MARSIAJ, Juan P. Pereira. Gays Ricos e Bichas Pobres: Desenvolvimento, Desigualdade Socioeconômica e Homossexualidade No Brasil

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Gays ricos e bichas

pobres: desenvolvimento,
desigualdade
socioeconmica e
homossexualidade
no Brasil

GAYS RICOS E BICHAS POBRES: DESENVOLVIMENTO,


DESIGUALDADE
SOCIOECONMICA
E
HOMOSSEXUALIDADE NO BRASIL
RESUMO
Este artigo expe algumas consideraes sobre a complexa relao
entre desenvolvimento, desigualdade socioeconmica e minorias
sexuais no Brasil. A primeira parte analisa a relao entre o
processo de modernizao e o surgimento de redes e comunidades
gays e lsbicas. Baseando-se em argumentos apresentados por
John DEmilio em seu artigo Capitalism and Gay Identity (1983),
esta anlise traa o impacto da urbanizao e do crescimento do
trabalho assalariado na importncia e no papel da famlia. A
segunda parte explora em maiores detalhes a relao entre classe
e homossexualidade, demonstrando como a classe social afeta a
criao de relaes homoafetivas e redes homossociais, o uso de
espaos comunitrios, e a prtica da violncia contra gays, lsbicas
e travestis. A terceira e ltima parte apresenta consideraes sobre
a relao entre classe e o movimento social de gays e lsbicas.
PALAVRAS-CHAVE
Homossexualidade; Classe social; Brasil; Movimentos sociais

Juan P. Pereira Marsiaj1

G A Y S

R I C O S

BICHAS
P O BRES:
D E S E N V O LV I M E N T O ,
D E S I G U A L D A D E
SOCIOECONMICA
E
HOMOSSEXUALIDADE NO
BRASIL

urante o conturbado perodo de abertura poltica no


final dos anos de 1970, caracterizado, entre outros, pelo processo
de ressurreio da sociedade civil 2, vrios movimentos sociais
vieram tona. Estes movimentos apresentavam uma grande
variedade de reivindicaes, desde questes polticas e materiais
mais tradicionais a questes at ento ignoradas ou
marginalizadas da esfera poltica, como sexualidade e, de certa
maneira, comportamento, gnero e raa. Dentre os diversos
grupos mobilizados, gays e lsbicas se tornaram gradualmente
visveis na esfera pblica. Essa mobilizao e conquista do espao
pblico no surgiu do nada, mas sim de um longo processo de
desenvolvimento de redes homoerticas e homossociais nas
principais cidades brasileiras desde o final do sculo XIX.3 Com
o tempo, essas redes proporcionaram a base social para a
politizao de questes ligadas orientao sexual no final dos
anos de 1970. Nas ltimas duas dcadas, presenciamos o
surgimento de grupos e redes de minorias sexuais cada vez mais
complexos e pblicos, incluindo vrios sub-grupos como gays,
lsbicas, travestis, bissexuais, transexuais e transgneros. Outros

Doutorando em Cincia Poltica na Universidade de Toronto, Canad.


<[email protected]>
ODONNELL, G.; SCHMITTER, P. Transitions from authoritarian rule:
tentative conclusions about uncertain democracies. Baltimore: The John
Hopkins University Press, 1986.
GREEN, J. N. Beyond Carnival: male homosexuality in Twentieth-Century
Brazil. Chicago: University of Chicago Press, 1999.

Juan P. Pereira Marsiaj

exemplos deste fenmeno so o aumento do nmero de


estabelecimentos comerciais voltados para esta clientela (o
chamado mercado cor-de-rosa, ou pink economy em pases
norte-americanos), assim como o crescimento de manifestaes
celebrando a diversidade sexual em diversas cidades, as Paradas
do Orgulho GLBT (Paradas do Orgulho Gay, Lsbica, Bissexual e
Transgnero).
Apesar da semelhana destes grupos e de seus movimentos
sociais organizados com aqueles da Amrica do Norte, diferenas
importantes existem entre eles. Diferenas nos contextos poltico,
cultural e econmico geram uma realidade e condies distintas
daquelas enfrentadas por gays e lsbicas em pases desenvolvidos.
Este artigo busca analisar algumas das maneiras como o contexto
econmico brasileiro afeta a formao e o desenvolvimento de
comunidades e movimentos de gays e lsbicas.4 Acredito que,
dada a primazia do status socioeconmico como categoria de
estratificao da sociedade brasileira, ele afeta profundamente a
poltica de identidade a que se dedicam vrios grupos, como por
exemplo gays e lsbicas. A anlise apresentada neste artigo est
majoritariamente baseada em material secundrio sobre o
assunto, sendo que vrios pontos foram confirmados em
entrevistas informais com militantes do movimento gay e lsbico.
Buscando delinear certas consideraes sobre as ligaes
entre status socioeconmico e orientao sexual, este artigo ter
trs partes. Na primeira parte, irei explorar os vnculos entre
alguns aspectos do processo de modernizao (em especial a

134

Verses preliminares deste artigo foram apresentadas na Conferncia Q


Grad 2001: 3rd Annual Graduate Student Conference on Sexuality and Gender,
na University of California at Los Angeles (UCLA), em outubro de 2001 e
no VI Congresso Internacional da Brazilian Studies Association (BRASA),
em Atlanta, Georgia, em abril de 2002. Gostaria de agradecer a James Green
por seus comentrios e motivao, assim como Philip Oxhorn e os diversos
participantes das duas conferncias. A Bruno Marsiaj, a Elaine Zanatta e sua
equipe do Cadernos AEL sou grato pela inestimvel ajuda editorial. O
termo comunidade ser usado vagamente, para referir-se a redes
homossociais ou homoerticas, muitas vezes reforadas e estruturadas por
estabelecimentos comerciais, organizaes e outras instituies
freqentadas ou utilizadas por gays, lsbicas e travestis. Em relao
diferena entre pases desenvolvidos e pases em desenvolvimento, devese mencionar que ela , freqentemente, apenas uma questo de grau, isto
, lgicas semelhantes se aplicam s duas regies, mas em nveis diferentes.
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urbanizao e industrializao) e o surgimento de comunidades


gays e lsbicas no Brasil. Na segunda parte, irei analisar a relao
entre desigualdade socioeconmica e a evoluo de tais
comunidades. Na terceira parte, concluirei com alguns
comentrios sobre a relao entre classe e o movimento de gays
e lsbicas no Brasil.5
Antes de seguir com a discusso delineada acima, preciso
esclarecer que a maior parte da anlise a ser apresentada lida
com a homossexualidade masculina. Esse desequilbrio se deve
escassez de material disponvel sobre a condio e evoluo da
comunidade lsbica no Brasil. Acredito que tal escassez est
ligada, em parte, ao fato de mulheres terem sido historicamente
relegadas esfera privada (impedindo assim que se
desenvolvessem comunidades de carter mais pblico, como foi
o caso entre homossexuais masculinos) e tambm ao silncio que
envolve a sexualidade feminina de maneira geral, ambos
fenmenos decorrentes de uma ordem patriarcal.6 No devemos
esquecer tambm que, alm da discriminao econmica baseada
na orientao sexual, existem tambm aquelas baseadas no gnero
e raa. Conseqentemente, no nenhuma surpresa que, ao se
analisar o impacto do desenvolvimento econmico sobre minorias
sexuais, encontrem-se divergncias entre gays, lsbicas e travestis
e entre brancos e negros. Apesar destas consideraes, acredito
que vrias das lgicas a serem analisadas podem ser aplicadas,
com maior ou menor grau de preciso, situao dos diversos
grupos mencionados.
Antes de prosseguir, gostaria de destacar duas das
principais caractersticas do processo de desenvolvimento
econmico brasileiro: nveis significativos de urbanizao e
industrializao, assim como altos ndices de desigualdade

Usarei o termo classe como sinnimo de status socioeconmico. Classe,


conforme utilizado neste artigo, no implica necessariamente noes de
identidade ou conscincia.
6
Esta situao faz com que pesquisadores, em especial historiadores, estejam
limitados memria das mulheres que ainda esto vivas, pois documentos
textuais so praticamente inexistentes. Em seu trabalho sobre a histria de
lsbicas na cidade de Buffalo, no Estado de Nova York, por exemplo,
Elizabeth KENEDDY e Madeline DAVIS dizem: Ns fomos foradas a
comear nos anos 30 porque a memria de nossas narradoras s ia at essa
poca, citado em HIGGS, D. Introduction. In: _____ . (Org.). Queer sites: gay
urban histories since 1600. New York: Routledge, 1999. p. 1-9. [trad. minha]
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socioeconmica. Desde meados do sculo XX, o pas presenciou


em certos perodos um rpido crescimento econmico. Como se
sabe, esse crescimento no beneficiou todas as classes de maneira
igual. A desigualdade no somente persistente, mas crescente,
como indicam estatsticas recentes. Reis mostra que, em 1990,
cerca de 12% da populao vivia em situao de misria e que,
em 1997, essa proporo havia aumentado para 15%, enquanto
cerca de 24% da populao vivia em estado de pobreza. No outro
extremo, no final dos anos 90, os 10% mais ricos detinham 48%
da renda nacional.7
M ODERNIZAO ,
I DENTIDADES

C OMUNIDADES

Em seu artigo Capitalism and Gay Identity, John DEmilio


indica como mudanas ocasionadas pelo desenvolvimento
capitalista e pela modernizao criaram as condies necessrias
para o surgimento de comunidades e da identidade gay
modernas.8 De acordo com DEmilio, a expanso do capital e do
trabalho assalariado num Ocidente cada vez mais urbano e
industrializado teve um forte impacto nas funes, significados
e valores da famlia. Com o estabelecimento do trabalho
assalariado, a famlia deixa de ser uma unidade de produo
auto-suficiente, como era o caso no contexto rural anterior. A
famlia perdeu, assim, algumas de suas funes econmicas, e
sua funo afetiva tornou-se gradativamente mais importante.
Alm disso, a modernizao trouxe consigo certas mudanas que
diminuram a centralidade da procriao, como demonstra a
drstica queda nas taxas de natalidade. Conseqentemente, com
um enfraquecimento do domnio familiar sobre indivduos, assim
como mudanas na natureza e funes de relacionamentos
heterossexuais, um espao se abriu e se concretizou a possibilidade
para certos indivduos (em sua maioria homens) de se separar

REIS, E. P. Modernization, citizenship and stratification: historical processes


and recent changes in Brazil. Daedalus, Cambridge, MA, EUA, v. 129, n. 2,
p. 171-194, 2000.
8
DEMILIO, J. Capitalism and gay identity. In: SNITOW, A.; STANSELL, C.;
THOMPSON, S. (Org.). Powers of desire: the politics of sexuality. New
York: Monthly Review Press, 1983. p. 100-113.

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de suas famlias e organizar uma nova vida baseada em sua


atrao por pessoas do mesmo sexo. Uma vez nos crescentes
centros urbanos, e valendo-se de seus prprios salrios para sua
sobrevivncia, novos relacionamentos, pequenos grupos de
amigos e, assim, mais tarde, comunidades mais complexas se
formaram entre as pessoas que se sentiam atradas por outras
pessoas do mesmo sexo. Tais comunidades tornaram possvel o
desenvolvimento de uma identidade baseada nessa atrao
homossexual, que mais tarde serviu de base para os movimentos
de liberao gay nos pases desenvolvidos.
A relao entre capitalismo e orientao sexual, entretanto,
no to simples, como o prprio DEmilio enfatiza. 9 O
capitalismo, enquanto de um lado enfraquece a famlia tradicional,
de outro fortalece a famlia nuclear, assim como a diviso sexual
do trabalho e a rgida diviso entre as esferas pblica e privada.
Logo, uma anlise mais cuidadosa buscaria diferenciar a maneira
como estes processos histricos influenciam a vida de gays e de
lsbicas.10 Segundo Julie Matthaei, no o aumento do trabalho
assalariado, mas sim a gradual eroso da diviso sexual do
trabalho que est por trs do surgimento da figura moderna da
lsbica. 11 Uma vez que certas mulheres se tornaram mais

Ibid., p. 108-109
GLUCKMAN, A.; REED, B. (Org.). Homo economics: capitalism, community,
and lesbian and gay life. New York: Routledge, 1997, p. xi-xxxi: Introduction; MATTHAEI, J. The sexual division of labor, sexuality
and lesbian/gay liberation: towards a marxist-feminist analysis of
sexuality in U.S. capitalism. In: GLUCKMAN, A.; REED, B. (Org.). Homo
economics: capitalism, community, and lesbian and gay life. New York:
Routledge, 1997. p. 135-164.
11
Apesar de estar alm do enfoque deste artigo, deve-se mencionar que este
argumento levanta questes importantes sobre a relao entre movimentos
feministas e comunidades lsbicas na Amrica Latina. Alguns poucos
estudos mencionam a complexa e problemtica relao entre os dois grupos.
Ver, por exemplo, GOLDBERG, A. Feminismo no Brasil contemporneo:
o percurso intelectual de um iderio poltico. BIB/ANPOCS, So Paulo, n.
28, p. 42-70, 1989 e THAYER, M. Identity, revolution and democracy: lesbian
movements in Central America. Social Problems, Berkeley, CA, EUA, v.
44, n. 3, p. 386-407, 1997; porm estudos mais detalhados so necessrios
(um passo nessa direo MOGROVEJO, N. Un amor que se atrevi a
decir su nombre: la lucha de las lesbianas y su relacin con los movimientos
homosexual y feminista en Amrica Latina. Mxico: CDHAL: Plaza y Valds,
2000).
10

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independentes da famlia e dos homens, isto , quando elas


conquistaram um acesso mais independente ao mercado de
trabalho assalariado, lhes foi possvel estabelecer vnculos e
relacionamentos com outras mulheres. A anlise dos processos
examinados por DEmilio, como se v, somente parcialmente
aplicvel situao das lsbicas.
Como mencionado anteriormente, muitos dos processos
examinados por DEmilio j se desenrolaram no Brasil,
principalmente nos principais centros urbanos do pas. Uma das
caractersticas do processo de urbanizao no Brasil a enorme
concentrao de recursos (econmicos, polticos e culturais) em
grandes centros urbanos, um fenmeno ligado natureza do
desenvolvimento econmico latino-americano.12 Desde o perodo
colonial, passando pelo perodo de imperialismo comercial
britnico no sculo XIX e pela rpida industrializao no sculo
XX, o poder concentrou-se em algumas poucas cidades brasileiras,
que se tornaram os centros administrativos e econmicos do pas.
Tal processo pode ser visto nos casos de So Paulo e Rio de
Janeiro. Mais tarde, com a expanso do processo de
desenvolvimento, outros centros emergiram em diversas regies
do pas, mas nenhum deles compete com as duas maiores cidades
brasileiras. nestes centros que se encontram as maiores e mais
slidas comunidades gays e lsbicas. So Paulo proporciona um
exemplo da influncia dos grandes centros.13 A cidade foi uma
das primeiras no pas a incluir legislao proibindo a discriminao
por orientao sexual em seu estatuto municipal. No final dos
anos de 1980 e incio dos anos de 1990, mais de setenta outras
municipalidades adotaram medidas semelhantes. Conforme
indicado por um militante do Partido dos Trabalhadores (PT),
tal avano se deve ao fato de vrias municipalidades terem
simplesmente copiado integralmente a Lei Orgnica da cidade
de So Paulo, incluindo assim a legislao que protege minorias
sexuais contra discriminao por orientao sexual.
12

13

138

OXHORN, P. From controlled inclusion to coerced marginalization: the


struggle for civil society in Latin America. In: HALL, J. (Org.). Civil society:
theory, history and comparison. Cambridge: Polity Press, 1995. p. 253254.
GREEN, J. N. Desire and militancy: lesbians, gays, and the Brazilian
Workers Party. In: DRUCKER, P. (Org.). Different rainbow: same-sex
sexuality and popular struggle in the third world. London: Gay Mens
Press, 2000. p. 57-70.
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Seria um exagero dizer que somente Rio e So Paulo


proporcionam condies para o surgimento de comunidades gays
e lsbicas. Outros plos existem em diversas regies do pas. No
final da dcada de 1970, vrios centros urbanos no Nordeste do
pas proporcionavam oportunidades para a expresso da
homossexualidade numa regio caracterizada por rgidas normas
de gnero.14 No interior do Estado de So Paulo, vrias cidades,
como por exemplo So Jos do Rio Preto, Ribeiro Preto e
Campinas atraem pessoas de cidades vizinhas onde o nmero de
estabelecimentos comerciais voltados para o pblico GLS (gays,
lsbicas e simpatizantes) bastante reduzido.15
C LASSE E O RIENTAO S EXUAL : U MA
C OMUNIDADE D IVIDIDA ?
A relao positiva entre desenvolvimento e modernizao
e o surgimento de comunidades gays e lsbicas analisado acima
torna-se mais complexa se analisarmos o mesmo processo a partir
da questo da desigualdade socioeconmica. Primeiro, em um
nvel mais micro, a classe social afeta as possibilidades de
estabelecimento de relaes homoafetivas e de redes
homossociais, que so de suma importncia para o
desenvolvimento de uma auto-identificao como gay ou lsbica.
Isto no quer dizer, claro, que gays e lsbicas de classe mais
baixa no tenham condies de encontrar e conhecer outras
pessoas com uma orientao sexual semelhante ou no consigam
estabelecer redes de contatos com outros homossexuais. No
entanto, classe interfere neste processo de maneira significativa.
Para os setores populares no Brasil, a funo econmica da famlia
retm uma grande importncia. A renda de classes mais baixas
irregular e pequena, tornando muito difcil a independncia
econmica de um indivduo de sua famlia. A sobrevivncia
14

15

ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. de; CEBALLOS, R. Trilhas urbanas,


armadilhas humanas: a construo de territrios de prazer e dor na vivncia
da homossexualidade masculina no Nordeste brasileiro dos anos 1970 e
1980. In: SANTOS, R.; GARCIA, W. (Org.). A escrita de Ad: perspectivas
tericas dos estudos gays e lsbic@s no Brasil. So Paulo: NCC-Suny: Xam:
Abeh, 2002. p. 307-328.
PARRA, R. O interior entra em cena. G Magazine, So Paulo, n. 47, ago.
2001, p. 78-82.

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econmica, tanto para o indivduo quanto para a famlia como


um todo, depende da permanncia dos filhos no mbito familiar
at que eles se casem (e em vrios casos aps o casamento, devido
falta de moradia). A proximidade e controle da famlia fazem
com que a explorao de atraes e relacionamentos homossexuais
se torne muito difcil. Gays e lsbicas de classe alta, por outro
lado, podem dar-se ao luxo de manter um apartamento para tais
encontros, ou tm meios para pagar um quarto de motel para
tais fins.16
Ademais, a famlia tem importantes funes de previdncia
social para as classes mais baixas, uma funo que diminui em
importncia quanto mais alta a renda e maior o acesso a
atendimento mdico privado. Pessoas de classe mais baixa so
mais dependentes de suas famlias na eventualidade de uma
doena ou deficincia.17 No caso de pases em desenvolvimento,
este problema exacerbado pela falta de recursos estatais, o que
impossibilita a manuteno de um seguro sistema de bem-estar
social providenciado pelo Estado. As reformas neoliberais
implementadas nos ltimos anos tende a piorar o problema.
Enquanto em vrios casos a dependncia de certos
indivduos de classe baixa em relao a suas famlias os impede
de buscar livremente parceiros do mesmo sexo, importante
mencionar que tal dependncia muitas vezes mtua: o que existe
em alguns casos uma interdependncia. Tal situao abre
espaos de tolerncia no mbito familiar que permitem, sob certas
condies, um alto nvel de liberdade. Como Don Kulick
demonstra em seu livro Travesti: sex, gender and culture among
brazilian transgendered prostitutes, muitas vezes travestis
adquirem respeito e tolerncia no meio familiar graas
importante ajuda financeira e material que elas podem
proporcionar com sua renda.18
Outra rea afetada pelas desigualdades socioeconmicas
aquela dos espaos comunitrios, que podem ser divididos em

16

MURRAY, S. Family, social insecurity, and the underdevelopment of gay


institutions in Latin America. In: ______. (Org.). Latin American male
homosexualities. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1995. p.
33-48.
17
Ibid., p. 37
18
KULICK, D. Travesti: sex, gender and culture among brazilian
transgendered prostitutes. Chicago: University of Chicago Press, 1998.

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espaos pblicos e estabelecimentos comerciais. Espaos pblicos


so parques, praas, praias e outros espaos pblicos usados para
contatos entre homossexuais, desde locais para pegao at
aqueles usados para encontros sexuais. Estabelecimentos
comerciais incluem saunas, bares, boates, e outros
estabelecimentos onde gays e lsbicas se encontram e,
ocasionalmente, tm relaes sexuais. De acordo com o status
socioeconmico, estes diferentes tipos de espaos comunitrios
so mais ou menos acessveis, ou so utilizados de maneiras
diferentes. Estabelecimentos comerciais, especialmente os
considerados mais modernos, mais abertamente gay, como certos
bares, boates e festas esto freqentemente muito alm do poder
aquisitivo das classes mais baixas, o que os torna espaos de
classes mdia e alta.19 Conforme mencionado anteriormente,
certas cidades do interior do Estado de So Paulo funcionam
como plos regionais devido sua maior concentrao de
estabelecimentos comerciais para o pblico GLS, 20 porm a
mobilidade necessria e o custo dessas visitas ocasionais esto
fora do alcance de grande parte da populao de gays e lsbicas
das cidades vizinhas. Mais uma vez, estas consideraes no
devem ser exageradas, uma vez que indivduos de classe baixa
tm opes disponveis para seu entretenimento e
homossociabilidade. Muitas vezes, entretanto, uma certa
hierarquia estabelecida entre estabelecimentos mais chiques de
classe alta e outros onde a clientela mais variada.21 Espaos
pblicos como parques e praias so claramente mais acessveis a
indivduos de baixa renda que bares e boates caras. Pode-se ver,
ento, como o status socioeconmico influencia a distribuio
espacial nesta geografia do desejo. Como mostra Richard Parker,
no caso da cidade do Rio de Janeiro, o uso de espaos pblicos
muda com o passar do tempo de acordo com a classe social.22

19

DRUCKER, P. In the tropics there is no sin: sexuality and gay-lesbian


movements in the third world. New Left Review, Londres, n. 218, p. 90,
1996.
20
PARRA, 2001, p. 82
21
ALBUQUERQUE JR; CEBALLOS, 2002. In: SANTOS, R.; GARCIA, W. (Org.).
A escrita de Ad: perspectivas tericas dos estudos gays e lsbic@s no
Brasil. So Paulo: NCC-Suny: Xam: Abeh, 2002. p. 150-151
22
PARKER, R. G. Beneath the Equator: cultures of desire, male homosexuality,
and the emerging gay communities in Brazil. New York: Routledge, 1999.
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Apesar de um certo nvel de interao entre as diversas classes


em vrios desses espaos, especialmente por meio da prostituio,
existem claras diferenas nos nveis de segurana, aceitao e
glamour entre os espaos pblicos em bairros mais nobres como
Ipanema e Leblon, e aqueles em bairros mais populares na Zona
Norte e Zona Oeste.
O surgimento desta pink economy e a viso que gays
representam um importante nicho do mercado a ser explorado23
podem contribuir para a construo de uma imagem de gays como
consumidores vorazes e casais homossexuais como um ideal
mercadolgico, como dizem os americanos, duas rendas e
nenhuma criana (DINKs, ou double income, no kids). 24
Numa publicao recente intitulada The Sexual Citizen: queer
politics and beyond, David Bell e Jon Binnie analisam os perigos
de uma estratgia de liberao pelo consumo para minorias
sexuais nos Estados Unidos e no Reino Unido.25 Tal estratgia
pode levar aceitao de um tipo de gay (branco, de classe
mdia), visto como um modelo de cidado-consumidor,26 e uma
maior marginalizao de todos os outros devassos que no se
encaixam nessa forma. Em termos mais brasileiros: corre-se o
risco de aceitar o gay rico e marginalizar ainda mais a bicha pobre.
Em terceiro lugar, desigualdades socioeconmicas esto
ligadas distribuio da violncia contra minorias sexuais. Num
de seus vrios estudos sobre o alto ndice da violncia e
discriminao contra homossexuais no Brasil, Luiz Mott mostra
como o problema atinge todas as camadas sociais.27 Os dados
apresentados por Mott demonstram que as vtimas de homicdios
contra homossexuais pertencem a uma grande variedade de

23

Ver, por exemplo, ALBUQUERQUE JR; CEBALLOS, 2002, In: SANTOS, R.;
GARCIA, W. (Org.). A escrita de Ad: perspectivas tericas dos estudos
gays e lsbic@s no Brasil. So Paulo: NCC-Suny: Xam: Abeh, 2002. p. 149.
24
BADGET, M.V. L. Money, myths and change: the economic lives of lesbians
and gay men. Chicago: The University of Chicago Press, 2001. p. 1-2; BELL,
D.; BINNIE, J. The sexual citizen: queer politics and beyond. Cambridge:
Polity Press, 2000. p. 97.
25
BELL; BINNIE, loc. cit., p. 96-107
26
Ibid., p. 97-98
27
MOTT, L. R. de B. Os homossexuais: as vtimas principais da violncia. In:
VELHO, G.; ALVITO, M. (Org.). Cidadania e violncia. Rio de Janeiro: Ed.
da UFRJ: Ed. da FGV, 1996. p. 99-146.

142

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categorias profissionais.28 Porm, o local onde ocorre tal violncia


fsica e assassinatos tende a estar relacionado com o uso de
espaos comunitrios. Segundo os dados, grande nmero de
travestis e michs foram mortos em locais pblicos, enquanto
outras vtimas gays e lsbicas foram mortos em seus prprios
domiclios.29 Dentre os autores dos crimes, policiais e oficiais
militares eram a maioria, seguidos de michs. 30 Ao menos
relativamente, os dados do a impresso de que os
estabelecimentos comerciais freqentados pelas classes mdia e
alta so mais seguros que outros espaos pblicos. Alm disso, o
problema da violncia no Brasil nas duas ltimas dcadas, mais
amplamente falando, tem sido caracterizado por uma
pauperizao da violncia. Indivduos de classe mais baixa sofrem
a maior parte da violncia praticada por policiais em e fora de
servio, justiceiros, esquadres da morte e linchamentos. 31
Homofobia e discriminao social se cruzam e gays e lsbicas de
classes mais baixas carregam o maior peso dessa realidade
violenta. Se analisarmos a violncia sofrida por gays de classes
mais altas, outra relao importante entre desigualdade e
distribuio da violncia contra homossexuais se evidencia. Nos
numerosos casos de latrocnio onde michs roubam e matam
clientes gays em seus apartamentos ou quartos de motel, o crime
ocorre no contexto de um encontro homoertico, mas sua lgica,
muitas vezes, tem mais a ver com presses socioeconmicas que
com orientao sexual pura e simplesmente.

28

Ibid., p. 127
Ibid., p. 128
30
Ibid., p. 133-134
31
PINHEIRO, P. S. Democracies without citizenship. NACLA: Report on the
Americas, v. 30, n. 2, p. 17-23, 1996; PINHEIRO, P. S. The rule of law and the
underprivileged in Latin America: Intoduction. In: MNDEZ, J.;
ODONNELL, G.; PINHEIRO, P. S. (Org.). The (un)rule of law and the
underprivileged in Latin America. Notre Dame: University of Notre Dame
Press, 1999. p. 1-18; PINHEIRO, P. S. Democratic governance, violence and
the (un)rule of law. Daedalus, Cambridge, MA, EUA, v. 129, n. 2, p. 119144, 2000; CHEVIGNY, P. Defining the role of the police in Latin America.
In: MNDEZ, J.; ODONNELL, G.; PINHEIRO, P. S. (Org.). The (un)rule of
law and the underprivileged in Latin America. Notre Dame: University of
Notre Dame Press, 1999. p. 49-70; MARTINS, J. de S. Lynchings: life by a
thread: street justice in Brazil, 1979-1988. In: HUGGINS, M. (Org.).
Vigilantism and the state in modern Latin America: essays on extralegal
violence. New York: Praeger, 1991. p. 21-32.
29

Cad. AEL, v.10, n.18/19, 2003

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Juan P. Pereira Marsiaj

C LASSE S OCIAL E P OLTICA DE


MOVIMENTOS DE GAYS E L SBICAS
Nossa anlise at este ponto tem se concentrado na relao
entre classe e o desenvolvimento de comunidades de gays,
lsbicas e travestis. A maior parte das pesquisas feitas at hoje
permite-nos teorizar sobre esse aspecto. Outra questo, e que
recentemente comeou a receber uma crescente ateno
acadmica, refere-se ao surgimento de movimentos sociais de
gays e lsbicas em pases em desenvolvimento.
Os interesses defendidos por indivduos, grupos e
organizaes no movimento gay e lsbico so derivados no
somente da orientao sexual, mas de outros elementos que
compem o sujeito, tais como raa, sexo e status socioeconmico.
Por conseguinte, a prioridade de certas questes pode variar de
grupo para grupo, segundo divises de classe. Certos grupos de
classe mdia, dessa maneira, usariam uma maior parte de seus
recursos na luta pelo reconhecimento da parceria entre pessoas
do mesmo sexo ou por benefcios trabalhistas derivados do
reconhecimento de tal parceria. Grupos de classe mais baixa,
usariam seus recursos na luta contra questes que afetam essas
camadas da sociedade, mais direta e urgentemente, como
violncia e discriminao social. Vrias questes, porm, no
podem ser classificadas como sendo de classe mais baixa ou mais
alta, como por exemplo discriminao homofbica em geral e
HIV-AIDS e, conseqentemente, apresentam um potencial para
uma mobilizao entre diversas classes sociais.
Como em vrios outros pases latino-americanos, a maioria
dos participantes no movimento gay e lsbico no Brasil tendem a
ser de classe baixa ou classe mdia baixa, e muitos lderes de
organizaes, de classe mdia.32 Mais uma vez, classe pode nos
ajudar a compreender tal distribuio. Um engajamento poltico
e pblico no movimento gay representa um risco material maior
para indivduos de classe alta, que tm muito a perder e
consequentemente tendem a ser mais conformistas e
conservadores. Alm disso, especialmente nos grandes centros

32

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GREEN, J. N.; BABB, F. Introduction. Latin American Perspectives, Thousand


Oaks, CA, EUA, v. 29, n. 2, p. 14, 2002.
Cad. AEL, v.10, n.18/19, 2003

Gays ricos e bichas pobres...

urbanos, a opo da liberao pelo consumo aberta a esses


indivduos pode contribuir para sua baixa politizao.
Crises econmicas mostram outra maneira como o
desenvolvimento econmico, desigualdades socioeconmicas e
o movimento de gays e lsbicas esto ligados. Durante a dcada
perdida dos anos 80, as classes mdia, mdia baixa e operria
foram duramente afetadas pela crise econmica. Na mesma poca,
o nmero de organizaes de gays e lsbicas diminuiu
significativamente.33 Isto pode ser explicado, em parte, pela
diminuio de recursos organizacionais (materiais, humanos, etc.)
disponveis a esses grupos e pela reorganizao de prioridades,
dada a urgncia de questes materiais e econmicas.34
Para encerrar, analisar a questo da homossexualidade a
partir de questes socioeconmicas (desenvolvimento e
desigualdade) d-nos uma melhor idia da diversidade e
complexidade das comunidades e movimento de gays, de lsbicas
e de travestis. Certas tenses e riscos tambm puderam ser
esclarecidos, como por exemplo o perigo da iluso de liberao
que o crescimento de estabelecimentos comerciais para o pblico
GLS cria. Tal liberao extremamente limitada, e gera a
possibilidade de uma maior marginalizao de grande parte da
comunidade gay e lsbica. A histrica ligao do movimento gay
com a esquerda pode ser uma fonte de contestao a uma
estratgia baseada num consumismo exagerado. 35 No meu
parecer, alianas mais fortes com grupos que lutam por maior
igualdade econmica, de gnero e racial podem fortalecer e ajudar
a causa do movimento de gays, de lsbicas e de travestis. Tais
alianas podem tambm auxiliar no processo de aprofundamento
da democracia no Brasil, que continua incompleta em vrias
esferas, incluindo a sexual e a econmica.
33

GREEN, J. N. The emergence of the brazilian gay and lesbian movement,


1977-1981. Latin American Perspectives, Thousand Oaks, CA, EUA, v. 21,
n. 1, p. 38-55, 1994.
34
Mesmo que esta explicao faa sentido, na minha opinio, ela no
suficiente para explicar o declnio do movimento durante o incio da dcada
de 1980. A chegada da AIDS neste mesmo perodo tambm teve um papel
importante no processo. Uma maior investigao se faz necessria para
melhor estabelecer as relaes de causa e efeito nesta questo.
35
Enquanto vrios avanos foram alcanados graas a esta aliana, o
relacionamento entre o movimento gay e organizaes de esquerda tem
tambm um aspecto problemtico, ver: GREEN, 1994 e GREEN; BABB,
2002
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GAYS RICOS E BICHAS POBRES: DEVELOPMENT,


SOCIO-ECONOMIC
INEQUALITY
AND
HOMOSEXUALITY IN BRAZIL
ABSTRACT
This article presents some considerations regarding the complex
relationship between development, socioeconomic inequality, and
sexual minorities in Brazil. The first section analyzes the
relationship between the process of modernization and the
emergence of gay and lesbian networks and communities. Based
on arguments made by John DEmilio in his article entitled
Capitalism and Gay Identity (1983), this analysis traces the impact
of urbanization and the rise of wage labour on the importance
and function of the family. The second part explores in greater
detail the relationship between class and homosexuality, showing
how social class affects the formation of homo-affective
relationships and homo-social networks, the use of communitarian
spaces, and the patterns of violence against gays, lesbians and
travestis. The third and last part concludes with some
considerations regarding the relationship between class and the
gay and lesbian movement.
KEYWORDS
Homosexuality; Class; Brazil; Social movements

Passeata rumo Vila Euclides em So Bernardo do Campo,


1 maio 1980.

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