Poesias Agostinho Neto
Poesias Agostinho Neto
Poesias Agostinho Neto
Minha me
(todas as me negras
cujos filhos partiram)
tu me ensinaste a esperar
como esperaste nas horas difceis
Mas a vida
matou em mim essa mstica esperana
Eu j no espero
sou aquele por quem se espera
Sou eu minha Me
a esperana somos ns
os teus filhos
partidos para uma f que alimenta a vida
Hoje
somos as crianas nuas das sanzalas do mato
os garotos sem escola a jogar a bola de trapos
nos areias ao meio-dia
somos ns mesmos
os contratados a queimar vidas nos cafezais
os homens negros ignorantes
que devem respeitar o homem branco
e temer o rico
somos os teus filhos
dos bairros de pretos
alm aonde no chega a luz elctrica
os homens bbedos a cair
abandonados ao ritmo dum batuque de morte
teus filhos
com fome
com sede
com vergonha de te chamarmos Me
com medo de atravessar as ruas
com medo dos homens
ns mesmos
Amanha
entoaremos hinos liberdade
quando comemorarmos
a data da abolio desta escravatura
Ns vamos em busca de luz
os teus filhos Me
(todas as mes negras
cujos filhos partiram)
vo em busca de vida.
At quando?
No h luz
no h estrelas no cu escuro
Tudo na terra sombra
No h luz
no h norte na alma da mulher
Negrura
S negrura
Vem o sbado
e logo ali se confunde com a prpria vida
transformada em desespero
em esperana e em mstica ansiedade
Ansiedade encontrada
no significado das coisas
e dos seres
na lua cheia
acesa em vez de candeeiros
de iluminao pblica
que pobreza e luar
casam bem
Ansiedade
sentida nos barulhos
e no cheiro a bebidas alcolicas
espalhadas no ar
com gritos de dor e alegria
misturados em estranha orquestrao
Ansiedade
no homem fardado
alcanando outro homem
que domina e leva aos pontaps
e depois de ter feito escorrer sangue
enche o peito de satisfao
por ter maltratado um homem
A intervalos
ais de dor
lancinam ouvidos
ferem coraes tmidos
e afastam-se passos
em correia angustiante
e depois dos risos da matula
desenfreada
s silncio mistrio lgrimas e dio
e carnes laceradas
pelas fivelas dos cintures
Ansiedade
nos que passam
procura do prazer fcil
Ansiedade no homem
escondido em recanto escuro
violando uma criana
Ansiedade ouvida
na contenda da taberna
Compadres discutindo
escandalosamente
velha dvida de cem mil ris
entre os murmrios
da numerosa assistncia
Ansiedade
nas mulheres
abandonaram os homens
para ouvir
a vizinha aos gritos
ralhando contra a pobreza do marido
Ouvem-se
choros histricos
Ansiedade
nos alto-falantes do cinema
de bocas escancaradas
a gritar swing
ao p das bilheteiras
enquanto um carrocel
arrasta em turbilhes de sonho
luzinhas vermelhas verdes azuis
e tambm
a troco de dois mil e quinhentos
namorados e crianas
Ansiedade
nos batuques saudosos
dos kiocos contratados
o fundo de todo o rudo
Ansiedade
na humilde criana
que foge amedrontada do polcia
de servio
Ansiedade
no som da viola
acompanhado uma voz
que canta sambas indefinidos
deliciosamente preguiosos
pejando o ar
do desejo de romper em pranto
Com a voz
possa o grito de saudade
Ansiedade
nas mos aos gritos
procura de filhos desaparecidos
no homem
que consulta o kimbanda
para conservar o emprego
na mulher
que pede drogas ao feiticeiro
para conservar o marido
na me
que pergunta ao advinho
se a filhinha se salvar
da pneumonia
na cubata
de velhas latas esburacadas
enquanto oram
bbedos urinam na rua
encostadas parede
afastando-se depois
a ridicularizar as vezes
que perceberam
atravs das persianas das janelas
Ansiedade na kazukuta
danada luz do acetileno
ou do candeeiro Petromax
em sala pintada de azul
cheia de p
e do cheiro a suor dos corpos
e de maneios de ancas
e de contactos de sexos
Ansiedade
nos que riem e nos que choram
Ansiedade
nas salas de dana
regurgitantes de gente
onde da a instantes
o namorado repreende a noiva
insultos so atirados para o ar
enchendo o recinto de questes
que extravasam para a rua
acudindo polcias aos assobios
Ansiedade
no esqueleto de pau a pique
ameaadoramente inclinado
a sustentar pesado tecto de zinco
e nos quintais
semeados de dejectos e maus cheiros
nas moblias sujas de gordura
nos lenis esburacados
e nas camas sem colcho
Ansiedade
nos que descobrem multides passivas
esperando a hora
Nos homens
ferve o desejo de fazer o esforo supremo
para que o Homem
e a esperana
no mais se torne
em lamentos da multido
A prpria vida
faz desabrochar mais vontades
nos olhares ansiosos dos que passam
CAMINHO DO MATO
Caminho do mato
caminho da gente
gente cansada
-oh
Caminho do mato
caminho do soba
Soba grande
-oh
Caminho do mato
caminho de Lemba
Lemba formosa
-oh
Caminho do mato
caminho do amor
do amor do soba
-oh
Caminho do mato
caminho do amor
do amor de Lemba
-oh
Caminho do mato
caminho das flores
flores do amor.
CRUELDADE
Caram todos na armadilha
dos homens postados
esquina
E de repente
no bairro acabou o baile
e as facetas endurecerem na noite
E ficou o silncio
dum bito sem gritos
que as mulheres agora choram
Em coraes alarmados
segredam msticas razoes
Da cidade iluminada
vm gargalhadas
numa displicncia cruel
COMBOIO AFRICANO
Um comboio
subindo de difcil vale africano
chia que chia
lento e caricato
Grita e grita
Muitas vidas
ensoparam a terra
onde assenta os rails
e se esmagam sob o peso da mquina
e no barulho da terceira classe
Grita e grita
QUITANDEIRA
A quitandeira.
Muito sol
e a quitandeira sombra
da mulemba.
-Laranja, minha senhora
laranjinha boa!
A luz brinca na cidade
o seu quente jogo
de claros e escuros
e a vida brinca
em coraes aflitos
o jogo da cabra-cega.
A quitandeira
que vende fruta
vende-se.
-Minha senhora
laranja, laranjinha boa!
Compra laranjas doces
compra-me tambm o amargo
desta tortura
da vida sem vida.
Compra-me a infncia de esprito
este boto de rosa
que no abriu
principio impelido ainda para um incio.
-Laranja, minha senhora!
Esgotaram-se os sorrisos
com que chorava
eu j no choro.
E a vo as minhas esperanas
como foi o sangue dos meus filhos
amassado no p das estradas
enterrado nas roas
e o meu suor
embebido nos fios de algodo
que me cobrem.
Como o esforo foi oferecido
segurana das mquinas
beleza das ruas asfaltadas
de prdios de vrios andares
comunidade de senhores ricos
a alegria dispersa por cidades
e eu
me fui confundindo
com os prprios problemas da existncia.
A vo as laranjas
como eu me ofereci ao lcool
para me anestesiar
e me entreguei s religies
para me insensibilizar
e me atordoei para viver.
Tudo tenho dado.
VELHO NEGRO
Vendido
e transportado nas galeras
vergastado pelos homens
linchado nas grandes cidades
esbulhado at ao ultimo tosto
humilhado at ao p
sempre sempre vencido
forado a obedecer
a Deus e aos homens
perdeu-se
Perdeu a ptria
e a noo de ser
Reduzido a farrapo
macaquearam seus gestos e a sua alma
diferente
Velho farrapo
negro
perdido no tempo
e dividido no espao!
Ao passar de tanga
MEIA-NOITE NA QUITANDA
- Cem ris de jindungo
S Domingas.
O sol
entrega S Domingas lua
nas quitandas dos musseques
E a quitandeira esperando
Um tosto
dois tostes
trs tostes
que o corao de S Domingas
sofre mais ainda do que o corpo na quitanda.
Poesia africana
Na estrada
A fila de carregadores bailundos
gemendo sob o peso da crueira
No quarto
a mulatinha de olhos meigos
retocando o rosto com rouge e p-de arrroz
A mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas
Na cama o homem insone pensando
em comprar garfos e facas para comer mesa
No cu o reflexo do fogo
e as silhuetas dos homens negros batucando
de braos erguidos
No ar a melodia quente das marinbas
Poesia africana
E na estrada os carregadores
no quarto a mulatinha
na cama o homem das marinbas
os braseiros consumindo
consumindo
a terra quente dos horizontes em fogo.
NOITE
Eu vivo
nos bairros escuros do mundo
sem luz nem vida.
So bairros de escravos
mundos de misria
bairros escuros.
CIVILIZAO OCIDENTAL
Latas pregadas em paus
fixados na terra
fazem a casa
Os farrapos completam
a paisagem ntima
O sol atravessando as frestas
acorda o seu habitante
Depois as doze horas de trabalho escravo
Britar pedra
acarretar pedra
britar pedra
acarretar pedra
ao sol
chuva
britar pedra
acarretar pedra
A velhice vem cedo
Uma esteira nas noites escuras
basta para ele morrer
grato
e de fome.
DESFILE DE SOMBRAS
Por milhentos caminhos
Do meu Desejo
Passam sombras a tactear o Nada;
Vo
esforadas na incerteza
por abraar
os pontos de interrogao da existncia.
Atravessam-me
Arrastando
laia de gloria
grilhetas e cadeias
com estpidos sorrisos.
So os homens
que chegaram
e se no acharam
e os angustiados
que ultrapassaram na Vida
e se perderam na confuso;
L vamos ns!
As sombras
que se esvaram no tempo
deixaram-me
esta nsia
e o eco mltiplo
do tilintar das suas cadeias;
s que ho-de vir
mostrarei essas cadeias quebradas
e com elas repartirei
o meu desejo de ser onda
neste desfile dos tristes
que se perdem.
Seguem
rojando-se em esperanas
interrogando morte
o que a vida
Elas vo longe
ainda vm longe
e eu sigo-me atravs de mim.
SOMBRAS
Lembro-me dos caminhos que ningum pisou
ouo as vozes longnquas
dos homens que no cataram
Saudade
-de que? De quem?
Nunca vi o sol
que tenho a recordar?
Ah!
Esta mania de imaginar
e de inventar mundos
homens, sistemas, luz!
viver nas coisas, nos rumos fechados
na escurido das noites
a palpitante existncia
dos dias de sol.
Volvamos realidade
sonhador!
L vai ele
o homem
com olhos no cho.
V-se-lhe o dorso sob a camisa rota
e carrega o pesado fardo
da ignorncia e do temor.
Contudo
j foi senhor
foi sbio
antes das leis de Kepler
foi destemido
antes dos motores de exploso.
De ti
mulher perdida que cantas
de mim!
De ti
homem disperso que cantas
de mim!
De ti meu irmo
de mim
em busca de todas as fricas do mundo.
SINFONIAS
A melodia crepitante das palmeiras
lambidas pelo furor duma queimada
Cor
estertor
angstia
Sorrisos
dor
angstia
A msica
que a minha alma sente.
CONTRATADOS
Longa fila de carregadores
domina a estrada
com os passos rpidos
Sobre o dorso
levam pesadas cargas
Vo
olhares longnquos
coraes medrosos
braos fortes
sorrisos profundos como guas profundas
Fatigados
esgotados de trabalhos
mas cantam
Cheios de injustias
caladas no imo das suas almas
e cantam
L vo
perdem-se na distncia
na distncia se perdem os seus cantos tristes
Ah!
Eles cantam
CONFIANA
O oceano separou-me de mim
enquanto me fui esquecendo nos sculos
e eis-me presente
reunindo em mim o espao
condensando o tempo
Na minha histria
existe o paradoxo do homem disperso
E do drama intenso
duma vida imensa e til
resultou certeza
ASPIRAO
Ainda o meu canto dolente
e a minha tristeza
no Congo na Gergia no Amazonas
Ainda
o meu sonho de batuque em noites de luar
E nas sanzalas
nas casas
nos subrbios das cidades
para l das linhas
nos recantos escuros das casas ricas
onde os negros murmuram: ainda
O meu Desejo
transformando em Fora
inspirando as conscincias desesperadas.
NO ME PEAS SORRISOS
No me exijas glrias
que ainda transpiro
os ais
dos feridos nas batalhas
No me exijas glrias
que sou eu o soldado desconhecido
da humanidade
A minha glria
tudo o que padeo
e que sofri
Os meus sorrisos
tudo o que chorei
Um rosto triste
pelo tanto esforo perdido
- o esforo dos tenazes que se cansam
tarde
depois do trabalho
No me descobri na vida
e selvas desbravadas
escondem os caminhos
por que hei-de passar
Ento
num novo catlogo
mostrar-te-ei o meu rosto
coroado de ramos de palmeira
E terei para ti
os sorrisos que me pedes.
SAUDAO
A ti, negro qualquer
meu irmo do mesmo sangue
Eu Sado!
Esta mensagem
seja o elo que me ligue ao teu sofrer
indissoluvelmente
e te prenda ao meu Ideal
e me transforme no homem-nmero-abstracto
desconhecedor dos objectivos
na tarefa que nos consome
como o bastardo desprezado de certo mundo
nesta madrugada do nosso dia
me faa enfim
o negro-qualquer das ruas
e das sanzalas
sentindo como tu a preguia
de dar o passo em frente
para nos ajudar-mos a vencer
a inrcia dos braos musculados
KINAXIXI
Gostava de estar sentado
num banco do Kinaxixi
s seis horas duma tarde muito quente
e ficar
Algum viria
talvez sentar-se
sentar-se ao meu lado
CONSCIENCIALIZAO
Medo no ar!
Em cada esquina
sentinelas vigilantes incendeiam olhares
em cada casa
se substituem apressadamente os fechos velhos
das portas
e em cada conscincia
fervilha o temor de se ouvir a si mesma
Medo no ar!
Acontece que eu
homem humilde
UM ANIVERSRIO
Diziam cartas e telegramas
da famlia:
- Muitos parabns muitas felicidades
E um irmo doente
a me cheia de saudades
e a pobreza
calmamente consentida na existncia religiosa.
Fora do lar
um ex-virtuoso amigo que se embriaga
os nossos exportados para S. Tom
a prostituio
a angstia geral
a vergonha
No mundo
a Coreia ensanguentada s mos dos homens
fuzilamentos na Grcia e greves na Itlia
o apartheid na frica
e a azfama nas fbricas atmicas para matar
em massa matar cada vez mais homens
Eles espancando-nos
e pregando o terror.
E no mundo constri-se
no mundo constri-se.
PAUSA
H esta angstia de ser humano
quando os rpteis se entrincheiram no lodaal
e os vermes se preparam para devorar uma linda criana
em indecorosa orgia de crueldade
MUSSUNDA AMIGO
Para aqui estou eu
Mussunda amigo
Para aqui estou eu
Contigo
com a firme vitria da tua alegria
e da tua conscincia
O i Kalunga ua um bangele!
O i Kalunga ua um bangele- l-lel
Lembras-te?
A vida a ti devo
mesma dedicao ao mesmo amor
com que me salvaste do abrao
da jibia
tua fora
que transforma o destino dos homens
A ti Mussunda amigo
a ti devo a vida
No era isso
que ns queramos, bem sei
Ns somos
Mussunda amigo
Ns somos
Inseparveis
e caminhando ainda para o nosso sonho
No meu caminho
e no teu caminho
os coraes batem ritmos
de noites fogueirentas
ao ps danam sobre palcos
de msticas tropicais
Os sons no se apagam dos ouvidos
O i Kalunga ua um bangele
Ns somos.
preciso e inevitvel
como o inevitvel passado escravo
atravs das conscincias
como o presente
No abstracto
incolor entre ideias sem cor
Mas concreto
vestido do verde
do cheiro novo das florestas depois da chuva
da seiva do raio do trovo
as mos amparando a germinao do riso
sobre os campos da esperana
RECONQUISTA
No te voltes demasiado para ti mesma
No te feches no castelo das lucubraes infinitas
Das recordaes e sonhos que podias ter vivido
e dmos-lhes o corao
entreguemo-nos
SANGRANTES E GERMINANTES
Ns
da frica imensa
e por cima da traio dos crocodilos
atravs das florestas majestosas invencveis no rodar da vida
no som harmonioso das marimbas em surdina
nos olhares juventude das multides
mundos de brao de nsia de esperana
da frica imensa
debaixo da garra
sangrantes de dor e esperana de mgoa e fora
sangrando na terra desventrada pelo sangue das enxadas
sangrando no suor da roa da compulso dos algodoais
sangrando fome ignorncia, desesperos morte
nas feridas no dorso negro da criana da me da honestidade
sangrantes e germinantes
da frica imensa
negra
e clara como as manhs da amizade
desejosa e forte como os passos da liberdade
Os nossos gritos
so tamtams mensageiros do desejo
nas vozes harmoniosas das naes
os nossos gritos so hinos de amor para os coraes
florescendo na terra como no sol nas sementes
gritos frica
gritos das manhs em que nos crescem os cadveres
acorrentados
sangrentos e germinantes
da frica imensa
germinantes sob o solo da esperana
criando laos fraternos na liberdade do querer
da nsia da concordncia
sangrantes e germinantes
NA PELE DO TAMBOR
As mos violentas insidiosamente batem
no tambor africano
e a pele percutida solta-me tam-tams gritantes
de sombras atlticas
luz vermelha do fogo de aps trabalho
Vibro
em africas humanas de sons festivos e confuses
(que lnguas pronunciais em mim irmos
que no vos entendo neste ritmo?)
MASSACRE DE S. TOM
Para a Ilustre Amiga Alda Graa
Em ns
a terra verde de So Tom
ser tambm a ilha do amor
AS TERRAS SENTIDAS
As terras sentidas de frica
nos ais chorosos do antigo e do novo escravo
no suor aviltante do batuque impuro
de outros mares
sentidas
Elas vivem
as terras sentidas de frica
no som harmonioso das conscincias
includa no sangue honesto dos homens
no forte desejo dos homens
na sinceridade dos homens
na razo pura e simples da existncia das estrelas
Elas vivem
as terras sentidas de frica
porque ns vivemos
e somos as partculas imperecveis
das terras sentidas de frica.
BAMAKO
Depois de uma conferncia pan-africana em Bamako
Bamako!
ali onde a verdade gotejante sobre o brilho da folha
se une frescura dos homens
como as razes fortes sob a tpida superfcie do solo
Bamako!
ali nasce a vida
e cresce
e desenvolve em ns fogueiras impacientes de bondade
Bamako!
ali esto os nossos braos
ali soam as nossas vozes
ali o brilho esperana dos nossos olhos
se transformam imenso numa fora irrepreensvel
da amizade
secas as lgrimas choradas nos sculos
na frica escrava de outros dias
vivificando o sumo nutritivo do fruto
o aroma da terra
em que o sol desencanta kilimanjaros gigantes
sob o cu azul da paz.
Bamako!
fruto vivo da frica
de fruto germinado nas artrias vivas de frica
Ali a esperana se tornou rvore
e rio e fera e terra
ali a esperana se vitoria amizade
na elegncia da palmeira e na pele negra dos homens
Bamako!
ali vencemos a morte
e o fruto cresce cresce em ns
na fora irresistvel do natural e da vida
connosco viva em Bamako.
CRIAR
Criar criar
criar no esprito criar no msculo criar no nervo
criar no homem criar na massa
criar
criar com olhos secos
Criar criar
sobre a profanao da floresta
sobre a fortaleza impudica do chicote
criar sobre o perfume dos troncos serrados
criar
criar com olhos secos
Criar criar
gargalhas sobre os escrnio da palmatria
coragem nas pontas das botas do roceiros
fora no esfrangalhado das portas violentas
firmeza no vermelho sangue da insegurana
criar
criar com olhos secos
Criar criar
Estrelas sobre o camartelo guerreiro
paz sobre o choro das crianas
paz sobre o suor sobre a lgrima do contrato
paz sobre o dio
criar
criar com olhos secos
Criar criar
liberdades nas estradas escravas
algemas de amor nos caminhos paganizados do amor
sons festivos sobre o balanceio dos corpos em fora simuladas
criar
criar amor com os olhos secos.
FOGO E RITMO
Fogueiras
dana
tamtam
ritmo
Ritmo na luz
ritmo na cor
ritmo no som
ritmo no movimento
ritmo nas gretas sangrentas dos ps descalos
ritmo nas unhas arrancadas
Mas ritmo
ritmo
MOS ESCULTURAIS
Alm deste olhar vencido
cheios dos mares negreiros
fatigado
e das cadeias aterradores que envolvem lares
Eu vejo
as mos esculturais
dum povo eternizado nos mitos
inventados nas terras ridas da dominao
as mos esculturais dum povo que construi
sob o peso do que fabrica para se destruir
POEMA
Apetece-me escrever um poema.
Um poema soluo
resolvendo a curva interrogativa da imagem
em linha recta de afirmao;
a beleza das florestas virgens
e a preciso da engrenagem da existncia;
Um poema fechado
longo e imperceptvel
em que amor e dio entrelaados
sejam a sntese da discordncia
para ser cantado em todas as lnguas
guiado pelo som da marimba e do piano;
ritmo de batuque enxertado sobre as valsas
da outra mocidade;
harmonia de xinguilamentos
sobre o brbaro matraquear das mquinas de escrever;
grito aflitivo no vcuo
debatendo-se para encontrar a vibrao da matria
e a aspirao dos homens.
No escreverei o poema.
Direi simplesmente
que o colosso de certeza na humanidade do Universo
inapagvel
como o brilho das estrelas
como o amor dos teus olhos
com a fora na harmonia dos braos
como a esperana nos coraes dos homens.
Inapagvel
como a sensual beleza
da agilidade das feras sobre o campo
e o terror transmitido dos abismos.
Sim!
interrogao mgica de Talamungongo
do Cunene ou do Maiombe,
ao sonoro cntico de ritmo subterrneo
e dos chamamentos telricos;
aos tambores
apelando para o fio da ancestralidade
esbatida aqui e alm;
ao ponto interrogativo de Madagscar.
Sim!
s solicitaes msticas musculatura dos membros
ao quente das fogueiras endeusadas
na lenha das sanzalas
Direi sim
em qualquer poema.
Isso passa.
Cadeia de Caxias
25 de Fevereiro de 1955
O Cuanza transbordante
de ameaa e despotismo
avanava sobre a terra
Eu fugia do verde
do verde negro das palmeiras
da minha mocidade.
E ficavam tambm
as orgias religiosas dos bitos
as adivinhaes maravilhosas dos malefcios
a histeria
das crepusculares cerimnias para a vida
e para o amor
o cheiro acre do sangue
a fecundidade da terra
o objecto transformado em deus
tintas e poeiras
gotas e fragmentos de ossos
lgrimas e canes
segredos inviolveis de seitas de mistrio
humanidade e desumanidade
a poesia
e o rasto espiritual do sangue
Eu
afagava inocente o dedo da insegurana
Orava:
Tata ietu uala ku diulu
Fukamenu!
Lengenu!
O ituxi! O ituxi
paradoxo dos pecados!
Nova linguagem!
No mais as histrias contadas sombra
da mafumeira
ou doce luz duma enfumarada fogueira
nem o macaco ou o leo
o coelho ou a tartaruga
Fugir!
Deixar os reptis banquetear-se no currais abandonados
com tudo quanto criaram os anos
a recordao
da agilidade dos membros e dos troncos
das ancas e das vozes
na noite escura recortados
sobre o claro do fogo
a vibrao o ritmo
o rendilhado dos coqueiros
o cheiro da terra hmida e capinada
as vozes dos homens
o esprito
a graa da autenticidade e da certeza
sincopadas na marimba e no quissange
e sublinhados pelo tambor
o sabor doce e a alegria da tradio.
Eu fugia
e o esprito era espezinhado
nos currais abandonados.
Eu fugia
do verde negro das palmeiras
da minha mocidade
afagando o dedo da insegurana
Os dorsos!
E os dorsos simtricos encurvados sobre a terra
mugindo a rudemente com as enxadas
de macio brilho
e os cantos ritmando o esforo
a dor
e a poligamia dos afectos
as lgrimas viscosas dos decepados troncos com raiz
Tudo ficava
l longe em frica
na frica da frica.
Eu fugia
sorridente e triste
sorridente e vazio
sem terra, nem lngua, nem ptria
brincando com a aventura
tremendo ao oscilar das canoas frgeis
esperanosas
para uma metafsica mestia de conjuntura
com o estmago vazio
e o esprito
esmagado entre os malcheirosos dentes.
Trazia no sangue
o calor humano da amizade
o calor febril dos ritmos violentos da noite
e o brilho verde das folhagens
e dos olhares selvagens das avezinhas
Trazia no sangue
o amor.
Eu fugia
do verde negro das palmeiras
da minha mocidade
afagando inocente o dedo da insegurana
sorridente e triste
deixando o esprito espezinhado nos currais abandonados
Suavidade e frescura
das curvas ansiosas da terra
e a exaltao potica da vida
- suavidade e frescura para o teu dia
Alegria da amizade
nos esgares displicentes da morte
e sobre a seiva catalisadora do afecto
alegria e amizade para o teu dia
E no teu dia
se fundem tambm em mim
os anseios e as emoes
as tristezas e as iras
a certeza e a f
e todos os pequeninos tons da variada vida
misturados nos caleidoscpios do horizonte
e todas as esperanas
Fora e certeza
No bouquet de rosas
para o teu dia
Um lugar conquistado
No bouquet de rosas
para o teu dia
Neste dia
cresceram sempre rosas
E se o inverno longo,
dentro de ns
que mergulham as razes
pelas quais os homens
se alimentam.
Se o inverno longo
e as vozes se cansam
porque
o nosso caminho nico
o amor.
Neste dia
cresceram sempre rosas
Irei busc-las
s plancies mais longnquas
s montanhas menos acessveis
aos abismos
amizade
e distncia que nos une.
Neste dia crescero
sempre rosas, rosas
muitas rosas sobre o nosso amor
Para enfeitar os teus cabelos.
Nos silncios
esto as conversas que no tivemos
os beijos no trocados
e as palavras que no dissemos
nas cartas censuradas
Queimem-me antes
levem-me ao forno de cal
incinerem-me as vsceras e o crebro
e estas mos que nada podem fazer
contra as paredes
contra esta maldita porta metlica
contra estes homens armados cheios de medo
contra a tortura
NOITES DE CRCERE
Em tardes clidas
quando olhares e vozes enchem a estrada da Cuca
e l para a Lixeira
ou nos morros da Maianga
desta terra empobrecida de tudo pelo medo
e enriquecida pela certeza
ressuscitam fogo e magia
e palavra quentes de impacincia
Ao lado
algum geme
com os dedos debruados de sangue
que corre das unhas rebentadas pela palmatria
Pensa na vitria
e no h sono que chegue para os seu dias de crcere
ou sonhos que lhe preencham a solido
Oh!
quem dormir
quando ao lado h os gritos do louco
quem pulam da janela para lhe apunhalar a carne
sobre o cansao de insnias angustias e expectativa?
Quem dormir
quando assiste ao enlouquecer do melhor amigo
ali na cela ao lado
morto o esprito pelo tortura?
Por vezes
lembra-se desse magnfico sorriso de Marina
e tambm do olhar ingnuo
do jovem barbado Fidel
que fala com banga para as nuvens
nossa! nossa!
Xi ietu manu
kolokota
AQUI NO CRCERE
Aqui no crcere
eu repetiria Hikmet
se pensasse em ti Marina
e naquela casa com uma av e um menino
Aqui no crcere
eu repetiria os heris
alegremente cantasse
as canes guerreiras
com que o nosso povo esmaga a escravido
Aqui no crcere
eu repetiria os santos
se lhe perdoasse
as sevcias e as mentiras
com que nos estralhaam a felicidade
Aqui no crcere
a raiva contida no peito
espero pacientemente
o acumular das nuvens
ao sopro da Histria
Ningum
Impedir a chuva.
Cadeia da PIDE de Luanda
Julho de 1960
O CHORO DE FRICA
O choro durante sculos
nos seus olhos traidores pela servido dos homens
no desejo alimentado entre ambies e lufadas romnticas
nos batuques choro de frica
nos sorrisos de choro de frica
nas fogueiras choros de frica
nos sarcasmos no trabalho na vida choro de frica
O choro de sculos
inventados na servido
em histrias de drama negro alma brancas preguias
as mentiras choros verdadeiros nas suas bocas
O choro de sculos
onde a verdade violentada se estiola ao circulo de ferro
da desonesta fora
sacrificadora dos corpos cadaverizados
inimiga da vida
fechada em estreitos crebros de mquina de contar
na violncia
na violncia
na violncia
O IAR DA BANDEIRA
Poema dedicado aos heris do povo angolano
Quando voltei
as casuarinas tinham desaparecido da cidade
e tambm tu
amigo Liceu
voz consoladora dos ritmos quentes da farra
nas noites dos sbados infalveis
tambm tu
harmonia sagrada e ancestral
ressuscitada nos aromas sagrados do Ngola Ritmos
Tambm tu tinhas desaparecido
e contigo
a liga
o Farolim
as reunies das ingombotas
a conscincia dos que traram sem amor
Cheguei no momento do cataclismo matinal
em que o embrio rompe a terra humedecida pela chuva
erguendo a planta resplandecente de cor e juventude
Cheguei para ver a ressurreio da semente
a sinfonia dinmica do crescimento da alegria nos homens
E o sangue e o sofrimento
eram uma corrente tormentosa que dividia a cidade
Quando eu voltei
O dia estava escolhido
e chegava a hora
DEPRESSA
Impaciento-me nesta mornez histrica
das esperas e de lentido
quando apressadamente so assinados os justos
quando as cadeias abarrotam de jovens
espremidos at morte contra o muro da violncia
frica gloriosa
frica das seculares injustias
acumuladas neste peito efervescente e impaciente
onde choram os milhes de soldados
que no ganharam as batalhas
e se lamentam os solitrios
que no fizeram a harmonia numa luta unida
no esperemos os heris
sejamos ns os heris
unindo as nossas vozes e os nossos braos
cada um no seu dever
e defendamos palmo a palmo a nossa terra
escorracemos o inimigo
LUTA
Violncia
vozes de ao ao sol
incendeiam a paisagem j quente
e os sonhos
se desfazem
contra uma muralha de baionetas
CAMPOS VERDES
Os campos verdes, longas, serras, ternos lagos
estendem-se harmoniosos na terra tranquila
onde os olhos adormecem temores vagos
aceso mornamente sob a dura argila,
HAVEMOS DE VOLTAR
s casas, s nossos lavras
s praias, aos nossos campos
havemos de voltar
s nossos terras
vermelhas de caf
brancas de algodo
verdes dos milharais
havemos de voltar
frescura da mulemba
s nossas tradies
aos ritmos e s fogueiras
havemos de voltar
marimba e ao quissangue
ao nosso carnaval
havemos de voltar
Havemos de voltar
Angola libertada
Angola independente
DESTERRO
Para ti tambm
mam
h uma s palavra
nesta nova partida para o desterro
- Coragem, voltaremos a encontrar-nos
A VOZ IGUAL
Neste amanhecer vital
para os acontecimentos extraordinrios
por montes e rios, por anharas e preconceitos
caminhamos j vitoriosos
sobre a condio moribunda
Um amanhecer vital
em que se transforma as sensaes orgnicas
sobre o solo ptrio
Os homens
cuja voz descansou sob a condio e sob o dio
e construram os imprios do Ocidente
as riquezas e as oportunidades da velha Europa
mantendo os seus pilares sobre a angstia pulstil dos braos
sobre a indignidade e a morte dos seus filhos
os homens sacrificados nos traos paralelos das vias frreas
Povo negro
homens annimos no esprito da triste vaidade branca
agora construindo a nossa ptria
a nossa frica
e no trao luminoso dos dias magnficos de hoje
definem a frica solidria e esforada
contra os desvarios duma natureza incongruente
na independncia
num mundo novo com a voz igual
Chegados hora
Ressuscitar o homem
nas exploses humanas do dia a dia
Reencontrar
nos sagrados refgios das horas de angstia
os homens perdidos nos labirintos alcolicos
vcios da escravido
e socorro extremo para a fome crnica
dos dias de frio e de calor de tristeza e de alegria
dos dias de farra e dos dias de rusga
dos minutos importantssimos da existncia imediata
imprevisvel indispensvel
com dios amizades traies riso choro fora
fadiga energia nimo desnimo silncio
rudos de terramoto soltos pelas mos
ansiosas de xito e de esquecimento
e de sonoras palavras nas letras das msicas desesperadas
lanadas nos bailes de sbado sobre as poeiras dos quintais
e o desejo incontido de se realizar
de ser homem
de encontrar o calor supremo na superfcie carnal do outro
a voz amiga na laringe longnqua do outro
afagando um pouco a vida
num artifcio monstro da liberdade ansiada