RIBEIRO, Aquilino - Caminhos Errados
RIBEIRO, Aquilino - Caminhos Errados
RIBEIRO, Aquilino - Caminhos Errados
Aquilino Ribeiro
Grande bicho o homem! Bate-se e morre de
sorriso nos lbios por disparates. Trilha sendas
speras e espinhosas, atrs de miragens, como se
pisasse as mais fofas tapearias.
Nestas breves frases tiradas do prefcio, Aquilino
explica o ttulo do seu livro. Caminhos Errados
conta a linha caprichosamente descrita por um
punhado de figuras, movidas, nos labirintos da
vida, pela bssola da sua prpria inquietude e da
sua sede de aventura. Sem o erro, diz-nos, a
Terra tornar-se-ia uma morna e desolada charneca,
ou pelo menos uma paradisaca e rotunda
pasmaceira. Evaristo, jovem e frustrado, erra na
procura do amor, que julgara encontrar em Maria
Salom, o Lambru erra quando, vencidos tormentos
sem conta, v a mulher que trazia nas meninas dos
olhos casada com o homem que o atirara para o
inferno da guerra.
H uma certa melancolia nestas seis novelas, a que
no escapa at Menos Sete, uma deliciosa
aguarela tecida em torno das vicissitudes dos gatos
e gatas que povoaram os quintais de Aquilino.
A velha civilizao, que ouo denominar crist,
bruxuleia e no vejo como se reanime. A mim, aqui
lhe confesso francamente, no me deixa saudades,
tanto me sentia ferido nos acleos da sua frieza.
Nestas palavras, Joo de Barros, em crtica que
acerca do livro publicou na altura, julgava encontrar
uma tristeza que o tempo tem acentuado, nobre
angstia de quem sente, adivinha e sofre as
calamidades e runas da sua poca, precioso
testemunho da humanidade intrnseca do
extraordinrio e do vitorioso criador e construtor de
Beleza.
E glosando este tema, Joo de Barros acrescentava:
Humanidade vibrante, sim, doura e fraternidade
humanas que o ouro rico da sua frase jamais
esconde ou disfara de todo, e que do estilo de
Aquilino faz, no a mscara ou a urna vazia da s
elegncia formal, mas a imorredoura, a perene
cintilao da sua ternura, da sua misericrdia
perante a dor, a aflio, a desventura e os
desconcertos do nosso universo quotidiano. E no
esta, para mim, a menor grandeza, a menor elevao
e dignidade do seu gnio e da sua obra de
romancista consagrado, de artista e de pensador
sempre sfrego de transcender-se a si mesmo.
Aquilino, mestre de ns todos, quer-se constante
discpulo e servo da sua inelutvel, da sua
dominadora sede de perfeio. Honra lhe seja, como
j ele honra suprema da nossa literatura de hoje e
de sempre.
A Joo Pina de Morais
Desta portada, to de relance como se passasse nos
ares por cima de sua casa e o descobrisse janela,
sado o autor de Sangue Plebeu. Lembro-me que
andmos de companhia por essa Europa e que a
estrela que nos guiava, bem embora fosse de
primeira grandeza e radiosamente ideal, no nos
conduziu a Bethlm. Das rampas desses caminhos
errados bem de certo que algum perfume perdura
at o fim dos nossos dias. o bolo aos coraes
simples. De resto, confortemo-nos com a sina
universal, to precrias so as rotas que nestes dias
aziagos se oferecem ao mundo e habitantes
presumidos de racionais. A velha civilizao, que
ouo denominar crist, bruxuleia e no vejo como se
reanime. A mim, aqui lhe confesso francamente, no
me deixa grandes saudades, tanto me sentia ferido
nos acleos da sua fereza.
Olhando retaguarda, bato e torno a bater no peito.
possvel que errar seja o condo inelutvel de
tudo, dos homens, das naes, dos prprios astros.
No h ningum que, chamado loisa em Josafat,
no tenha a rectificar 90 % dos seus passos. A cada
viragem se encontra um velhaco e a nossa
imprvida boa f, um sandeu e a nossa infinita
culposa brandura, dolo, ingratido, piratarias de
vau para vau e a impertinente indulgncia se no
necessidade da nossa parte. Por outra, que
socilogo, perante a marcha histrica da carneirada
humana, no corrigira com dedo salomnico aqui e
alm as suas parasangas angustiosas e conturbadas?
E no falemos da mecnica celeste, pois no est
absolutamente garantido que graves erros de clculo
se no tenham infiltrado no risco da eclptica,
supondo que no seja seu fautor o mesmo astro.
Ocorre-me que, prolongando estas premissas, me
iria encontrar com Erasmo. Sim, tambm eu direi
que sem o erro a Terra se tornaria uma morna e
desolada charneca, ou pelo menos uma paradisaca
e rotunda pasmaceira. grande bicho o homem!
Bate-se e morre de sorriso nos lbios por disparates.
Trilha sendas speras e espinhosas, atrs de
miragens, como se pisasse as mais fofas tapearias.
Sem dvida que o seu egosmo, entre um itinerrio
duma rectitude inquebrantvel e esta mareao de
caravela, no hesitaria. Mas, repito, o planeta ficaria
transmudado no mais fastidiento dos aqurios. O
meu livro o antpoda dessas beatitudes apenas
sonhadas.
Dei conta que no vale a pena chorar perpetuamente
as cebolas do Egipto que, por descuido, falta de jeito
oportuno, impercia, deixmos de desaproveitar
para o nosso refogado. Siga a rusga!
Querido e admirvel amigo, honra das letras
nacionais, aceite com isto um abrao do camarada
saudoso dos tempos de Paris, Biarritz, Vigo,
esperanado que ainda se nos ho-de proporcionar
estdios a percorrer juntos sob a gide do mesmo
Hermes, o deus benigno que, plantado beira da
estrada, no deixar de nos dizer piedosamente, e
quanto basta: ides bem!
Casa de Santa Catarina, Maio de 1947.
Aquilino Ribeiro
Maria Salom
A camioneta da carreira, destes cangalhos
estrepitosos e cheios de birras, que vieram suceder
potica diligncia com to desairada prosa, botou
tarde vila. Tinha tido uma pane na bomba da
gasolina logo sada da cidade, e quebrou-se-lhe o
semieixo a alturas da granja Velha. Automveis que
passavam foram tomando alguns dos passageiros
de evidncia social, um padre, um doutor, o rico
proprietrio, enquanto os demais, baldeados para o
meio da estrada, bocejavam, viam passar as nuvens,
ou renovavam com os compa-nheiros de azar um
colquio s duas por trs amortecido.
Por isso a camioneta, que tinha o nome pomposo de
Miss Antas-da-Beira, tendo chegado com atraso,
dispunha-se a largar em p de vento, quando era da
regra queimar ali com o maior dos ripanos nunca
menos dos seus bons quinze minutos. Espicaadas,
desceram aodadamente umas pessoas com os seus
saquinhos de amostras e, por ltimo, aquela senhora
de lao vermelho no chapu, que tanto dava no
goto. No tinha ningum a esper-la, e quedou
perplexa no meio do largo com a mala de mo,
smil-coiro, sua banda.
Entretanto o condutor, que trepara ao tejadilho,
desentalava dentre as arcas dos ratinhos, que
voltavam do Alto Alentejo, os fardos da mercearia.
O senhor Daniel, com o carregador a postos,
especara em baixo, testo manobra.
Escurecia, e em renque pela estrada, sobre a
regueira de luz dos faris, os lampies de petroline
do Municpio todos se encolhiam encadeados em
sua luz morrinhenta, do tempo dos capites-mores.
O Tavolado mostrava-se varrido de ociosos, hostil
de todo como sempre que descia da Nave com o pr
do Sol, mais picante que praganas, aquela carujeira
miudinha. No quiosque, a poucos passos, os quatro
da vigairada de todos os burgos provinciais, presos
bisca lambida, nem viraram a cabea.
A senhorita, de planto beira da mala, deitava
olhos perscrutadores a todos os horizontes, olhos de
nufrago, a que anima a esperana que acabe por
chegar a subentendida pessoa. De estatura acima da
mediana, calava sapatos de estrado alto em cortia,
sobre que pairava por altura do joelho a saia em
godets, e trazia na cabea um chapelinho, mais do
que boina, menos que um gorro, enfeitado com o tal
laarote encarnado, que fazia tanto chamariz sem
contudo implicar desenvoltura. Alm da carteira e
da sombrinha, terava ao pescoo a raposa a cujo
contacto fofo, com os solavancos do calhambeque,
Evaristo pudera sentir a espuma ligeira de sua
fragrncia recatada. Como haviam viajado
prensados ombro com ombro, de comeo no a
pudera ver bem seno de perfil. Afigurara-se-lhe
bonita, mas bonita como tantas mulheres. A pele da
face, muito fina e transparente, coisa que sempre o
sensibilizara, assim como entre as flores o cetinoso
da camlia, circunstncias aristocrticas para a sua
visualidade de serrano, Incutira-lhe de princpio um
grande respeito e ao mesmo tempo timidez. Quando
os joelhos se tocavam, fenmeno a que ela parecia
no ligar importncia nenhuma, logo ele refugia
com o seu, como se se houvesse tornado ru duma
falta de educao. E das vezes que se pusera a
estud-la e ela, por mero acaso ou porque lhe
picasse o aguilho do olhar insistente, o fitasse,
desviava a vista, acobardado. No era uma criatura
doutra plana social, ou pelo menos doutra plana de
sorte? Sorte no tocante a poder andar moda, trazer
uns sapatinhos com que dava a ideia de flutuar no
obstante a impacincia que a ralava, ter os olhos dos
passageiros assestados nela. Com a barafunda da
segunda pane, tivera ensejo de observ-la muito
sua vontade. Era o que em linguagem da trama se
denomina um peixo. Muito elegante e simples,
ultrapassava a linde daquilo a que, no receio de
enganar-se, confinara at ento a sua homenagem.
Realmente o seu porte inculcava uma distino
inata. Peito sem demais, ancas em correspondncia,
um rosto simptico, para no dizer formoso, tudo
nela estava coordenado de modo a gerar o desejo e
obter o sufrgio dos sentidos.
Coitada, agora no s ela mas at a mala, com os
rectngulos niquelados das fechaduras a brilhar, de
esguelha em relao s bermas, tinha ares de
contrariada. O olhar da senhorita ia e tornava a ir
pelo Tavolado abaixo, inutilmente como o de irm
Ana. Os raros vultos que descobria tomavam rumos
que no lhe interessavam. E Evaristo considerou:
No era mais simples para a criatura pegar ela
prpria da mala e girar? Provavelmente tem
vergonha. Segundo a regra da perfeita fidalguia, ora
e sempre letra viva para portugueses de gravata,
uma pessoa chique ou com pretenses s faz aquilo
que no pode mandar fazer a um rstico.
Transportes a lombo entre ns esto reservados aos
galegos. Esta senhora l entende que lhe fica mal
levar a mala e prefere correr todos os
inconvenientes, como apanhar uma gripe, falhar o
ensejo de ver o namorado, no assistir assinatura
dum testamento. Que lhe preste, a esta hora, no lhe
caam os parentes lama. No Tavolado, se algum
reina so os dois ou trs bbados do costume, no
falando nos gatos pungidos por este seu libidinoso
ms de Janeiro. Mas, deix-lo, se pegasse da mala e
se pusesse a mexer, lobrigar-se-ia a si prpria, e para
o brio de certas criaturas quanto basta.
Evaristo deixou de reflectir para a admirar apenas.
A admirao uma espcie de arroubo e no precisa
para nada do concurso do entendimento. Depois
duma orgia cerebral volveu s cogitaes:
Talvez que a maleta seja pesada demais para as
suas foras. A carteira, a sombrinha, a raposa no a
embaraam pouco. verdade que imvel ou a bater
o taco frentico em quatro palmos de solo, que o
mesmo, no resolve o problema. Ela prpria j se
deve achar compenetrada desta noo, porque ei-la
que se decide, embora a passo hesitante, a dirigir-se
aos jogadores do quiosque. Onde ela vai bater!
- Compadre, corte a espadilha!
- Corte o Diabo que o leve, para que puxou do
manilho?
Porque os visse encanturrados partida, ou porque
no reconhecesse entre eles a pessoa indicada,
arrepiou caminho. Eles nem sequer haviam
esboado o jeito de dar conta.
Postou-se de novo beira da mala; contemplou-a
com ar de quem troca impresses. A mala no
inculcava riqueza e muito menos marquesado. Era
uma mala honestinha de caixeiro de praa, de
estudante a frias, ou mesmo de criada de servir,
volta de Lisboa. Mas isso que tinha!? Depois de falar
com a mala, acabou por se dirigir agncia para
onde o senhor Daniel se recolhera, no rasto do
homem com a saca s costas. O senhor Daniel era
um senhor de grande nariz e culos, que usava
gravata e tamancos, contraste que chamaria
especialmente a ateno para ele, se toda a gente
no soubesse que o senhor Daniel era o senhor
Daniel, inconfundivelmente o senhor Daniel desde
Lamego a Trancoso, desde Armamar a Viseu, scio,
gerente, concessionrio, l isso ao certo que
ningum afirmava, da carreira de passageiros e
mercadorias da guarda para Vila Real, e homem
sempre muito atarefado ou fingindo ser. Mas esta
sua truculncia era precisamente o seu lado menos
rebarbativo. Ora, ao tempo que no trao da porta
agitava em mo um molho de facturas e exibia o seu
indeclinvel promontrio nasal, a senhorita
aproximava-se:
- senhor Daniel, desculpe... A minha criada no
esteve aqui? Teria desis-tido de esperar, na incerteza
que havia da chegada da camioneta...?
- No lhe sei dizer, senhora D. Maria Salom. Tenho
estado com a escritu-rao a tombos, h mais de
duas horas que no ponho o p na rua - e seguiu o
seu destino.
Chamava-se Maria Salom, lindo nome! Mas a
Evaristo ocorreu, precisa-mente nesta altura, que a
mulherzinha da sua terra, agora de costas voltadas
para ele na bancada da frente e de bruos janela,
lhe chamara Maria Salom. Sim, lindo nome! Um
nome, que pelo matiz, pela sonoridade, a
imaginao podia muito bem supor ter sido
inventado para uma rapariga assim com aquele
quiquinho na cabea, precintado por uma fita que
espalhava mais vermelho volta que um papoilal.
Donde que o estafermo da Clara Fagulha a
conhecia?
- No sabe de ningum, senhor Daniel, que me leve
esta maleta a casa? Eu pago! - tornou a senhorita,
sobrepondo-se freima do agente com apostada
pacincia e assestando olhos no carregador.
O homem importante espraiou a vista pelo
Tavolado; dirigiu-a depois para a estrada da banda
de Lamego; ergueu-a para os telhados, para o cu;
em nenhum horizonte descobriu quem queria.
- Ainda h instantes aqui estava o Pouca Roupa -
proferiu num tom perfeitamente desmoralizado. -
Foi por l a algum mandarete, mas no pode tardar.
Entre, entre para dentro, faa favor.
- Muito obrigada, eu espero bem aqui. A noite nem
por isso est muito fria.
- Qu!? A noite no est fria? Vem a neve. Trago os
ps como calhaus e olhe que pus dois pares de
coturnos de l, uns por cima dos outros.
Ela no se dignou a objectar a prosa to rasteira e
particular, e de novo explorou o largo com os olhos.
Depois decidiu-se a subir para o trao da porta. O
nariz super Cirano de Bergerac do senhor Daniel
apareceu ao lado do focinho deliciosamente
proporcionado de Maria Salom.
Mas a mulher que estava na camioneta deitou a
cabea de fora e regougou:
- Uma vila cheia de pirangas e, quando se quer um,
no aparece! No me d a camioneta tempo, se no
eu ia-lhe levar a mala!
A damazinha sorriu. O senhor Daniel aprovou. O
condutor, depois de rosnar qualquer coisa ao fundo
da escada, subiu para a camioneta. Puxou o fecho
clair da raquet, ps a bolsa de coiro tiracolo e
entalou o lpis detrs da orelha. Um homem que
no tinha mos a medir. E algum, evidentemente,
entre guarda e Vila Real. O que , adregara receber
apenas uma quota da importncia que o senhor
Daniel detinha por atacado.
Evaristo entretanto fez-lhe um gesto, dois, nada
mais que gestos, a que o condutor respondeu
inteligentemente com acenar de cabea. Evaristo
apeou e foi direito a Maria Salom:
- Se Vossa Excelncia me permite, acompanho-a e
levo-lhe a mala. No me custa nada. A camioneta d
tempo. a casa do Sr. Dr. Juiz, se percebi bem...?
- a casa do Sr. Dr. Juiz, sim, mas no se incomode.
Eu espero.
- No me incomoda nada. Posso muito bem com a
malinha. Ah, mas o que ela leve!
- Mas eu no queria.
- No h-de ficar aqui ao relento.
J iam a caminho. Ela no desejava outra coisa e
ps-se logo par a par com o ombro de Evaristo.
Caminhava silenciosa. Ele achava-se feliz - oh, de
modo exultante - por prestar um pequeno servio a
uma rapariga fina, to engraada, com aquele lao
vermelho no chapelete e assentando com graa o
modernssimo sapato de sola de cortia naquela
terra de tortulhos. Agora que tivera o desembarao
de lhe ser til, no se ralava nada que ao acaso da
marcha os ombros, os braos, se tocassem. Ela
tambm julgara-se na obrigao de se mostrar
gentilmente curiosa quanto sua pessoa: se ia para
longe se no valia mais a pena pernoitar na vila com
o arzinho que cortava. se era dos stios, etc., etc..
Ele respondia de boa mente com enftica
sinceridade, porque no encontrava melhor
linguagem no seu deslumbramento. Era de gandra
de Rei, conhecia, no? Para se l ir, chegando a
gente a Tendal da Loba, tinha que se descer e
acabava-se a jornada pata. Eram dois quilmetros
de caminho velho, um salto para quem como ele
dispunha de boas pernas.
- Ento no sei onde fica gandra do Rei! de l
aquela mulherzinha que vinha a falar comigo na
camioneta.
- A Clara Fagulha?
- Essa mesma. Esteve a servir em casa do meu tio
bastantes anos. Agora, s duas por trs est l cada
para matar saudades.
Da criatura transitaram para gandra de Rei,
turisticamente falando, terra de fraguedos, tojal e
lobos.
- Lobos, h l lobos?! Srio? Eu julguei que j no
havia tais bichos! Que no passavam duma
inveno potica para divertir a gente
- Por amor de Deus! Nem os dos Jardins Zoolgicos?
- Ah, nesses no acredito eu! No, no. So homens
fardados de lobos! hoje finge-se tudo.
- Que ideia!
- O senhor viu-os?
- Venho da Capital, minha senhora, e vi-os nas
Laranjeiras com estes que a terra h-de comer vi-os
na jaula.
- Tem a certeza que no foi iludido na sua boa f?! -
disse isto e desatou a rir.
Evaristo desatou a rir tambm, no ntimo um pouco
confuso com descobrir-se mais ingnuo do que se
supunha e admirado daquele feitio faceto, quase
burlador de Maria Salom.
- Em gandra de Rei temos portanto lobos a valer,
dizia o senhor?
- Evaristo Soares, seu criado.
- Garantidos, senhor Soares?
- Garantidssimos. To feras, to margem do
direito e da religio que at comem carneiro
roubado s sextas-feiras.
Desta feita Maria Salom soltou-lhe um risinho
satisfeito.
- Mas de l?
- Sou de l.
- No parece.
- Vossncia no de Antas da Beira? Todavia quem
o diria!
- Ora essa!
- Conheo perfeitamente a vila. gandra de Rei com
camisa de goma.
Ela sorriu e disse com lisonjeira condescendncia:
- No sou daqui, de facto. Sou de Coimbra. Ca aqui,
vai fazer dois anos. Em Antas tenho apenas
parentes.
- O Dr. Juiz Henrique de Ponces, no ?
Decorreu uma pequena pausa, e ela emitiu num tom
de voz que parecia doutra pessoa:
- Sim, meu tio. conhece-o?
- O Dr. Juiz Ponces dava-se muito com meu pai, que
foi recebedor, e vive aposentado na aldeia. Quando
lhe acontecia ir pela serra, reservava-nos a honra de
aceitar a nossa modesta hospitalidade. L o conheci.
Ele que no estar lembrado de mim. Eu era
mido.
- Tem estado fora?
- Tenho estado em Lisboa. H cinco anos que no
venho a gandra de Rei.
Desciam agora a rua que desembocava no Tavolado
e, com as suas casas de ripa e folha zincada, um ou
outro solar envilecido, era a cabea da estrada que
mergulhava para o Tedo. No se descobria vivalma.
- Vem com demora? - inquiriu ela.
- Nem eu sei.
- O mesmo se d comigo. Eu venho do Porto, tenho
l uma irm.
Seguiram calados a ruminar aqueles mundos de
coisas. Melhor a contemplar aquele mapa-mndi,
pelos nomes e imensa vacuidade dos espaos
interpostos. E quele conspecto, em vez de se
aproximarem, apartavam-se. Um bom momento
ouviram em silncio o martelado de seus passos.
Estavam como que perdidos cada um no seu
hemisfrio, que j no era pequeno. Ela teria vinte e
dois a vinte e cinco anos. Ele ia nos vinte e dois. Os
rios que haviam passado debaixo de to dilatado
arco de tempo que guas turvas ou claras tinham
arrastado? No era fcil que se encontrassem. Tudo
no mundo era onda, disperso.
Mas tinham chegado a uma casa de cornija abacial
com janelas sobre-pujadas de sanefas D. Joo V.
Subiram a escada de pedra, s escuras, e no
primeiro patamar, com a ponteira da sombrinha,
Maria Salom bateu.
Bateu e ficaram ambos parados escuta de
correspondncia de parte dos moradores. Evaristo
estava em jurar que ela contrafazia o flego a
qualquer opresso, acaso a cansao. Na expectativa,
com voluptuosidade se sentia penetrar dos eflvios
do seu corpo, como se o facto de se encontrarem ali
no escuro, s espaldas do mundo, lhe conferis-se
certos direitos de posse. O anlito dela, tendo-se
acercado acidentalmente, roava-lhe a face. E
enebriava-o o seu calor e aroma, to impregnados
de sexo.
Nada entretanto quebrara o silncio, e Evaristo deu
conta que a respirao dela, de comeo apenas
incerta, acelerava agora o ritmo. Tornou a bater,
com a mo mais vigorosa, e novamente ficaram na
conteno de quem espera.
- No estaro?! - disse Evaristo.
- Ah, isso esto.
Que que ele no daria para poder observ-la, ler-
lhe na expresso do rosto o comentrio
morosidade com que era recebida! E segundos,
minutos foram decorrendo, que para ela deviam ser
longos como eternidades. Tornou a bater. Era a
terceira vez que o fazia. Bateu, soltou um pequeno
suspiro, e recaiu no silncio de quem aguarda e
aplica o ouvido no desejo de captar qualquer rumor.
O seu suspiro fora um misto de ansiedade e
desespero. Poderia traduzir-se pelo grito espantado:
e esta?
Mas dentro arrastaram-se passos, vagarosos, to
vagarosos, que pareciam seguir rotina que nada
tinha a ver com Maria Salom. Mas no, esses
passos aproximaram-se. Abriu-se a porta e uma
senhora ainda nova apareceu de candeeiro em
punho. No mostrou surpresa, nem se lhe viu
agrado ou desagrado no rosto. Da mesma maneira,
sem prazer nem relutncia na sua sequido, se
deixou beijar pela recm-vinda.
Depois, como Evaristo se mantivesse hirto, de mala
em punho, cabea descoberta, Maria Salom
explicou:
- Este senhor vai de passagem para gandra de Rei e
vinha na camioneta. Viu-me espera e ofereceu-se
para me acompanhar.
A senhora da casa, que tinha belos dentes e porte
altamente senhoril, em despeito do desalinho
domstico, mediu-o com o olhar. E num tom que lhe
pareceu de simpatia pronunciou:
- No deseja tomar nada?
Era a oferta consabida da hospitalidade beiroa.
Evaristo agradeceu com exagerada polidez e pediu
licena para se retirar.
A rapariga estendeu-lhe a mo e foi quase com uma
vertigem que, ao mant-la dentro da sua, lhe ouviu
dizer:
- Muito obrigada pelo seu obsquio, muito obrigada;
estimei imenso conhec-lo. Permita-me uma
pergunta, no este ano que h Endoenas em
gandra de Rei? No sabe? Constou-me que sim. Se
houver, as minhas amigas Lemos so l certas e
costumam convidar-me. L me tem a ver os lobos.
- E eu que lhos mostro. Mando-os convocar por um
edital.
Sorriram:
- Passe muito bem!
- s ordens de Vossncia!
- Para fazer quatro soldadas inteiras, faltou-me
pouco mais dum ms - contava a Clara Fagulha. -
Adoeceu minha irm Antnia, que Deus haja, e tive
de tomar conta do governinho da casa. Como a
gente no tem mais que duas belgas ao luar, e alm
de poucas so reles, s fora de cavar, de adubar,
de sachar que se colhe um bago de po. Se no so
as territas, ainda hoje l estava. Estimavam-me
muito. Tanto a senhora D. Rosinda como o senhor
Dr. Juiz eram boquinha que queres, corao que
desejas. E ento aquela menina!?
- A D. Maria Salom, quer vossemec dizer...?
- Ela, pois quem h-de ser!? Uma boa sers e uma
mos-rotas. Meias caladas duas ou trs vezes
apenas, blusa que tinha acabado de se usar, vestido
que apanhou uma ndoa numa festa, pegue Clara,
pegue Clara!
Trilhavam o caminho velho que conduzia a gandra
de Rei depois de apearem da camioneta. O piso era
spero, fragoso, agravado ainda o percurso pelo
escuro que fazia. Deixara de se ouvir a trabucada do
motor na lomba da Lage do Alto, a uma lgua dali,
onde os camions de carga se fartavam de amolar,
sempre em primeira. Um automvel passou em
baixo, charriscando o mato com o lumaru difuso
dos faris, ora a aparecer, logo a desaparecer nas
voltas e corcovas da estrada.
Evaristo fora apartando a Clara Fagulha do rancho
que seguia frente, em grande forrobod, na manha
de poder interrog-la vontade. Levava a ferver-lhe
no juzo a rapariga do lao vermelho e queria saber
que gnero de pssara era aquela.
- Uma senhora que veio porta, bonita, alva de
rosto mas um pouco sardenta, com o cabelo
entranado na nuca, deve ser a tal D. Rosinda, no?
- O menino tirou-lhe mesmo, mesmo, o retrato. tal
e qual. Ela tem as suas sardas, l isso tem, mas na
vila no h outra que se lhe ponha por diante. E olhe
que me de trs filhos. Um j fuma e vai muito
bem encarreirado nos estudos. O chegante a este
tambm l vai levado
- E a D. Maria Salom que faz nesta casa?
- Que faz?! No faz nada. sobrinha do senhor Dr.
Juiz que lhe quer como a filha.
- Mas ento no faz nada, nada?
- Quer dizer, faz a sua costurinha mquina, l e
toca rabeca. Nas mos dela, o raio do instrumento
tanto chora como ri. At parece feitiaria! ela
querer e segura a gente no largo, por baixo da
janela, como se a tivesse presa por uma corda.
- V, e eu julguei que no passasse, como hei-de eu
dizer, que no passasse de uma espevitada. Sem
mais.
- E onde h ele raparigas bonitas que o no sejam?
Falta-lhes brio, vaidade, so insossas.
- J vejo que vossemec entende desta poda?! Ah!
ah!
- Tenho lidado, meu menino, com muita gente que
sabe onde tem a cabea. Depois eu no era nada
ruda!
A Clara Fagulha suspirou e deixou que as suas
gratas recordaes e o seu amor-prprio se
expandissem na paz da noite. Foi Evaristo que
rompeu o silncio:
- A famlia dela, a bem dizer, o Juiz...?
- No, ela tem famlia l para Coimbra. Tem o pai,
tem a irm, mas parece que sofreram quebra nos
negcios, e cada um remedeia-se como pode. A irm
est caixa numa livraria do porto, ouvi-a eu dizer. O
menino que sabe o que isso . O pai dirige uma
quinta do governo...
- Agrnomo...?
- Como diz?
- Agrnomo.
- isso, agrnimo ganha rios de dinheiro, mas nada
lhe chega. ganha-o de dia e vai gast-lo noite.
Atira tudo para a mesa de jogo. Coitado do homem,
no olha para diante e, mais dia menos dia, cai como
um malho em casa do Dr. Juiz. Era o medo do meu
amo. A menina tem a quem sair! bramava s
vezes a tia, que uma senhora muito poupada, l
porque lhe parecia que esbanjasse. Mas n, a menina
liberal era, l isso diga-se, mas eu nunca lhe vi
estragar nada. Fina, fina que ela era. Um ano
houve uma entrudada na vila e a menina foi
representar um papel. Toda a gente a gabou. Nem
comedianta em Lisboa faria melhor.
A mulher falava pelos cotovelos, mas Evaristo no a
ouvia, alheado a mascar a curiosa revelao. Em sua
conscincia de antigo bicho montesinho, sempre
professara um certo preconcebimento por aquelas
prendas histrinicas, mormente quando se tratava
de amadores. Estas teatradas, nas terras de
provncia, cheias de sono e de sombras, eram
pretexto ao amorio, encabeado pelo apalpo e a
beijoca entre os bastidores de lona. Maria Salom
descera um bom escalo no seu apreo.
Iam subindo um caminho quase de cabras que, a
iludir a ingremidade, coleava pela falda do monte
sem se importar com distncias. A Clara Fagulha,
frente, guiava-o muito maternal, com seus olhos de
coruja:
- Meta por aqui! Olhe ali um calhau, no tropece!
Fuja deste charco!
Irradiava do crescente, que acabava de erguer-se
detrs da serra, uma poeirada leitosa de luz e a essa
lumalha enxergavam-se, cravadas no cu como
sovinas, as corutas dos pinheiros. comeavam a
ouvir-se chocalhar guas, sinal de terras de lima,
portanto povoao pela frente. O sincelo, ainda que
raro e intermitente, aliado ao ventinho barbeiro,
pungia no rosto como agulhas.
Evaristo ia entregue s suas ruminaes, quando a
mulher lhe perguntou queima-roupa:
- Ento o menino agora fica por c?
No prestara ouvido e ela acudiu:
- Desculpe, mas habituei-me a dizer menino e custa-
me dobrar a lngua. Doutor, doutor, que eu devo
dizer, no ?
- Diga como quiser que diz sempre bem.
- Perguntava eu se o menino quer dizer, se o senhor
doutor agora ficava por c...?
Foi como se o picassem com um ferro. Toda a sua
pobre histria palpitou queles vozes. Respondeu
toa:
- No senhora, venho de visita.
- Correu por a que j o no deixavam ser
professor....
Como no se dignasse satisfazer-lhe a curiosidade,
ela tornou com sinuosa malcia:
- Eu se fosse ao menino largava Lisboa. Sempre ouvi
dizer que Lisboa uma terra de perdio. Perdem-se
as moas no fado e os homens na poltica. Arranje
mas um emprego na vila como o paizinho e deixe
correr o marfim. Quem quiser levar vida regalada,
diz o senhor professor que ali vai, ponha-se mesa
do oramento, mas c de longe.
- Perto pode-se apanhar coice, hem, senhora Clara!?
- No quer dizer que todos sejam como as bestas a
comer manjedoira. Mas, enfim, a sofreguido
maior no toco. Olhe, menino, aqui, sombra do
senhor Soares que tem amigos no leigo e no frade,
ningum lhe faz mal.
- Ningum ainda me fez mal, senhora Clara.
- Bem no lhe fizeram, se lhe apararam as voadeiras.
Agora se mentira, melhor, melhor!
- uma mentira em que andam a boiar decima
duas ou trs verdades, como as olhas de azeite dos
pratos varridos na vianda.
- Olha azeite! Foi tempo.
Mas a Fagulha no atinara com a significao da
imagem culinria, e volveu a sonhar por conta dele.
Se ficasse na vila, com o que o paizinho tinha, junto
ao que viesse a ganhar, era um reichiquito. Ento,
sim, podia escolher menina da forma do seu p.
Evaristo considerou que ela tinha Maria Salom na
imaginao, ou por palpite, ou porque a meia
maluqueira que o tomara ia sensibilizando o
instrumento de recepo espiritual que um crebro
em relao a outro crebro. Para tirar a prova,
emitiu entre dois frouxos de riso:
- Com cheta, ou sem cheta?
- A cheta ganha-a o homem.
O diabo da mulher no queria mais nada: acasal-lo
com Maria Salom!
Tinham chegado primeira casa do lugar, que era a
taverna do Chico Fidalgo, entalada entre o caminho
que corria de Covas para Labruge e a via pia de
gandra de Rei. A paragem era obrigatria,
mormente para um rancho como aquele que o
senhor Lus Telo, professor local, tangera para a vila
a depor num pleito em que o rico senhor seu sogro,
usurrio e especulador, jogava a posse dum lameiro,
caado na tralha dum embarcadio por artes de
berliques e berloques. Estampava-se no negrume da
noite o vo da porta avermelhado pela luz do
querosene. Evaristo e Clara Fagulha no passaram
do limiar, nem querendo faltar solidariedade com
a companhia nem suciar com ela. O Chico Fidalgo
encheu a caneca tudo ainda segundo o estilo
turdetano e o professor foi o primeiro a tirar os trs
goles. Depois mo direita, sempre em frente, breve
lhe luziu o fundo. Deite outra, e prosseguiu a
rodada. vinham quentes da marcha, quentes dos
peguilhos, leva que leva, e uma canada emborcou-se
ali enquanto o diabo esfrega um olho. S ento
deram conta de Evaristo. O Lus Telo, professor
primrio, rendido ao oportunismo poltico,
presidente da Junta, e at camarista, no havia de ter
grande simpatia por ele. Mas era pessoa avisada e
tratou de emendar a mo. Tendo mandado deitar
um copo parte - bem lavado, hem, Fidalgo!? -
avanou com ele em punho:
- Senhor Dr. Evaristo, d-me a honra de saborear
esta pinga. Quis provar primeiro antes de lhe trazer
o copo; no mau de todo. Este Fidalgo tanto mete
tiborna como geropiga. ou no , cara linda?
Evaristo, aceitando por boa a francesia do professor,
escusou-se polida-mente. O outro insistiu, ora e
sempre dentro do fuero-juzgo serrano:
- H-de beber! Era uma desfeita que fazia.
Evaristo molhou os lbios para comprazer.
- Tia Fagulha, agora vossemec!
A mulherzinha invocou a m disposio do seu
estmago, depois de umas sardinhas assadas que
comera em Lamego e estavam ardidas. E logo Telo,
por galantaria com Evaristo, pois se apercebera de
quanto estava manu a manu com a Fagulha,
encomendou para o taverneiro em tom imperativo:
- Fidalgo, salta um decilitro de aguardente aqui para
a tia Fagulha! Da de Lusinde, hem! Ainda tens?
Essa, essa que faz dar um esticozinho lngua.
Para a azia remdio santo.
A Fagulha, muito lisonjeada que a distinguissem,
acercou-se do balco. E, fazendo trejeitos simiescos,
pois que era pena deixar lquido to precioso a
desquebrar, sorveu at ltima gota o clice de
lume e alcatro.
Com a comunicabilidade, que as libaes trazem de
envolta, os camaradi-nhas entraram em grande
relambrio. Estavam a dez minutos de suas casas, e
quedarem ali era vcio antigo. semelhana da reza
cannica dos monges goliardos, rubricado o
brevirio em tais e tais pginas com o hic bibitur,
mais alm: hic pitatur, o caminho para a vila
recebera estaes ad hoc. O primeiro passo da via
gozosa era a venda do Chico Fidalgo; o segundo um
tasquinho em Tendal da Loba, onde havia tremoos
ou azeitonas puchavantes como sardinha de barrica;
mais longe a loja do Artur em Souto do Egas. Os
manatas chegavam a Antas da Beira de olhos
luminosos, nariz rbido, a danar a galharda, a
ponto de rebuado para serem tosquiados pelos
larpes oficiais. A camioneta matou a cadncia
dionisaca destes itinerrios.
O Lus Telo, sinuoso bastante para estar bem com
Deus e o Diabo, informava-se com Evaristo do rumo
da governao, criticando aqui, apoiando ali
cautelosamente, acol reprovando com energia.
Ainda no dobrara o cabo dos quarenta e tinha
ronha por sete. Assim ia regendo a escola com uma
perna s costas e fazendo casa, todos os anos
inscrevendo na matriz, do que ganhava e agenciava
por palhasalhas, uma leira ou um chavascal. Mesmo
assim era diferente do sogro que trazia calcados trs
povos com onzena e compras a enforcados.
Evaristo ia estudando no mestre-escola os estragos
morais dos tempos, quando se chegou a eles o
Rodrigo Maninelo, que fora tudo, caixeiro de praa,
polcia, agente de seguros, candongueiro, at que
conseguira levantar a cabea com o volfrmio e
agora levava vida de fidalgo na aldeia. Sabia
escrever o seu nome, mas como no h como o
dinheiro para dar inteligncia e tornar um homem
corrento, j inculcava ares de algum:
- O senhor Dr. h-de perdoar uma pergunta que lhe
vou fazer. Ouvi dizer - e j declaro a quem o ouvi,
para me no tomarem por inventor de galgas - ouvi
dizer Ana Pinta, caseira do paizinho, que o senhor
nunca mais poder ser professor. verdade? Se
assim , lamento que fique cortada a carreira a um
dos rapazes mais esperanosos dos nossos stios.
Quer saber mais, estava esta manh o Sapo a dizer
no cartrio. Sabe quem o Sapo? Presidente da
Cmara, administrador, flibusteiro de marca? O
Sapo dizia do amigo: foi-lhe bem feita! Ento a
primeira vez que sobe ctedra para substituir o
lente no rompe com desconchavos como este: Deus
no existe?
Evaristo soltou uma gargalhada e voltando-se para
o Telo, o nico que julgava susceptvel de
compreender a sua linguagem, pronunciou:
- Eu no podia exprimir-me como qualquer boca-
rota: Deus existe, ou Deus no existe. Foi na prova
de concurso, e no na ctedra, que tive ocasio de
afirmar que as provas ontolgicas da existncia de
Deus no satisfaziam nenhum crebro de homem
com maioridade mental. diferente.
O professor, quer compreendesse quer no,
dissentiu com um leve trejeito de lbios e
acrescentou:
- No fundo d as mesmas voltas.
- Se Deus no existe, quem fez a Terra? Quem fez as
estrelas? arremeteu o Maninelo com impetuosidade.
- Sim, quem fez o mundo? secundou o professor.
- Com certeza o senhor no viu quem o fez. Eu
tambm no vi. Seu pai tambm no viu, nem o pai
do seu pai, nem por a fora at a raiz da sua gerao,
procura da qual teramos de entrar nas cavernas e
ir dar com um bicho que dava urros, quando as
coisas no corriam, e guichava quando estava
satisfeito.
- E porque no havemos de ir dar com um homem
feito de barro, sado das mos de Deus como uma
esttua sai das mos de um escultor?
- Sim, a explicao mais fcil no s do homem, mas
do Cosmos, essa: um atelier de estaturio e Deus,
h trs para quatro mil anos, a fabricar l estas
coisas todas que constituem o mundo sensvel. Mas
nesse caso, o caminho no dava a volta pelas
cavernas e ele d essa volta, e to grande ela que
leva mais de cem mil anos a percorrer.
- Est demonstrado?
- Est cientificamente demonstrado. Mas oua ainda:
admitindo que no havia melhor explicao para o
mundo e suas infinitas formas que o barro
modelado e vivificado por Deus, legtimo reportar
o problema mais longe, pois que da mesma
natureza: de que bago saiu por sua vez o Criador?
Quem o amassou?
Os circunstantes ficaram um momento calados, a
olhar o cho, a dar cabea, at que o professor
encontrou um dos argumentos no velho arsenal da
sabedoria:
- Meu pai no viu quem fez o mundo, nem o pai do
meu pai, por a fora at o espigo mais remoto da
rvore humana; est certo. Mas eu que vejo o
mundo, vejo as estrelas, vejo as minhas mos, vejo
os meus filhos que nascem, os meus pais que
morrem, sinto que a esta ordem preside um ente
superior.
- Melhor diria limitando-se a afirmar: sinto uma
ordem de que no apreendo o mecanismo. De facto,
as rodagens ocultas dessa ordem, isto , o seu
porqu e como, escapam percepo dos nossos
sentidos. Escapa-nos, por agora, parece-me lgico
futurar. Mas diga-me: aqui o Bernardo - e apontava
um dos lapuzes, muito engoiado na capucha a
assistir discusso como assistia missa embora
inteligente como , e vivido, tanto assim que j
atravessou trs vezes o mar, que sabe ele, por
exemplo da turbina elctrica...? Percebe como se
gera a electricidade...? Como se transmite...? O que
a prpria electricidade...? No percebe, nem eu, nem
o senhor o que o fluido prodigioso. Damos conta
dele na luz de nossas casas, no claro do relmpago,
na energia motriz das mquinas, e todavia escapa
aos nossos sentidos o seu desencadeamento atravs
do ter ou atravs dos fios de cobre. um fenmeno
bem concreto todavia, exercendo-se,
independentemente de qualquer aco metafsica,
no mundo real. Assim podemos dizer da mquina
do universo como escreveria o padre Vieira. No
percebemos o seu funcionamento e, como no
percebemos, inventmos um relojoeiro omnisciente,
dotado de poderes absolutos. Mas a mim cabe-me
observar: explicou-se o relgio, mas como se explica
o relojoeiro?
O Lus Telo no encontrou razes assaz pertinentes
para opor dialctica do pedreiro-livre e mudou de
folha com certa dexteridade:
- Desculpe o Doutor, eu estava tambm no cartrio
do notrio quando veio a talho de foice a sua
excluso do ensino. Assistente de Cincias
Histricas, no era?
- Sim, assistente de Cincias Histricas.
- Segundo o notrio, o Doutor teria dito que a
riqueza duns era o produto do esbulho aos outros.
verdade?
- Verdade proferida por Leo XIII. E ento?
- E ento, formulo eu: quem trabalha tem; um
direito natural; porque tem, rouba quem no
trabalha e por consequncia nada tem?
- O caro professor labora num crculo vicioso. Onde
no h que roubar, no pode haver roubo. Esse que
no trabalha no foi roubado. Se algum o foi, foi
quem trabalha.
O Lus Telo embatucou. O poder de raciocnio que
lhe deixavam a batida s lebres, o copo de verdasco
e o governinho da casa, no atingia a subtileza mais
ou menos especiosa. Ladeou:
- Sabe o que me faz pena v-lo andar rasca! Na
minha humilde opinio, o melhor acerto que um
homem pode tirar das suas faculdades assentar p
na vida. Olhe, no era o filho de meu pai, com os
ventos que sopram por toda a parte, que se metia a
discutir a existncia de Deus e o direito dos pobres
em face dos ricos.
Evaristo no se dignou responder e j a Clara
Fagulha clamava que era tempo de se porem a
mexer se no queriam que lhe nascesse ali o sol. Era
evidente exagero, mas levantaram de roldo. No
meio do professor e do Maninelo, Evaristo
perguntou em tom velado:
- Tambm aqui chegou que eu estive preso...?
- Chegou. Anunciaram mesmo que o iam deportar
para frica.
- Como v, no deportaram. De resto, no me
fizeram favor. No cometi delito algum.
- No o que diz o Sapo - proferiu o Maninelo. -
Segundo ele encheu-se de fazer gato-sapato das
ideias fundamentais em que assenta o Estado.
Evaristo no respondeu. Na algidez da noite, depois
de um longo silncio, o professor ps-se a computar
as possibilidades de existncia do Evaristo. O
paizinho tinha a aposentao; recebia uns carros de
centeio: escasso, escasso, a menos que se metesse ao
canto da lareira e se deixasse vegetar.
- Eu venho para conferenciar com meu pai -
proferiu, martelando as palavras com certa
acrimnia. - Provavelmente emigro. O que existe em
casa de meu pai sagrado; de minha irm.
- De sua irm? Metade seu, ningum lho tira!
- Tiro-me eu a mim mesmo. Eu estudei, ela no
estudou. A minha legtima est gasta.
Ladravam os ces entrada do povo. Nas ruelas e
quelhos flutuavam, rebatidos pela molinha especial,
o bodum dos buris e o salitre dos estbulos e da
gua choca dos quinchosos. Mas cheirava
consoladoramente bola fresca. Evaristo reparou
que entrava na casa paterna cheio de fome.
A Confraria de Nossa Senhora do Encontro, de que
Lenidas Soares era presidente, caprichara aquele
ano representar com relevo particular o drama da
Paixo. Estava no esprito dos tempos, alm do
incentivo particular comunicado aos bons vizinhos
de gandra de Rei por interpostas pessoas, da
audincia de S. R. o Prelado. De modo que, ainda
Maro no era fora, j se ensaiavam as rbulas e
talhavam em chita e cetineta tnicas e balandraus. A
primeira tarefa estava facilitada, de resto, pela
experincia adquirida nos anos transactos em que,
com mais brilho ou menos brilho, nunca se deixara
de levar a efeito to edificante celebrao. Os papis
estavam de antemo distribudos segundo marcas
que se haviam tornado proverbiais. Assim o bom
labrego que desempenhava o papel de Caifs
deixara de se chamar Jos dos Santos, conforme a
pia e o nome de gerao, para ser conhecido urbi et
orbi pelo tio Caifs; Herodes ficara para todo o
sempre o Carlos Lampas, embora muitas vezes
sobrevestisse a toga de regedor. De certa certeza
ningum sabia outro nome, seno Longuinhos, ao
honrado e patudo lavrador que tinha trs filhas
casadoiras, rijas de encontros e mais esbeltas de
fachada que as torres de David. E o irmo da ama
do senhor abade, o respeitvel e gordo padre
Nicolau Margalho, era invariavelmente para curas e
fregueses, mesmo quando servia de arrieiro ao
pregador, Francisquinho, o Cirinu.
Os papis femininos que no conferiam a alcunha
respectiva a quem os representava. O pitoresco
verbal de meter em linha de conta nestes acidentes
da onomstica. Assim no fazia sentido que a Jlia
Borralha, uma estrofe trocica to rusticamente
sonora, passasse a chamar-se Madalena, e a Rosa
Cismas, nome to mascavado e peco, fosse crismada
em Virgem Maria, porque as tituladas interferiam
no drama sob tal ajoujamento.
A serra da Nave em cada refolho tem um povilu,
de forma que mal estrepitaram as matracas no adro
de gandra de Rei, os devotos enguicharam a orelha.
E, como moscardos alvoraados em seus vespeiros,
j sem capucha de burel - o prestimoso sago que
vem muito detrs dos Cartagineses - sem tamancos,
que o Abril chegara quentinho e cheio de luz,
correram Via Sacra.
Dera-se a feliz circunstncia de regressarem s
beras, com fama de endinheirados, dois patrcios
de quem h muito no havia notcias, perdidos
desde a guerra l para o calcanhar de Judas em
Mato grosso. Fama foi ela que os dois se viram
obrigados a sustentar por honra da firma,
esportulando-se dignamente. portanto, viva a
Cristina, tinham com que untar a barbela aos
senhores eclesisticos e remunerar-lhes os servios.
Chegou a Semana Santa e bateu na aldeia um mar
de gente. A Divina Providncia, que sabe sempre
muito bem o que faz, aprouve-se aquele ano banir o
luto para dentro da igreja, onde os santinhos
estavam velados por panos quaresmais. O cu
reluzia como uma redoma de cristal. As ervas, os
nabos, as searas, de paveia mais alta que sargao,
parecia no guardarem da espera solene daquele
pavoroso dia mais que uma espreguiada languidez.
Da mesma maneira os galos, para as eiras, com seus
esparvadssimos cocorics, o que lembravam, se
lembravam, da bblica Jerusalm era a estridncia,
esfarrapada ao vento, das charamelas testa da
coorte deicida rompendo marcha para o glgota.
Tanta claridade, tanto oiro solar, tanta rebeldia
primaveril era demais. O padre Margalho, se
pudesse, mandava pr crepes ao sol por cima de
gandra de Rei.
Da estrada, a p, a cavalo, de carro, durante todos
aqueles piedosssimos dias, fartou-se de golfar gente
para o caminho velho que liga aquela espcie de
Oberammergau ao sculo. E pelos carreiros de
formigas das serras viam-se colear filas indianas de
xailes pretos e vstias de saragoa com o raminho de
salpor na casa do boto.
Em Quinta-Feira Maior, no intervalo das Endoenas,
compareceu, trazido at a estrada pela camioneta da
Empresa Transduriense, o pessoal da vila ou com
mais propriedade o rancho das Lemos. Tudo o que
Antas contava de representativo e ao mesmo tempo
com prospia de juvenilidade rolou dali: as quatro
Lemos, iguais e diferentes como as quatro damas do
baralho; a Maria Salom, sem a distino da qual
uma excurso era penitncia; a menina do
comendador com a mam ainda frescal; as
caldeirinhas namoradeiras e dengosas; as
Coutinhos; as Senas; e homens, muitos homens e
rapazes, funcionrios pblicos, advogados,
estudantes e o senhor delegado, que padecia de
gaguez. Quando a garbosa comitiva chegou galil
com suas gravatas pretas e mantilhas da regra,
estava para comear a funo. O senhor padre
Margalho retardou o que basta para acomodar as
damas em banquinhos frente do mulherio, e
franquear aos cavalheiros a teia do altar-mor.
Escusaram-se estes pela boca do Relvas, escrivo,
com no quererem causar um desmancho
intempestivo, pedindo vnia para ficar porta-
travessa. Ali, a jeito de se pirarem francesa a
qualquer altura, e nas saias do madamismo, a
ramboia ficava sempre ramboia.
Lus Telo, que temia uma incurso adega com o
concomitante tributo em presunto e chourio,
evaporou-se arteiramente. Evaristo Soares
incorporou-se no grupo afidalgado. Estavam ali
condiscpulos seus e os rapazes, estudantes alguns
da Universidade, eram apenas dois ou trs anos
mais novos do que ele.
Os celebrantes atacaram o segundo acto da divina
tragdia, pois que o primeiro: missa e procisso do
enterro tinha tido sua representao na parte da
manh. Diante do lampadrio triangular de treze
velas amarelas, os cantores vieram por turnos entoar
as lamentaes. A voz cava reboou, tremulou,
trovejou na cadncia nocturnal do canto gregoriano.
Ao expirar da antfona, com o apagador o aclito
extinguia um dos lumes, ora do lado do Evangelho,
ora da Epstola. E, revezando-se assim os leitores, os
psalmos se sucederam, acabando com a sua
montona cadeia de nocturnos e laudes por
condensar no templo uma atmosfera lgubre e
sobre-humana. Quedou finalmente uma s luz a
brilhar no mar morto da nave. Os padres bateram
com o gradual nas estantes; arrastaram os ps;
pigarrearam. Queriam em seus bastidores de lata
simbolizar o trovo do juzo final. As meninas riram
do escarcu.
Um clrigo apareceu em seguida a desnudar os
altares: era Sio que despia suas galas; a primavera
que alijava suas louanias; as matronas que
arrancavam suas jias pela morte de Deus. O
mundo ficava bratro e treva.
Quando romperam da sacristia os treze lavandos,
treze homens da jorna e da lavoira prpria, de
vspera mandados ribeira a desencardir os cascos,
crneos fora de morder a terra, foi um alvio
geral. Os olhos estavam cheios de penumbra. O
senhor arcipreste que procedeu abluo dos
mseros ps descalos. Mas a cena, realizada num
dos altares colaterais, no mereceu grande sufrgio
dos fiis. O rancho da vila abalara j de roldo para
o adro a fumar o cigarrinho. Quando o senhor padre
Nicolau Margalho subiu ao plpito pregar o sermo
do Mandato, houve ainda um movimento de
refluxo. Mas o exrdio da pea oratria era como
todos os exrdios, e um a um, capucha, no
obstante os olhares aliciadores das Lemos e das
Senas que diziam: no abandonem nesta catacumba
a pobre da carochinha! catramugiram-se todos. A
palavra saiu da boca do escrivo Relvas, e pretende
traduzir a esquivana, to subtil como maliciosa,
dum cristo velho a uma estopada de respeito, por
mil e um modos, at a quatro patas. Vinham todos a
abarrotar de fome e de incenso.
- E se fssemos comer o jantar dos abades? - props
Roberto Atalaia, um dos estudantes.
- Credo! Credo - exclamou a Lemos.
- No era fcil - advertiu Evaristo. - Os padres
aboletaram-se na casa deste e daquele como os
soldados. Em minha casa, por exemplo, hospeda-se
o arcipreste.
- No precisar de aclito? - perguntou Roberto.
- O papel dos padres jejuar - emitia Ponces.
- Vamos ns pelas casas e toca a comer!
- Credo! Credo - continuava em tom de antfona a D.
Carmo.
Mas o senhor Lenidas Soares apareceu boqueira
do adro com boas alvssaras. Os cestos da merenda
estavam sua guarda e, convencido que no
levariam a mal, juntara-lhes um pratinho quente,
amanhado em casa. Dirigia estas palavras aladas, de
olhos no escrivo da fazenda, que era homem
importante, no causdico mais antigo da vila que
tambm o era, e no senhor delegado que o podia vir
a ser.
Na sala de jantar do Soares, branquinha e de tecto
em masseira, a par dos farnis desatados em cima
da mesa, avultavam dois cabritos de francela sobre
reclinatrio de batatas, muito tostadinhas, muito
fragrantes, tpidos ainda do forno. E reboou uma
aleluia, uma verdadeira aleluia. Para a rapaziada,
em bom direito hereditrio, o anfitrio era Evaristo
Soares, filho do honnorable Lenidas.
As senhoras, com este particularismo que data da
av de Mumadona, amesendaram a um lado. Era o
sector um. Por ousio ou concesso muito especial,
este ou aquele cavalheiro abeirava-se delas ou
formava mesmo sua ilharga. Um destes foi o
delegado que se postou mo direita de Maria
Salom. Evaristo observou o manejo com
ensombrecimento de esprito e raiva. Debalde
procurou tranquilizar-se dando semelhante
aproximao como ocasional. S-lo-ia realmente?
Tinha-lhe parecido surpreender durante o sermo
do Mandato olhares cruzados entre um e outro. Mas
sendo assim, era possvel que Maria Salom o
houvesse distinguido tambm a ela com uma longa
e lnguida mirada?!
Evaristo instalou-se em frente, em seu ntimo
prometendo espi-los com disfarce e
desprendimento. Pobre dele, breve deu conta que,
de segundo para segundo, os seus olhos fugiam
magneticamente para ela, que no viam outra coisa
seno ela. disso se apercebeu imediatamente a
prpria Maria Salom, recompensando-o com outra
mirada que acabou por o enlouquecer.
brio daquele filtro que altera os sbios e prudentes
e o seu tanto dum vinho maduro criado nas encostas
de Contim, sentiu-se animado da supervida que
gera os loucos e os demiurgos. J o Roberto de
Atalaia, depois de esburgar conscienciosamente
uma coxa de cabrito, erguia no ar o terceiro copzio:
- Minhas senhoras e meus senhores, peo licena
para fazer um brinde. Bebo a Judas Iscariote, sem o
qual no teria havido o drama do glgota e ns hoje
no estaramos aqui nesta santssima funo!
- Que hereje! - exclamaram as senhoras entre
sorrisos e fingindo-se ofendidas.
O senhor delegado, que era um homem bem
parecido e tinha uma bela voz de bartono, mas por
contrapeso da equitativa natureza gaguejava
abominavelmente, ergueu tambm o seu copo:
- Asso...sso...cio ao brinde Cai... Caifs, que... que to
tocou a si...si.
- A sineta? - disse de l o Relvas.
- A si...sinagoga que condenou Jesus! - rematou num
grande esforo.
- verdade, verdade, foi a maldita sinagoga que
mexeu os cordelinhos! - dizia o Relvas em tom de
amenizar o despautrio.
O senhor delegado, no obstante a garabulha, estava
contente consigo, via-se pelo gesto de galaroz com
que chamava a ateno de Maria Salom para certos
bolinhos de bacalhau. Evaristo confrangeu-se todo e
lanou-lhe em rosto num acento que sibilava:
- Discordo. Vossncia como magistrado suspeito.
o compadre a julgar o compadre. Proponho um voto
de reprovao para Caifs, no pela sua crueldade,
mas pela sua estupidez.
- Essa... ... boa!
- boa, sim senhor! Se Caifs queria salvar o
judasmo, o que tinha a fazer era crucificar Judas,
um essnio puro. A Jesus devia-lhe dar trinta mil
dinheiros e pr-lhe guarda de honra no jardim das
Oliveiras para que ningum o molestasse.
A tirada era velha, mas foi quanto bastou para
provocar a maior celeuma. Entre o delegado e
Evaristo, mormente, travou-se viva disputa acerca
do pretrio que julgou Cristo e sua competncia
jurdica. E do mesmo modo que os estropiados, se
ouvem berrar ao fogo, deitam fora as muletas e
correm como gamos, o delegado, tendo palpite dum
adversrio visceral, deitou fora a gaguez. Atalaia
que andava no terceiro ano de Leis, salientou as
irregularidades do processo. No tinham sido
ouvidas as testemunhas de defesa. Depois, qual era
o crime de Jesus? Dizer-se filho de Deus ou antes o
emissrio de Deus. No consta que fosse sujeito a
exame.
- E havia psiquiatras, ao tempo? - observou o
delegado.
- Caramba, havia-os a dar com um pau - contestou
Evaristo.
- Para mim novidade. Julguei que tal cincia era
aquisio moderna.
- No senhor. A psiquiatria velha como o mundo
tornou Evaristo. Nas cavernas tm-se encontrado
frequentemente crnios trepanados. Trepana-dos
para qu? De certo busca do incubo, do hspede
maligno, a psicose dos neurologistas.
Evaristo falava com to pressuroso calor, que traa
uma razo oculta para l de discrepncia to
arcdica. O prprio arreganho pedante com que
falava era sintomtico. Algumas meninas riram por
detrs do leque. Macaco velho, o delegado deixou
de lhe prestar ouvidos, entregando-se
exclusivamente a jogos de gentileza com as meninas.
Espeto eu, espetas tu, passou um prato de
almndegas diante de Evaristo:
- Esto sobre o sal! - proferiu o delegado gozoso.
Reclamam ambrosia...
- Ambrsia! Ambrsia! - emendou Evaristo.
- Ambrsia uma mulher - reivindicou
tonitruantemente o delegado.
- Uma mulher, a mulher do Ambrsio, e a bebida
dos deuses. esdruxu-lazinha; vem do grego;
ambrsia por conseguinte para os dois lados.
- Sempre ouvi dizer.
- Pois ouviu dizer sempre mal!
Pronunciou estas palavras com tal insolncia,
repicando as slabas que o delegado comeou a
embuchar.
Das almndegas derivaram para sanduches de
vitela e de fiambre; depois para os frangos assados.
Petisqueira de truz.
Os rapazes comiam como porta-machados ao fim
duma batalha. Atalaia continuava com seus
piramidais paradoxos:
- Vocs j repararam o perto que estamos de Cristo?
Suponham o tempo um poo e que no dispomos de
outro meio de chegar ao fundo que no seja uma
cadeia de homens. Esses homens, em vez de
agarrarem uns aos outros pelos dedos, agarram-se
pelos anos, isto , a idade dum, setenta anos que a
mdia da vida humana, liga com a idade do outro,
como elo com elo. Quantos homens eram precisos?
- Duzentos - disse o Manuelzinho Ponces.
- Cem - clamou a lemos mais nova.
- Mil - corrigiu outro, precisamente o notvel
advogado.
- Menos de trinta - disse de l o Evaristo que num
pice fizera o clculo.
- Sim, menos de trinta. Bastam vinte e oito homens,
vinte e oito, e chega-se a Cristo com a mo.
Estrugiram os oh, os ah de espanto. Maria Salom
olhava para Evaristo com ar de dizer: Voc um
tipo curioso, mas mete-me medo!
- O poo no grande! - comentou o Manuel Ponces.
- Mais longe est Tutankamon.
- No grande, mas no se lhe v o fundo.
- Qual no v! - chalaceou Evaristo. - Eu vejo bem o
Cristo, confiado que seu pai o livraria da cruz, e o
nosso Caifs a arrotar os lagostins do lago de
Tiberade.
- E, olhe l, Cristo andava descalo?
- Cristo trazia sapatos de corda.
- E barrete?
- Trazia turbante.
- Nego - replicou Atalaia. Cristo andava descalo e
descoberto. Cristo no tinha vintm e ningum lhe
fiava. Os judeus j a esse tempo eram judeus.
O delegado permitiu-se retrucar:
- Quem lhe deu a tnica, dava-lhe os sapatos.
- No dava os sapatos, no senhor - replicou
Evaristo. - Os sapatos no oriente eram privativos
dos ricos.
- Cristo andava calado. L diz por sua boca o
psalmista: In Idumaeam extendam calceamentum
meum.
- O senhor foi seminarista. J vejo.
- verdade, no nego. Mas o senhor ficou em
sacristo, confesse!
O Atalaia interps-se:
- Aqui o doutor delegado chegou a receber a prima
tonsura. No admira que saiba latim. mas o amigo
Evaristo, alm do latinrio, estudou grego. Um pode
ser abade, o outro arquimandrita.
Aplicaram-se trincadeira. O delegado havia
encordoado de todo. O seu antagonista mostrava-se
cada vez mais agressivo.
Quando todos os bolos desapareceram nos abismos
estomacais, afogados sob lquido de vrios canjires,
o rancho bateu asas. Escurecera h muito.
Requisitaram-se quantos lampies havia na terra
para que suas excelncias se alumiassem no trajecto
at a camioneta. Sentido talvez da mornido de
atitudes de Maria Salom para consigo, o delegado
chegava-se para a comendadora. Era uma senhora
muito nutrida, sozinha, bem necessitada dum brao.
Com o escuro daquela noite de Quinta-Feira Santa, o
caminho tornava-se-lhe uma verdadeira Rua da
Amargura. Evaristo foi buscar um belo varapau de
faia para que Maria Salom se apoiasse. No
caminho, dize que dize, ela teve o ensejo de proferir:
- Que mal lhe fez o Dr. Delegado?
- No me fez mal nenhum. Bole-me com os nervos
apenas.
Ela suspendeu o passo como se quisesse olhar para
ele no fundo dos olhos e no proferiu palavra. O
Manuel Ponces, primo da Maria Salom, que ouvira
ou adivinhava de quem falavam, exclamou:
- um tolo quadrupedante.
Maria Salom sorriu. Os ares inebriavam: alecrim e
aipo nas hortas; volatilizaes acres das resinas na
zona florestal; pelas rampas dos caminhos o
rescendor tmido das saras e do mentrasto.
Amando e com esperanas de ser amado, ora
silenciosos, ora tagarelas, que regalo ir cortando o
mar quieto da escurido! O rapaz que andava no
primeiro ano da Faculdade de Cincias, despedida
dizia para Evaristo, a quem j tratava por tu:
- Vem aos cavalinhos, homem! Vamos ter uma
semana em cheio. A rapariga do trapzio uma
pssega de estalo. Olha, vem, s nosso hspede.
Evaristo agradeceu e ficou de estudar to grato e
magno problema.
O Dr. Juiz Henrique Ponces sofreu uma grave crise
de ictercia que o ps s portas da morte. Como era
homem importante e estimvel, toda a comarca
esteve suspensa sua cabeceira de enfermo. Hora a
hora batiam porta a informar-se do estado de Sua
Excelncia. Hora a hora lhe vinham das mais
remotas terreolas da jurisdio com as mos cheias
de presentes, a galinha poedeira que derrota o brao
a poder de enxndias, o frango de S. Joo, o junco
de trutas apanhadas ao galrito, e at os queijinhos
de francela inacabados de secar.
Em face de to extremoso sobressalto, o Dr. Juiz
acabaria por se convencer - se alimentasse algumas
dvidas - de quanto era homem ilustre,
benemerente, um verdadeiro mediador plstico
entre aquelas gentinhas agrestes, cheias de boa
vontade. E, sendo j temente a Deus, virou para
devoto. todas as manhs, quando acordava,
bendizia ao Senhor, de alma desvanecida em sua
infinita bondade. Agradecia-lhe ter-lhe concedido
passar mais as alpodras dum dia tirando-o, no gozo
embora precrio dos cinco sentidos, do poo sempre
temeroso da noite para a santa luz solar. Sobretudo
agradecia-lhe t-lo feito digno, inteligente, afvel,
prestimoso, benquisto a to grande rea de povos.
manifesto que Evaristo Soares, naufragado na
vida, espera da mar providencial que o pusesse a
flutuar, apaixonado at a fibra da fibra por Maria
Salom, se associou com voto pluriforme a sufrgio
to universal. A casa de seu pai era modesta, e ele
concebeu mil maneiras engenhosas de a fazer
participar, mediante ddivas positivas, no
holocausto ao querido homem. Enquanto durou a
enfermidade e durante largos meses que se estendeu
a convalescena, a Clara Fagulha andou numa roda-
viva para cima e para baixo, levando dons e
reportando bem hajas, parte o servio aturado de
estafeta para a correspondncia de amor entre
Evaristo e Maria Salom.
E como a mulher era pobre e cainha, primeiro pela
blandcia, depois com a mais desaforada sem-
cerimnia, foi prelevando a sua maquia.
- Senhora Clara, vai-me amanh vila levar um
recado?
- Amanh no pode ser, meu menino, amanh no
pode ser. Estou rogada para a casa da Gertrudes.
Sabe, a Gertrudes o nosso aafate quando no
temos po. No lhe posso faltar.
- V, que no perde o seu tempo.
Coava a cabea.
- Est bem, vou mas tenho de lhe trazer um convite
das lojas.
- Diga l.
- Um lencinho de l para a filha que uma
espertenida. Um leno ou uma argolinha. Talvez
uma argolinha. Muito me mata o bicho do ouvido
aquela repitosca que gostava tanto de ter um anel
com uma pedra a luzir!
E l ia, alm da despesa com a oferenda e dos
honorrios da prpria recoveira, um bnus a favor
da mida, que a Fagulha, bem entendido, estava
livre de fazer seguir ao destino virtual.
Outras vezes a peita encarecia
desproporcionalmente com o gio a que a Fagulha a
sujeitava.
- Senhora Clara, v-me feira e compre-me l cinco
ou seis frangos para levar ao senhor Dr. Juiz.
- Frangos, menino, frangos fazenda que anda
muito cara. No pense nisso!
- Nesta altura do ano? Vai-se por essa aldeia abaixo,
so galinceos a dar com um pau!
- Quem os tem chama-lhes seus. No vendem. Se
vendem pelos olhos da morte. No sabe que o
alqueire do milho chegou a dar cento e cinquenta
mil ris!
- Sim, mas milho que eles no abispam. S
roubado.
- Pois sim, s roubado, mas roubado ou distribudo
pela mo da dona, o mesmo. Roubam-se uns aos
outros e l sai da arca.
- Compreendo, compreendo. Agora diga l: quanto
julga vossemec que precisa para a meia dzia dos
pintos?
- No sei ao certo. Mas pintos bons, bons, que no
sejam uns esqueletos, nem ao menino ficava bem
dar ridicularias, no se tiram por menos de vinte e
cinco a trinta mil ris.
E l iam duzentos mil ris viola. A Fagulha era
imaginosa em se servir desta prodigiosa mo do
gato, variando as sortes. O sorridente optimismo
com que Evaristo lhe observava a manobra raro se
desfranzia. Uma vez que lhe mandou comprar trs
galinhas de canja e lhe dera quantia abonada, a
Fagulha voltou chorosa a dar conta da incumbncia.
- Ai, meu senhor, nem venho em mim, a alma
derrancadinha, derranca-dinha, que nem que
passasse por cima de mim uma manada de bois.
No me torne a encomendar estes alcriquetes.
- Ento, bateram-lhe?
- Antes batessem! olhe, sou eu que sou uma tonta,
que estou velha, que j no estou em termos de me
encarregar de coisa de ponderao. Quer saber? L
fui comprar as trs galinhas ao Eido da Serra. Trs
galinhas como trs carneiros. S queria que visse.
Destas que so criadas beira dos povos e andam
pelo mato como as perdizes. L ajusto as trs pitas
150 mil ris, e ainda lhe fiquei em favor que no mas
queria vender nem quinta facada e meto-as na
cesta muito bem acondicionadas, uma amarra s
patas, outra s voadeiras. Pesavam, mas o que elas
pesavam! No coruto da serra, tiro o carrego para
descansar. E que havia de assuceder? O raio de uma
pita deu um sacolejo to forte com as asas que se
soltou e deitou a fugir. Corro atrs dela e, enquanto
corro, foge-me outra. Valha-me Deus, eram umas
urcas, nunca imaginei que estoirassem os atilhos.
Pois estoiraram como se fossem guita podre. Aqui
tem, meu senhor, meteram-se para as urgueiras, no
houve maneira de lhes pr mais a vista em riba. L
ficaram.
- De modo que no levou as galinhas ao senhor Dr.
Juiz?!
- Levei-lhe uma.
- Uma? Vossemec levou-lhe uma galinha?! Uma
galinha? Raios a partam, no teve vergonha? -
exclamou fora de si.
- Vergonha de qu, meu senhor?!. De lhe levar s
uma galinha em vez dum poleiro delas? E a senhora
quando manda praa no manda s por uma?
- diferente.
- Qual diferente?! o mesmo. Sozinhas ou aos pares
vo ao direito para a panela. gostam de ver muito?
Tambm eu, e olho para as minhas mos e no vejo
nada. Tm de se contentar. Agora, o menino no se
arrenegue, eu pago as pitas, que o demnio
confunda.
- No me arrenego, acho que vossemec no devia
aparecer l com uma s galinha. Foi uma relice.
Ps-se a choramingar. Evaristo voltou-lhe as costas.
Farto estava ele de saber que a Fagulha valia por
uma companhia inteira do olho vivo. As ddivas
ficavam-lhe por dez vezes mais do seu justo valor.
Mas onde encontrar uma intermediria solerte entre
ele e Maria Salom? Que era mais que mise-en-scne
todo aquele ofertrio ao egrgio cidado? E,
lanando a gatunice da recoveira na conta da
alcofeta, continuou a aproveitar-se dela. Tambm
no havia p mais leve e pronto que o seu. Largava
o sacho da monda, ou ajuntava o milho na eira, e,
alteando a saia na cinta para comodidade da
marcha, onde estivesse, abalava para a vila de
espora fita. E rpida como Mercrio, sete falinhas
doces como a Celestina, levava a cartinha melada a
Maria Salom ou o presentinho fresco ao rico tio. E a
teia amorosa, com tal artfice, l se ia urdindo.
Para toda a famlia Ponces era evidente que esta
homenagem assdua debordava directamente do
galanteio sobrinha. Depois da estadia em casa dos
Ponces, a pretexto dos cavalinhos, tornara-se
familiar na casa. Certa manh, cedo, com a vila
sossobrada ainda em sono, depois duma noite em
que no conseguira fechar os olhos, toda a sua alma
em febril alvoroo a seguir ao baile em casa das
Lemos, durante o qual investira para a besta de
Apocalipse do delegado, encontrara-se com ela no
corredor quando se propunha abalar, sem dar
cavaco, para a sua alcaria. Tambm ela no
conseguira dormir, segundo as suas palavras, por
motivo idntico. Para que fizera escndalo em
pblico e raso, chegando a injuriar o pobre doutor,
que no tinha cometido outro crime seno gostar
dela? eram coisas que se fizessem mand-lo desafiar
para um duelo?! Alm de ridculo era
inconveniente. No havia dvida que o homem,
segundo as aparncias, andava derretido. Mas ela
no tinha culpa. No dera conta como s danara
com ele uma rumba, uma s? A Mariquinhas Lemos
dissera-lhe: Maria Salom, tu s cruel com este
pobre homem. Cruel? Chegara a ser malcriada. Ele
a dirigir-lhe galanteios e ela de cara dura. Quando a
fora convidar para o maxixe, virara-lhe as costas.
Sim, senhor. Agora para escndalos no estava. No
se corrigia, era um peludo, dava a cama por uma
bagatela, estava sempre com aqueles olhos de Otelo
em cima dela, pronto, acabava-se o namoro.
Evaristo ouviu a recriminatria, de princpio
impassvel, fingindo-se cnico, depois transido de
todo. Quando ela falou em acabar com o namoro foi
como se lhe dessem com uma maa na cabea.
Tapou os olhos com a mo a fugir ao claro
ofuscante de tal palavra. Aquilo ento era namoro?
Namoro, esse p-de-alferes corridinho, hoje eu,
amanh aquele, Secretrio dos Amantes na vila,
gargarejo nas cidades, chata e corriqueira poluo
sentimental!? No era ento amor, o mais santo,
reservado, e futuroso dos afectos?
E no sabendo tornar resposta quelas vozes da
pragmtica burguesa, como se se rompesse um
encanto, caminhou para a porta hirto, solene,
desenganado. Mas ela compreendeu. E, agarrando-o
com um nervoso que tornava a sua mo garra,
segurou-o. Olhou-o de frente, viu-o plido, de olhos
mortos, e enternecida abraou-se a ele a beij-lo, a
beij-lo como sua mulherzinha muito chegada. Foi a
catstrofe celestial. Dum momento para o outro
voltava-se a sorte; era o homem mais feliz do
mundo; o mais poderoso; quem era capaz de se
medir com ele?
Desde aquela hora entrou no seu peito uma alma
nova. Era outro; mais inteligente; mais dedicado;
susceptvel dos mais loucos herosmos. Mas, robus-
tecido em confiana, aquele amor, primeiro amor,
tornara-se mais exigente.
Todos os oito dias, pelo menos, tinha de v-la: ela
recebia-o pela porta que dava para a travessa no
silncio e paz da casa adormecida. Era ali o aposento
dos rapazes, que andavam nos estudos, agora
deserto. Em cima, a criada, aliciada a bem daqueles
amores, velava. Mas tinha que velar? Em verdade, o
tio convalescia na Figueira da Foz sob o tecto
carinhoso dum parente muito prximo. A D.
Rosinda dormia ou era crvel que dormisse, dando
repouso ao corpo cansado da lida da casa, pois
primava por excelente e meticulosa dona.
Ficavam sozinhos, mas no passavam de beijos e de
fosquinhas platnicas de bem-querer. Maria Salom
reagia com frouxido aos seus empreendimentos,
mas ele no ousava ir longe. Com o andar do tempo,
sim, tudo o que se reza das semi-virgens decorria
entre eles na longa e cncava noite.
Antes da alva, de modo a sair da casa sem ser
pressentido e a chegar aldeia sem ser notado,
abalava. Tinha deixado o cavalo na loja do Pisco
ferrador, s portas da vila. Bebedola, mas com
dignidade profissional, no era preciso dizer-lhe que
lhe tratasse do bicho. Evaristo, depois da galopada
frentica pelos caminhos velhos, encontrava-o
amantado e fresco. Era s cavalgar e recomear o
galope. Certas travessias que fez da serra com
escuro de cortar faca ou neve a chapar-se-lhe nos
olhos; lobos a uivar nos tesos e os caminhos
infestados pelas quadrilhas; destemido com a
imagem dela e o seu revlver, eram pginas
coloridas, mas volteis, diramos, da sua odisseia de
amor. O pior acidente destas correrias, a corta-mato
pela serra sempre que lhe era possvel, foi o potro
aparecer aberto dos peitos. O bicho era generoso,
cheio de ral, e no se negava ao acicate insofrido do
dono. Evaristo calou-se, escondeu uma lgrima pelo
generoso animal, e o remdio foi efectuar estas
surtidas pedibus calcantibus.
Com a perda do cavalo e as despesas sub-reptcias,
constantes, a economia domstica dos Soares
ressentiu-se. Ins, que era uma antena em
sensibilidade, chamou o irmo para o advertir de
que o pai andava suspeitoso com ver o nvel dos
cereais descer to repentinamente nas tulhas.
Queixava-se ainda que, tempos quela parte, o
dinheiro no coalhava na gaveta. Como as pessoas
de certos teres e gastos limitados, as suas contas
eram de saco. Deitava para dentro, como tirava com
a mesma mo desprevenida. Assim, ignorou sempre
o montante do seu capital. A primeira vez que olhou
para ele com olhos exactos, teve o desprazer de
verificar que estava na rosa divina. Evaporara-se de
modo imperceptvel como nas canalizaes as fugas
de gs. Onde ? perguntaram-se dez vezes antes de
atinar com a rotura.
- Evaristo, o pai foi para pagar uma conta e no
encontrou dinheiro nenhum. Foram-lhe gaveta.
Foste tu? s franco? - e a irm fitava-o
penetrantemente muito no fundo dos olhos.
Evaristo teve a desfaatez de jurar que tal no fizera,
quando a verdade que forjara uma chave falsa e
uns dias por outros fazia mo baixa sobre o
numerrio da pobre casa.
- Mas tens ido tulha?
Evaristo hesitou. O seu amor dava-lhe foras para
protestar as verdades mais incontraditas, desde que
visse alguma vantagem. Mas os olhos da mana eram
to lmpidos e celestiais na carinha triste e feia que
fez, em choro desfeito, a confisso dos seus
desatinos, entre eles o furto de dois sacos de centeio
arca paterna.
- Evaristo, tais aces no te ficam bem. Como que
tu, to srio, to verdadeiro, to leal, te tornaste to
diferente do que eras?!
- Perdoa-me, Ins, que no faria eu para ser
correspondido?
- Se essa menina tem por ti o afecto puro que dizes,
seria a primeira a reprovar a tua conduta. No o
sabe? Por mais dissimulado que tu sejas, essas coisas
transparecem sempre. Sim, transparecem sempre. E,
deixa que te diga, mal vai que tu a enganes ou se
engane.
Evaristo torceu as mos, dorido ou picado por
desperta serpente:
- No o sabe, Ins, juro-te, no o sabe!
- Se no o sabe, melhor. Agora, escuta Precisas de
dinheiro? Tens o meu oiro. Ponho-o tua
disposio. Para que o quero eu? Faze dele o que te
parecer.
- Podem dar conta!? - proferiu ele com sofreguido.
- No do! Mas, espera, vende-o e substitui-o por
plaqu. A operao boa de fazer com o cordo e a
gargantilha. No fundo d o mesmo. Leva-o, leva-o!
Agradeceu o tresloucado e, trmulo de prazer mais
que de melindre, tomou conta do oiro, o pouco oiro
de sua irmzinha. Precisamente Maria Salom
anunciava-lhe que ia passar uma temporada nos
arredores do Porto onde residia a sua irm. Quereria
Evaristo dar-lhe o gosto de acompanh-la!? Contava
com ele. Contava com ele por todas as razes e mais
uma, ajudar-lhe a passar as quatro a cinco horas de
viagem, duas de camioneta, outras tantas de
comboio. No faltasse!
A camioneta partia com o crepsculo da alba de
Antas da Beira e Evaristo intanguido, pois que o seu
sobretudo estava bom para espantalho em milharal,
passeava de c para l porta do Dr. Ponces. Vultos
discorriam escoteiros pelo Largo do Tavolado
acima, engolfavam-se no escuro das vielas. Uma ou
outra voz ressoava para a estrada e, depois do
marulho rpido do silncio pantanoso da manh
lgida e nevoenta, desvanecia-se como uma pedra
num tanque de gua. J o motor da camioneta
arcabuzava na estrada, intermitente e sincopado,
traindo a mo do mecnico a acalentar-lhe as
mazelas de calhambeque para o sacrifcio que lhe ia
ser imposto de rodar mais uma dezena de lguas.
Finalmente, com certo recato, abriu-se a porta da
casa do Dr. Ponces e a brancura duma cabea
lucilou. Incerto de quem fosse, Evaristo quedou
interdito. Mas ouviu um pscht! pscht! e acercou-se:
era Maria Salom.
Ia para beij-la, ela furtou-lhe o rosto com dar
aviamento partida:
- Leva-me a mala.
- No vem ningum contigo?
- No.
Maria Salom encostou a porta de mansinho contra
o batente, como se no quisesse dar sinal de si, e
puseram-se mudos e discretos, ombro com ombro, a
subir a rua. Os prdios dormiam em sua pequenez e
descaiado desleixo. No quiosque do Tavolado, ao
alto, o bico do acetilene rutilava e em redor o cu
parecia estrenoitar. Mais vultos ao longe, esbatidos
na noite como riscos de giz quando se passou a
esponja numa loisa, vozes soltas, sem fisionomia,
que lhe importavam?
Pois que a no beijara, Evaristo poisou-lhe a mo na
polpa do brao. Ela no se deu por achada. Aquela
carne era rolia, quente e voluptuosa. Ao seu
contacto e insulados, como se viam, nas sombras do
dilculo, sem olhos volta, Evaristo experimentou
em relao a ela um sentimento virtual de posse.
Sim, era mais dele do que de ningum. Daquele
jeito, senhores de si, s casados de h muito. Mas
como podia ser aquilo, deixarem-na sair de casa
sozinha pelo o lusco-fusco da manh, sem ateno
sua delicadeza e ao melindre de convenes, to
vigilantes na provncia com os passos duma
senhora? Nem uma criada ao menos a acompanh-
la?
- Teu tio j voltou?
- J.
- Voltou bem?
- Parece que sim.
Proferiu estas palavras em tom sumido e seco que
parecia advertir ao mesmo tempo que no devia
fazer-lhe mais perguntas.
Maria Salom levava um pequeno saco de viagem
na mo, a sua sombrinha de ondeado chins, e a
raposa. A mala, que adivinhava ser aquela que
desafiara a sua interveno de galantuomo a vez
que a vira na estrada jacente beira da ama,
confrangida e perdida como um naufrgio, era desta
feita bastante pesada, mas Evaristo no procurou
tirar da nenhuma hiptese.
- Admira que te deixassem partir assim a furto,
sozinha, como quem foge! - disse ele.
- Ento!
- Nem se levantaram, hem?
- J sabes, a tia uma despegada.
- Afigurou-se-me to boa pessoa! Com aquele rosto,
aquela voz de anjo, aquele amor aos filhos! O
Manuel no quer que haja outra santa na terra
- Parece, parece! No fundo, m como as cobras.
Mas so contos largos. Deixa.
- E teu tio?
- Oh!...
- Esse estima-te?
- Sim!
Aquela enfiada de monosslabos queria-lhe
significar que no fosse mais longe. No foi, mas
uma nuvem, de que no sabia explicar a
brusquido, cobriu a sua alma. Estavam ao p da
agncia. Lentamente o caco velho com suas listas de
vermelho e as grandes letras floridas: Trancoso,
Antas da Beira, Rgua, desamarrava da valeta. Os
passageiros subiam de rpia. Evaristo entregou a
mala ao Chegadinho condutor, e tomaram um
banco, daqueles bancos de dois lugares em que s
cabe uma pessoa gorda. Engancharam os dedos e,
apertando-se muito um contra o outro, ficaram
mudos, sonmbulos, balouados sobre o bulcio da
partida, como se os levasse a corrente dum rio.
Procedia-se arrumao da bagagem e mercadorias
no tejadilho, lance longo e demorado. Entretanto ia-
se completando a lotao. Quem estava bem
deixava-se estar. Os retardatrios bramavam.
Entregues sua vida interior, feira meio
amodorrada, tudo acabou por evoluir sua beira em
vaguido e nvoa. Essa meia treva quebrou-a
Evaristo como se obedecesse a um imperativo:
- Amas-me, Maria Salom?
Ela no respondeu, limitando-se a apertar-lhe a
mo.
- Amas-me? - tornou ele com intimativa.
Ela circum-navegou os olhos e, como um passageiro
que se erguera a arrumar a tralha na rede velasse a
luz com as costas, ps-lhe os lbios nos lbios.
Aquele beijo restituiu-o ao seu paraso e ao gozo da
perene felicidade. Estreitou-se ainda mais contra ela;
fundiam-se suas carnes; compenetrados de amor
recproco, eram um s. Em sua exaltao disse-lhe
Evaristo:
- Maria Salom, nunca mais te deixo. Nunca mais!
- E como podia isso ser? - perguntou, voltando-se
para ele, muito atenta.
No soube tornar resposta. Ela acrescentou ento:
- Bem vs, no h maneira.
Percebeu que era o mesmo que dissesse: sim, eu
aceitava no me separar mais de ti, mas a vida? A
vida, isto , esta coisa detestanda e inabolvel,
comer, vestir, calar, ter um tecto?
Ele no lhe podia garantir nada disso. Levava ali o
colarzinho e a cadeia da irm, que de tempos a
tempos palpava a certificar-se que l estavam, que
no os perdera, que ningum lhos roubara, com que
podia custear as despesas comuns de trs, quatro
dias no Porto, e pagar o seu bilhete de ida e volta.
Mais do que isso, como?
- Dentro de dias parto para Lisboa. Meu pai tem l
amigos valiosos e um emprego h-de arranjar-se. E
eu tambm tenho boas relaes. Que diabo, que
mais no seja, serei professor. Professor particular,
num colgio, a domiclio, admitamos, explicador
dos meninos cbulas, filhos de pap. A gente
sempre se h-de governar. Dize, tu vens ter comigo?
Mando-te um telegramazinho e saltas.
Ela demorou a resposta e por fim murmurou:
- Depende.
- Depende, porqu? Se ganhar o que basta para os
dois? Casamos logo.
- Est bem - disse ela com deciso. - Vou ter contigo.
- E teu tio e tua tia...?
- No me importa.
Evaristo ficou mergulhado num plago de
voluptuosidades a prelibar o dia faustoso em que
iria busc-la estao do Rossio e conduzi-la para o
seu quarto de estudante perdo, para o seu quarto
de professor ou funcionrio pblico. Via a subir a
escada, risonha mas tmida, pr no quarto um p
trmulo, enquanto os olhos palpavam tudo. E,
serenada, o primeiro gesto seria alijar o chapelinho
para cima da cama de ferro, onde reluziam e
cheiravam a cloreto os lenis lavados em Caneas.
No faltaria uma jarrinha com as flores que ela
gostava. Apertando-lhe a mo em seu transporte,
volveu:
- Ouve, ficas comigo no Porto trs, quatro dias?
Maria Salom no respondeu. Voltava a cabea para
algum que surgia na estrada. Evaristo
maquinalmente olhou. S se lhe via o chapu.
Pareceu-lhe o chapu do Dr. Ponces. Mas era
absurdo.
- Quem era?
- No era ningum. Um homem que passou.
Ele no lhe tinha largado a mo e tornou a insistir:
- Ficamos no Porto trs, quatro dias, Maria Salom?
- Que homem! Minha irm espera-me em Lea.
- Ora, tua irm l est! Ficas, ficas, no digas que
no.
A camioneta rompeu. Esclarecia a oriente, mas com
a luz da lanterna e dos faris a penumbra parecia
formada de sujos e desbotados crepes. Tudo dava
uma impresso de lividez macerada. Encarando em
Maria Salom, achou-lhe olhos pisados, a tez sem
vio, os lbios exangues, e na face o mau maquillage
a estalar e a derreter-se. Mas seria efeito da luz
crepuscular! Sim, aquele bistre de lrios roxos no
era prprio das suas plpebras, to brancas e
irrugadas! Fantasmagorias da luz!
Estava-se nos fins de Maro, e j o sol se ergue cedo,
vibrante como um galo nas eiras. Os viajantes breve
sacudiram a morrinha sob a tepidez da luz diurna.
Evaristo tornou a olhar para Maria Salom e
reconheceu que o que se lhe afigurara efeito da luz
indecisa era bem estigma do rosto. Tinha por diante
uma fisionomia de tresnoitada. Disse-lho:
- Maria Salom, passaste mal a noite?
- No preguei olho.
- Tiveste alguma ralao?
Hesitou em responder. Depois fitando-o e
dominando-se, como se por obra da vontade
houvesse estancado sob a epiderme a flux do
prprio rubor, pronunciou com decidido entono:
- Nenhuma. Estive a fazer a mala, a dispor um ror
de trapalhadas.
Ficaram em seguida calados. Calados se
surpreenderam pela longa estrada fora, mo na
mo, impregnados um do outro. De resto, tendo-se
escrito cartas to longas, conhecendo-se ou julgando
conhecer-se em todos os recessos, no tinham nada
que se dizer.
A cidade chegou to imprevistamente que Evaristo
nem deu conta dum cnego, seu antigo mestre, a
olhar para eles, no saberia dizer se guloso se
escandalizado. Seguiu-se a viagem em Caminho de
Ferro, e eles to agarrados um ao outro, que na
opinio de toda a gente passavam por marido e
mulher. Mas o homem que viaja minucioso e
duma curiosidade inquisitorial. Afir-mando-se,
pressentiram ali um gordo segredo. No ar de alguns
lia-se mesmo certo espanto, caldeado de desdm: as
botas de Evaristo estavam cambadas e no fato, no
obstante os cuidados de Ins, transluzia da lavagem
a pau de campeche uma sonsa antiguidade. Era
possvel que semelhante pobretana fosse o marido
daquela rapariga fina, escovada, sem luxo, sim, mas
vestida com esmero e certa elegncia? E primeira
impresso sucedia outra, acrimoniosa: de que ali
havia amorios suspeitos com mais ou menos
depravamento.
Evaristo surpreendeu nos olhares de certos
passageiros, sobretudo os burgueses e bem
apessoados, esta malagueta ardente. Estudavam-no
com mofina persistncia. O melhor era no fazer
caso e em seu ntimo mand-los ao Diabo, e assim
procedeu. Quando porm se lhe afigurou ver nos
lbios dum rubicundo fajardo um sorriso sacripanta,
rompeu a consigne:
- O cavalheiro conhece-me? No sou dentista para
que lhe valha a pena mostrar-me os dentes!
Deixaram de o observar intimidados. Ele
petulantemente, encavalara uma perna sobre a
outra, e passeava pelos companheiros de cabina um
olhar de desafio. Maria Salom fechara os olhos ou
mirava banda o rio que corria torvo e igual, e fazia
simulacro de no reparar em ningum.
Comportava-se como se estivesse a viver a sua vida,
do modo mais normal e acomodado prpria
ndole.
- Campanh! - bradou o pregoeiro.
A alma de Evaristo encheu-se, desdobrou-se
simultaneamente esperana e ao temor, como um
balo de arraial. Que ia suceder?! Em S. Bento,
quando apearam da carruagem, ningum da
turbamulta deu por eles; a ningum interessavam.
Ela fez meno de se dirigir para a estao da
Trindade. Evaristo reteve-a pelo brao:
- Maria Salom, no tens confiana em mim!?
- Minha irm espera-me! - gemeu.
- Maria Salom, no tens confiana!?
Ela fitou-o, imvel, toda a sua alma contrada
naquele olhar. E disse:
- Para onde me queres levar?
- Vem.
Um txi transportou-os Batalha. Por detrs do
avental de mogno o porteiro-chefe no lhe viu as
botas e comandou ao groom:
- Quarto 24.
Subiram no ascensor. Uma crista engomada de
criadinha espreita, a rabugice da velha hspeda no
andar de cima, e a porta que se abre para eles e logo
se fecha. Por movimento unnime, suas bocas
juntaram-se:
- Maria Salom, meu amor, minha mulherzinha!
Meu tudo!
- No, no, noite! Logo!
- Quero!
Safou-se-lhe dos braos. Abriu a janela. O casario
esplendia luz, em socalcos declinantes para o
Douro. Torres ao alto, empenas de envolta com
empenas, lanos versicolores de quarteires,
incendidos ao sol, compunham um painel da mais
desvairada policromia. gaia, com a sua barra
garrida, entremeada do verde dos quintais, para l
da teia de aranha da ponte D. Lus, encaixilhava de
sudoeste esta paisagem de deslumbramento.
- Vem ver, vem ver! Que lindo! - exclamou ela.
Tambm Evaristo se debruou a admirar.
Admirando, passou-lhe o brao volta do pescoo,
para logo lhe estreitar a cabea contra a sua. Em
macieza a face dela excedia o flcido do cetim.
- Que pele a tua! Nem rosas! - proferiu.
- Tambm a tua fina!
Esteve um momento calada e proferiu, olhando o
Douro com uma fixidez espasmdica:
- Sabes, sempre to quero dizer, minha tia ps-me
fora de casa
- Ps-te fora de casa...? Porqu, porqu?
- Por nada. Ridicularias.
- Mas dize, dize!
- E acreditas em mim?
- Ora essa!
- Jura l.
- Juro por tudo, pela nossa boa sorte.
- Meteu-se-lhe na cabea que eu andava a namorar o
Manuel. Imagina o despautrio!
- No tem ps nem cabea!
- Pois no tem. Eu gosto muito dele, l isso gosto,
mas como irm. O que sentia por ele era e
ternura fraternal.
- E ele?
- Ele gosta de si, e j no pouco. bastante egosta
ou, se quiseres, inocente. Pensou l alguma vez a
srio em mulheres!? Tu conhece-lo bem.
Evaristo permaneceu um instante calado a dissecar
os tpicos novos do problema e ponderou:
- No to indiferente a mulheres como isso. Duma
menina de Moncorvo gosta ele, que mo confessou.
Agora, concordo, nunca deve ter olhado para ti com
outros olhos que no fossem de irmo.
Ela guardou silncio, dir-se-ia que despeitada com a
resposta de Evaristo, porque no levantava os olhos
do cho. Ele prosseguiu com certo calor, mas
sorridente:
- Esta tua tia Rosinda absurda. Luntica de todo.
Nunca julguei. Olha l, e teu tio que diz ao
entremez?
- Meu tio no diz nada Ela domina-o.
Tornaram a ficar silenciosos e ele, arrancando-se s
cogitaes, perguntou:
- E ento que contas fazer?
Ela esboou um leve sorriso sardnico e respondeu:
- E o meu queridinho que diz?
- Vamos lutar!
- Vamos a isso. Olha, vai procurar um emprego por
esse Porto. Pode ser que tenhamos sorte. Se quiseres,
eu tambm procuro.
- Tu...?
- Porque no? Dou lies de francs... sei um tudo
nada de violino.... Para as meninas Dias & Dias A.
Boavida quanto basta. Tambm sei fazer rendas...
- Vou procurar, est bem. Primeiro eu; tu depois.
Mas ouve, ns nunca mais nos separamos. Homem
e mulher. Est entendido?
- Vederemo. Arranja um emprego.
Enlaou-a pela cinta e procurou-lhe os lbios. Maria
Salom debateu-se e de boca esmagada pela boca
desejosa arquejava.
- No, no! Deixa-me. Logo; noite! Vai procurar...
- Agora! Para me dares alma, h-de ser agora! No
tens confiana em mim, Maria Salom!? No tens!?
Como Maria Salom persistisse na resistncia,
resistncia para ele inesperada, deixou-a:
- J vejo, que no tens confiana em mim!
A sua voz to lastimosa que desta vez foi ela que lhe
passou os braos em torno do pescoo. Roou a cara
pela dele, depois os lbios pelos dele, e soprou-lhe
ao ouvido, brando, brando que mais ningum
ouvisse, nem ela prpria:
- Sim, tudo o que tu quiseres. Tudo. Mas se no
arranjarmos emprego, vamo-nos deitar ambos ao
Douro. Valeu?
A resposta do moo foi fogosamente imediata:
- Valeu. Falhmos, vamo-nos embora!
Desceu em Fortes do Varosa, distante de gandra de
Rei duas a duas lguas e meia de excomungados
caminhos, por no ter dinheiro para ir mais longe na
camioneta. Mesmo at ali, foi preciso que um
homenzinho, conhecido de vista, lhe emprestasse
vinte e cinco tostes ante a relutncia do condutor,
que logo por azar era estranho, em fiar aquela
ninharia.
- Quando me encontrar, o senhor me reembolsar -
dissera o viajante magnnimo com ar pomposo. - Se
eu morrer antes disso, d-os ao primeiro miservel.
- Se a condio essa, esteja certo que no morre.
Nem mo de Deus Padre! Mas, descanse, a sua
vontade ser cumprida. Tanto mais - acrescentou
com bonomia e um sorriso fugaz nos lbios - que
para mandar rezar uma missa por alma do senhor
no chega. Verdade, posso pr o resto do meu bolso.
- Deus o livre! - exclamou o sujeito sem
compreender, mas reinando. - Missas agora custam
os olhos da cara. Bastava encomendar-me nas suas
devoes.
- Como queira. A primeira ideia tambm no era
m: d-los. Davam-se por exemplo aqui ao senhor
condutor
Estava a entardecer, mas como os dias em Maro j
so compridos, contava botar a casa antes do sol-
posto. No obstante, a ttulo de prudncia, comeou
a estugar o passo, lembrado da mxima do pai: o
tempo s falta para o fim. No fazia calor nem frio e
foi-lhe agradvel ver-se a trepar a encosta que
levava ao planalto a ss com os seus pensamentos.
Aqueles dez dias no Porto marcariam na sua
existncia de modo indelvel para todo o sempre.
Uma pessoa acabara nele e comeara outra. Podia
dizer-se que transpusera o vau da adolescncia. Dali
para o futuro era tudo responsabilidade e obrigao.
A transfigurao operara-se e at certo ponto sentia-
se orgulhoso. Orgulhoso com tristura de permeio.
Era um homem. Com Maria Salom provara o mais
saboroso da vida, aquilo que preleva ao prprio
indivduo, pois que esto nele empenhados mbeis
eternos. Refartara-se de amor, pleno amor. A sua
boca depois daqueles dias de coabitao rescendia
ainda boca dela, um gostinho muito particular de
malpio sobre o verde, do mesmo modo que nos
membros lhe exsudavam ainda os poros da amada.
Uma semana e tal de noivado tripa-forra, como
dizia o Maninelo quando se casou com a vacoila da
mulher, apenas interrompido por um passeio ao
luar pela avenida da Foz. Maria Salom revolvia-se
como a salamandra no fogo e ele, que apenas tinha
prelibado o amor mercantil muito de passagem,
revelara-se um hrcules faminto e infatigvel.
Procurar emprego? Quem caa da abaixo? Quem
teria coragem de quebrar to celestiais cadeias? S
ao fim da semana, quando lhe apresentaram a conta,
e teve de vender o oiro da irm, depois de desistir
de empenh-lo em face da quantia irrisria que lhe
ofereciam, vendo-se obrigado a esportular ainda
Maria Salom, que rompeu o encanto. No
aludiram sequer ao projecto de se afogarem no
Douro. Depois do banquete dos sentidos, no
sentiam apetite para acto algum de abnegao ou
firmeza. Apartaram-se com juras sinceras de eterno
amor, mas no protestos de morte macaca. Maria
Salom iria passar as prximas semanas com a
mana, data professora duma famlia rica, ali para
os lados de Matosinhos. Confiava que a troco de
qualquer servio - preleccinao, roupeira, dama de
companhia, em ltimo caso criada de dentro lhe
dessem gasalhado. Ele ia partir em continente para
Lisboa, a grande e adorada terra, a nica terra com
possibilidades em Portugal, onde sempre havia
lugar para mais um. Merc dos bons ofcios dos
amigos, das relaes do pai altamente cotadas, mal
dele se no desanichasse no magistrio ou na
burocracia o empregozinho pblico ou particular
que lhe permitisse reatar numa trapeira ou numa
vila dos arredores a sua lua de mel!
Tal foi o ajuste selado de parte a parte com algumas
lgrimas e recrscimos de amor. Conduziu-a
estao da Trindade, um barraco asqueroso de ripa
e cimento, talhado dir-se-ia a preceito para
trasbordar nufragos domar largo para um destino
de misrias. Viu-a partir com dor e alvio. Ficava nas
ruas do Porto sem um vintm. Revistou as algibeiras
e s encontrou o relgio, uma pobre e lastimvel
cebola de ao, puda at a brancura nuns planos,
desoxidada noutros, ordinria mas exacta. Sentou-se
no primeiro banco pblico e no quis pensar em
nada de definido. gente ia, gente vinha, e o seu
esprito derramou-se em todas as direces como
um aude cheio. Depois, pouco a pouco, comeou-
lhe a tomar certas veredas, breves e incontnuas,
porm mais teimosas umas que as outras. quele
episdio de amor, gostoso e glorificado episdio,
mareavam importunas sombras. verdade que
nesta espcie de representaes h sempre a sua
parte de mistrio. Nada experiente das relaes
carnais, que podia ele assegurar quanto a tal e tal
circunstncias?! Tudo quanto sabia da matria era
livresco. Livreco ou bebido na tradio, que vale o
mesmo. O seu comrcio com a Vnus mercenria,
raro como fora, no lhe deixara dados suficientes
para constituir uma judicatura. Portanto em seu
esprito tudo eram hipteses, palpites, espectros,
que tentava afugentar.
Afigurava-se-lhe, pensando bem, que Maria Salom
teatralizara uma iniciao ao amor que decorrera
alis em bastidores de brancura. Essa iniciao
cincara nos testes costumados. Mas podia jur-lo?
Em qualquer dos casos a suspeita, que se esforava
por varrer como aleivosa, roa-lhe no corao, ouvia-
a ele mesmo roer com aquele incmodo masticatrio
do caruncho triturando uma tbua mole, cortada na
seiva da m lua. De princpio certo que no
passava duma puno ligeira, ligeira, embora
molesta. Depois tomava forma. Bem se afadigava ele
em desviar o curso dos pensamentos. primeira
esquina de qualquer divagao voltava ela
opinitica, insidiosa, mais roaz do que nunca. Por
fim a sua alma aceitou o debate. Debate em campo
aberto. Se ela te dissesse que fora vtima dum
momento de cegueira ou duma cilada, se to
confessasse franca e lealmente, absolvias? -
Absolvia, pois! - Com certeza? Com certeza;
preconceitos so preconceitos. Sendo assim, porque
ests a marrar nesse preconceito? uma tara
atvica. Que lhe havemos de fazer! No tanto
atvica como isso. Pode representar uma
premonio a bem da higiene moral, da decncia, do
bem estar domstico e da prpria sade fsica. Em
meu foro positivo no me julgaria no direito de
responsabiliz-la por um acto que no deve vincar
de modo definitivo, pelo menos, na vida das
relaes. De resto, h sempre que chamar barra a
interposta pessoa. Suponhamos que o partenaire
fora o delegado?! Que horror! No perdoava. Mas
esse no foi. Se fosse, porque havia de porfiar? E
Manuel, o Manuel Ponces, o priminho, o primeiro
filho da D. Rosinda? Ainda menos; meu amigo e
seria incapaz de cometer um abuso de confiana.
Sabe-se l! No provvel. E o confessor que a
confessa? pouco religiosa. O mdico, que a trata?
O mdico de famlia um inofensivo velhote.
Procura sempre! Tudo isso so cocas; no
esqueamos que h naturezas femininas com
determinadas conformaes. Sim, debaixo da rosa
do sol so possveis todas as formas, todas as iluses
e iluses das iluses.
Do problema da pureza, posto to objectivamente,
transitou para o problema econmico. Por mais que
revirasse os bolsos s encontrava coto. Estava a
cento e cinquenta quilmetros, pouco mais ou
menos, de gandra de Rei. Se lhe desse na cabea
para fazer a viagem pata, mesmo com o flego
todo arriscava-se a cair estalado para uma
ribanceira. Pediria uma cdea de po?! A sorrir, que
no com adeso ntima, pensou que seria agora a
oportunidade de se deitar ao Douro.
Ergueu-se do banco. Quem passava, detinha-se a
certa distncia a olhar para ele. No Porto no se
pode ser diferente, tanto pela cara como pelas botas.
Se se , vem a suspeio. O Porto quer saber. Antes,
o Porto precisa de saber.
Meteu-se ao acaso pela primeira viela. Os
pensamentos com a motilidade cambiam de tonus se
no de rumo. Com efeito lembrou-se dum
tamanqueiro, filhote da mesma parvnia,
estabelecido na cidade. Ao primeiro guarda
perguntou em que rua exerciam tais artfices seu
mester. E, uma vez l, foi percorrendo loja a loja.
Interpelou uns, inquiriu outros, e ao cabo de duas
horas de aturada e esperta pesquisa teve a sorte de
desencantar o homem providencial. Ele emprestou-
lhe a quantia reputada suficiente para regressar s
beras.
No contou com a fome, a fome dos vinte anos e da
energia desfalcada prodigamente, que rompeu a
tanaz-lo. E ali estava ele, trepa que trepa a escarpa
ngreme de Fontes do Varosa, com mil ces a
derriar-lhe nas entranhas. O que valia era a
amenidade do caminho. Mergulhado no cncavo, o
sol apenas banha o povilu das onze horas em
diante, quando no festo do monte, vestido de
castanheiros e rvores frondosas, vibra como uma
fanfarra.
Embalado pelos seus pensamentos que fora de
contrrios, doidos, patuscos, mortificantes, valiam
como um arraial e tinham o condo de lhe
entorpecer o apetite, graas umbragem, atingiu o
planalto sem grande custo. Reparou apenas que os
seus frgeis sapatos de calfe amarelo, que to
pssima figura haviam feito na Avenida dos
Aliados, estavam descosidos de todo e os dedos dos
ps espreitavam a largas frestas franciscanas.
Contando que o deixassem chegar a gandra de Rei.
At Penha da Moira, o trajecto f-lo com relativa
facilidade. Aqui e alm em nesgas de terra,
regaadas entre dois oiteirinhos por um muro
grosseiro de alvenaria, ranchos de mulheres
mondavam o centeal. Que uberdade de solo era esta
que para a gramnea mais rude requeria duas sachas
e uma monda? Os rebanhos desciam as vertentes j
de face para os estbulos, todo o monte palpitando
de seiva anteprimaveril. Nos cmoros as giestas
toucavam-se de gromos, donde ia rebentar uma
batalha de flores. E j a urze com seus incipientes de
corimbos de rubis, o sargao laminado de oiro, o
tojo com a sua explndida joalharia sarapitavam o
verde frouxel do mato.
Foi-se-lhe pr o Sol para l da orca grande. Dali em
fora o caminho era a descer, mas fragoso. Passou as
barrocas com o ltimo suspiro de luz, quando os
sapatos j no aguentavam mais. Teve que tir-los e
prosseguir em meias. Com eles debaixo do brao,
para no entrar em casa como um ladro, foi
andando, tacteando o terreno e, pela comodidade
com que marchou o primeiro quarto de hora, quase
se felicitava do expediente adoptado. Mas com o
escuro, desatou a dar topadas; as arestas das pedras
eram agudas e cravavam-se-lhe nos ps; onde no
havia picos, eram as areias que o feriam, tornando-
lhe insuportvel cada passo que dava. Voltou a
calar-se, mas o mal estava feito. Era como se
marchasse sobre pontas de punhais. Os ps
escapuliam-se-lhe indecorosamente pelas fendas
hiantes do gaspeado. Quando se viu no termo de
gandra de Rei, onde tantas vezes chegara na cola
dum bando de perdizes, repoisou. Palpou os ps.
Tinha-os ensanguentados. E agora?
Toda a marcha para a felicidade um martrio.
Pagava os dias de amor, de beatitude sem limites
que gozara no Porto, to grande que contrapesava
com o resto do universo. Era a lei. Agora no restava
outro remdio seno meter a cara mar
tempestuosa.
Rasgou o leno e com as tiras enfaixou os sapatos
que deixavam que os ps se escapulissem para a
direita e para a esquerda como presos que tentassem
a fuga. Cortou um brejoeiro nos cavalhios do corgo
e recomeou a passo trmulo de invlido a jornada
pavorosa. No se lembrou de medos, nem to-pouco
de lobos que por aquelas paragens costumavam
andar sobejos. Para sentir medo foroso ter o corpo
so e a alma livre. Ambos esses bens lhe
minguavam.
Quando chegou aldeia, era quase meia-noite. Uma
impondervel serenidade envolvia a casa e os
campos em redondo. A sua gente dormia, e receou-
se de bater. Porque se sentisse rprobo?
Transido de alma como de corpo, mal sustentado
pelo ressaibo de felicidade que lhe porejava ainda
dos lbios, dirigiu-se estrebaria. A porta estava
apenas acravelhada e contrastes da vida! deitou-se
na manjadoira do cavalo, devoluta depois que
morrera o baio.
Vieram-lhe dizer que a senhora D. Rosinda acabava
de bater porta da Clara Fagulha, sua antiga criada,
e ficou fora de si. Como podia ser?! Num pice
envergou o melhor fato e disse irm, sua
confidente:
- Imagina! Vir por causa da Maria Salom?! Vou
sab-lo. Entretanto, Ins, peo-te o obsquio de te
fazeres encontrada e, para o caso em que ela venha
por bem, convida-a para nossa casa.
- E a nossa me?
- Nossa me no pode levar a mal que se oferea
hospitalidade mulher do Dr. Ponces. O pap no
foi grande amigo dele?
Lanou estas palavras, j de costas voltadas, a andar
para a casa da Fagulha, que era no outro extremo do
povo. De facto, na casinha trrea, l estava aquela
senhora, to alva, to grande dama, em despeito da
sua desafectada singeleza, que a casa branqueava
como numa assuno! D. Rosinda acolheu-o com
um alvoroo prazenteiro que interpretou como
natural desafogo de europeu perdido na cafraria.
Contou que, indo de viagem para Coimbra na
camioneta da carreira, a altura de gandra de Rei se
sentira muito mal. Provavelmente um princpio de
insolao. Por isso resolvera apear e recorrer Clara
que lhe desse guarida at ao dia seguinte, quando
tornasse a passar a camioneta. Mas com a fresquido
daquelas paredes e um copo de gua j se sentia
boa.
E abria-se toda num sorriso to claro e desnevado
que voltou a parecer a Evaristo que se representava
naquela casa lbrega o milagre das rosas, grandes
toiceiras de rosas brancas brotarem ali por obra da
graa. D. Rosinda era me de trs filhos, um dos
quais j homem, o Manuel, mas ningum o ia dizer.
Com a blusa tte de ngre, os cabelos quase loiros
tufados sobre o pescoo, uma saia cor de caf em
plissados, sapatos cor de mbar, inculcava-se antes
como uma rapariga solteira. Era o que se chama
uma mulher bonita apesar das sardas que a
polvilhavam literalmente da raiz dos cabelos ao
decote. Mas o que tinha de mais belo era a boca,
uma boca que, no sendo pequena, graas ao recorte
voluptuoso e s duas fieiras de dentes, muito
regulares e alvos, dava gosto v-la. O sorriso em
conformidade era meigo, enliador, destes sorrisos
que se infiltram no sangue e so tudo, flor, melodia,
perfume, veludo, manjar divino. A par disso, tinha
uns olhos que parece mudavam de cor, do azul-
escuro de mar profundo transvertendo, segundo a
luz e segundo os sentimentos que a animavam, at
ao verde translcido.
Sempre tratara Evaristo, seu hspede durante a
semana de cavalinhos, com franqueza maternal, ou
assim ele aquilatava. De resto, no mantinha outra
atitude com os colegas e condiscpulos do filho.
Alm de bonita, primava por senhora distinta,
verdadeiramente donosa, nada tola, nada pires, e
segundo a voz corrente to boa esposa como me
adorvel. Mais duma vez Evaristo acordara de suas
cogitaes a invejar a sorte do Dr. Juiz. Ali estava o
espelho dos felizardos, prottipo de regales! Ah, se
Maria Salom fosse cortada do lenho de D. Rosinda!
Depois das confidncias que recebera no Porto,
reticentes porm e desconexas, notara-o depois de as
pesar em balana de ourives, D. Rosinda revestia
novos aspectos morais no seu juzo. Que fora uma
grande namoradeira e era histrica; que era
rancorosa e soberba. Meia verdade ou redonda
mentira, deviam esses defeitos representar o excesso
das suas virtudes. Mas, e Evaristo no se explicava
bem, bastava t-la ali para cair por terra o edifcio
pejorativo e ficar apenas aquele sorriso imaculado
de alma branda, a que dava realce o cravo Prncipe
Negro que trazia no corpete.
Evaristo devia-lhe homenagem, e fcil foi persuadi-
la a trocar o tugrio da Fagulha, com as galinhas
dentro de casa e os porcos a esfossar nos estrumes
da quint, pela sua casa, choupana de aldeia, mas
onde o pai, homem viajado devido aos
deslocamentos do ofcio, tinha juntado dois tarecos
decentes. Felizmente Ins j vinha a caminho com o
seu aventalinho de trazer na quinta, em rosto o seu
doce e liberal sorriso.
Era meia manh e D. Rosinda soube insinuar-se no
nimo de D. Alexandra que passava por arisca. O
senhor Soares adiava para a quinta a esladroar nos
cordes do bacelo, e logo despediu a saudar a
esposa do Sr. Dr. Juiz, nobre e velho amigo. J
tinham almoado, e D. Rosinda declinou servir-se
do po de l e do licor com que queriam obrig-la a
satisfazer um apetite que no sentia, a ttulo de que
o jantar ainda estava demorado.
Ins dera uma volta de mo no quarto de hspedes,
muito espelhadio da cera, modesto mas acolhedor
com a sua cmoda de castanho-claro, o lavatrio de
vlvula, toalha turca pendente da barrazinha de
vidro aparafusada ao muro, e cama de ferro com
lenis muito brancos e uma pele de ona aos ps.
Na parede, nada mais que La pense de Rodin, ideia
de Evaristo.
A senhora D. Rosinda perdoasse, mas uma noite
passadoira era. Ela, pelo contrrio, no calava a sua
satisfao e reconhecimento. Tudo observava com
xtase. O quarto era fresco, fresquinho, a dar
vontade de dormir a sesta at ao fim do Vero.
- Muito bonito! A janela para onde d?! Ah, para a
horta. E que linda figueira alm?! L longe tambm
pertence?
L longe era o pinhal, entressachado de mimosas,
com suas sombras e boscagens. E como Evaristo lhe
dissesse que sim, tambm fazia parte da quintarola,
exclamou:
- E eu que gosto tanto da sombra do arvoredo! H-
de-me ir mostrar.
Ficou sozinha. Do seu quarto, que era contguo,
Evaristo continuava a v-la, sem querer, atravs do
rudo de gestos e passos. L andava dum lado para
o outro, um pouco incerta; dir-se-ia que estudava o
aposento e ainda o exterior da propriedade. Depois
abria a mala. Ao fim duma pequena pausa a gua
caa de jorro na bacia. Lavava-se com um rumor
discreto s mos ambas. Sucedia um grande silncio,
o seu tanto oco: talvez a pintura, um breve fumo de
antimnio nos lbios que tinham prpura prpria.
Em seguida, passos largos. Passos miudinhos, e
certa manobra ntima, muito subtil, que no dessem
conta, mas que ele adivinhou com certo
estremecimento voluptuoso. Passos mais afoitos,
mais repetidos, que denotavam estar no fim da
toilette.
De facto a porta abriu-se e ela saiu para a sala de
espera, mais branca ainda e dominiosa. Trocara a
blusa mortia por uma blusa bordada, alegre, que
lhe dava cor e a tornava jovem de todo. Evaristo
veio ter com ela e ficou deslumbrado. D. Rosinda
sorria-lhe ternamente, bem compreendendo ele que
lhe dizia:
Acha-me bonita? O que no sou velha. De resto,
sou uma mulher como as mais.
Ah, porque estava ele com a boca to seca e
entabuada!?
To naturalmente como estivesse em sua casa, D.
Rosinda pegou das revistas que havia em cima dum
contador e ps-se a folhe-las. Depois, foi
borboleteando de assunto em assunto com esprito e
sainete. Subitamente expressou:
- Disse-me a Clara que anda em preparativos de
abalada. Para Lisboa, no ?
- Sim, tenho a viagem mais ou menos aprazada.
- Havemos de falar... - proferiu apenas, como se com
mergulhar olhos na revista interrompesse o curso
dos pensamentos.
No quintal havia uma frescura deliciosa. A gua
descia do morro, que se alcandorava do lado norte
da habitao, ora chocalhando, ora cantando atravs
dos muitos e vrios caleiros. Daquele lado a latada
cobria grande trato do ptio e com as folhas ainda
limitadas e os pmpanos tenros o sol construa no
terreiro sua tapearia japonesa. Uma escada, inscrita
no talude, conduzia ao primeiro cmoro, de cuja
platibanda uma segunda levava mata
propriamente dita. Os haveres dos Soares
resumiam-se, salvo uns lameiros de pastagem para
os bois, quela herdade, to mimosa a parte de
baixo, como cascalho e salo a parte de cima.
O senhor Soares tinha de ir vigiar os jornaleiros que
trazia a saibrar uma courela para o Corgo e pedia
desculpa em no fazer companhia esposa do seu
nobre e velho amigo. Ins andava dentro e fora, nas
voltas da casa, e D. Alexandra, essa sem papas na
lngua, disse que estava a fazer o jantar, pois no
tinham cozinheira. Ficaram ss.
- Quer-me ir mostrar a mata? - disse ela.
Subiram a meia dzia de degraus do cmoro e, por
uma vereda, colorida com as flores das fruteiras,
iriadas nestas, purpreas naquelas, alcanaram o
picoto. Diante deles o marantu zarpou com o seu
pluvial de oiro rutilante, mas as rolas, porque
estivessem no coruto alto dos pinheiros, no
cessaram de cantar. Para o lado das moitas os gaios
palreiros saraivavam sua fralda de chita desbotada.
- Ento, diga-me c, quando tenciona ir para Lisboa?
- No sei ainda ao certo, talvez antes do fim do ms.
- At ao fim do ms h uma semana e... cinco... no,
quatro dias. Tem ainda tempo para reconsiderar.
D. Rosinda caminhava muito chegada a ele,
primeiro porque a vereda no permitia grande
espaamento, depois porque punha nisso uma
ternura que supunha filha da sua dileco maternal.
- Eu nos seus casos no ia...
- No ia, ah! Mas eu tenho algum dia de comear
carreira.
- Olhe para mim: vai para comear carreira ou pelos
bonitos olhos de algum? Seja franco...
As pupilas dela no exprimiam maldade nenhuma,
embora as suas tintas ondeassem do glauco sem
matiz para o azul do cu vespertino, e Evaristo
baixou a cabea:
- No lhe nego, vou por sua sobrinha. Sim, em
primeiro lugar, vou por sua sobrinha; depois, por
mim; no quero ser pesado a meus pais; s a ideia
de que posso ser considerado parasita, nem durmo.
- Faz bem, mas oua, e oua quem lhe no quer mal.
V por si... por si s... por mais ningum.
- Eu j sabia que no gosta de Maria Salom.
- No gosto, nem deixo de gostar. Essa rapariga faz-
me pena e mais nada. uma infeliz.
Proferiu aquelas terrveis e enigmticas palavras de
afogadilho, com certo movimento de brusquido, e
a esse movimento correspondia o esfumadssimo
tom de carmim que se lhe espalhava pelo rosto.
Evaristo permaneceu um instante calado, a ruminar
no que ouvia e emergindo longe, como borboto do
discurso que se ia elaborando no crebro,
murmurou:
- infeliz por ser pobre? isso que quer dizer.
- No, Evaristo, no isso. O Evaristo uma criana
e tem os olhos fechados s ruindades do mundo. A
Maria Salom no tem nada de seu, certo, e por
isso seria de lamentar, mas no mereceria o d... o
d que se tem pelas infelizes.
Estavam dentro da mata onde ningum os via e eles,
atravs da grade mltipla dos troncos dos pinheiros,
viam desdobrar-se a terra de alqueive e de vinha,
deserta, batida pelo sol que desembainhava os hastis
do milho e fazia reluzir a farfalha verde do batatal.
- Sentemo-nos aqui - disse ela.
Sentou-se num corte dum velho carvalho, redondo
como um mocho, e fez-lhe sinal. Embora largo, no
comportava assento para dois, pelo que ele persistiu
em ficar de p. Mas ela chamou-o para junto de si e,
to rente que se tocavam, Evaristo sentiu o hlito
dela em sua boca, clido, levemente adocicado,
excitante. Reparava agora que se evolava dela um
aroma muito fino, quase imperceptvel, que no
sabia definir, talvez entre cravo e baunilha, mas que
era sumamente capitoso.
Ela ps-lhe a mo no joelho e, com um sorriso leve,
muito levemente sardnico, fitando-o com certa
provocao no fundo dos olhos, disse:
- O Evaristo um homem?
- Penso que sim.
- Posso-lhe falar como a um homem?
- Ora essa! - exclamou titubeando, balouado entre
os pensamentos mais opostos: que quer ela? - Nunca
me faltou o nimo.
- Ento oua o meu menino. A Maria Salom no
digna de si.
Evaristo fez-se muito plido e todo aquele inferno
de dvidas, que pela primeira vez se lhe formulara
nitidamente ao esprito no banco da Avenida dos
Aliados, entrou de chofre a esclarecer o lance. E
gaguejou, adivinhando por uma fulgurao do
instinto o que ia desabar sobre ele:
- Faa favor de dizer, minha senhora.
- Mas homem, veja l?
- No tenha receio - proferiu resfolgando.
Ela ento contou com longos rodeios e velaturas
uma histria tremebunda. Arteiramente, possvel,
mas com to acentuada firmeza que se via no haver
ali romanceao nem fbula. medida que ia
falando, um sorriso triste, triste como a luz duma
candeia moribunda, banhava, devia banhar o rosto
de Evaristo na vontade de protestar sua rijeza de
fibra para a adversidade. Ao mesmo tempo a mo
dela apertava a sua, to doce, docemente, como
seria o reconforto que pode comunicar a mo
trplice de me, de amante, e de irmzinha.
- horrvel! - exclamou ele.
- A noite que se foi embora, fui encontr-la nos
braos do bandalho!...
Os olhos dela agora chispavam. As pupilas eram do
azul que arde, o azul que se v volta das labaredas
e como uma damasquinao do fogo. Depois fitou-
o. E, dando-se conta do mal que fizera, passou-lhe o
brao roda do pescoo:
- No me fica a odiar, no?
Por cima dele, como apario dos belos sonhos da
madrugada ela embebia os olhos tristes e meigos
nos olhos dele. Evaristo viu-se anozinho de todo no
ao quente das suas pupilas. E o prprio sentimento
da desventura provocou a casquilharia das
lgrimas. Desatou a chorar, a chorar em fonte,
depois com fundos e convulsivos arquejos.
Rosinda tirou o lencinho da cinta e limpou-lhe os
olhos. Quando lhos viu enxutos, beijou-lhos. Ele
sorria. Era to agradvel ser tratado como criana!
Mas ela encostava a face dele. Fugitivamente
poisou-lhe um beijo no canto do lbio.
Evaristo num repente visionou as cenas lbricas da
amante com o outro, depois consigo no hotel da
Batalha, e ficou alumbrado. Notou na pupila dela a
ave de azul e chama, a ave do paraso, divinamente
sensual, a requer-lo. Ao tentame roou os lbios
pela face cetinosa, e viu que as plpebras lhe
desciam cheias de penumbra.
Num plano remoto prepassaram Maria Salom, o
Dr. Ponces, Manuel-zinho... todos os estimulantes.
Como luz que mal se acende se apaga, pensou:
vingativa ou Madame Colibri?!
Salamaleque
Dos nove aos onze anos, o Jos Pais foi moo de
cego. Sua me, que estava carregada de filhos e no
tinha um palmo de terra onde cair morta, dera-o por
uma malga de feijes para os dois manos da Aldeia
de Nacomba, que andavam no peditrio. Aprendeu
a moina e disse. Eram uma gente cainha de todo,
dobrados sobre a prpria misria, to futres que,
tantos dias que passou com eles, nem uma carapua
lhe compraram.
Gmeos e feridos desde nascena de gota serena,
iam de povo em povo cantando e tocando, ele
rabeca, ela violo. Armavam nos largos e boqueira
dos ptios a zanguizarra, e recolhendo o cinco
reizinhos aqui, o coirato acol, uma cdea nesta
porta, duas cebolas naquela, l iam acalentando os
dias. O Jos Pais carregava com o bornal e guiava-os
pelos tortuosos caminhos de Cristo, tendo cuidado
que no tropeassem nas pedras ou metessem os ps
nos charcos. Marchavam em bicha como se fossem
engatados: o moo na dianteira, descalo e roto; o
cego, de tabardo de burel, a mo no ombro do moo;
a cega, de vasquinha escarlata, a mo no ombro do
irmo e instrumento para as costas, tal o escudo
dum peltasta.
No estio esta vida airada no era a pior de todas.
Sempre havia que imolar, pomos e cachos em
suspenso dos taludes, o fundo das caoilas a varrer
pelas malhadas e os restos dos farnis pelas
romarias. O Jos Pais, sacudido para fora do regao
materno superpovoado, como sucede nos ninhos de
certas aves quando os filhos so muitos, tirava o
ventre de misrias. A melhor bocada, de resto, ia ao
direito para o fole do gato, que ali era ele, o
lazarilho, to gil de garra como ladino de olho.
- Que deram em casa da senhora Micas brasileira?
perguntava o cego.
- Duas dentadas de broa to rijas que s o Diabo as
pode tragar.
- Deixa ver, menino.
O Jos Pais afundia a mo no taleigo e, como l
houvesse de tudo, apartando o po fresco e folhado,
arrancava o pedao mais bolorento e empedernido.
- J no h caridade! gemia o velho.
Rodando para outra porta, no cessava de rosnar:
Pernoitavam a talhe de mo, umas vezes nos
cabanais quentes dos povilus, outras vezes,
surpreendidos pelo temporal, nas cortes da serra de
mistura com o gado. Altas horas, o Jos Pais erguia-
se do grabato, muito sorrateiro, e a rastos como a
giboia chegava-se s cabras. Assim que palpava um
bero bem repleto, punha-lhe os beios e sugava,
sugava at ltima gota. Depois desse, outro.
Voltava cama refarto, a cheirar-se ele prprio a
menino de mama, pesado, para mergulhar numa
soneira de que s acordava aos safanes.
Os cegos sabiam trovas de todo o gnero, umas que
faziam rir, outras chorar. Cantavam o rimance do
sapateiro que fora entregar a obra aos fregueses e
volta apanhara a mulher a cear com um frade, e as
bocas escancaravam-se at s orelhas e as risadas
caam das queixadas, estrepitosas como espadanas
em cima do linho. Mas l vinha a histria do filho a
quem a amiga pediu o corao da me, se queria
dormir com ela, e os olhos vidravam-se de lgrimas.
O Jos Pais gostava pouco daquelas cantorias. A voz
dos dois cegos, como se fizesse coro com as rbitas
revolcando-se brancas, vazias e absurdas nas
capelas ramelosas, soava a outro mundo. Parecia-lhe
ouvir o acompanhamento dos defuntos no trao da
porta dos cemitrios. Tinha tambm a plangncia
dos ralos que cantam de noite debaixo da terra.
Estava morto por despegar.
Um dia, o cego apanhou-o enliado no sono e
passou-lhe revista aos bolsos. No fundo da algibeira
das calas, dentro dum trapo, encontrou-lhe o
tesoiro, dinheiro escamoteado moeda a moeda,
desde o primeiro dia. Enquanto o sujeitava contra o
solo com a mo esquerda, com a direita zurziu,
zurziu sem d nem piedade. A cega, em vez de lhe
valer, aulava o algoz:
- Mata, matame esse ladro!
No mesmo dia abalou. Estava farto da bordoada,
daquela macarena azarenta, dos padre-nossos dos
cegos entremeados de pragas: oxal que vos caia a
casa em cima e vos esborrache a todos! Que ainda
hoje comam lume no inferno! da vida de co, umas
vezes molhado at o umbigo, outras a estorricar com
a soalheira. Pois que a me o no queria em casa
todas as tetas duma porca no chegavam para os
irmos, cada um de seu pai foi procurar amo.
Ajustou-se na azenha dum moleiro que tinha fama
de mau e ladro. A sua funo era ir entregar a
moenda a casa dos fregueses nos trs povos mais
chegados. Com um cavalicoque branco pela rdea,
tep, tep, a assobiar o Compadre Chegadinho, o co
Farrusco frente de batedor, dizia com os seus
botes: ca no mel! De facto, deixando farinha,
carregando gro, se no fosse a sua btega de gua
que o pilhava nas andanas e certos dias madrugar
com o Sete-Estrelo, era vida regalada.
O diabo que o moleiro tirava a maquia com a mo,
que Deus lhe deu, do tamanho duma p; a mulher
vinha socapa e remaquiava os sacos castigados.
Era gaiteira, precisava de bilhestres com que pagar
oiros, folhos, sabonetes. E, pois que lhe davam o
exemplo, porque no havia ele tambm de prelevar
em cada fornada a sua maquiazinha? Entendeu-se
com a Jlia Traa, uma triste da macaca, e rodando
pelo eido onde ela morava, em trs tempos
subtraam a sua escudela em cada moega.
Este imposto durou mais que as rosas de
Alexandria. Mas os fregueses doeram-se da
expoliao exorbitada, bramaram, e encarreiraram
para outro moinho. O moleiro desdenhado
procurou o aixe e descobriu-o. Era homem
impetuoso e aplicou uma surra mulher, que deu
brado ao longe. O Jos Pais aventou a boa distncia
a sorte que o esperava e, largando a cavalo
aventura, despediu. A Jlia Traa recolhia integral o
produto da melgueira, mas, deix-lo, havia de
aguentar tambm com o troco da mascambilha.
Andou, andou sempre em frente, desviando-se da
estrada para o caminho, do caminho para a vereda,
a cada rudo singular julgando que era o moleiro
duma figa que vinha no cavalo branco atrs dele.
noitinha encontrou-se com terra jamais pisada num
arco de novos horizontes. Foi dormir ao forno, que
o albergue nas aldeias de todos os pobres e
mendicantes, e de manh, como ouvisse tocar o
sino, assentou com os seus cuidados:
- Vamos l santa missinha!
Era em Maio e tudo floria. Os aromas da alfazema e
do alecrim das hortas entravam pela porta da galil
a insensar ao Senhor juntamente com o fumo dos
turbulos. E as abelhas vinham tambm por ali
dentro, atrs das braadas de flores com que as
irms de Maria enfeitavam os altares, a largar a sua
muinheira.
O Jos Pais, nunca assistira, a bem dizer, a uma
missa do princpio ao fim e ali esteve at resto,
fazendo o que via fazer, ora ajoelhando, ora
erguendo-se, benzendo-se algumas vezes com a mo
canhota por no saber que s se faz com a direita.
Depois, com sete olhos e as suas sete fomes, assistiu
beno do po.
Era costume imemorial naquele povilu sem
histria, em certos dias do ano, benzer o sacerdote a
broazinha do Senhor e reparti-la pelos fiis, por
escala, segundo o grau de suas importncias. Todos,
uns aps outros, se chegavam mesa da proposio,
os ricos e honrados, primeiro, depois os mecnicos,
finalmente os pelintras e filhos de m me. A ele
coube-lhe ser dos derradeiros a receber uma cdea
de nada. Pouco que era, socapa foi passando-a ao
estreito, que tinha o estmago a ladrar, desatinada
ladrao para um antigo moo de cego, afeito ao
jejum.
Acabada a cerimnia, observou o Jos Pais que o
bom tracanaz de po que sobrara levava jeitos de
ficar na credncia. Com que fim, santo Deus?
Exacerbado o apetite com as migalhas que engolira,
os olhos marravam-se-lhe no pio manjar, como os
dum podengo em rez do monte encovilada. Cozido
alis de vspera, rescendia que consolava. Ah,
benditas fossem as mos que o governaram! Agora
o homem da opa vermelha cobria-o com uma toalha
e arrumava-o para a banda. Ficava ali, no havia
que duvidar. Com que fim, santo Deus? Para as
corujas, para os ratos, para as comadres ausentes?
O Jos Pais escondeu-se para um canto do
baptistrio e esperou que a igreja se esvaziasse.
Retiraram-se os fiis, retirou a ltima beata a
cochichar com o senhor prior, ao cabo o sacristo
que, depois de apagar as velas, se foi a arrastar a
perna. Assim que a chave da porta travessa deu a
derradeira volta na fechadura, ergueu a cabea por
cima do aro da pia baptismal e espreitou. Ningum.
Quer dizer, alguns santos fitavam nele os olhos de
vidro; um tinha um cordeiro ao p e trazia moca;
outro um bengalo de volta; mas no eram eles que
desciam dos tronos a dar-lhe lambada como fazia o
cego e como no deixaria de fazer o moleiro se lhe
tem prantado as unhas em cima. Pois quem manda
Deus, adiante, meu povo!
Dum salto ps-se no altar-mor, e pegar do po e
ferrar-lhe os dentes foi fulminante. Comeu, comeu
primeiro com voracidade, depois tasquinhando
como um rato que vai armazenando para as horas
de lazeira e pensando nas vidas. E s reparou que
tinha dado conta do tropeo quando ingeriu a
ltima migalha.
Bateu ento uma palmada na pana: bem bom! O
pior que comeou a sentir sede. S agora lhe
parecia notar que as dentadas do fim as atafulhara j
sobreposse. Alm de que o comer de seco se quer
regado a mide, o pozinho estava sobre o salgado,
se que ali no havia que responsabilizar seno a
quantidade. Fosse como fosse, sentia muita sede. O
remdio era pirar-se. Mas por onde? A porta da
sacristia estava fechada chave; a porta travessa
igualmente; a porta principal, essa achava-se
cerrada com uma tranca to grossa e encastalhada
nos encaixes de certo no era para os santos no
fugirem que, por mais que fizesse, no conseguiu
mov-la.
Circunvagando os olhos pelas grades, bem
chumbadas nas ombreiras, por virgens e anacoretas
que no mostravam ares de lhe ensinar a sada,
reparou na pia da gua benta. L estava mergulhado
dentro o fachoco de alecrim com que os devotos
enxotavam o Tinhoso maila choldra. Meteu as
pontas dos dedos Estava fresquinha e to lmpida
que se via o fundo. E deixou-se cometer da tentao.
Bebeu, bebeu at mais no poder. Apenas ao ltimo
gole se apercebeu de quanto era enxabida e
salitrosa. Sabia, demais, a alho e a cadver, mas era
o mesmo. E, quase satisfeito com o destino, como l
fora caa uma tal torreira que at a pardalada se
havia calado nos beirais da igreja, e as sombras ali
eram deleitosas, acolheu-se outra vez ao baptistrio
a dormir a sesta.
Estremunhou ao puxarem-lhe pela manga.
Descerrou meio olho e pela frestazinha entreaberta
divisou o senhor padre de sobrepeliz, dobrado para
ele.
Fingiu-se resvalar de novo ao sono de chumbo,
resignado aos aoites que iam chover-lhe no
canastro.
- rapaz! rapaz diabo! - gritava por cima dele
Sua
Reverendssima ao tempo que o sacudia mais
desabaladamente que corda do sino nas missas
glaciais.
No teve outro remdio seno acordar.
- Que fazes aqui, grande larpio?
No respondeu. Que havia de responder?!
Entretanto acorriam as beatas.
- Vejam o que tem nos bolsos
Duas, trs servas do Senhor meteram-lhe as mos
nas algibeiras, palparam-no todo dos ps cabea,
por dentro e por fora da camisa.
- No tem nada com ele, meu senhor!
- Que fazes aqui, homem? - tornou o padre
cravando nele um olhar de gavio.
Ps-se a chorar. Tinha aprendido a chorar e fazia-o
to bem que cortava a alma.
- um pobrezinho, meu senhor - proferiu uma das
beatas. Entrou para dentro da igreja como pardal
esparvado.
O sacristo apareceu entretanto com a bandeja
vazia:
- No entrou to esparvadamente como isso!
Carambinha, comeu o po bento todo. Chama-se um
paiol!
Foi a admirao de quantos ali estavam. Oravam o
trancanaz entre quilo a quilo e meio.
- Tinhas ento fome? - perguntou o padre com
jocosa amenidade.
Em resposta ps-se a chorar mais forte. Era um
choro convulso, entrecortado de arquejos fundos,
destes que s no provocam compuno nos
coraes endurecidos.
O padre puxou-o pelo antebrao e, como ele se
fizesse morto, arrastando de asa, ergueu-o em
pulins e levou-o para o adro. Ali, com blandcia e
jeito, indagou de quem era e no era. O entremez,
entretanto, atraa um senhor de culos, sapatos de
lona e bon de pala, que subia a rua a passo de
ocioso, os dois polegares pendurados das cavas do
colete. Em silncio, os oito dedos salientes a bolir
tais apndices do caranguejo, escutou a mirfica
histria do comilo do po bento. E, como era
magro e alto, lembrava a cegonha no campanrio a
seguir os movimentos dum musaranho estatelado
no terreiro.
Subitamente o senhor abriu a boca:
- Queres tu vir comigo para a cidade? Meto-te na
botica. Hem?
Quantos ali estavam secundaram a voz de Sua
Reverendssima:
- Leve-o, leve-o, senhor Loureno Romo, que faz
uma obra de caridade. Este menino, se o amparam
pode ainda vir a ser um homem. Se o largam, d em
vadio, inimigo da sociedade e um perdido de Deus.
O Jos Pais no gostava das obras de caridade, que
em geral acabavam em malandrice. Mas era darem-
no quite quanto ao po bento, e seguiu aquele
homem alto e desengonado, com culos de
pernstico e plos ruivos no queixo, como um co
sem dono ao passante que lhe assobia.
Passou o Jos Pais ao servio do boticrio da
Prebenda, que lhe dava cama, mesa e roupa lavada,
e a sua data de marmeleiro as vezes que claudicava
nas obrigaes. O rol destas era extenso e difuso. De
permeio com elas, pertencia-lhe aprender letra
redonda e palegrafo, tabuada e escrita, e o
rapazinho foi refinando. Espigou depressa. Aos
dezoito anos era um virote rijo e direito, e no se
fala de esperteza. sua cincia antiga somava-se a
que andava bebendo na escola da S com o
reverendo Matusalm e na botica do Loureno. A
botica era uma espcie de escola do cadelas dos
farmacpolas da provncia. Oficina ao mesmo
tempo e seminrio. Ele era a rodilha. Comia os
sobejos; a sua ocupao nos primeiros anos consistiu
em fazer os fretes de todos e apanhar pontaps. Mas
como era mais ferrenho que a erva dos caminhos,
vingou. Tinham-no alojado da parte de trs da loja,
por baixo da escada que levava ao primeiro piso,
residncia propriamente dita. Era l a camarata dos
praticantes.
Para falar justo, o ninho que lhe destinaram era o
prprio desvo da escada. Ainda assim, no lhe
pertencia exclusivamente. A parede do fundo
desaparecia sob os andares sucessivos das
prateleiras, escalonadas at os degraus, assentes nas
traves mestras. Numas alinhavam os boies de loia
do Rato com unguentos e blsamos, os frascos
bojudos e as redomas de rtulo ferruginoso, os
vasos vidrados de rolhas hermticas para proteger
do ar e da humidade os simples de preo, como
unto de crocodilo, bezorticos animais, rasuras de
marfim e de crnio humano, unha de gr-besta,
pedra Bezoar, tanto oriental como ocidental, e at
ps de mmia.
- Tenham muito cuidadinho com esses frascos -
exclamava o Loureno, apontando a espcie
mirabolante, de grande efeito quanto a atalhar a
gangrena e a resolver a tsica. - Muito cuidadinho.
Aquela droga, ali onde a vem, custa os olhos da
cara e no passa duma impostura. Mais que
impostura, uma autntica roubalheira.
E vinha logo a histria consabida. Estava
averiguado que os judeus de Alexandria eram
mestres na arte de impingir Europa como mmias
genunas, isto , honrados cadveres de egpcios da
era faranica, embalsamados com todos os
matadores e exumados dos seus sarcfagos do Vale
dos Reis por misses cientficas, a que presidia
invariavelmente um ingls, sbio e lorde carcaas
de mseros fels vitimados pela peste. A
escamoteao era fcil: esvaziavam-nos das vsceras
e, depois de os atufar muito bem de mirra, azebre
cabalino, pez negro e betume da Judeia, precintados
por tiras de estopa embebidas em terebintina,
punham-nos a dessecar ao sol bravo do deserto. No
atinavam com a impostura dois doutores de
antropologia.
Nas prateleiras superiores, andando da direita para
a esquerda e da esquerda para a direita,
sucessivamente, em molhadas atadas por juncos e
com etiqueta ao penduro, agrupavam-se as razes e
as ervas. Primeiro, as cinco razes aperientes
maiores, seguidas das cinco menores, e na estrema
as duas razes aperientes comuns, de muito
prstimo em cozimentos e colrios. Vinham logo as
ervas ditas emolientes, que ajudam a relaxar os
humores e a encoirar as chagas, e por ordem de
famlias as carminativas, as capitais quentes e as
capitais frias, as hepticas e vulnerrias, a acabar nas
cordiais com as rosas secas de Jeric.
Habituado a dormir nos palhais do feno e estbulos,
afogados em rescendores tpidos, no era a natureza
de semelhante aposentadoria o que mais o agoniava.
To-pouco a fedorentina de certos artigos em
decomposio ou mal macerados, como lombos da
serpente verde bojali, de muita virtude o seu sal
voltil nas quenturas malignas, vboras de Outono a
enxugar ao sol depois de esfoladas, ou barbatanas
do vitulus marinus conservadas em aguardente de
medronhos. A sua pituitria afizera-se desde
menino a todos os metanas da cadaverizao, de
modo que no era daquilo que lhe provinham os
engulhos. A certas horas, mesmo na cama de
bancos, em pelotas a premunir-se da fermentao
vegetal e do calor da oficina, onde atestava nos dias
grandes um sol de rachar, lembrava um sardo
satisfeito, alapardado boca da sua toca. O que lhe
custava a engolir era ainda e sempre a excluso a
que o votavam em casa do Loureno, em despeito
da sua boa vontade para trabalhos e canseiras. Os
praticantes no se dignavam mostrar-se em passeio
na sua companhia. Se porventura se encontravam
com ele, corriam-no. Uma vez que o surpreen-
deram em casa da Carria, na Rua da Carvoeira,
sujeitaram-no operao vilipendiosa da barrela.
Que mal fizera ele a Deus para permitir que fosse
objecto de semelhante enxovalho?! Era verdade que
a Carria tinha l uma pupila que, ele a entrar, era
perdida e achada nos seus joelhos. Com a ciumeira,
o Mendesius acusara-o ao patro que lhe proibira
sair aos domingos. No era uma violncia
inqualificvel?
Z das Nicas derrancava-se o sangue a odiar, vendo-
se estorvado da pndega to grata em casa da
Carria. A oficina qumico-galnica era-lhe
detestanda por isso e muito mais. O passadio no ia
alm de papas e carrapatos, carrapatos e papas,
comer de negros. Tambm lhe davam volta ao
estmago aquelas operaes nojentas, das quais as
menos ascorosas era estripar as cobras e recolher-
lhes as enxndias, pisar as minhocas para lhes
extrair o leo, lanar na panela a ferver as rs
saltantes que lhe traziam ao direito do Pavia, para a
elixao ser perfeita, ou raspar uma caveira
comprada ao coveiro por baixo de capucha para
peitorais dos que deitassem sangue pela boca.
Por isso ele agradecia que o Loureno o mandasse
colher os simples pelos campos, mormente na
Primavera quando as plantas esto com o vio todo,
exaltadas dos princpios espirituosos-alinos do
interior da terra. A lavar os tachos, acender os
alambiques, desencardir as retortas preferia esse
trabalho embora com o risco de apanhar uma carga
de gua ou arrochada dos donos das fazendas.
O Loureno, que era um poo de cincia, mas tinha
a pedanteria do sbio da Universidade que se
narcisa no saber, recomendava aos praticantes, antes
de abalarem, num latinrio ainda mais lato que o
da missa:
- Observandum est plantas sponte obortas in loco
libero.
Um ou outro novato ficava de cara banda e ele
traduzia com a acrimnia de quem gosta de ser
adivinhado nada mais que pelo bolir dos lbios:
- Sim, ignorantes, ignorantins, ignorantes, querem-
se plantas que tenham nascido lei da natureza e
no in solo stercorisato.
Voltava costas e o Valentim Mendes, um
zangarelho alto e malicioso, deitava a fazer grossa
chacota do Loureno e de toda a endrmina
farmacopica. E l ia com os outros em grande e
alegre chinfrim S. Joo da Carreira fora, caixas de
folha e sacos s costas, atravs de valeirozinhos e
montados. O Z Pais que tinha de alombar com o
carrego maior das ervas, em peso cestada como as
que, pelo tempo dos centeios a espigar, se
apanhavam na seara para engorda dos cerdos.
Deix-lo, faziam gato-sapato dele, mas a breve
trecho sabia distinguir e classificar toda a casta de
plantas pelas suas virtudes medicinais. Sabia que o
aipo, o funcho, a gilbardeira tm grande prstimo
nos males da bexiga; que no h como a molarinha
para purificar o sangue, ministrada em xaropes; que
a losna quase miraculosa em actuar na conjuno
mensal e no se encontrou ainda nada superior ao
alcauz para aliviar quem sofre do reumatismo. No
tardou que por sua prpria discriminao ordenasse
e arrumasse os simples segundo a escala
estabelecida. Da arte apoticria, a parte botnica,
concernente chamada colheio, era a que mais o
interessava. Que regalo se o enviavam a apanhar
rosas! Pedia licena para entrar nos jardins e era
fortuito encontrar-se com uma cara bonita, no raro
com uma bele au bois dormant. O parque da Casa
do Arco era um mundo s sonhado.
O Z Pais da primeira vez que ali caiu ficou
boquiaberto. Era o ms de Maio, e, diante da cpia
de flores, com os seus aromas inebriando o ar e com
suas tintas dando luz dos olhos uma alegria
inocente, repisou a mxima do mestre, que por seu
turno a tomara do grande Zacuto:
- Flos est gaudium plantae et futuri veri spes.
Por outros termos, termos do Loureno pedagogo:
- A flor o mimo da planta e a embaixatriz do
Vero.
No admira que por este conduto Z Pais chegasse a
ganhar interesse pela arte de boticrio, por alguma
razo chamada dos antigos, no que encerra de
hermtico, a arte do perfeito magistrio, e que, de
reles aprendiz, cujo papel se confinava em colher os
simples pelas veigas e os montes, entregar os
remdios, lavar e enxaguar a frascaria, passasse a
manipulador. Os demais empregados do Loureno,
no s praticantes como alunos de espagria, que
cada vez gostavam menos dele. Teve de ficar mal
com uns, obrigado a participar ao Loureno as
partidas que lhe faziam. Olhavam-no outros de
soslaio, supondo-o denunciante sistemtico de seus
brdios e patuscadas. Z Pais era reservado e
suspicaz e ningum tinha nada com isso.
Chamavam-no acusa-cristos e beato falso. Era crime
ouvir missa, beijar a mo ao Reverendssimo
Matusalm, fazer as vontadinhas senhora?
Da cfila, contra si, o pior de todos era o Valentim
Mendes, a que chamavam em calo de escola
Valentinus Mendesius. Todos tinham medo dele
porque dava piparote com os dedos sseos que
valiam mocadas, corria atrs de todas as saias de
servas do bairro, e no se ensaiava para descompor
um cristo, fosse bem embora beneficiado da S ou o
mais pintado do governo. No frequentava as
igrejas nem se confessava ainda mesmo pela Pscoa
da Ressurreio. O Mendesius no gostava dele nem
tragado e Z Pais pagava-lhe na mesma moeda. O
facnora, por esprito de maroteira, ia meter-lhe
entre as mantas rs vivas e sapos. Outras vezes, se o
apanhava desprevenido, polvilhava-lhe o comer
com p de cantridas ou metia-lhe debaixo da cama
assaftida. O Z Pais ia-se chorar para o Loureno
que tinha sempre uma palavra sarcstica:
- J no tenho mama para ti! Ests muito crescido
No obstante to graves e mltiplos senes, Z Pais
acabou por deixar-se empolgar por uma arte qual,
segundo o conspcuo Loureno, a jurisprudncia
fazia corpo de guarda, pesando na balana as
quantidades; a matemtica alumiava com seus
clculos para a boa aplicao dos simples segundo a
conjuno dos astros; a filosofia vigiava para que do
seu empirismo no sofresse quebra de parte da
razo; a retrica enfim ensinava a elegncia das
frmulas e diagnose. E quando a cabecear com sono
Z Pais se recolhia ao seu cubculo, o ltimo olhar
na loja ia para o grande Hipcrates talhado em
pedra tufa, que o seu nicho na parede presidia a
toda a cabala quimico-galnica. E a ele, fundador da
dogmtica em medicina, genuflectia a devoo que
lhe enchia o peito, como na S um menino de coro
fazia para com o Esprito Santo, entre apagar as
velas e escorropichar as galhetas.
Uma tarde de Vero estava o Jos Pais porta,
sozinho que o Loureno estanciava com a cara
metade e meninos na quinta, raiz da serra. O sol
acabara afinal por dobrar para trs da casa da
Prebenda, padieiras rendadas, cornija bojuda, porta
dupla com aldraba de bronze, e a sua sombra e as
brisas que primeiro brincavam na coma grandiosa
da nogueira na cerca adjacente refrescavam a rua.
Tinham abalado os ajudantes ao sabor do
entardecer, e os aprendizes estavam para as suas
falperras da provncia que era tempo de frias. O
Jos Pais, primeiro oficial da botica,
melancolicamente cismava em coisas e loisas,
porventura todas elas volta do tema da sua
mocidade que se escoava incolor e sem rudo como
chuvisco num areal.
quela data era uma vergntea de homem, plido, a
puxar para taciturno, reservado mas tido por bom
rapaz, cumpridor dos mandamentos da Igreja e
escravo dos seus deveres. Inflectira para ali e
tomava tal programa a srio. O lazarilho dormitava
dentro dele. Ao romper do sol, j ele estava a tirar os
taipais da loja. Em continente, renovava a gua das
celhas; acendia os fogareiros em que havia de
preparar tais e tais eclegmas e opiatas; limpava
redomas; escarolava almofarizes para que razes,
flores, ervas de virtude, minerais ou bezorticos no
perdessem nenhuma das propriedades nas
diferentes fases farmacopicas at a sua misto, ou
os simples fossem integrados nos medicamentos
propriamente ditos com toda a pureza original.
Na cidade e roda passava o Pais por um barra da
esptula e da retorta. Ao mesmo tempo ia
medicando, que dentro dum bom boticrio est
sempre acordado um mdico prudente.
Todavia nem a sua arte, nem a sua elevao a poder
de trabalho e pacincia, lhe valiam para mais nada
do que viver, praticar um ofcio, restrito nos
proventos, mdico no crdito. Assim, se por um
lado nem fortuito lhe era ajudar a me, planturosa
como Aca Laurncia, nem os irmos, dado que lhe
viesse a tentao, acorrentados misria do molho
da lenha, por outro o boticrio jamais se dignara
convid-lo a passar uns dias na terra natal,
oferecendo-lhe hospitalidade. Semelhante facto era
indcio seguro da sua pouca ou nenhuma
importncia. No fundo, palpitava que o
farmacutico mantivesse aquela quarentena para
evitar o contacto com Laurinda, que estava uma
tentao de pequena.
Laurinda tota pulchra, tota venusta, poetava o
Mendesius, via-a hora a hora, e era sempre como se
visse a Primavera em pessoa. Onde ia a desataviada
e impulsiva criana, de aventalinho branco em asas
de borboleta a correr entre os boies e porcarias da
botica? Era hoje uma fresca e fragrante rapariga,
cheia de vio como uma pernada de mimosa em
flor. E desde certo dia em que lhe sorrira e o
envolvera no mais clido veludo dos seus olhos, a
imagem dela enchia-lhe os sonhos, no sabendo
dizer a sua imaginao se desse modo era mais se
menos especiosa do que na realidade.
Aquela tarde, espairecia do calor da botica ao passo
que assim ia magicando nas coisas da vida, quando
a voz de algum que no vira chegar, rente com as
casas, do lado da rua do gonalinho, lanou em tom
desfalecido:
- Seja louvado N. S. Jesus Cristo!
- Sempre seja louvado no cu e na terra! -
respondeu, pondo olhos no recm-chegado.
Era um frade, um frade mendicante, ainda novo
com belos cabelos castanhos, feies marcadas e
regulares de medalha, mas pelo jeito de fadiga,
lombo curvo para terra, expresso macerada do
rosto, vinha doente ou muito achacado do caminho.
Com ar de quem vai perder o ltimo alento, alijou o
bornal que trazia pouco menos que vazio na soleira
da porta e ele prprio se deixou cair ao lado
soltando um suspiro de desafogo e cansao.
- Est enfadado, irmo? - inquiriu Jos Pais.
- Mais que enfadado, venho a morrer - murmurou
ele. - Ai, no posso mais, no posso! Deus se amercie
da minha alma, que sou um grande pecador
Fechou os olhos e o Jos Pais ficou em suspenso,
debruado sobre ele, espera. Ao cabo de
momentos, abriu as plpebras com aparatosa
demora como se as tivesse coladas ou voltasse duma
grande viagem em sonho, e, apercebendo-se do
semblante benigno por cima dele, sorriu. Era um
sorriso doce, brandinho, como sol de inverno entre
nuvens. Depois, com esse luaceiro plido na face,
pronunciou em voz langorosa:
- Infinitas graas vos sejam dadas, meu Deus, que
me trouxestes a porto cristo!
Tornou a fechar os olhos e assim quedou um bom
espao como se dormisse ou estivesse a refazer-se
do quebranto. O Pais que j se recobrara do susto
que o tomara. Uma boa dose da fraqueira e
desfalecimento do frade era da regra. Estava na
cartilha de todo o fiel mendicante. Mas, para l das
partes gagas, havia uma cota de srio,
irrepresentvel, e o Pais depois de consol-lo com
umas tantas banalidades crists, disse-lhe:
- Mas de que se queixa, irmo?
- Sinto-me muito mal! - respondeu com grande
acento de sinceridade.
- Onde o aixe?
O frade no respondeu e o Pais por sua alta
recreao tomou-lhe o pulso: o corao batia
regular, embora fraco; debilidade. Esgarou-lhe as
plpebras e viu-lhe a conjuntiva exangue,
anemizada de todo. Pediu-lhe para deitar a lngua
de fora, o que ele fez depois dum instante de
hesitao. Torceu o nariz Pareceu-lhe descobrir
placas suspeitas.
- O que que lhe di, diga l, irmo? - tornou o Jos
Pais com certa intimativa.
O frade encarou nele com fixidez por um instante,
ergueu os olhos ao cu, baixou-os, volveu a assent-
los nele, e suspiroso, pianinho que mal se ouvia,
gazeou:
- No, no, antes morrer.
Havia ali um mistrio e movido um tanto pelo
instinto de solidariedade humana, outro tanto
curioso do que conteria aquele saco de padre-
nossos, com a voz doce e persuasiva aprendida nos
confissionrios, procurou levar o pobre religioso a
declarar-se. E to fraterna e cordial devia ser a sua
palavra ou contagiosa a sua simpatia que o frade
erguendo-se com um movimento cuja a agilidade
no era de esperar da sua aparente prostrao
proferiu:
- Est bem, l dentro, l dentro da loja, eu lhe digo o
mal de que sofro.
O Jos Pais acompanhou-o mais do que conduziu-o
casa interior, e a o mendicante, desentranhando-
se em palavras de remorso e verecndia, tornou
patente as suas misrias humanas.
- Realmente deixou chegar o morbo a um estado
perigoso. Vamos a ver o que se pode fazer. Deus
pai. Onde tem a cela?
- Sou de longe, alma santa, sou de longe. Ouviu
alguma vez nomear o convento de S. Francisco de
Caria? Para baixo da serra da Nave? a casa de que
sou indigno irmo.
- E onde h-de ficar hoje?
- Tenho o Convento de Santo Antnio da nossa
Ordem a quatro passos, alma santa. L irei pedir a
enxerga e uma fatia de Po.
- Bem, bem! Vou-lhe dar para j, j, uma poo que
h-de ter a virtude de no deixar adiantar o mal.
Receita do grande Madeira Arrais. Sente-se nesse
escabelo enquanto lha vou preparar.
O Jos Pais foi a um armrio e procurou o especfico
que, dada a sobejido com que grassava este mal, se
tornara clssico e de uso quotidiano. Entretanto o
frade embrenhava-se numa longa e mal urdida
histria que cheirava a trapaa lgua. Jos Pais,
para que o fradinho o no tivesse por tolo, atalhou:
- No ponha mais na carta. So coisas que sucedem
desde que o mundo mundo. Vem j no Pentateuco
um recipe para semelhante mal.
- Nunca imaginei que aceitando a cama dum
tangedor de sanfona, se desse to facilmente o
contgio.
- No se canse o irmo a buscar explicaes, que
ningum lhas pede. Estes percalos acontecem a
muita gente boa. Dizem que o senhor D. Pedro II
morreu disso, e que ao mal no foi estranha sua
augusta mulher, a princesa de Saboia. O que se trata
agora de se curar. O frade teimava em impor a sua
verso no meio de juras e lamentos, mas j o Pais
vinha com uma garrafinha do precioso vinho santo
de Madeira Arrais, com base na salsaparilha, e lhe
dava um clice a beber:
- Beba, beba todo. No lhe tome o gosto.
O frade emborcou a triaga aps o que fez uma
careta feia, horrenda, as comissuras dos lbios
arrepanhadas para os zigomas, boca aberta at o
esfago mostrando a rija dentadura de lobo, atesta
lavrada por sulcos transversais como uma leira.
- So as fezes do pecado disse-lhe o Pais a rir. - Leve
esta beberagem e continue a tom-la ao levantar e
pelo dia fora. Agora, isto no basta. Temos de atacar
a lcera in loco. Tem de se sangrar e pr a dieta
antes de lhe aplicar o unguento que amanh comeo
a preparar, tratando de adquirir os simples que
preciso que sejam duma extrema frescura. Volte
amanh, irmo, e eu lhe direi.
- Acha-se com foras para botar at ao convento? Se
quer, eu dou-lhe o meu brao
- No, no, eu hei-de ir sozinho - respondeu com
voz quebrada, mas j risonho. - Podiam desconfiar
dos meus pecados e era o Diabo! Adeus, o claustro
dos meus irmos de S. Francisco no longe. Eu vou
bem s, alma santa! Tantos coros de serafins o
acompanhem na hora da morte ao trono do
Altssimo como de gotas havia na bebida que me
deu! Adeus, meu salvador, meu anjo custdio! At
amanh com a graa do Pai do Cu!
Jos Pais foi-o seguindo com o olhar, na sua marcha
lenta, cosido com o muro, quase invisvel a favor da
meia penumbra que descia dos beirais sobre a ruela,
at desaparecer ao fundo, ftuo como a sombra.
Em menos duma semana, era Domingo e havia
descanso na botica da Prebenda, Fr. Geraldo das
Cinco Chagas madrugou a procurar o Jos Pais.
Estava assente manipularem nesse dia o complexo e
miraculoso emplastro de rs, preconizado por
abalizadas e conspcuas sumidades, Moiss Charas,
Madeira Arrais, Joo de Vigo, sem falar em Lemery
e Caetano de Santo Antnio. Assim to solidamente
garantido, e com a ajuda divina de anjos e santos, a
quem o fradinho se apegava com fervor e
lamentaes torrentosas, no podia deixar de p-lo
so e escorreito.
O Pais tinha os simples debaixo de mo, vasos e
retortas limpos, a fornalha policresta pronta a
funcionar. Assim, mal o frade se mostrou, acendeu o
lume, estripou as rs, lavou as minhocas, e toca para
dentro duma caoila a cozer em vinho branco,
genuno sumo da uva proveniente da adega em que
os senhores cnegos costumavam sortir as galhetas.
Depois, a fogo lento, ignis nudus, como mandava a
tcnica espagrica, deixou cozer, cozer at as bolhas
de gordura, bem visveis quando introduzia a
colher, sobrenadarem no cacho. Deitou ento
dentro, cortadas em bocadinhos, as razes do engos,
da nula campana, da artemsia, do esquinanto;
adicionou-lhe uma molhada de rosmaninho, e
activou o fogo.
Frei Geraldo das Cinco Chagas, de p em cima
duma esteira porque a laje era fria, jogava a sua
sentena ou laracha, j muito corrento com o Pais e
reconfortado ante a perspectiva do remdio que o ia
livrar da molstia. O Pais com um olho na fervura,
outro nas drogas, que ia pesando segundo o rcipe
litargrio, unto de porco sem rano, leo de macela,
endros, lrio, louro e de espica an libra e meia,
uma botica respondia no mesmo tom de faccia e
cordialidade. Estabelecera-se entre eles, mais que
relaes amicais, um verdadeiro compadrio feito de
confidncias e de pequenas concesses de parte a
parte em matria de virtude e de moral. O
mendicante acabara por mostrar-se desnudo da sua
tnica monstica, e divertido que ele era!
Dize tu, direi eu, o cozimento foi-se reduzindo a um
tero merc da evaporao, e o Pais, antes de lhe
adicionar os ingredientes que acabara de apartar,
coou pelo passador. Remetendo em seguida a
sumptuosa mistela ao fogo, disse para Fr. Geraldo:
- Venha aqui mexer, faa favor. Mas mexa, mexa
sempre de modo que no se cole ao fundo.
O frade empunhou a colher e assim fez com a mo
presta e infatigvel pudera! mais atentamente que
a ajudar missa. O Pais entretanto correu ao seu
cubculo buscar os simples preciosos. E, quando o
decocto alcanou a expresso devida, adicionou-lhe
uma libra de cera amarela, para mais que no para
menos, e ps a serenar. Maravilhado com ver a
meticulosa, prolixa e difusa manobra que revestia a
preparao do resolutivo, proferiu o frade:
- Grande o saber dos homens, dos Hipcrates, dos
Zacutos, dos Curvos Semedos! Admirvel, a sua
medicina, quando Deus quer!
- Diz D. Caetano de Santo Antnio, boticrio-mor de
S. Vicente de Fora, que Deus foi o primeiro mdico
farmacpola.
- Sem dvida, irmo, sem dvida. L est S. Vicente
Ferrer a confirm-lo: Caro Christi est pilula nostrae
salutis. No corpo de Cristo est a plula salutar.
- E quem faz as doenas? - perguntou Pais depois de
reflectir um momento.
- As doenas f-las o Diabo respondeu o frade com
veemncia.
- Se as faz o Diabo maior que Deus, que a plula,
ou pelo menos igual. No?
- No, no! Ora atenda: Deus faz; o Diabo vem e
desfaz; torna Deus e refaz. Quem o mais forte?
- O mais forte ser Deus, mas o Diabo parece-me
mais perfeito, pois que pode atentar contra a obra
divina e desconcert-la.
- A traa por que Deus regula o mal e o bem no
mundo no nos compete a ns discerni-la proferiu o
frade em tom afvel, afastando todo o esprito de
controvrsia. No que telogos e filsofos esto de
acordo que Deus criou tudo, inclusive o Diabo.
Dir o meu excelente amigo: o pai da causa o pai
do causado. Seja; estamos dentro da engrenagem
incompreensvel. Mas o mesmo. Diz-nos a
santssima e argutssima teologia que o Diabo um
agente per se. Contentemo-nos com a explicao.
- Precisamente o que eu queria era no ter
necessidade de contentar-me. Mas pronto: o Diabo
faz o mal, Deus o bem, as flores os frutos, o
entendimento dos galenos, a eloquncia dos Cceros,
os homens prudentes, as mulheres bonitas Ah, se as
mas camoesas no tivessem algumas vezes o
bicho por dentro o que no era a Criao!
O frade suspirou, despediu uma risadinha e disse:
- A mo de Deus e a Mo do Diabo confundem-se
nesse e em muitos outros casos, segundo o nosso
grau de visibilidade; mas a deve andar logro da
nossa retina. Diga-me: no me valeu mais a mim
fazer neste mundo penitncia dos meus culposos
deleites, tendo encontrado em Jos Pais um
admirvel samaritano, um estremoso irmo, do que
aparecera ao juzo de Deus com o meu pecado em
branco?
- Mas se foi o tocador de sanfona que por casual
contacto lhe transmitiu o mal, que pecado tinha a
resgatar, frei Geraldo?
O frade tornou-se muito srio, ps os olhos no cho,
depois abstractamente na fornalha, cujo rubor
embrandecia, por fim no tecto:
- O homem, quitanda de todas as ms especiarias,
um ser plural, plural no pecado. Quem pode
assegurar que em suas misrias terrenas est a
responder por este ou por aquele? Quanto ao meu
caso particular, irmo Pais, eu quero ser-lhe franco.
Preciso mesmo de s-lo, que exige lisura o meu
reconhecimento. A histria do tocador da sanfona
inveno escarrada do princpio ao fim
E com lgrimas nos olhos, lgrimas que se iam
esbagoando, silenciosas e lentas, como a cera duma
vela a arder adormecida aos ps do Senhor, contou a
sua aventura. No entretanto, como o decocto j
estivesse morno, Pais adicionava-lhe as doses legais
de incenso, de eufrbio e de aafro, e, depois de
anaar convenientemente, levou-o para o ar livre a
decantar. Acompanhando com os olhos
interessados, que fcil supor, aquela fase da
operao, o fradinho no perdia o fio da anedota:
- A rua do Castelo quela hora, batida pelo sol,
parecia um canal do Inferno. D uma esmolinha
em louvor do nosso grande padre S. Francisco! e a
maldita com uns grandes olhos pretos, cheios de
sombra, a sombra que eu precisava, e lbios
vermelhos, disse: Entre, irmozinho, que a fora
fica abrasado. Eu vou-lhe buscar a esmola Ela
prpria abriu a cancela, e eu entrei na casa que era
de laje, fresca, com dois banquinhos cobertos com
almofadas de chita e uma cama ao fundo.
Compreendi logo que estava em presena de Maria
Egipcaca antes de se avistar com Zzimo, o santo
homem do deserto, e em vez de fugir, no que
andava bem, deixei-me ficar, julgando-me
couraado contra as armas de Satans. Veio-me ela
com uma malga de castanhas piladas a pobreta! e
ah, se lhe visse, irmo Pais, aqueles olhos grandes e
lentos, com tal fundura de cisterna que dava
vertigens, e a todo o cabo da negrido no sei qu,
doce, meigo e malicioso ao mesmo tempo, a desafiar
a gente para investir, se lhe visse os peitos por baixo
do colete de atacadores assim como dois pezinhos
cscoros, gostava de saber o que fazia no meu lugar!
Ela viu-me estonteado e rompeu s risadinhas. Ah,
no lhe digo nada! Ao compasso daquelas
risadinhas, cada vez mais brejeiras e blandiciosas, o
perfume nausebundo do pecado subiu-me cabea
e penetrou-me todo. Valha-me Deus! Aquela rua do
Castelo, em Lamego, debaixo do sol do meio-dia,
com as casas enterradas nas muralhas de granito a
revessar langor e frescura, e um fradinho, descalo e
cabea descoberta, fradinho novo e fraco a pedir
para seus irmos ainda hoje no sei, no sei se uma
nesga do Cu se do Inferno! Aqui est, alma santa,
aqui est!
O Pais agora malaxava num covilhete, fora de
dedo, azougue com unto de vbora, estoraque e
terebintina. Quanto ao argentum vivum se
extinguiu nos demais simples, entornou-o com o
contedo do tacho num almofariz de pedra. S
havia que pisar, repisar, volver e revolver at cada
molcula se compenetrar das mais molculas. Uma
vez convertido em madalees, aplicava-se o
unguento nas partes chaguentas com coiro de luva
para que, insinuando-se nos vasos sanguneos,
dissipasse no sangue os espculos salino-venreos
contidos no sangue. E aqui estava como um homem
se punha rijo e fero semelhana de Ado ao sair
dos dedos do Criador.
Frei Geraldo das Cinco Chagas, todo entregue
admirao do melindroso laboratrio, rejubilava:
- S de ver este famoso remdio me sinto j bom.
grande o saber dos homens!
- Sim, irmo, dentro de duas semanas conto v-lo
limpo dessas bostelas feias e das lceras que o
impedem de andar. Depois, veja l se se mete
noutra!
O fradinho torceu-se todo e arqueou as sobrancelhas
no hierglifo da fatalidade:
- Alma santa, a carne quem manda. O esprito
um carneirinho. Um carneirinho estpido e
obediente. O que lhe juro, amigo dos pobres frades
crucificados, no me deixar tentar por moa que
me venha com olhos bugalhudos e a sua tigelinha
de castanhas!
A Malvina caprichava em pr o ramo na feira de S.
Mateus. A sua barraca regurgitava de fregueses at
altas horas, que a pinga de trs estalos nunca faltava
de vitico a vitela de Lafes e o peixe fresco de
Aveiro.
J as vozes esmoreciam nas demais tendas, j o
realejo acabara de expectorar do cavername
escangalhado a ltima serranilha, e os dois amigos,
engoiados numa espcie de gabinete particular,
atacavam com mal disfarado brio o terceiro pichel
ao tempo que imolavam cada um a sua perdiz em
molho de vilo.
- Deus grande - murmurou Jos Pais - que criou o
cu para nele poderem voar estas aves com que
agora nos estamos a regalar!
- ... e que tambm criou a terra para fornecer hmus
s razes das cepas que produzem o lquido que nos
faz esquecer das misrias do Vale de Lgrimas!
acrescentou no tom e solenidade de quem ajuda
missa Fr. Geraldo das Cinco Chagas.
- Frade, no esqueas que certos prazeres te so
defesos. O teu reino no deste mundo.
- Irmo, o Inferno pequeno perante os sentidos do
homem. E Deus grande, sabes tu porqu? Porque
nos permite saltar a barreira para l do bem e do
mal. O homem adapta-se a todos os contingentes.
Nas chamas do Inferno deve sentir-se to de perfeita
sade como ao luar desta noite de Setembro. Deus
que deixou o Diabo solta, porque tinha de
reserva esta marosca da natureza. Mesmo assim,
irmo, bebo tua entrada no reino dos Cus daqui a
dois carros de anos!
- Por muitos e bons!
Ergueram os copos e ficaram um momento
silenciosos, de olhos na toalha em que se arrastavam
moscas sonolentas, pesadas da lambedoria dos
pratos.
- Deus grande - tornou Frei Geraldo - to grande
que o homem se encontra a invoc-lo em pleno mar
das suas ambies e loucuras. Quando menos
chama por ele quando reza. Queres saber, irmo?
O dia em que ca prostrado porta da botica, fazia
uma semana que berrava por ele como um bezerro
de leite pela me. o que te digo! No tanto l
porque me visse doente, mas porque ansiava a todo
o custo chegar cidade. Eu vinha de longe, irmo,
de longe! Vinha da banda de l da serra de Caria,
sem mais nada que a borracha cinta e o cajado na
mo. Quando ouvi dizer que passara a comitiva do
conde do Arco, liteiras e mais liteiras, cavalos e mais
cavalos, de andilhas e estardiota, no quis saber de
mais nada e pus-me a caminho. No era a minha
semana de peditrio, mas, ora, larguei nas barbas do
guardio, sem lhe dizer por aqui me vou. Que
jornada, carssimo, que jornada! Ia comer com os
camponeses nas malhadas, e dormir, tanto dormia
nos cabanais como ao relento. Atravessei assim a
comarca negra da Nave, depois a serra de Vale de
Cavalos, nua, nua, sem uma rvore que d sombra a
um cristo, batendo lgua aps lgua, rumo ao sul.
Ao subir as encostas do Vouga, que so ruins de
trepar como calvrios, pareceu-me colher-lhe os
ventos. Em verdade eu corria ao cheiro da gara,
fungando o ar como um rafeiro, carssimo, como um
rafeiro! Leva que leva, ao entrar na serra de Mundo
senti as pernas presas. Hem?! Que era aquilo, que
havia de ser? O veneno que me instilara no sangue a
magana de Lamego. - Ah, meu Deus! Ento eu j
enxergava ao longe as torres altas, o morrio da S, e
havia de ficar ali como Moiss vista da terra da
Promisso?! Ah, Deus, Deus rogava-lhe , deixai-me
ao menos chegar l, deixai-me v-la uma vez e
fulminai-me depois! E deixou, que grande, irmo,
grande. De Mundo at Rua do Arco bebi a gua
choca das fontes, semi-extintas com um sol, que eu
tomaria por um prenncio do fim do mundo, se aos
seus raios, pelas escarpas, no amadurassem as
uvas. Evax, via reluzir o bastardinho e o tourigo,
cujo sumo deriva, por obra e graa do divino
mistrio da transubstanciao, para sangue de Jesus
Salvador, que morreu para nos remir e salvar. Mas
pensei, suei, e, como digo, berrava por ele como um
vitelo: Meu Deus, deixai-ma ver s mais uma vez e
fulminai-me!
- E viste-la?
- Vi! Sentei-me no chafariz do largo e depois de
repoisar e beber aquela gua, beber at me desforrar
da sede de dez lguas, ergui um cntico a Deus to
alto que toda a gente parava na rua a ouvir; as
mulheres ficavam de cntaro cabea diante de
mim; e do palcio do conde do Arco vieram todas as
criadas, todas as donzelas, toda a fidalguia s
janelas.
- Um cntico que afinal no foi o canto do cisne! A
desejada pois da famlia do conde do Arco?
- Chut, dama de companhia da condessa. No
digas nada, carssimo, no digas nada, mas este
maldito corao sonha, chora, solua, ladra por ela.
Ah, se a visses! Que gara, que gara real que !
- E como recebeu vossa cantoria?
- Quem? Micaela? Como recebeu?! Como recebeu?!
Para te falar a verdade, no entendi bem. Estava ao
lado do conde, aquele terrvel gerifalte de donzelas e
mulheres casadas, e quela circunstncia, que pode
ter sido casual, a minha alma entenebreceu.
Entenebreceu como a noite das Oliveiras, irmo.
Talvez fosse por isso, que o mal tomou conta de
mim, se me enroscou ao corpo todo que nem que
tivesse cado num ninho de serpentes
- E agora?
- Agora que graas tua caridade me sinto bom, vou
desvendar o enigma. Se te disser que uma mulher
para perder um homem, digo-te pouco da sedutora.
No me aconselhes que fuja enquanto tempo, que
seria escusado. Hei-de-me salvar, se me salvar,
beira do abismo. Por agora o que procuro chegar-
me a ela, v-la, dizer-lhe: quem vive? Sou um
grande pecador, detesta-me!
- O pecado um processo de sublimao espiritual,
j o ouvi dizer a um santo.
- Que dvida! Se eu no soubesse o que era pecado,
como podia aborrecer em mim o pecador? Como
podia distinguir o que que agrada em mim a Deus
e o que lhe desagrada? Peco e preparo-me ipso facto
para trilhar o caminho de Damasco, isto , fico
preparado para ador-lo no meu arrependimento e
na possibilidade de lhe oferecer uma ara trabalhada
pela penitncia e a macerao da carne. Aqui est
porque Deus amou sempre mais os pecadores, que
se mostram contristados de suas faltas, do que os
santos que jamais pecaram. Estes so os inocentes, o
rebotalho do cu. Bebamos-lhe, carssimo, amanh
comeo com a pregao
Veio outro pichel. Chegou a vez de Jos Pais, que
uns tinham por sonso, outros por mgico, abrir o
peito. Tambm dentro dele morava uma deidade:
Laurinda. Tambm ela lhe ia fugir, forada pelo pai
a professar, agora que o morgado, aquele imbecil do
Alonsinho Romo, ia receber-se com uma menina
chalada, mas muito rica, das bandas do Tedo. J
tinha cela posta, com o requerido enxoval e tena,
nas Comendadeiras de Lisboa. Mas, ali muito
puridade, que nem o grande Deus nem o perigoso
Diabo ouvissem, no primeiro ensejo a pssara batia
asas. Estava entendido. Por modos, tal convento de
Santos era uma gaiola sem grades.
E o Pais, sugestionado por Frei Geraldo, exclamava
comprimindo o seio com a mo aberta:
- A filha do boticrio, tambm, ou me perde ou me
salva!
E como houvesse grande paridade em seus destinos,
copo na mo e olhos nos olhos, ali se juraram aliana
com o fim de cobrar suas damas ou morrer.
Homem da melhor presena e boas palavras, Frei
Geraldo das Cinco Chagas viu acorrer encapeladas
ondas de gentio s suas homilias e prdicas. Para
estreia versou em S. Miguel do Fetal, igrejinha
recolhida na tangente da cidade entre bosques e
pomares, onde si vera est fama repoisam do
vaganau das batalhas as cinzas do rei Rodrigo, o
tema to empolgante do Juzo Derradeiro. E a tal
ponto retumbou o eco que, segunda prdica, as
Lgrimas de S. Pedro, na capela do conde de Prime,
foram disputados os lugares a sopapo e diz-se que
mesmo a cunquibus. Sucessivamente, na igreja de
Santo Antnio, na Misericrdia, depois na S, a
multido dos fiis atropelava-se, ansiosa por ouvir a
palavra inspirada do missionrio. Era em fins de
Outono, quando de quintas e praias regressam as
pessoas de teres e senhoras dadas mundanidade.
Caa sobre a terra uma chuva miudinha, precursora
dos dias rigorosos com ventanias e nevadas, e quem
dispunha de cios e ainda quem tinha a f a picar-
lhe flor da pele no faltava representao. Era de
resto das horas que os relgios raro do duas vezes
com aquele frade novo, bem apessoado, rosto plido
de asceta, espcie de S. Joo Baptista na veemncia e
na crueza com que verbava o sculo e glorificava as
delcias do Cu.
Entretanto que pregava, irmos leigos faziam correr
a bandeja pela assistncia, e ouviam-se as esmolas
crepitar no metal pingues e amiudadas. Alm das
esmolas em pecnia, as ddivas em gneros
acumulavam-se na sua cela de Santo Antnio. Deste
modo pde despachar um macho bem aviado ao
conventinho de Caria, zelo e lembrana essa que lhe
valeram serem canceladas no livro da Ordem as
suas faltas, que no eram gros de paino.
Frei Geraldo multiplicava-se, fazendo-se ouvir tanto
pelas igrejas como pelas capelas particulares,
sempre com grande afluncia de povo. Estas
prticas, sobre a tarde e ainda na primeira viglia da
noite, foram atraindo, atrs dos crentes, os curiosos
e at os cpticos, que j os havia na cidade
descuidada, feliz margem das filosofias e anedotas
dos seus graciosos.
O Jos Pais, artista urbi et orbi da espdula e do
almofariz, era um dos seus indefectveis ouvintes.
Outro, o Loureno esse contritamente marrano,
esmurrando o peito a cada sesso. Ainda um
terceiro, aquele arganaz do Valentim Mendes,
Valentinus Mendesius em calo de botica, que abria
a bocarra de pedreiro-livre e de mariola at as
orelhas na raiva de no poder malsinar do pregador.
Entretanto, o Pais acabara por tornar-se em adro e
praa o arauto do fradinho. comunicao mstica
sucedeu a notria estima pessoal, e breve os dois
eram como unha com carne no meio da populao
temente a Deus e no geral pouco afadigada das
coisas da terra. Viam-nos sempre juntos por toda a
parte, no templo e na cela, mesmo discorrendo
santamente pelas alamedas e a Cava, camndulas
em punho, rezo eu, respondes tu. E a nomeada dos
dois cresceu com estas demonstraes evidentes de
esprito fraterno e de piedade, a ponto de chegar a
Fontelo e enternecer o bispo.
A ltima prdica foi no palcio do conde do Arco,
em vspera de partida do nobre senhor para a Corte
com o pessoal de sua casa, que era variado e
faustoso. Era lio do dia o Arrependimento de
Madalena, e nunca o frade foi mais pattico, iroso a
combater o luxo, cadente a causticar os desmandos
da castel de Magdalo, e implacvel com os seus
requestadores e amsios. Tambm desde essa data
nunca mais soltou pio a garganta daquele novo Joo
Crisstomo.
Uma manh as alamedas da cidade apareceram
desertas do casaco de briche e da tnica de
estamenha de Pais e de Frei Geraldo, sombras
pervagantes e inseparveis de Orestes e Plades.
Tinham abalado sem dar santo ou senha. Para onde?
O Loureno, que por baixo da sua pele rsea de
beato guardava o surro desconfiado do montanhs,
correu loja passar revista aos simples preciosos
que custam uma fortuna, como ps de mmia e
outros bezorticos, no falando dos cadinhos de
prata. Nada faltava. Nas igrejas e por baixo da
serguilha humilde, batida pelo rosrio, pode acoitar-
se um cavaleiro de indstria igualmente no faltava
resplendor de santo, nem apareceu cofre de esmolas
arrombado. Tanto o missionrio como o oficial de
farmacpola tinham ido viajar por seus prprios
meios.
Comeou ento a correr o rudo que iam de rumo
Terra Santa penitenciar-se do deplorvel crime de
serem netos de Ado e Eva, pois que outras mculas
no negrejavam em seus cndidos costumes. E rudo
foi esse que engrossou com o parecer afirmativo da
Jlia Pandorga, beata, meia zuca, meia miraculada,
com quem Frei Geraldo trocava amenidades divinas
e cortesias humanas. E assim ficou acreditado que o
frade e com ele Jos Pais tinham ido ao longe ganhar
o invejvel bnus cristo, merc do qual, na benta
hora do trespasse, suas almas subiriam direitas
como setas para o Reino da glria.
E os anos rolaram sobre os anos; as necessidades
materiais sobre as boas disposies do esprito; o
bem e o mal foram-se afundindo, de cambulhada
por igual, no poo sem fundo da eternidade. A
crosta do tempo foi mais e mais patinando as ruas,
as casas, a cidade, e a cara da gente, apagando os
traos, que fosforejam, da vida perpassante dia a
dia. Quem se lembrava de Frei Geraldo e da sua
sombra devota, o Jos Pais da farmcia da
Prebenda?!
Manh de Primavera, quem trabalhava nos campos
da Balsa viu marechar lento e tropeante debaixo do
bornal, pelo caminho de Ranhados, uma silhueta
desbotada de religioso. Chegado ao Rossio, alijou o
bornal com desafogo, sentou-se numa pedra e
respirou o hausto consolado das accias em flor.
Depois puxou do rosrio e ps-se a bichanar as
rezas. Via-se-lhe pelo bolir dos lbios e a
sofreguido espiritual que era a dar graas por ter
arribado a seu porto.
Nisto, uma velhinha que se acercara ao ver o magote
de mirones exclamou:
- Olha quem ele : Frei Geraldo das Cinco Chagas!
Frei Geraldo!
Correu voz e para aquela gente sem paixes
histricas, solicitada pelos cuidados froixinhos da
temporalidade, foi to imprevisto como se surgisse
do meio do nevoeiro el-rei D. Sebastio.
Acompanhado j de grande concurso de povo
dirigiu-se o peregrino ao mosteiro de Santo Antnio.
O guardio e os mais freires, que tinham sobrevindo
foiada da morte naquela meia dzia de anos,
reconhecendo-o, acolheram-no de braos abertos.
Ele, sorridente, mais etreo do que nunca, abriu o
cofre de suas grandes e blandiciosas alvssaras:
Ele e o Pais tinham percorrido Seca e Meca e terras
de Galileia e Jordo. Onde Cristo rompera os ps,
passaram eles de joelhos e olhos em fonte. Onde
Nossa Senhora deu luz o Unignito, retemperaram
alma e corao em Deus. Tanto destilaram a sua
mundanidade e se deixaram compenetrar do divino,
que o Pais fazia milagres mais facilmente que uma
roseira d rosas. Por todo o Oriente a fama da sua
santidade voava. Ali trazia ele as cartas encclicas
dos bispos orientais, coptas, ortodoxos e romanos
com seus selos de chumbo, teste-munhando o facto
assombroso. A confirmar tudo uma bula de
indulgncias a favor da boa cidade nada mais que
por ser a ptria ditosa de to nclito cidado na
pessoa de seus vizinhos. Assinava-a D. Antnio
Caetano Maciel Calheiros, arcebispo de
Lacedemnia, deputado da Real Mesa Censria,
provisor e vigrio geral do Patriarcado e juiz
apostlico. Tivessem a bondade de verificar
E em abono puxou da proviso e dos pergaminhos
venerveis, alagartados duma letra em que nem o
padre Cta, que falava latim, nem um comerciante
de costela rabina, que sabia hebraico, conseguiram
meter o dente.
Mas o pergaminho era pergaminho, aqueles
documentos cheiravam lgua a Terra Santa, e os
senhores cnegos e os nobres da terra, com alguns
bons burgueses de permeio, encontraram-se perante
emergncia no sonhada. Qual a atitude a adoptar,
considerando que patrcio de tanta virtude se
tornava no apenas til, mas indispensvel, ultra-
necessrio numa terra em que o joio sobrepujava
boa messe?! Com efeito, a cidade outrora
pacatssima, obediente a Deus e a Csar, tornara-se
desordeira e rebelde. Os pobres no se
conformavam com s-lo, os ricos dobravam as
trancas s portas, os mal-casados protestavam
contra a indissolubilidade do matrimnio, e os
escribas e publicanos, que os havia na cidade
afonsina, discorriam por veredas errneas do
pensamento. As igrejas estavam s moscas, as
autoridades seculares desluziam de prestgio, a cada
passo se gritava del-rei, as cabeas soando a
rachado nas lutas de irmos com irmos e de
paroquianos com quadrilheiros. Uma Babilnia!
E convencidos que a to grande e lastimoso
abandalhamento s um santo, desdobrado de sbio,
podia pr cobro, chamaram Frei Geraldo das Cinco
Chagas e disseram-lhe:
- Ide-nos buscar o beato Jos Pais.
Constou na cidade que Jos Pais chegava pela
estrada de Vale de Besteiros e desde o nascer do Sol
que s portas, at Repezes, era grande o
ajuntamento de povo. Frei Geraldo das Cinco
Chagas tivera na vspera o avisado pensamento de
expedir um estafeta de Mortgua a rogar pelo
bendito nome que lhe mandassem a caminho
qualquer modo de conduo. O santo homem vinha,
por modos, muito trilhado da jornada e em grande
nsia fsica, tal Moiss ao conspecto da Terra
Prometida. Compreendia-se. Dbil de compleio,
silcios e jejuns tinham-no alquebrado a ponto que
s por obra de Deus, salto miraculoso no espao
maneira do Padre Santo Antnio, se explicava
aquele regresso rpido da longnqua Terra Santa,
baldeado de dromedrio para navio, de navio para
sege, mula de recoveiro, ou besta de emprstimo
onde faleciam meios idneos de transporte. No
fora ele chamado a toda a pressa para salvar o burgo
da corrupo galopante? Mal raoado, conforme era
de esperar de sua regra asctica, dava-o o
mensageiro como mais branco de cor que um santo
embalsamado, etreo, s pelangra e ossos.
O recado do fradinho calou no nimo dos senhores
cnegos e no menos dos homens bons, movidos,
todos por igual, segundo o interesse religioso e civil.
E o arcediago, um vegete redondinho e rbido, que
tomava rap s pazadas e era muito requerido ao
confessionrio, props que, no sendo legtimo
ofender a humanidade do santo homem
despachando-lhe uma cadeirinha, se aprontasse
simplesmente qualquer charola da S e almofadada
convenientemente se lhe enviasse ao encontro por
quatro clrigos ou tercenrios de boa vontade e
pulso. E assim se fez.
Obra de meia manh avistou-se subindo a rampa de
Fail a serpe negra do cortejo, frente Jos Pais no
andor episcopal, a seguir o franciscano
escarrapachado num burro, camndulas na mo, e
atrs a cauda cometria do povilu das aldeias, que
vinha engrossando desde terras do Buaco.
Foi pattica a recepo. O arcediago adiantou-se, em
nome da cidade e do bispo, a saudar e a
congratular-se pelo regresso no do filho prdigo,
mas, desta feita, do filho prodgio. E debalde seus
olhos perspicazes pretenderam ler nos lbios finos
do Pais, ao v-los franzir-se num rictus que, sem
excluir uma suavssima uno, era mais
impenetrvel que estela apagada. grande foi ainda a
sua estranheza quando ele, de perna cruzada
oriental, se soergueu do recosto dos almandraques
eclesisticos e alou a mo, ndice e mdio hirtos,
dobrados anelar e mnimo. Balanando-a depois
direita e esquerda numa audaciosa bno
pontificial, lanou as vozes sibilinas.
- Salamaleque! Salamaleque!
Seriam copta, aramu, armnio, e perguntou ao
frade:
- Que querem dizer estas palavras?
- Querem dizer; a paz de Deus seja convosco, com
esta cidade, com o mundo todo, como comigo, na
vida e na morte e por todos os sculos da vida
eterna. Foi com estas vozes que Salomo entrou
rainha de Sab e que por toda a terra em que reina a
Igreja Ortodoxa se abrem os sacrrios da verdade
divina e os tabernculos da cincia esotrica. O
nosso santinho esqueceu a lngua materna e quase
todas as lnguas terrestres filhas da confuso de
Babel. As nicas vozes que lhe ouvireis, Monsenhor,
sero estas, de todo iluminativas, balbucio sinptico
da linguagem dos anjos.
O brao do Jos Pais continuava descrevendo lentas
e sumptuosas volatas a todo o pano do cu,
enquanto proferia em tom grandloquo:
- Salamaleque! Salamaleque!
Chegaram cidade processionalmente,
desfraldando a ladainha, se os historigrafos locais
deste sucesso, na transposio, no perverteram as
fontes. Tinham fechado as baiucas do comrcio e
estralejavam foguetes de trs respostas no cu
sereno. Em Fontelo, o prelado aguardava com
natural sobressalto notcias seguras do Messias que
ia restaurar na sua diocese a ordem e os bons
costumes. E quando ele apareceu e, dobrado em
arco, salvou: Salamaleque! Salamaleque! De
lgrimas nos olhos e transbordante alegria na alma
reconheceu estar em presena dum emissrio do
Alto.
Instalou-se Jos Pais no solar dos Melos a convite da
velha devota fidalga, que no tinha prximos nem
aderentes que a tolhessem de investir em obras pias
os seus haveres que eram muitos. E logo no dia
seguinte encetou na capela de Nossa Senhora dos
Remdios uma novena festiva, com Frei Geraldo das
Cinco Chagas de celebrante e ele, Jos Pais,
quebrado para o cho em dois, como mortal que
sonda os penetrais da Vida Eterna. Ao fim da
cerimnia, como o frade estendesse a bandeja,
choveram tantos pintos nela que foi preciso despej-
la trs vezes para prosseguir o peditrio.
Em curtas semanas o burgo podrido voltou ao so.
Casaram os amancebados e reconciliaram-se os
cnjuges desavindos. Enforcou-se com beneplcido
rgio um increu na Praa da Erva, e de tal modo
alastrou a cheia mstica, que dir-se-ia florir e
rescender a diocese como um campo de aucenas na
Primavera.
Em seguida fundao do templozinho de Nossa
Senhora da Lapa l reza o letreiro: Esta capela he do
povo que se fez custa das esmolas dos devotos.
Anno 1742 - empreendeu Jos Pais construir um
vasto e grandioso albergue para peregrinos sobre a
estrada que levava aos Banhos de Alafes. Ao
mesmo tempo que legado filantrpico ao porvir,
seria um padro a comemorar o restabelecimento
moral do velho burgo na integridade primitiva. A
ideia era magnfica e ambiciosa. Merc, porm, da
graa de Deus e do poder cabalstico das palavras:
Salamaleque! Salamaleque! - que o santo homem
continuava a proferir invarivel e exclusivamente -
afluiram donativos, sem conto, de cidade, vila e
termo. E no tardou que o filantrpico edifcio, que
ainda hoje ali se v com claustro e empenas de belo
rocaille sobre a Praa, se erguesse ao sol conivente
das alturas. Jos Pais era o guardio e o ecmeno, e
como no se por incentivo seu os alvenis haviam
trabalhado quase de graa, embora esfomeados e
com os joelhos rotos, os ricos proprietrios tinham
cardado os rendeiros e carretado seus dzimos, as
ricaas deixado bons legados no bem de alma, e at
os pobres, para livrar-se do Inferno, de rostos em
febre, trazido o seu bulo?!
Uma noite tropeou porta do hospcio, que at
ento no albergara ningum a no ser Jos Pais e o
squito, uma besta possante. As portas que davam
para a calada abriram-se em rpia. Dois homens
arrastaram outro manietado de ps e mos e
atiraram com ele de rebentina para cima da albarda;
amarraram-no e cilharam-no em carga como odre
ou saco de farinha; estenderam uma manta por cima
para que se no reconhecesse primeira to singular
fazenda. Mas ele, muito longe de morto, urrava:
- Ladro, tudo o que agora tens develo a mim, mas
tu mas pagars! No te chegaram os quatro anos de
gals com a Comendadeira e queres voltar?! Pois
hs-de voltar, tu e essa desenvergonhada da
Micaela! O conde do Arco h-de saber quem a sua
manteda! Polha, rascoa de co e gato, vbora!
Entregais-me aos frades, mas do crcere da Ordem
tambm se volta. Excomungados! Veremos quem
o ltimo a cantar o Salamaleque!
Um brutamontes de bigodes faanhudos e clavina a
tiracolo, que bem se via ser um homem lige, saltou
para o aparelho do cavalo, deitou a mo garganta
do algemado e, ora apertando, ora afrouxando como
se governasse uma buzina, picou.
Chumbo
Tudo foi bem at s alturas dos dezassete anos.
Certa manh de domingo, com os pintassilgos a
gorjear nos loureiros do quintal, pareceu-lhe
surpreender na luz opalescente, mais fulgurado que
relmpago, um tagat do Lambu para a Eduarda.
Foi to instantneo, que ficou a pensar se fora aquilo
desenho da sua fantasia, se trao real na loisa
caseira. E precatou-se.
Suspicaz por sabedoria e pelos cinquenta anos,
pareceu ao senhor Manuelzinho, proprietrio, que o
criado, movido a um reflexo subtil, se precatara
tambm. Nunca mais o pilhou a entrar na cozinha
ou de olhos levantados para a menina. Semelhante
recato mais o convenceu de que andava mouro na
costa. E persistiu nas suas reservas.
O rapaz era fechado como uma campa, j no assim
a doidinha. Foi por ela que veio a destorcer o
preldio amoroso dum romance que s Deus sabe
onde levaria. Dera em andar nervosa, arrufadia, e
s estava bem onde no estava. Como o Z Lambu
ficara de lazareto, corrido de todo o comrcio com
eles, a pequena acabara por tornar-se insuportvel.
- Esperai l, que eu tiro-vos as fidcias!
Sem dizer gua vai, um belo dia despachou o moo
vila com recado que o demorava at noite, e ele
meteu esporas para a cidade. Falou com o Chana, o
grande Chana, de Pendi-lhe, a quem todos os anos
aviava a sua peita de chourio, alm do po de l
pela Pscoa, na mira de ter no Distrito de
Recrutamento uma cunha para as ocasies.
Andara com ele nas primeiras letras, e tinham ficado
amigos de tu c, tu l. O Chana fizera ainda dois
anos de Seminrio, mas tomara-se de tal birra com o
latim que, sem deixar de ser cristo praticante,
adoptara a carreira das armas.
Falou ao oficial com o corao nas mos e obteve o
que pretendia: o rapaz assentaria praa como
voluntrio, era s aparecer no regimento.
Quanto moral do caso, estavam ambos de acordo.
Em vez de deixar chegar a serpente at Eva, eles,
macacos de rabo pelado, no lugar do Padre Eterno
t-la-iam desviado para longe; e l quanto a
conservar no Paraso a rvore de belos pomos, com
que no deixaria de se tentar a gulosa, nunca por
nunca. A poder de verem exemplos pelo mundo,
graas soma de empirismo adquirida na porca da
vida, sabiam quanto so de cera branda os coraes
e inflamvel a carne juvenil. Para mais, o Lambu era
dissimulado, um sonso fingido, afirmava o Manuel
Bezerra.
- Pois mochila s costas! - reiterava o Chana.
Tepetepe, no caminho de regresso, o senhor
Manuelzinho batia os rubis da sua descoberta
psicolgica: um sonso fingido, ol, um grande mula!
modo de se desanuviar do transtorno que lhe
causava ter de apartar-se do rapaz, fmulo, arrieiro
hortelo sem igual, bom para tudo, menos para
genro pela mo canhota ou com a sua beno. L
isso, torua!
No dia seguinte, Jos Lambu, de sapatos brancos,
chapu novo enfeitado Marialva, duma pena de
pavo, gravata de fivela com fundo verde-mar em
que boiavam ervilhas vermelhas, apresentou-se no
quartel a entregar uma carta do senhor
Manuelzinho. Em bolandas, da sentinela para o cabo
da guarda, do cabo da guarda para o segundo-
sargento, do segundo-sargento para o oficial de
piquete, acabou por ser informado que o major
Chana, quela altura da incorporao, entrava
tarde; tinha tempo para ir jogar a choca.
Remoendo a sua filosofia de filho das ervas, a que
no haviam obliterado de todo aqueles anos de
gorda servido, no era sem uma certa inquietude
que sentia na algibeira do colete, contra a carne, a
carta de prego. Vagamente se dizia que podia ser ele
prprio a matria versada; mas a que ttulo? Que ali
havia gato, havia, agora qual, por muitas voltas que
desse ao entendimento, no era capaz de atinar. O
instinto teimava em adverti-lo que no se tratava de
coisa boa, e essa advertncia era como um espinho
que o pungia desde a primeira hora. Mas qu?! -
tornava a repetir-se.
Sentou-se num frade estroncado, que havia
desbanda da porta de armas, mal adormecidos os
seus cuidados ante a perspectiva matinal que
oferecia a praa: gente, em baixo, leva-que-leva s
obrigaezinhas, a chusma de galuchos e oficiais
que iam e vinham, aqueles batendo a bota de sete
lguas, estes muito intanguidos no capind, que o
carujo cortava como navalha de barba.
No deixava de ser curioso observar tudo aquilo,
mormente os toques das cornetas, que ia decifrando
pelos manejos respectivos; ao rancho, e a inferneira
beduna, todos uma, ps-catraps; a doentes, e o
clangor que, por obra do silncio, se congelava no ar
e se colava s paredes como lvidos lenis; a
sargentos, e l ao fundo da parada perpassava um
vulto mazorreiro, outro subia a rampa afogadio.
Mais duas rodadas do ano, e tambm ele, Jos
Lambu, filho da Maria Simeo e do Lus Lambu,
mateiros e ps frescos, teria de passar por
semelhante portela. At l cantaria o mocho muitas
vezes. Depois, l estava o senhor Manuelzinho para
o livrar das correias, se entretanto no sasse uma lei
que acabasse com a guerra ou s obrigasse a ser
tropa quem tinha inclinao. Ele no tinha. Aquilo
de marchar a compasso ou voz dum cornetim:
direita; esquerda; ordinrio, marche; volver, como
via que manobrava alm fora a manga de recrutas,
quadrava mal ao seu gnio. Criado rdea solta da
natureza, qualquer contraco aos livres
movimentos lhe era molesta. Ordens tolerava as do
amo, que o vestia e calava e lhe punha o comer. E
quanto a apanhar o seu cachao, agora que lhe
apontava o buo, nisga, nem do pai, e mais rezava a
cartilha do abade de Salamonde era quem mandava
nele abaixo de Deus. Nada, nada! A caserna de
paredes altas, golpeadas de frestas gradeadas, com o
vau, que era a porta de armas, vigiado noite e dia,
para ele, bicho do monte, revestia a catadura duma
casa de recluso. Livra! Tocavam as cornetas:
Quem quiser galinha...
No, ele no gostava daquela galinha, por muito
bem temperada que fosse. Os recrutas l em cima
moviam-se como uma centopeia, um, dois, um, dois,
e no era mais custoso que bater dois sacos de
espigas ao mangual. Tambm a mochila no botava
peso que rendesse ningum. Embora. Aquilo era
rica vida para os filhos-famlias e todos os que
tinham sido educados na regra do bom viver. Para
ele no. Faltava-lhe jeito para obedecer a gente que
nunca vira mais gorda, qual ignorava porque
devia vnia, e que frutos da podiam resultar.
Por muito tempo esteve de olhos perdidos nos
vrios panoramas da caserna, enquanto o esprito
dobava a meada interior, sem princpio nem fim. De
espao a espao, experimentava uma picada: era a
carta. Era a carta contra o peito, comburente como
um custico Ainda se no tinha saturado de
malucao quando o cabo o espertou com uma
cotovelada:
- Homem, voc no viu passar o nosso major?!
Atravs de escadas e mais escadas, todas mais a
pique e sebceas umas que as outras, alcanou a sala
em que estava com vrios escribas fardados o
senhor major Chana. Era um homem de pescoo
em regueifas, barba azul fora de preta e rapada,
olhos tranquilos. Leu a carta e, com fisionomia
impenetrvel, perguntou para o graduado sua
banda, ao tempo que enroscava o cigarro na
boquilha:
- O nosso tenente-mdico j chegou?
- Ainda no chegou.
O major estendeu os braos a espreguiar-se,
perplexo, bem se via, em face daquela emergncia, e
tendo achado a sada enquanto se espreguiava,
disse ao impedido:
- Ordenana, leva este rapaz para a sala de
inspeces.
O Jos Lambu viu-se, dali a pouco, numa casa
comprida e de alto p direito, com uma janela ao
fundo coalhada de teias de aranha, em que reluziam
como prolas sujas os abdmens estivais das moscas
mortas. Contra a parede no se via mais que uma
mesa, por sinal bem coberta de p, e no meio do p,
solitria e suja como as que se vem pelos quelhos, a
botina de vidro do tinteiro. Ao fundo, o aparelho
esquiptico, pernaltudo maneira de grou, devia
ser a craveira com que tomavam a altura dos
recrutas. Esse aparelho, assim que lhe penetrou a
utilidade, deixou de o interessar. O que mais lhe
chamava a ateno era no cromo da parede a
rapariga bonita, cabra de alto l com ela, perna ao
lu, nariz impudente, sorriso brejeiro, e que servia
de espaldar a um calendrio. A Eduarda, por muito
tentadora que fosse, estava a lguas daquela. Mas
existiam mulheres assim bonitas, ou no eram mais
que farfias da imaginao?
As horas, entretanto, iam passando, e ele perguntou
ao seu donguinha: que estou aqui a fazer? No
sabia, e por muito que olhasse a biqueira dos
sapatos, os seus ricos sapatos de vitela, contasse as
tbuas do soalho, depois os remendos das mesmas
tbuas, no acertava com a resposta. Mas de certa
certeza no estava ali para receber a sorte grande.
Na secretaria ao lado, como borbotes dum riacho,
erguiam-se vozes, ateava-se o paleio e extinguia-se,
assoava-se gente com estrondosa fungadela. E, cada
vez mais insistente, lhe ferrava o espinho:
- Que estou eu aqui a fazer?
Pouco a pouco a ansiedade invadia-o, e consultava-
se sobre o crime que mau grado seu podia ter
cometido ou que lhe podiam atribuir. Mas no
estava em casa do senhor Manuelzinho, proprietrio
e por vrias vezes juiz de paz, que no se enganava,
dotado daquele faro que confere a profisso ao cabo
de largo exerccio, merc do qu era-lhe fcil
descobrir o podre onde cheirava mal!? E o Z
Lambu, vadio e irregular ontem, farto e morigerado
hoje, tanto se sobressaltava como volvia calma,
segundo a alternativa de humor de suas duas
condies. Para trapa, tinha os olhos abertos.
No seu horizonte subjectivo trancavam-se no
menos obtundentemente que as paredes daquela
sala as figuras do senhor Manuelzinho e do Chana.
A Eduardinha vinha de envolta com a paisagem que
os olhos da alma trazem sempre consigo e , por
assim dizer, o pano de fundo para todas as coisas
vistas ou sonhadas. Ela, a senhora Francisca, a me,
o pai Lambu, vinham representar no seu guinhol,
corifus infalveis, como sucede, de resto, com toda
a gente, mal se ergue o pano no teatro de cada um.
Mas, apenas apareciam, apagavam-se, fluidos,
rpidos como as estrelas cadentes riscadas numa
bruma indecisa. Quem estava assinalado a grosso
trao era o amo e o Chana, um que escrevera a
carta de que fora portador, outro que a lera e ficara
mudo como um penedo. Ali havia histria, mas as
biqueiras dos sapatos, as ltimas moscas friorentas,
que sarabandeavam na vidraa, as frinchas do
sobrado no lho sabiam dizer. Fosse o que Deus
quisesse!
Aquela janela tinha uma carreira de cinco vidros a
toda a largura e outra de oito de alto a fundo; total,
nos dois caixilhos: quarenta vidros. Quarenta, um
carro de milho, metade dos anos dum cristo que
morra com os dias cheios. Contando depois da
esquerda para a direita, deu-se a fazer rodopiar os
vidros de molde a apanhar sempre o da frente como
ponto de partida. Levava o seu tempo a dar a volta,
e entretinha-se no carrocel, como um doido que
procura pilhar o polegar da mo direita,
enclausurado entre os dedos da mo esquerda, s a
cabea de fora, com lanar-lhe na mais fulminante
rapidez os cinco dedos da mesma mo direita
quando a porta se abriu de rebentina.
Alm do Chana e seu graduado, vinha um homem
paisana, que o puxou pela gola da vstia, sem lhe
deixar tempo a erguer-se spontesua:
- J alguma vez estiveste doente? - perguntou-lhe
queima-roupa.
Que raio de pergunta! Mesmo assim em despeito do
inusitado, respondeu de pronto:
- No senhor.
- Bom isso. Quantos anos tens?
Calou-se. No lhe ocorria quantos anos tinha. Mas
que ganhavam em sab-lo? Nascera...
- Vai fazer dezoito - disse o Chana. - Verifique o
Santos
Santos, o graduado, mergulhou a vista nos papis
que trazia e corroborou:
- Faz dezoito anos em Maro.
- No h que dizer quanto altura e trax - tornou o
paisana, pondo-lhe a mo na cabea, modo de o
observar bem de frente. - Aleijo ou defeito no lhe
vejo. Bom, bom, est na conta. Que mais, major?
Vocs c o medem. Estou com uma pressa danada,
voltou-se-me o vinho! Adeus, adeus...
Largou porta fora, na impacincia meio alucinada
de acudir ao sinistro dos seus tonis. O major
Chana olhou para o Lambu e com o dedo indicou-
lhe a craveira.
- Para qu?
- Breve o sabers. Faze o que te mandam.
Postou-se na craveira e ouviu o sargento que lia alto:
um metro e setenta, para logo de seguida volver
papelada e anotar. Isto feito, estenderam-lhe uma
pgina lavrada:
- Assina...
Tinha ouvido ao senhor Manuelzinho que nunca se
pe o nome por baixo de papel sem o ler, pelo
menos, duas vezes, e respondeu:
- Assino? E com que fim, se no queda mal o
perguntar?
- J vais ver, assina!
- Haja de perdoar, mas isso que no assino!
O major deu um estalo com a lngua, fitou-o muito,
ao passo que o sargento no o fitava menos:
- No assinas? Ento queres ou no queres assentar
praa?
Aquela palavra foi uma centelha. Daquela centelha
rompeu o claro que dilucidou tudo: queriam-no
obrigar a assentar praa como voluntrio. Mas
porqu, santo Deus? Num pice, meio atordoado,
com o cho a oscilar debaixo dos ps, respondeu em
voz que tinha tanto de soluo como de grito:
- No senhor, no quero assentar praa. Quando me
chegar a vez, c me tm. Antes, no, antes, no!
Prefiro deitar-me ribeira.
No queriam l ver, um bisbrria daqueles a
arvorar-se em senhor do seu nariz!? E permitia-se
ter engulhos, hem?! Ento porque no havia de
assentar praa, porqu?
- Porqu, no fars o favor de me dizer? - repetia
pela segunda vez o senhor major Chana,
escarninho e subindo de tom.
No sabia, mesmo que lhe quisesse dar a resposta
devida. Porque que um homem no gosta doutro,
sem jamais ter tido meas com ele, digam l?!
Porque que a gente se recusa a provar de certas
comidas, sem jamais as ter saboreado?!
Auscultandose o mais rapidamente que lhe
consentia a atitude por igual afrontada e zombeteira
do major, encontrava no fundo do seu instinto uma
resposta vaga: que deixava de ser livre, livre como
at ali era, livre como o vento, que ningum tolhe de
correr, livre como um pssaro que vai para onde lhe
puxa a asa, livre como o gato monts, que tanto
dorme, como caa, como brinca no brejo natal.
certo que estava de soldada em casa do senhor
Manuelzinho, o mesmo era que cativo, mas de
vontade, de sua espontnea vontade. Embora de
ajuste, podia sem riscos, se lhe desse na tineta,
correr como o vento, lanar-se a qualquer ponto da
rosa como as aves, ir moinar como o bicho bravo.
Enquanto que no regimento deixava de se pertencer.
Era da lei, assim fora institudo para todos, mas a ele
ningum lhe dissera: gostas?
- No dizes?! Fica sabendo que assentam praa
como voluntrios filhos de muito boa gente, ricos e
instrudos, cem vezes mais mimosos do que tu!
Olha, do perto se vai ao longe, que como quem
diz, pela tarimba tambm se sobe a general. Sabes,
meu asno, sabes?!
- Quando me chegar a vez, c venho. Agora no,
meu senhor, agora no. Fazia muita falta em casa do
senhor Manuelzinho, vossemec sabe, o senhor
Manuelzinho que, para mais, outra vez juiz de paz
de Cabeo de Vide...
O major olhou para ele com infinito desprezo e,
enquanto o sargento sorria com igual desdm,
proferiu, pegando nos papis:
- Est aqui a petio e o consentimento de teu pai:
Lus Lambu, tambm chamado Lus Fidalgo. Teu
pai quer, os teus querem, e tu dizes trola! Imaginas
que estamos aqui para panos quentes?!
O rapaz quedou-se suspenso, boquiaberto primeiro,
depois de olhos fitos nas frinchas do soalho, at que
despertou:
- Eu no estou em casa de meus pais; h muito que
l no estou, no senhor. Onde eu estou em casa
do senhor Manuelzinho Bezerra, de Cabeo de Vide.
Ele que manda em mim. meu amo? mais que
meu amo. Foi ele que me criou-me mandou escola.
Meu pai no manda nada...
Olhavam para ele muito fitos e, como pelos autos
mostrassem ar de virados, ar de pessoas a quem o
nimo deu volta, tornou:
- At se me est a fazer tarde e ele mal pode
dispensar-me um instante...
Aquelas palavras, os dois graduados desataram a
rir. Riam, riam consoladamente, que era uma forma
sacripanta de troar, vendo-o feito numa rodilha.
- chumbo, isto chumbo! - chalaceava o sargento.
Ouvindo aquelas vozes de achinca-lhe e disfrute,
entraram com ele as desconfianas, que picam como
vespas. Ao tentame, proferiu:
- A menos que meu amo me no queira l!
- chumbo! - continuava o sargento a esporteirar
entre esfusiadas de riso.
- Pois no quer, homem, no quer! Tarde deste no
vinte! - exclamou o Chana, em tom meio de
piedade, meio de bonomia, satisfeito com haver
encontrado o X do problema.
- Como o sabe vossemec? - proferiu, levantando
grimpa de galaripo.
O major foi outra sala buscar a carta do juiz e
meteu-lha debaixo dos olhos:
A te mando o rapazote. A roupa leva-a a oveira,
seno era dizer-lhe onde ia. Como nunca sofreu de
achaque, nem aleijado, podem deitar-lhe as
correias ao lombo mesmo sem exame mdico, que
no arreia
No foi mais longe. Borbulharam-lhe duas lgrimas
nos olhos que, a disfarar, foi esmagando com as
costas da mo, e repentinamente declarou:
- Deix-lo! Assentar praa, no assento. Vou servir
outro amo. Passem muito bem, meus senhores, eu c
vou...
Foi to imprevisto o seu rasgo, que pde chegar at
a porta sem que lhe embargassem o passo. Mas o
major, recobrando-se, gritou-lhe:
- s menor, no te podemos deixar ir sozinho
- Mas sozinho vim eu!
- diferente.
- diferente?
- muito diferente - disse o sargento com
irrespondvel suficincia, como o Chana ficasse de
novo embaraado. - Enquanto te no vierem buscar,
no podes sair
- Mas ningum me vem buscar! - exclamou num
grito de desespero.
- Se no vierem... Se no vierem... No sei.
- Mandem-me preso a meu pai.
- Isto aqui no polcia, meu santo.
- Chamem ento meu pai...
Agora eram os dois que aparentavam ar de
interditos. O major lembrou-se que a recoveira lhe
havia de trazer o bragal de recruta.
- Est bem, logo, quando vier a mulher, manda-se-
lhe o recado.
Saram da sala. Ele ia-lhes na peugada, mas o major
voltou-se, erguendo um dedo cominativo:
- Ficas detido at que te venham buscar...
. Fico detido? Mas ainda no almocei. Tenho fome!
Deixem-me ir almoar e j volto
- Isso tambm eu queria. No almoaste? Nem eu...
O Jos Lambu ps-se a soluar alto. No era fome,
embora sentisse no estmago estices mais violentos
que dum garraio amarrado trela e aguilhoado. Era
de verse preso. Era de ver-se, ao contrrio do vento,
dos pssaros, do gato bravo, encurralado entre
quatro paredes. O major demorou-se o tempo dum
ai entre dois batentes, a mo na maaneta do trinco,
e em voz ralhada, voz que pretendia ser paternal,
murmurou:
- Assina o papel, homem, no sejas tolo! Assina.
Assinas e podes girar...
Como o grande cabeudo no respondesse, bateu-
lhe com a porta na cara, e arrebatadamente
despediu.
O Jos Lambu assentou praa - que remdio? - e a
guerra, a nossa guerra, encontrou-o com a instruo
em ponto e diploma de atirador de primeira. E uma
tarde de carujo, com o cume dos montes
arredondados pela nvoa, l foi de mochila s
costas, N 96 de Infantaria 14, Seco Ligeira da
Coluna N I a caminho do embarque.
Custou-lhe a despegar? Mal deu conta. Quando
toda a magalagem tinha gente despedida com a
sua taleiguinha de castanhas, as duas mas
reinetas, os cinco reizinhos para cigarros do tio Z,
do senhor Afonso brasileiro, por ele ningum deu
passo. Tambm foi de olhos enxutos que viu as
pobres mes debulharem-se em pranto e os
camaradinhas esmagarem as lgrimas, gordas como
repolhos, com a polpa dos dedos calejados. Em seus
lbios acabou mesmo por acender-se um sorriso de
mofa para tanta choradeira. Mas no fundo da alma
sentia um vazio, triste e aziago como terra maninha.
Foi sob o imprio de no sabia que desconsolo que
voltou dentro e, j de correias ao ombro, na banca
da casa das armas, enquanto no acabava a
formatura, escreveu a cartinha que confiou Rosa
recoveira:
Menina Eduarda.
A sorte com que cada um nasce c me leva a mim para
longe da nossa terra. Se j isso no custa pouco, pior
quando se vai para longe de quem a luz dos nossos
olhos.
Saber que seu pai o culpado de eu ir para a guerra,
porque a mim no me cabia a vez. L se entendeu com o
nosso major, como j tinha sido de mascambilha com ele
que me obrigou a assentar praa. Tudo isto para me
tirarem da vista da menina. Estava a diz-lo o mesmo
para o primeiro-sargento e eu detrs da porta a ouvir.
Mas deix-lo, ao senhor Manuelzinho nem mal lhe quero
em respeito de ser pai de quem . O mundo d muita
volta; tornam as guas s fontes e as andorinhas aos
beirais onde foram criadas. Pode ser que eu torne; se tal
assuceder, o meu corao ir logo perguntar por quem a
sua dona. Se no tornar, que me leve por l Barzabu ou
alguma bala, a menina Eduarda pode dizer, que no erra:
pobre do Z Lambu que morreu a pensar em mim.
Perdoe a quem tanto lhe quer e que, a bem dizer, nunca se
atreveu a confessar-lho.
Jos Lambu, soldado N 96 da 2 Seco Ligeira da
Coluna N I.
L abalaram num comboio muito comprido e
arrastado: pouca terra! pouca terra! da cidade
provincial. A mquina no podia apitar, aflita, e
parecia que era o peito que lhe estalava e se punha a
uivar. Por aquelas estaes fora: choros, gritos,
foras em formatura, e uma noite negra com Lisboa
ao cabo da viagem sem fim. Afinal l chegaram.
Uma grande bisarma torva fumegava encostada ao
cais e, sem que ningum lhe dissesse que era o navio
que os havia de transportar, ele teve logo o palpite,
como se tirasse por outros em que andara de
mareante numa vida passada.
Ah, o mar era grande, bem grande, mas ele ainda o
sonhara maior! No era mais largo e, por certo, mais
fundo o cu por cima dos montes de Cabeo de
Vide?
Ao cabo de cinco, seis dias, botaram terra estranha
dos nevoeiros e piratas. A gente no era como a da
sua terra, toda ela mais lauta, mais branca, com ar
desdenhoso ou travesso. Que rico femeao! A falar,
s o Diabo os entendia.
Ao fim de semanas de calacice, atiraram com eles de
cambulhada para as trincheiras. Agora que eram
elas: fogo e mais fogo, balas e medo por uma p
velha! Minha Nossa Senhora, para o que uma me
cria um filho!
Com o rolar do tempo operou-se a sedimentao de
todas estas coisas doidas e nunca vistas. Faziam-se
de chumbo, sem energia, mas fixes e pregados ao
solo. O troar do canho acabou mesmo por se lhe
tornar to natural como a goela do Jos da Eira a
esporteirar l dos altos para seu pai:
- tio Lus Lambu! Tio Lus Lambu! Deite lume ao
forno!!!
A fuzilaria constante, o crepitar das mil mquinas
Singer das metrelha-doras no lhe faziam mais
impresso que a tamancada do povilu ao despedir,
adro fora, da missa do domingo. O fogo nocturno,
verylights e minas, de princpio recreou-o como o
arraial da Senhora da Lapa. fora de repetir-se,
nem abria os olhos sequer para ver a mirabolante
catadupa de cores despenhar-se do cu e esclarecer
a terra. Entrou num raide, de rastos como uma
cobra, pela terra de ningum, sossobrada na noite
escura. O camarada de tempos a tempos apertava-
lhe o brao:
- Onde ests tu? No viste mexer l em frente?
Estamos quilhados...
Com efeito, de repente, as metralhadoras inimigas
raiaram a escuridade com sua filaa de fogo.
grandes vultos negros arremeteram para eles do
fundo da noite.
- Ui, que l tombou o nosso major!
- Foi o ladro que me atirou para a guerra. Embora...
O Lambu pegou s costas do homem prostrado. No
era da patarrega, no era o senhor major Chana,
que lhe dizia sempre que o encontrava, batendo o
stick: Como vais, rapaz?
No, ali no havia de morrer. Chegou s linhas a
soprar, cada cabelo sua fonte, que o Chana era
homem alentado. Bah, uma bala entrara-lhe na coxa
por um lado, sara-lhe por outro. Assim ferido, foi
oiro sobre azul. Base com ele; depois Portugal.
- Que queres para a parvnia, 96?
Coou a nuca.
- Dize l, homem...
Desembuchou:
- Se vir por l a filha do senhor Manuelzinho, sabe, a
menina Eduarda, faa-lhe visitas da minha parte.
- Mariola!
No ataque de envolvimento s linhas portuguesas
caiu com a pea vadia de sete e meio, a que andava
adido como servente, na redada do inimigo. Ao Sol-
pr, grande caterva de prisioneiros era tangida para
a retaguarda chuada dos canos de espingardas.
Nunca tinha visto os alimes bem de frente. Ao
afirmar-se naqueles grandes homens ruivos, feros e
com muitos bolsos, muitas portinholas nos bolsos,
muitos botes, muita coisa s costas e ao peito, de
que no percebia a utilidade e no custavam nada a
levar, ficou a cismar consigo e com Deus: quem os
h-de vencer?
Numa caravana, em que havia bicho de todos os
cambais da terra, at chins, foi conduzido a p pela
estrada pegajosa, escoltado por guardas a cavalo,
que uivavam para eles de cima de suas horsas. A
lama colava-se aos sapatos e era um castigo dar
passada. s bandas, nos campos desertos, bandos e
bandos de corvos esvoaavam crocitando. Reluzia o
ao dos infinitos carros escaquei-rados e as ossadas
dos animais de tiro.
A suar em bica, embora fizesse frio de rachar,
chegaram a uma grande cidade, de casas baas que
nem que as envolvesse o sincelo, apertadas umas s
outras e soturnas. Comer? De grilo. Trs dias
estiveram sem provar bocada e o Antnio Pardal,
patrcio que descobrira na turbamulta, dizia-lhe:
- J nem vejo a terra que piso.
- Nem eu.
- Mas vejo bem aquela cara do alimorda. Sabes,
estou mesmo com ganas de me botar a ele e
dentada arrancar-lhe uma assadura da ndega. Olha
que rabado, 96!
No lhe deram pitana alguma, nem gorda, nem
magra, mas atiraram logo com eles para a frente a
arrasar trincheiras e a estender pranches no terreno
lamacento para a artilharia passar. Foi na volta
duma dessas fachinas que o ladro dum reitre, de
cara hirsuta como um chibo velho, veio com um
pote de tinta e, a pincel, comeou a pr-lhes um
nmero nas costas. O Pardal, que era todo nervos,
quando se viu marcado como uma rs, deitou a
chorar.
- Deixa, homem - disse-lhe o Lambu. - Hoje pintam-
nos eles, amanh pintamo-los ns.
Quando terminaram o trabalho nas linhas e os
alemes se preparavam para novo avano,
distriburam-nos em piquetes. Uns foram mandados
reparar estradas, outros cavar abrigos, aquele
carregar e descarregar material de guerra de
camies e galeras que s andavam de noite e de
faris apagados. A ele coube-lhe com o Pardal e o
76, que era dos arredores de Lisboa, e uns tantos
franceses, arranjar a estrada que levava de
Armentire para o Argonne.
Todo aquele fim de Abril e as duas primeiras
semanas de Agosto andaram de p em punho,
governados por um perna de pau, de carabina a
tiracolo, que lhes no deixava levantar cabea. A sua
rao diria era um litro de sopa de beterraba, sem
tempero e mal mexida, e 100 gramas de casqueiro,
do tal que o Diabo amassa. Onde iam buscar foras
para remover a terra? O Pardal rangia os dentes e
quando o chefe de turma lhe dizia em mau
portugus:
- Trravaalhem, madriones! - ele chamava-lhe, de
filho duma porca para baixo, quantos nomes
obscenos ecoam pelas vielas.
Um dia o Lambu disse ao Pardal e ao alfacinha:
- rapazes, eu vou ver se me ponho ao fresco.
Quereis vs fugir comigo?
- Por onde, alma do Diabo?
- Tenho c um plano. Sabeis nadar, no sabeis?
Olhai, passamos a nado o canal de La Gorgue e
limpinho
- Limpinho?
- Quer dizer, para l do Canal outro mundo.
Temos j uns tentos a nosso favor.
Tinham o quartel num lugarejo que, pela disperso
e pouquido das casas, escapara at ali foiada da
artilharia. Um obus viera cravar-se na empena da
taverna Au cheval gris, depois de ter penetrado na
torre pela ventana, que estava devoluta, e
esboucelado o sino na outra. E um shrapnel
salpicara de grossas e esparralhadas bexigas a
frontaria da igreja. Mas os sinistros no eram
clamorosos. J os campos em torno mostravam-se
semeados de crateras, de barrocas, cavadas pelas
granadas o que dificultava a vida agrcola segundo
as variaes de uma ala que tomara por objectivo
constante a estrada essencial do Argonne.
A Kommandantur no vira inconveniente em que os
prisioneiros, alojados retaguarda das linhas,
gozassem de relativa liberdade. Eram alguns
milhares, de todos os polipeiros humanos, e falando
todas as algaravias, e repartidos por turmas ao
longo daquela importante via de comunicao,
podiam ir depois das horas de trabalho
regulamentar, onde lhes puxasse a veneta. Os
portugueses, que eram menos que dzia, umas
noites por outras arranchavam num estaminet que
havia, obra de meia lgua dali, num povilu
desmantelado atrados pela dona, uma loiraa
desnalgada e liberal, que se pegara de bguin por
um deles, filhote de Castelo Branco. Ela
empazinava-os com feijes la bretonne e batatas
fritas, e eles traziam-lhe os objectos que podiam
unhar, mal guardados aqui e alm, dos depsitos e
domiclios particulares. As mais das vezes metiam-
se na cave, que lhes servia de dormitrio e, antes de
ferrar o galho, jogavam a bisca lambida luz do luar
que entrava pelas lucarnas, ou remendavam a
roupa, em m hora se apartara deles o Justino do
Tojal, 68 do 14, havendo-se inculcado aos alemes
como graduado, no intuito de se furtar p e
enxada. Deixado sirga uns dias, o xito da
primeira trapaa inspirara-lhe veleidades de fugir.
Fora abatido como um caapo nas primeiras linhas
alemes.
Deitado de costas na enxerga de palha, o 96 pesava
os prs e contras do seu plano de evaso. As estrelas
que mais lhe luziam eram os olhos de Eduarda, cuja
imagem estava mesmo a ver, quela altura da sazo,
no quintal trgido de peras amorim e mas
camoesas; depois o vivrio dos camaradas do 14,
quando lhes aparecesse na guinguette hora em
que, rendidos da lama das trincheiras, viessem
decilitrar o rascozinho da terra; no menos os
caminhos livres e desimpedidos, o sol amigo, um sol
estrangeiro, certo, semelhana do Dieu de la
France, mas em suma sol da banda de l, de modo a
poder goz-lo um pobre soldado tripa-forra e
espernegar-se um cristo sua chama como os
lagartos. Deus ou o Diabo, v l saber qual, acenava-
lhe, por outra, com os maus azares da fuga: a
baioneta dum boche que, fosse ele caado, no
deixaria de espet-lo, assim como um sapo numa
estaca, a rajada da metralhadora que o mandaria
para os anjinhos sem ter tempo de dizer: ai minha
me! Contra, havia ainda os camones que estavam
da banda de l, e que, brutos como portas e pouco
atilados, quando vissem a sua sombra rastejar na
terra de ningum, eram capazes, se lhes desse no
goto, de abrir fogo que fumegava, como s vezes
que apanhavam um caco, diante dos ps no
caminho, se empurravam uns aos outros a dar-lhe
chutos. Mas corao para trs das costas:
- Pardal, queres fugir ou no queres? E tu, 76?
- Quero. Mas primeiro hs-de jurar que me levas
direitinho s linhas dos aliados - respondeu o
Pardal.
E um burro para ires escarrapachado, no pedes?
- Um automvel seria melhor. Mas vamos, expe l
essa estrangeirinha
O Z Lambu fez uma larga explanao do seu
projecto. Falava baixo, menos que ciciado, de modo
que s ouvissem o conterrneo e o lisboeta, no
fosse por l o Diabo arm-las. O Diabo eram uns
camaradinhas ali ao lado, o raio duns pilordas que
s para apanhar aos alemes mais um naco de
chourio no se envergonhavam de lhes dar graxa,
correr a toque de rufo diante deles e rapar na
estrada como quatro, e uns italianos, gente de ms
intenes, que podiam desconfiar e d-los dica. De
quando em quando fazia a sua pausa, o tempo de
passear o rabo do olho por uns e por outros. Mas s
a sua desconfiana de raposo era susceptvel de tais
cautelas. Ningum se importava com o que dizia.
Uns ressonavam de papo para o ar; outros falavam a
sua lngua de trapos em que s o Diabo metia dente;
havia menino, franciu das ilhas, que tocava
berimbau. De quando em quando, por cima deles,
estalava o soalho ou ouvia-se o estampatrio de
quem entrava, chocando-se s escuras, mal
orientado ou bbado, contra os dois ou trs mveis
que alfaiavam a casa.
Os donos, gente de lavoira com as suas posses,
tinham-na evacuado a tempo, depois de retirar os
haveres de maior valia. Haviam ficado os trastes
pesados, a mesa de sala de jantar a que um
americano quebrara a perna com uma patada, cinco
ou seis cadeiras com a palhinha rota, e o armrio
picardo, to mexido e remexido por quantos vinham
aboletar-se na casa que, das portas desenculatradas,
uma se estatelava para trs a modo de bandeira,
outra pendia sobre o gonzo de baixo, caio, no caio.
Quem entrava, e no sabia ou vinha a pensar noutra
coisa, marrava infalivelmente na porta escancarada,
e era praguedo que fervia e o vingativo e estrondoso
sopapo contra a infeliz.
Ao Pardal a coisa afigurou-se muito arriscada. Dali
at frente portuguesa ou inglesa, tirada uma recta,
devia ser uma lgua, mais quilmetro menos
quilmetro. Havia trs linhas alems a atravessar,
no falando nos abrigos, nos ninhos de
metralhadoras e nos blockhaus camuflados aqui e
alm. Tinham toda a noite, sim, para singrar entre...
- e o Pardal emitiu uma imagem obscena que fez
cacarejar o lisboeta. Era como ir de ps descalos por
um soito fora, depois da apanha das castanhas, e
no se picar. Uma grande aventura; novecentas e
noventa e nove probabilidades de serem fisgados
contra uma de se safarem na fresca da ribeira. No.
No contassem com ele. Era casado, tinha na terra
mulher nova, s com um gaiulo, no queria que
outro se gozasse dela.
- Deixa l, 96, no vai ele, vamos ns! - exclamou o
alfacinha com certo mpeto. - No precisamos do
tipo para nada, nem para nos assobiar s botas.
Vamos ns, 96. Dize l quando h-de ser?
- Quando h-de ser? Hoje mesmos. Ainda no deu a
meia-noite.
- Toca!
O alfacinha levantou-se da cama lesto e
naturalmente como quem vai a um destino notrio;
o Lambu tirou debaixo da enxerga a machadinha de
mo que bifara numa granja, meteu-a sorrelfa
entre o coiro e a camisa, e foi-se em ps.
porta espreitaram a rua e o mundo. No bolia
gato, mas o cu estrepitava do batuque da artilharia
pesada, martelando, sem relego, a retaguarda das
linhas alems. De c respondiam, e a atmosfera
enrubescia de leve poalha ruiva, que ficava
suspensa das malhas da cacimba e talvez de cirros
baixos como um velrio cor-de-rosa sobre a terra
nocturna.
- Vamos l com Nossa Senhora do Livramento! -
murmurou o Lambu, dando o primeiro passo da
libertao.
At proximidades do canal, a marcha no oferecia
grandes riscos. Estava uma noite levemente opaca,
com luz de quarto minguante, e os vultos das coisas
a mais de vinte passos diluam-se na vaguido
espacial. Mesmo assim, caminhavam sorrateiros
pelas bermas em que crescia a erva, acoitando-se de
tempos a tempos entre as rimas de ferro velho e nas
dobras do terreno, a especular. Um segundo de
ateno e silncio, e rompiam adiante.
A artilharia continuava, de parte a parte, a bater as
vias de comunicao, parecendo que do lado da
Frana se intensificava o fogo. As granadas caam a
torto e a direito, aqui uma, alm outra, rebentando
com fragor e projectando ao ar nuvens de terra e
estilhas de toda a sorte, cujo bouquet adivinhavam
mais que viam. Aquilo era o po quotidiano e, ala,
sempre em frente.
O canal, de cuja gua viam lucilar sobre a direita o
lume mortio, parecia silencioso e deserto. Com
satisfao notaram que entrada da ponte faltava a
sentinela do costume. Mais a montante a ponte das
vagonetas estava igualmente imersa em sossego
absoluto, a barra fosca da sua linha ressaltando
corredia contra o fundo estanhado do cu. E,
perante aquela singular suspenso de movimento e
vida, estancaram o seu tanto atnitos e suspicazes.
Mas uma granada anunciou-se pelo silvo fugaz,
para logo ir rebentar a pequena distncia; outra caiu
no canal: chapo! projectando ao ar uma tromba de
gua de que sentiram o molinheiro em rosto. Uma
terceira abateu-se sobre as sombras enoveladas que
estavam entrada do ponto, provocando um
estardalhao metlico de mil demnios. E, por
aquela chuva de fogo, calcularam que os aliados
faziam incidir o bombardeamento sobre o canal,
motivo por que os alemes haviam levantado as
sentinelas dos seus postos. No estariam longe, mas
a passagem pela ponte oferecia-se-lhes livre.
Afoitadamente meteram por ela, que era de tbuas,
pelo salpicamento mais negro do piso advertidos
dos alapes e rombos onde no deviam por o p
para no malhar no pego. Fazendo acrobacia,
pendurados das guardas, pinchando, l
conseguiram passar outra margem. E agora?
Reluziam, como estrias, vrios carreiros aspados
confusamente na terra, e meteram pelo primeiro que
se lhes antolhou levar em frente. sua fuga presidia
esta simples estimativa: sempre ao direito do nariz.
O cho era plano e as sombras, medida que
avanavam, iam-se dissipando, anulando a sua
inanidade. Mas, andando sempre, defrontou-se-lhes
uma espcie de ea, macia e alta. Dessa alterosa
armao repentinamente soltou-se uma chama
difusa a toda a roda, seguida dum ribombo terrvel.
Descreveram uma cambalhota no ar, tendo dado
conta ao breve resplendor que era ali a posio
camuflada duma pea de grosso calibre. Pelo que,
ainda mal recobrados do sopapo, retrocederam para
o canal. A todo o arco do horizonte toava agora a
artilharia. E a claridade lunar afogueava-se duma
poalha gnea, semeada do fundo da noite, por cima
de suas cabeas, para outro extremo da noite, como
um arco-ris.
No havia que errar: l atrs, furando por baixo
dele, que ficava o porto de salvamento. E meteram
avante, o Lambu na dianteira tacteando o piso,
desviando-se e fazendo desviar o companheiro das
ndoas de tinta que eram os boqueires das crateras
cavadas pelas granadas, to fundas umas que eram
verdadeiros quebra-costas, depsitos inominveis
de tudo, sucata, cadveres, outras cheias de gua
choca exalando ao casual arrepio da vista uma
fosforescncia momentnea. Duma maneira ou
doutra, eram fojos traioeiros para evitar os quais
todos os cuidados eram poucos.
Pelo aspecto do terreno, cortado de largos sulcos
longitudinais, presumiam que trilhavam o cho
duma granja. De facto, logo adiante foram dar com
as runas do casario, que deveria ter sido vasto,
paredes esquelticas de cristas caprichosas, janelas
vazadas para o espao, monto confuso de telha e
pedra. E os escombros estavam mergulhados num
silncio profundo, que os tornava ainda mais
sinistros. Que gnero de monstro no estaria l
anichado? O alfacinha puxava para l; precisava
tomar flego, descansar. Ao Lambu o stio parecia
suspeito. Na dvida puseram-se escuta: um ralo
ensaiou a sua nota merencrdia, uma vez, duas
vezes; terceira ficou engasgado. Era como se
quisesse convencer-se que no havia perigo em
cantar e imprevistamente houvesse surgido o
drago.
- Anda da - disse o Lambu. - Aposto que l dentro
h boche.
Foram pela ch fora, dobrados para terra, no s
porque assim se inteiravam melhor do piso, como
no propsito instintivo de oferecer o menos alvo
possvel vista. A certa altura entremostrou-se-lhes
mo esquerda uma sorte de platibanda em que
deveria ter havido bosque ou pomar. Os vultos mais
espessos e verticais eram com certeza troncos,
troncos decapitados. Ao toro parecia apinharem-se
sombras estranhas, sombras informes e sombras que
se prestam a tomar a forma que entenda a
imaginao e que, quanto mais se olha para elas,
mais metamorfoses revestem: homens, bichos,
penedos, casas, um exrcito, e nunca o que so de
verdade. Precisamente uma delas estava-lhes a dar
que cismar; era uma sentinela, ou o fuste duma
rvore? Se era uma sentinela, havia-os pressentido e
o seu silncio e inaltervel imobilidade no tinham
outro fim: certificar-se. O que havia a fazer era
responder-lhe na mesma moeda. Em harmonia,
ficaram to quietos que ouviam pulsar o prprio
corao. A artilharia continuava retaguarda e em
frente no seu batuque diablico. s vezes, uma
vespa de fogo sulcava a atmosfera, mais veloz, dir-
se-ia, que as estrelas cadentes, e ouviam o seu
zumbido macareno: vuuuump; outras vezes, era um
fio delgado de lume que saltava ao cu como se o
houvesse libertado duma bobone sua elasticidade
irreprimvel, atravessava a noite num largo pano e,
descendo com rapidez pasmosa, derramava no solo
um claro deslumbrante de que sentiam o reflexo
nas pupilas, seguido momentos depois dum
ribombo de trovo ao longe: um shrapnell que ia
visitar o amigo boche.
Estiveram ali o tempo que julgaram suficiente para
o planto se denunciar. E, como persistisse
rigidamente inquebrantvel, recomearam a
marcha. No teriam dado meia dzia de passos, um
verylight subiu ao ar, alumiando grande extenso
de terra com sua lvida incandescncia. Os dois
fugitivos mal tiveram tempo de se afundir na erva,
que ali crescia balofa, de barriga para baixo. Lambu,
que no perdera a calma, aproveitou para se
compenetrar de que estavam numa antiga terra de
sementio, com os trolhos da lavoira a zebrar o solo,
espantalhos as rvores sem copa, abegoarias no
cho. E nunca botara melhor palpite: l se via a
sentinela, capacete de ponta, capote aparatoso, a
espingarda de baioneta calada repoisando entre os
ps juntos, mais testa no seu planto do que talhada
em bronze. Estava boca do abrigo contra cujo vo
se lhe afigurou que se apinhavam mais capacetes e
canos de ao. Ali estiveram cinco, dez minutos, at
desassombrar os alemes de suas suspeitas. Quando
puderam concluir que os soldados se haviam
recolhido, tranquilizados, e viram a sentinela bater
para c e para l os cinco passos, botaram-se de
novo a caminho, de gatas, leno na boca, no os
possusse acesso de tosse ou resfolego mais forte.
Tinham pressa em safar-se daquela insua negra,
com que se sentiam engalinhar. frente ia o Lambu,
mo aqui, mo alm, pela agro fora, como nadador
crawl. O que lhes valia era a erva muito lou afogar
todos os rudos e ser capaz de escond-los luz dos
prprios foguetes de magnsio, se desse na bolha
aos alemes de recorrer a semelhante fogo de
artifcio.
Teriam percorrido duzentos metros, figurou-se-lhes
acharem-se no limite duma nova granja. Diante
deles, havia muito arame farpado, mal estendido, e
ferro por uma p velha. As crateras das exploses
amidavam-se. Singrando por entre runas e
destroos de coisas inclassificveis, foram esbarrar
com um talude de terra, que tanto podia ser o
balastro do caminho de ferro, como uma antiga
trincheira mal nivelada. Avistando uma sorte de
toca na ribanceira, o alfacinha puxou o Lambu:
- Vamos descansar ali um bocadinho. De vir tanto
tempo dobrado, j me doem os rins.
Comprimindo-se um contra o outro, conseguiram
acocorar-se no covil, embora ficassem joelhos e
cabeas a descoberto. A artilharia agora espacejava
mais o tiro. Devia estar a acabar o duelo da noite.
Um shrapnell veio da frente, l de longe, to de
longe que o Lambu concebeu uma noo pessimista
da distncia a que estavam das linhas dos aliados.
Mas no disse nada ao camarada. Ele, porque
tivesse o mesmo pensamento, murmurou em voz
triste:
- Nunca mais l chegamos!
- Qual o qu! Bem sabes, a artilharia est l muito
para a retaguarda
Calaram-se e ficaram escuta. Cantava um grilo ali
perto. Bom sinal: viva l!
- Estou derreado - tornou o lisboeta.
- Tambm eu - disse o Lambu para dizer alguma
coisa. - As pernas esto rijas, que o que se quer.
desbanda ia grande arraial. Crepitava a fuzilaria e
os verylights cruzavam-se numa doida contradana.
Depois eram as surriadas das metralhadoras que se
sucediam umas aps outras e lembravam caixeiros a
rasgar o pano-cru ao balco: rrurru!
- Anda, homem! - disse o Lambu, como lhe visse
bater o queixo. - Vnhamos quentes e estamos a
arrefecer.
- Deixa-me estar mais um nadinha!
Decorrida uma breve pausa, tornou o Lambu:
- Vamos! As noites so um sopro e dum momento
para o outro amanhece. Entesa-te, no sei se ainda
temos muito que andar...
- Disseste que em linha recta eram dois quilmetros
a dois quilmetros e meio, se tanto...
- E as voltas que demos? E aquelas que ainda
teremos a dar?
- Olha, deixa-me ficar, vai tu.
- Nem a brincar se diz...!
- Digo-o a srio.
- No acredito. Tu no s dos que cortam prego...
- Mas ouve l: se ficssemos aqui esta noite? Aqui
no do connosco podamos luz do dia estudar o
terreno.
- Deus te livre! No vs que no estamos a cem
passos do abrigo?! Isto aqui como uma eira: logo
tudo aqui vem bater.
- Talvez no.
- Ora, ora! E paparoca?
- Trazes a um bocado de po...?
- Uma dentada.
- Eu trago tambm um bocado...
O Lambu no deu mais palavra e ps-se em p.
Arrastou o camarada pelo brao. Saltaram o talude e
romperam de novo marcha sempre em frente do
nariz. Figurou-se-lhes andando, andando, que
caminhavam em campo deserto, to raso e
desabrigado era, e iam mais afoitos, se no mais
cleres. E, inesperadamente sua direita, dum
bulco de sombras, ouviu-se o matraquear das
metralhadoras, entretanto que lhe assobiavam aos
ouvidos as rajadas das balas. Desta feita, tomados
de susto, acicatados pelo bruto instinto de
conservao, deitaram a fugir. Correram, correram a
todo o fundo, um atrs do outro, at perder o alento.
Passaram, porque no podiam doutro modo, a
andar devagar. Afinal, ningum vinha atrs deles, e
foram serenando. J recobrados, deram conta que
havia ali uma espcie de chafariz, pois que
perceberam a toada da gua a despenhar-se na
massa lquida da pia ou tanque, e encaminharam-se
para l. Estava o alfacinha a beber, uma voz por
cima deles falava-lhes.
Que dizia? No perceberam. A voz vinha de perto,
quatro a cinco passos distantes, e era no tom de
quem est a caoar. Deram a volta ao chafariz a
medo, sem pinga de sangue, e escapuliram-se para a
zona mais escura da ch. Deparavam-se-lhes mais
runas, muros em terra, empenas meio destroadas,
nitreiras em cuja gua salitrosa lampejava
passagem, muito viva e lcida, a estrelinha mais alta
do firmamento.
O companheiro do Lambu atirou-se para um
recanto, dizendo:
- No posso mais!
- No podes mais?!
- No, no posso. Vai tu! Eu morro aqui...
- Morres, morres!
- Pois morro. Mas morrer aqui ou mais longe
sempre esticar o canelo.
- Anda, homem; o mais difcil est andado...
- Qual! No vs que h ninhos de metralhadoras por
toda a parte? Os boches so como as areias do mar.
- Mas ainda no nos furaram a pele...
- Mas furam.
- Quem sabe?! Eu tenho esperana que no furem.
- Eu no tenho esperana nenhuma. Se soubesse que
tnhamos de atravessar este inferno, ficava no
village.
- Anda, homem, anda! Assim que amanhecer, do
contigo e fuzilam-te!
- Talvez no fuzilem. Que ganham?
- Ganham os outros no tentar fugir. limpinho.
- Talvez no.
Calaram-se de novo. Ao cabo duma pausa, o Lambu
ameigou a voz:
- Vamos, homem...!
- No vou, j disse.
Proferiu estas palavras com um tom de deciso e
arreganho que o Lambu convenceu-se que perdia o
tempo se teimasse.
- Pois eu vou para a frente. Adeus!
- Vai! Vai! Adeus! J ele despedia, chamou: Pst, pst,
pega l a cdea...
- Guarda-a.
- A mim de que me serve?
O Lambu foi-lhe a dar um abrao e desataram
ambos a chorar.
Quando se viu sozinho no meio da noite, beira
duma estrada misteriosa, o Lambu conversou com
os seus botes. Os seus botes no se mostraram
nada optimistas. Onde estava? No fazia a menor
ideia, embora tivesse motivos para supor que se
havia abeirado da linha dos aliados. Com efeito, os
tiros da artilharia da frente, raros, muito raros
quela hora pr-matutina, soavam-lhe mais perto;
da mesma maneira, os tiros de canho da
retaguarda soavam-lhe de mais longe. L nos
confins da noite, em face, uma espcie de aurola
assegurava-lhe que para ali devia ser a linha de fogo
dos ingleses. Mas no estaria iludido? Depois de
tantas voltas e reviravoltas, no se daria o caso de
estar a refazer o caminho e a marchar ao invs da
sua vontade?
No propsito de ilucidar esta srie de problemas,
meteu-se num barranco que ali havia e era uma
cratera meio desmanchada pelo entulho doutra,
decidido a esperar. Neste meio tempo podia
produzir-se o fenmeno necessrio que o guiasse e
tirasse de incertezas.
Na noite continuava a dobar-se a sempre mesma
meada; tiros insulados de artilharia; o estampido
dos morteiros, aqui e alm, estrondoso e cavo como
a derrubada, a um tempo, de cem rvores
ramalhudas; o assobio agudo das balas dos snipers,
pelo espao, tais aves levadas no voo e gazeando. As
estrelinhas continuavam a luzir por cima da
aougada, indiferentes, frias e minsculas como
risos de menino. No eram elas que lhe diziam para
onde ficava a Frana e son sacr chien. Mas devia
ser sua frente, do lado do claro.
Chegaria alguma vez at l? Pesando prs e contras
da aventura, ouviu passos. Era a primeira vez que
os ouvia bem afirmativos, de gente calando botas
brochadas e assentando a planta toda no cho da
terra sanguentadas. At ali toda a vida nocturna
deslizara nas sombras, por detrs dos muros dos
abrigos e postos de escuta, a favor de alpargatas ou
solas de borracha, os homens tornados toupeiras,
feras esquivas, fantasmas. Era uma patrulha que
passava, de soldados sapadores. A meio conduziam
uma maca; no coice, o espanejamento alvadio era a
sobrepeliz dum padre. Vinham falando a meia voz.
O Lambu, embutido nas ranhuras do solo com o
receio de que o lobrigassem, deu conta de tudo.
Foram no muito longe. Os homens depuseram a
maca; os outros romperam a cavar a terra. Percebeu:
enterravam um morto. Que era aquilo no imenso
cemitrio? A cerimnia deixou-o indiferente. O que
lhe ficou a azoinar o juzo era saber que estava ainda
dentro das linhas alems. A que profundidade da
frente dos aliados?
Tinha que se despachar e, acicatado pelo sentimento
de que jogava uma partida de vida ou de morte,
meteu decididamente pelos campos fora. Ainda
fazia escuro, mas uma suspeita de arrebol comeava
a arruar o cu a nascente. Para l apagavam-se j as
estrelas. Leva que leva, encontrou uma vereda mal
trilhada e foi seguindo o seu torcicolo. No peito
agora roa-lhe como um bicho ruim a ansiedade.
Perdera muito da bela segurana com que sara do
village e se metera a atravessar o canal de La
Gorgue. A passo de lobo, o seu tanto distrado na
tentativa de desenvencilhar-se dos ns da sua
serpente, ouviu um brado quase em rosto. Deu um
salto. Pelo tom imperioso, compreendeu que a
figura gigantesca e engrifada diante de si o
mandava parar. Parou. O Golias, ento, deu mais
dois passos frente e proferiu duas ou trs palavras
que zuniam como pedras. Que queria ele dizer?
Provavelmente pedia-lhe o santo e a senha. Sim, era
isso. Pedia-lhe o santo e a senha e, como o no
soubesse nem tivesse artes para trapacear,
ignorando a lngua, era homem liquidado. L
tornava a repetir as palavras rabiosas
Em seu desapoderado transe o instinto no lhe
sugeriu outro recurso seno deitar-se de joelhos e
mos postas. E, de joelhos e mos postas, balbuciou
a palavra agnica do Jardim das Oliveiras: Perdo!
Qual perdo! O colosso dominava-o e de certo ia a
descarregar o golpe, pois viu-lhe o brao rodar
ginasticamente retaguarda, quando o Lambu
acertou palpar a machadinha. Foi fulgurante. Mais
rpido que o corisco jogou-lha em pleno peito.
Simultaneamente, metendo a cabea como um gato
bravo que arremete, largou em quatro patas
desfilada. A granada de mo bateu um metro atrs,
e uma chuva de terra e pedras envolveu-o todo.
Merc do impulso ou l do que fosse, continuou a
correr. Passos adiante, com os ouvidos a zoar,
perguntou para si e para com Deus: Morri? E
logo, reflexamente, ouviu em sua conscincia: Que
ideia! Se morresse, no mo dizia. Mas escapei de
boa!
O que sentia era uma grande dor no queixo. No
tinha importncia. Deveria ter sido provocada pelo
ricochete dalguma pedra. A questo que corria
gil, com os membros bem lestos, o resto era
histria.
Levado num galo dos diabos, nem reparou que, ao
rebentar da granada de mo, sucedera por toda a
parte uma fuzilaria acerba e incoerente. De cem e
um abrigos e blockhaus, as metralhadoras
crepitavam. Faziam uma ladrao terrvel e ele, a
favor da inferneira, foi correndo sempre. Corria de
gatas, sem o qu h muito estaria na primeira fase
da metamorfose para tijolo.
Talvez fizesse assim mais de mil metros, tanta
distncia quanta lhe permitiram os joelhos
macerados. Quando se viu longe do vespeiro em
alvoroo, acoitou-se entre a ervagem para respirar
um pouco e de novo tomar rumo. Nossa Senhora do
Livramento, que se venerava na serra da Lobeira,
acabava de saf-lo muitas vezes da morte. Qual seria
a boa alma a pedir por si? Talvez Eduarda. Sim, no
podia ser outra. Esta ideia sensibilizou-o e, atravs
do ter, todo o seu ser em distenso, dirigiu-lhe uma
saudade enternecida.
Ah, mas comeava a branquear para bandas da terra
forte e desatinada da Alemanha. Ao largo tudo era
bratro ainda, mas ao perto os volumes comeavam
a desenhar-se nos seus contornos relativos.
Adivinhava-se o desdobre da plancie, ondulando
docemente, salpicada de montes de terra e covas de
bordos tmidos como leicenos. Altas bisarmas
negras, que eram redutos desamparados, esqueletos
de granjas e de fbricas, lobreguejavam mais alm.
O Lambu com a luz sentia-se tonto e trpego como
uma pessoa que se houvesse safado duma caverna.
Depois que atravessara a zona das metralhadoras,
onde se encontrava ele? A artilharia agora atirava
com pausa quase solene. Aqui e alm via a terra
saltar ao ar em altos repuchos, sinal de que aquele
local era por qualquer razo, que no abarcava,
ponto de mira para a artilharia. A nica
interpretao, que lhe parecia lgica, que se
aproximara das linhas dos aliados.
Seguiu calcorreando, mais cauteloso, ao tentame,
plancie fora. A terra esclarecia cada vez mais. O
nimbo de luz, que permitia se corporizassem as
coisas em seu vero ser, dilatava-se. Pareceu-lhe
mesmo ouvir um vago chilido de ave, por l de
tutinegra, cujo apego ao terrunho natal prevalecesse
ao banz e assolaes da guerra. Chegado a uma
espcie de cmoro, que devia ter sido trincheira,
arrasada com o avano e recuo dos combatentes,
ps-se a marchar na sua espalda. Ao fazer uma
viragem, deu f dum vulto que saa dum monte de
sacos de areia a pouco mais dum tiro de escopeta.
Agachou-se; era um soldado muito cinturado no
capote cinzento, capacete em ponta, botas de
trincheira. Vinha cabisbaixo, meditabundo, a ponto
que nem fez reparo nele. Deixou-o desaparecer por
detrs das runas duma arribana, e para a frente
que era o caminho! Tinha que ir a nove, que a luz no
cu desabrochava como uma grande rosa ch. Logo,
com o sol infernal que mordia a terra, enxergava-se
um alfinete a dez passos. Teve porm uma recidiva
de desnimo. Seria possvel chegar a porto de
salvamento? Marchava na boa direco?
Ps-se a monologar consigo:
- A vida uma s, Z Lambu! Perdeu-se, acabou-se;
ningum te pede contas. Jos Lambu, avana,
mostra que s homem!
E avanou a bom avanar, mas, como co batido, de
modo que ningum o visse, tirando partido de tudo
o que pudesse encobri-lo. Topou uma estrada e
atravessou-a. Ia a meter a corta-mato, quando o seu
p tocou alguma coisa que no era solo. Era um
chapeado de zinco que comeou logo a vibrar com
tremura estranha. Com seiscentos moscardos, temos
ratoeira! Fugiu com o p e atirou-se para o lado
oposto. Viu ainda uma cabea que se erguia para l
do cho sensibilizado e o cano de metralhadora
tomar posio de fogo.
Voltou estrada, dobrado em dois, manso, manso,
nem bafejando sequer. Logo adiante havia vala
cheia de gua, defendida por uma rodilha
inextricvel de arame farpado. Deitou-se na relva,
sua beira, de barriga para baixo, a estud-la. No
devia ser funda a avaliar pelo clape que produzia a
gua ao atirar-lhe com uma pedra. O arame por sua
vez estava desarticulado e aqui e alm as pontas da
estrepe emergiam da gua. Que fazer? Voltar para
trs, no. Era ir dar nas metralhadoras alems. De
resto, estaria a bater a hora de a postos, e as
trincheiras iam desentranhar-se em balas e
morteiros. Por enquanto, tudo dormia e o silncio
era completo, salvo um ou outro tiro, como o sinal
dos rafeiros quando guardam os currais. O melhor
que havia a fazer era meter-se ao chafurdo, e fosse o
que Deus quisesse. Pois que estava de cabea para a
vala, imprimiu rotao s pernas maneira de
compasso e, quebrado logo o equilbrio do corpo,
deixou-se escorregar.
Experimentou a profundidade a medo; afundiram-
se os ps. As pernas, depois, foram entrando,
entrando Chegou-lhe a gua virilha. Continuou a
descer; atingiu-lhe o umbigo. - Vamos, homem! -
Espicaou-se. Enterrou-se at ao peito. Pareceu-lhe
que topava fundo. Ainda no. Mas agora, mais
afoito, deixou-se cair. A gua subiu-lhe at acima
dos mamilos, mas era bem no lastro. Tirou a boina
da cabea que lhe tinha dado um prisioneiro francs,
e envolvendo a mo comeou a difcil tarefa: desviar
o arame da sua frente. Levou tempo, mas abriu
passagem. J havia luz do dia, contudo no pde
enxergar a outra margem devido ao talude. Apenas
com a cabea de fora, o que lhe dava a segurana de
no ser visto, passou a vala. Agatanhou pela
ribanceira, e deu logo de cara, em sua frente, com
uma seara. Uma leira de trigo, de trigo como na sua
terra, era uma sucursal do paraso e, com
sentimento de desafogo, embrenhou-se por ela
dentro. Onde estava agora?
A alvorada nas trincheiras comeava pavorosa.
Matraqueavam as metralhadoras sem relego, e o
canho troava com vagar, mas sinistra majestade.
No cu, sem que se vissem, zumbiam os avies. L
longe, para trs duma colina buzinavam os strombs
a precaver da nuvem de gs. Jesus, para que servia o
saber dos homens!
O trigal parecia fora da terra maldita. L de raro em
raro, como se algum andasse caa para trs do
campo, soavam tiros espaados. Deixa, no era fcil
darem com ele; ali, sim, podia esperar, agora l onde
o pobre do lisboeta ficara, livra! Sentia mesmo ganas
de acoitar-se, cavar um covil no solo como os
coelhos e deixar-se viver. E comida? Comida, os
bagos do cereal. E ps-se a ripar para o bolso o gro
das espigas, que estavam gradas. Perdeu um pedao
naquilo quando deu f que comeava a arrefecer.
Encharcado at ao pescoo, como no havia de
sentir frio?! O remdio era pr-se a mexer...
explorando o terreno, ou rompendo a seu destino.
As paveias passagem sussurravam brandamente.
Era como na sua terra. E que espigas gordas?
cautela, foi debulhando e enceleirando mais para os
bolsos. Se tivesse de andar a monte muitos dias,
sempre encontraria na boca coisa que roer.
Trituraria o gro nos queixais, e algum sustento
havia de passar ao sangue. Da messe, levantou-se
uma bandada de pardais que o atemorizou. Ento
ainda por ali havia das boas e inofensivas alimrias
de Nosso Senhor?
Subitamente, deu conta que estava a chegar orla
da seara. Rareava j o trigo. Havia no palhedo sinais
de calcadura e foi-se aproximando com todo o
resguardo. A artilharia e a fuzilaria faziam um
banz do fim do mundo. Cruzavam o cu, muito
altos, avies perseguidos por outros avies. Para a
direita, uma coisa, desajeitada e tonta como um
cesto vindimo, subia ao ar e baixava em curva
rodopiando e executando patuscas gambrrias.
Depois um estrondo repercutia at ao centro da
terra, ao passo que um grande espalhafato enchia os
ares. Eram os minewafer alemes; com certeza era
essa porcaria de engenhos. As linhas dos aliados
onde passavam ento?
Com a alma inundada de esperana, olhou todo o
mbito do horizonte. No se sabia orientar. As
ltimas sombras refugiam do solo e da seara. Mas,
fosse nvoa, fosse realidade, teve a impresso de
que estava numa espcie de patamar do mundo.
Aquilo era tal o tejadilho daqueles carros-oficinas
que andam pelas ruas das cidades a consertar os
trolleys. Tremia na mesma como eles. Sim, dali no
podia safar-se. Se se atirasse abaixo era homem ao
mar. Pelo outro lado, to-pouco poderia escapar-se.
Deviam torcer para l as linhas alems. Para trs,
muito menos. Pronto, estava preso no cocuruto da
terra. Para qualquer lado que se virasse, era o
abismo sem fundo. Dali no o tiravam as rezas nem
o bem-querer de Eduarda. L vinha o senhor
Manuelzinho Bezerra, muito crescido no casaco de
ferro, capacete de bico na cabea. Ah, desse fugia a
sete ps. Fugia que o alma de cntaro opunha-se ao
casamento. Mas queria ela e queria ele, tanto
montava fazer-lhe guerra como no. Iam Igreja
receber-se. Eduarda estava toda lir, com um rico
vestido branco, muito oiro ao peito, mas levava
botas de trincheira. Era isso que mais o aborrecia.
Ele pusera sandlias que no faziam mais barulho
que um texugo por um milharal fora. Sempre era
mais decente que as botifarras dela.
Iam casar-se a Cabeo de Vide, mas nunca mais l
chegavam. Vamos depressa! - exclamava o major
Chana, que era o padrinho. Sim, o major era o
padrinho, bem lembrado que fora ele que lhe
salvara a pele. Se no o Lambu - diziam todos -
aquele tanganho tinha ficado a espernear na terra
de ningum. Era agradecido, honra lhe seja feita!
Oh, com a breca, nunca mais acabavam de chegar
igreja! Compreendia agora: os boches no os
queriam deixar passar. Atravessavam-lhes pela
frente redes de arame farpado; valas com gua
choca; ninhos de metralhadoras. Mas ele l ia com
Eduarda pela mo rompendo sempre. Ah, agora era
Eduarda que se queria meter num buraco do
caminho. Como uma rata. - Anda da! instava ele. -
Daqui no dou passo respondia ela com
brusquido. Pronto, no queria ir mais longe, e o
desespero dele era grande. To grande que
acordou...
Que raio de alhos e bogalhos iam na sua cabea?!
Tinham-se-lhe fechado as plpebras um instante, e o
esprito enchera-se-lhe de detritos. Entretanto
rompera a madrugada. Cantavam ali perto os
pssaros, bem embora mais longe rouquejassem as
metralhadoras. Espraiando olhos roda pela terra
que se descobria, despojada das sombras e gases da
bruma, era como se lhe houvessem cado as
cataratas dos olhos. O mundo era outro, o mundo
era novo. To outro que reparou numa escavao de
terra fresca, sua direita, a menos de cem passos. E
um claro sbito, ao mesmo tempo alegria e paz,
iluminou de jacto a sua alma: as linhas dos aliados!
Sem perda dum segundo, irreflectidamente,
caminhou de rastos para l. Era a terra de ningum,
onde mal haviam escapado duas repas de erva
moira e dois cardos rolantes cilindrada dos raids.
Pequenos montculos e os borres negros das covas
assinalavam a rebentao dos morteiros e granadas.
Um sabre e duas tbias, duma brancura ofuscante,
lembravam insgnias herldicas em campo de sable.
distncia de cinco passos, o Lambu ps-se de
joelhos e bateu as palmas:
- Camarade, prisioneiro portugus! Camarade!
Uma cabea ruiva, um momento suspeitosa,
mostrou-se ao parapeito com o cano da
metralhadora ao lado.
- Camarade!
- Yes, camone, yes! - tornava-lhe.
Ia a erguer-se. O bife acenou-lhe energicamente que
se agachasse, fazendo o jeito da metralhadora, ao
ceifar em leque:
- Boche making rttt!
Mas ele j no tinha medo. Podia l ser depois de
atravessar trancos e barrancos, cair rs-vs da
trincheira de salvao!? Avanou, quase corpo
descoberto. O ingls, quando ele chegou ao
parapeito, deitou-lhe a manpula gola e
despachadamente f-lo tombar para cima da
banqueta.
Regressou sua cidade natal no princpio dum
inverno triste e mormaceiro. Caa uma chuvinha
mole e lgida que parecia, menos que molhar,
bezuntar de leo as pedras das caladas e torn-las
languinhentas. Os habitantes de focinho anmico,
cabea para o cho recolhida entre os ombros, mos
nos bolsos a jeito dos ossos dos cotovelos
excrescerem da linha do corpo como cotos de asa,
procuravam em sua lentido ingnita marchar
depressa para debelar o frio.
O Lambu, que vinha de cidades dinmicas e
desenganadas, no obstante a guerra, sentia uma
grande depresso em tudo, como se corpos e almas
andassem combalidos por igual. Que penitncia
secular, ordem de quem e porqu, andava a
cumprir o infeliz povo?
Para que lhe dessem baixa, foroso era que se
dirigisse ao quartel. L estava tudo inalteravelmente
fixo, o mesmo sebo, os mesmos toques de clarim, as
mesmas dragonas mesa de pinho da secretaria, e o
mesmo cabo no caso. Ia glorioso de si, com a farda
nova que lhe dera a Intendncia, pois a outra levara-
a a cramona na fuga de rastos atravs de
quilmetros e quilmetros de linhas inimigas, e a
mscara contra gases, que guardava para memria.
Tinham-no proposto para cruz de guerra, mas como
a insgnia era em geral para os cachapins da base,
desdenharam de lha pregar no peito honrado. Ele
tambm no a reclamou, nem avaliava a
importncia de semelhante trofu. Bastavam-lhe em
sua alma ardente as palavras do general ingls que
viera admir-lo e proferira segundo a verso do
intrprete:
- S um homem couraado com as sete peles do
Diabo e o ardil dum raposo era capaz de tal proeza.
No houve muitas assim.
O cabo batia-lhe no ombro, admirando o seu garbo
viril e desafectado:
- Voltas mais homem, 96. Tambm s uma vergasta
como tu era capaz de fugir das tanazes do boche.
Mas ele passava bem sem cumprimentos, o que
queria era saber novidades. Novidades, bah, tudo
na mesma! Ia-se vivendo: muitas doenas... um
pouco de lazeira... bastantes poucas vergonhas.
- O nosso major Chana?
- O major Chana vive l para a aldeia. Casou...
- Casou? Com geba e tudo, aquele catrapizonga?!
- verdade, casou com uma rapariga, de que podia
ser av, filha dum tal Bezerra...
O Lambu sentiu uma estocada no corao que por
pouco no o lanou a terra. O cabo viu-o
empalidecer:
- Que tens, 96?
- Que tenho? Nada, nada. Ainda no comi hoje... por
l fraqueza.
- Pois so horas de meter alguma coisa no bucho.
Vou contigo...
Abancaram a uma taverna. O Lambu bebia. Bebia,
mal tocando nos pratos.
- L fora, casca-se-lhe, hem? - dizia o cabo.
- At cair sobre o traseiro.
noite encontraram-se de brao dado numa casa
imunda da Rua da Carvoeira. Muito bbado, o
Lambu tanto chorava, como rangia os dentes. E
punha-se com ideias que no lembravam ao Diabo:
- Dizei-me c: ainda haver quadrilhas por essas
falperras? Coisa assim no gnero do Jos do
Telhado?
- No consta. Para que perguntas?
- Quero-me fazer quadrilheiro. Pois no andei a
aprender a matar gente?! Para alguma coisa h-de
servir o que aprendi. Rico emprego, hem?! Arranjo
um trabuco e saio estrada: tio Bezerra, para aqui a
bolsa ou a vida..
Desataram todos s gargalhadas. O Lambu afivelara
um ar facnora, que metia medo.
- No tenho ocupao, vou-me filiar numa
quadrilha do olho vivo. Que quereis que eu faa?
- Homem, deixa-te ficar na tropa! s instrudo, sabes
ler e escrever, daqui a pouco ests furriel.
- No. Fao-me ladro. Fao-me ladro, a menos que
no v para a frica ou Brasil. Queres vir comigo,
casta Susana? Ouvi dizer que se ganhavam l rios de
dinheiro no ofcio de engraxador. Sim, para o raio
dum portugus, j no digo para um branco, mas
para um portugus da trama como c o egas, que
vem da guerra sem cheta, no tem famlia, nem tem
onde cair morto, o ofcio que est indicado
engraxar pretos. Depois de andar a matar nos
alemes, para ficar bem com a conscincia, s isso!
Quem disser que estou a caoar, vou-lhe ao fagote
Meninas, venha vinho! Porque no vem mais
vinho?! Aqui ainda h bilhestres para emborrachar
quantos homens honrados venham a esta santa casa.
Menos Sete
Quando viemos habitar o novo prdio, com um
quintal borda da ribeira, logo reconhecemos a
necessidade de ter um gato. Nos baixos vivia uma
colnia densssima de ratos que, insinuando-se
pelas frinchas ocultas do soalho, saqueavam os
comes e bebes da dispensa e copa, roam o queijo no
aparador, e, mal as luzes se apagavam na sala de
jantar, faziam em cima da mesa toda a espcie de
corridas e gincanas. Ns dvamos conta das suas
gambrrias, fora de ruidosas e deslavadas. Bem
sei que eram destes ratos de focinho gracioso, vivos
como pecados veniais, duma finura de azougue, que
passam onde passa o fumo. Alm de proletrios da
Criao, so uma espcie de divindades maliciosas
da domus. H ratos, ergo, h toda a arsenalizao
humana. Pior que eles eram as ratazanas que tm a
lura rente gua, nadam como castores, alimentam-
se de imundcies, sem que ao seu dente derrancado
escapem pelas capoeiras os coelhos novos e os
frangos invernios a que gostam de sugar o sangue
quente na artria. So mais que nojentas, infestas,
segundo dizia Buffon, pois no h melhores
portadoras do clera.
- Guerra aos ratos, guerra! Venha um bichano!
A Vitorina logo de princpio teve artes de trazer ao
engodo da pinga de leite uma gata meia Angora,
meia malteza, de pelcia parda estriada de branco,
salvo o peitoral duma pureza de neve, rabo em
pluma, ainda que o topete a trair a velha cortes,
pelos jeitos de vadia e esquiva o mais galdria que
se pode imaginar. Atrs dum ousio veio outro,
depois mais e mais, e a gata acabou por tornar-se
visita quotidiana. Familiar, no. Como tinha um
sentimento muito possessivo da liberdade, comia as
sopas, as tripas do peixe, fazia sentada no trao da
porta sobre o posterior a sua toilette, ia dizer, punha
o bton, e ala. A rua com os seus mil acidentes, a
pedrada do garoto, o fraldiqueiro que se encrespa e
arremete, o automvel que passa em furaco, a
peixeira que deixa escorregar uma sardinha da
canastra, era o seu habitat essencial. O mais era
panorama. s vezes encontrava-a pela margem do
rio fora, de scia com outros gatos, caa dos
verdilhes e escrevedeiras, rouxinis e outros
passarinhos que se comprazem das sombras
fluviais, e lembrava-me das minhas desarvoradas
piratarias, ao sair da aula, no tempo dos ninhos. Era
uma gata incorrigivelmente p-leve, moinanta de
corpo e alma.
Mas, embora ns no consegussemos traz-la
prtica e gozo dos morigerados costumes burgueses,
ela que no desdenhou eleger a nossa casa para
Maternidade. Foi na livraria, atrs da dulcido
irradiante do Bernardes, do Arrais e Heitor Pinto
que instalou o seu leito de parturiente. A Vitorina
dera conta do esvaziar do saco e andou uns dias
intrigada sem saber onde. Mas viu-a saltar pela
janela, e l foi dar com a ninhada, seis revolventes,
moles e chiantes almndegas. Depois, a primeira
vez que a me-gata, saudosa da gandaia, foi
espairecer beira do rio, cometeu implacavelmente
o morticnio dos recm-nascidos no balde da casa.
Escapou um, cor de rato, este gnero de negro turco,
que se encontra na paleta cambiando o azul-celeste
com o betume das terras e na pelagem dos
roedores um meio ainda de defesa, e que acertou ser
do sexo forte, pois que a Vitorina como alegava -
no lhe sabia ler o escrito.
Aquele, salvo pela sua mo de morrer na gua, era
um pouco coisa prpria e como tal passou a tutel-
lo.
- Chamem-lhe Moiss!
No pegou o nome de Moiss, mas o mais racional e
imediato, aquele que lhe daria sua madrinha:
Vitorino. Acalentando a me para beneficiar o filho
l lhe ia no leite mais papinhas, mais mimalhos, o
bichano cresceu depressa. Ao fim de trs semanas
jogava a pla como o mais pintado pedibola o
termo para o caso duma exactido realista e sem
par. s quatro semanas caava as sardaniscas e
outras bestiagas nas paredes do quintal e seguia
com olho rbido os requebros das andorinhas no
cu da tarde.
Mas era brusco, torto de carcter e perverso como
um tigre verdadeiro. Ainda a mamar tratava to
pouco respeitosamente a me que tnhamos vontade
de o zurzir. Ela a aparecer, e o demonico a saltar-lhe
em cima como um apache. Arranhava-a; bufava-lhe;
no consentia que dormisse em cima das cadeiras; se
metia o focinho na escudela, logo ele vinha com a
carda no ar, assanhado. No se percebia bem a fonte
daquele asco to agressivo. Que, integrado na boa
moral, sentisse nela uma bardina sem eira nem
beira, e lhe votasse a invencvel repugnncia dum
gato bem? Que o envergonhasse o parentesco,
me ribalda, pai incgnito, o mais provvel um gato
birbanto, aventureiro e cadastrado? Que tivesse em
mira permanecer sozinho no curral, dado o
individualismo de que nascem eivados tais bichos?
Ou finalmente no passaria de brincadeira de felino
esta arisca atitude, beijos mordidos, brincos
beliscados? O certo, certo que tinha o
comportamento clssico do filho desnaturado, a
pedir correccional.
As vezes que arranhava a me, que lhe dava
bofetadas imprevistas, que lhe pulava ao cachao,
que lhe rosnava, no tinham conta. A Vitorina j no
sabia como desculp-lo.
Mas o macanjo cresceu e fez-se uma linda estampa
de gato. Em flexuosidade superava onda. Trepava
s rvores como os esquilos e no acuava diante do
sabujo mais pintado que se marrasse diante dele, de
bocarra aberta, a ladrar carabina. Deixava-lhes
esgotar o repertrio e, ao primeiro descuido, dum
salto punha-se em Frana.
Os pulos em altura que dava, hora que as
andorinhas passam rasteiras a procurar superfcie
do solo os mosquitos que se evoluam, com a
fresquido, das plantas de jardim e dos juncos do
rio, honrariam um acrobata. Projectava-se, no
menos, num galo inconcebvel contra o saltarelo
que se lhe desfechava inopinadamente no nariz com
um barulho e arrastar de asa de velho aeroplano.
Ainda na adolescncia, e j os ratos deixaram de
bailar em cima da mesa da sala de jantar, roda das
laranjas baianas de Setbal, empinocadas no centro
de cristal. E os arganazes do rio procuraram outros
valhacoutos.
No era bicho que apreciasse muito a mo dos amos
a passear-lhe cariciosa pelo lombo. Esses requebros
agradecidos e elctricos dos demais gatos no eram
para a sua espinha. Tinha no sangue, o seu sangue
de plebeu, a indocilidade pouco simptica da me
rascoa e pai matulo. Ao cabo duns tantos afagos,
enchouriava-se. Alm de certa medida, parecer-lhe-
iam abusos; niquices da confiana; blandcias sua
subalternidade. E erguia a manpula com os seus
cinco punhais sacados da banha, ou fleugmtica e
orgulhosamente mudava de poiso.
Cumpria a sua obrigao, Buda de alcova e polcia
muranho, e tolervamos-lhe os assomos de rebelde.
Estes pruridos dos gatos tm de resto a sua graa,
pelo menos at o ponto em que parecem desdenhar
dos donos, vistos na teia dos respeitos sociais. Era
altivo, orgulhoso, misantropo, cheio de si, tudo isto
mergulhado, embora sem fundura, no poo do seu
egosmo.
Rateiro, nebri de saltes, primava tambm como
caador de musaranhos, estes pobres e feios bichos
que vivem da graa de Deus, fazem ninho ao toro
duma couve ou duma simples cenoura, tm um
focinho misto de toupeira e de morcego, quase
doloroso de feio. Marinhava pelas paredes e
limpava-as de osgas, outro no menos feio bicho
que tem o mrito, com a hediondez toda, de comer
no sei quantos milhares de moscas, mosquitos e
moscardos por dia, em suma, verdadeiras bateladas
desses ascorosos insectos sugadores de sangue,
veculos de molstias, alguns que passam a noite a
trombetear em surdina por cima do nosso sono e so
piores que Liberators numa cidade bombardeada.
Sobretudo, oh sobretudo, liquidou a rataria da casa.
Tudo isto por desporto, creio bem, pois que aos
ratos que preava fazia partes, judiarias lhes
chamava a Vitorina, que arrepiavam coiro e cabelo.
A manobra realmente era do mais brbaro e
inquisitorial que se pode conceber. Uma vez filado o
bicharoco, va-mo-lo inerte, dir-se-ia j sem sentidos,
entre as mos cautchutadas do captor, que metera as
adagas na bainha. Subitamente essas mos, de luvas,
descerravam-se. O qu? Que prodgio era esse, pai
da Vida? O rato cometia a fuga. J a entrar para o
buraco salvador, zs, caa-lhe o monstro em cima:
- Ol amigo, quem lhe deu licena?!
Outras vezes jogava-o ao ar, longe, para que o
pobre, uma vez em terra, tivesse a sensao dos
livres espaos em frente de si. Se o deixava largar,
mesmo esconder, com uma patada ia arranc-lo do
esconderijo miserando. E nesse jogo de o deixar
fugir, de lhe incutir o sentimento alternativo de
esperana e desesperana, mais cruel que todas as
desiluses, se comprazia tempos sem fim.
- Nem o Diabo no Inferno! - exclamava a Vitorina. -
Que necessidade tem o alma de cntaro de fazer
estas barbaridades triste alimria!? Isto de criao
no est bem, meu senhor!
- Nem est bem nem mal, Vitorina. Est como est -
respondi ao estilo de Pacheco. - Sabe porque que
ele se entrega a este desfrute com o rato? Para lhe
macerar a carne. No sei, mas a blis deve
extravasar-lhe pelo corpo e torn-lo pitu apetecvel
para gato. A modos de carne de vinha-de-alhos.
- Mas repare que o no come...!
- Se o no come, porque anda farto. Mas procede
aos ritos costumados da imolao.
O Vitorino desenvolveu-se em esbelteza, alor e
fora, e tornou-se um galhardo exemplar da
maltesia. Um dia, vi escoar-se por entre os
malmequeres e redodendros sombras enoveladas e
sedosas; outro dia ouvi renaus-naus magoados para
o canavial. Chegara clida e olorosa a primavera,
sub-quadra de amor para a espcie, e eram as
fmeas aluadas que vinham procura do belo
adolescente.
Primeiro apareceu uma gata toda franduna, com
ares de sabida e lambisqueira; depois outra com um
jeitinho curiosa de menina sonsa, envergonhada;
aquela, matronaa de todo, mas ainda frescal; tais e
tais, novas, peladas, cocottes batidas de olhar
semimorto, que se acocoravam ao fundo da fazenda
como pedintes respeitosos espera de esmola.
O quintal tornou-se um harm. Quem mais
requestado que o meu Vitorino, plo de toupeira,
atleta de rins infatigveis, exmio caador, at ento
imune loucura dos sentidos!?
Como nos tempos da galantaria, quando eram elas
que procuravam o chichisbu, como justo que seja
amanh dada a desproporo numrica dos dois
sexos causadas pelas guerras, as actividades febris,
as tarefas ardorosas e mil aventuras no cu, terra e
mar, tudo ao activo de Ado, eram elas que o
vinham provocar. Primeiro a medo, depois com o
descaro de megeras desatinadas. O Vitorino, que s
tinha s costas haver expulso a me, tornou-se um
noctvago e tunanto. tardinha, encontrava
sempre jeito de pirar-se, por mais diligncias que a
sua madrinha pusesse em ret-lo no aconchego das
almofadas.
Uma noite que conseguiu encarcer-lo, os miados
dele, ora chorosos, ora colricos, os delas splices e
lricos, tornaram o quintal todo, com o rio ao fundo,
o mar mais longe, soluando na praia, uma ilha
sonante, eliseana.
Nos outros dias, por mais que a criada aflautasse a
voz, a enchesse de meiguice e promessas de
carapauzinhos frescos: - Vitorino! Vitorininho!
Bichaninho tonto! - o mariola nem voltava a cabea.
A ttulo de prudncia, escapulia-se de casa com o sol
alto. Que entrasse com as Trindades, como outrora,
j ningum contava. As manhs, sim, de ordinrio
vinha dormi-las no sof da sala de jantar, rolado
como o bicho de conta, o focinho amarfanhado
contra a filaa abdominal, reduzido pela fragalhotice
a uma bola inerte e felpuda, sem frmito nem
sobressalto.
Mas aquele delrio ertico das noites primaveris,
mais surdas e veludosas que sobrecus de leitos
reais, tornara-se-me insuportvel. Ainda a nora
chiava e o jacto da gua caa dos alcatruzes branco e
espelhento como o machado do rachador de
cavacos, e j ele se punha de largo, em regra de
esfinge numa das almcegas. Ali, imvel por mais
tempo, nem um bonzo acocorado na galil do seu
pagode. O burro prosseguia no calvrio, tardo,
mavioso, no raro fazendo cera at que a voz do
hortelo o acicatasse do regadio:
- Ah! ladro, espera l espera, que eu j vou!
Recomeava ento a romaria ao poo, lenta,
dolentemente, sem outra testemunha alm do
Vitorino que prestava ouvido ao murmurejo da linfa
e gostava de sentir, pela certa, cair-lhe em cima o
rociozinho, que rorejava de suas cascatas muito
fresco e voltil. E enquanto o jumento, de olhos
vendados, seguia na ronda custosa e ralaa, imagem
de tudo o que foi, e ser no mundo, ele ali quedava
sonmbulo ou cogitativo. Com o despedir do
abego, surgiam as gatas enamoradas da redondeza.
E comeava o sortidssimo sarau com rias de
prima-dona, duetos, e doces ronds, musicados
Pergolesi. O meu gato era o dolo vivo, o objecto
sagrado de todas aquelas oblatas de amor, expresso
em semifusas patticas e gemebundas.
Primeiro, a esfinge mantinha-se impassvel no
pedestal. S depois de queimado muito incenso e
esgotado o ofertrio, se dignava descer terra.
Antes havia de adensar-se a noite que os gatos
aproveitam para os seus sacrifcios nupciais.
Com estrelas ou luz do quarto, um quarto no
maior que seitoira, que eles gostam de celebrar
seus mistrios, como em Eleusis. Ao contrrio do
co, que no sabe o que vergonha, o gato um
bicho cheio de pudor e recato. No gosta, pelo
menos, que os outros bichos o observem nas suas
prticas galantes. A presena do homem quase lhe
inibitria. Por isso o Vitorino aguardava que o asno
fosse desamarrado da nora e o abego tropeasse no
limiar da choupana a desensocar os tamancos, para
ele se decidir por esta ou aquela odalisca. Mas,
quando soava essa hora, o sarambeque, fora de
gritos histricos, gemidos de insuspeito gozo, ralhos
e quebrantos, lembrava-me uma daquelas
orquestras super-selvagens de Nova Iorque
despejando para o ter suas rumbas e swings.
O diabo que aqueles saturnais no me deixavam
dormir; pior ainda, no me deixavam trabalhar.
Mandava a criada enxot-los a pau, a pedra,
lamentando no dispor como os policemen
americanos de agulhetas com gua fervente. Eu
prprio descia lapidao. Debalde. Os libertinos
contentavam-se em mudar apenas o arraial.
O Vitorino, rendido sina da sua m
hereditariedade, dera em birbante e tranca-ruas.
Surpreendi-o uma das vezes em luta com um
entremetidio; p-lo fora de combate foi um breve
passe de armas. Mas no era a sua fereza que me
incomodava. O que eu no queria era sacrificar-lhe a
minha adorvel quietude de serto, que me permitia
ouvir ranger o aparo no papel, sentir o eu a pulsar,
brando e insulado como o relgio na mesa de
cabeceira.
Pronto, chamou-se o operador sinistro. Uma
daquelas manhs mornas e sossegadas, apanhou-se
o gatarro a dormir descuidoso no div. Com gesto
hbil o homem negro sepultou o bicho dentro dum
saco, cabea para baixo. E, em trs tempos, com uma
lanceta de sangrador, suprimiu-lhe as fontes da
vida.
O Vitorino deu um galo, e foi meter-se na copa. Vi-
o a olhar para ns, mais espantado do que dorido,
com olhos de gua choca, olhos to estranhamente
turvos de desespero, sofrimento, fins do mundo,
que s isso me fez arrepender da brbara mutilao
concedida minha comodidade. Teria o animal
percebido tudo?!
Tornou-se um tipo anafadssimo, gorducho e
egosta, como aquele Madeira de Pedro, o Cru, de
que reza Ferno Lopes. E, se mau era, mais mau
ficou.
No deixava tocar no dorso, fosse a quem fosse.
Passava a vida a rezar, ou assim parecia, de joelhos
em cima duma cadeira, olhos com uma frestazinha
pequena a dizer que muito se iludia quem o julgasse
desamodorrado. Em verdade rezava, meditava ou
deixava apenas seguir livre curso sua vida
vegetativa?
Somente sabia ronronar, roar-se pelas pernas
flectido em aduela, rabo em vrgula ou em mastro,
quando queria comer. Era evidente que tinha
refinado no seu fundo atvico de hipocrisia. Sim,
mais hipcrita s um devoto profissional. De raro
em raro, tomava-se de certas ressurgentes
veleidades, e saa a terreiro. Uma vez ou outra corria
atrs duma fralda, mas breve, porque se
desenganasse, o vamos regressar a passo quadrado,
certo, de operrio que deu a jorna. Os do seu sexo
que ele corria implacavelmente do quintal, soltando
renaus-naus abaritonados, que ecoavam imperativos
como de guarda de serralho.
A sua ocupao, sobretudo, era dormir. Dormia
como as esferas nas pirmides das igrejas. A dormir
fez-se gordo como um nababo. No era o gato dum
escritor, era o gato dum banqueiro, endinheirado,
rechonchudo, inglorioso, feio de redondo, imune
mais pintada bicha solitria a roer a sua bola de
sebo. O pior do pior que pactuou com os ratos, ou
assim se me afigurou. Os ratos danavam-lhe
debaixo do nariz? Coitadinhos, deix-los danar! As
ratazanas vinham do rio e levavam os laparotos
ainda de mama? Eram umas infelizes da maleita que
tinham fome. Vingava-se como estes eunucos de
Bisncio que acabavam sempre por fazer uma
revoluo ou levantar o punhal contra o seu senhor.
- Que prstimo tem afinal este emplastro de carne e
pele de coelho do monte, no me saber dizer,
Vitorina?
Eu formulava a interrogao malvola, mas no
fundo tinha-lhe apego. Tinha-lhe o amor do faquir
esttua de Brama, do fel esfinge do Deserto, se
tudo isso no era mais que o remorso de haver
sacrificado ao meu gosto de silncio e de paz a
virilidade do belo bicho. E por nada deste mundo
aceitaria que se cometesse nova violncia contra o
infeliz. Mas a criada que no o entendeu assim.
Um dia parou porta a camionete militar de Caxias,
a rogo do seu patrcio e namorado. A Vitorina,
depois de muito relambrio, muito festa para festa,
passou-lhe dentro dum cesto o anafadssimo
Vitorino. O magala foi abri-lo na Praa da Ribeira,
falanstrio dos gatos.
Se lei que a natureza tem horror ao vcuo, tambm
eu poderei dizer com segurana de Salomo: o meu
quintal tem horror ao vcuo amoroso. Aqum da
sua vedao de miporos e da sua parede velha de
azinhaga, foroso , como propunha Santo
Agostinho, amar e ser amado: os gatos, as aves, as
pessoas.
Quedam imunes os donos porque atravessaram h
muito a zona equatorial. Mas a Vitorina, essa, vai no
sexto namoro: dois magalas, um moo de padeiro, o
leitor da gua, o beleguim do mercado negro. Na
boa quadra, os pardais caem da pimenteira, em que
se debicam, de cambulhada aos trs e quatro, e
continuam no solo, engrifados e frenticos, sua
refrega afrodisaca. Neste estado de exaltao,
deixam-se pegar como anjinhos.
O prprio mundo vegetal participa desta luxuriao
ertica. Ao mais pequeno descuido as ervas
parasitas absorvem o plantio. A juna multiplica-se
mais tentacularmente que Abrao. V que por sua
vez, as plantas teis assumem propores dignas,
balofas de vio. As favas, ainda com o rabo de
raposa enroscado na raiz, reproduzem-se em cinco
ou seis caules. Os tomates parecem beringelas e as
beringelas monstruosos odres dos tempos dos
almocreves.
Foi-se o Vitorino e pouco tempo esteve devoluto o
lugar. Da mesma maneira que no se compreende o
Nilo sem crocodilos, o meu quintal sem gatos no
teria significao beira do corgo, com passarinhos
loucos pelas rama-lheiras, ratazanas nos pegos, a
aragem ora salitrosa, ora clida que lhe vem do mar
e do agro saloio, sem falar na sua situao de
enclave quanto ao casario do arrabalde. De facto,
surgiu uma gata, trs cores, que parecia ter-se
evadido dum carto de Steinlen. Era magra dos
flancos, coleativa, langorosa, nariz de ncar puro,
picante, arreganhadita, tipo da fausse-maigre, a
loucura dos machos que se entendem. a avaliar
pelas vazias e o jeito de farejar, deveria ter fome.
Quanto a idade, pbere.
Vitorina avanou com a consabida gota de leite do
suborno. No se fez rogada, tratando-se, como a
pinta inculcava, destes seres para quem tudo na
existncia a aventura. Bebeu o leite sem relutncia,
lambeu-lhe o beio, e quedou diante de ns,
assentada sobre o traseiro, com uma das mos no ar,
em cuja polpa ia pondo uma suspeita de saliva, a
fazer uma toilette sumria.
No foi preciso mais. Filha das ervas, batida, aceitou
a hospitalidade sem o mais leve rebuo. Baptizou-a
o pequeno do caseiro - no sei porqu - Meni-meni.
Digo que este Meni-meni foi tirado, por sugesto
onomatopaica, s estrelas do cinema ou s
misteriosas divindades da ndia, de nome assim
requebrado como os tigres da sua jungle, mas no o
juro.
Em poucos dias, a nova pupila revelou-se uma
serigaita perfeita, com lume no sangue, lume nos
olhos doirados, caprichos to inverosmeis como a
sua inteligncia era pavorosa. Sabia destapar uma
caoila e arpoar o petisco melhor que o mais ladino
dos pickpockets. Quando a Vitorina fritava o
carapau, julgava-se com direito s primcias como
uma antiga donatria. Havia de achar sempre modo
de iludir a vigilncia da moa e, enquanto ela com o
garfo virava a nova forjicada, zape, l ia o mais
gordo e tostadinho.
- Nem o prestidigitador que esteve no Coliseu! -
exclamava a cozinheira, que tem a moina toda da
capital.
Com estas taras, que revelavam a sua baixa
educao, se no a m ndole, a Meni-meni era de
inexcedvel meiguice com as pessoas da casa. A
Vitorina fechava os olhos aos rapinanos,
conquistada pelas marradinhas dengosas que lhe
dava no rosto, se se chegava a ela, ou no
patriotismo, que era amplo e aprecivel, quando
mesa da copa limpava os talheres. Seguia o pequeno
do caseiro como uma cachorrinha. Ia dizer, votava-
lhe um afecto vigilante e acrisolado. Uma vez que
houve jeitos de se despenhar da figueira em que
andava aos figos, ela como que tendo rebate do
lance marinhou a toda a pressa pelo tronco acima no
intuito, parecia, de lhe acudir. E os seus sortilgios?
Igual meiguice com que se roava s pernas da
gente s a ondulao subtil de que se possua a sua
espinha, ao passearem-lhe pelo cerro uma mo
veludosa. Todos os seus movimentos vinham
impregnados do ritmo da graa, conducentes em
ltima anlise seduo e voluptuosidade. Por
essas virtudes no raras, mas nela singularmente
esquisitas, perdoava-se-lhe ser lambisqueira como
dez freiras de Odivelas.
O pior que chegou o Janeiro e escancarou-se neste
bicho todo o seu impossvel ser. A trs quartos do
Inverno, os gatos pressentem na onda de claridade,
mais cheia, que vem do Nascente, a quadra do
Renovamento. As noites de grande luar prateado,
como praias de embarque para Citera, convidam-
nos ao amor. ao seu gosto de recato e de silncio,
mesmo sua algidez de maneiras, agrada a
incomparvel serenidade que o cu reveste por estas
alturas. At ns, os humanos, olhando para as
estrelas, brilhando no fundo dos abismos espaciais,
esquecemos que moramos num ptio gradeado. O
esprito solta-se e, quando no se solta mas sente as
cadeias que o prendem, no h na Urnia de
Flammarion voos que no tente. Evadir-se assim a
gente ainda reconforto. Os gatos, de certo, no
olham para Altair, mas no est averiguado que no
recebem no sangue o influxo da sua luz branca, e
que nas sonoridades do luar, em suspenso, no
leiam a mensagem antecipada da Primavera.
gestao da prole convm, mais do que qualquer
outro, este perodo intermdio, de modo a que caia a
paridura nos dias assoalhados. Deste modo se
combina a poesia das noites de Janeiro, amplas e
religiosas como catedrais, com a economia
necessria da espcie. E ainda a concluso que se
recomenda nossa humildade que as criaturas
obedecem a leis irremissveis, e as suas veleidades e
caprichos no passam de gotas insignificativas em
relao ao esturio para que vo defluindo.
A Meni-meni, corria o ms de Janeiro, perdera o
apetite e em seus olhos doirados a bolinha de lume
refulgia mais buliosa do que nunca. Ao mesmo
tempo, considerava-nos com uma indiferena, que
parecia desafeio. Se porfivamos em forar esta
indiferena, o seu olhar tornava-se malfico.
Uma noite, guiado no sei por que sentido
transcendental, um gato veio lanar porta, tal
santo e senha, dois miaus atridos, quase dolorosos.
Foi to de passagem que nem conseguimos
apercebermo-nos do menestrel.
Ela respondeu baixinho e cavidosa, maneira de
donzela em convento. Mas foi como um ai que
tremeluziu e se desvaneceu. Quem o soltou?
No dia seguinte, o entremez tomou corpo. O bardo
foi postar-se a uns dez passos da casa e de l ergueu
um apelo queixoso e demorado, com sncopes
breves, em que palpitava um grande frmito de
exultao e pena. Sim, o amor, antes que seja uma
grata satisfao, representa o cumprimento duma
necessidade cruel.
A Meni-meni saltou da almofada, em que
dormitava, para o peitoril da janela, e de l
entabulou com o apaixonado um sostenido
colquio. Foi o primeiro contacto. Que se disseram?
Ns, que sabemos um ror de lnguas mortas e vivas,
no traduzimos ainda a gama snica dos animais
que dispem duma glote modulada e vria.
Contentamo-nos com as explicaes que se oferecem
nossa instintiva compreenso.
O que sei que na tarde imediata a Meni-meni
sumiu-se pela porta de servio, ao abrir-se ao
homem da gua de Caneas, e esse dia no voltou
mais a casa. Vimos uma vaga fmbria de estamparia
tricrmica pelo telhado, ao lusco-fusco, que podia
tomar-se pelo seu saiote. Por volta das onze horas,
quando o stio soobrava em paz morta, comeou o
concerto da gatarrada. Eram muitas vozes,
melfluas, gementes, irosas, deseperadas, indcio de
que se tratava entre os calondros do quintal um
repenicadssimo torneio de amor. Estava a noite
sobre o escuro, a atmosfera tal qual gua-tinta
violeta que enfeita a pana duma taa de majlica.
De qualquer canteiro de junquilhos a brisa
levantava um rescendor spido e penetrante. As
favas que tinham a altura de palmo, as couves
portuguesas de bom porte, e as sombras projectadas
das laranjeiras e limoeiros, no deixavam ver os
mantenedores, mas pela variao musical se poderia
avaliar da concorrncia e desenvolvimento das
justas. Em casa ningum conseguiu fechar olho.
Quando veio a manh, baa mas enxuta, divismos
a Meni-meni deitada na terra do faval, meio
sonolenta, e os seus idlatras em torno. A Vitorina
benzeu-se. Tinham feito um largo e
prejudicialssimo espojadoiro no terreno, que lhe
fora campo de batalha, no se vendo uma s couve
direita em muitos metros roda. E, soprados no
vento, ou agarrados s asperezas do cho, viam-se
fiapos de plo de todos os matizes, mechas,
guedelhas, trofus de guerra.
Eu conhecia alguns daqueles bichos pelas incurses
que faziam no quintal, seguidos algumas vezes das
suas donas que apaparicavam no tareco, umas, o
seu tirano, outras, o seu nico ai-jesus, aquelas, at o
seu utilitrio caador. Um era o Nhoca, vizinho do
lado de l do prdio, amarelo e rotundo, quase um
velo de oiro, que nos era familiar. Na quadra do cio,
era um tuno de alto l com ele. Ouvia-se pela noite
dentro a voz suspirosa da velha beata, com o seu eco
de senzala e serto:
- Nhoca! Nhoquinha!
Outro era o Meia-noite, todo de azeviche, apenas
com uma guedelha arruivada no lombo, que tanto
poderia representar uma singularidade capilar como
a sombra duma casquelhice de suas donas
oxigenadas. Era ainda novo e comeava a dar que
falar. A palheta de oiro na sua pupila era como uma
caravela, batida de sol, a singrar num mar azul.
Um terceiro chamava-se Cortadillo e tinha a sua
histria. Era um gato de pelagem compsita,
leopardo na cauda e no pescoo, mesclado do
tronco, cabea imponente de deus pnico. De gnio
tudo o que h de mais rebolo. No primeiro andar
do seu prdio vivia uma gata francesa, branca,
sedosa, farfalhuda, sempre lavada e escovada, a
feder a gua de Colnia: Ninon. Usava um lao
vermelho ao pescoo e em elegncia, dengue,
arrebique de maneiras, era tudo o que h de mais
precioso. Pois o Cortadillo teve artes de se insinuar
no nimo da delambida e seduzi-la. Com pasmo da
ama, que esperava uma ninhada de prncipes, a
Ninon botou ao mundo seis gatorros ordinrios, que
eram o pai escarrado. Da o corte de relaes entre
as respectivas donas depois de virulento bate-
lngua.
- Imagine o amigo - contou-nos o senhor Ramos, que
tem as suas letras - a Lucrcia, para evitar ralhos e
despiques, deu o gato para Cai-gua a uma gente
nossa conhecida, tipo de bons burgueses, ricaos e
sem filhos, que se queixavam de que os ratos lhes
comiam as orelhas. O Cortadillo, rateiro de marca,
estava na conta. Aqui para ns, no foi sem lgrimas
que a Lucrcia se resignou a desfazer-se dele.
Tambm a mim me custou. Que quer o amigo? Um
gato e de modo geral qualquer bicho de estimao
acabam por tornar-se, como o cigarro e o caf, um
vcio indispensvel. Vcios do nosso amor.
Honestamente se confessou aos bons burgueses que
o nome de Cortadillo representava uma
homenagem ao grande Cervantes que tirara de sua
fantasia este gatuno audaz e azougado. Foi asneira,
no h dvida, mas fizemo-lo por escrpulo, no
fossem eles tom-lo por algum vulto do Flos
Sanctorum e dar o cavaco quando o soubessem,
tanto mais que se tratava de marido e mulher tudo o
que h de mais suspicaz e recatado, ele sempre de
culos pretos e capachinho, ela o tipo clssico da
Salvation Army, que se haviam consagrado
Virgem e eram felizes. Agora, deixe-me que lhe
diga. O gato no merecia o ominoso do nome. Era
um frascrio de primeira, l isso era, mas gatuno de
modo algum. Acabava o ms de Janeiro, magro,
escanelado, a cair da boca aos ces. Mas que tinha l
isso? manifesto que o amor esvazia esta casta de
bichos como uma bola de football. Do-se todos,
gozam como poucos bichos na escala zoolgica,
basta ouvir-lhe o lamento vibrantssimo no instante
crucial, mas ficam reduzidos a pele e osso. Pagam
caro o tributo voluptuosidade. Mas, como lhe ia
contando, o gato foi para Cai-gua e, veja o
desconchavo, os meus burgueses ignaros
comearam por cometer a injria literria de o
crismar de Cortadillo para Bichano. Bichano,
palavra insignificativa, impessoal, e epicena como a
cara deles! Depois, como amigo feles no abdicava
de suas virtudes msculas e ficava logo no ar se
ouvia uma fmea miar na rua, de el-rei porque era
um rufia. Para encurtar, a pginas tantas os grandes
tartufos encafuaram o animal num cabaz e
devolveram-no. Limitei-me a dizer-lhes:
- Queriam o gato ajoelhado ao lado a rezar o tero,
no era!? Ainda l no chegmos!
O Cortadillo ocupava na lia um lugar muito
chegado Meni-meni, incapaz por ndole e
coerncia dum papel subalterno. Ou favorito ou
reptador.
Espraindo os olhos at o mais fundo do proscnio,
viam-se ainda outros gatos. Eram de todas as cores e
classes, desde o gato amarelo, cor de barro, dir-se-ia
feito de encomenda para figurar decorativamente
numa sala de jantar, mogno ou carvalho, ao gato
branco, plo escovinha, com manchas vagas do
abastardamento. No faltava o gato do poeta, magro
e triste, alimentado a espinhas ou ratos, o que a
suprema abjeco, ao gato perna-marota, que
perdera a gmbia debaixo do comboio da Linha de
Cascais e arrastava pelo bairro seu andar, aos
pulinhos, de canguru. Entre os inominados, frente
de todos, interceptando o horizonte o Cortadillo,
estava uma estampa curiosa de felino, exemplar de
pura maltesia. Era na pinta e no raiado, salvo o
tamanho, o perfeito tigre real. Tinha igualmente uns
olhos glaucos que assestava em ns com
interrogativo furor. Alto, cabea macia, estirado de
membros, quando marchava fazia-o num passo
verdadeiramente nobre, o que verificmos ao
acercar-se da Meni-meni e que, sobranceiro
demais gatarrada, ergueu sobre ela as duas mos.
Pelo que informava Vitorina, foi este o primeiro que
acudiu aos eflvios da fmea aluada e que desde a
vspera lhe fazia corte ardente e porfiosa.
Esta bicharada, quieta mas rolando suas
antecipaes por detrs dos olhos semicerrados,
ocupava, tal um acampamento, o cho das favas.
Mas, como era cho de cultivo, que Vitorina, em seu
nimo de camponesa, no podia ver calcado, alto l.
Chamou a Meni-meni. E como ela no lhe
obedecesse, carregou-se de pedras e lapidou-os com
denodo. Eles meteram pela cevada, foram
restolhando pelo couval fora sem grande pressa
nem pnico, e trasladaram, pouco mais ou menos
pela mesma ordem, sua lia para mais longe.
Como danarina a que chegasse a hora de exibir o
bailado, anaando no ar vus de muitas cores, ao
ritmo cadenciado de passes graciosos e piruetas
ligeiras, a Meni-meni encetou as suas partes gagas.
No focinho dos gals, provocando uns e negaceando
com outros, rebolando-se por terra faceira e
aliciadora, ali se desentranhou em gaifonas e
momices. Aps a exibio, parou como estonteada.
Os gatos, de jarrete flectido pronto a formar salto,
esperavam. Ela ento soltou um gemido lnguido,
derramado, que foi como o sinal aos mantenedores.
Primeiro que nenhum outro, o gato tigrado
respondeu com uma splica, aproximando-se.
Mas j em passo de desafio, pescoo esticado, dorso
rectilneo, o Cortadillo se abeirava. P aqui, p ali,
proferia ao mesmo tempo renaus-naus
vibrantssimos. O Nhoca, o Meia-noite, o Papo-seco,
de rabo no ar, como paveses de guerra, acudiam a
declarar sua beligerncia. O grande gato malts
soltou um assopro terrvel e projectou-se. Estava
travada a luta. Durante minutos, ora debaixo, ora de
cima, regougando uma raiva mortal e bufando, se
digladiaram os dois rivais. Entretanto a Meni-meni
fazia simulacro de no assistir batalha, entregue a
faceciosas cambalhotas na arada. Quando se
apartaram, cambaleando, ambos os justadores
miavam queixosos e de certo feridos. Que queriam
eles dizer em sua voz conturbada? Que o amor era
para eles uma difcil e crua prova, que ia prosseguir.
De facto o Nhoca investia por sua vez contra o
grande malts. E o duelo arrastou-se no menos
derrancado e turbulento. A Meni-meni, assim o
entendiam, pertenceria ao mais forte, se no ao mais
belo. Pertenceria quele que soubesse melhor
exprimir o seu desejo e melhor o defendesse em
campo aberto, talvez ainda quele que exalasse o
odor que correspondia sua sensibilidade. E por
todo aquele dia fusco, ora na margem do rio, ora na
terra lavrada do quintal, os gatos se bateram.
Ela, dirigindo-se ora a um, ora a outro, aulava-os
com suas fosquinhas e caprichosas distines. E
tanto se contorcia, virando-se e revirando-se sobre o
ventre, como deitava a correr, toda espalha-brasas,
desnorteando os galanteadores.
A Meni-meni acabou por se render ao gato malts.
A todos eles superara no vigor de rins e graas
esgrima to rpida como decidida de suas garras
afiadas. Tambm nenhum lanava apelos mais
prometedores de luxria e fortaleza.
Quatro dias e quatro noites o par delirou de
voluptuosidade, uma voluptuosidade cantada,
chorada, gemida, com o acompanhamento a muitas
vozes dos outros gatos, presentes aos esponsais. A
Vitorina andava com uma vassoira no ar, tal uma
fria de manicmio congestionada de clera, a
escorra-los. Deixou apanhar bispo ao guisado e
subir o leite no se sabe quantas vezes. Cometeu
outras avarias de marca. Em casa, no havia
maneira de se conciliar o sono.
Por minha parte era-me impossvel concentrar o
esprito na elaborao do discurso que destinava
Academia em homenagem a um recipendirio.
Propunha-me - santa ingenuidade - justiar a
literatura mestia maneira de Vtor Hugo no
Cromwel. Desej-lo-ia por isso temperado do
vernculo de Vieira e com o contedo subtil e
devastador das palavras de Antnio, ao povo, no
Jlio Csar de Shakespeare. E, relendo as minhas
duas copiosas laudas, pareceu-me ouvir sinos
rachados.
Na manh do quarto dia, depois de uma hora de
quebranto, recomeou o entremez mavioso a curta
distncia da casa. A gata chorava em surdina, doce,
docemente, toda ela estirada debaixo do arco
flexvel e percussor do malts. Depois, na sonatina
nupcial repicava com imprevista fuga uma diatnica
to lancinante como apaixonada.
A sopeira foi a toda a pressa com uma panela de
gua que, mal arremessada, se escaqueirou fora do
alvo. Mesmo assim desviaram-se para a horta, onde
com brandos tagats se preparavam para reatar.
- No deixam l chegar! - exclamava Vitorina entre
srdidas gargalhadas.
- Ai, ele assim!? - proferi enervado e com o mau
humor dum tirano de quem zombam
sistematicamente.
Peguei da espingarda e no consumi muito tempo a
encontrar o malts bem a jeito por detrs do ponto
de mira. Desfechei.
O gatarro deu um salto prodigioso e em silncio
pulou a parede para o lado do rio. A Meni-meni,
interdita um tempo de nada, foi emps.
Contou Vitorina, que dava uma volta na ponta da
unha para no perder o desenlace, que dois dias
esteve o malts a agonizar entre as merugens e o
juncal. Os gatos tm sete flegos e quele, taludo e
reforado, custava-lhe a morrer. Aqui e alm,
encarrapitados em bola por cima do muro, os
demais assistiram. A Meni-meni, ao v-lo inerte,
tocava-o com a pata. Velou-o um dia, dois dias. As
guas vivas da preia-mar, lufando rio acima,
incharam a veia. O refluxo, como uma misericrdia,
arrastou o cadver para o Tejo.
A Meni-meni nunca mais voltou a casa. Encontrei-a
tempos depois porta duma taverna a pentear-se ao
sol, na companhia dum carocho lazarento como ela.
Fingiu que me no conhecia.
Como era da natureza do quintalejo chamar esta
casta de bichos, to antiptica em ltima anlise
como original, dei ordens terminantes criada:
- Corra-me com quantos gatos apaream. Ouviu
bem?!
- O meu senhor nunca gostou de gatos. Se gostasse,
que lhe importava l a vida deles?..
- Importa-me o meu ripano e basta.
- Por isso mesmo. Matou o maltesinho, queira Deus
no lhe ande a vida sete anos para trs!
- Se ele isso, Vitorina, deixe entrar os bichos todos!
Remontar de quando em quando o rio de Cronos,
poder fechar na cara dos patifes as cancelas que em
boa f deixmos abertas para a nossa intimidade,
libar segunda vez a dulcido de certas taas, quem
no mataria o mandarim, quanto mais um gato
malts?!
Fereza
quela data, era ermito de Nossa Senhora da
Penhavouga um homenzinho j entrado nos anos,
baixo, redondete, que, aos olhos dos peregrinos,
pareceu brotar como a flor da esteva ou o musgo da
fraga, ali com alvura e pujana estranhas, por obra e
virtude do solo miraculoso. O antecessor fora
encontrado, depois de insepulto todo um longo
Inverno, to ressequido e pergaminhado, que pode
conduzi-lo cabea para o cemitrio do Castelo,
num caixo de anjinho, uma mooila da Barroca. E
apenas o seu estado de diafaneidade preservou o
corpo, dizia-se, de exalar o cheiro de mortulho que,
no meio do ermo, levaria os bichos bravos, em trs
tempos, a fazer dele um pastel.
O novo ermito, quando estropeou na Penha a
primeira aldeia a cumprir de cruz alada o voto que
vinha de tempos imemoriais, deu respostas que
satisfizeram a toda a gente.
- Chamo-me o irmo Simplcio, e mandou-me para
aqui Frei Jos, da Lapa.
- Muito que viva! Esteve ento no Convento da
Fraga com ele?
- Somos ambos egressos. Mas eu sou leigo e ele
padre.
Possua uma bela barba branca, fluvial, sem cujo
atavio, de resto, no era o perfeito ermito, uma
vozinha em falsete, entre infantil e feminina, e mos
que, pela pequenez, pareciam talhadas antes para
fazer renda do que para mandar a sachola. E, de
facto, nunca mais se viu a couve troncha desorelhar-
se no cerradinho, e muito menos aqueles repolhos
que desatavam a crescer, como a r da fbula, na
febre de se porem a par com o tamanho dos
penedos, que todos no stio eram descomunais.
Primeiro, tomaram posse do agro as malvas e os
cardos, e ali vicejaram com soberbia inconcebvel at
a altura em que o vento do Outono soprou para l
com a semente da urze e do sargao. Quando a serra
renovou o seu manto, tornou-se aquilo um matagal
fechado.
O irmo Simplcio deixava a natureza sua rdea
solta. J no era pouco, alquebrado de foras, as
costas em aduela, ir com uma lenta chamia de
giesta tirar as teias de aranha nos altares e varrer o
cho. A sua principal tarefa, no falando do rezar,
era deixar-se viver. E deixava-se viver como um
lagarto daquelas brenhas, estirado ao soalheiro nos
meses frios, sombra nos dias caniculares, sem
dispndio do msculo, ergo com pouco cibo. As
esmolas sempre iam pingando com que, embora
raoado de seco, entreter a mquina. E l diz o
anexim serrano: boa vida meia mantena.
Que havia ele de fazer, de resto, quando roda tudo
era peste, fome e guerra?! Os homens chacinavam-se
uns aos outros, sem saber bem porqu, e faziam-no
aos vivas a El-rei, uns, Carta, outros. Simplcio era
desprovido de ideais to abnegados. Afagava o
linho das barbaas e via correr as nuvens. Outras
vezes punha-se a ouvir cantar os melros e dava
graas ao Criador. Em modelar todo este ripano
nas vinte e quatro horas consistia a sua arte de
ermito. Que ganhava ele, o mundo ou Deus, se em
vez desta regra benigna passasse o tempo a engrolar
padre-nossos ou esfarrapasse os joelhos roda do
santurio?
Ora uma noite de Dezembro, com o Vouga
entumecido a pular de rocha em rocha num
estardalhao de inferno, ventania e chuvaceiros a
varrer furiosamente a terra, ouviu bater porta.
Batiam to de rijo, que o servo de Nosso Senhor deu
um pulo na enxerga. E nem se perguntou se
atravessava as alpodras dalgum mau pesadelo ou se
estava com os cinco sentidos despertos.
- Abra! - secundou uma voz que, pela intimativa,
dava a entender que no admitia nem delongas nem
rplica.
Cingiu o bom barbaanas o cordo sobre a tnica de
burel e avanou o mais rpido que os anos lhe
consentiam para a tranca. Era um bando de gente
armada, negra e truculenta, que empurrou a porta e
entrou de roldo. Pelo recortar dos vultos contra o
estanho do cu e certos luze-luzes e jeitos, percebeu
Simplcio que conduziam um homem numas andas.
- Santinho, trazemos-lhe aqui este homem para lhe
ministrar a confisso. Avie-se l, que pode acontecer
no ter corda para muito tempo.
- Confessava, ora se no confessava, pudesse eu! -
respondeu Simplcio com suavidade. - No posso,
nunca recebi ordens de sacerdote. Que se entregue
nas mos de Deus: Ele ouve-o.
- Diabos te carreguem, alma de cntaro velho, ento
tu no eras frade de S. Francisco?
- Era, mas nunca passei de irmo leigo.
Os guerrilheiros trocaram seus pareceres e
arrazoado, mais spera e descompassadamente que
o choque das reiunas. E um, provavelmente o
cabecilha, proferiu:
- Vamos deixar este homem tua guarda. Agora
ouve, tu respondes pelo que lhe suceder. Est ferido.
Se o tratares to bem que fique sarado, ganhas uma
bolsa com cem pintos.
- Para que me serve o dinheiro?!
- Para que te serve? No tens amigas? Ento, olha,
quando tivermos vindimado os chamorros,
fazemos-te bispo.
- J vos disse que no recebi ordens...
- Queres tu uma coisa?... Vais para bedel da S de
Lamego. Repara, papinho farto, fato de veludo,
basto em punho...? Ests a ver-te, hem?
- E se o ferido expirar? atalhou Simplcio.
- Se o ferido expirar, ds-lhe sepultura, que remdio!
Mas no deixes de lhe rezar um trintrio, que Deus e
o rei no tinham melhor servidor. Esperemos que
escape...
- Livrete Deus de lhe fazeres a cova no meio do
monte, como para um constitucional - rosnou uma
voz aguardentada. - Enterra-o no cho da capelinha.
Nem lhe deram tempo de responder. De
escantilho, como chegaram, assim desapareceram
no escuro, entre as bisarmas assombradas do
penedal.
O ermita, quando a algazarra da malta soobrou no
cacho repicado do rio, acendeu um fachoco de
queirozes e, chama que se elevou, descobriu os
olhos do homem fitos nele. A boca entreabria-se-lhe
tambm no rictus de quem vai falar.
Simplcio abeirou-se e deu conta que os olhos, que
se lhe afiguravam focados nele, eram janelas
absortas por onde se coava para o mundo a lividez
estagnada da noite eterna. Do mesmo modo, os
lbios haviam deixado passar o ltimo anlito como
regueira onde secou a linfa. Era cadver.
Simplcio, a quem j nada espantava no Vale de
Lgrimas, no se impressionou sobremaneira com a
presena do defunto e muito menos com os
possveis sobressaltos da sua alma, em bolandas das
portas do Cu para as do Inferno. Que sabia ele
daquele macabeu? Que lhe importava o que fora o
seu trnsito at se reduzir a saco de esterco e gases
ftidos? O problema, nico para si, estava em
desquitar-se dele.
Mas como era problema de magnitude para ralar o
juzo dum doutor, ps mais acendalhas, e aos
revrberos observou que se tratava dum sujeito de
meia idade, hercleo, de peito abaulado e ombros
largos, estes homenzarres que dariam dois,
serrados ao meio. Mau grado que assim fosse! Como
remover to ponderoso empecilho? Enterr-lo na
capela no podia, por causa do cho que era de
ljea. E na horta? Teria ele alento para abrir uma
cova, de vara pelo menos, fora de biceps, uma
vez que no podia contar que os lees - e quem diz
lees diz os lobos da fauna local - sassem das
brenhas a cavar-lhe a sepultura, como faziam com
os anacoretas da Tebaida?! No era merecedor,
pelos seus pecados, de to grande fineza de Deus.
Assim pensando, lembrou-se que h muito no
punha a vista em cima da enxada, a afanosa
enxadinha do seu predecessor, e deu-se a procur-la
por todos os cantos. No a achou, e de nimo
tisicado, arrostando com a invernia, dirigindo-se
quase pelo tacto, foi procur-la na horta. O honesto
instrumento tinha levado sumio, porventura algum
esfomeado a larapiara, para a trocar por uma cdea.
No lhe restava, pois, o recurso de abrir a cova na
terra, a terra que, dentro dos templos, no cemitrio,
no cibrio ou num logradouro, sempre a terra da
verdade no comer a todos por igual. Que faria, santo
Deus, do machacaz? Deit-lo na corrente do Vouga
era processo aconselhvel. Mas onde tinha ele vigor
para arrostar com aquelas seis arrobas de muladar
mais de quinhentos passos? Verdade, podia chegar
Barroca e dar parte; Barroca ou a outro lugarejo.
Mas, alm de que a cheia do Vouga devia alagar os
pontigos, corria grave risco em derramar naquela
caterva de imaginaes primrias uma histria
nocturna, azarenta, e pouco verosmil. No iria
atirar de pantanas com a sua doce paz temporal?
Simplcio passou o resto da noite a pesar prs e
contras, e todos os expedientes lhe pareceram piores
uns que os outros. E aconteceu o que se deparava
mais propenso e imediato sua falta de meios, se
no sua incapacidade em resolver casos assim
bicudos; o cadver comeou a apodrecer na enxerga.
Os primeiros dias, com a temperatura glacial, a
consumpo foi-se operando paulatinamente, e no
era grande o odor daquele laboratrio qumico em
pequena actividade. Mas, pouco a pouco, a matria
corrupta foi-se soltando das matrizes, e a casa do
ermito tornou-se uma cloaca insuportvel.
No valia mais a pena desertar do seu pobre e terno
cenbio onde, merc das boas almas, a existncia lhe
ia decorrendo como manancial que, entre juncais,
no se ouve, no se v, lagrimejando at vir raio do
sol mais quente que o abrasa e consome?! Mas em
que tugrio, lar amigo, refugiar-se, desvalido, sem
parentes nem prximos?
A invernia continuava fera e impetuosa, e Simplcio,
a tiritar, encharcado at aos ossos, apertava com
Nossa Senhora, de quem era guardio ralao mas
contrito, que se dignasse sugerir-lhe a forma de se
libertar do trpido arganaz. Algumas vezes, a sua
prece era to atrida, que se damasquinavam de
pranto! Mas os lbios da Me de Deus mantinham-
se firmemente cerrados, naquele sorriso de doura
etrea, coalhado para alm das realidades e iluses
do Mundo. E as suas splicas redundavam to
ineficazes, que nem um frmito via a sacudir-lhe o
peplo de rosas de Alexandria.
O cadver que continuava a sua obra malfica de
empestamento. A face contraa-se-lhe e revestia uma
mscara que Simplcio nunca sonhou nos prprios
demnios do Inferno. Alm do que tinha de tbido,
sensorialmente imundo, tornara-se hedionda
obsesso. O triste via-se com o morto a cavalo;
beijado pelo morto; chupado pelo morto. Era, mais
que um corpo em decomposio, um vampiro
voraz. Acaso no estaria no reino de Belzebut? No
seria aquele um suplcio? Suplcio infernal, dos que
enumeram os telogos, o seu para castigo dos
muitos pecados?
Nas horas em que vinha a si, o ermito sentia todo o
nojo do esterco humano, uma vez despojado dessa
aura impondervel, etrea, surpreendente, que faz
girar o sangue nas veias, impulsiona os misteriosos
mecanismos do crebro, recolhe a luz do cu nas
pupilas e desloca o bloco animal de jau para jales
como o mais rigoroso e inteligente dos motores. E
ora e sempre implorava Me de Deus que, pelas
suas sete lanadas, o desatolasse do esterquilnio.
Um dia que voltava melanclico e desiludido do
santurio, de cabea torcida para dentro da loba a
fugir vergasta do temporal, sentiu passar por cima
de si listes negros, sorte de farrapos funreos
balanceados nas refegas do vento. Eram os corvos,
de certo aulados em sua gula de sepultureiros pelo
odor de cadver. Ah, mas eles traziam-lhe uma
mensagem salvadora! Sempre louvados fossem
Deus e os santos, Cristo e a Virgem Maria, as aves
nojentas vinham libert-lo da presena abominvel.
Contemplando o soberbo penedal, compreendia
agora porque que flor do solo, numa furna
deserta, entre as ribas dum corgo selvagem, se
elevavam aquelas bisarmas, algumas da altura de
castelos. Sem dvida para que, mediante as incises
cavadas em seus flancos como nos poos, as almas
pias pudessem ir adorar as bentas imagens de Santa
Maria Madalena, S. Paulo Ermito, Santa Maria
Egipcaca, guindadas a areos redutos como
convinha sua natureza celestial. Essas e, coroando
a todas, mais em alto, o passo da Ceia do Senhor.
Mas se figurava l esse passo - e estava muito bem
em tanto que Deus o vero cibo do homem - fora
relegada para um nicho, muito abaixo, a vera e
antiqussima imagem de Nossa Senhora, dona de
Penhavouga. Acaso essa esttua em despeito do
robusto tronco, do pescoo taurino, da fronte
brutesca, duma clmide to achavascada que
sobressaa dela com escndalo a graa feminina
duma fbula grosseira, tinha menos direitos ao culto
que as madonoas especiosas de Rafael? No era
sempre Maria Santssima, igualzinha a si prpria,
como eram filhas iguais no amor de Pai Celeste a
rainha de Sab e a pastora de tamancos?!
A Senhora havia sido apeada das alturas, que lhe
pertenciam, que mais no fosse, pela sua condio
de nuvem branca a singrar em mar de estrelas. De
facto, contemplando o panorama do andaime
superior daquele penhasco, os olhos inebriavam-se
de extenso e vertigem. Ao mesmo tempo, por toda
a parte refulgiam estrelas: estrelas no tojal, cujas
flores lembravam bagas de oiro a liquefazer-se; nas
giestas, as maias brancas com as amarelas
compondo um duo de infinita alacridade; nas urzes,
suas umbelas parecendo ter recolhido a farinha da
Via-Lctea peneirada em noite de luar. O cho
desafiava o firmamento. O telhado verde-limoso da
ermidinha soobrava sob as frondes das urgueiras
quase arbreas e, desbanda, a casota com o hortejo
fugia por entre rosmaninhos e vela-luz.
Mas se a tinham apeado do seu trono cerleo em
proveito da Ceia do Senhor fora inegavelmente por
determinao divina. O baixo-relevo era um
smbolo. Nada mais que o nome significava uma
indicao sua alma conturbada: pertencia-lhe dar
de comer queles hspedes alados. Estava-lhe
destinada, na qualidade de argonautas dos espaos,
a mesa excelsa.
Aos homens, vermes da vasa, o cho rasteiro. No
obstante o estigma, que epulas as deles, mal vinha o
equincio da Primavera, volta do morro
ensimesmado?! Com o guio e a cruz de
tintinbulos, os romeiros de cem aldeias traziam
frauta, sanfona e o bornal farto. Depois das loas,
desatavam as merendas na sombra grantica e,
borracha trgida de mo em mo, deglutindo,
amando e folgando, era o regalo dos regalos.
Entretanto que reinavam, escapulia-se debaixo das
saias duma rapariga, entre surriadas e rabolevas,
um lparo meio arrelampado com o sono ou
relampejava um sardo.
No pequeno largo em frente da capela, em seguida
ao brdio, cantavam e danavam. A Simplcio, de p
no limiar com o seu rosrio ao pescoo e a barba de
linho, os festeiros, joviais com a vinhaa e
irreverentes, chamavam-lhe S. Pedro, uns, velho
fauno, outros. Que mal! Tirava o ventre de misrias
e armazenava alegria e simpatia humana para
muitos meses. Armazenava ainda com que suprir o
panelo nos meses ladros, a talhada de toicinho, o
chourio, o selamim de castanhas piladas, a malga
de ervilhas e de feijo. A quarta de centeio que j os
tetravs dos actuais peregrinos, segundo um
sabicho da Grcia, traziam a Ceres, que antes da
Virgem ali dispensara seus favores em esconjurar
dos campos a praga da lagarta, sua era. O moleiro
da Barroca, quando acertava transitar por ali,
carregava a moenda. Nenhum eclesistico lhe
disputava tais rditos. Assim estava escrito. Mas
com a Deusa da Terra ou o Lrio de Jeric, a
espiritualidade estava sempre salva, sobrepostos
seus blsamos contingncia dos respectivos mitos.
Considerando e tornando a considerar a bruta
penha, explicava-se Simplcio a sua misteriosa
abuso pela faculdade que Deus lhe oferecia de
resolver o angustioso problema.
Os gritos esganiados dos corvos, por cima da
tormenta, o bolu de suas asas robustas nas lufadas
do nordeste, anunciavam bem manifestadamente o
propsito que os trazia. Pois que assim era, fizesse a
vontade do Senhor.
Como se recebesse inspirao divina, Simplcio
pegou da faquinha que lhe servia para cortar o po
de semanas e o queijo de cabra de duas estaes
com que o mimoseavam os bons romeiros de
Penhavouga. Foi-se a um penedo e, passeando a
lmina ora dum lado, ora doutro, afiou-a o melhor
que pde. Isto feito, atirou-se ao cadver. E de mo
certeira, como magarefe ou cirurgio, amputou-lhe
os braos e as pernas pelas articulaes; esquartejou-
lhe o arcaboio; decapitou-o. Uma vez finda a
operao melindrosa, em nome de Deus, do prazer
de se ver safo, da obrigao que se infligira de fazer
penitncia, tratou de ganhar nimo para, debaixo
dos aguaceiros, subir penha altssima com as peas
a que reduzira o defunto. Era uma tarefa de
respeito, mas pacincia. Pois que os corvos, e de
certo com os corvos os milhafres, estavam a postos
para o resgatarem da vrmina, ia servir-lhes o
banquete no coruto da penha, sua nobre e digna
mesa. Oh, abenoadas para todo o sempre fossem as
aves ascorosas, atentas s batalhas, prontas a limpar
a terra da carnia humana, obra da estupidez e do
furor!
E Simplcio, depois de executar mais de dez vezes a
ascenso asprrima, consagrou-se com solerte
diligncia a desinfectar o tugrio profano, lavando,
arejando, queimando com altivo fogo a enxerga
empapada de guzanos. E rendido de foras, mas de
alma jubilosa adormeceu do bom e merecido sono
do justo e do rachador. Ningum, nem Deus nem os
homens, lhe podia pedir contas de to expedito e
desapiedado funeral.
Durante trs dias, compreendido o lusco-fusco da
alba e da tarde, banquetearam-se os corvos nos
despojos do finado. Em torno da penha, como do
catafalco dum rei, rocegaram os crepes
ininterruptamente. De princpio tais exquias foram
decorrendo pianinho, quase em paz morta. Depois,
pouco a pouco, ateou-se a balbrdia, grasnidos
estrdulos, espalhafatoso chimfrim de asas, a hora
das charamelas.
Vinham em bandos. Simplcio divisava-os ao longe,
sulcando o cu tempestuoso em voo altaneiro, tais
falhas sacudidas nas lufadas do nordeste. Antes de
pousar, faziam um rodeio e, crocitando, parece que
diziam com o cinismo do sapateiro de Braga:
- Isto para todos ou qu?
Comiam todos, embora densos como larvas da
vareja em podredero. Ouvia-se-lhes o derriadoiro,
semelhante ao da tosquia, quando so muitas
tesouras a tosar um rebanho.
Em regra aplicavam-se comezaina em silncio e
com discreta porfia. Apenas saciados, se mostravam
faceciosos e fanfarres. Ento, sim, armavam
nutrido despique, pincharolando pela penha,
desembainhando uma asa dengosa, debicando-se,
alguns catando o piolho e grasnando. Dentre os
banqueadores, atentos funo, erguia-se por vezes
grita repentina, que tanto podia ser troca de sades
como de improprios. E rebentava um carrocel
doido, inexplicvel, de muitos deles por cima do
barrocal.
Simplcio distraa-se a observar-lhe o corrupio
animado e, ora e sempre, a contnua sarabanda duns
que chegavam, doutros que partiam, balanceados no
p de vento como velas na mono. Acontecia este e
aquele levantarem do brdio e ficarem
singularmente a voejar em roda da penedia e por
cima do santurio, e tais voejos sem sentido
significavam por certo seu exuberante desenfado.
No era abandonando-se tineira dos msculos
locomotores que se recreiam os bem comidos deste
mundo quando jovens e sadios?!
O festim na Penhavouga no decorreu em amical e
pantagrulica bambochata at resto. Em dado
momento, assim que comeou a escassear o
bazulaque, desavieram-se os convivas. A primeira
sarrafusca foi com um retardatrio. Vinha com
fome, zs, atirou-se melhor posta, a menos
esburgada, e ala, cus fora. Pelos modos, o
rompante, sobretudo a sua rapacidade, tratava-se
dum bandoleiro. Logo, no seu encalo, muitos
ergueram voo com grande espalhafato de asas e
celeuma de vozes, que bem traam a clera que
suscitara. E vai um corvacho, agente da ordem a
avaliar pelo jeito e a membratura seca, marrou-se
cola do gatuno. Em menos de nada obrigava-o a
largar a presa que foi cair no telhado da ermida, ao
passo que o criminoso despedia em voo afogadio
para l das arribas do Vouga. E na pea recobrada
viu Simplcio que se talhavam por sua vez um bodo
o vencedor e os amigos.
Entretanto, como se o rapinano se houvesse
tornado contagioso, vrios deles desarvoravam com
o seu naco. Um abalou com uma tripa dependura,
e era cmico, sorte de papagaio de papel a querer
alar-se, e o peso a repux-lo para terra. Dois
engalfinharam-se por via dum migalho que a
Simplcio pareceu o corao. E nada mais curioso
que os saltaricos e rapaps que descreviam seus
corpos negros, dotados duma elasticidade de
pelotas, esbulhando-se uns aos outros, raspando-se
com o cibo apertado na torquez crnea ou renhindo-
o fina fora.
Ao entardecer do segundo dia, quando no
restavam mais que ossos descarnados, a
espectaculosa bacanal derivou para batalha. Os
sfregos no se contentavam com desperdcios e os
famlicos da derradeira hora j no tinham com que
matar a fome. Brigaram. Donos da posio, os
ocupantes da penha defendiam-se com vantagem.
Mas no horizonte acorreram reforos com rpia de
estafetas e o desespero vertiginoso de reservas
lanadas na fornalha, e os famintos escorraaram os
fartos. O penedal desapareceu debaixo duma onda
de vrmina, compacta e remoinhante, esganiada
como sarambeque de pretos. No havia em que
aguar o bico, e os triunfadores de h pouco
travaram-se de peleja uns com os outros, primeiro
em cima da penha, depois nos ares, com grande
destampatrio e nenhum sarrabulho.
Simplcio filosofava com as suas barbas, mas deu
conta que ia errado:
- A desigualdade, com que Deus brindou o mundo,
uma das causas do mal. Acaso a sua bondade
precisa da ciznia para luzir?! E dar-se- o caso que
a sua misericrdia no tenha melhor objecto que a
misria dos fracos e desvalidos?!
Ao terceiro dia assinalaram-se entre nuvens os
milhafres e os gavies. Um peneireiro, de asa
adejante por cima da penha, estampou-se como uma
serpe no estanho velho do cu. Mas todos eles, de
garra firme e asa nervuda, no estavam em nmero
para aguentar o combate com os corvos. E, depois
de fazer o circuito do santurio, retiraram-se sem
oferecer combate aos ales do ar.
Essa mesma noite uma alcateia rondou e uivou em
torno da penha com acirrado denodo, como se se
preparasse para executar um assdio. Um lobo mais
atrevido veio escarvar-lhe porta. A desiluso, se
no a aurora, destroou-os pelas brenhas como
sombras esquivas, mal-avindas com a luz do sol.
Ainda no dilculo do quarto dia houve babaru na
esplanada da rocha, beira do painel da Ceia do
Senhor. Com o raiar, todas as aves debandaram nas
penas do vento, tal uma frota que levanta ferro. Um
ou outro mais lerdo aportou ainda Penhavouga.
Depois de explorar os lugares, no toscando febra,
com vozes desabridas e uma ruflada de rmiges que
denotavam seu mau humor, disparava para longe.
O cadver tinha passado a S. Gulo, como a gente
dos stios tem por costume dizer das petisqueiras
imoladas em trs tempos. Simplcio deu graas.
Abenoado fosse o Criador que esfomeava os
corvos, os lobos e as aves de rapina para exercerem
superfcie da terra o papel sanitrio de coveiros! E
to grato como jubiloso correu aos ps de Nossa
Senhora levar-lhe sua jaculatria agradecida e
maravilhada.
A vida, ainda para um ancio, no era m de todo.
O Fevereiro ia fora, j a cotovia se encastelava no
cu a chamar o sol. As primeiras abelhas zumbiam
sobre as estevas ainda adormecidas. Dentro de uma,
duas semanas, as procisses reanimariam a
Penhavouga.
Simplcio, essa noite, dormiu com os anjos.
Manh alta, singrava ainda Simplcio em beatitude
angelical, quando acordou a grosso tropel no
terreiro do santurio. Ouviu em seguida bater
porta mo frentica e uma voz de poucos amigos
bradou:
- Abra!
Pareceu-lhe reconhecer pela braveza da pancada a
mo imperiosa e ainda a modulao da voz, e
consigo e com a corte celestial a diluir-se em sua
conscincia mal desperta assentou que no havia
subterfgios a experimentar. Era de resto um
homem conformado com tudo o que viesse. Viver e
morrer para ele, quela altura da existncia, eram
termos equivalentes da mesma equao. Destrancou
a porta.
Uma chusma de gente armada, negra de per si e
torva no menos nas sombras do lusco-fusco, fcies
tresnoitados, apinhou-se contra os umbrais, ao
tempo que a garganta perra do sincelo e da cachaa
proferia:
- Onde est o morgado de Covas?
- O morgado de Covas...? - repetiu assombrado na
sua estranheza.
- Sim, o ferido que te deixmos...
- Morreu, morreu logo, mal vossemecs viraram
costas - e o ermito contou-lhes com hbeis e
romanceados rodeios o passamento do guerrilha.
- Enterras-te-lo?
- Ento no havia de enterrar!? - respondeu to de
pronto como se apercebeu da bocarra do abismo
escancarada a seus ps.
- Leva-nos cova que lhe queremos rezar por alma.
Despacha-te que temos pressa!
Estavam sempre com pressa e mal lhe deixaram
deitar a garnachinha pelo ombro. Fora soprava o
vento em lufadas rijas que tangiam pelo cu baixo
nuvens fuliginosas, tal um rebanho de vacas pretas.
Via-se reluzir por entre o fraguedo a corrente do
Vouga crespa e estanhada, tomada da
impetuosidade da cheia.
O bando, como se recebesse palavra de senha,
encaminhava-se para a capelinha de Nossa Senhora,
pelo que Simplcio achou bom advertir:
- No est enterrado na capela...
- No est enterrado na capela, essa boa! Ento
onde est?- regougou o cabecilha.
- O cho de ljea e eu no pude, por mais esforos
que fizesse, remover as pedras.
- Ento, meu cachorro, onde que o enterraste?
- Aqui no terreiro. Parece-lhes mal? Lembrem-se
vossemecs que este terreiro o mesmo que um
adro, terra santa sem tirar nem pr.
- Lria no te falta, no tivesses tu sido frade!
Vamos, indica l o stio da sepultura...
O ermito andou dum lado, andou doutro, ora atrs,
ora adiante, procura de cho que inculcasse ter
sido mexido. Os guerrilheiros, parados, no
perdiam um s dos seus movimentos.
- Foi aqui - balbuciava ele. - No, aqui no seria...
H-de ser mais para acol... Aqui h sinais... No,
ainda no aqui... A madrugada est escura, no se
enxerga bem. Alm disso, a chuva arrasou a terra.
Choveu, choveu, choveu.
Simplcio ia e vinha no terreiro, s voltas e
reviravoltas, tanto parando como discorrendo, no
jeito obstinado de quem procura coisa real, sumida
por arte do Diabo. Mas como o largo era pequeno, a
sua incerteza ia-se afigurando inverosmil. Alguns
guerrilheiros, mais inocentes ou de boa vontade,
debruavam-se para o cho a procurar tambm.
Outros espetavam os dedos pela terra alagadia no
apalpamento dimensional da provvel sepultura.
Ele multiplicava-se na porfia de encontrar os palmos
de terra com que cobrira os despojos mortais do
morgado de Covas, legionrio glorioso de Deus e do
rei. E nesse af dava mostras de grande constncia,
o que no admirava ningum, e de sincero
descorooamento, a julgar pelos estalidos da boca
com que compassava o seu manejo. Cansado
finalmente da v expectativa, o capito veio para
Simplcio e, endireitando-lhe a cabea com pr-lhe
em cima enrgica manpula, disse-lhe nos olhos:
- Entregaste-lo aos chamorros, hem?
- Morreu! Eu nada podia fazer! Nem soltou um ai!
Morreu, assim Deus me receba sua mo direita.
- Morreu...?! Se morreu, onde est o corpo?
- O corpo..? O corpo, o corpo est aqui... Se
cavssemos neste redondo, havamos de encontr-
lo...
O guerrilheiro guardou uma pequena pausa a
ruminar as suas ideias ou a medir o que devia supor
protrvia do ermito. E saiu-se dizendo:
- s egresso; disseste que eras egresso do convento
da Fraga...?! M fazenda egresso! Isso ou pedreiro-
livre d o mesmo. Tu entregaste mas foi o ferido aos
malhados... Fala franco uma vez na vida! Ningum
te faz mal...
- Assim o Diabo se me entregue da alma!
- Tu acreditas no Diabo?! Tens a certeza disso? Eu
no tenho e mais sou cristo verdadeiro, cristo
praticante, defensor do trono e do altar. Mas vamos
ao que importa, onde est o cadver do Morgado?
De novo se desculpou o ermito com a chuva que
fora tanta, tanta que apagara todos os rastos na
terra, teria atupido um vulco, quanto mais o
roadoiro duma cova. Entretanto aqueles
guerrilheiros que de boa f, simulacro de se deixar ir
no logro, ou ainda por escrpulo de conscincia,
palmilhavam o terreno de ventas no cho, ao
estenderem-se at raiz das penhas, sofreram a
mais alucinante das surpresas. Uma caveira de
homem, descarnada, apenas com umas farripas no
toutio, deparou-se-lhes no meio das ervas e
sargaos. E soltaram alarme que atraiu a malta toda.
Com pasmo geral e estarrecido sobressalto do
ermito, examinou a guerrilha a descoberta
macabra. O crnio j no tinha olhos, mas ainda
havia no fundo das rbitas restos tbidos das
mucosas. As capelas miravam vcuas e abstractas
como ventanas sem sinos. As mandbulas descaam
dos encaixes, presas apenas por um dos risrios,
muito lasso e putrefacto. O arreganhadentes - de
lobo que vai morder - era hediondo. Uma repa de
cabelos, dum castanho aafroado, suja, semelhante
herbagem reles dos caminhos desbaratada pelo
calcadoiro, forneceu base segura identificao. Era
a caveira do Morgado. Nojenta de aspecto, cheirava
mal e metia medo.
Ante o destroo miserando, o ermito deitou-se de
joelhos, braos projectados em torquez, a soluar. O
cabecilha passou-lhe a mo ao pulso e, retorcendo-
lho e apertando-lhe gradualmente, obrigou-o a
relatar timtim por timtim a destinao que dera ao
cadver.
Ao cabo da confisso engulhada, dolorosa, regada
de lgrimas e suspiros, o cabecilha ordenou:
- Pega nessa cabea e anda...
Tomaram a direco do Vouga, os dois frente, o
bando aps em pegado e rumoroso alarido.
Simplcio ia cheio de nusea, obrigado a abraar
contra o peito, s mos ambas, o crnio despelado e
imundo, porque no tinha outro modo de o
conduzir. Em seu horror s aspirava a uma coisa,
ver o fim, fosse qual fosse, para l daquele vau
inquo de incerteza e de angstia. Mesmo assim ia
encomendando a alma misericrdia de Deus, e era
bem perceptvel as preces sibilarem-lhe na raleira
dos dentes depois de provocarem na glote de ancio
um glu-glu afrontado.
Quando chegaram arriba da rocha, no fundo da
qual se via o rio espadanar furioso e bravio, anaado
de espuma, o cabecilha apontando o pego, bradou
para o ermito:
- Atira! Faamos de conta que o mar, o mar
sagrado...
Simplcio abriu os braos e, mais queda que
arremesso, a caveira despenhou-se no redemoinho
das guas.
- Tirem as carapuas. Rezemos um padre-nosso e
uma ave-maria por alma do nosso irmo! - tornou o
cabecilha em voz que, de compungida, mal
sobrelevava ao sussurro da torrente.
Quando as splicas acabaram de bolir nos lbios
grossos da cfila, o chefe ferrou os cinco dedos no
pescoo de Simplcio:
- Agora tu, farsante!
Nem se ouviu um grito. A espuma envolveu o corpo
difano do ermita, surda e branca como mortalha de
rendas e cambraia.
Renunciao
Julho, 2. A famlia mulher, duas filhas, um filho e
nora foram viajar, e eu resolvo passar-me para a
serra. Que eu estava intratvel, urso de todo e ao
mesmo tempo debiqueiro como um cardial, egosta
e podre de mimo! possvel. Como havia eu de
estar depois de meio sculo de negro trabalho,
engenharias e mais engenharias, e, a bem dizer, sem
um momento de sobejo para saborear as coisas que
merecem ser gozadas na natureza!? Como havia eu
de estar no seio duma sociedade sevandijamente
orgulhosa dos seus reis, dos seus papas, dos seus
impostores, dos seus tiranos, dos seus luminares de
pechisbeque? Os meus ricos meninos no foram at
me chamar ginja, mas levou as mesmas voltas. Li-
lho nos lbios sardnicos. Esperai l que eu j vos
falo. Chamo a captulo Adozinda, sobre quem a
minha cara consorte nutre certas suspeitas
injustificadas, e chamo-a talvez por isso mesmo.
uma ruivita de vinte anos, cabelo no ar, olhos azuis,
saia por cima do joelho, alentejana. Abrtea na
frescura, mas dessale. A mim no me engana ela.
Mas por este lado que a hei-de levar. Dei conta que
tem dedo para a cozinha.
Menina, estou na inteno de ir passar um ms,
dois meses, quem sabe se mesmo mais tempo, numa
serra l para o norte, de papo para o ar e caa. Tu
vens comigo. Mandei l fazer uma casota que no
tem mais que trs compartimentos: um para dormir,
outro para tudo o que no seja dormir, o terceiro,
cozinha e anexos. Passa um corgo aos ps que leva
trutas e tem ricas balsas para se tomar banho. L
para a tua terra no h destes peixinhos
sarapintados, pois no?! Mas j te aviso: a um lado e
outro da casa tudo fraga, rosmaninho e sargao,
coelhos, perdizes e lobos. como se fosses para
freira.
- Freira o menos, agora lobos!
- No tenhas medo. Hei-de levar, alm da cana de
pesca e espingarda para a caa, uma carabina.
- E quem vai mais?
- No vai mais ningum. No vai mais ningum,
quer dizer, salvo um paquete, que j tenho de olho,
para guardar as cabras que nos ho-de dar o leite e
ir aldeia buscar os comestveis necessrios uns
dias por outros, e salvo o hortelo, um bom tipo de
velhote, que trata das couves e dos pepinos.
- No se leva um aparelho de rdio...?
- No se leva aparelho de rdio nenhum, nem livros
ou coisa que se parea. Sabes, vomito civilizao,
esta nossa grande civilizao crist que trago aqui
atravessada nos gorgomilos, e ao que aspiro
eliminar todas essas estupendas toxinas.
Reparei que no entendia o que lhe estava a dizer e
acrescentei poisando-lhe a mo sobre os cabelos que
um raio de sol convertia no casco de cobre da Diana
caadora:
- No levamos isso, mas de resto, em matria de
papana, no nos h-de faltar nada, louvado seja
Nosso Senhor. J l esto a boa pingoleta do velho
Do, o presunto, o paio, a latinha de conserva, e uns
boiezinhos de gulodice. Os boizinhos reservo-os
para ti que s lambisqueira.
- uma ideia da senhora...
Se fosse uma ideia da senhora - estive tentado a
dizer-lhe, mas calei - com esses olhos, com esse
cabelinho a voejar para as nuvens, no tinha graa, e
tu s uma rapariga particularmente graciosa.
Sorria ainda, escondendo o rosto sorridente para o
lado, do meio madrigal, que leu na minha
fisionomia jocosa, quando prossegui:
- Remeti para l muito mais coisas, porque eu, se
vou para o ermitrio, no me proponho ganhar o
cu. Ests inteirada: a minha vida ser dormir,
comer, pescar cana, dar a sua batida s perdizes
que ali se vm meter na panela, ver passar as
nuvens, e...
- E mais nada. Que mais havia de ser?! Vou nos
cinquenta e cinco anos, embora a senhora afirme
que entrei na casa dos sessenta, e j no tenho vcios
a alimentar.
- Que lhe preste. Comigo no conte!
- Como queiras. O meu propsito era contratar-te a
um tanto por ano. Vou pr um anncio. Alm da
soldada, como nunca te convidei e tens um pescoo
bonito, propor-te-ia que o enfeitasses com este
trancelim...
Abri o estojo e mostrei-lhe uma linda volta de oiro
com um gatinho empinado, gravado em esmalte, de
pingente, laia de amuleto.
Fechou os olhos, deslumbrada.
- Ouve, alm do bonito pescoo, desses que Salomo
apreciava tanto que s sabia compar-los a uma
coisa despropositada: uma torre da sua Jerusalm,
as tuas orelhas so carnudinhas e bem feitas. Aos
olhos dum entendedor as orelhas duma mulher
contam muito. o que te digo. As tuas so duas
casquinhas de noz divertidas. Mas andam como a
me as deitou ao mundo, sem o menor adorno.
Queres ver o que elas precisariam para brilharem a
valer, serem mais que pavilhes dos sons...!?
Abri segundo estojo e saquei um par de brincos,
com dois rubis engastados em platina, rubis porque
so da cor da tentao e do delrio. Eram tudo o que
h de mais subornador, duas verdadeiras risadinhas
do diabo.
- Que tal?
- Um encanto.. No h que dizer!...
- Bem, Adozinda, no quero arrancar-te uma
aceitao de afogadilho. tarde, so horas de deitar.
Consulta o travesseiro e amanh me dars a
resposta. As portas esto todas fechadas...? Ah, falta
ver o porto do jardim...?! No te incomodes, eu vou
l e fecho-o, se o jardineiro o no fechou. Boa noite,
Adozinda.
Julho, 3. Tomei o pequeno almoo, como de
ordinrio com o jornal desdobrado em frente. A
Adozinda mostrou-se mais solerte, exacta e
diligente do que nunca. Reparei que se ataviara
muito, tendo posto a blusa vermelha dos domingos,
excitante como uma Primavera, esbaforindo o
cabelinho mais na testa, o que lhe dava um ar o seu
tanto folltre, e que exalava uma suspeita, oh, nada
mais que uma suspeita, do perfume peculiar de
Madame. Assim que tomei o caf, ps-se a tirar a
mesa, e eu deixei-me ficar, contra os meus hbitos,
estiraado na cadeira. Ela ia e vinha, rodava,
rodopiava, magnetizada de todo, e eu impassvel.
Por fim, quando a vi beira do descorooamento,
no querendo prolongar muito a prova, disse-lhe:
- Ento, Adozinda, vens ou no vens?
- Vou para onde...?
- Para a serra.
Ficou parada diante de mim, depois, voltando-se
com brusquido como se passasse a outra matria,
proferiu:
- No vai tambm a senhora?
- A senhora foi para Frana, bem sabes. Que
estivesse aqui, nunca anuiria ao que ela chama as
minhas excentricidades. Por isso mesmo que eu te
contrato. Vens, no assim? No te hs-de de
arrepender...
- Muito obrigada, mas no vou.
- Bom, se queres no se fala mais nisso...
- Beuh, que monta!
- Talvez ds um pontap na sorte...
- Acha que grande sorte ir-me meter no ermo com
um homem de sessenta ou cinquenta anos, pouco
importa, mas sem que me livre de ficar difamada e
amanh ser corrida tranca ou pedrada pelos seus
filhos ou pela senhora, acha?! Pois eu no acho!
- No te exaltes; s maior, ests no teu direito de ir
ou no ir. Vou pr o anncio...
Entrei altas horas, cansado do Chiado, do ch das 5,
depois duma ceia com os Borges de Canedo e um
aviador que no sei bem como ali foi cair, o tenente
Olindo de Lacerda. Ajudante de campo do
diplomata ou de madame? Curiosa figura: fala
pouco e ri com ingenuidade. No consegui penetrar
o que tem l por dentro. A carreira das armas,
sobretudo da aviao, com a vida sempre
hipotecada, cria destas esfinges. A Clemncia, que
estava ataviada como um pele-vermelha dos tempos
hericos, no se propunha ir instalar-se com o
paspalho do marido, que padece duma mielite mal
classificada, no meu ventanal da Beira? Que os mil
metros o restituiriam elaborao da copiosa obra,
esperada ansiosamente pelas Academias: Os
lombardos na monarquia sueva. Dessa est ele livre!
No tem aposentos permanentes no Hotel Princesa-
Maria em Davos Platz? A Clemncia tocava-me com
o joelho no meu joelho inerte. Bem compreendi que
me dizia: lembra-te! Arreda, tenho que travar a
ltima batalha com Adozinda e fugir lufa-lufa.
Acabamos com uma partida de bridge no Clube dos
Cem, a mais insossa das futilidades duma babilnia
pataqueira e borralhenta.
Propunha-me meter sozinho o carro na garage, que
tive a boa ideia de mandar construir rente casa, ao
fundo do jardim, quando a Adozinda saiu da porta
de servio, em cabelo.
- Porque que ests ainda a p? Ento o Joaquim...?
- O Joaquim apareceu a queixar-se de dores de
cabea, foi-se deitar.
Na sala de jantar, sob a cascata de luz que jorrava do
lustre, reparei que a ruivita se tinha pintado.
Mostrava-se alm disso muito meiga, pressurosa em
prevenir os meus possveis desejos. As obrigaes
de criada de dentro levaram-na mesmo at beira
da minha cama, no momento em que eu tirava o
casaco.
- O senhor engenheiro no precisa de mais nada?
- No preciso mais nada, boa noite.
Julho, 4. Chamei a minha cativa. Ainda se no
declara, mas eu bem lhe via a rendio nos olhos e
nos ademanes.
- Adozinda, hoje mesmo que saio de Lisboa.
Desculpa, tenho de fechar a casa, tens aqui trs
meses de soldada, mais a importncia da passagem
para a terra Messejana, no ? Alm disso, as
prendas que te mostrei so tuas. No digas que no!
Mas doravante, ouve, no me convm que voltes
para esta casa...
Manteve-se silenciosa, a torcer-se toda, como torcia
um leno que tinha nas mos, enquanto eu punha
um envelope diante dela com as trs soldadas e por
cima do envelope os dois escrnios. E especou ali a
enxugar a lgrima e a fungar.
- Desculpa, Adozinda, no reflecti bem nos
inconvenientes que havia em levar-te comigo e
estive a abusar como hei-de eu dizer, estive a abusar
das tuas inferioridades. Desculpa, e no se fala mais
nisso. Agora vai, vai fazer a tua malinha que estou
com pressa
No respondeu, e como eu me propusesse tir-la
para fora do quarto apoiou os cotovelos cmoda e
ali marrou cismtica. Quase estive tentado a fazer-
lhe duas festas, mas olhei para o espelho que me
interpelou: - Tem juizinho e no esqueas que j te
passou a idade de sedutor. Repara para os cabelos
brancos, animal!
Deixei de olhar o espelho e logo outra voz repontou
do meu fundo de egosta e volupturio: - Sedutor,
talvez sim, talvez no, e que tem l isso? fora da
natureza? Das minhas possibilidades fsicas?
Alguma violao das leis morais? No legtimo,
por outra, que eleve a minha vida desde que no
rebaixe ningum?!
- Adozinda, reconsideraste? Reconsideraste, sim, e
queres vir comigo. Pois vamos, e outra vez te digo
que no te hs-de arrepender.
- E vamos ficar l muito tempo?
- O tempo que for.
- E a senhora que no vai ela dizer?
- Essa boa! No te deixou sozinha aqui comigo?
Descansa... A senhora no se importa com estas
bagatelas.
- Veja l em que trabalhos me mete...?!
Ri-me daquele pensamento to utilitrio e oportuno
de Sancha. Bem certo que Adozinda no era
Berenice.
Pus-lhe as joiazitas no regao, que ela recebeu como
uma escritura recebe os selos em branco do punho
notarial. E correu a tomar disposies de partida.
Julho, 6. Viajar de noite tem os seus encantos. Nesta
quadra trrida, talvez prefervel a viajar de dia,
desde que se disponha dum automvel bem
calado, robusto de motor, que se agarre estrada
com denodo. O meu destas mquinas, com efeito,
a que pouco falta de discernimento para elas
prprias se dirigirem, virando nas curvas, salvando
as rectas num galo inquebrantvel, fazendo a
ultrapassagem do pesado camio devida altura e
arredando-se cristmente da velha que vai a defiar o
rosrio ou da ovelha desgarrada o cabelo preciso
para as no mandar para os anjinhos. Esta casta de
viventes faz parte dos riscos capitais do
automobilista, a par com o ciclista, que na gria do
volante chamam gafanhoto, e o brio, para quem a
estrada foro seu e de mais ningum.
Levaram-me o oito cilindros, o routier, mas este,
destinado cidade, 10 H. P. satisfaz plenamente. A
variadssima fauna, com que prudente contar luz
do Sol, entocou-se, e avano em pleno deserto,
levado nos duzentos metros de terra iluminada, ia
dizer de iluminura. De facto, as duas margens da
estrada trasvestiram-se. A natureza adormecida e
tocada de relance pelo feixe igniscente dos faris
outra. As rvores perdem aquele seu verde
invarivel, para se toucarem dos tons fulvos duma
florao irreal, s sonhada. Os longes nas lombas,
nas curvas, numa alameda, num trato entre pinhais
so por vezes traioeiros, mas a mquina tem o seu
instinto e sabe fugir aos precipcios, se no que um
novo sentido, esse das aves migradoras, por ora em
estado latente, no comea a advertir o
automobilista, o aviador e todos os argonautas do
espao, dos errores de que so susceptveis suas
atvicas faculdades.
Adiante das pupilas rbidas dos faris vai
decorrendo o mais ferico bailado de silfos que se
pode conceber. Os insectos interceptados em suas
rondas, sacudidos na folha da planta em que
enterravam a trompa ou simplesmente se
balouavam, surpresos no voo nupcial ou
peregrinando e labutando, saltam de mpeto para a
zona afogueda e um momento tecem para disfrute
de nossos olhos um deslumbrantssimo sarambeque.
Lembram, por via de regra, as estrelas cadentes de
certas noites profundas, disparando e cruzando-se
nas direces mais reversas. No voam, fluem,
movendo-se segundo uma cinemtica maravilhosa.
De ordinrio, erguem-se uns cvados acima do foco
luminoso e, com brusquido imprevista, flectem
retaguarda, tomando altura. O movimento to
cronometricamente fulgurante que se hesita em
dizer se o ngulo que descrevem seus blides
alvadios representa uma iluso de ptica, provocada
pelo andamento do carro, ou a trajectria real em
que intervm a ofuscao de suas pupilas facetadas
e sobressalto respectivo. Alguns precipitam-se
contra a mscara do radiador em cujo favo ficam
cravados. Outros esborracham-se contra o pra-
brisa, plantando ali uma cravina vermelha.
- Vais bem, Adozinda?
- Vou toda regalada!
- No tens sono?
- Tenho l sono com um pagode destes!
Adiante. Concentro-me sobre a estrada.
semelhana do raio do sol na cmara-escura, em que
se vem volitar corpsculos de formas e cores
estranhas, o revrbero do automvel revela uma
populao celeste to basta como ignorada. Falenas
em cujas asas desvairam todas as tintas do arco-ris,
moscas nocturnas verdes e dum roxo metlico,
pulges volantes, trombeteiros sanguissedentos,
vacas-loiras, tira-olhos, bezouros, a arraia
enigmtica dos mosquitos, avolumam ao contraste
da luz e da sombra. E espectralizados pelo claro,
ofuscados pelo inopinado sol, animados,
porventura, de ilusria velocidade, reflexa da
mquina, erguem-se, rodopiam, sulcam
estelarmente a atmosfera, para se esvarem em
vertigem como meteorites na noite.
Na corrida nocturna nada mais especioso que o
iriado arraial dos litros e das asas dos
leptidpteros. O carro vai rompendo o silncio e a
meia treva como a querena duma nave corta a gua
dum canal. Ouo a arcabuzada do motor, e a sua
cano regala-me, se no me inebria. O orgulho, se
alguma vez tal mostro desempenha na alma do
homem um papel salutar, nesta hora -me de bom
estmulo, embalando-me para l das contingncias
quotidianas. Por que espcie de sugesto auditiva
na toada do motor se entretece a Rverie de
Schumann, que um alar-se divino s altitudes?
A estrada nocturna tem outras mgicas alm do voo
delirante dos insectos. De sbito, o pano de fundo
da noite constela-se de ties lenticulares
amarelados. Sua orbicularidade e seu lume fugidio,
jogando em cadncia, tm no sei qu doutro
mundo. Um enxame de esferas sulfreas avana
para ns com lbrica e silenciosa celeridade. uma
estramblica apario. Adozinda chega a soltar um
grito. Mas um vulto desenha-se a meio da estrada: o
pastor. O rebanho comprime-se a uma das bandas e,
tais fogos ftuos, assim se desvanecem as moedas de
oiro reluzente dos olhos obcecados.
- Vais bem, pequena?
- No posso ir melhor.
Sinto o seu ombro, por vezes, descair sobre o meu e
logo despegar-se. O contacto sensualiza-me, enerva-
me um momento, apenas um momento, e sou todo
sentidos marcha. Meia-noite; hectmetro aps
hectmetro; sinais; sempre a fita dormente da
estrada. A sensao diurna, que tem o seu tanto de
aflitivo, de que a estrada foge de ns, de noite
inverte-se: a estrada vem para ns. o tapete rolante
de l para c. Aproxima-nos do nosso destino. Anda
to depressa como o carro.
De quando em quando, por uma coqueterie mais
intencional do que nervosa, tendendo a mostrar que
vai ao volante comigo, Adozinda sufoca um ai.
como o tremor do seu joelho que mal chega a roar o
meu.
Os vultos luz deformante dos faris tomam
propores fantsticas. Os ces que arremetem das
vielas, a malta de ciganos que passa, o coelho que
atravessa o nimbo da claridade sorrelfa, o carroo
com os farolins verde-glaucos dos olhos dos animais
derivam para coisas do pas das quatro dimenses.
Em verdade, o homem revolucionou as regras da
perspectiva, como sucede neste remontar, uma
noite, de Lisboa at s serranias da Beira. Para l do
Luso, ouvimos o cantar da toutinegra. Alvoresce. A
cambiante cromtica que a terra reveste desde a alva
- lusco-fusco, rosicler, madrugada - assinalada pela
passagem da luz, ferrete, azulada, branca, s
comparvel faiscao das tintas no colo duma
pomba.
- Bom dia, Adozinda!
No seu rosto charriscam as sombras da noite, mas
sem conseguirem amortecer o brilho dos olhos. Com
um belo sorriso, feliz da aventura, balbucia brando
como a aragem:
- Bom dia!
luz indecisa que roreja dos cus parece que
ajoelhavam os celtiberos, seduzidos pela graa e
mistrio de sua mutao subtil. Os astros, a terra, a
alma, tudo, enfim, tero sofrido transio anloga
atravs dos limbos do caos para a ordenao
gensica. Tambm eu ajoelho. O Sol, para os
orientais pai do nosso planeta, ao qual todos os
nomes assentavam bem, at olho de boi, levanta-se
no horizonte touro de todo. Toca a acelerar.
Julho, 10. A arribana compe-se de trs divises,
alm da varanda para sudoeste, recolhida no
sistema do edifcio, onde nos agradvel tomar o
fresco da tardinha. Em frente e esquerda as
corcovas do monte lembram, com o padernal muito
estilhaado e negro, paisagens lunares. Mas para o
sul, a sabor do corgo, um valeiro vai descendo, com
seus saltos e ravinas encoirados de giestas e
urgueiras arborescentes.
Para o norte uma verruga da serra no deixa ver
mais que um bocado de firmamento, acachapado
sobre ela como o solidu na calva dum bispo.
montono, maninho e calcinado o monte em volta
de ns. Durante o dia, todos os seus seixos brancos e
pedras lascadas bebem sol. A mica e o quartzo
hialino alumiam. Certas noites revessa-se dali a
quentura abafadia dum forno. Aperta o corao ver
aquele tropo-galhopo da natureza mirrado e triste
como um ossrio. Mas com a tarde, em geral, o
campo desolado transfigura-se. Parece um milagre
de piedade que se ergam dentre as fendas do
pedrial, as pequeninas maas de Hrcules do
rosmaninho e que a vela-luz rescenda to
consoladoramente. Os fieitos, as saras, as
carpantas, que se toucam duma florao de caf mal
modo, revestem literalmente os interstcios e as
nesgas de terra de laje para laje. Cobre-se de cores o
negro catafalco. E pouco a pouco saem os seus
ncolas a terreiro: o melro dos rochedos, que um
ermita endiabrado, a sombria sisuda, a gralha
nmada. O sol a mergulhar para trs do Caramulo, e
nuvens brancas e lentas como urcas vo deitando e
erguendo na terra, umas aps outras, crepes longos,
inverosmeis. Comea a soprar a aragem e um
coelho descobre-se a pincharolar na clareira, entre
urzes. Tep, tep, quatro passinhos e pausa; outra
avanada, e abana as orelhas. Depois, uma carreira
para desentropecer os tendes e senhorear-se do
mundo. Nova estao; ergue a pata e coa o nariz.
Mas o prprio movimento o aflige. Fica de orelhas
escuta. E como as nuvens no cu passem por cima
dele mais surdas que odres de candongueiros, os
ces dem voz de presena, se a do, l para o fundo
da vrzea, muito longe, o lesto animalzinho vai
sapateando pela encosta fora, serenado. quele
ajunta-se outro e outro, e uma quermesse de
focinhos franzidos, com a vrgula branca do rabo a
badalejar, brincalhes como colgios.
As perdizes, por sua vez, aparecem na crista do
morro, convocadas pelo cucuritar do macho. V-mo-
las descer em fila por entre os penedinhos, p aqui,
p ali, cabea a cortar o ar como quilha, na
propulso cintica de plas lanadas. O seu andar
to envolvido que na regio o traduzem por corricar
- termo que se aplica a uma roda e de modo geral a
qualquer disco movendo-se num plano. Chama-as a
gua do arroio, ou o verde da nossa horta e os gros
que caram das gabelas na leira de restolho ao alto
da fazenda. Mas o hortelo, agarrado vara da
picota, chafurdando e subindo o balde, intimida-as.
Ficam escondidas no mato espera que o
trangalhadanas recolha a penates.
O arroio com a estiagem est reduzido a um frouxo
de gua que se vai estilando brando e delgado
atravs da terra negra, soando aqui e alm como a
corda percutida duma viola. Ningum dir porm
que na sombra das barranceiras se disfaram
fundes, sobre cuja areia plida a gua dorme num
encantamento e limpidez original, mas onde
debalde eu espreito as trutas prometidas a
Adozinda.
E to deliciosos so aqueles smiles de dormitrios
de casta soror aqua, que eu probo ao Zaranza
mergulhar ali o aguador. Vou-me eu l meter, mas
benzo-me primeiro. No segundo dia da nossa
chegada os lobos vieram uivar para o morro.
Cheirava-lhes o bodum das cabras, que nos do o
leite, e, depois de se aproximarem sorrateiros e
retirarem descorooados farejando o inimigo
nmero um, lanaram do alto a sua fanfarra. Para
aquietar Adozinda, descarreguei para l a
espingarda, e no s calaram a msica como se
dignaram desaparecer duma vez para sempre.
Sol-posto, as sombras amortalham o morro pouco a
pouco com a exactido minuciosa de gatos-pingados
a armar um quarto funerrio. um momento
agnico esse do fim do dia. Por cima da ea,
desponta porm a cabea amarela do primeiro
prego: Vsper. Outras e outras estrelas acendem-se,
e comeam a cravejar o alto e fusco dossel,
derramando uma douradura lvida. Um grilo ensaia
a sua arieta. Logo de seguida so os ralos e as rs
dos crregos montanheses, que tm a voz ampla de
contralto, que se pem a solfejar. Breve entoa
matinas terra ensimesmada o coro pleno de
insectos estridulantes e flauteadores.
Eu fico dono do universo, penetrado de suas vozes e
eflvios, e distribudo a todos os ventos csmicos
pelos pensamentos mais inconformveis. Acabo por
me esquecer, desintegrado do eu, mas preso no sei
de que lao espiritual ao mundo dos fenmenos.
Adozinda vem avisar que a ceia est servida leite
de cabra, mais perfumado que nardo, com
pezinhos torrados na brasa de torgo e manteiga
sem sebo.
Deixo-me viver e suponho ter descoberto a pedra
filosofal da felicidade. Adozinda, logo dias depois
da nossa chegada, se ps a bocejar.
Julho, 15. No h outro cercado volta do meu den
alm duma sebe de giestas negrais. Tufada por
cima, desgrenhada ao rs da terra, por ali furaram
os roedores que comem connosco da horta. O
Zaranza em determinadas seitas (de sequor) arma as
ratoeiras, e todos os dias temos um laparoto
imolado nossa nutrio.
A fazenda tal qual um osis no deserto. Para c
no h outro caminho alm dum carreiro, estreito
como nastro, que vai torcicolando pelo mato,
emergindo aqui num teso, sumindo-se alm numa
cova, ligando ao povilu mais prximo. De l nos
traz o po fresco, o carneiro, e ainda a vitela, nos
dias de mercado na vila, o nosso zagal e estafeta.
Quando o vento sopra de cantaril, ouve-se o
repenicado dos galos nas eiras e no raro os
chocalhos dos rebanhos pascendo pelas escarpas. De
espao a espao um estridor ecoa por monte e plaino
dando-me senha do badanal a que vim fugido. Com
efeito, os carros automveis esgalgam-se ao fundo
da vrzea, harpejando a caixa de ressonncia, que
a campina com seus oiteiros e balsas, articulados
pelas cordas sonoras dos caminhos. Por vezes o
longo e spero matraqueado despejado do cu
pelos avies que se cruzam na Europa de cidade
para cidade, qual delas mais miseranda e
ensanguentada. s vezes estes pssaros de m
morte coruscam luz solar nem que sendo de prata.
Adozinda segue-os, gradativamente monstruosos
maneira das alimrias dos pesadelos, robustos como
milhafres, mais diminutos que gafanhotos no voo,
at se dilurem no azul, fiapos do fiapo. E suspira.
Armei a cadeira de embarcadio na minha varanda,
ao estilo da beira-mar em terrinhas de Oeste, e ali,
horas a fio, vomito, no me canso de vomitar
civilizao: guerras, intolerncia religiosa e camorra
poltica, estupidez literria e arte hedionda ou
medocre, mentira oficial e particular, torpeza,
convencionalismo, relice e mais relice. E quanto
mais vomito, mais tenho vontade de vomitar. No
uma conscincia dealbando-se, antes uma tripa que
se purga das fezes sedimentadas anos e anos.
Uma fonte, no menos tnue e doce que a colcheia
duma flauta, corre dum caleirinho para gastos da
casa na parte superior da fazenda. a voz mais
possessiva do silncio, reza ininterrupta e todavia
cantabile segundo a gama do vento. Se me ponho a
escut-la em sua subtil cromtica, acabo por ir
desdobrando rias longnquas e insuspeitas como a
das esferas no ter.
Cest fendre le cheveu en deux, mas nesse
passatempo ftil me entretenho. Consiste outro em
contemplar a desfilada das nuvens no cu,
diferentes todas, algumas to trgidas e outras to
remansadas que nem o compasso das emigraes
pelos tempos fora. Eu vou embarcando nelas e
viagem essa de circum-navegao volta do
criado e incriado, de que no voltaria to cedo, se a
mo de Adozinda me no abana por qualquer
motivo:
- Parece que anda na lua!
Estou morto por que expire o defeso para
esfoguetear as perdizes. tardinha pego no meu
pau ferrado e vou pelo monte. Saltando de rocha em
rocha, de quebrada em quebrada, sinto deitar dias,
anos, fora do plo. Diante de mim, saltam
alvoroados os bandos, capitaneado cada um por
seu perdigo. Simuladamente ergo a vara e aponto.
Pum! Pum, lindo doble! Ontem fui interromper
duas lebres que se macheavam. A caa, com a ceifa
dos centeios e painos e as primeiras decruas de
terra de resteva, acolhe-se ao serto. Da janela, pelas
manhs quietas, vejo saraivar nos cerros o lombo
aafroado das maaricas. Sobem para mais alto
ainda, o mar de carqueja que enche os cimos da
meseta, com imensa ch calva ao lado, onde podem
repoisar ou correr, imunes ao homem.
Sempre que volto destas pseudo-excurses
nenrodianas encontro Adozinda a chapinhar nos
pegos do corgo, drade de todo, ou na horta, mais
fresca que Pomona. No vem do molho da lenha e
da apanha da azeitona? Preside mesmo ao regadio,
enquanto o velho Zaranza - nu de tronco, para, na
qualidade de pria completo poder ser o homem
feliz da fbula, a pelcia caprina escorrendo gua e
suor - manobra o balde, afundindo e alando a vara
da picota com movimento rpido e pendular.
H quantos dias, semanas, estou eu neste
mundificatrio? Adozinda sabe-o, mas eu no tolero
que mo diga. Basta que conhea quando domingo
pelo dia de descanso do Zaranza. O meu receio era
que uma telha imprevista, como diz o outro,
casse em cima de mim. E caiu!
Estivera um dia excepcionalmente canicular e s
tarde, com o orvalho que um cu muito seco
borrifou sobre a terra, que os arbustos mesquinhos
ergueram a grimpa. Com a noite, noite gua-tinta,
dum negro translcido de aude, no se distinguiam
os objectos, mas adivinhavam-se. O morro
continuava a revessar calor e fui-me deitar, que a
cama, armada para o lado do poente, fresca e
apetecvel. Mal preguei olho, acordei a um ribombo
de fim do mundo: a trovoada. Logo a seguir um
relmpago varreu a terra com tal vassoirada de
lume que se podiam contar as pedras todas do
picoto. E o trovo, sinal de que a tempestade
elctrica pairava por cima de ns, crepitou num ror
de castanhetados infernais pelos cncavos, para
acabar num estampido medonho.
Numa pausa da trovoada, expectativa medonha e
escurido, estava eu a fechar as vidraas, senti uns
braos que se agarravam a mim. Era Adozinda.
Tremia como varas verdes e, fora de si, mas sem me
largar, enfiou-se pela minha cama dentro,
arrastando-me. Puxou as mantas para a cabea e
enleiou-se-me ao corpo. Trmula e transida, nunca a
hera se enroscou assim a um tronco. E a homem s
serpentes.
Procurei aquietar a pobre criatura pvida. A
trovoada foi desferindo para longe, atroando outras
serranias, mas, contra todo o propsito, Adozinda
no se desatou mais dos meus braos. Ah, que
ltego no ia desabar sobre o meu pobre paraso de
velho Ado sem vergonha?! Dir-se-ia que ela e o
trovo - ou ela e Deus, teria escrito Vtor Hugo - se
conjuraram contra mim.
Julho, 19. At ali quem mandava era eu, agora quem
manda Adozinda. Manda em mim, na casa, no
universo. Mandar o menos; o pior que o faz em
contra dos ditames que me atiraram para estas
penhas.
Pergunto-me agora se o meu enfado era da mesma
ndole que o daquelas pessoas que noutros tempos
iam pedir agasalho aos claustros para o resto dos
dias. Considerando bem, tenho-me por um cansado
do mundo sui generis. Este cansao, com efeito, no
de ordem fsica; o meu organismo executa todas as
funes com ordem e regularidade. To-pouco sofri
contratempo, destes que amachucam um pndego.
O Inverno, isto a velhice que avana a passo de
carga, muito menos me mete medo. Sei que h uma
piedade na natureza que, medida que
impossibilita os homens para certos prazeres, os
priva do apetite desses mesmos prazeres. Que
mergulha os moribundos na insensibilidade do
coma antes de os fazer atravessar as pavorosas
alpodras da vida para a morte. Nevou na minha
cabea, o espelho o proclama, mas sinto-me ainda
com pernas, mal abra a poca venatria, para estafar
um bando de perdizes. De resto, no me meti em
cavalarias altas e no me aguento nelas com honra?
Portanto, saturao de prazeres; esgotamento
corpreo; catstrofe psquica veias de gua que
outrora levavam o homem a buscar o claustro como
porto de refgio no pesaram na minha deciso.
Bem sei que todos genuflectiam a Deus esse
apartamento do sculo; mas o espiritual para a
pave humana era a douradura da plula.
Louvores ao Serfico, nenhuma destas razes, mais
ou menos traumticas, actuou na minha
sensibilidade. Mas ento? Julgo que me no engano
se disser que detesto o mundo no no fastio dos
gozos que me proporcionou ou na cainhez dos
gozos que deixou de me dar; a minha receptiva
sensorial aqui tem pouco que ver. Detesto-o na sua
trama intelectiva, nas decepes e, digamos, torturas
que causou minha inteligncia.
Como posso prazear-me de ser homem quando vejo
os meus semelhantes convertidos em ces de
matilha uns para os outros? Como posso eu no
protestar com me dizerem filho de cristo, nado
cristo, formado ao bero de tal maternidade, se as
duas grandes e abominveis chacinas, que
salpicaram os meus dias e noites do sangue e lama
das batalhas, se operaram no mago da civilizao
crist? Por fas e por nefas gerou-as o ventre
religioso. Eclodiram sombra da rvore sacrossanta,
cujos frutos me deram a comer como o manjar da
Vida.
Aqui est a causa primria que me leva a desertar
do convvio dos meus concidados, em regra
absurdos, estpidos, falsos, grosseiros e mal
cheirosos. E um nada, mas um destes nadas que
susceptvel converter-se no poedoiro em que se
dobou a nebulosa de Laplace, me projectou de novo
para o tumulto.
Adozinda esse supremo tudo-nada. a serva dos
Cantares, mas, dado que aliterria de todo, no me
julgo obrigado a tecer endeixas sua gentileza; tem
a planta que lhe vem de geraes de p descalo ou
estreada na bota prateleira: larga e gorda. O
artelho fino, mas a perna incha muito depressa a
formar panturrilha. Se certo que na mulher, em
matria de graas, ce sont les jambes la premire
chose quon carte, como pretende o Cavaleiro de
Oliveira, tambm no menos certo que num
templo a colunata antecede a qualquer outro ponto
no estmulo admirao. Mas tudo no corpo dali
para cima, cintura flexvel e estreita; ventre enxuto;
quadris ondulosos de gata; seio nutrido e
deliquescente; cabea de anjo florentino com as
olheiras das nevrticas de Henner - combina-se
admiravelmente para formar o que se chama um
petisco apimentadinho, digno dum abade. Um
abade de Abbaye Thelme, subentende-se, que os
outros abades, tanto os de hoje, de imaginao
cerebral flutuante, como os de ontem, perdidos e
achados por pastorear les grosses vaches, no lhe
achariam sabor ou pilhria, no sendo carne nem
peixe.
Acabou-se: espio os desejos nos olhos de Adozinda
para lhos satisfazer; s vezes no chega mesmo a
formular a sua vontade at resto; a meio da frase, j
eu exclamo: faa-se! Vejo-lhe crescer as unhas,
unhas de felino, mas por enquanto no h perigo
que arranhem. Mandou fazer a permanente, mas
comigo ao lado a dar-lhe conselhos de discreo e
bom tom. No ficou mal de todo, mas o penteado a
carcter da fisionomia, dos olhos, do sorriso, do
impondervel esttico que h numa cabea juvenil,
uma arte completa que no se atinge de salto.
Voltaremos.
Ando a civiliz-la por fora, que por dentro no me
interessa, nem sei se seria possvel consegui-lo e
muito menos se valeria a pena. Quero crer que o
mesmo era que estrag-la e deixo-a com a sua
detestvel pronncia: mantga! pxe! azte! e na sua
santssima ignorncia de Eva do Paraso Terreal.
Fui cidade enroup-la dos ps cabea. Que bem
lhe fica o vestido de alfaiate? Depois, aquele padro
de largo xadrez cor de caf e vinho sobre sapato de
calfe amarelo, salto americana, assenta-lhe a matar
com a cor do cabelo e a tez sardenta. Mas a tola
cobiou-se desses horrveis sapatos com altos
trampolins de cortia e fivelas, que lhe fazem
regueifas hediondas no peito carnudo do p. E a
criada de servir mata-se lgua.
Uma vez senhorilmente ataviada, apeteceu-lhe ver
mundo, o mundo a que fugi eu e Santo Antnio
Ermita, e comeam os meus amargos de boca. Tomo
um automvel de aluguer enquanto consertam o
meu, recolhido, de baterias descarregadas, numa
garage s portas da vila. Passamos dias inteiros fora
do pedernal e eu encharco-me da vida provinciana.
Mostro-lhe velhos burgos, encarrapitados em
morros tristes, parados como nebris espera da
ovelha manca; esses relicrios populacionais
deixam-na indiferente. Visitamos quintas fidalgas
com ruas de buxo onde perpassam sombras
romnticas e faunos em cima da peanha de musgo
no acabam de tocar a sua gaitinha de cinco tubos;
boceja. Passeio-a por uma praia da moda; ressente a
sua elevao de fresca data ou o deslustre dos meus
cabelos brancos, e envergonha-se. Levo-a por feiras
e romarias e a, sim, no seu elemento, respira e
encontra-se.
Aprendeu j a calar uma luva; ontem surpreendeu-
me com escovas e ingredientes de manicura. E pois
que o culto da garra incompatvel com a cozinha,
que remdio seno contratar uma cozinheira?
Trouxeram-me uma mulher do povo, que
costumavam chamar para os banquetes nos gerais
eclesisticos e quando o senhor bispo fazia a sua
visita pastoral s freguesias, negra e feia como um
sudrio da semana Santa: a Rita Procpia. Para
mestra na arte culinria, priori, s lhe falta o olho
vesgo. De concesso em concesso instalo uma
antena, que desce l de cima do monte sobre a nossa
sala de estar. Serviu antes de mais nada para as
andorinhas se baloiarem nela. E todas as noites o
nosso poderoso radiofone atira ao silncio da
serrania a voz da Amrica, a hora da saudade e at
os sambas do Rio. Por isto e por tudo o mais, o
corrilho de gente que durante o dia me vem visitar,
curiosos, mendicantes, presenteadores da bilha de
leite, necessitados, o meu retiro, at altura quieto e
realmente ednico, integra-se na relice nacional e no
pandemnio cosmopolita.
Julho, 20. Gostava tanto de ir feira de Lamas!...
- feira de Lamas!? Oh, pequena, tu tens alma de
bufarinheira. No estiveste na de Barrelas? Na de
Aguiar?
- diferente.
- a mesma, mesmssima coisa. Mas, j que
arrebentas se no vais, prepara-te. O Joaquim leva-te
na jerica at o carro.
Agarrou-se a mim aos abraos, porque no sabe
beijar. Beijar uma arte de civilizados, que ainda
no teve ensejo de aprender, nem serei eu que lhe d
lies, no v por l a cascaroleta abusar da minha
confiana.
Antes das onze horas estvamos na feira. De quinze
em quinze dias, salvo os sbados em que bota
adiante, acode ali o gentio de quatro lguas em
redondo. Em matria de veniaga, haja dinheiro,
como diz o outro, que ali encontra-se de tudo. O
artigo especial so peles, peles de toda a espcie de
bicho, desde o coelho dos montes, fuzilado quando
dorme no tojinho, cabra azevieira a que o pastor
quebrou a perna com uma lapada. Nos dias de sol,
pem-nas a secar em pblico, sem grande respeito
pela pituitria do cristo, e acode ali a moscaria de
cascos de rolha. Neste negcio andam muitos e
vrios samarreiros batendo as aldeias e comprando
pelas portas.
- Compo-samarras! - prego to trivial como o
Fresquinha como gua! ou Amola tesoiras e
navalhas!
Segundo um estilo que vem desde D. Urraca,
comum a todas as terras do Norte, o campo da feira
um copado bosque de carvalhas, algumas que
deram bolota aos porcos do primeiro senhor do
Cadaval, que cerca dali teve o pao. Ao seu toro
encosta o homem das seitoras a cutelaria, pendura o
ourives o lenol de riquezas, prendeu o ferrador o
garrano que est a ferrar, como sua sombra a
chafariqueira da sardinha ou da marr acende o
brasido e forjica a comezaina. Vacas e animais
domsticos, salvo os cerdos, que se exibem parte,
alastram pela escarpa acima, e nas feiras em que
houve enchente, feires lhes chamam, a mancha
gregria, movedia e fulva, no deixa de ter o seu
pitoresco.
Estes mercados so hoje o que eram no tempo da
Maria Castanha, o barato. Reflectem de resto a
fisionomia da Beira, se no de Portugal inteiro.
Marchantes e vendedores atropelam-se como as
marchanterias em que negoceiam. Raro que tenham
poiso certo, em obedincia a um princpio de ordem.
Quem chega adiantado escolhe o lugar. Mas tudo
cabe no terreiro, que tem o condo de ser elstico
como o Vale de Josaf. Balco e mostrador so o
prprio cho. Excepcionalmente, o tendeiro de
linhas e alfinetes e o vendedor de chitas e riscados
erguem tarimba. O louceiro, o latoeiro, to bem
como o hortelo que traz couves e cebolinho
derramam a fazenda por terra. O mesmo fazem as
fruteiras, que se acocoram por detrs da canastra, e
as padeiras de broa. Antigamente, o negcio fazia-se
a olho. Regateava-se forte e feio, para se fechar ao
cabo de muito peguilho e palavriado:
- A quanto as bberas, tiazinha?
- Quartinho o meicento.
- Irra, v vend-las aos presos da cadeia!
Este ano, porque foi escasso de fruta, o meio cento
dos figos moscatis vale tanto como nos bons
tempos a carga mais o onagro. Pera baguim, uma
pera de baixa escala, vendem-se trs por dez tostes.
Pela primeira vez aparece a balana de ganchos a
pesar repolhos.
- Seja pelo amor de Deus! - exclama uma velhota
benzendo-se.
O sector mais curioso da feira, de resto tanto aqui
como em Salamanca ou Samarcande, o das tendas
e da olaria. Bugigangas de arregalar, canivetes de
marca anzol, colheres para as papas e o arroz doce,
fitinhas de cores berrantes para os cabelos, ligas das
meias, lenos de algibeira com dois coraes
atravessados por uma seta, perfazem o tabuleiro de
maravilhas aos olhos das pateguitas cobiosas.
Quanto a loua, h sempre grande sortido e de
procedncia vria. De Vila Real vm as infusas
pretas, rivais das de Molelos, na cor que no no
especioso; de Vale de Ladres, caoilas de malhada
e bojudas panelas; de S. Martinho de Paus, as
pcaras altas e elegantes, de trs, quatro tigelas. Mas
o produto industrializado invade o mercado e
expulsa o oleiro rstico. Comeam a rarear os pratos
que tm um Sol ao meio que, parece, ajuda com seus
raios em ourio a aguentar o comer quentinho; ou a
palavra amor escrita com tanto requebro que trai no
calgrafo um corao apaixonado; s vezes um nome
de mulher vibrante como chocalhar de cmbalos. E
onde esto os covilhetes, duma slica encarniada
que nem lava?!
O pintor de loua, em geral, animalista, o melhor
que sabia representar era o galo, a cabea do gato ou
da raposa, a trutinha brejeira. De todos, nenhum lhe
estava a carcter como o galo. Revia-se ou desejava-
se nele, muito testo nas patas, pimpo das aldeias
no s pelo arremesso como pelo ar sacripanta,
reptador ainda, atirando s fmeas suas promessas
de lascarinho.
A feira, olim, vendia de tudo muito, e sempre
sobejava fazenda... Hoje, o rstico bota-se l, como
acabaram com as romarias que lhe falavam ao
paladar, pela mesma razo porque na cidade se vai
ao cinema. Um tanto por necessidade, muito por
passatempo. Se no para vender o bezerro,
comprar brochas para os tamancos, dez ris de
alhos, uma colher para as migas, f-lo nada mais
que para emborrachar-se ou dar taramela.
Amarrado enxada ou rabia todos os seis dias da
semana, aquele dia seu. Nos adjuntos discutir
tudo, as suas dvidas e as dos vizinhos, o preo do
centeio e do surrobeco, a guerra e a poltica do
campanrio, ao passo que a caneca anda roda.
Com o saquinho de estopa s costas, o pau ou
aguilhada na mo, porta do taverneiro ou em
frente da pipa ala-premada nas chedas do carro,
fazem uns com os outros longo e nacionalssimo
parlamento, sob o signo de Bertoldo e Cacasseno.
Giramos de c para l, mais curiosos que
interessados. Adozinda sente que d nas vistas e
goza como uma actriz aos luzeiros da ribalta.
gostava de saber que conceito lhe granjeia mais
sufrgios: menina casadoira ou pga por conta. Ser
conforme a inocncia do mirone.
Nos mercadores, queda-se a namorar as mantas da
serra da Estrela zebradas de escarlate e zarco sobre
fundo castanho. Vejo em seus olhos glaucos
acender-se a nostalgia da manta alentejana com seu
aconchego voluptuoso tutelando vida e morte da
maltesia.
- Quanto?
- Duzentos mil ris estas de l de camelo. Uma
pechincha; cento e cinquenta, aquelas, um
poucochinho abaixo na qualidade: um verdadeiro
pau por um olho, Vosselncia!
E, sem esperar resposta, arroja a pilha de mantas
para cima do mostrador que lufa-lufa se pe logo a
desdobrar. Adozinda olha para mim e no sei a que
luz entrev o meu gesto displicente, pois aquelas
mantas eram trapo acabado, trapo reles, e oferece:
- Cento e cinquenta esta?
- No querem l ver! - exclama o homem com ar de
gato assanhado. - Uma menina to elevada desfazer
assim na mercadoria! S por desaforo! Seu paizinho,
que pelos vistos homem do mundo, que seja o juiz!
Cento e cinquenta escudos uma manta de l de
camelo!
Puxo Adozinda pelo brao com vontade de
esbofetear o traste. Mas j o homem matuto salta
sobre ns como ona:
- Pegue l a manta! E pegue-a l por ser a primeira
que me sai do fardo. No quero que me engalinhe a
venda. Perco, mas benzo-me com o prejuzo e,
acabou-se, enxota-se a macaca...
Levo o cobrejo no brao como um trofu. Cheira a
suor, suor dos mil e um mendigos que se rebolaram
nele quando agasalho e atafal, dos mil e um
cavadores que o trouxeram nas calas e na vstia,
dos zagais sem conta que abrigou da neve e do frio,
talhado em capucha e gabinardo. E,
imprevistamente, sobre a minha confuso e a
algazarra beduna da populaa mesteiral a torre
lana o meio-dia. Pausa imediata: tiram-se chapus e
carapuas. O ferrador deixa o cravo a meio; o
magarefe suspende o golpe da faca; o piteireiro
estaca com o copo na mo; a mocinha, que tocava
a panela, pra com o toque; as senhoras e os ociosos
deixam de peripatetizar; mesmo o v ser cigano l
fora fica em suspenso. Tudo, em suma, que era voz
articulada extingue-se por efeito mgico do
Angelus. Adozinda, que tem uma costela ignorada
de infiel, olha para mim espantada. Um sorriso de
desdm aflora-lhe aos lbios pintados de escarlate,
mas no se permite infringir a siderao geral.
Ouve-se uma chieira como de incndio a lavrar no
mato; a ave-maria a passar na glote spera das
beatas sem dentes, dos velhos pernsticos, do geral
das criaturas que tm em vista que os santos e,
demais, os humanos saibam que rezam com todos
os ff e rr.
Depois, to repentinamente como surdiu, fecha-se o
hiato. Recomea o alvoroo tal exame que volta a
zumbir e panelas a cachoar. Os burros orneiam; o
cortador espatifa a rs; a raparigota verifica que a
bilha no mela. Adozinda aperta-me o brao:
- Porque que rezam?
- O beiro manhoso e jogador: um cheque a
descoberto sobre Deus.
assim que a feira de Lamas, do mesmo modo que
todas as nortenhas, espcie de grande bazar de h
sculos, como se encontra descrito por aqueles
viajantes que percorreram as sete partidas do
mundo cata do Preste. Se excluirmos a camioneta
que acarreta as mercadorias e at mesmo os
feirantes, sobretudo depois do volfrmio, tudo
decorre como devia ser nessas pocas remotas, de
mamposteiros de bordo na mo e borracha cinta,
pelo mundo.
Abarrotamos o carro com vitualhas e fruta, e ala. As
estradas esto piores que no tempo do rei que
rabiou. Ligao para o Norte falta. Os povos que
andaram a rapar nos caminhos, a ajeitar um
simulacro de carreteira, tudo por sua diligncia e
alta recreao.
- Por onde hei-de ir para minha casa que fica por
detrs daquele monte? Caramba, quase lhe chego, se
estender o brao! pergunto a um dos senhores da
terra, o que adivinho pelo ar, gabardine aos ombros,
sorrisos lampeiros direita e esquerda,
receptividade cortesia.
- V por essa estradinha que ns fizemos. At
Corujeira um mimo. Depois torce direita e sobe
aos altos carrapitos da Lapa, mas o piso suave.
Simplesmente... simplesmente, para chegar ao ponto
que quase toca estendendo o brao, por trs do
outeiro, tem mais vinte quilmetros a andar do que
pelo caminho por onde veio. Que isso para o
automvel?!
- Pois ventura!
Rompemos pela via agenciada no mato e no capim,
como em frica, sempre ao norte, direito ao planalto
que liga a serra da Lapa da Nave.
parte um incidente na Corujeira com o troglodita
dum homem que se no distrai da rega do milharal
para nos ensinar o caminho, atirando-nos para um
pesperro onde j nem sequer passavam carros de
bois, parte esse diablico transe, que delcia ir
devassando quilmetro a quilmetro a terra virgem,
apenas roada do mato, fofa e direita como a palma
da mo! Por cima de ns, abaixo de nuvens muito
froixas, o bandoleiro dum milhafre procura a perdiz,
descuidada com seus perdigotos. Voa to alto que
os crculos que descreve mal pem uma sombra
ligeira na terra hipntica. Eflvios suaves levantam-
se nossa passagem. Vm do sargao rasteiro, do
tojo alvarinho, da esteva, humildes plantas da
altitude, mas que possuem tesoiros secretos de
perfumaria. E o ar embriaga como um licor muito
fino. Um povilu, dois, lobrigam-se ao longe, nas
dobras baas do terreno, nenfares num lago. Em
dado momento, comeam os sinos do Santurio da
Lapa a repicar para a novena. Planalto fora, deserto
e raso, as badaladas ressoam como na nave duma
igreja. A tremulao galga at a extrema do
horizonte e parece manter-se suspensa a todo o cu,
camada sobreposta a camada, ruflando com suas
asas de bronze.
O automvel desliza surdo e veloz, compenetrado,
dir-se-ia, da leveza ambiente, no perturbando de
nada o misticismo da hora. Luz, perfumes, luaceiros
de lugares ao largo, os ralos, as rs nos charcos do
Vouga, a onda sonora que vem da Senhora da Lapa,
o focinho pintarolado de Adozinda compem uma
cavatina vesperal, sensorialmente mista, da mais
desconcertadora harmonia.
Julho, 24. A cada ms corresponde um signo
zodiacal e a este um temperamento, considerado o
seu influxo sobre os humanos. Por isso compreendo,
embora me espante, a sorte de letargo que desde o
crepsculo da tarde ao da manh se apodera do
mundo nesta altura do ano. As noites breves que
vo decorrendo, pinceladas dum negro vaporoso,
profundssimas se se olhar no cu a sua
concavidade, parecem concebidas antes de mais
nada para dormir. Para dormir dum s jacto, galho
ferrado na travesseira, a p quedo como os anjos nos
frontes dos mausolus, penetradas as criaturas e as
coisas de etrea imobilidade.
Pouco depois de se pr o Sol, j se no ouve o mais
brando sussurro na amplido. A natureza caiu em
colapso, varada dos rigores do sol e fatigada da
exuberante vida diurna. O firmamento, salpicado de
estrelas mortias, cispou-se hermeticamente sobre o
mundo, como campnula da mquina pneumtica.
Nem hlito, nem eco.
A minha serra, pedregal, lobos e vento, est muda
como a rabeca dum cego assassinado. E caso para
quem vem da cidade, habituado ao rudo, crdulo
de que Julho, em concorrncia a Agosto, ms dos
santos ao pescoo, seja um arraial, se perguntar,
acordando na ptrea serenidade: morreu o mundo?
O mundo no morreu, nem provvel que morra.
Aplicando o ouvido, apercebe-se a gente dum sopro
regular e eterno, e quanto basta para sabermos que
existe. O mundo, simplesmente, transforma-se.
H uns milnios, o que no representa mais que um
lapso na durao, do refervedouro agitado dos seres
destacou-se este bicho, que se deu o nome de
homem, e cobrou a prospia de se julgar feito
imagem e semelhana de Deus, o protos. No
obstante aventura to desconforme, nada autoriza a
decretar que ns humanos esse bicho sejamos
eternos como a matria donde provimos. E de
admitir que numa viragem, avenidas da evoluo
fora, nos acontea ser desbancados por outro ente
dotado de faculdades superiores, em condies de
adaptao ao meio mais oportunas e fceis que as
do homem, para quem a terra foi e continua a ser o
Vale Maldito.
Tal circunstncia pode ocorrer no mesmo seio
misterioso de que nos escapa a razo de toda a
fenomenologia, tanto mais que uma lei de
efemeridade parece presidir existncia dos seres
organizados que hoje povoam o planeta. A avaliar
por semelhante craveira, o homem no deve passar
de ser transitrio e, dada a sua incapacidade para se
sobrepor luta fratricida, possvel augurar da sua
extino como espcie, encarando nada mais que o
prospecto da sua decadncia quer no individual,
quer no tnico, patente a todos os olhos. O
progresso materialista no deve representar mais
que um acidente, alheio, digamos, vida celular do
gnero humano.
Que o mundo se transforma e no mundo as formas
da vida, di-lo a experincia de qualquer
investigador medianamente atento ao espectculo
da natureza. Em meio sculo pude eu verificar
mutaes, que imagino no sejam o joguete dos
sentidos ou devaneio da minha fantasia. Para o caso,
o homem um vasto e profundo mar, e tudo nele se
mostra fugidio e furta-cores, embora na crueza
suicida de que deu provas nestes dois decnios, na
falta de solidariedade, na perda de simpatia e
anteposio do rancor e da revindita a qualquer
sentimento generoso e mesmo aos ditames da razo,
seja lcito vislumbrar o declnio daqueles dons que
firmavam a sua preponderncia.
Ao observador a longo prazo dos costumes e
manhas de tais e tais viventes, quero crer que se
deparem saltos e variaes que abonam
pragmaticamente a grande lei da evoluo. Assim
eu tenho a suspeita de que certos animais, que se
encontram paredes meias com o homem,
melhoraram seus processos de defesa ou porventura
refinaram em discernimento. Abstenho-me com
semelhante rtulo de pr o problema do instinto ou
da inteligncia para l da espcie humana. Tenho
notado, por exemplo, que as perdizes, perseguidas,
adquiriram o hbito de se empoleirar nas rvores
em vez de varrer o cu de asa flbil, voo aps voo,
muitas vezes at acabarem entocadas ou a corricar
sem foras, ao alcance do perdigueiro ou do
caarreta do coelho. Alguns insectos, como as
melgas, percorrem as paredes dos mosquiteiros em
linhas paralelas sucessivas, centmetro a centmetro,
at toparem o furo por onde se insinuar.
Dos animais que o homem avassalou e fez ucha ou
servido, se uns sublimam na estupidez, como o
carneiro, a galinha, o porco, outros, pelo contrrio,
desenvolveram suas faculdades num grau
aprecivel.
O Antnio Pedro tem um co que responde a cento
e cinquenta palavras. No o levou para Londres,
para no ter que contratar um lngua. Dizem, mas
eu s acreditaria fazendo a conta, que certos
romancistas no usam muito mais vozes. Seja como
for, h algum que tenha co que o no julgue
perspicaz e to inteligente que s lhe falta falar!?
A par com estes progressos, fantsticos se no
explosivos, h mutaes inegveis na vida animal
das espcies. Os climas conformam a fauna. Agora,
por exemplo, os camponeses queixam-se do terrvel
escaravelho americano que traga a rama dos batatais
enquanto o Diabo esfrega um olho. Por isso me
trazem a arroba ao preo a que antigamente custava
o quintal. Examina-se o malfeitor, e ningum seria
capaz de dizer que semelhante bestiola viria
provocar tal carestia e estrago. no estado de adulto
um insecto pouco maior que a joaninha, e vistos em
conjunto, no fundo do caco que lhes servir de
crematrio, parecem bocadinhos de borracha de
cmara de ar. Espalhados no mar de verde, corais
que se soltassem duma gargantilha.
Alm deste temvel coleptero, outros vo
aparecendo para tormento e desespero do lavrador.
Um deles uma larva que ri o caule do milho,
partindo da raiz, e de que o meu informador ignora
o processus biolgico.
A par com esses, se abano as minhas jovens tlias
hora do lusco-fusco, saem delas mirades de
borboletas e insectos que so para mim novidade.
Por outra, se se pe o p nos campos ou at no mato,
o mato destas serranias, que no mais que
rabugem vegetal, levanta-se igualmente diante de
ns uma nuvem de saltantes e alvadias falenas.
Donde veio toda esta extica, difusa e maligna
bicharada?
- o fim do mundo - exclama aqui o meu Zaranza
que regula o culo pelas profecias do Apocalipse.
No o fim do mundo, o mundo em seu renovado
e perptuo devenir.
Tambm estas noites, que eu trazia na minha
lembrana cheias de serenatas e bailados nupciais
dos seres alados, se me entremostram caladas como
um catafalco. Foram sempre assim neste passo do
Julho ardente, com o gentio cansado das ceifas e
carretas, as aves a chocar a ltima postura ou a criar
os filhos ao cibato granjeado a poder de riscos e
canseiras? Creio bem que no. Calou-se o batuque
que as rs do nos charcos e me deram nos
primeiros dias das angrazinhas do meu corgo.
Emudeceram os dois rouxinis que h semanas, l
em baixo nos salgueiros solitrios, se entretinham ao
desafio, um desafio to inspirado como de rapsodos
nas cortes de amor, e que punham a noite em
suspenso, por cima deles, dionsica de todo. Acaso
teriam realizado seus votos, apaziguando a fome de
amor? Ou comeu-os a gineta, torceu-lhes o pescoo
algum gaiato? Porventura, tenham emigrado,
nmadas e insatisfeitos, para outras paragens, e no
procuremos mais.
Nem as cigarras, que lembram caixeiros a rasgar o
riscado, se fazem ouvir. To-pouco os sapos, to
fnebres que a sua voz a cantinela condolente de
quem est em visita de psames a prantear um
morto; muito menos os ralos que lembram os tubos
sonoros que descem em cortina musical s portas
dos pagodes e dos barbeiros italianos toda essa
filarmnica maviosa desertou do coreto. Nada
perturba a calma impondervel da noite. O espao
feito de negror, um negror em que flutuam o azul
difano da gua profunda, duma fluidez
maravilhosa, o aroma feito de mil essncias vegetais,
e o silncio. Mas um silncio absoluto, em que o
bordo duma mosca faz mais chinfrim em sua
estrutura area que o sino grande nas naves duma
catedral. Adozinda entra dentro do meu seio como o
luar numa concha de gua pura. Nirvana!
Ah, mas logo, quando a estrela do Pastor descer
sobre as runas da citnia, nos contrafortes dos
Cuvos, que cntico da alvorada no rompe da serra
e do cu! gorjeia tudo, primeiramente o melro, um
melro preto e bonito como um estudante de
Coimbra, que vem saltitar por cima das giestas
negrais do meu condado! Logo a seguir as rolas, as
poupas, os pombos bravos, mestres em solos e
acompanhamentos de trompa, l em baixo no pinhal
da Laja dos Lobos, nos bosques e silveirais. Depois,
a arraia dos ares, a pardalada, que veio com o
Zaranza, que veio connosco, desata em tal inferneira
que nem a Senhora da Lapa no dia da sua festa.
Deste modo se desforra a natureza da
deliquescncia nocturna. E nada mais que pela
jovialidade matutina se conclui que o mundo, em
converso para outra coisa, possivelmente para a
loucura integral, tem muita guita para dobrar.
Agosto, 10. Afinal tambm aqui chegaram
desgraas. Vm agarradas roupa do pessoal, se
que no dispararam para o meu penhasco a tire
daile como os corvos. Esta nossa terra uma
chocadeira fabulosa de malefcios e absurdidades.
Uma Procpia, irm desta que tommos ao servio,
rompeu a em tais prantos que comoveu Adozinda,
de resto atreita lgrima.
- Que quer a mulher? pergunto de m catadura.
- Queria o filho.
- Pe-ma a andar. Aqui no se ouvem queixumes.
Para isso que foram inventados os templos.
- Coitada!
- Mas que lhe posso eu fazer? Quer dinheiro? D-lhe
umas dezenas de escudos.
- Queria aconselhar-se.. que lhe dissesse se os
espritos dos mortos falam com quem c fica...
- Falam, sim, costumam falar ao paladar dos
velhacos ou dos simples. Comigo que no falam.
- Queria saber se falam a dizer sim ou no a isto e
quilo?
- uma questo de disposio.
- O filho dela fala com ela e com vrias pessoas da
terra...
- Bem, que o no afugente.
Desde pequeno que o filho da Maria Procpia
ganhara fama com os bonitos da sua navalhinha de
pastor. A apascentar as vacas, enquanto elas iam
retoiando a erva dos cerrados e tilintando as suas
sete campainhas, carpintejava brinquedos, por via
de regra alfaias agrcolas em miniatura, muito
apreciadas dos meninos fidalgos, a quem as oferecia
liberalmente. Esculpia tambm no castanho-
vermelho figurinhas de pessoas e bichos, algumas
hilariantes no seu talhe caricatural, fora de
proporo e medida.
Foi crescendo e no houve na aldeia melhor caador
de pssaros. Com as costelas, em que serve de
engodo uma embude, presa por um cabelo, a luzir e
a estrebuchar, ou com as esparrelas armadas onde
os tejasmos e tralhes monsticos costumam eleger
plpito, trazia noite com que adubar a panela. No
tempo dos ninhos no havia loira de coelha ou
perdiz na postura que escapasse aos seus cinco
mandamentos, herdeiro de toda a barbrie e astcia
dos avs turdetanos para tudo o que erguesse voo
ou rastejasse. Mas salvo esta rapacidade nata era um
excelente mocinho, afvel e esperto, que pusera o
ramo na vila pela presteza com que respondera s
difceis e doutorais perguntas dos senhores
examinadores nas provas de 2 grau. Tambm
deram nas vistas os seus sapatos de bezerra, o bon
de pala aos quadradinhos e a gravata com que a
me caprichou ajouj-lo, porque era gente de alguns
teres e ciosa.
Espigou e no iludiu os bons augrios. Da sua
igualha estava para nascer rapaz mais estimado pela
compostura e agrados naturais. Morria por ele mais
duma cachopa.
Imprevistamente o Fausto - o padrinho tinha-lhe
posto este nome de feiticeiro - faleceu. De qu? Na
serra vem-se ao mundo e deixa-se o mundo sem
assistncia mdica, de modo que construir um
diagnstico sobre os dados fornecidos pelas pessoas
que assistem doena e passamento to ftuo
como lavrar na areia. No povilu esta morte foi
causa de grande paixo e infinita lamria. E com a
turvao que motivou, a ningum ocorreu que o
Fausto, por suas boas e leais manhas, agenciara
algum peclio no negcio do volfrmio, e que nunca
se dera f dele o ter empregado bem ou mal.
Semanas decorridas que vieram com a alada
me lacrimosa:
- Tia Maria, o seu Fausto tinha dinheiro. Encontrou-
o?
No tinha pensado nisso, o que compreensvel,
conhecendo-se-lhe a alma amorvel e generosa e
certo desprendimento pela pecnia, se bem que a
sua casa mal passasse de remediada. E ela e o
homem e a filha a se puseram a procurar o pequeno
tesoiro do defunto, desarrumando-lhe o catre,
esforcando com um pauzinho os buracos da parede,
pesquisando nos recantos dos lameiros e lojas das
vacas, e em certas copeiras nos muros do quintal e
da casa, que lhe tivessem podido servir de
esconderijo. Por muito que rebuscassem, no
conseguiram pr a mo num ceitil.
Foram consultar a bruxa de Quintela da Lapa. A
mulher de virtude, depois de ouvir com grande
ateno a parte toda, declarou em tom peremptrio
que o defunto levara o dinheiro consigo. Fossem
sepultura, que l estava.
Foram com a revelao me, que quem tudo lo
manda, o marido sendo apenas o moiro obediente
da casa. Dava licena que desatupissem a campa? O
qu?! Ela consentia l que fossem bulir na terra que
h semanas estava a comer o seu filhinho?! Nem
pelo oiro todo do mundo. Se algum cobioso ou
doido caa na tentao de tocar na cova, saa rua a
gritar contra o profanador.
Mas na aldeia, de gorra ou no com o coveiro,
formou-se uma quadrilha de pilhos. Iriam exumar o
cadver para o despojar do fato que lhe servira de
mortalha. O baguinho, o rico baguinho apurado na
barganha do volfro devia estar nas entretelas, pois
onde havia ele de o ter metido?
Como todos os cambes, formados para estas
empresas fantsticas margem do maravilhoso, seja
explorar as riquezas dos Incas, dos galees de Vigo
ou os tesoiros mencionados no Livro de S. Cipriano,
tinham que pr-se em dia com o sobrenatural.
Foram ter de novo com a adivinha e corpo aberto.
- Tragam-me o maior amigo do defunto.
O maior amigo era um primo que teve o bom senso
de avisar a tia da diligncia. Esta botou-se a casa da
mezinheira:
- sua mulher, que vai vomec falar? Se se atreve a
dizer segunda vez que o meu filho levou o dinheiro
para a cova, na mesma hora em que mexam na
campa me ponho a caminho da vila a fazer queixa
ao senhor juiz contra uma desenvergonhada!
O maior amigo, com os da malhoada, foi a casa da
vidente, que pegou num copo de gua e lho meteu
na mo. Em seguida mandou-lho baldear, baldear,
sem verter o lquido, at que, operada a
consubstanciao, exclamou:
- L est ele! Vem-no?
Era o esprito do finado.
- E que diz ele? - inquiriu um dos circunstantes, que
acertou ser o cabea do trancafio, persuadido da
estranha presena.
A mulheraa caiu em transe e exprimiu-se assim em
voz alada:
- O dinheiro levei-o, sim, comigo, mas j no est na
terra santa. Quitais de procur-lo. Foi distribudo
por uns grandes necessitados. Nosso Senhor
perdoou-me, com dois anos de Purgatrio. Rezai-me
por alma, que dia e noite as labaredas me queimam
e requeimam sem que sofra outra quebra alm de
dor e tormento.
Aqui est como repousam em paz, entregues
natural consumpo, os despojos mortais do
tesaurizador infeliz.
- Acreditas, Adozinda?
- Sempre acreditei nas almas do outro mundo.
Algumas andam penadas e nunca mais encontram
descanso flor da terra.
- S morre o corpo?
- S morre o corpo. Ento podia l ser apagar-se a
gente como uma candeia e cair na escurido
perptua?
A msera no se pode resignar perda da sua
insignificncia. Est certo, este sentimento de
sobrevida coaduna-se admiravelmente com a sua
natureza primria. A boa lasca de carne gozadora e
gozada no havia de ter horror ao nada?!
J dizia minha av: so poucos os que tm coragem
de passar quitao fatalidade de no ser. Nihil
um conceito mais abstracto e soberano que o de
Criao. Como tal no est ao alcance de todos os
crebros. E sobretudo desagradvel ao nosso
egosmo.
Agosto, 23. No sei por que linhas retortas, ganhei
fama de homem milagreiro e omnipotente. O eco do
meu valimento ressoa longe como os sinos de
Toledo. Como foi possvel? Mistrio das reaces
populares. Estou capacitado que se por casualidade
me venho a demorar nestes ermos, o meu penedal
acaba lugar universalmente consagrado de
peregrinao para aflitos e encalacrados, como
Dornas, com a sua benta, na serra da gralheira, ou a
Boa Vista com o seu fidalgo e par do Reino, no
termo da Rua. No falo de romaria, pois que
ningum me v de camndulas ao peito e a erguer
os olhos ou o indicador para o Cu quando falo. E
pela ausncia em minha pessoa destes ademanes,
usitados pelos menigrepos da serra, se espanta de
resto o gentio.
A verdade que desde Agosto para c no me
deixam gozar um s instante de sossego. O carreiro
que me liga aos dois povilus, que se lobrigam l em
baixo, no horizonte, est pudo do passo dos
tamancos e sapatos de brocha, ia dizer das
mesnadas, e serpenteia mais largo e branco.
Verdade que tanto cursado por gente de p como
de cavalo. A montada clssica da regio o jumento
com albarda e cabeal, ao estilo ainda de Buridan.
s vezes lobrigo atravs das restevas, no onduloso
da encosta, estas homricas jericadas. E imagino o
que era o orgulho dum nobre Testa-de-Boi quando
avanava para o seu castelo de roca a hoste amiga
de balses ao vento, e batendo atabales.
Todo o santo dia atravessam a sebe de giestas, que
tenho pena no seja fosso insupervel, chusmas de
postulantes. Que me pedem eles? O mais
inverosmil que se pode pedir a um homem
independente, o seu tanto bravio de carcter,
solitrio, difcil com os idiotas, nada hbil na lisonja,
com verdadeiro horror ao mandarinato. Coitados,
apelar para mim o mesmo que percutir um
rochedo com a vara na crena que brote gua.
O mal que me custa dizer que no, ainda mais a
infelizes do que a patetas, e todos levam no rosto
um lampejo de esperana. A minha cobardia, se no
a comodidade, obriga-me a este ludbrio
indecente. Mas v l algum convenc-los de que
vm errados, que no verdade mover eu o Terreiro
do Pao com uma perna s costas, que os polticos
esto-se marimbando para quem os no assiste com
um sufrgio constante ou os no exala com o alfa e
o mega da arte de governar. Uma vez que ca na
santa ingenuidade de confessar a minha impotncia,
ia-me saindo caro. Assanharam-se contra mim e os
nomes menos feios com que me mimosearam foi
soberbo e homem sem Deus, o que no fundo me
lisonjeou. No estamos na terra em que mergulham
Santo Antnio no poo quando se demora a fazer o
milagre? Realmente ter ou no ter influncia e usar
dela eficazmente no essencial; o que conta afix-
la e p-la de modo terico e dialctico disposio
de quem precisa. O portugus prefere ser enganado
a ser desiludido; antes quer morrer esperando,
confiado na Virgem, na boa alma, no bom acaso, a
ser distinguido com o sincero e formal non
possomus.
minha portela vem toda uma rocegada de
grandes e pequenas misrias. Algumas, pelo tomo,
so de molde a ser acolhidas e conclusas para
Sancho na ilha da Barataria. A senhora mestra
pretende ser provida na cidade, porque s l h
mdicos competentes para a tratar do flato; um
demandista vesgo apela para a minha influncia no
sentido de forar a mo dum juiz a favor do seu
pleito; um desordeiro andou castanha com a
guarda e teme ficar sem camisa; uma viva tem l
um menino que um azougue: no sabia dum
lugarzinho de marano? O galucho aspira a sacudir
as correias e o pobre encarcerado a que o deixem
volver s beras, que j o tocou o lume da
regenerao.
Toda esta gente vem splice mas decidida. Muitos
trazem a oferenda propiciatria: duas dzias de
ovos; uns queijinhos; o junco das trutas; o seu po
de l; excepcionalmente, para vitico duma
pretenso taluda, certo ricao chega a carregar um
presunto.
Santo Breve da Marca, teria a casa abastecida se
imperativamente no coagisse estes miserandos
servos da gleba a reconduzir para suas salgadeiras e
uchas a peita da subornao. Ah, mas eu tenho a
impresso de que a vasta provncia cabe toda num
retbulo das almas do Purgatrio e quo fcil ser
messias ou padroeiro.
O pior de tudo no a farsa que quotidianamente se
representa da minha importncia social; o meu
silncio, a minha solido estilhaadas, como
vidraas, pelas vozes guturais:
- da casa!
Quando eu no saio a atender os infelizes, marram
ali, impertrritos como granadeiros no seu posto. E
compreendo porque que os santos so to
operosamente milagreiros nesta provncia. Tanto
lhes rezam, tanto bradam e chamam por eles, tanto
lhes matam o bicho do ouvido, que no tm outro
remdio seno acudir portaria celeste e despachar.
Assim sucedeu com o lenhador de Rabelais:
- Sacr cochon de Jupiter, donne-moi ma cogne! Ma
cogne!
- Dem l o machado quele golas-de-odre, e que se
cale, caramba! - urrou finalmente no Olimpo, com
os ouvidos a zoar, o pai eterno.
Mas eu no tenho o poder dum alcaide, quanto mais
duma divindade, e os postulantes tarde ou cedo
fazem cruzes na boca. De permeio com esta casta de
desventurados, acerta virem uns marioles que se
dirigem apenas ao homem da tcnica. Exigem-lhes
nas estradas uma plata se querem passar com o
carro de bois para a courela; um alado na Cmara
se se propem erguer uma taipa para a via pblica.
A povoao de S. Cucufate morre por ter um
fontanrio com bicas a correr; o lugar das Barrosas
no tem onde cozer o po; dem-lhe um forninho!
Todas estas aspiraes se reduzem a projectos e os
projectos a papel vegetal. Se o senhor engenheiro
fizesse o grande favor... sabe, no so precisos
grandes luxos... dois riscos d Sua Senhoria com os
olhos fechados.
Numa palavra, sou um homem presumidamente
poderoso e bem aproveitado nos meus mritos.
Quem folga com a venerao que me tributam
Adozinda. Para uns a minha menina; para outros,
os maloios, a minha esposa; para os invejosos,
irreverentes e desenvergonhados, o bom pente do
velhote. Ela toda se espenuja s amabilidades duns e
aos galanteios doutros. Uma casquivana!
Para comprazer com os idlatras, d-lhes radiofonia
s bateladas. O aparelho berra como um possesso,
alagando com a estridncia das filarmnicas
americanas e vozeires imensos dos locutores cerro
e planura. Aos domingos aqui um arraial. Vm de
propsito. Desertam da missa e do sermo
encomendado e apinham-se em torno da arribana.
J trazem farnel e desatam-no, sentados sobre os
calcanhares moirisca.
De par com esta casta de ociosos, flamantes como
romeiros, os zagais sobem at os meus domnios a
pastorear os rebanhos. A serrania humaniza-se.
Um brasileiro a quem deu para simpatizar comigo,
quando lhe podia dar para melhor, prope-se
construir uma xcara ao lado do meu retiro. J est
em negociaes com a Junta da Parquia para aforar
o terreno. E muito lnguido, exclama para
Adozinda:
- Sinhazinha vai v com qui carinho minha mulh
trata voc.
Era o que me faltava. Que mais preciso para que
eu regresse urbe, ao mesmo turbilho e barricada
dum fabiano?
Setembro, 8. Assinala-se de longe: ronron, ronron,
alto e invisvel. A natureza parece siderada, com
seus sete ouvidos escuta. Esquadrinhamos o cu:
ronron, ronron. Onde vem ele?
A grande liblula mostra-se finalmente entre duas
nuvens; eclipsa-se; ressurge quase por cima de ns,
esplndida e a reluzir com um cristal. Dum galo
supera o planalto e, quando a supomos de rumo s
terras orgulhosas, ei-la que inflecte; convergindo
sobre a asa esquerda, comea a contornar a
montanha. Vai rodando e, depois de descrever um
grande crculo, aperta pouco a pouco os seus orbes.
como um milhafre caa. Em certos momentos, o
seu arcaboio incende-se de fulgurantes laminaes
de fogo. Que que ela procura? Passa segunda vez
por cima da arribana, mas no mostra jeitos de nos
ter descortinado. Os metros de telha moirisca, baa
do tempo, escapam-lhe integrados no fulvo do mato
lambido pela cancula. O Zaranza agita o tabaqueiro
vermelho. Mas altitude a que paira, um leno ou
mesmo um lenol no passa da asa duma mosca a
esvoaar. Compreende-se: o piloto teme os fojos
traioeiros, reflectidos na atmosfera pelas gargantas
e cncavos da montanha, e a salvar-se deles ala-se s
nuvens.
Durante um quarto de hora, meia hora, sobrevoou o
pssaro a serrania e, subitamente, como flecha de
prata disparou, alto, incompreensvel, atravs duma
manada de cirros, para o sul.
Era dia da Senhora dos Remdios, que tem seu
santurio nas faldas do monte que fica atrs da
nossa serra, e Adozinda rala-me a pacincia para a
levar festa. As festas beiroas, com seus
atropelamentos larvares, sua truculncia beduna,
sua derivao eucarstica, tornaram-se insuportveis
e incolores aluvies de gente. Os padres tanto
apuram a disciplina cannica que ho-de acabar por
ficar sozinhos na nave deserta do templo a entoar o
miserere. Para plantar a rvore da Redeno no era
a Igreja antiga que se permitia adubar-lhe as razes
com a alegria franciscana das almas simples. O
mundo virou de pele, mas eu que no estou pelos
autos. Recuso-me terminantemente a satisfazer o
capricho da mocinha, tanto mais que me proponho,
mal afrouxe a calmaria, bater as lebres. H oito dias
que me encarnio pelo monte com resultado pouco
lisonjeiro para as minhas fumaas de caador. Perdi
o treino ou a minha vista que falta aos requisitos
da pontaria rigorosa? O meu setter, a cada tiro
falhado, olha para mim com ares atnitos, que
equivalem a reprovao. E o pior que se toma de
veleidades de independncia, que a mais acerba
das situaes para um caador brioso.
No vamos aos Remdios, mas Adozinda chora;
esfrangalha no sei o qu com frenicoques, que eu
julgava privilgio das histricas da boa sociedade, e,
julgando que me causa grande arrelia, no se digna
aparecer mesa do almoo. graas, Senhor, o
radiofone est mudo! Pela primeira vez, h muitas
semanas, ouo zunir contra a janela os insectos do
serto, particularmente estas moscas metlicas,
ascorosas e lindas, que saem da carcaa dos bichos
bravos a apodrecer flor da terra. Engolfo-me na
leitura dum livro e, a espaos, na contemplao da
cisterna sem fundo do meu eu.
boca da tarde, a Rita Procpia, que chega
varanda, estende o brao: avana para a arribana
uma luzida cavalgada. Pego no binculo: um, dois,
trs cavaleiros. Vem frente uma dona numa horsa
preta com cadeirinha, moda de Sab, sombreiro ao
alto e paramentada como um dolo. sua ilharga,
trota um homem que se me afigura mancebo e com
o donaire do bom pajem. Mas no distingo bem.
Quem havia de ser? Clemncia Canedo e o aviador.
A minha amiga de antanho lembra, rubra do sol,
uma pionia crestada; abafa; espapaa-se na cadeira
bamba de embarcadio e abana-se freneticamente
com o leque. Olindo de Lacerda, levemente
afogueado na tez de moreno, sacode a ponta do
leno.
Adozinda, que sinto recreada com a visita,
sobretudo com a presena do belo rapago do
aviador, prepara em tempo de bombeiro uma
limonada.
Tinham sido eles que h coisa de duas horas nos
haviam dado o gosto de ver sobrevoado o nosso
ermitrio. Mas no s no conseguiram diferen-lo
no solo, como no encontraram campo para aterrar.
Viram-se obrigados a retroceder para o aerdromo
da cidade, onde tomaram um automvel que os
trouxe vila; na vila por seu turno alugaram
aquelas bestas maviosas que os vieram depor no
meu alccer. Um respeitvel estiro, mais demorado
que da granja do Marqus at Viseu. E o sorriso de
Lacerda adejava de alto como o aeroplano que
guiara, enquanto Clemncia, de olhos fechados,
sorvia o refresco por uma palha. Que conjurava
aquela cabecinha, que h trinta anos fora to
interessantemente louca?
A pobre, a fugir esparvonada senectude, arreiara-
se como uma boneca. Era grotesca, se no fosse
miseranda. Mas com o culto do seu fsico, ps-se
logo a contemplar-se ao espelho do prprio saco. As
drogas com o sol tinham escorrido, feito ravinas na
face. E, embora mal recobrada da ardentia,
entregou-se a recaliar o maquillage com esmero e
diligncia. Adozinda admira o seu -vontade to
dominioso, sua presteza serena, e de quando em
quando deita o rabo do olho, furtiva, mas
interessadamente, que eu bem vejo, ao aviador.
Decorrem dois, trs minutos. A gloriosa Clemncia
ergue-se, arrisca dois passos sem sentido direita e
esquerda, e com um gesto que abrange a serra, o
cu, a casa e Adozinda, declama em tom sardnico:
- Ento isto que a tal vida de asceta? No seu
bilhete falava-me da Mstica Cidade de Deus e... e...
das Mximas... Como se chama o autor? Teofrasto,
no ? Onde esto esses venerandos cartapcios?
Alargo as duas mos como os sacerdotes no Orate
fratres:
- Tudo isto Santo Agostinho e Teofrasto.
- O qu, as pedras?
- Porque no?
Olha depois discretamente para Adozinda e replica:
- Mas no h s pedras. Ah! ah! ah! Compreendo
porque no quis na sua companhia o pobre
Diamantino. Olhe, ele que ganhou com a sua fuga.
Foi para Davos Platz e pode considerar-se
restabelecido.
- As minhas felicitaes. Sabia que era essa a
estncia que mais lhe convinha. Acaso podia
oferecer-lhe aqui o conforto de que necessitava?
- Mas por mim?!
- A minha excelsa amiga no precisa desta espcie
de altitudes e felicito-a tambm.
Ela torce os lbios, penetrando a malcia, que a
Olindo passa por inadvertncia, sem dvida, e
profere com acritude:
- feliz neste chavascal?
- Felicssimo.
- Sua mulher e seus filhos so bem tolos em o deixar
para aqui rdea solta...
- Minha mulher e meus filhos mandam neles, eu
mando em mim.
- Hum! - e por cima da revista que manuseia lana
uma mirada de raspo para Adozinda.
Dou-lhe uma casquinadinha mefistoflica.
- Farta-se de chuchar com a gente... - volve ela.
Rio com os dentes todos, nem sei bem porqu. A
celebrar a grande verdade emitida? Ou antes porque
aquela tola se sente despeitada, julgando-se no
direito de possuir a minha adorao at se converter
em real esqueleto? Eu cometera de facto o negro
pecado de sair da capital sem prevenir. Que me
importava o trnsito dos Canedos ricos, caducos e
monocrdicos? Clemncia a pgina voltada dum
livro. Acabou-se duma vez para sempre.
Afivelo um ar impiedoso, que ela conhece bem, e
reparo que uma lgrima aflora aos olhos pisados,
que foram belos. Sou o lamechas de sempre, e pego-
lhe da mo que beijo cortesmente. Ela ento sorri,
sorri o mais amorvel que pode para atenuar o
mordente que haja nas palavras:
- Sim, farta-se de chuchar com os amigos, com Deus,
com aquilo que devia merecer-lhe certo respeito, -
nesta altura novamente projecta o rabinho do olho
para Adozinda - consigo prprio. Voc o
chuchador por excelncia.
- Esse juzo assenta-me a matar, concordo. Se me d
licena, tomo nota para o passar a pergaminho, e p-
lo no meu escritrio laia de diploma.
- melhor reserv-lo para epitfio - torna com
mordacidade. Depois, como se visse as unhas a
escorrer sangue e se arrependesse, acrescenta com
blandcia: - Mauzo, est aqui h dois meses e
apenas se dignou mandar-me aquele postal
ilustrado. Ingrato!
- Ingrato, por qu, minha boa amiguinha?
- Ento no ingratido corresponder com o olvido
mais absoluto a quem pensa amide no senhor, lhe
quer bem, tem a existncia solidria com a sua boa
ou m disposio!?
No compreendo a ltima frase do libelo amistoso,
mas passo adiante.
- Vossncias jantam hoje connosco, no assim?
O tenente abre os braos, declinando na vontade de
Clemncia.
- De maneira alguma - diz ela. - De resto, o senhor
vem hoje connosco para Lisboa.
Solto uma tranquila gargalhada.
- No avio no h lugar para o nosso amigo? -
pergunta intencionalmente para o tenente.
- H lugar para mais duas pessoas - responde ele,
com impassvel fisionomia.
- Daqui s para a sepultura declaro com
peremptrio.
Clemncia, enfiando o brao no meu, arrastou-me
para o canto da varanda, onde comeavam a acertar
as sombras da tarde. E de seus lbios trmulos, onde
o carmim arregoava, ouvi a histria pavorosa: seu
marido invertera os capitais no negcio arriscado
duma Companhia africana, espcie de empresa na
Lua. A assembleia geral era dali a dois dias,
soubera-o da boca dum amigo, que penetrara o mais
negro dos cambalachos que se pode imaginar. Uns
tantos accionistas e dos que dispunham de maior
representao, gente sem escrpulos, no estavam
apostados a tentar uma manobra que, efectuada,
equivalia pura e simplesmente a ficarem eles sem
um vintm? O Diamantino estava longe, mas que
estivesse na capital, no possua ral para fazer
frente matilha. Era preciso algum que pelo
prestgio, o nome, a direitura no pensar e nas obras,
fizesse abortar o conluio. Tinha olhado direita e
esquerda e no vira mais ningum que o diabo do
seu grande Tot, empoleirado nos penedais da
Nave. Aqui estava!
Olhei para a pobre Clemncia, o espectro da doce e
fragrante amiga de h trinta anos, e compreendi,
lembrana do passado que se levantava naquele
minuto imperioso, que no lhe podia dizer que no.
- Porque no me avisou a tempo e horas? - objectei.
- Ah, s anteontem que fui inteirada da cabala. S
anteontem! A maneira como foi convocada a
assembleia geral faz parte do plano. Valeu-me este
rapaz, que disse, ao verme chorar, e me grato - no
deite maus pensamentos, ele uma criana, eu sou
uma velha: No se aflija, minha senhora, que eu
levo-a serra de avio e custe o que custar havemos
de desanichar o nosso amigo. Custe o que custar!
Se no sou eu, tinha descido no coruto da serra. No
consenti e fiz bem. um heri ali onde o v.
Deito um olhar a Lacerda que dirige qualquer
galanteio a Adozinda... Clemncia espera a minha
deciso, os lbios pregados, dando-me a entender
que no gastaria mais palavras.
L se vo as minhas frias de catrmbias. Virei duas
lebres e errei quatro. O melhor cinto que fiz s
perdizes foi na manh de ontem com cinco bicos, a
que vieram ajuntar-se duas rolas, abatidas quando
remontavam de beber no corgo. Acabou-se, seria
insensatez contar com o paraso depois de se imolar
o pomo. A serpente desapareceu de cena, mas o
homem encontra-se perante uma cabotina
insuportvel.
- Est bem, Clemncia, vamos l. Esta vida uma
aventura.
- E que o homem, o mundo, meu amigo?
Setembro, 15. Empandeirei honestamente Adozinda
para a Messejana. Surpreendia duas e trs vezes a
trocar um olhar ardente com o cavalheiresco
aviador, e eu quero guardar uma boa recordao
dela, sem deselegncias que mareiem o retrato. Um
momento estive tentado a voltar ao meu penedal
com a Eva fortuita. Clemncia que tambm sabe
filosofar, reconhecida pelo que fiz e pelos prazeres
que lhe sacrifiquei, comenta com melanclica
franqueza:
- Ah, meu caro, velho amador, inverno em flor;
cuidado com as geadas! E oua: a vida como as
fontes; no se mata a sede novamente na gua que
correu!
Cruz Quebrada. Primavera de 1947.