Jean-Claude Bernardet ( ) O Que É Cinema
Jean-Claude Bernardet ( ) O Que É Cinema
Jean-Claude Bernardet ( ) O Que É Cinema
CULTURA
POL(TICA
Oque~
Oquee
~ Popular - R. C. Fernandes
- Amando Peixoto
OQUEE
CINEMA
SOCIEDADE
Oquee
11"'10 -
Paulo R. de Souza
t/pliB. Amaral pq
- 1011 Graziano
l[p~
INDICE
- Introduc;:ao
,
,,,....
- Realidade e Dominac;:ao
- A Arte do Real
,
- A Arte do Real? ., . , , . ,
,..
- Multiplicac;:lJo... , . . . . . . . . . . . . .
- Mercadoria " . . . . . . . . . . . . . . . .
- A Luta pela Linguagem,
,
- Nascimento de uma Linguagem .. ,
- Outras Linguagens Os Sovieticos
- A Internacional- do Cinema .. , . ,
- Uma Mercadoria e uma Dramaturgia
- Uma Mercadoria Dominante
- Divisao do Trabalho
,
- Outros Sistemas, ,
,.,
.....
"
,-. . ..
. . . ..
. . . ..
. . . ..
, ..
'
. . . ..
,
,.
, .. ,
, . . ..
, ..
7
11
11
17
23
29
31
31
48
58
61
61
63
68
Jean-<:laude Bernardet
- a Valor de Troca. . . . . . . . . . . . . . . . . ..
- A Industria do Sonho . . . . . . . . . . . . . ..
- 0 Exemplo da Personagem Individual e
da Personagem Coletiva. . . . . . . . . . . . ..
- Publicos Diversificados . . . . . . . . . . . . ..
- as Cinemas Novos .... , .. . .. . .. . .. . ...
- Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..
- Uma Nova linguagem
"
- Outras Tend~ncias. . . . . . . . . . . . . . . . ..
- 0 que 0 Cinema? . . . . . . . . . . . . . ....
73
77
.~
!i
80
87
93
100
104
113
117
INTRODUc;AO
~/'.
Jean-Claude prnardet .
I:
ram tomar, depois de um cine jornal pr,ovavelmen
te enfadonho mostrando a inauguraCao/ de uma su
cursal de banco, talvez mais um documentario con
tando as facanhas de uma grande empresa que cria
porcos au constr6i uma barragem, mais uns trailers
anunciando fi/mes das proximas semanas. Todos
.88es filmes, naturalmente, menos os publicitarios,
precedidos de certificados de censura ou de "pro
duto brasileiro" que ficam horas na tela ocupando
o tempo da gente. Nao sao realmente esses os fil
mes que voce queria ver, mas aguentou paciente
mente, ou vaiou 0 documentario, ou aproveitou
para ir ao banheiro. Veio entao mais urn certifi
cado de censura com 0 tItulo do filme que voce
queria ver. Quase certo, esse filme durou cerca de
uma hora e meia, contava uma estoria interpreta
,de por atores; provavelmente voce nunca tinha
vllto este fi/me antes, mas algo semelhante voce
poder6 ja ter visto, principalmente se 0 filme de
um gAnero como 0 Kung-Fu, ou 0 Western, ou 0
pollcial, ou a pornochanchada, ou entao de urn
8utor como lngmar Bergman, Fellini, Glauber
Rocha ouSam Peckinpah. Se 0 filme era de Peckin
pah, voce acompanhou a estoria valendo-se das Ie
g.ndas escritas embaixo da tela, ja que nao enten
de bern 0 ingles. Se 0 filme era brasileiro, seguiu os
d"'ogos em portugues, provavelmente com alguma
dlflculdade porque 0 som nao era born, como tam
_.m nao era boa a projeeao que as vezes ficava
. ,ura au totalmente desfocada. E tudo isso ocor-
r:
-\"1
,J
I)
o que e Cinema
.REALIDADE E DOMINACAO
A arte do real
No dia da primeira exibicao publica de cinema
28 de dezembro de 1895, em Paris -, um homem
de' teatro que trabalhava com magicas, Georges
M~lies, foi falar com Lumiere, um dos inventores
do cinema; queria adquirir um aparelho e Lumiere
o desencorajou, disse-Ihe que 0 "cinematographo"
nao tinha 0 menor futuro como espet4culo, era
um instrumento cientlfico para reproduzir 0 movi
mento e s6 poderia servir para pesquisas. Mesmo
que 0 pClblico, no inlcio, se divertisse com ele, seria
uma novidade de vida breve, logo cansaria. Lumif~re
enganou-se. Como essa estranha m4quina de aus
teros cientistas virou uma m4quina de contar esto
rias para enormes plat~ias, de geracao em geracao,
.
durante ja quase um skulo?
12
Jean-Claude Bemardet
o que e Cinema
de, como 0 Picapau Amarelo ou 0 Magico de Oz,
ou urn filme de ficcao cientifica como 2001 ou
Contatos Imediatos do Terceiro Grau,a imagem
cinematogratica perm ite-nos assistir a essas fanta
sias como se fossem verdadeiras; ela confere reali
dade a essas fantasias. Alias, quem primeiro perce
beu que 0 fantastico no cinema podia ser tao real
como a realidade foi 0 mesmo MEmeS. E por acaso.
Estava ele filmando na rua (acabou comprando na
Inglaterra a camara que nao conseguira na Franca),
quando a maQuina enguicou, e depois voltou a
funcionar. Na tela, viu-se 0 seguinte: numa rua de
Paris cheia de gente passa um onibus que, de repen
te, se transforma num carro funebre. ~ que durante
a interrupcao da filmagem 0 onibus tinha ido em
bora e urn carro funebre ficara no lugar. 56 que na
tela ficou uma magica com toda a forca de uma reali
dade. No cinema, fantasia ou nao, a realidade se
impoe com toda a forca.
Nao datam de entao os esforcos de cientistas e
artistas para reproduzir a realidade com meios arti
ficiais. A pintura figurativa e a fotografia podem
dar-no,s essa impressao. ~ a maca ou 0 jarro de flo
res que, num quadro pintado a oleo, parecem tao
reais como se fossem verda~eiros. au 0 flagrante
do nena tomando banho, pedac6 de realidade que
guardamos num album. Mas ao quadro ou a foto
grafia falta 0 movimento, fundamental para produ
zir a impressao de realidade. Hi seculos tenta-se
criar imagens em movimento. Ja no seculo XVII,
13
14
Jean-Claude Bemardet
"ca
o que eCinema
ela esta transformando a produc;ao, as relac;oes de
trabalho, a sociedade, com a Revoluc;ao Industrial;
ela esta impondo seu domlnio sobre 0 mundo oci
dental, colonizando uma imensa parte do mundo
que posteriormente viria a se chamar de Terceiro
Mundo. (Querendo se informar sobre a domina
~o burguesa, pode ler 0 que Ii 0 Capitalismo? nes
ta mesma colec;ao.) No bojo de sua euforia domi
nadora, a burguesia desenvolve mil e uma m~qui
nas e tl!cnicas que nao 56 facilitarao seu processo
de dominac;ao, a acumulac;ao de capital, como cria
rao um universo cultural sua imagem. Um univer
so cultural que expressara 0 seu triunfoe que ela
impora as sociedades, num processo de dominac;ao
cultural, ideologico, est~tico. Dessa ~poca, fim do
~culo XIX, inlcio deste, datam a implantac;ao da
luz eletrica, a do telefone, do aviao, etc., etc., e, no
meio dessas maquinas todas, 0 cinema sera um dos
trunfos maiores do universo cultural. A burguesia
pratica a literatura, 0 teatro, a musica,etc., eviden
temente, mas essas artes j~ existiam antes dela.
A arte que ela cria ~ 0 cinema.
Nao era uma arte qualquer. Reproduzia a vida
tal como ~ - pelo menos essa era a ilusao. Nao
deixava por menos. Uma arte que se apoiava na m~
quina, uma das musas da burguesia. Juntava-se a
tecnica e a arte para realizar 0 sonho de reproduzir
a realidade. Era fundamental 'ser uma arte baseada
numa maquina, baseada num processo qu(mico
que permite imprimir uma imagem numa pellcula
16
Jean-Claude Bernardet
o que eCinema
17
r
sensfvel, tornar visfvel esta imagem grac;:as a produ
tos qu fmicos, projetar esta imagem com outra
m~quina, e isto para uma grande quantidade de
pessoas. Essa complexa tralha mecanica e qu(mica
permitiu afirmar uma outra ilusao: uma arte obje
tiva, neutra, na qual 0 homem nao interfere. Urn
poema, sabe-se que foi escrito por alguem, uma
musica, composta, tocada por alguem. Ate uma
paisagem ou urn retrato, por mais "fiel" que seja ao
modelo, h~ a mao do pintor que coloca seus gostos,
sua preferencia por certas cores, sua simpatia ou
antipatia pela pessoa que ele pinta. Agora, 0 "olho
mecanico", como alguns chamaram 0 cinema, ele
nao. Ele nao sofre a intervenc;:ao da mao do pintor
ou da palavra do poeta. A meeanica elimina a inter
venc;:o e assegura a objetividade. Portanto, sem
intervenc;:ao, sem deformac;:6es, 0 cinema coloca na
tela pedac;:os de realidade, coloca na tela a propria
realidade. 1:, pelo menos, a interpretac;:ao do cine
ma que se tenta impor. E durante muito tempo
aceitou-se essa interpretac;:ao. Hoje .-:-" apesar de as
coisas terem mudado muito, como veremos
ainda ha em nos restos bern fortes dessa maneira de
entender 0 cinema. 0 Presidente da Republica le
you urn tOmbo. Como nao, se eu vi no cinema?
Hitler danc;:ou no Trocadero no dia em que as
tropas alemas tomaram Paris, urn barato, t~mque
ver 0 filme. 0 Dr. Artur estudou medicina em Paris
e voltou para 0 Brasil, ficou praticando na Zona do
Escorpiao, 'ta no filme. 0 filme, ter visto na tela:
A arte do real?
1: verdade que e necessario forc;:ar urn pouco a
barra para chegar a essa compreensao do cinema.
Por exemplo, a imagem cinematografica nao repro
duz real mente a visao humana. Nosso campo de
visao e maior que 0 espac;:o da tela. Sentando-se no
meio de urn cinema, ah~m da tela, 0 nosso olhar
abrange tambem as partes laterais, superior e infe-
rior. Mesmo no cinerama, tela muito larga, oolhar
abrange as partes superior e inferior da tela. Vemos
em cor: quando 0 cinema surgiu, a imagem era em
preto e branco, portanto nao natural, mas artifi
cial. E mesmo com 0 cinema em cor que se implan
tou nos anos 50, as cores nao sao naturais. Perce
be-se que foi necessario deixar muita coisa de lade
18
Jean-Claude Bemardet
o que eOnema
da a impressao de movimento continuo, parecido
com 0 da realidade. E s6 aumentar ou diminuir
a velocidade da filmagem ou da projec;:ao para que
essa impressao se desmanche.
Mas por que ter passado por cima de tanta coisa
para fazer desaparecer os aspectos artificiais e ter
apresentado 0 cinema como reproduc;:ao do olhar
natural e da realidade? Quando obviamente 0 cine
ma e urn artiffcio, quando obviamente os filmes
sao feitos por pessoas. Por que ter mascarado tudo
o que pudesse desmentir essa pretensa naturali
dade? Por que ter feito de conta que a realidade
expressava-se diretamente no cinema? Se alguem
fizer uma determinada afirmac;:ao - 0 regime brasi
leiro e ditatorial, por exemplo -, posso responder
que nao e, que nao penso assim, que esse e 0 pen
samento da pessoa que falou, mas pensamento su
jeito a controversias. Este e 0 ponto de vista de
quem falou. Mas suponhamos que, grac;:as a alguma
magica, a pessoa que fala sumisse e que essa frase
ficasse solta, como uma afirmac;:ao nao de alguem
em particular, mas como uma frase que existe em
si, independentemente de qualquer pessoa que a
proferisse. Eu nao poderia mais dizer que e um
ponto de vista, que e a fala de alguem. Seria uma
frase sem autor, sem intervenc;:ao humana. Nao sei
se por este exemplo deu para entender aonde quero
chegar, mas e um pouco 0 que acontece com 0
cinema. Dizer que 0 cinema e natural, que ele re
produz a viscIo natural, que coloca a propria reali
19
20
Jean-Claude Bernardet
o que e Cinema
uma imposic;:ao da burguesia. Isto ~supor que a ma
quina e todo 0 processo de realizac;:ao do cinema
teriam caracter(sticas e significac;:oes independentes
de quem os usa. Ao que se pode responder que nun
ca uma maquina tern uma significac;:ao em si, ela
sempre significa 0 que a fazem significar (embora
seja urn pouco mais complicado do que i55O). Em
outras palavras, podemos dizer que uma tknica
nao se impoe em si. Dela se apropria um segmento
da sociedade e e essa apropriac;:ao que Ihe da signi
ficac;:ao. ~ bastante simples provar que a burguesia
sempre procurou elaborar uma esterica que apre
sentasse as obras como expressao do real. Uma
prova entre mil outras posslveis sao as publicidades
de divertimentos populares que Vicente de Paula
Araujo levantou nos jornais do Rio numa ~poca an
terior ao cinema. Em alguns parques de dlvers6es,
apresentavam-se pinturas circulares de 1800 ou
3600 , os chamados panoramas. De um deles, re
presentando a "Entrada da Esquadra" e, dizia a
publicidade: "0 efeito extraordinario desta pintu
ra produz no espectador a mesma impressao da
realidade, como se 0 observador estivesse no lugar
verdadeiro". De outro sobre a "Descoberta do
Brasil": "oferece ao visitante a sensac;:ao igual aque
poderia ter observando 0 fato verdadeiro". A res
peito de uma fotografia exposta publicamente mos
trando 0 Mosteiro de Sao Bento: "reproduzido
com tal fldelidade, precisao e minuciosidade que
bern se via que a coisa tinha sido feita pela pr6pria
21
22
Jean-Claude Bemardet
\ 0 que e Cinema
\(
mao da natureza e quase sem intervenc;;ao do ar
ti51a". E51as frases indicam claramente 0 quanto se
ansiava por espetikulos que pudessem ser ofere
cidos como reprodw;ao do real, eo cinema veio a
calhar para se encaixar nesta Iinha e para refon;a-Ia.
Outros afirmam que pouco importa que se diga
que 0 cinema reproduz ou nao 0 real, e natural
ou artificial, nao importa 0 cinema em si, importa
o que dizem os filmes, 0 seu conteudo. I: pouco
relevante que dois filmes sejam sustentados pela
impressao de real idade, mas e relevante que um seja
contra determinado movimento operario, e outro a
favor. Urn fuzil e sempre um fuzil, 0 que e signifi
cativo nao e 0 fuzil, mas sim quem 0 maneja e con
tra quem e rnanejado.
Nada do que foi dito ate agora revela urn com
pic: um burgues vilao que teria resolvido apoderar
-se do cinema para dominar os pobres espectadores
desprevenidos. Trata-se de processos historicos, di
ficeis de perceber enquanto estao-se desenvolven
do, sempre sujeitos a interpretac;;oes amb (guas.
Quando publici51as escreviam as frases acima que
tirei de V. de Paula Araujo, e evidente que eles
nao tinham 0 olhar maldoso e brilhante de quem
pensa: "Estou enganando a populac;;ao!". Tudo isso
foi sendo percebido lentamente e essa critica a
impressao de realidade e ao cinema como expressao
do real sO se desenvolveu a partir dos anos 60; e
sintoma de uma crise que existe no cinema-e, de
modo geral, na estetica e nas linguagens artisticas
23
Multiplical;ao
Outro fator que possibilitou a implantac;;ao do
cinema como arte dominante e uma caracteristica
tecnica: 0 fato de se poder tirar copias. Quando
assistimos a urn show, uma pec;:a de teatro, confe
rencia, aula, cantor, atores, conferencista ou pro
fessor tern necessariamente de estar presentes e
sempre que estiverem ausentes nao havera show ou
aula. A necessidade dessa presenc;;a faz com que
cantor, autores ou professor 50 possam entrar em
contato com seu publico num unico lugar por vez
e sempre com uma quantidade de publico limitada
pelas dimensoes da sala. Com 0 cinema, e diferente.
A pel icula que se bota na maquina e sobre a qual
se imprime a imagem e um negativo que, ap6s a
filmagem, sera revelado e montado para se chegar
a uma matriz, da qual se podera tirar uma quanti
dade em princlpio ilimitada de capias. Esse fenc
meno permite que 0 mesmo produto - 0 filme
seja apresentado simultaneamente numa quantida
de em prindpio ilimitada de lugares para um pu
24
Jean-Cloude Bernardetj
a que e Qnemo
las, Amsterda, Barcelona, Milao, Calcuta, Cinga
pura, etc. E logo tais escritarios tamb~rn espalhar
-se-iam pela Asia e Am~rica latina. Imaginemos
urn pais capitalista, industrializado, com uma po
pulac;:ao de razoavel poder aquisitivo e um amplo
mercado interno. Os produtores de cinema vao en
contrar urn publico suficientemente rico e numeroso
que podera nao s6 cobrir os gastos feitos para deter
minado filme como tambem ja proporcionar lucros.
o produtor podera entao comercializar suas capias
para fora de seu pais a urn prec;:o ainda mais barato,
j a que seu investimento tenl sido coberto no merca
do interno de seu pa IS. A urn prec;:o tao barato que
os palses menos ou nao industrializaqos nao pode
rao concorrer. E 0 que acontece por exemplo no
Brasil: a c6pia que chega aqui de urn filme, por
exemplo, americano, que ja se pagou no seu mer
cado de origem, custa infinitamente mais barata
que uma produc;:ao brasileira que deve, na sua tota
lidade, pagar seus gastos no proprio Brasil. Em conse
quencia, nestes palses, 0 circuito de eXibic;:ao que
se cria e em func;:ao da produc;:ao importada. Foi 0
que possibilitou que inicialmente cinematografias
europeias como a francesa, italiana, alema, sueca
e dinamarquesa dominassem 0 mercado brasileiro,
ate a guerra de 1914-18 que provocou 0 seu desmo
ronamento e sua substituic;:ao pelo cinema norte
-americano. Ate hoje, os palses subdesenvolvidos
enfrentam essa situac;:ao. As vezes, pode ocorrer
que a insuficiente industrializac;:ao dos palses domi
25
26
Jean-Claude Bemardet
o que e Cinema
quantidade de filmes estrangeiros que podem pas
sar nas salas, ou 0 Brasil, que criou uma reserva
de mercado para a sua produc;:ao: os cinemas devem
obrigatoriamente exibir filmes brasileiros durante
determinada quantidade de dias por ano. As legis
lac;:oes protecionistas em geral sao bastante debeis.
au porque os grandes produtores conseguem fura
-las grac;:as a diversos expedientes, por exemplo as
sociando-se a produtores locais ou mesmo produ
zindo nos pr6prios pafses. Eo caso da Inglaterra,
onde cerca de 90% do capital cinematografico e
de origem americana. au porque os Estados Uni
dos se valem de diferentes forl)1as de pressao para
amenizar 0 efeito de tais legislac;:oes. Na Franc;:a, a
primeira grande discussao que houve sobre a limi
tac;:ao de importac;:ao de filmes deu-se no fim da Se
gunda Guerra, no quadro das discussaes sobre a
"ajuda" que os Estados Unidos prestar-Ihe-iam para
o esforc;:o de reconstruc;:ao. a Brasil nunca conse
guiu enfrentar realmente a importac;:ao do filme
americano, porque esta importac;:ao e sempre vincu
lada a exportac;:ao de materias-primas, tal como 0
cafe, ou produtos manufaturados, sapatos por
exemplo. Diante da possfvel restric;:ao a importa
c;:ao de filmes, os Estados Unidos respondem com a
amea~ de restric;:ao a importac;:ao de produtos que
pesam na balanc;:a comercial brasileira. Mas nao se
deve de modo algum pensar que a dominac;:ao cine
matografica 56 se exerce sobre os pa fses subdesen
volvidos. Ela pode se exercer de um pafs industria
27
Jean-Claude Bernardet
28
a que ~ Cinema
fundamente marcada pela presenca de um cinema
legendado. E isto repercute sobre nossa relaCao
com 0 cinema, bem como, por exemplo, sobre as
salas de cinema: por que uma boa acustica, se 0
cinema e lido e nao ouvido?
Mercadoria
I: tambem a partir de reprodUl;ao de c6pias que
se passou a definir 0 cinema como mercadoria. 0 .
que e a mercadoria cinematografica? Quando se
compra um quilo de arroz, um par de sapatos ou
um quadro, a mercadoria e um objeto concreto.
Mas 0 espectador nao compra um filme na bilhe
teria, ele compra uma entrada que Ihe da direito a
sentar numa poltrona durante um tempo determi
nado para olhar umfilme. E uma mercadoria abs
trata que se assemelha nao ao quadro ou ao livro,
mas a uma mercadoria tipo transportes publicos.
Quando se compra uma passagem, nao se adquire
um onibus ou um aviao, mas sim 0 direito de ocu
par uma pol trona para ser transportado de um
lugar para outro. 0 cinema tem outra caracterlsti
ca em comum com os transportes publicos: e uma
mercadoria que nao se estoca e e iminentemente
perec(vel. A poltrona que nao e "vendida" para
uma determinada viagem nunca mais sera vendi
da. A mesma coisa com 0 cinema. As dezoito ho
29
30
Jean'{;laude Bernardet
..
32
Jean-Claude Bernardet
o que e Cinema
primeira metade do seculo XX. A linguagem desen
volveu-se, portanto, para tomar 0 cinema apto a
contar est6rias; outras op~oes teriam side possfveis,
qu~ 0 cinema desenvolvesse uma linguagem cientf
fica ou ensaistica, mas foi a Iinguagem da fic~ao
que predominou.
as passos fundamentais para a elabora~ao dessa
Iinguagem foram a cria~ao de estruturas narrativas
e a rela~ao com 0 espa~o. Inicialmente 0 cinema sO
conseguia dizer: acontece isto (primeiro quadro), e
depois: acontece aqujlo (segundo quadro), e assim
por diante. Urn saito qualitative e dado quando 0
cinema deixa de relatar cenas que se sucedem no
tempo e consegue dizer "enquanto isso". Por
exemplo, uma persegui~ao: veem-se alternadamen
te 0 perseguidor e 0 perseguido, sabemos que, en
quanta vemos 0 perseguido, 0 perseguidor que nao
vemos continua a correr, e vice-versa. Obvio, para
hoje. Na epoca, a elabora~ao de uma estrutura nar
rativa como esta era uma conquista nada 6bvia.
Num dos primeiros filmes de Melies, vemos uma es
trada, uma casa, urn carro; 0 carro se desgoverna e
atravessa a parede da casa. No quadro seguinte, ve
mos uma sala de jantar, uma fam Ilia alm~ando
tranquilamente; de repente, 0 carro irrompe na
sala pela parede. E 0 mesmo acidente que ja t1nha
mos visto de fora no quadro anterior algum tempo
antes. Como se 0 filme tivesse recuado no tempo.
Hoje, organizar-se-ia a narra~ao colocando 0 exte
rior: a estrada, a casa, 0 carro andando; 0 interior: a
33
34
Jean-Claude Bemardet
o que eCinema
/'
35
36
Jean-Claude Bemardet
o que e Cinema
sao colocadas umas ap6s as outras. Essa reuniao das
imagens, a montagem, e enta~ uma atividade de
sfntese. E com 0 cineasta americano D. W.Griffith,
cujos filmes Nascimento de uma Nar;ao (1915) e
Intoleranda (1916) marcam 0 fim do cinema pri
mitivo eo inrcio da maturidade lingufstica. Poder
-se-ia discutir longamente sobre as formas lingu fsti
cas que Griffith inventou ou nao, em todo casofoi
em seus filmes que as varias formas que ele e outros
vinham intuitivamente pesquisando se organizaram
num sistema. A partir dele, e numa epoca em que 0
cinema ainda era mudo, ve-se como momentos
basicos da expressao cinematogratica: 1) a selec;:ao
de imagens na filmagem; chama-se tomada a ima
gem captada pela camara entre duas interrup~oes;
2) ()rganiza~ao das imagens numa sequencia tempo
ral na montagem; chama-se plano uma imagem
entre dois cortes. Essas indica~oes deixam c.laro
que a Iinguagem cinematogratica e uma sucessao de
selec;:oes, de escolhas: escolhe-se filmar 0 ator de
perto ou de longe, em movimento ou nao, deste
C;>U daquele angulo; na montagem descarta-se deter-,
minados pianos, outros sao escolhidos e colocados
numa determinada ordem. Portanto, um proc~so
de manipula~ao que vale nao sO para a fic~aocomo
tambem para 0 documentario, e que torna ingenua
qualquer interpreta~ao do cinema como reprodu
~ao do real.
'
Partindo dessas opera~oeslingu fsticas, teari
cos tentaram escrever gramMicas cinematograticas,
37
38
Jean-Claude Bernardet
o que e Cinema
pensar nos pianos nao em si, mas na relac;:ao que
.eles mantem entre si. 0 que importa nao etanto 0
tamanho do plano em si, mas 0 fato de um plano
ser maior ou menor que um outro.
Tentou-se atribuir significac;:oes aos pianos.
Assim 0 PP e 0 PPP seriam mais voltados para a
vida interior, para as reac;:oes emocionais dos perso
nagens, enquanto 0 PA e melhor para descrever os
personagens agindo: um plano relativamente pr6xi
mo, nao suficientemente para que predomine a ex
pressao emocional do ator, mas suficientemente
para que ele seja isolado do meio e que a tonica
seja colocada no que ele faz. Jei no PM sao valori
zadas as relac;:oes entre 0 personagem eo meio,ou
entre os personagens. Enquanto 0 PP e PPP seriam
mais I(ricos, 0 PG, por mostrar amplas paisagens,
seria mais buc61ico ou panteista. Do mesmo modo
atribuiu-se significac;:oes aos angulos: a posic;:ao
horizontal seria sempre preferivel para as cenas de
ac;:ao ou as cenas de aproximac;:ao emocional; jii a
camara baixa tende a enaltecer 0 personagem, dan
do-Ihe um tom mais her6ico, enquanto a camara
alta, que olha de cima para baixo, diminuiria 0
personagem, expressaria uma situac;:ao de opressao.
Mas percebeu-se que nem os plarios, nem os
angulos, nem nada tem realmente uma significac;:ao
em si. De fato, 0 mesmo PP tera implicac;:oes com
pletamente diferentes conforme ele vier depois de
um PA (se tivermos uma aproximac;:ao PM-PA-PP
de um homem, teremos uma aproximac;:ao paula
39
40
Jean-Claude Bemardet
o que e Cinema
mentos sejam apresentados simultaneamente (0 ho
mem e a fachada do predio: a. significac;:ao nasce.da
relac;:ao .entre estes dois elementos), quer sucessiva
mente, grac;:as a urn movimento de camara (a cama~
ra filma. 0 homem em panoramica ou faz urn tra"
veling ate mostrar 0 grande predio). Decorre do
fato de os elementos adquirirem significac;:ao pela
sua inserc;:ao num conjunto, num contexto, que
esta significac;:ao nunca e precisa, delimitada, mas
ao contnirio sempreenvolta numa certa ambigiii
dade. Realmente, 0 plano mastra urn homem e um
predio, e sobre isto nao paira duvida, mas a signi
ficac;:ao ou significac;:oes que nascem dessa aproxi
mac;:ao sao ambiguas.
Essas operac;:oes linglifsticas que esquematizei
aqui - selec;:ao/montagem - foram usadas, princi
palmentB, dentro do quadro que tracei acima: para
contar est6riase sem ferir .a sacrossanta impressao
de realidade. Mas como isso, se a cada instante a
imagem que esta na tela muda, se a camara se des
loca, vai para cima e para baixo? Como, diante de
tamanha agitac;:ao, 0 espectador poderia ter a ilusao
de assistir a urn pedac;:o de realidade? Como nap
"atrapalhar" 0 enredo, a transmissao das emoc;:oes
dos personagens com essa linguagem? Como fazer
para que, depois da sessao, 0 espectador se lembre
mais do enredo e dos personagens, que das movi
mentac;:oes da camara? Para isto, foi necessario de
senvolver uma linguagem que passassecomo que
despercebida. Estabeleceu-se, por exemplo, urn
41
42
Jean-Claude Bernardet
o que e Cinema
personagem, que seja um ponto de vista. ~ a cha
mada camara subjetiva, quando um personagem
sentado ou cafdo no chao ve outro de baixo para
cima, ou entao 0 homem cafdo visto pelo outro
. justificara a camara alta. Disfarr;:a-se dessa forma
a. intervenl;ao do cineasta, a presenl;a do narrador.
Ou entao quando se tem uma montagem do tipo
"campo contra campo", no caso, por exemplo, em
que dois personagens estao conversando e vemos
de face ora urn ora outro: a camara faz como se, al
ternadamente, estivesse no lugar de um e depois de
outro personagem. ~ 0 mesmo tipo de montagem
que encontramos nos celebres duelos entre pisto
leiros com que se costumava encerrar os westerns
clchsicos: a viscio sucessiva que temos de urn e do
outro cowboy corresponde ao ponto de vista do
outro. Essa camara subjetiva que permite disfarl;ar
a presenl;a do narrador deve ser operada sem ex
cesso, porque 0 excesso pode justamente atirar a
atenl;aO sobre aquilo que se pretendia ocultar. Por
exempJo, se se colocar a camara no Jugar do que
seria a cabeca de um homem andando e 0 plano
mostrar de cima para baixo duas pernas caminhan
do, de repente a camara torna-se muito presente,
o recurso chama a atenl;aO. Mais ainda quando se
faz urn filme inteiro com camara subjetiva, como
A Dama do Lago (Roberto Montgomery, 1947): e
como se a camara dissesse "eu"o tempo todo, e 0
ator s6 aparece tres ou quatro vezes no filme, quan
do a camara passadiante de um espelho.
43
44
Jean-elaude Bernardet
o que If Cinema
nhas. 0 homem que perdeu a gravata de um plano
para outro. 0 erro de continuidade revela 0 espeta
culo, revela que 0 filme e uma composic;:ao artifi
cial e nao a vida. Por isso tambem a verdadeira ca
c;:ada que os espectadores promovem aos erros de
continuidade: e botar 0 dedo no calcanhar de Aqui
les, pegar em flagrante os artifices do sonho. Don
de todaa curiosidadeque cerca a feiturado cinema:
como se faz isto? E aquilo? Donde tambem a piada
de Mankiewicz em A Condessa Desca/~a (1954):
Ava Gardner entra no mar com maio de uma cor e
sai com outro de cor diferente. Nao faltou quem
festejasse a descoberta. Logo adiante, Mankiewicz
vingava-se: percebia-se que 0 maio tinha duas cores.
.Com essa Iinguagem transparente - cujas menti
rinhas se tenta surpreender - estamoS longe, por
exemplo, do final do filme de Antonioni, Profissao:
reporter, em que a camara mostra urn homem no
seu quarto, passa pela janela gradeada, da urna vol
ta pelo patio e se detem em outros personagens,
ouvimos um tiro, a camara entra pela porta do
mesmo quarto e encontra 0 homem morto e a ja
nela gradeada. Ai, nada justifica 0 movimento da
camara, que revela inclusive 0 canher artificial
da cenografia (pois, durante 0 movimento, sem
interrupc;:ao do funcionamento da camara, foi
necessario desmontar a janela para deixar passar 0
aparelho e remonta-Ia depois), senao a vontade do
realizador de narrar daquela maneira e nao de
outra. 0 narrador torna-se plenamente presente, a
4S
Jean-Claude Bernardet
46
D que eCinema
47
48
Jean-C/aude Bemardet
o que e Cinema
Essa II uma experiencia .que Kulechov teria feito
nos anos 10. Em 19 faz um pequeno filme emseis
pianos: prato de comida - rosto de um homem
crian~a brincando - rosto de um homem - um cai
xao - rosto de um homem. Quem viu 0 filme con
cordou que 0 c~lebre ator Mosjukin interpretava
maravilhosamente 0 desejo, a ternura e a tristeza.
56 que... os tres pianos de Mosjukin eram exata
mente 0 mesmo. Os sentimentos lidos na cara do
ator foram interpreta~5es dos espectadores, as
quais nascem de seus valores (a fome diante da co
mida, a ternura diante da crian~a), mas valores pro
vocados naquele momento pela aproxima~ao das
imagens. Ternura ou tristeza nao sao expressas pelo
filme; elas resultam da rea~ao do espectador diante
da justaposi~ao de duas imagens. E como se nao se
pudesse ver duas imagens seguidas sem estabelecer
entre elas uma rela~ao significativa. Quem desen
volvenl esta teoria da montagem e Eisenstein, para
quem de duas imagens sempre nasce urna terceira
significa~ao. Ere ve ai a estrutura do pensamento
dialetico em tres fases: a tese, a antitese e a s(ntese.
Essa montagem nao reproduz 0 rea I, nao 0 maca
queia, ela e criadora. Nao reproduz, produz. Ja
que a estrutura da montagem ea estrutura do pen
samento, 0 cinema nao tera por que se limitar a
contar est6rias, ele podera produzir ideias. 0 que
vai guiar a montagem nao sera a sucessao dos
fatos a relatar para contar uma estoria ou descrever
uma situa~ao, mas 0 desenvolvimento de urn racio
49
:;1
50
Jean-Claude Bernardet
o que e Cinema
51
.~
...,
~
]
~
.g
l:!;:s
~
9
~
...
...
52
Jean-Claude Bemardet
o que eCinema
fistas a inumeras partes da URSS e montava ma
terial nao filmado por ele. A Sexta Parte do Mundo
(1926) e 0 exemplo mais complexo desse tipo de
trabalho: com material proveniente das mais diver
sas regioes da URSS e filmado nas mais diversas
situa~oes, ele constr6i, pela montagem, uma ima
gem do povo revolucionario. Para Vertov, a filma
gem deve ser a reprodu~o do real, a capta~ao do
real sem interven~ao (sonhava ate com a. camara
oculta que permitiria filmar a realidade sem alte
ra~ao), mas 0 resultado final, 0 filme, nao reprodu
zia realidade imediata alguma, era uma constru~ao
cinematografica que devia reconstruir 0 dinamismo
do povo revolucionario de urn modo mais profun
do que 0 real imediato poderia oferecer.
Fora da URSS, existiram outros movimentos
que nao se voltaram para a tentativa de reproduzir
o real. I: 0 caso, por exemplo, do Expressionismo
que vigora na Alemanha nos anos 20 e 30. Forte
mente influenciado pela Jiteratura e pelas artes
plastic~s, este cinema contava est6rias, mas diga
mos est6rias fantasticas, e as imagens que mostrava
tinham pouco a ver com a realidade cotidiana que
nos cerca: os espa~os, a arquitetura, os objetos
lembravam, sem duvida, ruas, casas, florestas, mas
totalmente "deformadas". 0 que se procurava era
expressar uma realidade interior, era como 0 ci
neasta-poeta sentia a realidade. A realidade e a rea
Iidade interior: nao existe outra senao aquela que
vivemos subjetivamente. Uma cenografia cheia de
53
S4
Jean.claude Bemardet
o que e Cinema
SS
'U
c"'tlir.'l.'j'lllnTi Tn trlret""F'
ril.-,,,..-. -.
rTfrrw"f777777TYiW,}If*?iTW770,*
Jean-Claude Be1l7illrdet
S6
. ;"-,""'!,'..,.
ii!!t _g""'C$
Oqu~\e Cinemtl
57
.
Jean-elaude BeJ,det
58
. 0 que eCinema
A Intemacional do Cinema
Por mais diversos, heterogeneos e antagonicos que
sejam todos esses exemplos que citei, desde os ci
neastas sovieticos e ingleses ate os surrealistas fran
ceses, pelo menos urn ponto em comum eles tern:
eles se opoem ao sistema cinematogrcifico dominan
te, como forma de produc;:ao, como tematica, como
Iinguagem, como relacionamento com 0 publico.
Foram fundadas organizac;:5es para viabilizar a pro
duc;:ao e circulac;:ao desse cinema, como a Kino, que,
nos anos 30, projetava filmes nas ruas de bairros
operarios em Londres, ou a Liga Internacional do
Cinema Independente, fundada na Suic;:a em 1929
e voltada principalmente para 0 cinema de van
guarda, mas que tambem veicu lava fjlmes marcada
mente de esquerda e lutava contra a censura.
Assim, a Liga Cinematografica Holandesa eo Clube
Cinematografico de Londres foram fundados para
exibir 0 Encourat;ado Potemkin, entao proibido em
diversos parses europeus. 0 pessoal da Kino, por
exemplo, 50 podia considerar 0 da Liga Internacio
nal burgueses esteticistas e decadentes. No entan
to, havia entre estas duas tendencias uma especie
de alianc;:a tacita: embora desvinculada do prole
59
..."
"
'"
;""'''_.c
c:c.~~_=~~_~_~~~_"
UMA MERCADORIA
E UMA DRAMATURGIA
62
Jean-Claude Bemardet
o que eCinema
de desprezar nenhum espectador potencial. Um fil
me marcadamente cat61ico poderia desagradar aos
protestantes e vice-versa; acentuadas posic;:5es poll
ticas afastariam seus adversarios, etc. Quando um
tema polemico e abordado por urn grande produ
tor em filme destinado a amplo consumo, e que
este tema ja foi bastante absorvido pela sociedade,
ja deixou de ser tao polemico. 0 lanc;:amento de
Coming Home, urn filme recente com Jane Fonda,
ou ate de Cora~oes e Mentes, por exemplo, ocor
rem quando a guerra do Vietna esta acabando, os
acordos foram assinados, as tropas estao sendo
retiradas, ou ja foram retiradas. 0 filme deve
sempre operar sobre uma espocie de media, as ares
tas tern de ser aparadas. A necessidade de lucro
tende a homogeneizar os produtos e homogeneizar
os publicos. As diferenciac;:5es religiosas, pollticas,
nacionais (0 alvo e 0 mercado internacional), com
portamentais, de idade, de sexo, de ideologia, de
est~tica, de ~tica, etc., tendem a ser contornadas
(ou subtendidas) em favor da homogeneizac;:ao.
Divisao do trabalho
A necessidade de chegar a um produto vendc1vel
gerou urn sistema de trabalho que, por sua vez,
reforc;:ou as caracterfsticas do produto. No inlcio
da hist6ria do cinema, 0 trabalho requerido por um
filme era feito por umas poucas pessoas, uma mes
63
_mer we rn"~ft'Wtettt;i.t:fr_oo~.
64
Jean-Claude Benuzrdet
a que e Cinema
"".
of:
~~_~.~_. _._.__
65
1.Jjfj!l'wmfiR"MtttWif'5jj'''""''Jiiilll''''
66
Jean-elaude Bernardet
OJ"
,,_
,~"~~_~
o que eCinema
expectativas dos produtores, tiveram suas obras
deturpadas e suas carreiras seriamente prejudicadas.
Citemos sO os casos de Orson Welles e Eric von
Stroheim, que tiveram filmes montados e sonori
zados a sua revelia. Alias, nem e preciso que exista
tao forte estrutura industrial para que a oposic;:ao
produtor/diretor se manifeste. No Brasil, Ab(lio
Pereira nao conseguiu que Sai da Frente (1952),
que ele realizou na Companhia Cinematogratica
Vera Cruz, fosse montado como bern entendia.
Rui Guerra com Os Fuzis (1965) e Alex Viany
com Sol sabre a Lama (1962) nao consegu.iram
fazer prevalecer seus pontos de vista sobre a mon
tagem. Sendo 0 filme mercadori.a, quem teo, a ul
tima palavra e 0 "proprietario comercial", e nao 0
"proprietario intelectual".
Sob certo aspecto, 0 sistema industrial prejudica
-se pela sua pr6pria. rigidez, que dificulta a sua
renovac;:ao. De fato, para continuar a motivar 0 pu
blico, eleprecisa apresentar novidades. Ora, 0
risco da novidade nao cabe muito bern no rigido
sistema industrial, pois novidade e risco. Para atua
lizar-se ele se vale frequentemente da experil3ncia
de firmas menores ou produtores independentes,
cujos fjlmes sao menos condicionados pelas exi
gencias imediatas do mercado. Urn exemplo cele
bre e Easy RiderlSem Destino (1969); Peter Fonda
nao encontrou grande produtor que aceitasse seu
projeto. Pronto 0 filme, a Columbia previu 0 su
cesso e 0 adquiriu, mas sem ter assumido os riscos
,.
67
Jean-Claude Bemardet
68
o que e Cinema
....._
Outros sistemas
Este sistema de produr;ao industrial privado em
vigor nos Estados Unidos e na Europa Ocidental
nao eo (mico modelo. Na URSS, a produr;ao cine
matografica nao e privada, mas totalmente estati
zada: os meios de produr;ao pertencem ao Estado,
artistas, diretores, tecnicos sao funciomirios do Es
tado. a Estado regula a produr;ao (investimentos,
quantidades de filmes), determina ou autoriza os
temas a serem tratados, controla a distribuir;ao.
a Estado nao visa a lucros propriamente ditos, mas
ao ressarcimento do investimento e a possibilidade
de ampliar;ao da produr;ao. Nao;'i;i uma relar;ao de
mercado,' 0 prosseguimento da produr;ao nao de
pende diretamente da acolhida que 0 publico da
aos filmes. Evidentemente que ha interesse em
que 0 publico goste dos filmes, mas a rigor aida
69
70
Jean-Claude Bernardet
o que eCinema
71
ji;;;;:~~f!IIWii;.'ttlf;f~'Cl'*h
72
Jean-Claude Bernardet!
'II!
.... ~.,,~~.:_"''""'_''''~''"=~~
o que If Cinema
\
o valor de troca
A constitui~ao do cinema como mercadoria teve
e tem profunda influencia sabre a dramaturgia
cinematogratica. Pois era necessario que as formas
dram~ticas assegurassem a sucessao das opera~oes
comerciais necessarias para que 0 filme percorresse
seu trajeto desde 0 produtor ate a tela do cinema
diante do publico. 0 produtor Adolph Zukor e sua
atriz Mary Pickford, a primeira grande vedete ame
ricana, deslancharam, por volta de 1910,0 princi
pal mecanismo sabre 0 qual se apoiaria 0 cinema:
o "star-system", 0 estrelato. A vedete e 0 principal
elemento que da ao filme seu "valordetroca", ou
73 .
74
o que e Cinen1il
Jean-CZaude Bemardet
'C!
75
,.~-""""~~.,~-:,,,,--
76
Jean~laude
Bernardet
o que eCinema
77
A industria do sonho
Esse conjunto de informac;:oes leva a pensar que
o cinema de produc;:ao industrial nao passa de uma
grande armadilha para enganar os incautos. Obvia- .
mente, nao. Nao bastariam artimanhas para interes
sar 0 publico, nem se pode pensar que 0 publico
e totalmente manipulado. E necessario, ja que a ida
ao cinema nao e compuls6ria, mas se da dentro de
uma relac;:ao de mercado, que algo nesses filmes
diga respeito ao publico, que algo, de alguma for
ma, interesse a vida dos espectadores. Hollywood,
como 0 cinema comercial que segue suas trilhas,
deu ao publico 0 que 0 publico quis: e a versao dos
produtores. Crfticos e soci610gos preferem consi
derar que 0 cinema hollywoodiano era pura alie
nac;:ao, era a "fabrica de sonho". As pessoas com
dificuldades na vida oferece-se 0 sonho das luxuo
sas mans5es das estrelas e dos personagens que
encarnam. A ascensao social individual resolve'
problemassociais, 0 sonho Doris Day, casa lim
pinha, fogao, geladeira e born marido. Frank
Capra nos diz que na democracia americana 0 born
cidadao tera acesso ao Senado e participara dos
destinos da nac;:ao. A lei af esta que assegura a
derrota dos viloes e a vit6ria dos mocinhos. Uma
- - --::-
78
Jean-Claude Bernardet
:-.....---~
o que e Cinema
numa vontade de sonhar, em aspirac;:oes, em mOOos,
angustias e inseguranc;:as que as pessoasrealmente
tivessem. Assim, generos como 0 bangue-bangue,
seus cow-boys maravi/hosos e seus fndios maus
estao sendo revistos, ou como a comedia musical.
A comedia musical foi tida durante muito tempo
como a alienac;:ao, a fantasia por excelencia,
completamente desvinculada de qualquer realida
de. Estudos recentes comec;:am a mostrar que nao
e bemassim. Muitas canc;:oes de Fred Astaire e
Ginger Rogers, par exemplo, nos anos 30, abor
dam, de modo subentendido, situac;:oes que 0
publico estava vivendo na epoca. As coreogra
fias rococ6s de Busby Berkeley em filmes como
Belezas em Revista (1933 - recentemente reapre
sentado no Brasil) sao urn del frio euf6rico. Mas
o publico tinha que encontrar nelas algo que 0
tocasse, senao elas nao funcionariam nem como
del frio nem como euforia. Berkeley impoe as
suas dezenas de coristas movimentos iguais, preci
sos e mecanicos; com elas, ele compoe movimen
tos geometricos, cria figuras abstratas em que as
coristas perdem qualquer individualidade, a ponto
de, em alguns momentos, nem rna is se perceber a
figura humana como tal. Esta coreografia, mesmo
que inconscientemente, refere-se a uma sociedade
que esmaga as individualidades, a uma sociedade
dominada pelas maquinas, pelas linhas de mon
tagem em que gestos iguais e mecanicos produzem
produtos iguais. A coreografia de Berkeley sublima
79
Jean~laude
80
Bernardet
OqueeOnema
81
rtiir'fir5pyc"",;.::>,..,
82
Jean-Claude Bemardet
"~w
-,,~,"", ~t
i;;;i
_"''''"''''.'"''''.C>->'_'''
o que eCinema
o filme. A mesma coisa com 0 Encoura9ado
Potemkin (1925) do mesmo diretor. 0 Bandido
Giuliano (1962) quase nao mostra 0 personagem
-titulo, e sempre de longe, 0 que nao satisfaria
nenhuma estrela, pois interessava ao diretor Fran
cesco Rosi mostrar a complexa trama de interes
ses po/(ticos que manipulavam Giuliano. D espec
tador vivencia a hist6ria como a interal;:ao de forl;:as
multiplas. Sanjines nao teria abordado a luta dos
mineiros bolivianos e suas mu/heres como grupo,
em A Coragem do Povo (1973), se tivesse tido que
criar um papel principal e entrega-Io a um ator de
renome. Nao sao muitos os filmes que se poderia
citar para exemplificar a personagem coletiva.
Longe de mim afirmar que 0 cinema s6 deveria
trabalhar com personagens coletivas, ou que
esta e, em si, preferlvel a personagem individual.
Mas pode-se tranquilamente afirmar que 0 star
-system, que exige necessaria mente personagens
individuais, impediu que se desenvolvessem outras
formas de dramaturgia. Da para perceber que 0
sistema cinematogratico atualmente vigente nao
desenvolveu todas as potencialidades expressivas
do cinema, nao s6 nao desenvolveu como repri
miu. F. Rosi, ap6s 0 Bandido Giuliano, nao vol
tou a essa forma de dramaturgia. Certamente em
funl;:ao da evolul;:ao de seus interesses, mas prova
velmente nao s6. Certamente os cineastas que
procurassem uma visao materialista da hist6ria
poderiam ter-se encaminhado para formas dra
83
"
~~~~<-c-
84
Jean-Claude Bemardet
-::--"_
o que eCinema
querem se dirigir a urn amplo publico. Para que
seus filmes tenham os requisitos necessarios para
passar pel()s circuitos comerciais e alcan<:ar as
telas, e tambem para que 0 publico encontre uma
Iinguagem com a qual jii estii familiarizado, eles
adotam formas dramaticas familiares ao cinema
de mercado. Caso contrario, estas informa<:oes fica
riam bloqueadas antes de chegar as telas ounao
seriam bern aceitas ou entendidas pelo publico.
I: esta a tese de Costa Gavras, que usa em Z (19GB}
ou em Estado de Sftio (1973) urn estilo de filme
policial. Se nao. usasse essa linguagem, afirma ele,
se usasse uma linguagem diferente daquela que
se ve costumeiramente nos cinemas, sua mensa
gem tornar-se-ia inacess(vel ao publico com 0 qual
quer se comunicar. A mesma atitude adotou Carlo
Lizzani em Requiem para Matar (1967). Trata-se
de urn western-spaghetti (portanto urn genero pre
viamente conhecido do publico) que, nos dialogos
e no comportamento de alguns personagens, prin
cipalmente do padre interpretado por Pasolini,
defende valores da "igreja progressista".
A questao njo e simples. A tatica usada por urn
Costa Gavras consiste, conforme ele, em infiltrar
urns tematica e uma informa<:ao rejeitadas pelo
sistema comercial dentro da linguagem comercial.
Coloca-se urn problema pol itico e linguistico: nao
seria supor que as formas Iingu isticas sao simples
vasilhames que em si nio tern significa<:ao, nao
tern implica<:oes ideol6gicas, suportes neutros 'que
85
ir"'taatr''lms'-''
86
Jean'(;laude Bemardet
%'F"
,.
.,,,~__
o que eCinema
87
Publicos diversificados
Um outro fator que nao pode deixar de entrar
nessa equac;:ao e 0 publico. 0 relativo desenvolvi
mento desse tipo de "cinema pol {tico", principal
mente na Italia, pressupoe que haja publico para
ele, nao sO nacional como internacional, para
tornar as produc;:oes, se nao lucrativas, pelo menos
viaveis. Supoe um pUblico de massa que nao tera
necessariamente v(nculos partidarios ou atuac;:ao
polftica espedfica, ja que esses filmes nao se
apresentam como expressao de posic;:oes partida
rias, mas que se sente concernido de alguma forma
por obras de cr'tica ao sistema s6cio-polftico. A
formac;:ao de publicos desse tipo nao se entende
sem a evoluc;:ao s6cio-polftica de cada sociedade,
mas tambem nao se entenderia sem a evoluc;;ao do
publico cinematogratico nos ultimos trinta anos.
o publico quase indiferenciado que se verifi
cou nas dtkadas de 20, 30 e 40 modifica-se profun
damente a partir de cerca de 1950. Surge aTV, que
.J
88
Jean-Claude Bemydet
o qlle eCinemo
89
~-
. 90
."
Jean-elaude Berrdet
(
Investe-se e!p grandes espetaculos que na ltela
larga e em pianos abertos apresentam sun~t.Josas
montagens fora do alcance da "tela" pequena.
A produ~o de custo medio diminui nitidamen
te, em favor do investimento maci~o em filmes
monumentais que dificilmente se pagarao ou
auferirao lucros no mercado interno america no,
mas que sa tornam viaveis gra~as a domin~ao
de mercados internacionais. Datam desta ~poca
filmes como 0 Maior Espetaculo da Terra (1952)
ou Os Dez Mandamentos (1955) de Cecil B. de
Mille, Cleopatra (1963) de Mankiewicz. Tais
filmes ainda buscam 0 publico de massa, dos 8
aos 80. Mas 0 cinema reage tamb~m de outra
forma. Enquanto a TV esta conquistando 0 publi
co de massa nos diversos paises onde se instala,
vao aparecer filmes mais especificos dirigidos ~
publicos menores, mais diversificados. Novas
ramifica~oes aparecem na produ~ao, como 0 cine-"
rna marcadamente erotico ou pornogratico, um
cinema de contesta~ao social que, valendo-se ou
nao de novas formas de linguagem, dirige-se a
espectadores que sa interessam por estes assun
tos, ou urn cinema que se tem chamado de "arte".
Quer pela tematica, quer pelas inovacoes Iin
gu isticas, esta ultima tendencia dirige-se a urn
publico culturalmente mais sofisticado, em geral
de nivel universitario. Nem sempre, por se diri
girem a publicos relativamente pequenos, encon
tram nos seus mercados internos espectadores su
o que e Gnema
ficientes para se tornarkm financeiramente viaveis,
mas, somando pequenos publicos localizados nos
grandes centros urbanos, acaba-se criando um pu
blico que sustenta esta produ~ao. Essa "acultura
~ao" de parte importante da produ~ao e a retra~ao
do publico de massa provoca uma espocie de eliti
za~o. Cada vez menos vai-se ao cinema, cada vez
mais vai-se assistir a filmes. As salas de bairro
tendem a desaparecer, os cinemas se concentram
em pontos de poder aquisitivo mais elevado. J;
talvez esse "cinema de arte" 0 que tern marcado
mais nitidamente a evolu~ao do cinema ap6s a
Segunda Guerra Mundial (1939-45), acompanhado
por uma serie de atividades culturais. Com~am a
proliferar os fest iva is, que atendem naturalmente
a expectativas comerciais, mas tambem, as vezes
prioritariamente, a inten~oes de informa~ao de
divulga~ao cultural. Cresce 0 movimento editorial:
aparecem ensaios criticos; as revistas de fa ou de
informa~es comerciais continuam, mas surgem
revistas de estetica, de discussao pol itica. 0 cine
ma torna-se tambem disciplina universitaria, apa
recem cursos de hist6ria e critica, e cursos profis
sionais que nao pretendem formar apenas pessoas
que saibam manipular tecnicas, mas profissionais
de forma~ao cultural mais ampla. No Brasil, per
cebe-se esta evolu~ao comparando-se 0 trabalho de
Guilherme de Almeida, por exemplo, um dos jorna
Iistas que dominam a cr(tica cinematogratica em Sao
Paulo nos anos 30, que exalta as estrelas e a boa
91
92
Jean-elaude Bernordet
feitura dos filmes, com o~ textos de Paulo Emilio
Salles Gomes que, nosanos 50, com~a a propor
uma reflexao de ordem estetica, social e pol (tica
sobre cinema.
.
Desta fase da hist6ria do cinema que com~a
ap6s a Segunda Guerra talvez possamos dizer
que ela e dominada peloque se tern chamado
de "Cinemas Novos". Nao que urn cinemapri
mordialmente comercial tenha desaparecido. A(
estao como provas superproducoes como Cle6pa
tra, Ben Hur, 0 Exarcista ou Guerra nas Estrelas,
bern como inumeros generos corriqueiros, os
filmes mitol6gicos italianos nos anos 60,0 western
-spaghetti, 0 kung-fu, a comedia er6tica italiana
ou brasileira. Mas 0 cinema que, de modo geral,
mais inovou pode. ser globalmente chamado de
"Cinemas Novos".
OS CINEMAS NOVOS
a inlcio desse movimento de renovacao que se
da ao n(vel da tematica, da linguagem, das preocu
pacoes sociais e das relacoes com 0 publico, pode
ser datado de 1945, quando com~a 0 Neo-Realis
rna italiano. A Italia que, cinematograficamente,
fonl' conhecida palos seus melodramas, suas divas
dos anos 20 e 30, suas superproducoes blblicas,
estava saindo 'do fascismo mussoliniano, da monar
quia e da guerra, destrocada. Sobre as ru (nas,
enquanto paulatinamente se reargue urn cinema
c6mercial, desenvolve-se urn cinema que cineastas
e cr(ticos vinham preparando clandestinamente nos
ultimos anos do fascismo. Realizam-se filmes volta
dos para a situacao social italiana, rural e urbana,
. do p6s-guerra. Despojam-se enredos, personagens,
cenografia, de todo 0 aparato imposto pelo cinema
de ficCao tradicional. as cineastas voltam-se para
o dia-a-dia de proletarios, camponeses e pequena
,;
94
Jean-Claude Bernardet
o que e Cinema
riram fornecer agitados filmes de aventuras e
Qlitros, bern como os filmes americanos que se
encontravam armazenados' desde 1939-40, pois a
guerra dificultara a exportacao para os mercados
europeus. Mas, a medida que os filmes e as ideias
neo-real istas VaG sendo divulgadas, elas passam a ter
enorme influencia, atingindo tanto cinematogra
fias fortemente industrial izadas como pa ises subde
senvolvidos. E em parte 0 Neo-Realismo que da um
tom novo ao policial americano Cidade Nua (1948)
de Jules Dassin, e que chegou a marcar alguns
filmes sovieticos.
No Brasil, estes filmes e ideias encontram terre
nos particularmente receptivos, fortalecendo as
posic;:oes de urn grupo integrado, entre outros,
por Nelson Pereira dos Santos, Alex Viany, Rober
to Santos, Walter G. Durst, que procuravam enca
minhar-se para produc;:oes a baixo custo numa
situac;:ao particularmente adversa a produc;:ao cine
matogratica, que se opunham ao cinema de estudio
e ao que se julgava ser 0 estilo hollywoodiano no
Brasil, a Vera Cruz (1949-54), que procuravam
uma estetica e tematica expressivas da situac;:ao de
subdesenvolvimento do pais, urn cinema voltado
para. a questao social e os oprimidos e capaz de
fazer a critica desse sistema social. 0 Nee-Rea
lismo e 0 aproveitamentoideologico que foi feito
dele estoo presentes em filmes como Rio, Qua
renta Graus (1955), Rio, Zona Norte (1955), de
Nelson Pereira, e 0 Grande Momenta (1958) de
R. Santos.
95
96
Jean-Cillude Bernardet
Outro momenta de ruptura que colaborou p~ra
a constrUl;ao do cinema atual e a Nouvelle Vague.
o cinema frances dos anos 50 reduzia-se ao chama
do "cinema de qualidade", comercial, academico
e prestigiado: competentes artesaos dirigiam
competentes atores e aplicavam regras para narrar
est6rias absolutamente previsfveis em filmes
onerosos. Urn grupo de jovens proveniente da
crftica e nao da prodUl;ao rompe a situacao no
fim dos anos 50. Com dinheiro recebido de lima
heranc;:a, Claude Chabrol faz Le Beau Serge (1958),
Jean-Luc Godard realiza Acossado (1959) e Fran
~is Truffaut Os Incompreendldos (1959). Em
poucos anos, uns cern diretores estreiam realizan
do obras que rejeitam 0 cinema de estudio, as
regras narrativas. Diferentemente do Neo-Realis
mo, a Nouvelle Vague volta-se pouco para a
situac;:ao social francesa, ignora que a Franc;:a esta'
mergulhada numa guerra colonial contra a Arge
lia, e se interessa pelas questoes existenciais de seus
personagens. A grande maioria destes filmes foram
eliminados pelos circuitos comerciais. Poucos
diretores sobraram; entre os mais conhecidos,
Resnais, Rohmer 01,1 Godard manterao uma cons
tante linha de questionamento, enquanto outros
como Chabrol e Truffaut darao continuidade ao
"cinema de qualidade" ao qual se tinham oposto.
Nos anos 60, em muitos parses surgem cinemas
novos. Na URSS, ventos novos ja antes de 1956,
quando 0 XX Congresso do Partido Comunista
o que e Cinema
oficializa a revisao do stalinismo. A vida cotidia
na, os sentimentos, urn estilo mais fluente marca
Quando Voam as Cegonhas (Kalatozov, 1957),
considerado 0 filme principal do "degelo" sovie:
tico. 0 Quadrageslmo Prlmelro (Tchukrai, 1957)
apresenta urn soldado no papel central que ja
nao e tao monol ftico como os her6is do culto da
personalidade. Os efeitos do "degelo" fizeram-se
sentir em outros parses da Europa socialista onde a
renovac;:ao cinematogratica foi mais vivaz que na
URSS, particularmente na Polonia, Tcheco-Eslo
vaquia, . Hungria e Jugoslavia. Por exemplo 0
Homem Nao e um Passaro (1966) 01,1 Um Caso de
Amor ou 0 Drama de Uma Funclomirla da Compa
nhla Telefonlca (1967), do iugoslavo Dusan Ma
kavejev, discutem a situac;:ao social destes parses,
os metodos de trabalho nas fabricas, 0 centra
. lismo derTlOcrc\tico do PC, a heroizac;:ao do ope
rario-padrao, com uma agilidade de linguagem e
uma virulE'mcia inesperadas. Ja foi feita referencia
a renovac;:ao do cinema polones nos anos 50-60 e
as dificuldades polfticas que inibiram a suaevo
Il,Ic;:ao. Mais amenD que Makavejev 01,1 que os prin
. cipais diretores poloneses, 0 cinema tcheco renova
se tambem a partir de 1956 e conquista uma au
dimcia internacional relativamente ampla 'na
epoca da Primavera de Praga, com interru~ao
pela invasao das tropas sovieticas em 1968.
Na Europa e talvez no mundo, 0 cinema novo
mais vigoroso e original nos dias atuais e 0 alemao,
97
98
Jean-Claude Bemardet
o que f! Cinema
Pardal) e abre-caminho para novos e importimtes
cineastas como Tewfik Salah. Ap6s a liberacao,
a Argelia nacionaliza 0 cinema, apela inicialmen
te para realizadores estrangeiros (Pontecorvo rea
liza A Batalha de Arge/) e comeca a produzir urn
cinema totalmente voltado para 0 colonialismo,
a guerra da independencia e os problemas, princi
palmente agrarios, do novo pa (s. Na' America
Latina, tamMm se verificam surtos deste tipo.
A Argentina desenvolve nos anos 60 uma linha de
producao intimista que analisa os problemas psico
l6gicos de uma elite, enquanto um cinema voltado
para as questoes populares tern dificuldade em
se afirmar. Em Cuba, 0 governo revolucionario
atribuiu grande importancia ao cinema, desenvot
venda inicialmente os noticiarios e 0 documen
tario. Para montar um cinema de ficcao, apela
ram para estrangeiros, franceses e tchecos, com
resultados frustrantes. Ap6s 0 que se desenvolveu
urn cinema tematica e esteticamente forte' e ori
ginal, de que sao amostras A Oltima Ceia (Tomas
Gutierrez Alea, 1976) e Os Dias da Agua (Manuel
Octavio Gomes, 1971), exibidos no Brasil. No
Chile, durante os governos Frei e Allende, afirma
-se um cinema documentario e de ftccao que
questiona a situacao social e logo aborda proble
mas pol rticos espec (ficos do momento. Surto
destrocado pelo golpe de 74, com 0 desapareci
mento de cineastas e 0 exilio de outros. Nestes
anos 60-70, a atividade ~ intensa no Terceiro
99
lean-Claude Bemardet
100
o que e Cinema
Brasil
Entre os vckios cinemas novos que se desenvolve
ram pelos anos 60, 0 brasileiro foi um dos mais
destacados, nao sO pela importancia que teve inter
namente como tambem pela repercussao interna
cional. Mais significativo que os oitenta premios
que os filmes do movimento devem ter ganho em
festivais internacionais, foi 0 interesse queeles des
pertaram, os artigos e teses que motivaram, princi
pa/mente na Europa Ocidental, as discussOes que
provocaram nos meios cinematograticos latino
-americanos e africanos. 0 Cinema Novo criou ur1la
situa/fao cultural nova: apesar da repercussao de
101
102
Jean-Claude Bemardet
o que t! Cinema
103
104
Jean-Claude Bernardet
o que eCinema
105
Jean-Claude Bernardet
cos absorvidas por urn cinema dirigido ao grande
publico. Por exemplo, 0 epis6dio de Eduardo Es
corel em Contos Er6ticos tern uma complexa ela
boracao temporal que teria provavelmente sido
muito confusa para 0 publico ha uns dez anos.
Alguns desses filmes inovadores podem-se tornar
inesperadamente grandes sucesSOs, e facilitarao a
carreira comercial de outros filmes do mesmo
autor. E 0 que ocorre com Resnais, cujo Hiroshima
Meu Amor (1959) conheceu um sucesso interna
cional apesar da dificuldade de seu texto, da cons
truco do tempo que mistura varias epocas, suces
so que facilitou a distribuicao de filmes quase her
maticos como 0 Ano Passado em Marienbad
(1961) ou Eu te Amo Eu te Amo (1967), Alias,
muitos autores, inicialmente malditos, rejeitados
por exibidores e publicos, acabaram-se tornando
grandes estrelas, como Bergman e Antonioni.
Na linguagem, sao enormes as modificacoes em
relaCao ao cinema hoje tido como c1assico. Embora
seja tacitamente admitido que nao ha regras, que
se pode fazer cinema como bem se entende, hB
alguns pontos em comum que marcam esse cinema.
Vimo!; .que 0 cinema c1assico pretendia esconder
o seu carater de Iinguagem e apresentar-se como se
fosse a realidade. Muitos filmes atuais nao disfar
cam que sao filmes, que sao obras de linguagem
que nao devem nem podem ser confundidas com
a realidade. Qu.ando Godard realiza Os Carabinei
ros (1963), .em nenhum momento ele pretende
o que e Cinema
107
I,
Jean-Claude Bemardet
108
"
.....
........
,~".~
o que eCinema
movimento de auto-reflexo. Em Quando 0 Carna
val Chegar, Diegues parodia a chanchada dos anos
50. E como se varios cinemas falassem nurn mesmo
filme. Esse fenomeno -a arte que se comenta a si
pr6pria - nao e exclusivo do cinema; e um aspecto
de uma problematica mais ampla que atinge todas
asartes, literatora, pintura, do seculo XX e ja atin
giu a TV numa novela como 0 Espelho Magico de
Lauro Cesar Muniz.
Outro tra~o que marca este cinema das ultimas
decadas e sua concept;:ao de espaeo. Vimos que 0
cinema classico fragmentava muito 0 espa~o, tanto
na linha narrativa americana como, mais ainda, na
linha ensaistica sovietica. a cinema atual prefere,
de modo geral, 0 espBt;:o continuo e seus pianos
sao longos. Sera dizer que a not;:ao de montagem
desaparece? Nao, ela se modifica: ah~m de ocorrer
pela justaposi~ao de pianos, ela se da cada vez mais
dentro do plano. Um exemplo celebre tirado de
o Cidadao Kane (Orson Welles, 1941): numa sala,
bem na frente da camara fixa, a mae da criant;:a
Kane 'discute a sua educat;:ao com 0 tutor que vai
lew-Io; no fundo, Ijj for~, a crian~a brinca, joga
bolas de neve, 0 que vemos pela janela, e ouvimos os
ru idos das batidas das bolas'contra a casa: este e 0
objeto de conversa que se djj no primeiro plano,!
109
".
110
Jean-Claude Bemardet
{.
o que eCinema
cineastas tern argumentado que 0 plano longo, por
diminuir a interven~ao do montador, aproxima 0
cinema da realidade (0 espaCo no qual nos move
mos e conHnuo). No entanto esse mesmo plano
longo pode ser usado justamente com a func;:ao de
acentuar a manipulac;:ao. Na apresentacao da can
tora Odete Lara em Os Herdeiros, ela comec;:a a
cantar junto de uma orquestra que a acompanha;
ela se desloca, a camara a segue e perdemos de
vista a orquestra; a seguir, a camara recua, mostra
o estudio todo, Odete Lara continua a cantar, a
musica continua, e no entanto os musicos desapa
receram, 0 piano esta vazio(os musicos.foram reti
rados durante 0 movimento da camara). Aqui, 0
plano lange denuncia 0 artificialismo intencional
da encenacao. Portanto, se a continuidade de es
pac;:o e um tra~o estif(stico desse cinema das ulti
mas dlkadas, seu uso e significacoes nao estao
determinadas; dependem das intenc;:oes do diretor,
do contexte em que se inserem, podendo mudar de
filme para filme.
Outra diferenca ainda a ressaltar em relac;:ao ao
cinema hollywoodiano e que este subordinava tudo
est6ria que contava, eliminava-se. do filme tudo 0
que nao fosse necessario a evoluc;:ao do enredo, ape
nas algumas pausas para ritmar a obra. 0 cinema de
que estou falando nao se pauta pelo enredo. Muito
mais que 0 enredo, interessam aos cineastas apro
fundar 0 comportamento dos personagens e as sig
nificac;:oes e implicac;:oes das situac;:oes em que se
III
112
o que eCinema
Jean-C/aude Bemardet
Jean-Lue Godard.
encontram. Podemos ver uma Jeanne Moreau ou
Monica Vitti passearem longamente, em filmes de
Antonioni, sem que nada acont~a. a que seria um
tempo morto (inutil para a a~ao) no cinema de
enredo, passa a ter urn valor positivo no cinema de
urn Antonioni ou de urn Bergman, voltados para os
comportamentos dos seus personagens e seus con
flitos psicol6gicos, morais, religiosos. au entao, 0
que articulara 0 filme nao sera nem 0 enredo nem
a atenciosa aproxima~ao dos personagens, mas as
ideias que 0 cineasta propoe para a discussao. Em
Week-end (1967) de Godard, 0 enredo sumiu eo
filme torna-se um ensaio sobre a classe mecfia ur
bana, suas ideias, sua violencia, sua cultura, sua.
opressao, sua rela~ao com outras classes sociais.
113
Outras tendencias
.11
"
114
Jean~1aude
0 que eCinema
Bemardet
j~.1
'iJ1
~I
:~
II
115
suI do Brasil.
116
Jean-Claude Bernardet
117
o que e 0 cinema?
...
o que eCinema
...