si. Eles so normal e
patolgico no interior de uma relao entre organismo e meio ambiente.
Assim estas duas teorias, ontolgica e dinamista, teriam em comum o fato de
afirmar que: a doena difere da sade, o patolgico do normal, como uma qualidade difere
de outra, quer pela presena ou ausncia de um princpio definido, quer pela reestruturao
da totalidade orgnica66. No h uma continuidade quantitativa entre normal e patolgico,
mas discontinuidade qualitativa.
Ser uma variao desta perspectiva qualitativa e relacional prpria medicina
grega que Canguilhem ir apresentar na segunda parte de seu livro. Nesta segunda parte,
trata-se de uma tentativa de redefinir o problema da distino entre normal e patolgico a
partir de novas bases. Pois Canguilhem no procura simplesmente reatualizar a reflexo
grega sobre a medicina, mas avanar em uma reflexo a respeito da qual podemos
apreender a extenso apenas se lembrarmos das reflexes politzerianas estudadas
anteriormente (embora Canguilhem nunca cite Politzer).
Se quisermos compreender a doena, necessrio desumaniz-la. Na doena, o
que menos importa o homem. Estas duas afirmaes so de Ren Leriche e visavam
insistir como a clnica no poderia ser dependente da expresso da subjetividade do doente,
sempre incerta e insegura, mascarando a certeza que apenas o contato com a fisiologia
poderia revelar. De uma certa forma, Canguilhem parte delas para procurar defender o
contrrio, que o patolgico s comea quando , de uma certa forma, reconhecido como tal
pela conscincia marcada pela experincia da doena. Com um certo acento hegeliano,
Canguilhem no teme em afirmar que: no h nada na cincia que antes no tenha
aparecido na conscincia [no necessariamente na conscincia do sujeito que atualmente
sofre, mas naquelas dos que outrora sofreram e que fornecem ao mdico a orientao do
seu olhar]67.
Uma proposio desta natureza passvel de vrios mal-entendidos por parecer
convidar a uma deriva subjetivista insustentvel para a definio da partilha entre normal e
patolgico. Afinal, a patologia um conhecimento objetivo ou resultado do sentimento
subjetivo do paciente? Na verdade, veremos que Canguilhem tem em vista,. na verdade, o
fato de que: no h cincia da fisiologia humana sem tcnica de restaurao da sade, ou
seja, sem a conscincia da doena por um sujeito. Uma nova afirmao resulta disto: a
anterioridade da clnica, experincia da doena partilhada entre o doente e o mdico, sobre
a fisiologia e a patologia68. Compreender este ponto s ser possvel quando apreendermos
a noo de Canguilhem a respeito do patolgico como aquilo que se define a partir de uma
individualidade biolgica.
Por outro lado, fica claro que o problema do patolgico est vinculado a uma
questo absolutamente central: em que situao ocorre algo como a conscincia da doena?
O que significa, para um organismo, estar doente? Veremos, na segunda parte do livro,
como Canguilhem retoma alguns postulados da medicina grega a fim de insistir no carter
relacional da patologia, a patologia como o que se revela na relao entre o organismo e seu
meio. Isto ficar claro, por exemplo, quando Canguilhem discutir a perspectiva que procura
vincular o normal ao conceito de mdia aritmtica, de frequncia estatstica ou, ainda, de
tipo ideal em condies experimentais determinadas; como se o normal fosse um problema
de biometria. A posio de Canguilhem a este respeito estar sintetizada em afirmaes
66

CANGUILHEM, idem, p. 21
idem, p. 68
68
DEBRU, Georges Canguilhem, science et non-science, p. 33
67

como: Se verdadeiro que o corpo humano , em certo sentido, produto da atividade


social, no absurdo supor que a constncia de certos traos, revelados por uma mdia,
dependa da fidelidade consciente ou inconsciente a certas normas de vida. Por conseguinte,
na espcie humana, a frequncia estatstica no traduz apenas uma normatividade vital, mas
tambm uma normatividade social69. Maneira de afirmar que no interior da relao entre
organismo e meio que poderemos definir conceitos como normal e patolgico.
Auguste Comte e o problema do patolgico
O captulo II de O normal e o patolgico dedicado a uma reflexo sobre tais
problemas em Auguste Comte. Comear por Comte no era uma deciso gratuita. No
Frana, foi sobretudo o positivismo de Comte que apareceu como maneira de retomar a
indagao sobre a natureza dos processos de racionalizao prprios a modernidade.
Indagao que no deixava de articular uma histria geral das sociedades e uma discusso a
respeito da positividade das cincias. Neste sentido, este comeo indica claramente os
interesses de Canguilhem. Trata-se de mostrar como o problema do patolgico um setor
da reflexo a respeito dos processos de racionalizao em operao na modernidade, fato
que Comte no teria dificuldade em aceitar.
Canguilhem parte lembrando como Comte seguia Pinel ao defender, sob o nome de
princpio de Broussais que: todas as doenas aceitas como tal so apenas sintomas e que
no poderiam existir perturbaes das funes vitais sem leses dos rgos, ou melhor, de
tecidos70. Maneira de assentar o estudo do patolgico na fisiologia e afirmar que a doena
no seria outra coisa que efeito de variaes de intensidade na ao de estimulantes
indispensveis conservao da sade. Maneira de dizer, tambm, que a observao clnica
no pode ser outra coisa que a comparao entre um fenmeno padro e um fenmeno
alterado e que qualquer patologia deve se basear no conhecimento prvio de um estado
normal.
Aqui vemos claramente o mtodo de Canguilhem em operao. Ele lembra que uma
afirmao como a de Comte exige o reconhecimento de um critrio para definir a
normalidade de um fenmeno a no ser que Comte se apie em conceitos usuais de
harmonia entre influncias da natureza e exigncias do organismo. No entanto, um conceito
usual carregado de conotaes como o conceito de harmonia s pode ser visto como um
conceito que expressa posies ideolgicas. Da porque Canguilhem pode afirmar que ele
muito mais um conceito esttico e moral do que exatamente cientfico, j que guarda
preceitos normativos de ordem social: O conceito de normal se transforma em conceito
esttico porque exprime um equilbrio possvel entre as influncias da natureza e do
organismo a respeito do qual o espectador advertido que o cientista pode se maravilhar.
Ele vale tambm como conceito moral porque a harmonia natural sugere uma ordem prestabelecida71. Ou seja, a norma que serve como base para a determinao de excesso ou
falta no outra coisa que o resultado do apego a algum valor, logo a algo qualitativo. Um
valor que no se deixa pr como valor, que no deve se pr como valor produzido por um
projeto, mas como dado imediato fornecido de maneira no problemtica pela percepo
direta. Como se no interior da positividade de um discurso que procura racionalizar a
clnica a partir de uma fisiologia que traz padres de cientificidade marcados pelas
69

CANGUILHEM, idem, p. 113


idem, p. 27
71
LE BLANC, idem, p. 36
70

possibilidades de mensurao e quantificao que, como vimos anteriormente, vinha dos


padres de racionalizao dos objetos da fsica matemtica, esconde-se uma produo de
notematizada de valor que da ordem da ideologia.
Se lembrarmos da tendncia de Comte em comparar o organismo biolgico com o
organismo poltico, fica clara a funo social do valor que opera na clnica e que retira toda
e qualquer realidade prpria desordem provocada pela doena. Trata-se de garantir o
carter reconciliador da teraputica No caso de Comte, tal esvaziamento do patolgico ,
segundo Canguilhem: a pea indispensvel de uma concepo biolgica de histria [j que
as leis do organismo social e do organismo biolgico do indivduo seriam as mesmas ou
seja, como se a histria do homem fosse uma histria natural] elaborada exatamente na
poca que a histria comeava a penetrar a biologia72.
No entanto, claro que podemos tentar fundar o conceito de norma e de normal em
um terreno mais slido e permevel a uma observao que possa apresentar claramente
seus pressupostos. por isto que Canguilhem passa anlise da teoria que suporta a prtica
de dois grandes mdicos: Claude Bernard e Ren Leriche. No entanto, como veremos na
prxima aula, eles tambm no escaparo dos impasses que necessariamente encontraremos
todas as vezes que procurarmos defender uma perspectiva meramente quantitativa na
determinao das distines entre normal e patolgico.

72

CANGUILHEM, Etues dhistoire et de philosophie des sciences, p. 98

O estatuto da psicologia
Aula 6
Na aula de hoje, continuaremos o comentrio de O normal e o patolgico, de georges
Canguilhem, atravs da leitura dos captulos III, IV e V. Ns vimos, na aula passada, o
que estava em jogo nesta primeira parte do nosso livro. Tratava-se de passar em revista
diferentes verses de uma mesma tese ento hegemnica no sculo XIX, uma espcie
de dogma cientificamente garantido, dir Canguilhem, a respeito da distino entre
normal e patolgico. Augusto Comte, Claude Bernard e Ren Leriche teriam em
comum uma maneira de compreender a diferena entre normal e patolgico como uma
diferena quantitativa que diria respeito a funes e rgos isolados, como se os
fenmenos patolgicos fossem, no organismo vivo, apenas variaes quantitativas,
dficits ou excessos. Como lembra Canguilhem, semanticamente, o patolgico
designado a partir do normal, no tanto como a ou dis, mas como hiper ou hipo.
Assim: a doena no pensada como uma experincia vivida, engendrando
transtornos e desordens, mas como uma experimentao aumentando as leis do
normal73. Quer dizer, a doena nada mais do que um sub-valor derivado do normal.
a definio do normal como estrutura valorativa positiva que define o campo da
clnica. Esta experincia clnica exige que o normal esteja assentado em um campo
mensurvel acessvel observao. Tal campo privilegiado a fisiologia que aparece
assim como fundamento para uma clnica que ir se orientar a partir dos postulados de
uma anatomia patolgica: As tcnicas de interveno teraputica s podem ser
secundrias em relao cincia fisiolgica, isto na medida em que o patolgico s
tem realidade provisria por declinao do normal74. A primeira parte do livro
assim um exame crtico da noo que procura definir o patolgico a partir do normal,
como se a experincia do normal fosse anterior determinao do patolgico.
Vimos, na aula passada, como o captulo II de O normal e o patolgico era dedicado
a uma reflexo sobre tais problemas em Auguste Comte. Comear por Comte no era uma
deciso gratuita. No Frana, foi sobretudo o positivismo de Comte que apareceu como
maneira de retomar a indagao sobre a natureza dos processos de racionalizao prprios a
modernidade. Indagao que no deixava de articular uma histria geral das sociedades e
uma discusso a respeito da positividade das cincias. Neste sentido, este comeo indica
claramente os interesses de Canguilhem. Trata-se de mostrar como o problema do
patolgico um setor da reflexo a respeito dos processos de racionalizao em operao
na modernidade, fato que Comte no teria dificuldade em aceitar.
Canguilhem parte lembrando como Comte seguia Pinel ao defender, sob o nome de
princpio de Broussais que: todas as doenas aceitas como tal so apenas sintomas e que
no poderiam existir perturbaes das funes vitais sem leses dos rgos, ou melhor, de
tecidos75. Maneira de assentar o estudo do patolgico na fisiologia e afirmar que a doena
no seria outra coisa que efeito de variaes de intensidade na ao de estimulantes
indispensveis conservao da sade. Maneira de dizer, tambm, que a observao clnica
no pode ser outra coisa que a comparao entre um fenmeno padro e um fenmeno
alterado e que qualquer patologia deve se basear no conhecimento prvio de um estado
normal.
73

LE BLANC, Conguilhem et les normes, p. 34


idem, p. 42
75
idem, p. 27
74

Insisti com vocs como vamos claramente, neste ponto, o mtodo de Canguilhem
em operao. Ele lembra que uma afirmao como a de Comte exige o reconhecimento de
um critrio para definir a normalidade de um fenmeno a no ser que Comte se apie em
conceitos usuais de harmonia entre influncias da natureza e exigncias do organismo. No
entanto, um conceito usual carregado de conotaes como o conceito de harmonia s
pode ser visto como um conceito que expressa posies ideolgicas. Da porque
Canguilhem pode afirmar que ele muito mais um conceito esttico e moral do que
exatamente cientfico, j que guarda preceitos normativos de ordem social: O conceito de
normal se transforma em conceito esttico porque exprime um equilbrio possvel entre as
influncias da natureza e do organismo a respeito do qual o espectador advertido que o
cientista pode se maravilhar. Ele vale tambm como conceito moral porque a harmonia
natural sugere uma ordem pr-estabelecida 76. Ou seja, a norma que serve como base para a
determinao de excesso ou falta no outra coisa que o resultado do apego a algum valor,
logo a algo qualitativo. Um valor que no se deixa pr como valor, que no deve se pr
como valor produzido por um projeto, mas como dado imediato fornecido de maneira no
problemtica pela percepo direta. Como se no interior da positividade de um discurso que
procura racionalizar a clnica a partir de uma fisiologia que traz padres de cientificidade
marcados pelas possibilidades de mensurao e quantificao que, como vimos
anteriormente, vinha dos padres de racionalizao dos objetos da fsica matemtica,
esconde-se uma produo de notematizada de valor que da ordem da ideologia
No entanto, claro que podemos tentar fundar o conceito de norma e de normal em
um terreno mais slido e permevel a uma observao que possa apresentar claramente
seus pressupostos. por isto que Canguilhem passa anlise da teoria que suporta a prtica
de dois grandes mdicos: Claude Bernard e Ren Leriche.
Claude Bernard
Claude Bernard foi o fisiologista francs mais importante do sculo XIX e
responsvel por estudos pioneiros sobre a diabete e a funo do acar no corpo humano.
Adepto da idia de que o progresso da medicina s seria possvel atravs da fisiologia
experimental, Bernard utiliza a fsica e a qumica como bases para todo conhecimento
fisiolgico, isto a despeito de qualquer vitalismo que procurasse afirmar que apenas foras
vitais poderiam explicar, de maneira satisfatria, a natureza e a causalidade de fenmenos
vitais. Assim, para Bernard, a biologia segue o determinismo prprio toda e qualquer
cincia do mundo fsico. Maneira de afirmar a onivalncia do postulado determinista e a
identidade material de todos os fenmenos fsico-qumicos. Bernard foi ainda responsvel
pela noo de meio interno (e que hoje ns chamaramos de homeostase) e que diz
respeito a independncia relativa de funes orgnicas em relao flutuaes do meio
ambiente.
Canguilhem comea seu captulo insistindo na herana positivista em operao na
prtica de Claude Bernard. Maneira de abrir espao atualizao das mesmas crticas que
haviam sido empregadas contra Comte no captulo anterior. Bernard partilha esta noo de
Comte segundo a qual o estado patolgico apenas uma variao quantitativa do estado
normal e que a explicao de fenmenos vitais atravs da noo de um conflito entre dois
agentes opostos infundada. Da porque: O bom senso indica que, conhecendo-se
76

LE BLANC, idem, p. 36

completamente um fenmeno fisiolgico, estamos em condies de avaliar todas as


perturbaes que ele pode sofrer no estado patolgico 77. atravs, principalmente, do
estudo dos diabetes que Bernard procura colocar esta perspectiva prova.
Canguilhem lembra que Bernard trazia, para sustentar seu princpio geral de
patologia, argumentos controlveis, protocolos de experincias e, sobretudo, mtodos de
quantificao de conceitos fisiolgicos como: glicognese, glicemia, glicosria, calor da
vasodilatao etc. No entanto, Canguilhem logo identifica situaes nas quais a diferena
quantitativa pensada sob a noo de desarmonia, mostrando assim o recurso a uma
diferena de ordem eminentemente qualitativa. Esta insistncia da dimenso qualitativa
leva-o a perguntar: O conceito de doena ser o conceito de uma realidade objetiva
acessvel ao conhecimento cientfico quantitativo? A diferena de valor que o ser vivo
estabelece entre sua vida normal e sua vida patolgica seria uma aparncia ilusria que o
cientista deveria negar?78. Ou seja, a determinao valorativa prpria experincia
subjetiva da doena teria algo a dizer a respeito da prpria natureza da doena?
neste ponto que nosso autor traz uma afirmao maior a respeito de sua
perspectiva. Quem afirma existir uma homogeneidade entre normal e patolgico admite a
possibilidade de definir a sade perfeita como realidade qual, tendencialmente, toda
situao orgnica deve se conformar. No entanto: A sade perfeita no passa de um
conceito normativo, de um tipo ideal. Raciocinando com todo o rigor, uma norma no
existe [ela no tem realidade emprica], apenas desempenha seu papel que o do
desvalorizar a existncia para permitir a correo dessa mesma existncia. Dizer que a
sade perfeita no existe apenas dizer que o conceito de uma sade no o de uma
existncia, mas sim o de uma norma cuja funo e cujo valor relacionar essa norma com a
existncia a fim de provocar a modificao desta. Isto no significa que sade seja um
conceito vazio79.
Tais afirmaes so decisivas porque elas lembram, primeiramente, que o estado
normal no , exatamente, uma realidade empiricamente observvel. A sade, o estado
normal uma norma que visa permitir a correo, a modificao do existente. Mas correo
e modificao em nome do que? Esta questo que fica, por enquanto, em aberto.
No entanto, elas nunca poderiam ser aceitas por Bernard, para quem era possvel,
como j foi dito, atribuir um contedo experimental ao conceito de normal. Canguilhem
passa ento a uma anlise da maneira com que Bernard procurava caracterizar os diabetes
pela taxa alta de glicemia com conseqente glicosria. Ele procura levantar situaes onde
as relaes de causa e efeito (aumento da taxa de gliecmia = glicosria etc.) pensadas por
Bernard no se do. Maneira de insistir que s poderemos compreender os diabetes ao
introduzirmos o conceito de comportamento renal de um indivduo biolgico. Como nos
lembra Le Blanc: O conceito de comportamento aqui fundamental: o comportamento
orgnico no a rplica de uma funo fisiolgica correspondente, mas a apreenso de uma
atitude biolgica. Assim, o uso da expresso comportamento renal traduz uma iniciativa
do organismo no absorvvel em termos quantitativos80. Pois quem diz comportamento
diz ao a partir de processos de valorao e comparao, diz orientao global do
organismo em direo realizao de uma ao. Por isto que Canguilhem afirmar que isto
nos impe considerar a doena: como um acontecimento que diz respeito ao organismo
77

CANGUILHEM, O normal e o patolgico, p. 45


idem, p. 53
79
idem, p. 54
80
LA BLANC, idem, p. 38
78

vivo encarado na sua totalidade81. At porque, o que parece aumento ou diminuio em


alguma localidade orgnica , na realidade, uma alterao do todo. Da porque Canguilhem
abraa definies dos diabetes como a de uma doena de nutrio considerando a constante
glicemia como um tnus indispensvel existncia do organismo considerado como um
todo: claro que se pode fazer experincias com cada mecanismo funcional
separadamente. No entanto. No organismo vivo todas as funes so interdependentes e
seus ritmos harmonizados. O comportamento renal s teoricamente pode ser abstrado do
comportamento do organismo funcionando como um todo82.
Esta perspectiva ser fundamental para a anlise das patologias psquicas.
pensando nelas que Canguihem afirmar: Em geral no se deve relacionar determinado ato
de uma pessoa normal a um ato anlogo de um doente sem compreender o sentido e o valor
do ato patolgico para as possibilidade de existncia do organismo modificado 83. Isto , na
verdade, apenas o desdobramento da perspectiva politzeriana que determinava o fato
psicolgico como o ato de um sujeito dotado de expectativa significativa, ou seja, ato cujo
sentido s podia ser desvelado a partir da perspectiva do sujeito que nele se engaja.
Perspectiva politzeriana que se mostra de maneira ainda mais clara quando nosso autor
afirma que a clnico coloca o mdico em contato com indivduos completos e concretos e
no com seus rgos ou funes.
Da vem a definio proposta por Canguilhem segundo a qual a doena: uma
nova forma de se comportar em relao ao meio (...) Ser doente realmente, para o homem,
viver uma vida diferente, mesmo no sentido biolgico da palavra 84. Pois a doena no
doena de uma funo, mas doena do organismo que se v afetado, em todas as suas
funes, pela realidade da doena. Encontramos assim estas colocaes fundamentais para
a perspectiva holista de Canguilhem: de um modo bastante artificial que dispersamos a
doena em sintomas ou a abstramos de suas complicaes. O que um sintoma, sem
contexto, ou um pano de fundo? (...) Quando classificamos de patolgico um sintoma ou
um mecanismo funcional isolados, esquecemos que aquilo que os torna patolgicos sua
relao de insero na totalidade indivisvel de um comportamento individual 85. De fato, a
clnica procura, atravs d noes anatmicas, fisiolgicas ou neuronais, determinar a
realidade da doena, mas este realidade, a clnica s a percebe atravs da conscincia de
decrscimo da potncia e das possibilidade de relao com o meio, conscincia esta
veiculada primeiramente pelo sujeito que sofre. Isto apenas nos remete novamente a esta
noo central: no h cincia da fisiologia humana sem tcnica de restaurao da sade,
ou seja, sem a conscincia da doena por um sujeito. Uma nova afirmao resulta disto: a
anterioridade da clnica, experincia da doena partilhada entre o doente e o mdico, sobre
a fisiologia e a patologia86.
Mas Canguilhem lembra, no captulo posterior, este a respeito das teorias do cirurgio Ren
Leriche, que se tende a aceitar o inverso, ou seja, a invalidade da opinio do doente em
relao realidade de sua prpria doena. Leriche aquele que afirmar, com todas as
letras: Se quisermos compreender a doena, necessrio desumaniz-la e ainda Na
doena, o que menos importa o homem. Estas duas afirmaes visavam insistir como a
81

idem, p. 57
CANGUILHEM, idem, p. 61
83
idem, p. 62
84
idem, p. 64
85
idem, p. 65
86
DEBRU, Georges Canguilhem, science et non-science, p. 33
82

clnica no poderia ser dependente da expresso da subjetividade do doente, sempre incerta


e insegura, mascarando a certeza que apenas o contato com a fisiologia, que apenas a
compreenso da doena como o que ocorre no nvel dos tecidos, poderia revelar. . De uma
certa forma, Canguilhem parte delas para procurar defender o contrrio, que o patolgico s
comea quando , de uma certa forma, reconhecido como tal pela conscincia marcada pela
experincia da doena. Com um certo acento hegeliano, Canguilhem no teme em afirmar
que: no h nada na cincia que antes no tenha aparecido na conscincia [no
necessariamente na conscincia do sujeito que atualmente sofre, mas naquelas dos que
outrora sofreram e que fornecem ao mdico a orientao do seu olhar] 87. Em medicina, o
pathos que chama o logos e que o faz funcionar. Se o mdico pode adiantar conscincia
que seu paciente tem da doena porque, outrora, a doena foi sentida como tal por alguma
conscincia: Sempre se admitiu, e atualmente uma realidade incontestvel, que a
medicina existe porque h homens que se sentem doentes, e no porque existem mdicos
que os informam de suas doenas88.
O prprio Leriche admite algo desta natureza ao reconhecer que a leso no
suficiente para constituir a doena clnica. Mas este reconhecimento no o leva a relativizar
o fato de que, da fisiologia patologia, no h limiar. No entanto, Canguilhem procura
mostrar como Leriche luta contra si mesmo, procurando no ver aquilo que ele prprio
elabora. Como exemplo, Canguilhem analisa a maneira com que Leriche concebe o
problema da dor. impossvel considerar a dor como expresso de uma atividade normal.
Mas impossvel tambm consider-la como um detector em um sinal de alarme imediatos
das ameaas internas ou externas integridade orgnica, muito menos uma reao de
defesa que o mdico deveria respeitar. Da esta definio de Leriche, segundo a qual: a dor
um fato individual monstruoso e no uma lei da espcie. Um fato da doena 89. Ou seja,
no pela dor que a doena e definida. Ao contrrio, ela j vista como um fato da doena,
mas um fato cuja inteligibilidade exige a reflexo sobre o indivduo biolgico: Parece-nos
de importncia capital que um mdico reconhea na dor um fenmeno de reao total que
s tem sentido e que s um sentido ao nvel da individualidade humana concreta 90. A
conscincia da dor no um fato fisiolgico, mas um fato psicolgico no sentido
politzeriano do termo, fato no qual o sujeito expressa a limitao de sua capacidade de agir
sobre o meio. Atravs do problema da dor como fato da doena (lembremos, de que serve
uma cura que no aplaca o desconforto provocado pela dor?), Leriche reconhece algo que
nem Comte, nem Bernard estavam dispostos a aceitar. Para os dois, s se pode proceder
logicamente partindo do conhecimento fisiolgico experimental para a tcnica mdica. Mas
Leriche acha que a fisiologia a coletnca das solues dos problemas levantados pela s
doenas dos doentes. Ou seja: segundo Aristteles, toda cincia procede do espanto. Essa
afirmao se aplica tambm fisiologia. Porm o espanto verdadeiramente vital a
angstia suscitada pela doena91. Isto significa dizer que a doena determina a
configurao do nosso saber sobre o corpo, a configurao do nosso cuidado em relao ao
corpo, enfim, de nossa conscincia do corpo. Se assim for, ento a doena que determina
nossa conscincia do normal, e no o inverso. No ponto de vista da cincia, a doena o
fenmeno originrio.
87

idem, p. 68
idem, p. 69
89
idem, p. 71
90
idem, p. 72
91
idem, p. 76
88

O estatuto da psicologia
Aula 7
Temas para monografia:
A constatao do comportamento humano resulta, para o psiclogo, no de uma simples
percepo, mas da percepo complexificada por uma compreenso; conseqentemente, o
dado psicolgico no um dado simples. Enquanto objeto do conhecimento, ele
essencialmente construdo.
(POLITZER, Crtica dos fundamentos da psicologia)
Segundo Aristteles, qualquer cincia procede do espanto. Esta afirmao se aplica
tambm fisiologia. Porm o espanto verdadeiramente vital a angstia suscitada pela
doena
(CANGUILHEM, O normal e o patolgico)
H uma boa razo que impede psicologia de dominar a loucura: que a psicologia s foi
possvel em nosso mundo uma vez que loucura j estava dominada e excluda do drama
(FOUCAULT, Doena mental e psicologia)

Na aula de hoje, continuaremos a leitura de O normal e o patolgico atravs dos


comentrios dos captulos I, II e III da sua segunda parte, esta que tem por ttulo; Existem
cincias do normal e do patolgico?. Neste momento de nosso curso, podemos fazer uma
recapitulao de nossa problemtica central, isto a fim de medir, de maneira mais precisa, a
natureza da resposta a ela fornecida por Canguilhem.
Desde nossas leituras de Georges Politzer, vimos como constituia-se, em solo
francs, uma tradio epistemolgica que visava repensar, ao mesmo tempo, o estatuto do
fato psicolgico e o estatuto da distino entre o normal e o patolgico. Em Politzer, a
reflexo sobre a natureza do estatuto psicolgico estava vinculada a uma crtica ao carter
abstrato das generalizaes da psicologia clssica, ao dualismo a respeito do qual sua
histria seria tributria e, principalmente, ao realismo de quem toma o objeto da percepo
imediata como fato psicolgico fundamental. Contra este realismo abstrato, Politzer
pregava um certo retorno ao concreto que nada mais era do que compreenso de que o fato
psicolgico , fundamentalmente, um ato que visa realizar uma aspirao de sentido, ato
que obedece a uma teleologia resultante de um modo especfico de valorao das
exigncias do meio ambiente. Todo ato assim, no fundo, um julgamento que orienta um
sujeito na relao com o meio ambiente no qual ele est inserido. O verdadeiro fato
psicolgico no , pois, a percepo, a sensao, o condicionamento ou o reflexo, mas o
julgamento que orienta a ao a partir de estruturas de valorao.
Sendo assim, ficava claro que definies como normal e patolgico, embora
no fossem objetos diretos da reflexo politzeriana, no poderiam mais dizer respeito a
estados de indivduos isolados, ou de indivduos tomados como feixe de rgos e funes
intencionais atomizadas. Normal e patolgico enquanto categorias psicolgicas s
poderiam dizer respeito a um sujeito tomado enquanto sujeito que se relaciona com um

meio ambiente que lhe prprio. Da a importncia que Politzer dava a processos como a
simbolizao e a verbalizao narrativa na compreenso dos dispositivos de cura. Pois se
tratava de, atravs da fala, recolocar, no interior da relao a um meio ambiente
propriamente humano (meio naturalmente intersubjetivo) , algo que no encontrava mais
lugar a.
Quando passamos leitura de Canguilhem, vimos que a discusso tomava uma
outra proporo. A discusso sobre a especificidade do fato psicolgico parecia no ocupar
mais lugar algum. Por outro lado, o problema da partilha entre normal e patolgico
deslocou-se para o centro. De fato, Canguilhem opera com uma perspectiva mais larga do
que aquela oferecida por Politzer, j que ele simplesmente no est disposto a operar com
forma alguma de distino estrutural entre o orgnico e o psicolgico. Em vrios momentos
de sua obra, Canguilhem age como quem acredita que o orgnico e o psicolgico segue as
mesmas leis, que entre o fato psicolgico e o fato orgnico no h diferenas maiores de
naturezas (mas apenas de complexidade). Mas, no caso de Canguilhem, isto no significa
tentar reduzir todo estado psicolgico atravs de um materialismo reducionista. Trata-se, ao
contrrio, de complexificar nossa compreenso do orgnico, nossa compreenso dos
fenmenos vitais, de uma forma tal que eles escapem do quadro compreensivo de uma
fisiologia mecanicista e, para usar termos de Politzer, realista e abstrata.
No se trata, com isto, de continuar o velho debate entre causalidade somtica e
causalidade psquica, entre organognese e psicognese. A posio de Canguilhem mais
radical pois assentada na pergunta: compreendemos bem um organismo biolgico quando
vemos nele apenas um feixe de funes e rgos que se submetem a padres gerais de
mensurao e quantificao? Esta vida no seria apenas o exemplo de uma razo que se
transformou em princpio de dominao e controle da vida, ou seja, naquilo que um dia
Foucault chamou de biopoder? Por isto, embora no parea ser um livro sobre psicologia,
O normal e o patolgico teve uma influncia decisiva em toda reflexo posterior sobre a
epistemologia da psicologia e das clnicas da subjetividade.
Dentro do quadro de Canguilhem, como fica ento a distino entre normal e
patolgico? Comecemos lembrando desta afirmao to importante para o filsofo francs.
A sade a vida no silncio dos rgos. Esta frase famosa do cirurgio Ren Leriche
indicava como a doena , em ltima instncia, o que faz o corpo falar. a experincia da
doena que rompe uma certa imanncia silenciosa entre sujeito e o seu prprio corpo; ela
que transforma o corpo em um problema que determina exigncias de saber e configura
necessidades de cuidado e interveno. Desde h muito, ouvimos que o homem que pensa
um animal doente. A frase se presta a, pelo menos, duas interpretaes: no apenas que o
pensar uma doena que marca o ponto de exlio em relao a uma naturalidade perdida,
mas, principalmente, que a doena o que provoca o pensar. Pois, se verdade que toda
cincia procede do espanto, ento no haveria como esquecer desta afirmao maior do
filsofo Georges Canguilhem: o espanto verdadeiramente vital a angstia suscitada pela
doena92. Esta era sua maneira de lembrar que a conscincia da doena o fato primeiro e
independente de uma definio positiva do fenmeno normal.
Se assim for, temos sempre o direito de perguntar de onde vem isto que poderamos
chamar de gramtica da doena, ou seja, este modo com que o saber transforma a doena
em discurso pronto para ser lido e interpretado pelo olhar clnico. Discurso que se expressa
em sintomas, nosografias, distrbios, transtornos, sndromes e sinais vitais. Pois uma das
92

CANGUILHEM, O normal e o patolgico, Forense Universitria, p. 76

idias fundamentais desta tradio epistemolgica que tem nomes como Michel Foucault e
Georges Canguilhem, consistiu em lembrar que a doena, o patolgico, no tem gramtica
prpria. A maneira com que ela fala depende da maneira com que organizamos o que h a
ser visto e ouvido.
Podemos compreender a primeira parte de O normal e o patolgico como uma
cuidadosa anlise da gnese de uma certa gramtica das doenas que parece ter sido
retomada na atualidade. Pois devemos sempre perguntar: o que est pressuposto em
afirmaes como algum sofre de Transtorno Obsessivo-Compulsivo, algum sofre de
Transtorno de Dficit de ateno e de Comportamento Disruptivo, algum sofre de
Transtorno do Desejo Sexual? Dentre vrias coisas, vale sempre a pena perceber como a
doena compreendida, nestes casos, como um fenmeno de funes rgos tomados de
maneira isolada. Por trs da constituio de patologias que permitem a constituio de
diagnsticos e intervenes que privilegiam categorias pontuais, h a crena fundamental
de que a doena nada mais do que alguma forma de distrbio, transtorno, dficit ou
excesso que acontece no nvel de funes e rgos. Isto legitima uma prtica que
compreende a diferena entre normal e patolgico como uma mera diferena quantitativa,
como se os fenmenos patolgicos fossem, no organismo vivo, apenas variaes
quantitativas de base fisiolgica, o que o vocabulrio do dficit expe de maneira bastante
clara.
Esta perspectiva, por sua vez, possibilita tanto uma clnica submetida fisiologia
quanto uma teraputica que se submete de maneira praticamente sem limites
medicalizao, j que ela o caminho mais curto para a regulao de variaes
quantitativas de base fisiolgica.. Pois, a doena aqui nada mais do que um sub-valor
derivado do normal. a definio do normal como estrutura valorativa positiva que define
o campo da clnica. Esta experincia clnica exige que o normal esteja assentado em um
campo mensurvel acessvel observao. Tal campo privilegiado a fisiologia que
aparece assim como fundamento para uma clnica que ir se orientar a partir dos postulados
de uma anatomia patolgica, ou seja, de uma anatomia fascinada pela procura da leso de
rgos e tecidos como causa explicativa para o desvio da conduta.
Desta forma, a gramtica das doenas de nossa poca pode ser atomizada e
quantificadora porque ela se submete a um ideal normativo assentado na crena na
possibilidade de determinar o normal como estrutura valorativa positiva. Neste sentido, o
discurso hegemnico das cincias mdicas e mdico-psiquitricas da contemporaneidade
no inovou. Na verdade, ele simplesmente reatualizou, como dizia Canguilhem, uma
espcie de dogma cientificamente garantido a respeito da distino entre normal e
patolgico que nos remeteu novamente ao sculo XIX.
Que o progresso cientfico aparea como um grande salto para trs, eis algo que no
deveria nos impressionar, at porque no ser a primeira vez que isto ocorre. Historiadores
das cincias gostam de ver sua disciplina como a descrio de um irresistvel progresso em
direo a um espelhamento, cada vez mais acabado, do mundo e de suas propriedades,
assim como a descrio de um aprofundamento reflexivo sobre os limites e desafios do
fazer cientfico. Infelizmente, esta histria , muitas vezes, a descrio da consolidao de
prticas de instrumentalizao e controle ideologicamente orientadas. Neste sentido,
sempre bom lembrar que decises clnicas a respeito da distino entre normal e patolgico
so, na verdade, um setor de decises mais fundamentais da razo a respeito do modo de
definio daquilo que aparece como seu Outro (a patologia, a loucura etc.). Elas se inserem

em configuraes mais amplas de racionalizao que ultrapassam o domnio restrito da


clnica.
Fica, no entanto, a questo sobre a possibilidade de uma outra viso a respeito do
que est em jogo na distino entre normal e patolgico, no que est em jogo na prpria
definio de doena. neste ponto que comea a segunda parte de O normal e o
patolgico. Assim, se a primeira parte do livro: mostrou que a o dogma positivista da
identificao entre normal e patolgico s pde se sustentar devido desconsiderao de
toda individualidade biolgica [j que o normal no fornecido por individualidade
alguma, mas um padro fisiolgico mensurvel de conformao do organismo], a segunda
parte reintroduz a individualidade biolgica nas questes de doena e sade 93. No entanto,
e este um ponto importante, no individualidade no aparece como um simples
mecanismo, uma mquina onde o todo a soma das partes (dos rgos), onde os efetiso so
dependentes de uma certa rigidez funcional. A individualidade potncia em direo sua
afirmao como centro normativo.
Por que nem toda anomalia doena?
A fim de encontrar um outro conceito para a partilha entre normal e patolgico,
Canguilhem recorre psiquiatria fenomenolgica de Minkowski, Daniel Lagache e Charles
Blondel, para quem a desorganizao psquica no era simplesmente o simtrico inverso da
organizao normal, mas uma diferena qualitativa fundamental na relao ao mundo. Uma
diferena que aparecia como anomalia, mas que no necessariamente aparecia como
doena. Aproveitando-se da noo de que nem toda anomalia psquica doena, e
afirmando que, neste ponto, anomalia psquica e anomalia somtica tinham a mesma
estrutura, Canguilhem procurava mostrar as conseqncias do ato de desvincular doena e
anomalia.
De fato, o problema do estatuto da anomalia fornece uma boa perspectiva para a
recomposio da noo de normal. A fim de insistir na desvinculao entre anomalia e
doena, Canguilhem lembra: H uma polaridade dinmica da vida. Enquanto as variaes
morfolgicas ou funcionais sobre o tipo especfico no contrariam ou no invertem esta
polaridade, a anomialia um fato tolerado; em caso contrrio a anomalia experimentada
como tendo valor vital negativo e se traduz externamente como tal 94. Ou seja, a vida uma
atividade normativa polarizada contra tudo o que valor negativo, tudo o que significa
decrscimo e impotncia. Quando a diversidade orgnica no implica em tal polarizao, a
diferena no aparece como doena.
Lembremos, ainda, que seres vivos que se afastam do tipo especfico so, muitas
vezes, inventores a caminho de novas formas. A vida, mesmo no animal, no mera
capacidade de evitar dissabores e se conservar. Ela tentativa, atividade baseada na
capacidade de afrontar riscos e triunfar95, da porque ela tolera monstruosidades. isto que
levar Canguilhem a afirmar: No existe fato que seja normal ou patolgico em si. A
anomalia e a mutao no so, em si mesmas, patolgicos. Elas exprimem outras normas de
vida possveis. Se essas normas forem inferiores s normas anteriores, sero chamadas
patolgicas. Se, eventualmente, se revelarem equivalentes no mesmo meio ou
superiores em outro meio sero chamadas normais. Sua normalidade advir de sua
93

LE BLANC, Canguilhem et les normes, p. 52


CANGUILHEM, idem, p. 105
95
CANGUILHEM, La connaissance de la vie, p. 215
94

normatividade96. No difcil encontrar nestas reflexes de Canguilhem uma certa posio


nietzscheana que procura erigir a criao de valores em vontade de afirmao da vida.
Esta reflexo sobre o estatuto ambivalente da anomalia pressupe, no entanto, que o
portador da anomalia possa ser centro produtor de valor e de normatividade. Mesmo para
organismos unicelulares simples, viver excluir e preferir. Na verdade, esta posio de
centro produtor de valor prpria a todo homem so: O homem normal o homem
normativo, o ser capaz de instituir novas normas, mesmo orgnicas. Uma norma nica de
vida sentida de modo privativo, e no positivamente 97. Isto nos permite sintetizar uma
definio de sade no mais vinculada entificao de constantes fisiolgicas. Sade a
posio na qual o organismo aparece como produtor de normas na sua relao ao meio
ambiente. At porque a norma, para um organismo, exatamente sua capacidade em mudar
de norma. O que implica em uma noo de relao entre organismo e meio ambiente que
no pode ser compreendida como simples adaptao e conformao. Um organismo
completamente adaptado e fixo doente por no ter uma margem que lhe permita suportar
as mudanas e infidelidades do meio. A doena aparece assim como fidelidade a uma
norma nica. Da esta definio: uma vida s, uma vida confiante na sua existncia, nos
seus valores, uma vida em flexo, uma vida flexvel (...) Viver organizar o meio a partir
de um centro de referncia que no pode, ele mesmo, ser referido sem com isto perder sua
significao original98.
Isto implica em uma noo bastante particular de meio. Em um artigo intitulado O
ser vivo e seu meio, Canguilhem lembrava, contrariamente noo de Jacob von Uexkll
sobre a completao conformao entre organismo e meio ambiente, que, contrariamente
mquina, o organismo tem sua essncia no ajustamento s infidelidades do meio. Neste
sentido, o meio no mera potncia condicionante. Para compreender este ponto, o
filsofo francs prope uma certa arqueologia do sentido a respeito da noo de meio.
Uma noo que veio biologia atravs da fsica newtoniana. Os mecanicistas franceses do
sculo XVIII chamaram de meio o que Newton entendia por fluido e cujo paradigma era
o ter. O problema a resolver atravs da noo de fluido concernia ao distncia entre
indivduos fsicos distintos. Ou seja, tratava-se de compreender como possvel pensar um
sistema de relaes entre indivduos aparentemente sem relaes entre si. Foi baseando-se
nesta idia de Newton que Lamarck procurou explicar o ser vivo e seu comportamento
atravs de um sistema de conexo com o meio ambiente. Sistema mecnico onde os efeitos
seriam deduzidos diretamente das causas que o determinam distncia, tal como no sistema
de ao e reao prprio fsica newtoniana.
Aos poucos, o meio vai se transformando em uma espcie de instrumento universal
de dissoluo de individualidades. Como se a noo de meio acabasse validade o dito de
Descartes: a natureza que age nos organismos animais atravs de seus rgos. Isto nos
levou, por exemplo, a algumas situaes, como as defendidas por Watson, para quem a
situao do ser vivo , necessariamente, uma situao de condicionamento.
No esta a noo de meio que Canguilhem reconhece. Pois ela no pode dar conta
da maneira com que o organismo capaz de trazer vrias solues a um mesmo conjunto
de problemas postos pelo meio, nem de definir a significao valorativa da ao operada no
meio. Um reflexo, por exemplo, no uma simples reao, mas ao a partir de uma
inteno dotada de sentido e de orientao. A cincia tem por objeto uma srie de
96

CANGUILHEM, O normal e o patolgico, p. 113


idem, p. 105
98
CANGUILHEM, La connaissance de la vie, p. 188
97

ambientes e meios (Umwelt, Merkwelt, Gegenwelt) nos quais os estmulos intervm


segundo o que eles significam e valem para a atividade tpica da espcie considerada 99.
Um meio deve ser assim o que se estrutura a partir de operaes de determinao de valor
postas pelo prprio organismo. Quando ele no capaz de operar tais determinaes, tratase ento de uma situao de doena. Isto nos explica porque, para Canguilhem, a norma
prpria ao normal individual, assim como porque a doena compreendida como um
abismo de impotncia vivenciado como tal pelo organismo em questo.
Notemos ainda que este carter produtivo de normas na confrontao entre
organismo e meio invalida a fundamentao do critrio de normatividade a partir de
experimentaes em laboratrio. Nesta crtica, Canguilhem e Merleau-Ponty andam juntos.
Todos os dois insistem que a experimentao na compreenso de um organismo reao a
partir de uma abstrao dos modos de insero no meio, assim como abstrao das
condies que a instabilidade do meio impem. Se possvel definir o estado normal de
um ser vivo por uma relao normativa de ajustamento a determinados meios, no se deve
esquecer que o prprio laboratrio constitui um novo meio no qual, certamente, a vida
institui normas cuja extrapolao, longe das condies s quais essas normas se referem,
no ocorre sem certos riscos ou imprevistos100. Ou seja, trata-se novamente de lembrar que
h sempre alterao que conhecimento imprime ao fenmeno a conhecer, alterao
produzida pela preparao tcnica implicada neste modo de conhecimento.
Norma e mdia
No entanto, fato que tudo isto parece ainda uma petio de princpio. Pois:
Geralmente, o mdico tira a norma do seu conhecimento da fisiologia, dita cincia do
homem normal, de sua experincia vivida das funes orgnicas e da representao comum
da norma nem meio social em dado momento 101. Ou seja, tudo muito distante desta noo
de norma como potncia valorativa da individualidade biolgica.
Dentre estes trs fatores, o mais importante o fisiolgico. No entanto, as
constantes fisiolgicas pode ser compreendidas em dois sentidos distintos mas que
costumam misturar-se. Podemos dizer que normal o resultado de um clculo de mdia
estatstica, ou podemos dizer que normal um tipo ideal. Esta equivocidade do termo
normal foi facilitada pela tradio filosfica realista segundo a qual toda generalidade
indcio de uma essncia e toda perfeio a realizao de uma essncia; o que faz com que
um generalidade observvel adquira o valor de perfeio realizada.
Canguilhem se dispe, ento, a avaliar esta relao entre norma e mdia, no captulo
III da segunda parte de seu livro. At porque o problema da relao entre norma e tipo ideal
j tinha sido tratado anteriormente, quando foi questo da crtica noo positivista de
normal enquanto conceito muito mais da ordem da esttica e da moral do que da cincia.
Ancorar o normal a partir do conceito estatstico de mdia implica definir o normal
como valor biomtrico que admite margens estabelecidas de variao. Assim, uma vida
normal poderia, por exemplo, ser definida como a vida na qual as funes mensurveis
permitem ao organismo alcanar a durao mdia de vida da sua espcie. No entanto, esta
noo no pode ser aplicada de maneira segura. A durao mdia da vida no a durao
da vida biologicamente normal, mas durao de uma vida socialmente normatizada.
99

MERLEAU-PONTY, A estrutura do comportamento, p. 140


CANGUILHEM, idem, p. 117
101
idem, p. 94
100

Encontraremos, nos indivduos que aparentemente morrem de senescncia, uma variedade


bastante vasta de durao de vida. Devemos tomar como durao de vida da espcie a
mdia dessas duraes ou as duraes mximas atingidas por alguns raros indivduos ou,
ainda, algum outro valor? Essa normalidade, alis, no excluiria outras anomralidades:
determinadas deformidade congnita pode ser compatvel com uma vida muito longa102.
Colocaes desta natureza permitem a Canguilhem se perguntar se a relao entre
mdia e norma no deve ser invertida: ao invs de compreender a norma como aquilo que
se submete determinao da mdia aritmtica, definir a mdia aritmtica como aquilo que
procura naturalizar uma norma. Canguilhem lembra que, desde Qutelet (um dos pais da
estatstica moderna), a mdia aritmtica (ou mediana, nmero que , em um grupo de dados
ordenados, separa a metade inferior da amostra, populao ou probabilidade de
distribuio, da metade superior) no o nmero real da maioria da amostra, mas est mais
perto de um horizonte regulador.
Por outro lado, trata-se de insistir que a noo de mdia apenas acaba por naturalizar
processos de valorao social: Se verdade que o corpo humano , em certo sentido,
produto da atividade social, no absurdo supor que a constncia de certos traos,
reveladas por uma mdia, dependa da fidelidade consciente ou inconsciente a certas normas
de vida. Por conseguinte, na espcie humana, a freqncia estatstica no traduz apenas
uma normatividade vital, mas uma normatividade social 103. Neste sentido, Canguilhem faz
questo de lembrar dados que relativizam o carter descritivo de realidades fisiolgicas
universais prprios a que se manifesta em mdias (por exemplo, jovens chineses de 25 anos
tm um dbito urinrio mdia de 0,5 cm2 por minuto, com oscilaes de 0,2 a 0,7; ao passo
que esse dbito de 1cm2 nos europeus, com oscilaes de 0,8 a 1,5). Isto implica que: o
desconhecimento do corpo normativo tem, por consequncia, o surgimento de um corpo
normatizado [por padres biomtricos]. O corpo vital negado no corpo social externo
produzido pelo cientista na imagem social de sua cincia (laboratrio, estatstica) 104. O que
nos deixa com uma questo central, a saber: como dar ao corpo social uma forma vital sem
operar um recobrimento do vital por um social que se serve da biometria para naturalizar
preceitos de regulao da vida?

102

CANGUILHEM, p. 121
idem, p. 126
104
LE BLAnC, idem, p. 66
103

O estatuto da psicologia
Aula 8
Na aula de hoje, terminaremos a leitura de O normal e o patolgico atravs do comentrio
dos dois ltimos captulos da segunda parte. J temos uma idia clara da estrutura do nosso
livro e de suas estratgias. Canguilhem quer fornecer uma definio renovada do que est
em jogo na distino entre normal e patolgico, definio na qual o patolgico no ser
mais pensado como um simples sub-valor derivado do normal. Lembremos, por exemplo,
desta afirmao to importante para Canguilhem. A sade a vida no silncio dos rgos.
Esta frase famosa do cirurgio Ren Leriche indicava como a doena , em ltima
instncia, o que faz o corpo falar. a experincia da doena que rompe uma certa
imanncia silenciosa entre sujeito e o seu prprio corpo; ela que transforma o corpo em
um problema que determina exigncias de saber e configura necessidades de cuidado e
interveno. Maneira de lembrar que a conscincia da doena o fato primeiro e
independente de uma definio positiva do fenmeno normal.
Sendo assim, temos sempre o direito de perguntar de onde vem isto que poderamos
chamar de gramtica da doena, ou seja, este modo com que o saber transforma a doena
em discurso pronto para ser lido e interpretado pelo olhar clnico. Discurso que se expressa
em sintomas, nosografias, distrbios, transtornos, sndromes e sinais vitais. Pois uma das
idias fundamentais desta tradio epistemolgica que tem nomes como Michel Foucault e
Georges Canguilhem, consistiu em lembrar que a doena, o patolgico, no tem gramtica
prpria. A maneira com que ela fala depende da maneira com que organizamos o que h a
ser visto e ouvido.
Podemos compreender a primeira parte de O normal e o patolgico como uma
cuidadosa anlise da gnese de uma certa gramtica das doenas que parece ter sido
retomada na atualidade. Eu havia insistido: devemos nos perguntar sobre o que est
pressuposto em afirmaes como algum sofre de Transtorno Obsessivo-Compulsivo,
algum sofre de Transtorno de Dficit de ateno e de Comportamento Disruptivo,
algum sofre de Transtorno do Desejo Sexual? Dentre vrias coisas, vale sempre a pena
perceber como a doena compreendida, nestes casos, como um fenmeno de funes
rgos tomados de maneira isolada. Por trs da constituio de patologias que permitem a
constituio de diagnsticos e intervenes que privilegiam categorias pontuais, h a crena
fundamental de que a doena nada mais do que alguma forma de distrbio, transtorno,
dficit ou excesso que acontece no nvel de funes e rgos. Neste sentido, o discurso
hegemnico das cincias mdicas e mdico-psiquitricas da contemporaneidade no
inovou. Na verdade, ele simplesmente reatualizou, como dizia Canguilhem, uma espcie
de dogma cientificamente garantido a respeito da distino entre normal e patolgico que
nos remeteu novamente ao sculo XIX.
neste ponto que comea a segunda parte de O normal e o patolgico. Assim, se a
primeira parte do livro: mostrou que a o dogma positivista da identificao entre normal e
patolgico s pde se sustentar devido desconsiderao de toda individualidade biolgica
[j que o normal no fornecido por individualidade alguma, mas um padro fisiolgico
mensurvel de conformao do organismo], a segunda parte reintroduz a individualidade
biolgica nas questes de doena e sade105.
105

LE BLANC, Canguilhem et les normes, p. 52

A fim de encontrar um outro conceito para a partilha entre normal e patolgico,


Canguilhem recorre psiquiatria fenomenolgica de Minkowski, Daniel Lagache e Charles
Blondel, para quem a desorganizao psquica no era simplesmente o simtrico inverso da
organizao normal, mas uma diferena qualitativa fundamental na relao ao mundo. Uma
diferena que aparecia como anomalia, mas que no necessariamente aparecia como
doena. De fato, o problema do estatuto da anomalia fornece uma boa perspectiva para a
recomposio da noo de normal. A fim de insistir na desvinculao entre anomalia e
doena, Canguilhem lembra: H uma polaridade dinmica da vida. Enquanto as variaes
morfolgicas ou funcionais sobre o tipo especfico no contrariam ou no invertem esta
polaridade, a anomialia um fato tolerado; em caso contrrio a anomalia experimentada
como tendo valor vital negativo e se traduz externamente como tal106.
Lembremos, ainda, que seres vivos que se afastam do tipo especfico so, muitas
vezes, inventores a caminho de novas formas. A vida, mesmo no animal, no mera
capacidade de evitar dissabores e se conservar. Ela tentativa, atividade baseada na
capacidade de afrontar riscos e triunfar107, da porque ela tolera monstruosidades. Esta
reflexo sobre o estatuto ambivalente da anomalia pressupe, no entanto, que o portador da
anomalia possa ser centro produtor de valor e de normatividade. Mesmo para organismos
unicelulares simples, viver excluir e preferir. Na verdade, esta posio de centro produtor
de valor prpria a todo homem so: O homem normal o homem normativo, o ser capaz
de instituir novas normas, mesmo orgnicas. Uma norma nica de vida sentida de modo
privativo, e no positivamente108. Isto nos permite sintetizar uma definio de sade no
mais vinculada entificao de constantes fisiolgicas. Sade a posio na qual o
organismo aparece como produtor de normas na sua relao ao meio ambiente. O que
pressupe uma noo no-mecanicista de meio ambiente, uma noo na qual o meio
indissocivel de um processo estruturador desenvolvido por uma individualidade biolgica.
Vimos ainda como, para defender sua noo da natureza da partilha entre normal e
patolgico, Canguilhem era obrigado a criticar a tentativa de assentar a noo de normal no
interior de conceitos como mdia estatstica. Ancorar o normal a partir do conceito
estatstico de mdia implica definir o normal como valor biomtrico que admite margens
estabelecidas de variao. Assim, uma vida normal poderia, por exemplo, ser definida como
a vida na qual as funes mensurveis permitem ao organismo alcanar a durao mdia de
vida da sua espcie. No entanto, esta noo no pode ser aplicada de maneira segura. A
durao mdia da vida no a durao da vida biologicamente normal, mas durao de
uma vida socialmente normatizada. Encontraremos, nos indivduos que aparentemente
morrem de senescncia, uma variedade bastante vasta de durao de vida. Devemos tomar
como durao de vida da espcie a mdia dessas duraes ou as duraes mximas
atingidas por alguns raros indivduos ou, ainda, algum outro valor? Essa normalidade, alis,
no excluiria outras anormalidades: determinadas deformidade congnita pode ser
compatvel com uma vida muito longa109.
Colocaes desta natureza permitem a Canguilhem se perguntar se a relao entre
mdia e norma no deve ser invertida: ao invs de compreender a norma como aquilo que
se submete determinao da mdia aritmtica, definir a mdia aritmtica como aquilo que
procura naturalizar uma norma.. trata-se de insistir que a noo de mdia apenas acaba por
106

CANGUILHEM, idem, p. 105


CANGUILHEM, La connaissance de la vie, p. 215
108
idem, p. 105
109
CANGUILHEM, p. 121
107

naturalizar processos de valorao social: Se verdade que o corpo humano , em certo


sentido, produto da atividade social, no absurdo supor que a constncia de certos traos,
reveladas por uma mdia, dependa da fidelidade consciente ou inconsciente a certas normas
de vida. Por conseguinte, na espcie humana, a freqncia estatstica no traduz apenas
uma normatividade vital, mas uma normatividade social110. Neste sentido, Canguilhem faz
questo de lembrar dados que relativizam o carter descritivo de realidades fisiolgicas
universais prprios a que se manifesta em mdias (por exemplo, jovens chineses de 25 anos
tm um dbito urinrio mdia de 0,5 cm2 por minuto, com oscilaes de 0,2 a 0,7; ao passo
que esse dbito de 1cm2 nos europeus, com oscilaes de 0,8 a 1,5). O que nos deixa com
uma questo central, a saber: como dar ao corpo social uma forma vital sem operar um
recobrimento do vital por um social que se serve da biometria para naturalizar preceitos de
regulao da vida?
Sade e individualidade biolgica
Podemos, ento, a partir da, configurar melhor o programa positivo de Georges
Canguilhem para a redeterminao da natureza da distino entre normal e patolgico.
Primeiro, trata-se de atribuir, ao prprio ser vivo, a responsabilidade em distinguir o ponto
em que comea a doena [no exatamente a este ser vivo que sofre atualmente, mas uma
experincia subjetiva que orienta a constituio do olhar clnico). Uma mdia obtida
estatisticamente no permite dizer se determinado indivduo, presente diante de ns,
normal ou no. Pois trata-se de avaliar em que condies um organismo pode satisfazer
exigncias que lhe so impostas.
De fato, isto implica dizer que o limite entre normal e patolgico se torna impreciso.
Mas: a fronteira entre normal e patolgico imprecisa para diversos indivduos
considerados simultaneamente, mas perfeitamente precisa para um nico e mesmo
indivduo considerado sucessivamente111. Ou seja, no se trata aqui de caminhar para
alguma espcie de relativismo que simplesmente invalida as categorias de normal e
patolgico. A questo central consiste em mostrar como to diviso tem seu fundamento,
em ltima instncia, na conscincia do alargamento (ou no) do campo de experincias
possveis para um indivduo biolgico. De fato, de nada adianta um processo de cura no
interior do qual o indivduo no julga e incapaz de pr uma diferena entre o estado atual
e o estado anterior. At porque, para Canguilhem, sade e doena so estados vinculados
capacidade individual de produo de valor na relao ao meio, e no descrio de
constantes fisiolgicas. Embora disfunes, dficits e modificaes orgnicas ocorram,
trata-se de afirmar que no h relao direta e imediata entre a determinao de um estado
de doena e tais gneros de acontecimentos fsicos.
Notemos que, anteriormente, Canguilhem havia criticado Comte e Claude Bernard
exatamente por fazer a interveno teraputica dependente de uma estrutura normativa de
valorao que aparecia claramente nos usos do conceito de harmonia. Canguilhem
lembrava que harmonia pode ser um conceito funcional no campo da moral e da esttica,
mas no na cincia, j que ele eminentemente valorativo. Agora, ele parece voltar atrs
afirmando que o critrio de orientao para a interveno teraputica passa pela anlise da
capacidade individual de colocar-se diante da vida como produtor de valor. De qualquer
110
111

idem, p. 126
idem, p. 145

forma, fica claro que. no primeiro caso, a perspectiva do mdico que aparece como
implementao valorativa. No segundo caso, aquele na posio de paciente que aparece
como centro de produo de valor.
Se assim for, fica a questo de saber qual o critrio de valor que permite, a um
indivduo biolgico, distinguir sade e doena. Neste sentido, Canguilhem lembra que, para
um indivduo, uma norma de vida superior a outra quando comporta o que esta ltima
permite e tambm o que ela no permite. Assim: A doena ainda uma norma de vida,
mas uma norma inferior no sentido que no tolera nenhum desvio das condies em que
vlida, por ser incapaz de se transformar em outra norma 112. At porque, o normal viver
em um meio no qual flutuaes e acontecimentos so possveis. Como nos lembrar
Foucault: a vida o que capaz de erro 113. Ela o que demonstra que a errncia, muito
mais do que a segurana da auto-identidade, a condio prpria do organismo, at porque:
o erro no continue o esquecimento ou o atraso da realizao prometida, mas a dimenso
prpria vida dos homens e indispensvel ao tempo da espera114.
Em ltima instncia, a doena a rigidez de quem est completamente adaptado e
restrito a um meio determinado. Ser sadio no significa apenas ser normal em uma situao
determinada, mas ser normativo nesta e em outras situaes eventuais. O homem se sente
em boa sade quando se sente mais do que normal, isto , no apenas adaptados, mas
normativo, capaz de seguir novas normas de vida. Resumindo: a sade e uma maneira de
abordar a existncia com uma sensao de criador de valor, de instaurador de normas vitais.
Como j disse anteriormente, inegvel o acento nietzscheano nesta compreenso da sade
como posio de criador de valores na relao entre indivduo e meio.
Insistamos ainda em um ponto. Afirmar que a sade , no fundo, uma margem de
tolerncia s infidelidades do meio, implica em admitir que o ser vivo no vive
simplesmente entre leis fsico-qumicas, mas entre seres e acontecimentos que diversificam
estas leis, que modificam seus sentidos habituais. Isto significa incluir uma dimenso, no
campo dos fenmenos vitais, que mais da ordem da histria e de suas reversibilidades, do
que exatamente da ordem do mecanicismo causalmente fechado. Se fato que ser vivo vive
em um mundo de acidentes possveis, porque o meio no um sistema mecnico de
relaes funcionais que aparecem como excitao que exige resposta.
Sobre um certo vitalismo
Talvez este ponto fique mais claro se compreendermos a natureza do vitalismo de Georges
Canguilhem. Nosso autor foi um dos ltimos tericos das cincias a defender uma
perspectiva vitalista na compreenso dos fatos prprios s chamadas cincias da vida.
Compreendamos aqui vitalismo como posio terica que defende a irredutibilidade do
organismo vivo a todo tipo de explicao causal de natureza mecanicista. Muitas vezes, o
vitalismo postula alguma forma de princpio vital (como a fora vital de Bichat, o lan vital
de Bergson, a entelquia de Hans Driesch, etc.), isto a fim de mostrar como processos vitais
no so redutveis a processos fsicos. O resultado foi a compreenso do vitalismo como
uma espcie de postulado metafsico travestido de explicao cientfica. Postulado
metafsico que, muitas vezes, parecia recorrer a noes nebulosas como alma a fim de dar
conta do que poderia ser explicado a partir da aplicao de leis fsicas e qumicas. Contra
112

idem, p. 146
FOUCAULT, La vie: lexprience et la science, p. 1595
114
idem, p. 1594
113

tais derivas em direo a uma metafsica suspeita, a cincia teria caminhado em direo ao
aprofundamento de um certo mecaniscismo capaz de fornecer uma perspectiva de avaliao
segura, mensurvel e eminentemente descritiva.
A peculiaridade da posio de Canguilhem vem do fato dele defender um certo
vitalismo, j que, como vimos, a especificidade de um conceito como vida lhe central.
No entanto, este vitalismo tem uma srie de peculiaridades. H vrias maneiras de
compreender este ponto, mas podemos lembrar aqui de um pequeno texto de Canguilhem
chamado Mquina e organismo. Se a viso corriqueira do problema do embate entre
vitalismo e mecanismo passa pelo embate entre a respeito da possibilidade de reduzir o
organismo ao modelo explicativo da mquina, Canguilhem tende a inverter os plos. Ele
lembra como, para a explicao mecnica dos fenmenos orgnicos, faz-se necessrio, ao
lado das mquinas no sentido de dispositivos cinemticos, mquinas como motores que
retiram a energia de algo para alm do prprio circuito maqunico. Ou seja: A construo
da mquina implica na obrigao de imitar um dado orgnico prvio 115. Por outro lado,
devemos lembrar que, em uma mquina, o todo a soma das partes, o efeito dependente
de uma ordem das causas e ele apresenta uma rigidez funcional. No organismo, ao
contrrio, conhecemos uma varincia de funes, uma polivalncia de rgos e uma
tolerncia a monstruosidades. Este era um ponto importante para a compreenso de um
vitalismo como o de Xavier Bichat. Pois, para Bichar, os atos da vida opem,
invariabilidade das leis fsicas, a idia de instabilidade e de irregularidade advinda das
exigncias do ser vivo.
Assim, devemos perguntar sobre qual o princpio vital que Canguilhem coloca
para alm de toda explicao mecanicista e que sustentaria seu vitalismo. Na verdade,
Canguilhem afirma que s o vitalismo pode compreender a relao entre meio e organismo
como uma relao na qual o organismo atua como centro absoluto de referncia, centro
responsvel por atividades estruturadoras como julgamento e valorao que dependem de
uma causalidade que no prpria a dispositivos mecnicos compreendidos de maneira
tradicional: A fsica uma cincia de campos, de meios. No entanto, acabamos por
descobrir que, para que haja meio ambiente, faz-se necessrio um centro. a posio de um
ser vivo referindo-se experincia que ele vive em sua totalidade que fornece ao meio do
sentido de condies de existncia116. O vitalismo , aos menos nas mos de Canguilhem,
uma forma de recuperar a irredutibilidade do sujeito para o interior do campo da clnica.
Da porque ele afirmar que a recuperao do vitalismo nasce da compreenso de que a
reduo do ser vivo figura da mquina (por mais complexa que seja ela) setor de uma
racionalidade que se realiza como mecanizao da vida. Como se a racionalizao fosse
uma mecanizao do organismo. Este talvez seja o sentido da afirmao de Canguihem do
vitalismo como: uma exigncia, mais do que um mtodo, uma moral, mais do que uma
teoria.
Com isto, Canguilhem pode, de um lado, afirma o primado da clnica sobre toda
tentativa de fundar sua racionalidade a partir da fisiologia. O espao da clnica, com as
demandas do paciente e sua palavra, este espao no qual o que da ordem do patolgico
pode se manifestar enquanto conscincia de uma vida que no se afirma mais como
potncia normativa. Pode ser estranho trazer para a clnica conceitos valorativos e
115
116

CANGUILHEM La connaissance de la vie, p. 144


idem, p. 122

aparentemente nebulosos como vida e produo de valor. No entanto, desta forma


que Canguilhem procura dar conta de imperativos como: inevitvel que, ao propor-se
como teoria geral da conduta, a psicologia faa sua alguma idia de homem. Faz-se
necessrio ento permitir filosofia perguntar psicologia de onde ela retira tal idia e se
no seria, no fundo, de alguma filosofia117.

Duas questes se colocam: sob quais condies pode-se falar de doena no domnio
psicolgico? Quais relaes possvel estabelecer entre os fatos da patologia mental e os da
patologia orgnica?118.

117
118

CANGUILHEM, Georges, Quest ce que la psychologie?, p. 367


FOUCAULT, Michel; Maladie mentale et psychologia, p. 1

O estatuto da psicologia
Aula 9
Na aula de hoje, daremos incio ao mdulo dedicado leitura de Doena mental e
psicologia, de Michel Foucault. Este mdulo deve constar de trs aulas dedicadas leitura
do livro. Esta primeira aula ser dedicada ao comentrio de algumas caractersticas gerais
da experincia intelectual foucauldiana e anlise do primeiro captulo de nosso livro:
Doena mental e doena orgnica. A prxima aula ser dedicada anlise da primeira
parte: As dimenses psicolgicas da doena; ficando a segunda parte do livro, Loucura e
cultura, como objeto da ltima aula do mdulo.
Creio no ser novidade para ningum aqui a importncia decisiva do trabalho de
Michel Foucault no encaminhamento da reflexo epistemolgica sobre o estatuto da clnica
dos fatos psicolgicos, do olhar clnico, assim como das cincias humanas em geral. De
fato, as reflexes de Foucault sobre a psicologia so objetos privilegiados de anlise desde
os primeiros escritos do filsofo. Licenciado em psicologia e diplomado em psicologia
patolgica, Michel Foucault nunca deixou de alinhar sua formao filosfica a uma
reflexo ampla sobre a clnica. Este hibridismo do campo de reflexo prprio experincia
intelectual foucauldiana est absolutamente vinculado a maneira com que Foucault
compreende o que significa a prtica filosfica.
Contrariamente a uma posio hegemnica no meio francs de ento, que via a
filosofia como prtica de anlise interna da sistematicidade de textos que compem a
tradio do pensamento filosfico. para Foucault, ler um texto filosfico principalmente
forar a sistematicidade do discurso filosfico a deparar-se continuamente com seus limites
e misturar-se com aquilo que lhe era aparentemente estranho. Foragem que impediria a
filosofia de se transformar em : Perptua reduplicao de si mesma, em um comentrio
infinito de seus prprios textos e sem relao a exterioridade alguma 119. Comentrio
infinito que nos levaria necessariamente simples textualizao de prticas discursivas.
Mas se esta confrontao com a exterioridade fundamento da leitura filosfica de
texto porque: a filosofia no nem historicamente nem logicamente fundadora de
conhecimento, mas existem condies e regras de formao do saber aos quais o discurso
filosfico encontra-se submetido a cada poca, como toda forma de discurso com
pretenses racionais. Isto leva Foucault a afirmar a existncia de uma espcie de
inconsciente do saber que tem suas prprias formas e regras especficas 120. Uma
proposio estruturalista por excelncia, isto na medida em que ela procura definir os vrios
sistemas de saber atravs da reconstituio de uma espcie de macro-estrutura.
Neste sentido, trata-se de inserir a filosofia e seus textos no interior da reconstruo
de prticas discursivas cujas formas e regras compem o inconsciente do saber de uma
poca. Eis o objeto central das exploraes de Foucault a respeito de campos extrafilosficos como a clnica, a epistemologia das cincias humanas, entre outros. Trata-se de
mostrar, por exemplo, como a determinao da racionalidade das prticas clnicas de
interveno um setor privilegiado da razo e de seus modos de racionalizao. Neste
sentido, a tcnica e questes aparentemente tcnicas so pontos maiores de compreenso
dos modos com que uma racionalidade historicamente determinada racionaliza os campos
da praxis. Como j devemos ter percebido, nenhum problema clnico simplesmente um
problema clnico ligado apenas a condies neutras de eficcia de interveno. Problemas
119
120

FOUCAULT, Dits et crits, p. 1152


FOUCAULT, Dits e crits, p. 1152

clnicos so o resultado da constituio de um olhar instaurados de condies de


normalidade. Pois problemas que parecem obedecer a um desenvolvimento ditado apenas
pelo estado da tcnica ou pela configurao natural do dado so, ao contrrio, espaos
privilegiados nos quais a razo configura, silenciosamente, os campos da experincia
possvel.
Nosso mdulo tentar mostrar como esta perspectiva de Foucault indissocivel da
maneira com que o filsofo se insere no interior da tradio de reflexo que configuramos
atravs dos nomes de Politzer, Canguilhem e Lacan. Para tanto, vamos analisar um livro,
inicialmente escrito em 1954 mas depois totalmente reconstrudo poca de sua reedio,
em 1962. momento em que Foucault j havia defendido sua tese sobre a Histria da
Loucura. Este pequeno livro, Doena mental e psicologia, uma porta de entrada
privilegiada para a compreenso da experincia intelectual de Michel Foucault por retomar
temas articulados no interior da reflexo filosfica francesa desde os anos vinte e por j
indicar os caminhos que Foucault trilhar em direo ao estabelecimento de sua estratgia
maior: submeter a reflexo epistemolgica sobre as cincias humanas a uma genealogia do
poder e das prticas disciplinares. Submisso que aparece no horizonte desde que Foucault
admite que: o homem s se transformou em uma espcie psicolgizvel a partir do
momento em que sua relao loucura permitiu uma psicologia 121. Como se a prpria
normatizao da vida produzisse seu outro.
No entanto, este livro tem uma histria peculiar. Lanado pela primeira vez em
1954, seu ttulo era outro: Doena mental e personalidade. De fato, toda a segunda parte,
intitulada As condies reais da doena era diferente do que encontramos na verso atual
pois dedicada, principalmente, a Pavlov e tentativa de edificao das condies para uma
cincia psicolgica materialista. Ento vinculado ao marxismo, Foucault no deixa de
seguir vias muito semelhantes a outro marxista, Georges Politzer e sua psicologia concreta
que privilegia o carter de internalizao de contradies sociais enquanto cerne da
constituio de patologias. No entanto, ao preparar uma nova verso em 1962, Foucault,
agora distante do marxismo, reescreve todo o captulo final de seu livro, substituindo a
anlise inicial por um grande resumo de sua tese de doutorado que acabara de sair: A
histria da loucura. Devido a este grande remanejamento, Foucault renegar
completamente este trabalho. Em suas entrevistas, sempre ir se referir a Histria da
loucura como sendo seu primeiro livro. O que nos deixa com uma questo maior,: por que
introduzir o pensamento de Michel Foucault atravs de um livro que o prprio autor
repudiou?
Uma resposta possvel diz respeito ao desejo de compreender de maneira mais clara
o processo de formao das questes e mtodos que marcaram a experincia intelectual de
Foucault. Muitas vezes, um projeto abandonado ou totalmente reescrito diz muito a respeito
do movimento prprio a um pensamento, j que ele evidencia o encaminhamento que leva
um autor a procurar sintetizar questes que continuaro a guiar sua produo intelectual.
Neste sentido, devemos responder o que leva Foucault a abandonar uma perspectiva
classicamente marxista na anlise do estatuto da psicologia, isto em prol da constituio de
um campo de anlise da clnica que caminhar para a elaborao de um mtodo de reflexo
epistemolgica inicialmente pensado como uma arqueologia e posteriormente como uma
genealogia. Pois no por acaso que o primeiro trabalho verdadeiramente acabado de
arqueologia da cincia tenha sido efetuado a partir da anlise do prprio aparecimento da
121

FOUCAULT, Maladie mentale et psychologie, p. 88

noo moderna de clnica (O nascimento da clnica, de 1963). Foucault v na constituio


da psicologia e da clnica dos fatos psicolgicos, o campo privilegiado de orientao da
razo em seus processos de racionalizao da vida.
A autonomia do mental
Duas questes se colocam: sob quais condies podemos falar de doena no domnio
psicolgico? Quais relaes podemos estabelecer entre os fatos da patologia mental e estes
da patologia orgnica?. Desta forma, comea Doena mental e psicologia. Como vemos,
trata-se de se perguntar sobre a especificidade da causalidade psquica a partir de uma dupla
problematizao. Primeiro, o problema da causalidade psquica abordado sob o fundo da
distino entre o normal e o patolgico. O que um estado patolgico para a psicologia?
Quais seus critrios e modos de classificao? Segundo, o problema da causalidade
psquica lido no interior da discusso entre psicognese e organognese. H alguma
distino estrutural entre patologia mental e patologia orgnica? Podemos utilizar os
mesmos procedimentos de determinao do segundo caso na anlise do primeiro?
De fato, colocar o problema nestes termos j operar com a pressuposio de uma
distino pretensamente fundadora da racionalidade do campo da psicologia, a saber, a
pressuposio de que a perspectiva de anlise de fenmenos fsicos, orgnicos pode ser
completamente inadequada para a determinao mesma do que um fato psicolgico.
Vimos uma das razes de tal distino em um livro como a Critica dos fundamentos da
psicologia, de Georges Politzer com suas crticas contra o realismo e o formalismo do
discurso prprio psicologia experimental. Foucault parece admitir tal perspectiva crtica
politzeriana ao afirmar, por exemplo: Se parece to difcil definir a doena e a sade
psicolgica, no seria por que nos esforamos de maneira v em lhes aplicar massivamente
conceitos igualmente destinados medicina somtica?122. Lembremos, a este respeito, da
descrio foucauldiana sobre o estado da psicologia, uma descrio de inegvel acento
politzeriano: O destino desta psicologia que se via como conhecimento positivo repousou
sempre sobre dois postulados filosficos: a verdade do homem esgota-se em seu ser natural
e o caminho em direo a todo conhecimento cientfico deve passar pela determinao de
relaes quantitativas, pela construo de hipteses e pela verificao experimental. Toda
histria da psicologia at a metade do sculo XX a histria paradoxal das contradies
entre este projeto e seus postulados. Ao perseguir o ideal de rigor e exatido das cincias da
natureza [Politzer falava do ponto de vista da terceira pessoa prprio s cincias fsicas], ela
foi levada a renunciar a tais postulados. Ela foi levada, por cuidado de fidelidade objetiva, a
reconhecer na realidade humana outra coisa que um setor da objetividade natural [Foucault
pensa sobretudo na psicanlise e na anlise existencial de Biswanger], e a utilizar para o
conhecer, outros mtodos que estes fornecidos como modelo pelas cincias da natureza123.
Foucault parte ento para uma descrio dos impasses advindos da tentativa de
constituir o campo da anlise das doenas psicolgicas a partir do quadro metodolgico
utilizado para analisar doenas orgnicas. Tal como na anlise da doena orgnica, lembra
Foucault, a psicologia tentou inicialmente constituir uma sintomatologia (determinando o
quadro dos signos e sintomas que indicam a existncia de estruturas mrbidas) e uma
nosografia (determinando as formas e os padres de desenvolvimento da doena). Foucault
passa ento a descrio de estruturas mrbidas tradicionalmente aceitas poca (histeria,
122
123

FOUCAULT, Maladie mentale ... p. 2


idem, La psychologie de 1850 1950, Dits et crits, p. 148

psicastenia, obsesso, mania, parania, psicose alucinatria crnica, hebefrenia, catatonia),


isto a fim de mostrar como tais estruturas so marcadas pelo mesmo mtodo de repartio
de sintomas em grupos patolgicos e de determinao de estruturas mrbidas que
encontramos na anlise das doenas orgnicas. Nos dois casos, a doena aparece como
essncia cujos sintomas so atributos. Ou seja, consideramos a doena como uma:
essncia natural manifestada por sintomas especficos 124. Tal perspectiva essencialista
converge com a descrio que vimos de Georges Canguilhem sobre a compreenso da
doena como o resultado de variaes quantitativas de funes e rgo.
Foucault lembra que, contra tal perspectiva, desenvolveu-se a noo de doena
como o que resulta de reaes globais de indivduos tomados como totalidades orgnicas e
psicolgicas. Viso bastante difundida na Frana principalmente devido a Canguilhem,
Merleau-Ponty e Kurt Goldstein, vimos como ela encontrava suas razes j presentes na
medicina grega. Contrariamente a uma noo de doena determinada a partir da
possibilidade de localizao, a medicina grega estaria marcada por um certo dinamismo
relacional que j vimos em operao ao estudar o problema da natureza do sintoma segundo
um Georges Politzer profundamente marcado pela Gestalttheorie: A natureza (physis)
tanto no homem como fora dele, harmonia e equilbrio. A perturbao desse equilbrio,
dessa harmonia, a doena. Nesse caso, a doena no est em alguma parte no homem.
Est em todo o homem e toda dele 125. A doena aparece assim como um acontecimento
que diz respeito ao organismo vivo encarado na sua totalidade. Como dir claramente
Foucault: ? A doena no ento nem um dficit nem uma regresso, mas um problema na
regulao com o meio126.
No entanto, Foucault d um passo prprio cheio de consequncias. Ele cita
Goldstein e sua tentativa de, atravs da reflexo do patolgico como situao global do
indivduo, colocar-se para-alm de toda distino entre orgnico e psquico (uma posio
que vimos tambm com Canguilhem). Foucault quer criticar tal posio ao insistir na
impossibilidade de ignorarmos a diferenciao radical entre o que da ordem da
causalidade orgnica e o que da ordem da causalidade psquica. Na verdade, posies
desta natureza nos explicam uma das facetas da adeso de Foucault a perspectivas como o
estruturalismo francs. Pois o filsofo j admite, desde seus primeiros escritos, uma
distino radical entre as ordens da natureza e da cultura, tal como o caso em pensadores
como Claude Lvi-Strauss. Tal distino traz consequncias profundas para a determinao
do campo da psicologia e das doenas mentais.
No primeiro captulo de seu livro, Foucault, descreve trs aspectos onde a distino
estrita entre natureza e cultura produz impossibilidade de estabelecer similitudes entre
doena mental e doena orgnica.
O primeiro destes aspectos diz respeito abstrao. Foucault insiste que as
patologias orgnicas no excluem a possibilidade de abstrao de elementos isolados a fim
de reconstituir uma anlise causal inteligvel. Ora, dir Foucault, a psicologia nunca
forneceu psiquiatria o que a fisiologia deu medicina: o instrumento de anlise que, ao
delimitar o problema, permitia identificar a relao funcional entre este e o conjunto da
personalidade127. Da porque ele poder afirmar que a abstrao no pode ser feita da
mesma maneira em psicologia e em fisiologia. Este um ponto interessante porque
124

FOUCAULT, Maladie mentale..., p. 9


CANGUILHEM, idem, p. 20
126
FOUCAULT, La psychologie ... p. 154
127
FOUCAULT, idem, p. 13
125

Foucault age como quem acredita que a abstrao quantitativa e individualizadora so


adequadas aos fenmenos orgnicos, enquanto que no so adequadas aos fenmenos
psicolgicos. Como se o corpo fosse mais facilmente moldvel abstrao
instrumentalizadora do que o mental. No entanto, vimos como esta perspectiva no
sustentada por algum como georges Canguilhem. Ele ser abandonada pelo prprio
Foucault, principalmente aps o impacto da escrita de O nascimento da clnica com sua
descrio do modo com que o advento da fisiologia moderna implicou na transformao do
corpo em um espao submetido a procedimentos gerais de abstrao.
Em um captulo do Nascimento da Clnica, intitulado Abram alguns cadveres,
Michel Foucault reconstitui a trajetria que permitiu fisiologia e anatomia patolgica
aparecerem como fundamento da clnica. Tal posio da fisiologia s foi possvel a partir
do momento em que o corpo foi reconfigurado, aparecendo como um espao ao mesmo
tempo mais complexo e mais abstrato, onde era questo de ordem, de sucesso, de
coincidncia e de isomorfismo128. Transformao do corpo em um espao abstrato que era
resultado da aplicao de um princpio geral de decifrao do espao corporal semelhante
ao princpio geral de constituio do espao homogneo e geomtrico da fsica moderna.
Tal princpio geral de inteligibilidade era fornecido, no caso da constituio do espao
corporal, pela reduo do corpo a um campo de tecidos orgnicos: A partir dos tecidos, a
natureza trabalha com uma extrema simplicidade de materiais. Eles so os elementos dos
rgos, mas o atravessam, os aproximam e, para alm deles, constituem os vastos sistemas
nos quais o corpo humano encontra a forma concreta de sua unidade. Haver tantos
sistemas quanto tecidos: neles, a individualidade complexa e inesgotvel dos rgos se
dissolve e, de uma vez, se simplifica129. Tal reduo do volume orgnico a um elementar
que , ao mesmo tempo, um universal aparece como condio para o aparecimento de uma
fisiologia que pode se submeter a um padro de objetividade fundado em dispositivos de
mensurao, de reduo quantitativa e de abstrao a um padro geral de clculo.
O segundo aspecto de distino entre doena mental e doena orgnica a partilha
entre normal e patolgico. Foucault afirma neste momento haver distines claras entre
normal e patolgico no domnio dos fenmenos orgnicos. Seguindo Leriche, Foucault
afirma existir algo como uma planificao coerente das possibilidades fisiolgicas do
organismo fundado na anlise dos mecanismos em estado normal. Ou seja, Foucault age
como quem admite que a noo de norma e de normal na anlise dos fenmenos fsicos
relativamente no-problemtica. Isto feito para afirmar que: em psiquiatria, ao contrrio,
a noo de personalidade torna particularmente difcil a distino entre o normal e o
patolgico130. Pois sintomas que podem identificar quadros patolgicos podem tambm ser
descrio de anlises de carter. Reich j havia percebido claramente como traos de carter
organizam-se de forma semelhante a sintomas. Foucault utiliza o exemplo de Bleuler que
determinava as psicoses maniaco-depressivas por exagerao de reaes afetivas enquanto
Kretschmer constitua um quadro caracterial bipolarm, comportando esquizotimia e
ciclotimia. No entanto, podemos, como j vimos, no aceitar a tese de que fenmenos
orgnicos fornecem determinaes no-problemticas de norma e de normal.
Por fim, Foucault afirma que a relao entre o doente e seu meio distinto nos casos
de doena mental e nos casos de doena orgnica. Pois a noo de totalidade orgnica
permitiria isolar a individualidade em sua originalidade mrbida (j que a cura seria
128

FOUCAULT, La naissance de la clnique, p. 128


idem, p. 129
130
FOUCAULT, Maladie mentale, p. 14
129

realizada a partir de uma atuao particular) enquanto que a realidade da doena mental no
permitiria tal abstrao em relao ao meio (j que a cura seria realizada a partir do ponto
de relao entre indivduo e meio).
Tais pontos so levantados por Foucault a fim de afastar o postulado de uma
metapatologia. Como vemos, a distino estrita entre natureza e cultura implica em uma
distino estrita entre doena mental e doena orgnica.

O estatuto da psicologia
Aula 10
Na aula de hoje, daremos seqncia ao nosso mdulo dedicado leitura de Doena mental
e psicologia atravs do comentrio da primeira parte do livro, esta intitulada As dimenses
psicolgicas da doena e que comporta os captulos: Doena e evoluo, Doena e
histria individual e Doena e existncia.
Vimos, na aula passada, como Foucault partia da necessidade de operar uma diviso
estrita entre o que da ordem da doena mental e o que da ordem da doena orgnica, isto
a ponto de perguntar : Se parece to difcil definir a doena e a sade psicolgica, no
seria por que nos esforamos de maneira v em lhes aplicar massivamente conceitos
igualmente destinados medicina somtica? 131. Foucault chegava a fornecer trs aspectos
nos quais a distino estrita entre natureza e cultura produzia a impossibilidade de
estabelecer similitudes entre doena mental e doena orgnica.
O primeiro destes aspectos dizia respeito abstrao. Foucault insistia que as
patologias orgnicas no excluem a possibilidade de abstrao de elementos isolados a fim
de reconstituir uma anlise causal inteligvel. No entanto, no caso da patologia mental, tal
abstrao impossvel devido totalidade constituda pela noo de personalidade. O
segundo aspecto de distino entre doena mental e doena orgnica a partilha entre
normal e patolgico. Foucault afirma neste momento haver distines claras entre normal e
patolgico no domnio dos fenmenos orgnicos. Seguindo Leriche, Foucault afirma existir
algo como uma planificao coerente das possibilidades fisiolgicas do organismo fundado
na anlise dos mecanismos em estado normal. Ou seja, Foucault age como quem admite
que a noo de norma e de normal na anlise dos fenmenos fsicos relativamente noproblemtica. Isto feito para afirmar que: em psiquiatria, ao contrrio, a noo de
personalidade torna particularmente difcil a distino entre o normal e o patolgico 132.
Pois sintomas que podem identificar quadros patolgicos podem tambm ser descrio de
anlises de carter. Por fim, Foucault afirma que a relao entre o doente e seu meio
distinto nos casos de doena mental e nos casos de doena orgnica. Pois a noo de
totalidade orgnica permitiria isolar a individualidade em sua originalidade mrbida (j que
a cura seria realizada a partir de uma atuao particular) enquanto que a realidade da
doena mental no permitiria tal abstrao em relao ao meio (j que a cura seria realizada
a partir do ponto de relao entre indivduo e meio).
Com isto, fica a questo de saber qual a perspectiva adequada de anlise das
patologias mentais, assim como o quadro mais amplo dos fatos psicolgicos em geral. Este
o sentido do primeiro captulo do nosso livro. Trata-se de expor qual seria a perspectiva
capaz de permitir a apreenso adequada do que se manifesta em uma patologia mental
determinada. Neste sentido, a simples compreenso do encadeamento prprio aos ttulos
dos trs captulos que compem a primeira parte j evidencia a estratgia foucauldiana. Ele
comear discutindo a noo, ento clssica, da doena como regresso (da a discusso
entre doena e evoluo), isto a fim de introduzir, no quadro da compreenso da doena, a
dimenso da histria individual. Uma histria individual que, por sua vez, dever se
submeter a uma anlise existencial inspirada por suas leituras de Ludwig Binswanger e que
procura apreender: liberdade fundamental de uma existncia que escapa, de pleno direito,
131
132

FOUCAULT, Maladie mentale ... p. 2


FOUCAULT, Maladie mentale, p. 14

causalidade psicolgica133. Trata-se ento, na aula de hoje, de reconstituir este


movimento no interior do texto foucauldiano.
Evoluo e histria
Foucault parte da noo, hegemnica ainda no incio do sculo XX, da doena mental como
regresso a um estgio anterior de desenvolvimento. A doena seria, principalmente,
dissoluo de funes complexas de coordenao e substituio de tais funes por
atividades simples e restritas. Tudo se passa como se aceitssemos que: a doena suprime
as funes complexas, instveis e voluntrias, exaltando as funes simples, estveis e
automticas134. Isto permita Foucault afirmar que a doena aparece aqui no exatamente
como uma essncia anti-natural, mas como a prpria natureza e um processo inverso de
involuo.
Este esquema de compreenso da doena tornou-se hegemnico principalmente
devido a defesa de paralelismo entre filognese e ontognese, entre a evoluo do que da
ordem da espcie e a repetio de tal esquema evolutivo, de maneira mais rpida, no
desenvolvimento do indivduo. Tal noo de doena depende de uma certa teleologia
evolutiva na qual etapas anteriores so superadas e integradas em etapas subseqentes;
noo esta cuja teleologia se organiza a partir da lgica do aperfeioamento progressivo.
Ernst Haeckel, zologo alemo, divulgador do darwinismo insistia, por exemplo que: O
desenvolvimento filogentico, dos seres mais simples aos mais complexos, repetida no
desenvolvimento progressivo e aperfeioador do indivduo: o adulto mais perfeito que a
criana porque o homem mais perfeito que a monera 135. Neste sentido, a doena seria
necessariamente um retorno e dissoluo de funes complexas que teriam sidos
sintetizadas em fases mais avanadas do desenvolvimento. Como vemos, aqui, o que da
ordem do comportamento humano sob pode ser inteligvel a condio de submetermos o
humano dimenso de uma histria natural.
Foucault v tal perspectiva naturalista atuando em autores como Freud e Pierre
Janet. Foucault pensa principalmente em uma certa perspectiva freudiana que v a neurose
como uma regresso a estgios anteriores do desenvolvimento libidinal (no seria por outra
razo, ao menos segundo o jovem Foucault, que Freud insiste em vrios momentos nas
similitudes possveis entre o pensamento selvagem, o pensamento pr-lgico da criana e o
pensamento neurtico). Foucault acredita que uma perspectiva como a freudiana
dependente de, ao menos, dois mitos: o mito de uma substncia psicolgica que progrediria
no curso do desenvolvimento individual e social (substncia que seria, no caso, a libido
enquanto energia psquica) e o mito da identidade entre o doente, o primitivo e a criana;
um mito patrocinado pela crena em uma similitude estrita entre filognese e ontognese.
Contra tais perspectivas, Foucault insiste que a regresso apenas um aspecto
descritivo da doena. At porque, por mais profunda que seja a dissoluo de funes
complexas, a personalidade nunca desaparece completamente, o prprio processo de
dissoluo com seus motivos e modos de desenvolvimento sempre vinculado aos quadros
de uma personalidade. Da porque Foucault pode afirmar que: o que a regresso da
personalidade encontra no so elementos dispersos nem uma personalidade mais
133

FOUCAULT, Dits et crits, p. 164


FOUCAULT, Maladie mentale, p. 21
135
CANGUILHEM, Du dveloppement lvolution au XIX sicle, p. 84
134

arcaica136. Isto nos exige pois passarmos de uma compreenso evolutiva geral a
especificidade da histria pessoal do doente, isto se quisermos compreender o sentido da
doena. Ou seja, passarmos de uma psicologia evolutiva a uma psicologia capaz de levar
em conta a dimenso histrica da constituio da subjetividade. De qualquer forma,
Foucault admite que: a importncia do evolucionismo na psicologia advm, sem dvida,
de que ele foi o primeiro a mostrar que o fato psicolgico s tem sentido em relao a um
futuro e a um passado, que seu contedo atual repousa sobre um fundo silencioso de
estruturas anteriores que o preenchem com toda uma histria, mas ele implica, ao mesmo
tempo, um horizonte aberto para o eventual137.
Foucault comea o captulo III lembrando que evoluo e histria obedecem a
dimenses temporais distintas. A histria doao de sentido ao passado atravs de
exigncias do presente. o presente que organiza e determina o sentido do que
recuperado no passado. J a evoluo marca do passado sobre a determinao do
presente. Ela o peso determinista de um processo de desenvolvimento j previamente
definido. Ou seja, a articulao entre passado e presente obedecem, na histria e na
evoluo, sentidos distintos. Da porque Foucault afirmar: A psicologia da evoluo, que
descreve os sintomas como condutas arcaicas, deve ser completada por uma psicologia da
gnese que descreve, em uma histria, o sentido atual de tais regresses138.
No interior da psicanlise, encontramos as duas tendncias, a evolutiva e a histrica.
Grosso modo, a dimenso evolutiva aparece na metapsicologia atravs da teoria das fases
da libido, enquanto que a dimenso histrica aparece na clnica atravs da compreenso da
regresso no como queda natural no passado, mas como fuga intencional para fora de um
presente conflitual. Tanto que o passado ao qual se retorna , fundamentalmente, o passado
imaginrio das substituies fantasmticas: a doena tem por contedo o conjunto das
reaes de fuga e de defesa atravs da qual o doente responde situao na qual se
encontra; a partir deste presente, desta situao atual que se deve compreender e dar
sentido s regresses evolutivas que aparecem nas condutas patolgicas; a regresso no
apenas uma virtualidade da evoluo, ela uma conseqncia da histria 139. Ou seja, a
regresso um processo vinculado a conflito que se desenrolam no campo de interaes do
sujeito com a configurao do meio no qual ele se insere e age. Vimos algo bastante
parecido com Georges Politzer quando este lembrava que, para a psicanlise, interpretar
no era aplicar esquemas prvios de simbologias (embora Freud nunca tenha deixado de
reconhecer a presena de um certo simbolismo nos sonhos), mas permitir uma reconstruo
de contextos no interior da qual o sujeito aparecia em um papel ativo. Este o sentido de
uma afirmao central de Politzer: a idia [central para a psicanlise] segundo a qual
poderia haver uma dialtica puramente individual qual os atos individuais forneceriam
uma significao puramente individual totalmente estranha psicologia clssica 140. Por
outro lado, esta insistncia foucauldiana na histria individual aparece em Politzer atravs
da exigncia de reconstruo daquilo que ele chama de drama como seqncia de atos na
qual cada ato vai configurando o campo de significao dos atos posteriores.
Foucault chegar mesmo a utilizar o vocabulrio do sentido a fim de, em um acento
claramente politzeriano, insistir que a psicanlise teria trazido a psicologia o problema da
136

FOUCAULT, idem, p. 31
FOUCAULT, Dits et crits, p. 153
138
FOUCAULT, Maladie mentale ..., p. 51
139
idem, p. 43
140
idem, p. 102
137

produo do sentido ao deixar de lado hipteses muito amplas e gerais atravs das quais
explicamos o homem como um setor privilegiado do mundo natural, isto ao insistir no
vnculo entre formao de sintomas e resultado de processos de socializao. Por outro
lado, ele compreende a tendncia, forte nos anos 30 e 40 graas principalmente a Anna
Freud, de transformar a psicanlise em uma anlise dos mecanismos de defesa atravs dos
quais o Eu produz sintomas contra as exigncias pulsionais do isso, em um movimento que
indica a insistncia no uso psicanaltico da histria. Pois analisar os mecanismos de defesa
significaria analisar o modo com que o sujeito reproduz e reconstitui sua histria a partir de
conflitos prprios sua situao presente. Significa compreender como ele mobiliza a
regresso, o isolamento, a introjeo, a projeo, a anulao retroativa, entre outros, isto a
fim de dar conta de contradies nas quais ele se enredou no presente.
Mas Foucault no deixa de fazer uma pergunta fundamental: qual a natureza do
conflito que produz esta fuga em direo ao passado? Conflito que no apenas uma
experincia da contradio e da ambigidade, mas uma experincia contraditria e
ambivalente [como, por exemplo, aquela responsvel pela produo do sintoma fbico no
pequeno Hans]. Freud se servia basicamente da noo de dualidade pulsional a fim de
expor uma gnese (a-histrica e praticamente naturalizada) do conflito. Este recurso a
foras impessoais que agem na antecmara da subjetividade no a perspectiva de
Foucault. Na verdade, ele prefere lembrar que a dimenso afetiva desta contradio interna
que gera o conflito psquico a angstia. Trata-se ento de compreender a quais objetos e
situaes a angstia est normalmente vinculada. Trata-se, por outro lado, de elevar a
angstia a condio para a compreenso do sentido da histria individual, j que a angstia
marca a natureza do conflito psquico responsvel pela doena. Foucault chega mesmo a
afirmar que a angstia o corao da doena.
Lembremos que nem todas as experincias de contradio e conflito so
necessariamente experincias nas quais a angstia aparece como dimenso afetiva
fundamental. A pergunta fica sendo pois: o que faz com que certos conflitos sejam
vivenciados de maneira angustiante e outros no por um sujeito; o que faz com que alguns
sujeitos vivam certos conflitos de maneira angustiante enquanto outros sujeitos no caem
em tal situao. Ao colocar questes desta natureza, Foucault procura uma dimenso para
alm da anlise da histria individual, j que se trata de determinar um elemento
organizador da histria, enquanto campo de conflito, para alm da prpria histria: para
que uma contradio seja vivenciada sob o modo angustiante da ambivalncia, para que, a
respeito de um conflito, o sujeito se feche na circularidade dos mecanismos patolgicos de
defesa, foi necessrio que a angstia j estivesse presente, que ela tenha transformado a
ambiguidade de uma situao em ambivalncia de reaes 141. Da a necessidade de passar
a uma anlise existencial da doena, ou seja, desta maneira com que, a partir da angstia, a
doena se transforma em modo de estar no mundo, em maneira com que a existncia
humana se oferece no mundo142, temporalizando-se, espacializando-se e projetando um
mundo. Foucault chega a falar de um estilo de angstia cuja interpretao fornece a
unidade significativa dos fenmenos de uma personalidade.
De qualquer forma, ao operar a partir desta via, Foucault no inovava. Baseando-se
fundamentalmente em Binswanger, mas sem deixar de sentir os ecos de alguns trablahos de
Jean-Paul Sartre (em especial O ser e o nada, de 1943), Foucault via, na gnese da angstia
um problema que no podia ser resolvido por uma anlise do tipo naturalista, nem por uma
141
142

FOUCAULT, Maladie mentale..., p. 51-52


FOUCAULT, Dits et crits, p. 164

anlise do tipo histrico. Ao contrrio, a histria e a natureza do homem s poderia ser


compreendidas a partir da angstia, j que ela forneceria a unidade significativa da
totalidade de um sujeito.
A este respeito, lembremos, por exemplo, de Sartre e sua compreenso de que a
angstia manifestao primeira da liberdade do sujeito em sua distncia em relao
norma. Quando me deparo com uma tal fragilizao daquilo que causa meu ato que
apreendo minha conduta como um possvel que, por ser meu possvel, no se impe de
maneira obrigatria, ento a conscincia da minha liberdade se manifesta como angstia.
neste sentido que devemos compreender a afirmao de Sartre: A angstia como
manifestao da liberdade diante de si significa que o homem est sempre separado de sua
essncia por um nada (...) Na angstia, a liberdade se angustia diante de si mesma enquanto
ela nunca solicitada ou entravada por nada143.
desta forma que Sartre absorve um tema clssico que vincula a angstia a uma
certa: negao dos apelos do mundo e de desengajamento no mundo em que estava
engajado144. Poderamos retornar a Hegel a fim de determinar a angstia como
manifestao fenomenolgica da conscincia da fragilizao das imagens do mundo.
Angstia como momento de confrontao do sujeito com aquilo que no se articula a partir
de princpios de ligao derivados do Eu como unidade sinttica. Poderamos seguir esta
perspectiva e afirmar que, para o jovem Foucault, atravs da angstia a doena expe uma
certa experincia trgica constitutiva da liberdade humana. Mas quando a doena advm
objeto de uma psicologia, ela se esvazia enquanto manifestao da existncia em seu
sentido mais amplo.
Dito isto, a reconstituio da histria individual deve se submeter a uma anlise da
existncia, a uma reconstituio do universo patolgico da conscincia doente cujos
lineamentos Foucault procura definir no captulo IV, intitulado Doena e existncia
Neste sentido, Foucault se apia em Minkowski e em Binswanger a fim de insistir na
maneira com que a doena mental, em especial em casos de psicose, solidria de
modificaes profundas naquilo que determina a configurao da posio existencial dos
sujeitos, ou seja, as noes de tempo e de espao. Por exemplo, a lineraridade do tempo
suspensa em delrios psicticos nos quais eventos anteriores repetem-se de maneira
insistente ou se acoplam, de maneira simultnea, com outros eventos ocorridos em
momentos distintos. Todos conhecemos a modificaes na noo de espao (onde
dicotomias como interno e externo, dentro e fora, longe e perto no conseguem mais
organizar a vivncia) assim como na estrutura de relaes intersubjetivas resultantes da
doena. Tais modificaes permitem a Foucault falar de uma espcie de mundo privado
resultante da entificao da doena. Uma proposio que ns j vimos ao estudarmos
Canguilhem com sua noo de que a doena um acontecimento que diz respeito ao
organismo vivo encarado na sua totalidade Pois: no h um nico fenmeno que se realize
no organismo doente da mesma forma como no organismo so145. Isto a ponto dele afirmar
que, para um organismo, estar doente habitar outro mundo.
No entanto, Foucault lembra que, qualquer que seja o grau da doena, o doente
reconhece sua anomalia e d a ela o sentido de uma diferena irredutvel que o separa da
conscincia dos outros. A doena mental sempre implica uma conscincia da doena, at
porque, o universo mrbido nunca um absoluto no qual se aboliria toda referncia ao
143

SARTRE, Ltre et le nant, p. 70


idem, p. 74
145
CANGUILHEM, O normal e o patolgico, p. 52
144

normal. H sempre a referncia a uma norma partilhada. No entanto, esta referncia feita
no interior da prpria doena e a partir de seus mbiles. Foucault fala, nestes casos, de um
reconhecimento alusivo, de uma conscincia ambgua na qual o normal reconhecido
mas seu valor suspenso. De qualquer forma, tal reconhecimento fundamental por
mostrar como a doena mental posio existencial organizada a partir de uma referncia
de normatividade fornecida pelo meio social. Ou seja, a doena ainda um modo de
participao social. Falta ainda analisar como tal articulao se estrutura.

O estatuto da psicologia
Aula 11
Com a aula de hoje, terminaremos o comentrio de Doena mental e psicologia, de Michel
Foucault. Na aula passada, vimos como, ao tentar definir a natureza do que estaria em jogo
na noo de doena mental, Foucault havia partido da noo, hegemnica ainda no incio
do sculo XX, da doena mental como regresso a um estgio anterior de desenvolvimento.
A doena seria, principalmente, dissoluo de funes complexas de coordenao e
substituio de tais funes por atividades simples e restritas. Tudo se passaria, pois, como
se aceitssemos que: a doena suprime as funes complexas, instveis e voluntrias,
exaltando as funes simples, estveis e automticas146. Isto permitia Foucault afirmar que
a doena aparece aqui no exatamente como uma essncia anti-natural, mas como a prpria
natureza e um processo inverso de involuo.
Vimos ainda como este esquema de compreenso da doena tornou-se hegemnico
principalmente devido a defesa de paralelismo entre filognese e ontognese, entre a
evoluo do que da ordem da espcie e a repetio de tal esquema evolutivo, de maneira
mais rpida, no desenvolvimento do indivduo. Tal noo de doena depende de uma certa
teleologia evolutiva na qual etapas anteriores so superadas e integradas em etapas
subseqentes; noo esta cuja teleologia se organiza a partir da lgica do aperfeioamento
progressivo.
Contra tal perspectiva, Foucault insistia que a regresso apenas um aspecto
descritivo da doena. At porque, por mais profunda que seja a dissoluo de funes
complexas, a personalidade nunca desaparece completamente, o prprio processo de
dissoluo com seus motivos e modos de desenvolvimento sempre vinculado aos quadros
de uma personalidade. Da porque Foucault pode afirmar que: o que a regresso da
personalidade encontra no so elementos dispersos nem uma personalidade mais
arcaica147. Isto nos exige pois passarmos de uma compreenso evolutiva geral a
especificidade da histria pessoal do doente, isto se quisermos compreender o sentido da
doena. Ou seja, passarmos de uma psicologia evolutiva a uma psicologia capaz de levar
em conta a dimenso histrica da constituio da subjetividade.
Vimos como Foucault continuava seu trajeto lembrando que evoluo e histria
obedecem a dimenses temporais distintas. A histria doao de sentido ao passado
atravs de exigncias do presente. o presente que organiza e determina o sentido do que
recuperado no passado. J a evoluo marca do passado sobre a determinao do
presente. Ela o peso determinista de um processo de desenvolvimento j previamente
definido. Ou seja, a articulao entre passado e presente obedecem, na histria e na
evoluo, sentidos distintos. Da porque Foucault afirmar: A psicologia da evoluo, que
descreve os sintomas como condutas arcaicas, deve ser completada por uma psicologia da
gnese que descreve, em uma histria, o sentido atual de tais regresses148.
Esta dimenso histrica aparece na clnica atravs da compreenso da regresso no
como queda natural no passado, mas como fuga intencional para fora de um presente
conflitual. Tanto que o passado ao qual se retorna , fundamentalmente, o passado
imaginrio das substituies fantasmticas. Ou seja, a regresso um processo vinculado a
146

FOUCAULT, Maladie mentale, p. 21


FOUCAULT, idem, p. 31
148
FOUCAULT, Maladie mentale ..., p. 51
147

conflito que se desenrolam no campo de interaes do sujeito com a configurao do meio


no qual ele se insere e age.
Mas Foucault no deixa de fazer uma pergunta fundamental: qual a natureza do
conflito que produz esta fuga em direo ao passado? Conflito que no apenas uma
experincia da contradio e da ambigidade, mas uma experincia contraditria e
ambivalente [como, por exemplo, aquela responsvel pela produo do sintoma fbico no
pequeno Hans]. Freud se servia basicamente da noo de dualidade pulsional a fim de
expor uma gnese (a-histrica e praticamente naturalizada) do conflito. Este recurso a
foras impessoais que agem na antecmara da subjetividade no a perspectiva de
Foucault. Na verdade, ele prefere lembrar que a dimenso afetiva desta contradio interna
que gera o conflito psquico a angstia. Trata-se ento de elevar a angstia a condio
para a compreenso do sentido da histria individual, j que a angstia marca a natureza do
conflito psquico responsvel pela doena. Foucault chega mesmo a afirmar que a angstia
o corao da doena. Da a necessidade de passar a uma anlise existencial da doena, ou
seja, desta maneira com que, a partir da angstia, a doena se transforma em modo de estar
no mundo, em maneira com que a existncia humana se oferece no mundo 149,
temporalizando-se, espacializando-se e projetando um mundo. Foucault chega a falar de um
estilo de angstia cuja interpretao fornece a unidade significativa dos fenmenos de
uma personalidade.
Vimos como, ao elevar a angstia a condio de elemento organizador da histria
individual cuja causalidade estaria para alm desta prpria histria, Foucault filiava-se a
uma tradio fenomenolgica que elevava a angstia em modo privilegiado de
manifestao fenomenal da liberdade. Poderamos seguir esta perspectiva e afirmar que,
para o jovem Foucault, atravs da angstia a doena expe uma certa experincia trgica
constitutiva da liberdade humana. Mas quando a angstia que provoca a loucura advm
objeto de uma psicologia, ela se esvazia enquanto manifestao da existncia em seu
sentido mais amplo. A questo que fica : qual o processo responsvel por esta
transformao das figuras da angstia em doena mental submetida a primazia de um
discurso mdico e de um olhar clnico. Este o problema maior da segunda parte do nosso
livro: Loucura e cultura.
Uma histria da loucura
neste captulo que vemos, de maneira clara, o mtodo arqueolgico de Foucault
em operao. Notemos inicialmente qual o problema de Foucault aqui. Se a primeira
parte do livro foi uma exposio das formas de apario da doena mental (como regresso,
como trauma no-historicizado etc.), agora se trata de expor as condies para o
aparecimento de algo como nossa noo de doena mental. Tais condies esto vinculadas
a um quadro de consolidao de regimes de racionalidade prprios a uma poca que
podemos chamar de modernidade e que tem suas razes, ao menos segundo Foucault, em
meados do sculo XVII. E exatamente nesta poca que Foucault determina o incio de um
longo processo de transformao da loucura em objeto privilegiado do discurso mdico e
do olhar clnico.
Desta forma, Foucault pode afirmar que as condies da doena mental no sero
encontradas nem na anlise da evoluo orgnica, nem na compreenso da histria
149

FOUCAULT, Dits et crits, p. 164

individual, nem na situao existencial do ser humano. At porque, a doena mental s teria
realidade, valor e sentido no interior de uma cultura que a reconhece como tal. As leis
psicolgicas, base para a partilha entre o normal e o patolgico em sade mental, so, ao
menos segundo Foucault, sempre relativas a situaes histricas determinadas. Da porque
nosso captulo chama-se As condies histricas da doena mental.
Aparentemente, estaramos com Foucault diante de um certo relativismo historicista
que definiria a doena mental a partir da norma positivamente enunciada pela mdia
fornecida pelo social. Ou seja, a doena mental seria definida de maneira negativa como
desvio em relao normal e de maneira virtual como possibilidade do comportamento no
sancionada socialmente. Mas Foucault quer complexificar esta relao entre norma e
loucura. Ele lembra, por exemplo, que encontramos situaes nas quais as doenas so
reconhecidas como tais, mas t-las , ao mesmo tempo, condio necessria para que certos
sujeitos possam assumir certos papis sociais. Ele cita, a este propsito, certas patologias
necessrias para que, em certas sociedades, algum seja reconhecido como xam. Esta
uma maneira de mostrar como uma sociedade pode se exprimir positivamente nas doenas
mentais manifestadas por seus membros. O que nos deixa como duas questes maiores:
Como nosso cultura conseguiu dar a doena o sentido de desvio e ao doente um estatuto
de excluso? E como, apenas disto, nossa sociedade se exprime nestas formas mrbidas que
nas quais ela recusa a reconhecer-se?150.
Foucault comea lembrando que a transformao da loucura em doena mental um
fato historicamente determinado. Ele insiste como antes do sculo XIX, largos espectros da
loucura no tinham suporte mdico. Mesmo a noo de internao no estava ainda
vinculada a alguma forma de interveno teraputica; ela era apenas uma medida de
internamento. At a metade do sculo XVII, a loucura pe deixada essencialmente em estado
livre: ela circula, ela faz parte da decorao e da linguagem comuns151.
Lembremos, por exemplo, da maneira com que Foucault aborda este problema em
Histria da loucura. Neste livro, Foucault parte para anlise de um deslocamento maior
operado na partilha entre racionalidade e loucura, ou seja, entre a razo e seu Outro: Antes
que a loucura fosse dominada, por volta de meados do sculo XVII [notemos que se trata
da mesma data que marca o corte epistmico que instaura o pensamento clssico], antes que
velhos ritos fossem ressuscitados a seu favor, ela estava ligada a todas as experincias
maiores da Renascena152. Aos olhos de Focault, isto indicaria uma configurao do saber
no qual a loucura no apareceria como aquilo que se coloca na exterioridade da
racionalidade, mas como um fato interno prpria razo. Analisando textos literrios,
filosficos e morais da Idade Mdia e da Renascena nos quais questo da loucura,
Foucault conclui que, em todos os casos: A loucura um momento duro, mas essencial no
trabalho da razo153. Pois a verdade da loucura est no fato dela ser interior razo, dela
ser uma figura da razo, algo como uma fora e uma necessidade momentnea que a razo
utiliza para melhor se assegurar de si mesma 154. Da porque Foucault fala de uma
conscincia trgica da loucura devida a sua proximidade com a razo. Uma conscincia
150

FOUCAULT, Maladie mentale, p. 75


idem, p. 80
152
FOUCAULT, Histoire de la folie, p. 21
153
FOUCAULT, Histria de la folie, p. 55
154
FOUCAULT, idem, p. 56
151

muito mais forte do que a conscincia crtica que marcar a experincia moderna da
loucura.
Tal conscincia trgica da proximidade da loucura seria responsvel, entre outras
coisas, pela no-excluso do louco atravs da internao: Antes do sculo XVIII, a loucura
no era sistematicamente internada, e era essencialmente considerada como uma forma de
erro ou iluso (....) As prescries dadas pelos mdicos eram de preferncia a viagem, o
repouso, o passeio, o retiro, o corte com o mundo vo e artificial da cidade155.
Vale a pena lembrar aqui que a prpria noo de racionalidade at a renascena
estava fundamentalmente vinculada a uma certa noo de mimesis e de semelhana: At o
fim do sculo XVI, a semelhana desempenhou um papel decisivo no saber da cultura
ocidental156. Procurar o sentido era, fundamentalmente, expor as relaes de semelhana e
a prpria relao da linguagem ao mundo era pensada sob a forma da analogia, e no sob a
forma da representao. No por acaso que a loucura, em especial a psicose, ser vista
mais tarde como um pensamento perdido nas malhas da analogia e das identificaes
imaginrias.
Este quadro de relaes entre razo e loucura se modifica radicalmente a partir de
meados do sculo XVII. Foucault descreve tal mudana em um captulo da Histria da
loucura chamado de A grande internao. Nele, o filsofo escreve como os grandes
leprosrios espalhados por toda a Europa e praticamente desativados depois do fim das
epidemias de lepra foram transformados em asilos para onde eram mandados loucos,
libertinos e desempregados. Longe de ser uma simples medida jurdica, ela expunha uma
nova lgica na relao da loucura: a lgica da excluso e da separao.
Para descrever esta excluso e separao da loucura, Foucault comenta um
pargrafo da primeira meditao de Descartes, texto escrito mesma poca e fundamental
para a constituio da noo moderna de subjetividade. Tal trecho diz respeito a uma etapa
da universalizao da dvida atravs da passagem do argumento do erro dos sentidos ao
argumento do sonho :
Mas, ainda que os sentidos nos enganem s vezes, no que se refere s coisas pouco
sensveis e muito distantes, encontramos talvez muitas outras, das quais no se pode
razoavelmente duvidar, embora as conhecssemos por intermdio deles: por exemplo, que
eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel entre as
mos e outras coisas desta natureza. E como poderia eu negar que estas mos e este corpo
sejam meus? A no ser, talvez que eu me compare a esses insensatos (insanis), cujo crebro
est de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que constantemente
asseguram que so reis quando esto inteiramente nus; ou imaginam ser cntaros ou ter um
corpo de vidro. Mas qu? So loucos (amentes) e eu no seria menos extravagante
(demens) se me guiasse por seus exemplos157.
O que chama a ateno de Foucault a distino, feita por Descartes, entre erro,
iluso e loucura. As experincias do erro dos sentidos e da iluso dos sonhos sero
absorvidas no encaminhamento da razo em direo a sua auto-fundamentao. Elas faro
parte da ordem das razes. Mas a experincia da loucura ser simplesmente desqualificada.
Aparentemente, a recusa do argumento da loucura na crtica a um saber fundamentado na
percepo sensvel total. Foucault sensvel ao fato de Descartes utilizar ao mesmo
tempo um termo mdico (insanis) e jurdico (amens- demens) que indica aqueles que esto
155

FOUCAULT, Michel; Microfsica do poder, 120


FOUCAULT, Les mots et les choses, p.; 32
157
DESCARTES, Meditaes, p. 94
156

fora de todo e qualquer dilogo racional, uma categoria de pessoas incapazes de certos atos
civis, religiosos e judicirios. Insanis um termo caracterizante, amens e demens so
termos desqualificantes.
Isto demonstraria a distncia entre, de um lado, a experincia do erro dos sentidos e
da iluso dos sonhos e, de outro, da loucura. O erro e a iluso dizem respeito ao objeto do
pensamento e invalidam os contedos mentias do pensamento, a loucura diz respeito ao
sujeito que pensa, e eu que penso no posso ser louco j que a loucura seria condio de
impossibilidade do pensamento. Neste ponto, Foucault convoca Montaigne para medir a
distncia que separa esta excluso da loucura da compreenso anterior da sua proximidade
com a razo: assim o perigo da loucura desapareceu do exerccio mesmo da razo. Esta
voltou-se para um plena possesso de si na qual ela s pode encontrar armadilhas com o
erro e perigos como a iluso158. A partir de agora, a loucura estaria exilada da regio do
saber e exilada de sua linguagem originria. A partir de agora, ela seria apenas chamada a
falar no interior do discurso mdico.
No entanto, este processo precisou esperar at o sculo XIX. Pois a partir do
sculo XIX que a internao ganha o sentido no apenas de enclausuramento, mas de
medicalizao e, principalmente, de reconstituio moral. A funo do mdico ser tambm
funo de controle moral atravs da aplicao de um padro de normalidade do
comportamento.At porque: curar significar inculcar no doente as sentimentos de
dependncia, de humildade, de culpabilidade, de reconhecimento que so a armadura moral
da vida em famlia159.
a partir deste momento que a loucura deixa de ser considerada um fenmeno
global que diz respeito ao corpo e alma. Ela ser um fato que concerne essencialmente a
alma e receber, pela primeira vez, estatuto e significao psicolgica. Esta
psicologicizao setor de uma operao mais ampla de insero da loucura em sistemas
de valores e de represso morais. Da, por exemplo, a infantilizao do louco [lembremos
que a criana ser outra figura da ausncia de razo] e a conseqente determinao da
loucura como regresso.
A questo fundamental nesta infantilizao : para que a conduta infantil seja um
refgio para o doente, para que a regresso infncia se manifeste como figura da neurose,
faz-se necessrio que a sociedade instaure uma barreira intransponvel entre o passado e o
presente, entificando uma linearidade do tempo que figura de uma certa noo de
progresso. Da mesma forma, para que o delrio religioso seja estrutura privilegiada da
parania com seus delrios de grandeza e fim do mundo, faz-se necessrio que a laicizao
da cultura aproxime a religio de um delrio sistematizado.
Desta forma, Foucault pode afirmar que a psicologia s pode aparecer a partir do
momento em que a relao loucura foi definida pela dimenso exterior da excluso e do
castigo, assim como pela dimenso interior da moralizao e da culpabilidade. Com a
psicologia, perde-se uma relao essencial entre a razo e a desrazo. A respeito de tal
relao essencial, Foucault fala das obras de Hlderlin, Nerval, Roussel e Artaud, obras que
ainda permitiriam aquilo que ele chama de grande confrontao trgica com a loucura
[Contra a psicologia, Foucault parece procurar um certo recurso esttica na formalizao
no redutora da alteridade].
A doena mental ser assim apenas a loucura alienada na psicologia. Foucault
insiste em um programa de liberao da loucura e de restituio sua linguagem de origem.
158
159

FOUCAULT, Histoire de la folie, p. 69


FOUCAULT, Maladie mentale, p. 84

Pois o advento da psicologia deve ser inserido no interior dos modos gerais de relao
alienada que o homem ocidental estabeleceu consigo mesmo.

O estatuto da psicologia
ltima aula
Esta a ltima aula de nosso curso. Enquanto ltima aula, trata-se de um momento
adequado para recapitular nosso trajeto e apontar algumas questes que devem ser
desdobradas.
Na primeira aula, eu inicie nosso curso lembrando da seguinte afirmao de
Georges Canguilhem: inevitvel que, ao propor-se como teoria geral da conduta, a
psicologia faa sua alguma idia de homem. Faz-se necessrio ento permitir filosofia
perguntar psicologia de onde ela retira tal idia e se no seria, no fundo, de alguma
filosofia160. Uma afirmao desta natureza indicava que prticas clnicas, principalmente
aquelas prprias aos fatos psicolgicos, seriam dependentes, de maneira fundamental, de
decises prvias e muitas vezes no tematizadas a respeito dos padres de racionalidade da
observao, da interveno teraputica e, principalmente, da definio do objeto prprio
psicologia. Neste sentido, seguindo a afirmao de Canguilhem, a reflexo epistmica
sobre a psicologia seria, necessariamente, uma reflexo sobre a maneira com que uma certa
antropologia filosfica guiaria, de forma insidiosa, a racionalidade da direo do
tratamento. Como se a psicologia fosse, a todo momento, remetida a uma raiz metafsica a
respeito da qual ela no seria capaz de se livrar. Raiz metafsica que nos colocaria diante da
necessidade em responder uma pergunta maior, a saber: uma prtica clnica pode abstrair de
pr, em seu horizonte de racionalidade, uma concepo de sujeito que se desdobre em uma
teoria da conduta racional, base da definio do que se define como patologia mental ?
Ns vimos, no decorrer de nosso curso, como esta antropologia filosoficamente
orientada apareceria no interior da reflexo psicolgica. Ela estaria presente no interior do
movimento central de constituio de toda e qualquer clnica, ou seja, nos modos de
partilha entre o normal e o patolgico. A idia central do curso foi, pois, que o prprio
critrio de distino entre normal e patolgico pressuposto pela clnica dos fatos
psicolgicos j porta uma antropologia filosoficamente orientada. Normal
necessariamente um conceito valorativo e uma questo maior para toda epistemologia da
psicologia : qual a gnese de conceitos valorativos que operam no interior da clnica?
Uma questo desta natureza s adquire importncia se problematizarmos, de
antemo, toda e qualquer tentativa de naturalizao dos critrios de normalidade. Foi desta
problematizao que partimos quando insisti na fragilidade de se tentar medir a correo da
clnica a partir da eficcia em relao cura do sofrimento enquanto dado imediatamente
fornecido percepo mdica. Esta profisso de f da soberania da clnica nos lembraria:
para alm de toda e qualquer questo de mtodo e de definio de objeto, a clnica est
sempre diante de uma realidade inabalvel, a saber, o sofrimento do paciente. Minorar o
sofrimento nossa funo e o nico critrio de orientao da clnica. Um pouco como se a
eficcia teraputica em relao a uma categoria fenomnica extremamente normativa como
o sofrimento fosse condio suficiente para assegurar a validade de dispositivos clnicos.
Desde o incio, eu insisti no que tal perspectiva teria de ideolgica. Pois
ideolgico todo sistema de saber e de orientao da praxis que procura naturalizar seus
dispositivos de justificao como se estivssemos diante de fatos que falam por si
mesmo. Neste sentido, podemos perguntar: afinal, o sofrimento um fato que fala por si
160

CANGHUILHEM, Georges, Quest ce que la psychologie?, p. 367

mesmo ou um fenmeno que levado a falar no interior de contextos scio-histricos


determinados? Podemos, por exemplo, tirar as conseqncias de afirmaes como esta, de
Foucault: Desde o sculo XVIII, a medicina tem tendncia a narrar sua prpria histria
como se o leito dos doentes tivesse sido sempre um lugar de experincias constante e
estvel, em oposio s teorias e sistemas que teriam estado em permanente mudana e
mascarado, sob sua especulao, a pureza da evidncia clnica. Na verdade, tudo se
passaria como se : Na aurora da Humanidade, antes de toda crena v, antes de todo
sistema, a medicina residia em uma relao imediata do sofrimento com aquilo que
alivia161. Tal pressuposio de imediaticidade, no entanto, esquece como o que nos faz
sofrer muda constantemente de configurao.
Poderamos tentar dizer que a experincia da dor algo que ancora o sofrimento em
um solo inquestionvel e indiferente a contextos. Mas, novamente, no seria difcil lembrar
como no h nenhuma relao imediata entre a dor fsica e o desprazer de um sofrimento
vivenciado como doena que leva sujeitos a se submeterem clnica. De fato, impossvel
considerar a dor como expresso de uma atividade normal. Mas impossvel tambm
consider-la como um sinal de alarme imediato das ameaas internas ou externas
integridade orgnica, muito menos como uma reao de defesa que o mdico deveria
respeitar. Da esta definio de Leriche, segundo a qual: a dor um fato individual
monstruoso e no uma lei da espcie. Um fato da doena 162. Ou seja, no pela dor que a
doena e definida. Ao contrrio, ela j vista como um fato determinado pela doena, mas
um fato cuja inteligibilidade exige a reflexo sobre o indivduo biolgico: Parece-nos de
importncia capital que um mdico reconhea na dor um fenmeno de reao total que s
tem sentido e que s um sentido ao nvel da individualidade humana concreta 163. A
conscincia da dor no um fato fisiolgico, mas um fato psicolgico no sentido
politzeriano do termo, fato no qual o sujeito expressa a limitao de sua capacidade de agir
sobre o meio. Basta lembrar aqui da existncia de dores que no so vivenciadas como
doena, mas como ndices de auot-superao do organismo. Neste sentido, lembremos,
mais uma vez, das palavras de um psiclogo, Nietzsche: S a grande dor, esta longa e
lenta dor na qual queimamos como madeira verde nos obriga, a ns filsofos, a descer em
nossas profundezas e a nos desfazer de toda confiana (...) Duvido que tal dor nos deixe
melhor, mais eu sei que ela nos aprofunda164
Aceita a inconsistncia de um discurso sobre a soberania da clnica que naturalizar
seus padres de interveno e de normalidade atravs de uma pretensa imediaticidade do
sofrimento, ficou ento em aberto o problema de compreendermos como se constituiu
historicamente o critrio de normalidade das clnicas dos fatos psicolgicos. Trs livros nos
serviram aqui de guia: Crtica dos fundamentos da psicologia, de Georges Politzer, O
normal e o patolgico, de Georges Canguilhem e Doena mental e psicologia, de Michel
Foucault.
Com Politzer, vimos dois movimentos complementares. Primeiro, a crtica a
critrios de objetividade herdados, pela psicologia, das cincias fsicas ou, para utilizar uma
expresso de Politzer, das cincias da terceira pessoa. Critrios estes que, no caso da
psicologia experimental inaugurada por Wundt, traziam padres de normalidade derivados
da subsuno dos fenmenos psicolgicos a fenmenos fisiolgicos, mensurveis e
161

FOUCAULT, O nascimento da clnica, pp. 59-60


CANGUILHEM, O normal e o patolgico, p. 71
163
idem, p. 72
164
NIETZSCHE, A gaia cincia - introduo
162

quantificveis. Uma subsuno que visava definir a distino entre normal e patolgico a
partir da noo de variao quantitativa de funes e rgos tomados de maneira isolada.
Vimos como, para Politzer, a fundao de algo como uma psicologia fisiolgica,
esta fundada no uso massivo de tcnicas experimentais de mensurao de constantes
fisiolgicas objetivamente identificveis, um uso que pressupunha reduzir estados e eventos
mentais mensurao objetiva de estmulos e respostas fisiolgicas, era um dos resultados
possveis de um certo mito da natureza dupla do homem. Politzer acredita que a psicologia
at ento nunca conseguiu escapar das conseqncias de um pretenso dualismo entre mente
e corpo. Tal dualismo teria produzido, por um lado, o subjetivismo espiritualista que
restitua alma os seus direitos graas s iluses da imediaticidade da interioridade. Uma
psicologia baseada nos usos clnicos da introspeco, uma certa cincia do sentido interno,
seria resultado resultante daquilo que poderamos chamar de ideologia da vida interior,
ou seja, a implementao clnica de um conceito normativo de sujeito baseada na
autonomia espontnea e na transparncia imediata de si a si. Por outro, teramos as
mltiplas figuras de um materialismo objetificador que interpretava o comportamento e o
pensamento humano atravs de um paradigma reducionista tal como, por exemplo, a
psicologia do reflexo, as diferentes formas de associacionismo, a psicologia experimental
ou mesmo o behaviorismo. Contrariamente a noo de que a conscincia deveria ser
distinta das leis causais que determinam o mundo fsico, tratava-se de insistir que a mesma
objetividade prpria a descrio dos fenmenos fsicos deve ser aplicada apreenso da
inteligibilidade dos fatos psicolgicos.
Politzer lembrava que o importante a renunciar a fim de se livrar do mito da
natureza dupla humana a perspectiva realista ingnua que acredita ver, no fato
psicolgico, um dado simples que corresponde a uma realidade perceptvel, seja ela interna
ou externa. neste ponto que o psiclogo da introspeco e o behaviorista se tocam: todos
os dois acreditam na premissa epistemolgica do fato naturalmente dado. Enquanto os
primeiros acreditam que nada mais bem conhecido pela mente do que ela prpria e, por
isto, os estados mentais esto diretamente presentes conscincia, os segundos invertem a
posio terica afirmando que so os estados fsicos que naturalmente so dados
conscincia e recaem no realismo metafsico.
Abandonar a premissa metodolgica do fato psicolgico como fato naturalmente
dado significava assumir que todo fato psicolgico um fato construdo, fato socialmente
construdo, ou seja, ao que procura realizar uma inteno significativa, um telos.
Teleologia da ao que s pode ser revelada no interior dos modos de relao entre sujeito e
aquilo que lhe aparece como meio social. A psicologia aparece assim como uma teoria da
ao.
No entanto, esta teoria da ao deve levar em conta a inteno significativa,
inteno esta que pode no aparecer como um pensamento sob o regime do para-si da
conscincia, mas que sempre se manifesta no endereamento a um outro, sempre est
implicada na constituio do campo no qual a ao ir se desdobrar. A pergunta pelo
sentido do fato psicolgico assim uma pergunta pela subjetividade do sentido, pergunta
esta que encontra, no mtodo psicanaltico, uma inspirao maior. Notemos ainda que se
trata de um conceito de subjetividade claramente vinculado ao primado da
intersubjetividade, isto atravs da defesa da centralidade da noo de meio social.
Mas o que seria a doena mental, para Politzer? Ela s poderia ser uma alienao,
no sentido marxista da palavra, ou seja, uma impossibilidade de reconstruo da totalidade
das relaes de sentido pressupostas pela ao subjetiva. Da porque tal ao ser alienada

na forma de sintomas, de inibies, como se diante delas o sujeito estivesse diante de


cicatrizes de um texto alterado ao que o autor [de tais alteraes] confrontou-se como
quem se confronta com um texto incompreensvel165.
Abordar inicialmente tal perspectiva foi um passo fundamental para a compreenso
de Doena mental e psicologia, de Michel Foucault. Neste livro do jovem Foucault, era
questo de determinar qual o sentido da noo de doena mental. Para tanto, vimos como
ele partia de uma distino estrita entre doena mental e doena orgnica. Foucault chegava
mesmo a perguntar: Se parece to difcil definir a doena e a sade psicolgica, no seria
por que nos esforamos de maneira v em lhes aplicar massivamente conceitos igualmente
destinados medicina somtica?166. Esta pergunta era apenas a inflexo desta tendncia,
presente desde Politzer, de estabelecer linhas estritas de demarcao entre os campos da
psicologia (que seria, no fundo, uma psicologia social) e da fisiologia com seus processos
de abstrao. Vimos como lutava contra a noo de doena como o que resulta de reaes
globais de indivduos tomados como totalidades orgnicas e psicolgicas.
Esta autonomia do mental em relao ao fisiolgico a pea maior de uma
estratgia que visa, no limite, a se perguntar pelas condies histricas da configurao das
doenas mentais. Estratgia que visa submeter a reflexo sobre a epistemologia da
psicologia a uma histria da loucura, a uma arqueologia que visa desvendar o modo com
que a partilha entre normal e patolgico inscreve-se em um movimento mais amplo de
relao entre a razo e aquilo que lhe aparece como seu outro. A doena mental aparece
assim como modo de reduo da loucura a objeto de um discurso mdico que visa,
sobretudo, fundar a determinao da normalidade em um solo de normatizao moral e
esttica. Uma normalidade que procura no reconhecer proximidade alguma entre seus
procedimentos e aqueles em operao na loucura. Da porque as prticas teraputicas sero
fundamentalmente vinculadas internao, excluso e re-educao. Esta a resposta
para duas questes maiores enunciadas por Foucault: Como nosso cultura conseguiu dar
doena o sentido de desvio e ao doente um estatuto de excluso? E como, apenas disto,
nossa sociedade se exprime nestas formas mrbidas que nas quais ela recusa a reconhecerse?167. Com o advento da psicologia, perde-se assim uma relao essencial entre a razo
e a desrazo. Uma relao ainda presente nas obras de Hlderlin, Nerval, Roussel e Artaud,
obras que ainda permitiriam aquilo que Foucault chama de grande confrontao trgica
com a loucura. Contra uma figura da razo que se inverteu em dominao e
institucionalizao de prticas disciplinares, figura que habitaria o projeto mesmo de
estabelecimento da psicologia, Foucault insiste no poder diruptivo de criao de formas,
poder este que ainda pulsaria no interior do campo da produo esttica.
Mas se compararmos Foucault, Politzer e outro autor que estudamos, Canguilhem,
veremos algumas diferena instrutivas. Canguilhem partilha com Politzer a crtica a uma
abstrao que impede a apreenso das relaes entre sujeito e meio ambiente, a um
formalismo que isola funes e rgos a fim de permitir a advento da noo de patolgico
como variao quantitativa do normal. No entanto, nada em Canguilhem permite a
dissociao entre os critrios prprios ao estabelecimento de uma doena mental e de uma
doena orgnica. Contrariamente a Foucault, no h dissociao entre orgnico e mental em
Canguilhem. Em vrios momentos de sua obra, Canguilhem age como quem acredita que o
165

HABERMAS, 1973, p.252


FOUCAULT, Maladie mentale ... p. 2
167
FOUCAULT, Maladie mentale, p. 75
166

orgnico e o psicolgico segue as mesmas leis, que entre o fato psicolgico e o fato
orgnico no h diferenas maiores de naturezas (mas apenas de complexidade). Mas, no
caso de Canguilhem, isto no significa tentar reduzir todo estado psicolgico atravs de um
materialismo reducionista. Trata-se, ao contrrio, de complexificar nossa compreenso do
orgnico, nossa compreenso dos fenmenos vitais, de uma forma tal que eles escapem do
quadro compreensivo de uma fisiologia mecanicista e, para usar termos de Politzer,
realista e abstrata.
No se trata, com isto, de continuar o velho debate entre causalidade somtica e
causalidade psquica, entre organognese e psicognese. A posio de Canguilhem mais
radical pois assentada na pergunta: compreendemos bem um organismo biolgico quando
vemos nele apenas um feixe de funes e rgos que se submetem a padres gerais de
mensurao e quantificao? Esta vida no seria apenas o exemplo de uma razo que se
transformou em princpio de dominao e controle da vida, ou seja, naquilo que um dia
Foucault chamou de biopoder? Por isto, embora no parea ser um livro sobre psicologia,
O normal e o patolgico teve uma influncia decisiva em toda reflexo posterior sobre a
epistemologia da psicologia e das clnicas da subjetividade.
Lembremos mais uma vez da maneira como Cnaguilhem organiza a distino entre
normal e patolgico. O homem normal o homem normativo, o ser capaz de instituir
novas normas, mesmo orgnicas. Uma norma nica de vida sentida de modo privativo, e
no positivamente168. Isto nos permite sintetizar uma definio de sade no mais
vinculada entificao de constantes fisiolgicas. Sade a posio na qual o organismo
aparece como produtor de normas na sua relao ao meio ambiente. At porque a norma,
para um organismo, exatamente sua capacidade em mudar de norma. O que implica em
uma noo de relao entre organismo e meio ambiente que no pode ser compreendida
como simples adaptao e conformao. Um organismo completamente adaptado e fixo
doente por no ter uma margem que lhe permita suportar as mudanas e infidelidades do
meio. A doena aparece assim como fidelidade a uma norma nica. Da esta definio:
uma vida s, uma vida confiante na sua existncia, nos seus valores, uma vida em flexo,
uma vida flexvel (...) Viver organizar o meio a partir de um centro de referncia que no
pode, ele mesmo, ser referido sem com isto perder sua significao original169.
O que isto significa para uma reflexo sobre patologias que so objeto da
psicologia? O que isto significa, por exemplo, para uma reflexo sobre o critrio de
normalidade que deve orientar a clnica, sobre a antropologia que estaria atuando em toda
psicologia? H algo aqui de defesa de uma soberania capaz de se afirmar como
potencialidade criadora, mas uma soberania que s se afirma quando o sujeito capaz de
transcender as configuraes determinadas de seu meio. H uma inadequao fundamental
entre sujeito e meio que aparece como condio para a afirmao da soberania criadora da
subjetividade. Mas no se trata aqui simplesmente de viver conforme outras regras, como
se estivssemos aqui a estetizar o autismo, ou de operar em um mundo interno. Trata-se de
assumir o meio no mais como o que se oferece em uma resistncia esttica, mas como o
que porta, em si mesmo, o princpio de indeterminao. A mudana maior uma mudana
na compreenso do meio, mudana que permite uma afirmao da potencialidade criadora
de novas normas. Vale para os fatos psicolgicos aquilo que Canguilhem afirmara a
respeito dos fatos orgnicos: anomalias podem aparecer como novas normas.
168
169

idem, p. 105
CANGUILHEM, La connaissance de la vie, p. 188

Comportamentos que outrora apareceram como anomalias podem determinar novos


padres sociais de conduta. no jogo de criao de potenciais normativas que se define a
sade de um sujeito. Resta saber quais as condies para que a psicologia esteja altura
deste jogo.

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