A Bandeja, Qual Pecado Te Seduz
A Bandeja, Qual Pecado Te Seduz
A Bandeja, Qual Pecado Te Seduz
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A BANDEJA
Qual pecado te seduz?
Lycia Barros
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Durantes muitos anos imaginei qual seria a minha primeira empreitada
profissional e acreditava que seria um conto policial ou uma histria de suspense.
Apesar de ser mulher, nunca pensei que seria uma histria romntica, se que
podemos denomin-la assim. Na verdade, o impulso de escrever testemunhando esses
fatos se deve ao meu ardente desejo de que seja a minha primcia para o meu melhor
Amigo. Espero que muitas vidas sejam transformadas por essa experincia com Deus.
A minha foi.
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SUMRIO
Captulo I A partida......................................................................................
Captulo II Pisando em ovos......................................................................
Captulo III Primeiro sonho......................................................................
Captulo IV O cu...........................................................................................
Captulo V A colheita....................................................................................
Captulo VI Revelao..................................................................................
Captulo VII Segunda queda.......................................................................
Captulo VIII Inverno da vida.....................................................................
Captulo IX Grandes surpresas..................................................................
Captulo X Evento inusitado........................................................................
Captulo XI O esperado................................................................................
Captulo XII Duas opes.............................................................................
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CAPTULO I
A PARTIDA
No conseguia imaginar como seria minha vida longe dos meus pais. Como filha nica, por
muitos anos cresci recebendo todos os tipos de cuidados e mimos que se possa imaginar.
Isso foi bom e ruim ao mesmo tempo. Nunca tinha lavado minha prpria roupa e agora
estava indo morar sozinha por quatro anos, ou talvez para o resto da vida.
Havia trs anos que meu irmo temporo nascera. Desde ento, meus pais se
esforaram ainda mais para me agradar. Eu entendia que os cuidados com Vitor demandavam
muita ateno, mas mesmo assim a situao acabou virando a meu favor.
Tudo havia passado to rpido e sob muitas perspectivas a sensao de entrar no
mundo adulto era doce. Imaginei que essa sensao viria automaticamente quando eu
completasse 18 anos, mas estava vindo agora, com todas aquelas mudanas.
Decerto, havia uma certa nostalgia pelas coisas que eu iria deixar para trs. Enquanto
arrumava minha mala, olhei bem para as fotos anexadas em minha cortia: a ltima viagem
ao Chile, de frias com meus pais; meu aniversrio de 15 anos e eu deitada nos braos dos
meus primos fiquei horrvel e com o lindo penteado todo desgrenhado. Meu cabelo
castanho escuro e muito liso, desde pequena era difcil prender qualquer coisa nele. Havia
uma foto especial, que eu sempre guardava com carinho: eu e minha me fazendo castelinho
de areia na praia de Bertioga. Era incrvel como desde menina ns j ramos to parecidas!
Sempre amei nossos olhos cor de mel, to diferentes das cores habituais. Ser parecida com ela
um elogio para mim.
Vi tambm outra foto: eu e minha melhor amiga Natasha no pedalinho, em frente ao
hotel Quitandinha. Natasha tem um irmo gmeo: Dante, uma figura doce e engraada. Ele
tem cabelos lisos e negros e sempre deixa uma franja cada por cima dos olhos azuis. Apesar
de Dante ter a mesma idade que eu e Natasha, sempre foi bem mais alto que ns e devido ao
sbito crescimento da adolescncia, ficou magrelo e desengonado, ao contrrio de sua irm,
que era mais baixinha e magrinha como eu. Nas fotos que eu tinha, ambos estavam de
aparelho. Alis, o aparelho nos dentes era a nica coisa que tinham em comum fisicamente.
Natasha tem cabelo cacheado, olhos castanhos e morre de inveja dos adereos do irmo.
Essa amiga-irm entrou na minha vida muito cedo, nossa amizade era inabalvel
desde os oito anos, seu sorriso metlico me tirava de qualquer baixo astral. s vezes, eu
achava que ela tinha o dom especial de alegrar ambientes.
Dante e Natasha so filhos do pastor da nossa igreja e talvez por isso tenham sido
incentivados desde pequenos a confortar as pessoas ou... Sei l, trazer esperana, essa era
uma caracterstica que compartilhavam. Apesar disso, nenhum dos dois se mostrava
interessado em herdar do pai o cargo de pastor. Dante era meio polmico no seu modo de
pensar e irreverente demais para o gosto do pai. Porm, eu sempre achei que ele conhecia
Deus mais do que todos ns, pela intimidade que demonstrava ter com Ele. Sua f parecia mais
real do que a nossa. Dante tocava violo desde pequeno, e era o nico dom que desejava
possuir.
J Natasha acreditava que seu ministrio era seguir em misses viajando pelo mundo.
Vivia atenta s tragdias sociais e sempre inventava alguma forma de ajudar, mobilizando
todos sua volta. Por esta razo, ela no prestou vestibular comigo naquele ano, achou
melhor passar um tempo fora do pas para descobrir realmente qual era o seu propsito.
De qualquer modo, tudo isso seria deixado para trs por um bom tempo. Afinal, eu
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precisava seguir o meu caminho.
Minha mala estava quase pronta quando minha me entrou no quarto. Sim, eu sabia
que ela estava sofrendo tanto quanto eu com aquela despedida. Mas minha me uma pessoa
que parece que nasceu para me ver feliz, e tentou me manter otimista durante toda a ltima
semana em casa.
J est com tudo pronto, querida?
Como se ela mesmo no tivesse cuidado de cada detalhe...
Acho que sim, s falta pegar a minha Bblia na gaveta.
Angelina, estou to feliz com a sua conquista! Voc sempre sonhou estudar
Literatura e Deus te deu mais essa vitria. Pena que tenha que ir para o Rio de Janeiro. Bem,
mas voc est indo para uma das melhores faculdades do Brasil e sei que, quando voltar, ser
uma grande profissional.
Na verdade, no estava nos meus planos voltar para trabalhar na minha cidade. Afinal,
em Petrpolis, com a mdia de 300 mil habitantes, imaginava que as oportunidades seriam
reduzidas. Porm, eu sabia que no era o momento de abordar aquele assunto, no queria
gerar mais uma crise na minha me.
Pegamos as coisas e resolvi levar minhas fotos para tornar o quarto na repblica um
pouco mais familiar. Estava ansiosa, mas ao mesmo tempo nervosa. Claro que eu j tinha ido
ao Rio de Janeiro, mas nunca nos prolongamos por l pois meu pai no podia ficar longe do
trabalho por muito tempo. Na verdade, ele achava que uma cidade mais calma e perto da
natureza seria ideal para criar os filhos. Por isso, nunca quis sair da regio serrana do Rio,
tinha alergia ao tumulto da cidade grande. Sendo assim, minha vida inteira girou em torno de
uma cidade pacata e familiar, bem diferente da turbulncia de uma grande metrpole.
As notcias de violncia no me assombravam tanto, pois no pretendia sair muito da
repblica. Imaginava que teria que ler muito para acompanhar o curso. O que realmente me
deixava desconfortvel era ir para um lugar com tanta gente, onde eu no conhecia
absolutamente ningum.
Uma amiga da minha me tinha uma filha que estudava e residia na mesma
universidade para onde eu estava indo. Por intermdio dela, consegui uma vaga em um quarto
da repblica. Quando ramos crianas, na igreja havamos frequentado a mesma escolinha
dominical, mas a famlia dela sumia e aparecia com tanta frequncia que no formamos laos.
Para mim, ela era uma estranha.
Quando desci a escada, l estava ele: meu ansioso e desesperado pai, o senhor
Frederico Hermann. Ele j tinha feito todo tipo de cerimnia para comemorar o meu ingresso
na faculdade. Fez um churrasco e convidou todo mundo que ele conhecia; levou-me no altar da
igreja para que o pastor fizesse com que todos os membros orassem por mim e
abenoassem minha partida; criou uma pgina nesses sites de relacionamentos s para
achar amigos antigos e divulgar a grande notcia.
Meu pai era comerciante, no teve muita opo sobre o que queria ser. Seu pai
praticamente exigiu que ele se apoderasse dos negcios. Ele herdou uma grande fbrica de
agasalhos, que meu av levantou do nada. Acho incrvel como, injustamente ao longo dos
anos, as pessoas que no querem parecer com os pais ficam cada vez mais semelhantes a
eles. Isso tambm aconteceu ao meu pai, fsica e emocionalmente. Querendo ou no, ele tinha
tino para os negcios. Fisicamente estava ficando idntico ao pai dele: ambos altos, carecas,
gordinhos e de olhos verdes.
Morvamos num excelente bairro chamado Valparaso, numa casa de dois andares
ampla e confortvel. A empresa da famlia fornecia produtos para lojas de todo o Brasil.
Porm, apesar de ser bem sucedido, o sonho do meu pai estava se realizando em mim: agora,
ele queria ter feito faculdade.
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Fui livre para decidir o que fazer. A deciso foi exclusivamente minha, apesar de eu
reconhecer uma certa influncia da minha me, que era pedagoga. No que ela tivesse me
incentivado a fazer essa escolha, mas lendo pra mim desde pequena tornoume uma
apaixonada por livros. No mais, nunca tive talentos comerciais e apesar de no achar m ideia
ser dona de uma livraria, na verdade eu queria ser escritora. Estava pronta para esse desafio,
mesmo que fosse doloroso partir.
Est pronta? perguntou ele, mordendo o lbio inferior numa tentativa de no
desmoronar.
Sim, vamos logo pai. No quero que voc volte tarde.
Ele passou a mo pelo meu ombro, me apertando forte. Achei que no fosse me soltar.
Passamos pela porta e vi que todas as tralhas j tinham sido colocadas na mala. Minha
me repetia as mil recomendaes que j tinha me dado. Eu insisti para que ela ficasse
tranquila, dizendo que eu havia sido muito bem criada por uma famlia crist, que me passou
fidedignamente seus valores durante os ltimos 18 anos.
Coma direito, nada de lanches o dia todo e no se esquea de orar sempre: noite,
ao acordar, antes de fazer as provas...
Dona Silvia, acalme-se! Deus estar comigo, tenho certeza de que Ele j ouviu suas
ininterruptas oraes nessa ltima semana.
Afaguei-a carinhosamente e dei-lhe um abrao rpido, seno quem iria chorar era eu.
Beijei e abracei o Vitor, a sim uma lgrima escapou. Ento, partimos.
Comeamos a viagem em silncio nos primeiros dez minutos, mas logo meu pai
comeou a reclamar: do preo do pedgio, do tempo de viagem prejudicado pelo asfalto ruim,
da preocupao de voltar muito tarde para casa, da violncia nas estradas, dos bandidos, das
placas pichadas e amassadas pelo caminho, dos malfeitores da cidade vizinha e eis que
finalmente chegou ao cerne do seu objetivo: os malfeitores da faculdade.
Falou longamente sobre os filhinhos de papai que vo para a universidade somente
para se divertir e fazer mal s mocinhas inocentes do interior. Antes que o assunto se
prorrogasse demais, interrompi:
Pai, no estou interessada em namoros e farras, agora estou focada em outros
alvos. Quero dar o meu melhor na faculdade, acompanhar o curso, fazer pesquisas sobre a
profisso, ler muito, e no pouco tempo que me sobrar ligarei sempre para vocs. Alm do
mais, eu vou fazer o curso de Letras e j soube que a maioria da classe feminina ou gay, no
se preocupe.
No bem assim, acredite. Alm do mais, no campus h faculdades de diversos
cursos e, com certeza, muitos rapazes por l tambm. Voc no tem muita experincia e me
sinto na obrigao...
Pai! interrompi de novo. Voc teve quase duas dcadas para me cobrir de toda
informao necessria, fez questo de me inscrever em todos os seminrios de jovens que
acontecia na cidade. Voc fez um bom trabalho, confie em mim.
Certo. Est bem, mas... me prometa uma coisa.
Diga consenti.
Sempre que estiver em dvida se deveria ou no estar em algum lugar, pea ao
Esprito Santo a sua presena naquele instante. Se no puder senti-lO, ali no lugar para
voc estar. Vai se lembrar disso?
Prometo, pai falei, levantando dedinhos de escoteiro.
A viagem seguiu sem muitas novas recomendaes. Comeamos a conjecturar sobre
como seria o campus, os professores, em quanto tempo eu estaria estagiando. Foi bem mais
agradvel.
Quando enfim chegamos, no era muito tarde. O trnsito estava bom, j que era
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domingo. As aulas comeariam no dia seguinte. Eu ansiava por arrumar minhas coisas no
quarto e preparar tudo para o incio da minha vida acadmica e no via a hora de comear.
Entramos pelo porto grande e verde da repblica e deparamos com uma
pequena saleta. Ali havia uma mesa de ping-pong e uma TV ligada. Quando entramos, vimos
um garoto assistindo filme, sentado no sof. Ele nos olhou com curiosidade, em seguida nos
informou que os quartos eram no segundo andar. Notei que a saleta era integrada com outra
ainda menor, onde havia dois computadores e uma pessoa usando a internet. Adorei esse
adendo.
Subimos um lance de escada e meu pai levou minhas coisas at a porta do meu
novo aposento. Como era um quarto de meninas, achei melhor no convid-lo para entrar,
poderia pegar algum desprevenido. O corredor estava vazio e devia haver, no mximo, uns
dez quartos.
Repentinamente uma das portas se abriu e por ela passou um garoto de toalha
amarrada na cintura, escovando os dentes. Ele nos cumprimentou levantando a sobrancelha
na maior informalidade e entrou no quarto da frente, onde dois ou mais garotos falavam alto e
davam risadas. Meu pai vislumbrou aquela cena com uma reprovao ntida no olhar, me
abraou numa despedida silenciosa e se foi rapidamente, evitando que o desespero tomasse
conta dele e o fizesse me levar imediatamente de volta para casa.
Abri a porta com a chave que haviam me enviado e entrei no pequeno cmodo. A
parede era verde clara e havia uma janela de alumnio. O quarto era composto por um
armrio de madeira antigo, duas camas tambm de madeira e muitos ursinhos de pelcia.
Roupas e meias estavam jogadas em uma cadeira, havia papis com frases de automotivao
colados na parede, que pareciam ter sido retirados de alguma revista feminina. Perto do
armrio avistei uma pequena pia com alguns itens para comestveis: um fogo de
acampamento de duas bocas sobre uma prateleira e um frigobar abaixo dela.
Quando examinei as camas, em uma delas estava um edredom fazendo um morro, e na
outra s um colcho, que imaginei ser a minha. Assustei-me quando ouvi o som de algum se
espreguiando e, ao mesmo tempo, vi um movimento no edredom da cama ao lado. Debaixo
dele apareceu o rosto de uma menina pequena, que quase podia-se confundir com uma
criana, mas sem roupas de criana. Seu cabelo era castanho claro, meio ondulado, e em seu
rosto havia vrios borres de rmel em volta de seus pequenos olhos verdes. Ela me olhou,
esfregou o rosto borrando-o ainda mais, e fez contato entre um bocejo e outro.
Oi, voc deve ser Angelina. Eu sou Michele, filha da Ana, amiga da sua me. Bem
vinda faculdade, gata. Sua cama aquela.
J percebi. Bem... boa tarde Michele disse, sorrindo, para ela perceber o horrio.
Obrigada pela vaga que voc me cedeu, soube que difcil por aqui. Valorizei, tentando
estabelecer uma boa primeira impresso. Afinal, era com essa pessoa que eu acordaria e
dormiria nos prximos meses. Sempre tive um quarto s para mim, e essa parte da minha
nova vida, dividir um quarto, no me animava.
Nem tanto... desmereceu ela. Nem todo mundo se acostuma com as baratas e
com o barulho. Acabam sobrando muitas vagas no meio do semestre.
Barulho ok, mas... baratas? J comecei a ficar em estado de alerta. Eu abominava
baratas.
Comecei a arrumar minhas roupas enquanto Michele me dava algumas dicas: onde
ficavam os banheiros, os melhores horrios para o banho... Enquanto isso, eu examinava
cada centmetro onde colocava minhas coisas, j pensando em ir ao mercado mais prximo
para comprar todas as armadilhas, remdios e inseticidas que eu achasse disponveis.
Infelizmente, me lembrei que j eram 5 horas da tarde de domingo e todos os mercados j
deviam estar fechados.
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Terminei de arrumar tudo, troquei de roupa e arrumei o novo material na minha bolsa.
Enquanto prendia meu cabelo, Michele terminou de fazer caf e me deu uma xcara, enquanto
acendia um indesejvel cigarro. Achei pssima a ideia de morar com algum que fumasse, j
que eu tinha rinite alrgica. Mas, como ainda no era o meio do semestre e no existiam
outros quartos vagos, achei melhor ser simptica com a minha colega e no reclamar, pelo
menos nesses primeiros dias.
Michele trocou de roupa, lavou o rosto e disse que ia descer para ver os calouros
chegando. Perguntou se eu queria ir, mas eu respondi que estava cansada e que iria dormir
cedo. Assim que ela saiu me deitei por alguns segundos para assimilar a minha nova realidade.
Peguei o celular para ligar para Natasha, mas ela no atendeu pois devia estar na igreja. Ela
fazia parte do louvor e Dante tocava aos domingos. Como eu tambm no podia estar l,
peguei minha Bblia e abri aleatoriamente. Caiu em I Corntios 10:12.
Aquele, pois, que cuida de estar em p, olhe para que no caia.
Achei que meu pai tinha, propositalmente, marcado essa pgina da Bblia. Ento, abri
outra vez. Caiu em I Timteo 3:7.
Convm tambm que tenha bom testemunho dos que esto de fora, para que no caia
em afronta, e no lao do diabo.
Achei que meu pai tinha marcado essa tambm. Ser que peguei a Bblia dele? Bem,
com certeza, a dele no tinha a capa rosa.
Orei para que nenhuma barata subisse no meu colcho durante a noite e depois de
alguns check ups embaixo da cama, apaguei.
CAPTULO II
PISANDO EM OVOS
Acordei super animada, ao contrrio do que minha me jamais imaginaria depois de anos e
anos me empurrando cama abaixo para ir escola. Mas agora eu era independente e tinha
que ser responsvel, queria provar para mim mesma que j sabia me cuidar. Fiquei surpresa
ao ver que Michele j se fora. Ela no me pareceu o tipo de menina pontual e disciplinada,
mas a gente pode se enganar. Estranhei o fato da cama dela estar exatamente igual noite
anterior, mas gostei de saber que ela havia sado sem fazer barulho. Iramos nos dar bem
assim.
Troquei de roupa, penteei o cabelo e resolvi tomar caf na cantina para desenvolver
minha performance social. Ao me dirigir at a porta para sair, a mesma se abriu de repente,
quase batendo no meu rosto e tive que dar um pulo para trs para me salvar. Era Michele, que
entrou correndo e pedindo desculpas, dizendo que iria se atrasar. Pegou a mochila, lavou o
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rosto, trocou de roupa e foi catando as coisas, afobada, perguntando se o telefone dela tocara
noite enquanto ela dormia fora.
Dormiu fora? Aonde?
A faculdade era super isolada e os parentes dela tambm residiam em Petrpolis. Antes
que eu perguntasse alguma coisa, a porta se abriu novamente e entrou outra menina. Era
mais alta do que eu, cabelos lisos, loiros e mdios, com uma mecha azul que saa do topo da
cabea e caa at as pontas. Vestia roupas escuras e coladas, que destacavam bem sua
silhueta. Ela nem percebeu minha presena e se dirigiu Michele, rindo e gritando:
Sua malvada, nunca deixa os melhores pra mim!
Notei pelo sotaque que ela era do sul. Ao me notar, no se entreteve muito tempo.
Limitou-se a exprimir um esnobe oi e voltou sua ateno novamente para Michele. Percebi
que educao no era o seu forte, mas no me incomodei com a pouca ateno que me fora
dispensada. Enquanto as duas riam e fofocavam, eu sa. Ainda teria que tomar o caf da
manh e achar a minha sala.
O corredor da repblica agora estava lotado, as pessoas se abraando e rindo, meninos
batendo na cabea uns dos outros... Eu conseguia nitidamente destacar os calouros
assustados, tentando caminhar imperceptveis, longe dos veteranos. Essa tambm era eu,
desejando ser invisvel apesar de sentir os olhares maliciosos me analisando como se eu
fosse uma mercadoria a ser adquirida. Que pattico, pensei.
Peguei um caf expresso na cantina e sa apressada, me sentindo uma executiva
atrasadssima. Logo achei a minha sala. Quando entrei, havia poucas pessoas, o professor no
estava e dei graas a Deus. Coloquei minhas coisas na mesa e joguei fora o copinho do caf,
depois de beber. Fiquei olhando o movimento no corredor imaginando se conseguiria prestar
ateno com tanto barulho ao redor. Eu estava ansiosa para me tornar uma estudante em
uma das faculdades mais respeitadas do Brasil. Tantas perguntas a fazer...
Olhei para a sala para registrar cada momento do meu primeiro e glorioso dia. Talvez
eu ainda viesse a narrar isso em uma das minhas entrevistas como futura reconhecida
escritora.
Os minutos foram se passando e cada vez mais alunos chegavam atrasados. Algum
tempo depois minha ansiedade foi se transformando impacincia. Em seguida, em
intolerncia. At que, quando avisaram que o professor no poderia dar aula naquele dia, me
senti invadida por uma grande decepo. Como? J no primeiro dia? Que descaso!
Os alunos que j jogavam sueca no fundo da sala saram satisfeitssimos e s tiveram o
trabalho de transferir o jogo para as mesas do refeitrio. Frustrada, me encaminhei para sala
onde seria a segunda aula e resolvi matar o tempo lendo minha Bblia de bolso.
Meus olhos liam, mas minha cabea estava longe. Pensava no infeliz do professor que
faltara, postergando minha esperada estreia como universitria. Olhava a cada cinco minutos
para o relgio para ver se a prxima aula estava prestes a comear. Aps meia hora lendo no
tenho a menor ideia do qu, os alunos comearam a entrar. Escondi minha Bblia, pois no
queria ser rotulada de crentona logo no primeiro dia. Queria que as pessoas me
conhecessem como eu sou, para depois saberem qual a minha religio. J tinha sofrido
muitos distanciamentos prematuros por causa desse preconceito religioso, mas eu no me
via nem um pouco diferente das meninas da minha idade, apesar de ter sido criada dentro de
uma igreja. s vezes, isso preocupava minha me, mas eu no queria me tornar a rainha da
pureza e do autocontrole! Eu me esforava muito para agradar meus pais, para ser a
menininha perfeita, mas s vezes eu s queria... ser livre para cometer alguns erros, s para
variar. No que eu no os cometesse diariamente, mas sabia bem como mant-los em
segredo.
A primeira aula no foi nada impressionante, todos se apresentavam igualzinho no
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segundo grau. Falamos um pouco sobre o leque de opes em relao a nossa carreira, o que
no foi nada animador vindo daquela professora. Ela fez questo de ressaltar todas as
dificuldades do ramo e dizer que, pelas estatsticas, somente dez por cento dos alunos
chegariam ao final do curso. Acabamos a aula mais cedo e fomos dispensados.
Estava me encaminhando para a terceira aula, ainda meio confusa com tantas salas,
quando finalmente encontrei um banheiro. Entrei, e vi que o seu estado era lastimvel.
Comecei a me questionar. Para onde vo nossos impostos? Percebi que papel higinico
deveria ser artigo de luxo ali e que, a partir daquele dia, deveria trazer um na bolsa. Havia uma
pequena janela, por onde dava para ver uma floresta ao lado do campus e um movimento de
meninas num banco l fora chamou minha ateno. Para minha surpresa, reconheci Michele
no meio delas. Era bvio que estavam matando aula. Estavam rindo, tagarelando e fumando,
mas no me parecia ser um cigarro comum. Comearam a passar o objeto fumegante umas
para as outras e, pelo pouco que conhecia do assunto, deduzi que se tratava de um baseado.
S pode ser provao!, pensei. Iria passar os prximos quatro anos num lugar sujo,
com professores descomprometidos, sem papel higinico e morando com uma viciada? Um
ano inteiro de dedicao ao pr-vestibular para isso? Eu estava seguindo rumo ao completo
desencanto com essas perspectivas.
E se meus pais viessem me visitar enquanto ela estivesse fumando aquela erva de
Sat no nosso quarto? E se a diretoria do alojamento descobrisse e pensasse que eu tambm
estava nessa? E se eu fosse presa por porte de drogas?
Minha cabea estava a mil, e eu sabia que teria que me adaptar a muitas realidades
imprevistas e indesejveis. Procurava ter esperana de que viriam dias melhores quando sa
do banheiro, irritada, marchando e olhando para o cho. Por causa disso, trombei
abruptamente com algum, deixando meu fichrio, meus horrios e meu celular se
espatifarem no cho, espalhando-se em vrios ngulos diferentes. Desanimada, suspirei,
preparando-me para pedir desculpas aps j ter visto um par de sapatos masculinos no piso
diante de mim. Mas, no foi possvel...
Ao erguer os olhos, me deparei com o ser humano indiscutivelmente mais bonito e
mais maravilhoso que j tinha visto naquela faculdade. Na verdade, na minha cidade tambm.
Fazendo-lhe totalmente justia: era o homem mais bonito que eu j vira em toda a minha
vida. Fiquei arrebatada por alguns segundos com aquela desconcertante viso e me confortei
em saber que ali havia pelo menos uma coisa boa de se ver. Afinal, depois de tanto desagrado,
aquela viso era remdio para a minha alma.
Tratava-se de um rapaz. Ou homem, que devia ter entre 20 e 30 anos, no mximo. Sua
pele branca estava levemente bronzeada, seu cabelo era loiro escuro e meio desalinhado em
torno do rosto. Seus olhos tinham nuances infantis e sedutoras ao mesmo tempo. No pude
deixar de notar as ruguinhas leves que surgiam nos cantos de seus olhos quando ele sorria e
que lhe atribuam um charme viril, todo especial. Seu maxilar era quadrado e emolduravam
um sorriso caloroso e perfeito, aberto para mim. Ele era um pouco mais alto do que eu, o que
me fazia erguer a cabea para apreci-lo. O cu deveria ser mais ou menos assim...
Quanta pressa? Est tudo bem? indagou a voz que, com certeza, pelo tom e
firmeza estava mais perto dos 30. Percebi tambm que no parecia, em nada, uma voz tipo
gay.
Minha inacreditvel resposta foi:
Ahn?
Ele uniu as sobrancelhas, sorrindo, e repetiu a pergunta movendo os lbios
pausadamente como se eu fosse uma estrangeira:
Voc-est-bem?
Sa do meu momento mula e me abaixei depressa, embaraada para pegar minhas
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coisas enquanto ele ajudava. Disparei a tagarelar, olhando para o cho.
Sim, sim, s estou meio... perdida. Meu nome Angelina Hermann e hoje meu
primeiro dia. Estava procurando a sala enquanto passava pelo banheiro. A entrei e...
contive o mpeto de narrar o resto da deprimente histria, dizendo a ele que no consegui
fazer minhas necessidades porque no tinha papel e ainda descobri que minha abenoada
colega de quarto gostava de dar um tapinha de vez em quando.
Qual sala est procurando? perguntou ele se levantando.
23 A respondi.
Vem comigo, estou indo pra l, depois do laboratrio.
Ele foi andando com meu fichrio e meu horrio na mo. Resolvi no pegar de volta
para garantir a companhia at a sala de aula. Para tirar a m impresso depois do meu Ahn
idiota como primeiro contato, resolvi puxar assunto.
No acredito que os professores daqui sejam to descomprometidos. No primeiro
dia de aula um professor no veio, a segunda nos liberou 30 minutos mais cedo ele riu.
Cheguei com tanta empolgao, mas j vi que terei motivo para me juntar queles que falam
mal de funcionrios pblicos. Disse isso para parecer sria e politizada e no uma caloura
perdida do interior. Isso um desrespeito com nossos impostos, que pagam os seus
salrios.
s seu primeiro dia, realmente alguns so assim, mas no so todos...
Bem, vamos ver o que me espera agora, tomara que no seja mais um idiota que
queira que todo mundo se apresente de novo. Detesto isso: resumir sua vida e quem voc
em nome, idade e endereo... Enfim, vamos ver... disse revirando os olhos, fazendo
charminho.
Chegamos sala e como o meu pequeno incidente tinha me atrasado, para minha
surpresa todos j estavam sentados, aguardando. O desconhecido maravilhoso que me
acompanhou me entregou o fichrio na porta da sala e eu o peguei, tristonha. No queria ter
que me despedir to rpido, nem havia perguntado seu nome, de onde era, onde estudava...
Teria de aguardar cinquenta minutos para, com sorte, trombar com ele de novo pelos
corredores da faculdade. Pensei em fazer mais uma horinha no corredor, j que o professor
ainda no havia chegado. Assim, examinaria em que sala ele iria entrar, mas achei que iria dar
muita bandeira. Resumi minha despedida num informal valeu e entrei na sala sem olhar
para trs. Comecei a constatar como eu era tola por no saber prorrogar uma conversa
informal. Como seria escritora com aquela imaginao tacanha?
E se ele no me reconhecer mais depois desse momento? E se no me cumprimentar
daqui pra frente? E se nunca mais tivermos um assunto em comum? Ele provavelmente era de
um perodo bem acima do meu, deveria estar quase se formando. Logo presumi que no
andaria com uma caloura. Droga! Por que perdi tempo falando mal desses malditos
professores? Na melhor das possibilidades, eu receberia dele um desinteressado oi, em um
possvel encontro aleatrio pelo campus.
Sentei na ltima cadeira vaga da sala, arrumei meu material na mesa e quando tomei
cincia da situao minha frente, fiquei branca! L estava ele: na mesa do professor. Mas o
qu? Como? No possvel!
Minha cabea comeou a dar um n. Inegavelmente, eu sempre fui propensa a
escolher mal os assuntos para iniciar uma conversa, mas dessa vez tinha me superado. J sei,
trote! Pensei, tentando me confortar. Ele deve ser o representante do ltimo perodo que veio
armar uma pra gente. Torci para que isso fosse verdade, pois depois do meu sofrvel discurso
poltico-idiota sobre professores, sendo ele tambm professor, com certeza eu j estaria
sumariamente reprovada nessa matria. Minha suspeita desesperadora se confirmou depois
da sua apresentao formal como mestre.
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Ol turma, meu nome Alderico Schmitz e sou o professor de Lingustica 1.
No sabia onde enfiar a minha cara, minha tenso ficou bvia atravs dos meus olhos
alarmados. Aps os primeiros minutos exibindo cara de paisagem, me recuperei
parcialmente e resolvi prestar ateno em cada palavra, com uma expresso incrivelmente
interessada. Evitei olhar nos olhos dele cada vez que ele virava na minha direo. De fato,
fiquei impressionada com sua eloquncia e carisma, ele prendia facilmente a ateno de
todos, especialmente das mulheres, que eram maioria na turma.
Ao trmino da aula, aps anotar algumas indicaes bibliogrficas, fiquei em dvida
se:
1 Saa disfaradamente;
2 Dizia: Tchau, at a prxima, me desculpe;
3 Simplesmente saa sem dizer nada.
Num estalo criativo tive a brilhante ideia de sair fingindo que estava falando no celular.
Assim, no precisaria me despedir. Enquanto eu atravessava o corredor de cadeiras, observei
que ele me acompanhava com os olhos, rindo e ainda sentado na mesa dos professores. Estava
cercado por trs entusiasmadas alunas. Ele gesticulou com as mos, fazendo sinal para eu me
aproximar. Pra que eu fui olhar? Caminhei na direo dele, ainda conversando com minha
amiga imaginria, enquanto suas mais novas fs se despediam. Aps fazerem milhes de
perguntas desnecessrias, elas finalmente deram sinal de que iriam embora. Cheguei perto e
ele se levantou sorrindo, provavelmente divertindo-se com a minha gafe. Enquanto despedia-
se delas, ele segurou de leve o meu ombro, como se estivesse me impedindo de fugir. Fiquei
meio desorientada com a sua proximidade, observando os torneados msculos do seu brao
no msculos de um halterofilista bombado, porm firmes e bem presentes.
Enquanto eu fazia minha talentosa atuao ao telefone e as meninas j estavam nos
deixando, o imprevisvel aconteceu: meu celular idiota tocou de verdade, quer dizer gritou
bem na minha orelha. Arfante, olhei para o visor: era minha me, hrrhrrhrr... Atendi
correndo o telefone:
Ah, oi, caiu a ligao... improvisei.
O qu? interpelou ela, sem entender.
Daqui a pouco te ligo, beijo. Atabalhoada, desliguei na cara dela.
Olhei para ele segura, como se nada tivesse acontecido. Acho que vou fazer teatro.
Ficamos parados uns cinco segundos nos olhando num silncio mortal.
Ser que essa aula desfez sua m impresso sobre a classe de mestres? sondou
ele rindo e voltando-se para a mesa para pegar um papel.
Desculpe pelo que eu disse antes, s estava... chateada com os primeiros incidentes
aqui. Tambm defendi , como iria imaginar que existia um professor to... (lindo)...
jovem como voc por aqui?
o segundo ano em que dou aula neste curso, me formei aqui mesmo, em francs.
Voc explica como se fizesse isso h anos... Foi muito boa a sua aula argumentei,
tentando recuperar uma imagem simptica.
Ento, no perca a prxima. Dito isso, ele estendeu a mo e me entregou o meu
horrio, que tinha ficado com ele. Queria acreditar que tinha sido de propsito. At parece...
Agradeci e me despedi.
Quando cheguei no quarto, Michele j estava l e pelo nmero de pacotes abertos e
panelas sujas j tinha comido um bocado. Pensei tratar-se da famosa larica
1
. Ela me ofertou
1
Gria que designa a fome aguda que atinge quem se encontra sob o efeito da cannabis sativa Termo
usado sobretudo por jovens, tambm quando desejam um sanduche para o lanche ou uma refeio
substancialmente inferior a almoo ou jantar. (N. do R.).
14
um macarro que estava pronto na panela enquanto teclava no seu laptop.
E a? Como foi o seu primeiro dia? indagou ela, com uma felicidade estranha no
olhar.
Legal eu disse. S tive duas aulas.
De qu?
De apresentao de pessoas brinquei e Lingustica 1.
Com aquele gato do Rico! Ele um timo colrio para se comear o dia... arfou
ela.
, a aula foi legalzinha. desdenhei, tentando aparentar indiferena.
Escuta Angelina, vai ter uma... reuniozinha aqui em casa hoje noite com as
minhas amigas. Sabe como , a gente no se v h um ms, temos muito o que fofocar,
devemos jogar cartas e tal... Voc no se importa, no ?
Bem, desde que elas no saiam muito tarde, amanh temos aula bem cedo, certo?
Pode ficar tranquila. garantiu.
Que dia! Resolvi tomar um banho e comer alguma coisa. Preparei humildemente um
misto quente de frigideira, que ficou meio queimado o que me fez desejar ardentemente a
comida da minha me.
Pela primeira vez no dia a saudade de casa bateu forte e resolvi ir at a pequena lan
house que havia visto l em baixo para enviar algumas mensagens para o meu pessoal.
Quase tive uma parada cardaca ao descer as escadas e v-lo sentado no sof com dois
outros garotos, vendo um jogo de futebol. Era ele mesmo: Alderico ou Rico, como dissera
Michele. Estava bem mais informal, com uma bermuda verde, uma camiseta branca e chinelos.
Mesmo assim, um espetculo!
Ao sair do transe pensei: Droga! Eu tinha descido com uma cala larga, uma blusa que
ganhei num comcio, chinelos e cabelo molhado penteado para trs. Parecia que estava em
casa numa sesso de cinema com a minha me. Pensei em retornar rapidamente escada
acima para me trocar, mas no me decidi em tempo suficiente. Ele me avistou e saudou:
Angelina? No sabia que voc tambm morava aqui.
Uma onda de calor e satisfao subiu pelo meu corpo ao ouvir a palavra tambm
ecoando na frase. Abri um sorriso dissimulado e caminhei em sua direo.
Bem, cheguei essa semana, na verdade ontem.
Est em que quarto?
No terceiro direita do segundo andar.
Com a Michele? Coitadinha, vai precisar de um refgio, naquele quarto um entra e
sai...
Balancei a cabea concordando com um sorriso afetado.
Onde estava indo?
Internet falei, apontando para a saleta ao lado.
Fica no computador da direita, mais rpido ele sugeriu com aquele sorriso
arrebatador e o brao estendido no sof.
Agradeci a dica e fui andando, arrependida de no ter dito vim ver televiso e ficar mais
tempo por ali, conversando com ele. Mas foi melhor assim. No final das contas, o que eu
estava pensando? Ele era meu... professor e com certeza no era cristo nem nada. No que
eu me importasse com isso, mas meu pai...
E tambm era... mais velho, apesar disso tambm no me incomodar tanto. Continuei
repetindo as inadequaes dessa fantasia insana para mim mesma a fim de convencer-me
desse improprio. Eu precisava de foco!
15
No meu ltimo e nico relacionamento, eu tinha 16 anos quando namorvamos,
ele morava em So Paulo e s vinha duas vezes por ano a Petrpolis para visitar os avs.
Alis, era por isso que meu pai o aprovava tanto: um perfeito e inofensivo relacionamento
distncia. Era melhor eu me distrair mesmo com outra coisa.
Conferi a caixa de mensagens e fiquei feliz de ver que tinha recebido uma pgina
inteira de e-mails de familiares e amigos. Uns me desejando boa sorte nessa nova fase, outros
curiosos sobre como estavam indo as coisas nesse novo comeo. Mas a mensagem mais
preciosa foi a de Natasha. Como j sentia falta de tagarelar horas e horas com essa minha
amiga do peito! Ela me mandou um e-mail enorme contando tudo que havia acontecido desde
que sa de l como se isso tivesse acontecido h anos , me fez mil perguntas sobre tudo e
anunciou que, finalmente, iria passar seis meses fazendo intercmbio na Inglaterra, junto
com seu irmo, para aprimorar o ingls. Dante aproveitaria para fazer uns cursos de msica
que h tempos desejava. Ele tinha uma banda Gospel e seu sonho era ganhar a vida como
msico. Suas canes eram muito boas e j tocavam bastante na rdio local.
Fui resgatada de minhas lembranas por um barulho de vassoura. Olhei para trs e vi
uma senhora gorda, morena e baixinha. Estava com um pano enrolado na cabea, um avental
branco e um vestido florido azul escuro. Tinha lbios grossos, bochechas proeminentes e um
olhar grande, negro e curioso. Quando percebeu que havia me interrompido, abriu logo um
sorriso arrependido e se desculpou:
Desculpa, filhinha, nem vi voc a. Estava to escuro aqui que entrei distrada. J
passa das nove horas e eu no posso sair sem deixar tudo limpo para amanh.
Imagina! exclamei, sinceramente agradecida. Agora tinha um motivo real para
retornar sala. Quer dizer, para o meu quarto. , vou direto para o meu quarto... eu acho.
Meu nome Raimunda... prolongou-se ela. Trabalho aqui, na cozinha e na
faxina das reas comuns a todos.
Ah sim! Meu pai me falou de uma taxa que os estudantes racham para a
manuteno da repblica. Prazer, sou Angelina e cheguei esta semana, j estava de sada
mesmo, boa noite. Apressada, me despedi.
Seja bem vinda querida e que Deus abenoe sua jornada.
Suas palavras me entretiveram por um momento. Fiquei ali parada, mirando-a
complacentemente. Era a primeira vez que algum me dava boas vindas desde que chegara e
me sentindo estranhamente simpatizada por aquela mulher, agradeci e sa.
Quando voltei para a sala, ele ainda estava l, s havia um garoto em sua companhia
agora. Ao passar, notei que ele me observou enquanto conversava com o menino.
Que olhos lindos... Melhor eu ir dormir, conclu.
Quando cheguei perto da porta do quarto, pelo barulho percebi que ainda havia
meninas l dentro. Resolvi entrar assim mesmo para ver se elas se tocavam que j estava na
hora de sair. Que pssima surpresa eu tive quando entrei e vi aquela fumaa e aquele cheiro
horroroso no quarto! Fiquei parada, administrando na minha mente diante daquele cenrio
de pesadelo. Pela minha expresso, Michele percebeu que eu no estava muito satisfeita com a
cena, pois pelo visto eram vrios tapinhas por dia.
Elas j estavam de sada. antecipou Michele, amigvel.
Deixa s a gente queimar esse restinho, t? disse a loura de mecha azul,
impassvel novamente.
Volto em cinco minutos! Limitei-me a dizer, batendo a porta.
Caminhei pelo corredor e tamborilei meus dedos na porta para dar tempo de me
acalmar. Eu decididamente no iria conviver com aquilo. Drogas no combinavam com os
meus princpios. Ali deveria ser o meu refgio, meu lugar de descanso, de estudo. Comecei a
pensar na hiptese de procurar outro quarto vago por ali. Felizmente, meu humor foi
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instantaneamente restaurado quando vi Rico, sozinho, subindo as escadas.
Meu aborrecimento tornou-se irrisrio na sua presena, ele morava mesmo ali.
Curioso, seguiu na minha direo e perguntou, brincando:
Fazendo a ronda?
Esperando meu quarto esvaziar bufei, sem pacincia.
Por que no pede a elas para se retirarem?
J pedi, mas esto muito ocupadas queimando um... no terminei a frase,
aborrecida.
No acredito! Quantas vezes j falei com a Michele... Eu vou l proclamou ele,
marchando para a porta.
No! relutei. No queria passar por fofoqueira. Agora no. Ela vai pensar que
fui atrs de algum e no quero criar um mal-estar entre ns duas, depois me entendo com
ela.
Faa isso, ento insistiu ele. Seno, eu fao. Quer que eu espere aqui com
voc?
Claaaaaaaaaaaaro!
No, tudo bem, elas j vo sair. Ento... onde o seu quarto?
Na verdade, no moro aqui (momento de decepo intensa), mas meu apartamento
meio longe do campus e quando vou ministrar aula muito cedo no dia seguinte os meninos
me convidam pra ficar. Pra falar a verdade, tenho passado mais tempo aqui do que em casa.
tima notcia. Nesse momento a porta do quarto se abriu e com isso fomos agredidos
por aquele cheiro odioso, que me deixou nauseada. Michele veio at a porta conversando com
as meninas e recebeu dele um olhar de reprovao. Aps me desejar boa noite, ele se dirigiu
para dois quartos depois do meu, deixando aquele imenso corredor desprovido novamente do
seu charme.
Michele comeou a recolher os cinzeiros, cantarolando, enquanto eu organizava as
minhas coisas, muda. Depois de cinco minutos sendo completamente ignorada, ela resolveu
reatar relaes.
Saudades de casa?
Com certeza! murmurei, arrumando a cama.
Algum problema? investigou a dissimulada.
Isso comum? reagi.
O qu?
Vocs, aqui, se drogando no nosso quarto?
Que palavra pesada Angelina... Se drogando? Bem inerente a quem chegou do
interior. melhor voc se livrar logo desses valores arcaicos. Voc sabia que a maconha
liberada em muitos lugares? um tipo de... calmante, muitas pessoas usam s pra tirar o
estresse do dia, sabia disso?
Estresse do dia.... Ela no fez nada alm de dormir fora, bagunar o quarto, matar aula
na floresta e fumar o dia todo. Que hipocrisia! Ser que nunca ouviu falar de yoga?
Pois argumentei, com uma cara ofendida , mas gostaria de pedir que no
fizesse isso aqui. Alis, gostaria de pedir que no fizesse isso, pela sua famlia e por voc, mas
j que no nos conhecemos o suficiente para este tipo de intromisso da minha parte, ao
menos em respeito a mim, faa isso em outro lugar, por favor.
por causa dessa coisa de igreja, no ? inferiu ela, revirando os olhos. Minha
me sempre tagarelou diversas vezes nos meus ouvidos sobre tudo que ela ouvia l, apesar de
eu achar que ela mesma no aprendeu nada, s decorou o que ouviu. Sei que logo, logo voc
vai perceber quanto exagero aprendeu. A vida pode ser divertida, sabia? Deus alegria!
disse ela. Mas sem drama, t? No vamos mais vir aqui, a no ser que voc queira. Voc
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precisa fazer novas amizades e abrir a cabea, menina... Se vai ficar aqui por quatro anos
bom se enturmar, esteretipos moralistas no sero muito teis por aqui.
Achei tudo aquilo um absurdo! No me considerava arcaica nem... moralista. Mas
agradeci por ela concordar em no fazer mais aquilo em nosso domiclio partilhado. Agora s
queria dormir e relembrar meus velhos e saudveis amigos.
CAPTULO III
PRIMEIRO SONHO
No acredito! Por causa de toda a minha irritao, no tinha colocado o celular para
despertar e estava atrasada. Pulei da cama. Vesti um jeans, uma blusa, um casaco e coloquei
meu tnis. Fiz um rabo de cavalo desajeitado e parti com minha mochila, chupando uma bala
para esconder o bafo. Que vergonha! Essa eu tenho certeza que minha me tinha previsto e
logo no segundo dia! Saquei para fora da mochila meu horrio do bolso para ver para em que
sala deveria estar. Quo grande foi o meu alvio ao ver que s teria aula a partir do segundo
tempo! Ca sentada no primeiro banco que vi e larguei a mochila entre as pernas. Pensei em
voltar para escovar os dentes, mas resolvi tomar caf na cantina, estava com muita fome.
Sentei no banco alto perto do balco e pedi um croissant e um suco de laranja. Havia
alunos, professores e tambm alguns gatos famintos por ali. Acabei de comer e abaixei para
dar os restinhos a um gatinho branco que costurava minhas pernas quando minha Bblia de
bolso caiu no cho. Ainda faltavam uns 30 minutos para a aula seguinte e resolvi procurar um
lugar tranquilo para ler. Lembrei daquele banco em que vi Michele e sua gangue pela janela do
banheiro. Era perto da floresta e decidi procurar. Dei a volta por fora da faculdade e logo
encontrei o local. Para minha surpresa, contemplei um imenso lago logo aps a floresta, sem
nenhum ser humano em volta e achei ali um canto de paz. Os raios de sol incidiam por entre
as rvores. Resolvi me embrenhar floresta adentro at chegar margem do lago. Sentei ali,
confortada naquele calor matinal, e me encostei numa rvore prxima. Dei-me conta de que
desde que havia chegado s havia orado para Deus afastar as baratas, ento resolvi orar e
agradecer por tudo que estava acontecendo. Eu estava ali, na faculdade, como sempre sonhei.
Feito isso, abri a Bblia e no sabia o que ler. Resolvi, ento, comear pelos Salmos, pois s
conhecia mesmo o 23 e o 91. Folheei o primeiro:
Bem aventurado o homem que no anda segundo o conselho dos mpios, nem se detm
no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores.
Antes tem o seu prazer na lei do SENHOR, e na sua lei medita de dia e de noite. Pois ser
como a rvore plantada junto a ribeiros de guas, a qual d o seu fruto no seu tempo; as suas
folhas no cairo, e tudo quanto fizer prosperar.
No so assim os mpios; mas so como a moinha que o vento espalha.
Por isso os mpios no subsistiro no juzo, nem os pecadores na congregao dos justos.
Porque o SENHOR conhece o caminho dos justos; porm o caminho dos mpios
perecer.
Achei bem propcio ao momento, era a descrio perfeita para o pblico do meu
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quarto na noite anterior: a roda dos escarnecedores. Era bom lembrar o meu lugar sem me
sentir extremamente... moralista (aquela palavra ainda estava me incomodando).
Fiquei mais alguns minutos contemplando a paisagem e sentindo o sol aquecer a
minha pele, me sentia revigorada e merc dos elementos da natureza. Aps alguns instantes
me levantei e caminhei at a beira do lago. Abrindo os braos, me espreguicei e levantei a
cabea para o cu quando, subitamente, algum comentou:
Que lindo dia, no ?
Apanhada de surpresa, ao virar para trs deixei minha Bblia cair no lago. Era Rico,
ainda mais lindo sob a luz do sol. Seus olhos verdes reluziam na pele suada e rosada. Estava de
camiseta, bermuda e tnis, com um MP4 pendurado no brao. Sem ainda falar nada,
contemplei minha Bblia no fundo raso do lago. Antes que eu me abaixasse, ele a pegou para
mim.
Ser que toda vez que eu deixar algo cair, ele vai aparecer?
Encharcou! constatou ele, segurando o volume pela capa. Mas no uma
literatura difcil de encontrar...
No gostei muito da palavra literatura para o que eu aprendi a considerar A Palavra
de Deus. Ento, retruquei:
No o que dizem na ndia...
Ainda bem que voc no caiu tambm disse ele, mudando de assunto e me
puxando para longe da margem do lago. O que faz aqui, Angelina?
Estava procurando um lugar tranquilo para ler, e voc?
Sempre corro de manh quando estou por aqui (informao registrada), minha
aula s s 10 horas.
Claro que essa boa forma no cai do cu.
Bem, a minha daqui a... dez minutos constatei ao olhar a hora no celular.
Peguei minha mochila e fui andando com ele de volta ao campus.
O que est ouvindo? perguntei, apontando para o MP4.
No da sua poca zombou ele.
E de que poca voc , meu idoso professor? provoquei de volta.
Da poca em que se faziam boas msicas brincou ele.
Afinal, quantos anos voc tem? perguntei, aproveitando o ensejo.
27 respondeu ele. Fao 28 no ms que vem, em abril.
bem novo para um professor de faculdade, no? elogiei.
No para os competentes! gabou-se ele.
Chegamos diante do campus e ele disse que iria para a repblica, precisava tomar um
banho. Nos despedimos e enquanto eu subia os poucos degraus da escada pensando em dar
uma espiada pra trs, ele me chamou:
Angelina?
Virei-me na hora.
Quelqu`un m dit, de Carla Bruni disse.
Franzi a testa sem entender.
A msica! esclareceu, balanando o aparelho de som.
Fiz um sinal positivo com a cabea como se tivesse ideia de quem se tratava e me
voltei para a escada, pensando em me atualizar musicalmente com urgncia. Foi quando
esbarrei em Michele, que estava saindo.
Socializando, hein gata? isso a! disse ela com uma vozinha cantante enquanto
caminhava na direo de uns quiosques de lanches que ficavam no gramado. Fingi no
entender. Pude notar a loira de mecha azul me encarando com uma expresso indignada
enquanto andava. Talvez ela no tivesse gostado de eu ter acabado com as festinhas no quarto.
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Nesse dia as coisas fluram mais normalmente. Todos os professores vieram, mas
ministraram pouca matria. Eu J tinha alguns livros para comprar, ento resolvi ir ao
shopping mais prximo para encontrar uma livraria. Peguei as informaes de como chegar
com uma aluna da minha sala e depois de almoar na cantina segui, sozinha.
Logo ao entrar no shopping dei de cara com uma mega livraria e fiquei feliz por estar
resolvendo tudo sozinha. At ento, minha me sempre tinha comprado meus livros didticos
e eu raramente a ajudava. Ao invs disso, ficava perdida na livraria comprando o mximo de
romances que pudesse. Aquele era o meu ambiente favorito.
Achei quase tudo que precisava e fiquei calmamente vagando por ali, fiscalizando
todas as novidades. Encontrei um cibercaf e fui consultar meus e-mails. Aps mandar
mensagens para meus pais e para Natasha, voltei a caminhar procurando a sesso de best
sellers. Achei que comprar um livro novo para distrair a cabea seria uma boa, j que os
meninos da repblica monopolizavam a televiso. Chamou minha ateno uma seo de CDs
e DVDs. Eu no me interessava muito por msica, mas resolvi procurar o CD de que Rico
falara mais cedo. Assim que achei, o inclui nas minhas compras, no via a hora de podermos
conversar sobre a minha mais recente aquisio.
Ainda era cedo quando fiquei enfadada e resolvi voltar para a repblica. Um sono
avassalador me dominou no nibus, segurei firme os olhos abertos para no perder o ponto
onde devia descer. Quando cheguei, fui direto para o quarto, joguei as coisas no cho, troquei
de roupa e ca na cama. Graas a Deus Michele no estava. Adormeci profundamente, alis
isso nunca foi problema para mim, s que dessa vez tive um sonho muito diferente.
Sonhei que estava correndo num enorme parque onde que no se podia contemplar o
fim. Eu ainda era criana e devia ter uns oito anos. Estava de vestido branco, brincava e pulava
sem parar. Subitamente, enxerguei uma escada de sete degraus, que descia em direo a uma
floresta distante. Era como se eu estivesse no segundo andar do parque. Do lado esquerdo de
cada degrau da escada havia sete homens altos e vestidos de branco. Todos olhavam na minha
direo. Na minha concepo, pareciam anjos. Cada um deles segurava uma bandeja de prata
e em cima delas havia uma ma. Por algum motivo insondvel, aquelas no eram como as
outras mas. Eram magnificamente vermelhas e extremamente aromticas, reluziam ao sol
ainda mais do que a prpria bandeja, destacando-se na paisagem verde. Seu perfume me
atraiu intensamente. Incitada, resolvi me aproximar e desci o primeiro degrau, pois cobiava
v-las mais de perto. O primeiro homem estendeu a bandeja para mim e, amistoso, ofereceu-
me. Retribu a simpatia, mas fiquei em dvida se deveria peg-la. Ele se posicionou na minha
altura, fitando-me nos olhos e mais uma vez ofereceu-me a fruta. Ela era to apetitosa, e eu
estava com tanta fome... O desejo de obt-la era quase inevitvel. Argumentei comigo mesma
que no haveria problema em somente toc-la e o aparente anjo continuou me encorajando.
Trouxe-a para mais perto da boca e fechei os olhos, inspirando profundamente. No podia
resistir a tamanha formosura. Queria ter a liberdade de com-la, no vi nada nem ningum
que pudesse me impedir, e eu salivava cada vez mais. Regida pelo meu impetuoso desejo, no
aguentei mais e a mordi com toda fora. O sabor espalhou pelo meu corpo uma sensao de
satisfao e prazer. Era sem dvida a coisa mais deliciosa que eu j tinha comido na minha
vida. Meus ps comearam a esquentar e o calor foi subindo pelo meu corpo devagar, at
alcanar a minha cabea. Estava to satisfeita que comecei a danar enquanto comia. Girava
embevecida e a desfrutava, satisfeita. Agora sentia o sol bater no meu corpo mais
ardentemente. Saboreei a fruta at no sobrar mais nada.
Acabei de lamber os dedos e me virei para agradecer. O homem posicionou a bandeja
de prata vazia virada para mim, exibindo meu prprio reflexo. Desalentada, notei que estava
com a minha aparncia atual, no era mais uma menina e sim uma mulher. Ainda
assombrada com a abrupta transformao, vi quando a bandeja caiu das mos dele e foi ao
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cho. Aquele que a segurava comeou a tremer e tambm a se converter em outra coisa bem
diferente. Como se assistindo a um truque de ilusionismo, pude contemplar em que se
tornara. Ainda no acreditava quando testemunhei, atnita, o surgimento de um grande
leopardo na minha frente. Rpido, ele pulou escada abaixo e correu para a longnqua floresta
no me dando tempo de agradecer-lhe, nem de entender o acontecido. Foi ento que um
estrondo de porta batendo me acordou. Era Michele entrando no quarto.
Desculpe, no sabia que voc estava dormindo aqui, pensei que ainda estivesse no
shopping.
No, tudo bem agradeci. J estava mesmo na hora de eu acordar.
Verifiquei as horas e j eram seis da tarde, tinha dormido durante umas trs horas
seguidas. Levantei e joguei gua no rosto para despertar. Enquanto isso, Michele pegou suas
coisas e foi ao banheiro do corredor dizendo que ia tomar banho. Comecei a preparar um
caf, ainda pesada pelo sono, e o sonho se repetiu todo na minha mente. Era estranho porque
eu sempre dormia to profundamente que nunca me lembrava de nada, mas aquele sonho
estava especialmente ntido na minha cabea.
Tomei o caf, escovei os dentes, peguei um dos livros que havia comprado e resolvi
descer para, quem sabe, cruzar com meu maravilhoso professor. Eu sabia que no
aconteceria nada entre ns, tudo ficaria somente na minha cabea. Afinal, o que ele iria
querer com uma pirralha sem assunto como eu? Nem de msicas poderamos falar, ele estava
muito alm de mim. Por certo, eu no deveria nem estar pensando naquilo. Alm do mais,
deveria existir um cdigo de tica na profisso a respeito de envolvimentos de professores
com alunos e, claro que um homem lindo como aquele no deveria estar sozinho. Mesmo
assim ele era um deleite visual, e olhar no iria me matar.
Quando sa no corredor me arrisquei, em vo, a tentar ouvir a voz dele no quarto.
Desci as escadas vasculhando cada canto e pela primeira vez a saleta estava vazia. Sentei no
sof em frente televiso desligada e, frustrada, abri o meu livro. Mal comecei a ler o prefcio
e Raimunda adentrou na saleta acompanhada de sua vassoura.
Parece que estou sempre te interrompendo, no querida? disse ela, sorrindo,
mas um pouco abatida.
Claro que no, Raimunda, j estava mesmo estranhando isso aqui to calmo hoje.
Est tendo chopada na outra repblica do campus, todo perodo que comea a
mesma coisa, tudo motivo de festa. Voc no vai?
Nem estava sabendo, mas no conheo ningum l e tambm no gosto de
agitao respondi, tentando no parecer excluda. Afinal, nem a Michele tivera o trabalho de
me convidar. Tambm, pensei, no gostaria de sair com um grupo de meninas que teria como
nico objetivo acabar a noite bbadas, nos braos de um estranho.
De repente, fui acometida por pensamentos apavorantes:
Ser que por isso que ele no est aqui? Ser que ele est l, com milhes de alunas
mais bonitas do que eu, se oferecendo para ele? No, ele no me parece esse tipo ftil, pensei
tentando me consolar.
Ser que existe algum cdigo de tica para isso tambm, proibindo professores de
comparecer a esses despudorados eventos? Tomara que sim...Ai droga, por que eu ainda estou
pensando nisso?
Novamente Raimunda me resgatou de meus delrios.
Voc me parece uma menina muito especial, diferente das outras daqui. Espero que
continue assim com o passar do tempo torceu, suspirando.
Nesse momento avistamos Michele descendo a escada toda emperiquitada e
acendendo um cigarro. Vestia um casaco e um short mnimo. Afinal, ela estava com calor ou
com frio? Usava tambm um salto alto e uma bolsinha pequena com a ala atravessada no
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peito. Sua maquiagem forte contrastava com seu rosto ainda meio infantil.
Assim que chegou at ns, dando uma voltinha, inquiriu:
O que acha? Aprovada?
Olhei para Raimunda, a mesma arregalou os olhos em minha direo franzindo a testa
e logo comeou a varrer. Achei que a verdade seria muito rude e somente balancei a cabea
soprando um falso ahn ahn.
Talvez eu durma fora hoje de novo, se estiver com sorte, claro! profetizou,
rindo. No me espere.
Soltou um beijinho e saiu pelo porto.
Acho que vou continuar como estou afirmei eu, me voltando para Raimunda e
revirando os olhos.
Estava no final do primeiro captulo, enquanto Raimunda varria e tirava o p da sala,
quando ouvi um barulho e olhei para trs. Ela derrubou um livro da estante enquanto tentava
se apoiar para no cair, ficou ereta novamente e encostou a mo na testa com os olhos
fechados. Rapidamente me desloquei em sua direo para me certificar de que ela estava bem.
s uma tontura, estou um pouco gripada informou ela.
Segurei em seu brao para ajud-la a caminhar at o sof e percebi que ela estava
queimando.
Raimunda, voc est com febre! No deveria estar aqui e sim em casa, descansando.
No posso querida, se faltar me descontam o dia, j ganho to pouco aqui, meu
marido est desempregado e ainda ajudo minha filha, que me solteira, a criar minha neta.
Ela cuida do pai enquanto estou trabalhando.
Seu marido tambm est doente?
No, graas a Deus, mas ele ficou cego depois de velho e no gosto de deix-lo s.
Mas no podem te descontar se voc est doente! V pro hospital e consiga um
atestado, diante da lei estar protegida.
Minha filha lamentou ela , se for ao hospital pblico hoje por causa de uma
gripe, passaro todos na minha frente e s sairei de l, talvez, amanh.
Vamos! J tarde e voc j cumpriu o seu turno, eu te levo pra casa ordenei
,decidida.
Mas ainda falta tirar p de alguns mveis... relutou ela.
Eu termino quando voltar e amanh a senhora no vem. Deixe que eles descontem
e eu te pagarei uma diria. No tenho gasto muito dinheiro por aqui e tenho umas reservas.
No posso aceitar, isso no seria justo...
Eu fao questo! insisti.
Ento, fico lhe devendo uma faxina especial no seu quarto para compensar.
Fechado! concordei, encerrando o assunto.
Caminhei alguns metros com Raimunda apoiada em mim e vi que atrs da repblica
existia uma casinha pequena, branca, com uma janela azul. Ficava margem do mesmo lago
onde eu estivera pela manh. Havia alguns arames pendurados de um lado a outro com
algumas roupas de criana, pneus encostados na parede e duas galinhas passeando em volta.
Quando chegamos, antes de cruzar a porta ouvi uma voz masculina que saa do interior da
casa.
Oi meu amor, j est tarde, estava te esperando. Como voc est?
Entramos e vi um senhor negro, alto e grisalho. Estava sentado em um sof de dois
lugares, velho e meio rasgado. Em frente havia uma cadeira vazia. Percebi que a casa tinha
somente uma sala, um banheiro e um quarto. Os mveis eram velhos e tinha um pouco de
mofo no teto e nas paredes, mas fora isso parecia muito limpa e arrumada.
No outro lado da pequena sala, num colchonete velho dormia uma criana linda,
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mulata, bem mais clara do que eles. Estava de chupeta, vestindo um macaco rosa e com
algumas bonecas em volta. Era menina e devia ter uns trs anos.
Percebi um barulho de panela de presso que vinha de dentro da cozinha. Dela saiu
uma moa negra, alta, com um vestido bege at os joelhos, que marcavam uma cintura fina.
Seus braos eram bem delineados e, apesar do vestido discreto, dava para ver que era muito
bem feita de corpo. Devia ter em torno de vinte 25 ano, seu cabelo era bem curto e tinha os
mesmos olhos de Raimunda. Vinha enxugando as mos com um pano de prato e ao me ver
perguntou, assustada:
O que aconteceu? A senhora passou mal, no foi? Eu disse que iria no seu lugar,
mas a senhora to teimosa...
Ela est com febre revelei, interrompendo-a. Meu nome Angelina insisti
para que ela viesse logo.
Obrigada. Eu sou Carla e esse meu pai, Amino. Minha me muito cabea dura,
eu queria ir no lugar dela mas...
Voc no sabe limpar direito! Seu negcio cozinhar! resmungou Raimunda,
tremendo de frio.
Carla pegou um cobertor de l azul marinho e cobriu as costas da me. Eu podia
sentir o calor familiar que emanava daquele lugar.
Temos um antitrmico da Carina aqui disse Carla. Deve servir para a senhora.
Vou lhe dar uma quantidade um pouquinho maior. V se deitar, levo sua sopa na cama.
Amanh eu vou no seu lugar.
No ser necessrio... anunciou Raimunda.
A senhora no vai! esbravejou Carla, sria, com as mos na cintura. Eles
podem respirar poeira por um dia e nem vo notar. S vivem bbados e fazendo baguna...
subitamente ela se conteve e me olhou, arrependida.
Desculpe, no quis dizer isso. Voc foi muito gentil em vir aqui e...
No se preocupe falei Ela conseguiu uma dispensa para amanh.
Carla me olhou estupefata e depois voltou-se para a me, exclamando:
Que milagre foi esse? Eles nunca te deram folga...
As coisas mudam minha filha, Deus sempre nos surpreende... declarou
Raimunda.
Aleluia! festejou a filha, virando-se para mim pela primeira vez e com um grande
sorriso nos lbios. Seus dentes eram perfeitos e muito brancos, ela era mesmo uma mulher
muito bonita.
Bem, vou indo, melhoras Raimunda! Cumpra o combinado e se precisar ficar mais
de um dia em casa, s avisar falei, dirigindo-me para a porta.
Quem voc? Filha do diretor do campus ou coisa assim? indagou Carla em tom
de brincadeira.
Quase isso brinquei. Do dono de tudo!
Ento, temos o mesmo pai disse ela dando uma piscadinha.
Entendi que ela falava de Deus assim como eu e fiquei feliz por t-los ajudado.
Volte sempre que quiser. Na verdade, espere um minuto! ordenou ela, entrando e
voltando poucos minutos depois com um pote enrolado em um pano. Est fervendo, acabei
de fazer. uma simples sopa de legumes, no sei se gosta. Mas como minha me disse, na
cozinha eu sou boa, tem um pouquinho de carne tambm.
Recebi feliz aquele presente por saber que teria um jantar digno,que eu jamais faria
sozinha. Agradeci sinceramente e fui embora.
Quando subi as escadas e entrei na repblica me lembrei de que ainda tinha que
limpar alguns mveis para Raimunda,como havia prometido. Um desnimo bateu, mas me
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senti compelida a seguir em frente e fui pegar o pano,apoiando minha janta no sof.
Comecei a limpar de onde ela havia parado. Estava quase acabando quando olhei o
relgio e vi que j eram mais de 11 horas, a sopa com certeza j estava fria. Limpava a ltima
prateleira no momento em que fui surpreendida.
Tem algum que paga para isso, sabia? Voc tem TOC ou coisa assim?
S a voz j me fez estremecer. Quando me virei, Alderico estava encostado na porta,
sorrindo para mim. Guardei o pano sem graa e relatei o ocorrido.
Quer dizer que tem uma sopa fresquinha nesse pano, ? ameaou ele, fingindo
que ia pegar. Estou morto de fome! Esses meninos nunca cozinham.
Bem, no muito, mas se quiser dividir... propus, de imediato. Alis, jantar com
ele seria muito mais apetitoso.
Nem vou me fazer de difcil disse ele, pegando o pote , mas precisaremos
esquent-la constatou.
Tem um fogozinho no meu quarto... ofereci, sem pensar.
Beleza, vamos l. Disse ele pegando a sacola super rpido e comeando a subir a
escada. Limpei as mos na cala e segui atrs dele, arrependida, pensando se no teria
parecido oferecida ao falar do fogo no meu quarto. Decidi de forma resoluta que pensaria
melhor daquele momento em diante quando abrisse a boca perto dele, que confundia meus
sentidos de forma inexplicvel.
Paramos em frente porta do quarto e eu a abri sem olhar para ele.
No repare a baguna pedi.
Convenhamos, s do lado da Michele.
No esquenta, j estou acostumado.
Mirei-o com cara de interrogao. Ele j esteve aqui? Rapidamente ele captou meus
pensamentos e se defendeu, erguendo as mos:
No, quer dizer, acostumado com a baguna dos alunos por aqui.
Que alvio! Peguei uma panela e coloquei a sopa dentro, acendendo o fogo para
esquentar. Quando me virei, ele olhava minhas fotos na parede. Senti-me um pouco
constrangida pois estava bem infantil naquelas fotos. Ele apontou para uma foto minha e de
Dante juntos no aniversrio da Natasha e perguntou:
seu namorado?
No! disparei. um amigo.
Um amigo homem... falou ele, meditando. No de se estranhar, voc muito
fcil de conversar.
Recebi contente o elogio.
Est sentindo muita saudade de Petrpolis? perguntou ele, distrado.
Como sabe que sou de Petrpolis? indaguei, envaidecida com a revelao.
As notcias correm rpido por aqui respondeu ele baixando os olhos
disfaradamente.
Ser que ele perguntou sobre mim por a?
Que sacola essa aqui no cho? Parece um CD, novo? perguntou ele retirando
o CD da sacola enquanto eu podia sentir o calor subindo pelo meu pescoo. Foi impossvel no
ficar vermelha.
... confirmei sem graa enquanto ele olhava o CD com um sorriso convencido.
Comprei hoje. Na verdade, fui comprar uns livros e me lembrei do que voc tinha falado,
sabe, sobre... boa msica, resolvi arriscar.
Sentindo-me ridcula, comecei a catar as coisas do cho, toda agitada e enrubescendo
cada vez mais.
E gostou? perguntou ele, candidamente.
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Ainda no ouvi, est lacrado no v?
Posso? perguntou ele, ameaando abrir o CD. Fiz sinal que sim com a cabea, ele
abriu e colocou-o no aparelho de som ao lado da cama da Michele. A msica realmente era
tima e fez do quarto um ambiente romntico e sedutor.
Senti um leve cheiro de queimado e, num sobressalto, me virei para desligar o fogo.
Como esquentou to rpido?
Sopa queimada... apontei, desapontada com meus dotes culinrios. Ainda vai?
perguntei sem graa.
Claro! respondeu ele, sem se abalar.
Ele se levantou, pegou a panela sacando duas colheres de cima da pia e me oferecendo
uma. Sentamos na beira da cama, esfomeados, e comeamos a comer da panela mesmo.
Lembrei do filme A dama e o vagabundo: pena que no tinha espaguete para unir os nossos
lbios...
Eu estava estranhando aquela sensao, nunca tinha ficado to prxima de um homem
mais velho, mas ele me deixava confortvel. A verdade que eu achava os garotos da minha
idade muito bobos e desinteressantes.
Conversamos sobre vrias coisas, a maioria delas sobre mim. Meus sonhos, meus
planos e minha famlia. Rimos com histrias engraadas que eu lembrava de vez em quando
olhando as fotos.
No meio da nossa agradvel conversa, meu celular tocou. Era meu pai. Que faro!
Tremi nas bases. O que iria dizer? Que estava com um professor no meu quarto, quase
meia-noite, tomando uma inocente sopa? Era a verdade bem, no to inocente da minha
parte , mas meu pai iria pirar. Pensei em no atender, mas ele ligaria dezenas de vezes
achando que fui raptada ou algo parecido. Por que ele estava ligando to tarde? Ser que tinha
acontecido algo grave? Relutante, resolvi atender.
Oi pai. cumprimentei, desanimada.
Rico se endireitou na cama, parecia at que meu pai estava ali, achei engraado.
Oi querida, est acordada?
Sim, lendo menti, sorrindo para o Rico e me virando de costas. Aconteceu
alguma coisa pra ligar a essa hora?
No, ... sua me teve um sonho estranho e queria saber se tudo est bem.
Lembrei do meu sonho, ser que era o mesmo? Que pirao, claro que no.
Tudo em ordem pai, volte a dormir e no ligue mais to tarde, lembre-se que eu no
moro sozinha, amanh cedo nos falamos.
Espere! ordenou ele Deixa eu orar por voc.
Fiquei vermelha.
Agora no pai, amanh.
Sua me no vai me deixar dormir se eu no fizer isso, ento, tem que ser agora!
insistiu ele.
Fiquei irritada com todo aquele empenho missionrio em orar por mim meia-noite,
mas eu sabia que aquela discusso j estava vencida, ento tive que concordar. Comecei
ouvindo a orao fingindo que ele ainda estava falando. No final sibilei um espirrado amm e
me despedi.
Virei-me para o Rico e ele j estava de p.
Bem, vou indo, meu estmago est meio estranho... reclamou ele, passando a
mo na barriga.
Ser que foi a sopa? Eu estou bem... falei, em desalento por ter sua companhia
podada. Com certeza tem a ver com a orao protetora do meu pai, imaginei desgostosa.
No sei, mas melhor eu ir, amanh cedo dou aula pra voc, mocinha disse ele
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segurando meu queixo e dirigindo-se para a porta. Acompanhei-o e, antes de sair, ele se virou
e inclinou-se para mim como se fosse me beijar. Meu corao disparou. Fiquei catatnica
esperando sua reao. Ele me olhou por um segundo e depois passou a mo perto da minha
boca para tirar um resto de sopa. Ainda bem que no fiz um biquinho.... Ele riu discretamente
obviamente se divertindo com o meu susto , me deu um beijo na bochecha e disse:
Obrigado pela sopa... e chegando mais perto do meu ouvido, sussurrou: voc
um anjo.
Quando ele se foi, eu ca de costas atrs da porta para no desmaiar.
O que foi aquilo? Por que ele chegou to perto? Ser que eu estou sonhando?
Fui arrumar o quarto, sorrindo de vez em quando ao me lembrar da cena, parecia uma
idiota. Quando me deitei, procurei o cheiro dele ao redor, mas no achei. Dormi em paz e
sorrindo, no via a hora de chegar o dia seguinte.
CAPTULO IV
O CU
Infelizmente, independente
Acordei para me arrumar mais cedo do que no primeiro dia. Tentei me maquiar, mas
como no tinha o hbito me senti ridcula para aquela hora da manh. Troquei de roupa
umas quatro vezes, prendi e soltei o cabelo umas quinze. Eu estava esquisita. Muito vaidosa
s para um dia de aula. No podia evitar que a cena do dia anterior povoasse meus
pensamentos matinais. Escovei os dentes e coloquei um perfuminho de leve, caso algum se
aproximasse tanto novamente. Eu sabia que algo no estava certo naquilo tudo, mas estava
to bom, por que parar? Afinal, nada havia acontecido... ainda.
Quando enfim estava pronta, me olhei no espelho para uma ltima conferida. Decidi
que iria deixar a franja crescer para parecer um pouco mais velha.
No campus fui direto para a minha sala. Fui a primeira a chegar e escolhi uma cadeira
na terceira fileira para no dar muita bandeira. Virei meu cabelo de lado e comecei a fingir que
estava lendo um dos livros que ele recomendou. Pela fresta do meu cabelo jogado dava para
enxergar a porta, assim ele no veria que eu estava vigiando-a de soslaio para quando ele
aparecesse.
Os alunos chegaram e ele tambm. Fingi no tomar conhecimento da sua presena e
continuei lendo. Ele pigarreou alto, olhando e rindo para mim, se fazendo notar. Ri de volta e
sussurrei: Desculpe.
A aula prosseguiu normalmente, mas parecia que nunca ia acabar. Eu estava louca para
estar a ss de novo com ele.
Diferente da primeira vez, ele caminhava por entre as carteiras enquanto falava, fazendo
os alunos rirem de vez em quando. No sei se ele tinha ideia do quanto era encantador. Cada
parada dele dava uma foto, to lindo ele era. Em certo momento, ele passou pela minha mesa e
deixou cair um pequeno papel, sem que ningum visse. Meu estmago embrulhou de
nervoso e me senti como se fosse uma criana no quinto ano. Seria realmente para mim?
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Procurei-o com o olhar para confirmar se era, de fato, para eu abrir. Mas ele me ignorou,
continuando a dissertar. Impaciente, abri imediatamente o papel no meu colo, onde estava
escrito: Meu anjo, te devo um jantar.
Quase ca da cadeira. Aquilo no era real, ele estava mesmo me assediando. Meu corpo
comeou a tremer com a possibilidade. Enquanto era s uma fantasia da minha cabea eu
estava me divertindo, mas agora parecia que ia pirar.
O que eu iria fazer? Onde estava Natasha agora para me aconselhar? quela hora ela
devia estar na Europa e eu no podia ligar para ela. Podia mandar um e-mail, mas ser que ela
me responderia at o jantar? Ela se correspondia comigo todos-os-dias, mas s noite e at l
poderia ser tarde. Tambm no podia ligar para minha me, seno ela iria arrumar um
advogado para process-lo por corrupo de menores, mesmo eu no sendo mais menor. No
impasse dessa deciso, todo o resto perdeu a relevncia, no consegui ouvir mais nada
naquela aula, s pensando no que iria fazer. A aula acabou e permaneci paralisada. Guardei o
material lentamente enquanto os alunos iam se retirando. Quando levantei, o ltimo j estava
saindo e eu estava vermelha como um camaro. Alderico me acompanhou at a porta e me
cumprimentou, receoso.
Tudo bem com voc?
Sim disse eu, umedecendo os lbios para conter o nervosismo.
E ento? indagou ele.
E ento o qu? repeti, indecisa.
O jantar. Hoje? Amanh?
melhor um almoo sugeri, desesperada. Eu durmo cedo.
Mas voc janta todos os dias, no ? ironizou ele. Tudo bem, ento.
Almoamos hoje e jantamos quando voc quiser. Assim, voc vai me dever mais um almoo e
eu te deverei um jantar, s ento ficaremos quites.
Fechado! consenti, aliviada.
No sabia como me comportar num jantar romntico, se que era isso mesmo... Bem,
para estudar que no devia ser. De qualquer forma, um almoo era mais informal.
Mas no aqui... protestou ele, levando meu alvio embora. Te encontro no
corredor ao meio dia.
Passei o resto das aulas agonizando, me perguntando aonde iramos, as possibilidades
eram infinitas. O que tinha de errado com o restaurante local? Resolvi enfrentar a realidade de
frente: eu j era adulta e precisava aprender a me relacionar com maturidade, no precisava
temer.
Quando enfim nos encontramos ele pediu que eu aguardasse no banco do corredor e
correu para o restaurante. Pensei que ele tinha mudado de ideia e que iramos almoar por ali
mesmo, o que me traria um grande alento. Alguns minutos depois ele retornou munido de
algumas sacolas e fez sinal para que eu o acompanhasse. No perguntei nada, apenas o segui.
Ele entrou num porto de servio do corredor e comeamos a subir uma escada. Imaginei que
havia algum restaurante de professores l em cima. Quando enfim no havia mais para onde
subir, ele abriu uma porta e pude contemplar um cu ensolarado sobre ns. Estvamos no
terrao da faculdade e a vista da lagoa de cima era deslumbrante, a floresta tambm era maior
do que eu pensava. Ele tirou da sacola uma toalha de mesa igual do restaurante e forrou o
cho. Entendi que se tratava de um piquenique e achei tudo maravilhoso. Ele tinha pedido
pores de vrias coisas para eu escolher. E eu como sou boa boca, comi um pouquinho de
tudo, ainda bem que nunca tive tendncia para engordar.
O sol estava forte, mas corria uma brisa que amenizava o calor. Ele segurou as pontas
da camisa com os braos cruzados e perguntou: Se importa? Acenei que no com a
cabea, comendo uma batata frita. Vidrei os olhos nele, apatetada, enquanto ele tirava a
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camisa e a pendurava no pescoo. Era a viso do paraso...
Conversamos mais do que na noite anterior e dessa vez foi ele que me contou
histrias engraadas do tempo da faculdade. Em certo momento, no encontrando uma
explicao plausvel para ele querer estar em companhia de uma fedelha como eu, questionei-
o com uma expresso intrigada.
Voc no acha isso esquisito?
O qu? indagou ele, sereno.
Eu e voc... aqui. Voc professor, eu aluna. Nossa diferena de idade tanta, no sei
como voc aguenta ouvir minhas idiotices... conclu, balanando a cabea.
Ele olhou para o cho e riu num suspiro rpido. Depois, respondeu:
Bem, sim e no. Estou aqui h muito tempo e me considero... parte daqui. Como
estudei nessa faculdade, me sinto mais parte dos alunos do que dos professores, que so bem
mais velhos do que eu vangloriou-se ele. E voc ... diferente das outras meninas, mais
autntica. No vazia, sabe? Veio para c com um objetivo maior e no s para se divertir. A
diferena de idade no aparece tanto com pessoas assim, maduras como voc.
Claro que me senti muito bem com esse comentrio dele, apesar de ter certeza que ele
no me conhecia o suficiente. Relaxei, achando que a minha pergunta tinha sido mesmo
despropositada.
Acabamos de comer, guardamos os restos para os gatinhos e juntamos o lixo.
Levantamos para partir e ele me olhava mais srio, porm com um sorriso no canto dos
lbios. Como ele podia ser professor? Deveria ser modelo...
Para o meu descontentamento, ele infelizmente vestiu a camisa e depois abriu a porta
para descermos. Passei na frente dele e ao descer os primeiros degraus me dei conta de que
havia esquecido meu celular no cho, l em cima, enquanto arrumava as coisas. Virei para
trs para subir e peg-lo quando dei de cara com ele que, estranhamente, no saiu da minha
frente de imediato. Ficou parado, me olhando nos olhos a centmetros do meu rosto. Senti que
minhas pernas iriam falhar. Como eu podia estar to envolvida em apenas trs dias? Seu
rosto era perfeito, seus olhos eram doces e miravam a minha boca. Eu desejava que ele no
fosse to atraente.
Esqueci o celular revelei, no me movendo um centmetro.
Est aqui sussurrou ele, levantando a mo direita sem sair do lugar.
Obrigada peguei o aparelho constrangida, sem saber o que fazer.
Queria voltar a ser aluno... s vezes. confessou ele com um sorriso irnico.
Queria ser professora, como voc agora... devolvi, no acreditando no que estava
dizendo.
Ele se aproximou da minha orelha como se fosse dizer alguma coisa, mas no disse
nada. Cheirou meu cabelo como se cheirasse uma rosa, desceu o nariz pelo meu rosto at
ficar mais perto da minha boca. Ns dois pudemos sentir o calor do corpo um do outro. Fiquei
em dvida se ele podia ouvir as palpitaes do meu corao. Estvamos na escada e no havia
ningum em volta, nenhuma testemunha caso algo acontecesse. Afinal, o que eu sabia da
vida? Como podia julgar sentimentos que no conhecia? Minha vida toda fora monitorada por
meus pais e eles falavam de casamento como algo to puro que chegava a ser entediante. Eu
no sabia que poderia sentir algo assim, uma desenfreada vivacidade. Minha cabea saiu de
circuito e meu corpo comeou a tremer de leve. Ele colocou a mo na minha nuca e foi
enfiando os dedos pelo meu cabelo. Toquei no peito dele delicadamente. Com esse meu gesto,
ele entendeu que eu tambm o queria e depois de me avaliar por mais dois segundos, me
beijou. Larguei tudo nas escadas e correspondi ao beijo, intensamente. Ele desceu a mo para
a minha cintura e me puxou para mais perto dele, fazendo meu corpo disparar uma descarga
eltrica. Eu no acreditava que aquilo estava acontecendo. Subitamente ele parou, abaixou o
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olhar e falou, encostando a testa na minha:
Eu estou ficando doido.
Eu ri, pensando a mesma coisa, e meus olhos brilharam. Ele segurou a minha mo e
me conduziu descendo as escadas. Quando atravessamos o porto para o corredor principal
ele me soltou e eu compreendi.
Andamos lado a lado sem dizer nada. Eu s queria pular no pescoo dele de novo.
Chegamos no porto de sada da faculdade, ele se virou para mim com um leve sorriso, disse
que ainda tinha aulas para dar e que mais tarde a gente se veria na repblica. Mirou
novamente a minha boca por alguns instantes, percebi que ele pensava no mesmo que eu, e
depois se foi.
Eu no estava acostumada a uma vida com tantas emoes. Parecia que estava vivendo
uma das histrias de um dos meus livros favoritos. Uma parte de mim dizia que aquilo tudo
era to... errado. Mas ao mesmo tempo, por que tudo isso estava acontecendo comigo? No
seria um plano de Deus que eu entrasse na vida do Rico para que ele pudesse conhec-lO?
Claro que eu no era nenhum exemplo de virtude, mas pelo menos vinha de uma famlia
crist, o que j devia me garantir algum pedacinho do cu, eu achava. Tinha que concordar
que quando estava perto dele esquecia completamente que existia qualquer coisa alm dele.
Comecei a entender perfeitamente o que Paulo dizia em sua carta aos romanos e que meu pai
sempre repetia para mim:
Porque o que fao no o aprovo; pois o que quero isso no fao, mas o que aborreo
isso fao. E, se fao o que no quero, consinto com a lei, que boa. Porque no fao o bem que
quero, mas o mal que no quero esse fao. Ora, se eu fao o que no quero, j o no fao eu, mas
o pecado que habita em mim.
A verdade era que eu queria ter feito tudo que havia feito e no conseguia me
arrepender de nada. Senti-me um pouco culpada lembrando dessa passagem, mas decidi
esperar para ver o que iria acontecer. Iria tentar tocar no assunto Deus da prxima vez que
estivesse com ele para ver sua reao. Meu pai jamais aceitaria que eu namorasse algum de
outra religio.
Namorar... Ser?
Passei a maior parte da tarde comeando realmente a ler os livros indicados. No
consegui me concentrar muito tempo pois aquele beijo povoava minha mente a cada cinco
minutos. Eu devia ser muito diferente das outras meninas dali como ele falara e no
acreditava que tinha atrado aquele ser to encantador. J devia estar lendo h umas duas
horas e nem percebi quando adormeci com o livro em cima do peito.
Novamente eu estava no parque do meu sonho anterior. Sondei em volta e sabia que
estava procurando algo. Olhei para o meu corpo adulto e me lembrei de tudo: daquela fruta
deliciosa, da sensao maravilhosa que ela provocara, daqueles anjos de branco... Sabia que
havia mais alguma coisa, mas s me lembrava at a. Procurei novamente a escada. Comecei a
caminhar seguindo em frente, a certa altura inspirei um cheiro delicioso e o segui. Ao me
aproximar do local certo, pude ver que a cena se repetia com poucas alteraes. Os homens
estavam l, de p, menos o primeiro que se fora. As bandejas agora estavam lambuzadas de
mel e o mesmo era brilhante e muito apetitoso. Desci dois degraus e parei na frente da
bandeja. Os olhos do homem que a segurava eram doces e ele me esticou a bandeja para
provar. Olhei para ele rindo e estiquei o brao para tocar o mel, sem medo. Nesse momento
senti uma mo no meu ombro que me deteve, olhei e no vi ningum, mas parecia ter ouvido
a voz de um amigo. Voltei-me de frente e continuei em direo ao mel, lambuzei o dedo
indicador e o coloquei na boca. Seu sabor era ainda mais gostoso do que o da ma. Ele me
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dava... felicidade! Desfrutei de tudo que podia, rindo e danando como antes. No s comia,
mas tambm passava pela minha pele. Nada mais importava, eu estava completamente
absorta pela aquela sensao energizante. Quando me saciei, virei-me para o homem decidida
a agradecer dessa vez, mas ele j havia posicionado a bandeja de prata virada para mim e pude
ver meu reflexo no espelho. Fiquei deliciada com o que vi, me senti a mais desejada das
mulheres. Eu estava muito mais bonita, aquele mel tinha me revigorado de forma
maravilhosa. Minha pele rosada parecia de seda, meus olhos possuam um brilho diferente e
meus cabelos balanavam, pesados com o vento, era como se eu tivesse sido finalmente
lapidada. Eu girava admirada, me certificando que era mesmo o meu reflexo. De repente, a
bandeja caiu me distraindo da minha beleza. O homem, que at ento me admirava, comeou
a se retorcer como da primeira vez, e vi que se transformava em alguma coisa, s que agora
bem maior. Tremendo, comecei a definir os traos que se formavam at que percebi que ele
estava se tornando um grande urso. Transfigurado, ele me encarou nos olhos e me farejou
como se estivesse checando algo. Fiquei paralisada de medo e no reagi. Depois de alguns
segundos ele se virou e correu para a floresta. Observei-o indo embora, assombrada com os
acontecimentos. Olhei para a bandeja no cho e sorri, me lembrando da minha nova imagem.
Sentei-me e peguei-a para me apreciar mais um pouco. Hipnotizada, esqueci completamente
do perigo que corri minutos antes. Eu estava to linda...
Acordei uma da manh, desesperada por ter perdido a oportunidade de ver o Rico
naquela noite. Ser que ele pensou que eu no queria v-lo? Porcaria de sono pesado!
Lembrei-me daquele sonho maluco e me olhei no espelho, estupidamente esperanosa de ver
alguma mudana. Estava toda descabelada e com um lado do rosto vermelho e amassado. A
realidade era cruel, mas estava muito irritada para me concentrar naquilo. Michele j estava
dormindo. Decepcionada, depois de fazer um lanche fui dormir de novo, desta vez sem sonhos.
Despertei cedo como no dia anterior e estava bem disposta pois tinha dormido muito.
Tomei caf, percebi que teria que fazer umas comprinhas no final de semana, me arrumei e
desci. Nenhum sinal dele. Caminhei at o campus observando cada caminho por onde ele
poderia estar correndo. Nada. Como estava cedo fui ao refeitrio ver se ele estava l, nem sinal.
Conferi todos os sete corredores da faculdade, de sala em sala, para ver se o encontrava, perdi
meu tempo. Minha vontade era de dar com a mochila na cabea por ter dormido tanto na noite
anterior.
Voltei para o corredor onde era minha sala e entrei, derrotada. Passou-se a primeira
aula, a segunda, a terceira e a cada intervalo eu dava uma ronda pela faculdade. Como vigiava,
enlouquecida, o corredor pela porta no ouvi nada do que os professores falavam. Finalmente
as aulas acabaram e voltei repblica, abatida por aquela situao to angustiantemente
indefinida.
No dia seguinte, estava desesperada! Era sexta-feira e eu s teria aula com ele dali a
trs dias, tempo mais do que suficiente para ele me esquecer. Eu no tinha ideia do que faria
no final de semana, s sabia que no iria a Petrpolis pois ali haveria maior possibilidade de
encontr-lo. No tinha ideia de onde o procurar. Fui ao banheiro da repblica s para passar
em frente ao quarto em que ele ficava e tentar ouvir algum barulho dele, mas no ouvi. Voltei
ao quarto para deixar minhas coisas e resolvi que iria ficar de sentinela na sala de baixo para
ver se ele passava. Peguei meu livro e desci. Li seis captulos do livro, chequei meu email e
passei a tarde beliscando biscoitos. A fonte de comida estava mesmo acabando. s seis da tarde
resolvi ir tomar um banho e voltar para o quarto. Desceria de novo mais tarde.
Quando estava no quarto penteando o cabelo bateram na porta. Estranhei, pois
geralmente Michele e suas amigas vinham entrando. Imaginei ser Raimunda para pagar a
faxina que me devia, mas claro que no iria querer faxina quela hora. Ao abrir a porta, as
nuvens-cor-de-rosa voltaram a aparecer. Encostado na parede como uma escultura divina,
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estava o objeto do meu desejo. Ofensivamente lindo. De cala jeans, tnis e um casaco de grife,
parecia pronto para desfilar. Abri um sorriso aliviado e ele foi logo esclarecendo:
Tecnicamente, s volto a ser seu professor de novo na segunda, vim ver se voc me
deixa pagar a dvida do jantar. Foi um momento de alegria explosiva.
Eu estava mesmo com fome de comida depois de ter ingerido tanta besteira. Pedi a ele
que esperasse l embaixo enquanto me arrumava. Quando fechei a porta, me joguei na cama
sufocando um grito de alegria. Ele devia gostar mesmo de mim, iria me levar para sair na
frente de todo mundo! Contanto que meu pai no soubesse, seria um orgulho sair ao lado
daquele Adnis
2
. Quando ia escolher a roupa, meu celular tocou. Era minha me, dizendo que
meu pai viria me buscar de manh cedo. Ser que ali havia alguma cmera escondida? Pedi
para ele no vir pois teria trabalho em grupo para fazer com as meninas do campus. Ela
estranhou ter trabalho j na primeira semana, mas concordou. Coloquei um vestido, mas
fiquei parecendo uma freira perto das meninas do campus. Decidi que iria comprar roupas
alm de comida naquele final de semana. O que fazer??? Avistei o armrio da Michele e pensei
em pegar alguma coisa emprestada, mas ela era o extremo oposto de uma freira e isso tambm
no daria certo. Coloquei um Jeans mais novinho, uma blusa e uma sandlia, me olhei no
espelho e constatei que eu, obviamente, estava muito aqum da minha companhia. O jeito era
encarar positivamente, ele j tinha me visto em condies bem piores com aquela camiseta
de comcio, e eu no tinha nada melhor. Afinal, no havia planejado jantares romnticos com o
possvel amor da minha vida quando fiz minha mala na semana anterior. Coloquei um
perfume, passei batom e desci.
Ele estava sozinho no sof, levantou-se e veio em minha direo, logo me agarrando
pela cintura e me puxando para perto sem cerimnia. Depois, passou suavemente o seu rosto
no meu e perguntou:
Onde voc estava na quarta noite, meu anjo? tomei um susto com aquela
reao arriscada, a qualquer momento algum poderia passar, mas fiquei feliz com a
despreocupao dele. Meu corpo parecia desfalecer em seus braos. Sem graa, contei que
havia cado no sono. Ele sorriu e disse Minha menininha!, me beijando na testa. Quando
descemos pela porta da repblica vi uma picape importada parada em frente, que acendeu
automaticamente quando ele apertou a chave. De longe no parecia carro de professor
universitrio em incio de carreira. Ele me acompanhou at a porta do carona e abriu a porta.
Entrei tentando no fazer nenhum comentrio bobo e me arrependi de no ter olhado no
armrio da Michele. Ligou o carro e o som e partimos para estrada. No reconheci a banda,
mas era bem agradvel, e romntica.
Comecei a refletir sobre a minha nova condio. Uma semana antes eu era uma
menina cercada de cuidados pelos pais, que no tinha sado sozinha com namorado nem de
bicicleta e agora estava ali, completamente dona de mim. Parecia um sonho do qual eu no
queria acordar. Minha vida adulta era muito mais interessante. No caminho, ele colocou a mo
atrs do meu banco e s vezes na minha mo. O carro andou bastante e notei que mudamos
de bairro vrias vezes. Percebi que estvamos na zona sul quando avistei a orla. Chegamos a
um restaurante finssimo. O manobrista abriu a porta ao meu lado e descemos. Mais uma vez
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Nas mitologias fencia e grega, Adnis era um jovem de grande beleza, que despertou o amor de
Persfone e Afrodite, tornando-se smbolo da vegetao que morre no inverno e regressa Terra na
primavera. Era uma divindade ctnia, que cumpre o ciclo da semente. Deus da vegetao
eternamente jovem, ligado vida, morte e ressurreio, estando associado ao calendrio agrcola.
Embora seja mais conhecido como divindade grega, Adnis teve sua origem na Sria. (N. do R.).
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quis sair correndo para comprar uma roupa no shopping. Comecei a me desesperar de novo.
No sabia como me comportar num jantar romntico e sofisticado, no sabia comer com
todos aqueles talheres, fiquei congelada na frente do restaurante sem dar um passo sequer.
Algum problema? perguntou ele
Acho isso injusto disse eu.
Como assim?
Eu s dividi uma sopa queimada com voc foi a melhor desculpa que arrumei.
Quer ir a um lugar mais simples, no ?
Acho que sim confessei, acanhada.
O manobrista ainda no havia nos deixado. Rico foi at ele, entregou uma nota e
agradeceu. Entramos no carro e me senti uma idiota.
Desculpe disse eu.
Pelo qu?
Voc queria fazer algo especial e eu estraguei tudo. No estava preparada para tudo
isso...
Sem problemas disse ele segurando a minha mo , vamos para a minha casa.
Congelei de novo! Meu Deus, tudo s iria piorar? Agora sentia falta do restaurante.
Acho que minha cara falou por mim, pois ele perguntou novamente se eu tinha algum
problema.
Acho que no estou preparada para isso tambm falei, apavorada.
Por qu? perguntou ele, confuso.
Eu sou... virgem. revelei, quase pulando do carro em movimento ao dizer isso em
voz alta. Pensei que ele iria morrer de rir, mas ele pegou carinhosamente a minha mo e
disse:
E assim que vai continuar depois desta noite.
Por que eu me sinto idiota a maior parte do tempo? Era como se aquele no fosse o
meu mundo, mas estava to bom! A presena dele era tudo que eu queria e cada minuto longe
dele seria torturante. Ele me fez conhecer emoes que eu nem sabia que existiam at aquele
dia, a no ser nos contos e romances. Eu me sentia mais... humana.
Resolvi no contestar mais nada.
Percebi que estvamos na Lagoa, pois quando eu era pequena meu pai sempre me
levava l para andar de pedalinho. Ele embicou o carro na garagem de um luxuoso edifcio,
onde imaginei ser a casa dos pais dele.
Pegamos o elevador e ele apertou o boto que indicava a cobertura. Desembarcamos
num pequeno corredor onde havia somente uma porta: a dele. Quando ele a abriu, contemplei
uma sala gigantesca, super bem decorada num estilo moderno, e um varando de ponta a
ponta da sala, com vista para a lagoa. Vrios ambientes coexistiam em uma sala s. Percebi
que era um duplex, pois havia uma escada que subia. Ele jogou a chave na enorme mesa
quadrada de doze lugares e tirou o casaco. Pegou o telefone e perguntou se eu gostava de
pizza. Acenei com a cabea que sim e fiquei andando enquanto pela sala enquanto ele ligava
para a piazzaria Chamaram minha ateno uma adega enorme, uma TV de LCD de 65
polegadas e um porta-retrato digital que passava vrias fotos dele: pulando de asa delta,
esquiando, na torre Eiffel e em muitas outras viagens. Quando ele me viu olhando as fotos,
veio em minha direo e me abraou enquanto fazia o pedido. Quando desligou, me
perguntou se queria conhecer a casa.
Voc mora aqui sozinho? perguntei, unindo as sobrancelhas sem acreditar.
Pois , tanto espao para um homem s.
Como tem coragem de dormir naquela repblica fedorenta com um apartamento
desses?
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Gosto de companhia. disse ele com seu sorriso encantador.
E seus pais?
Meu pai diplomata e mora na Alemanha atualmente, mas prefiro ficar por aqui.
E por que voc... trabalha na faculdade? Quer dizer, d pra ver que voc no
precisa...
muito chato no fazer nada o tempo todo. J fiz isso. Viajei por vrios lugares
durante um ano, mas me sentia intil. Ento, resolvi voltar e fazer algo que gosto.
Voc no me parece o tipo de cara... letrado, entende?
Sempre gostei de ler, quando era pequeno j mostrava muito interesse. Eu tambm
escrevo s vezes para algumas colunas de esportes, mas s por diverso.
Conversamos mais amenidades e a pizza chegou no mesmo momento em que o
celular dele tocou. Ele me deu o dinheiro e perguntou se eu poderia receb-la. Peguei-o e fui
at a porta enquanto ele foi para a varanda para atender o telefone. Recebi a pizza e o troco. O
entregador ficou imvel me olhando e achei que estava aguardando uma gorjeta, mas como o
dinheiro no era meu, dei boa noite e fechei a porta. Olhei para o Rico e ele fez um gesto de
um minuto com a mo. Fui at a cozinha pegar algo para cortar a pizza, mas tinha tantos
armrios que no fazia ideia de onde encontrar. Enquanto procurava, ele me abraou por trs
e abriu a gaveta certa. Em seguida eu me virei e ele fechou a gaveta me empurrando com o
seu corpo. Ficou me encarando com aqueles penetrantes olhos verdes e sorriu de leve. Eu
estava me sentindo a prpria pizza aos olhos dele. Minha vontade era esquecer o jantar e
sufoc-lo de beijos. Ele olhou para baixo e fechou os olhos como se quisesse se concentrar,
depois se afastou e pegou minha mo se encaminhando para a sala.
Apagamos a metade das luminrias e ele pediu que eu escolhesse um filme para
comprar pela TV a cabo, mas no tinha nada que eu quisesse ver. Comemos e depois ele me
mostrou toda a casa. Cada ambiente era mais lindo que o outro, eu me sentia naquelas
exposies de apartamento decorado, s que bem mais luxuoso.
Subimos as escadas e ele me mostrou a sute dele. Havia uma estante enorme cheia de
livros em francs, uma cama king size, uma prancha encostada no canto, um laptop na
cabeceira e uma TV de 65 polegadas ali tambm. O quarto era enorme, tinha um frigobar e
um telefone sem fio. Notei uma porta que dava para o que me parecia ser um closet super
bem organizado.
Quando descemos e nos sentamos no sof, ele colocou um DVD do show de uma banda
qualquer e sentou ao meu lado concentrado na TV. Eu apreciava cada detalhe do seu rosto e
no sabia se era possvel desej-lo mais. Imaginava o que teria feito para merecer aquele
presente. Ele me trouxe para perto me abraando e eu virei o rosto dele para beij-lo. Ele
retribuiu, me beijando um pouco relutante, e eu fui me aproximando dele devagar. O cheiro
dele era um nctar afrodisaco pra mim. Comeamos a nos abraar e a beijar mais
apaixonadamente. Eu estava completamente obcecada por aquele homem.
Por que nunca me falaram que seria to bom amar? Pra que esperar mais quando se
tem certeza, como eu tenho agora?
Eu estava quase em cima dele quando ele me empurrou e me deitou no sof. Depois
deitou seu corpo contra o meu. Eu queria am-lo, mesmo com medo meu desejo era maior.
Tinha dvidas se deveria estar ali, mas no conseguia pedir ao Esprito Santo para me
responder como meu pai havia me aconselhado. Eu s queria a minha resposta e eu queria
estar ali, nada mais importava. Nada ruim poderia acontecer depois disso. De repente, entre
beijos e carinhos, envolvida pelo momento, sussurrei: Eu te amo!
Ele parou imediatamente e se sentou devagar, me olhando. Deu um sorriso de canto de
boca e eu vi a besteira que tinha feito. Ele afagou meu cabelo e se inclinou para me olhar
melhor. Havia uma certa compaixo e angstia em seu olhar.
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Acho melhor eu te levar agora, meu anjo, no quero quebrar a minha promessa
disse ele, referindo-se ao meu constrangedor eu-sou-virgem no carro.
Ele se levantou pegando minha mo e eu desejava ser um avestruz para enfiar a
cabea num buraco. Ele me segurou pelo queixo e, sorrindo, disse:
Voc tambm muito fcil de se amar.
Entendi aquilo como um eu tambm e fiquei mais satisfeita, apesar de preferir ter
ficado calada e continuar de onde estvamos.
No caminho para a repblica quase no conversamos. Eu estava morrendo de sono e
ele tambm. Quando chegamos, ele disse que na noite seguinte iria me ver. Fiquei frustrada
com o noite, mas estava muito cansada para convenc-lo subliminarmente a chegar s
seis da manh. Alm do que, eu tinha bastante coisa para ler e compras para fazer,
principalmente roupas novas. Ele abriu a porta do carro e me beijou com carinho. Eu entrei
para a repblica com o corao j apertado de tanta saudade.
Acordei com algum batendo na porta. Olhei o relgio e eram oito horas da manh,
com certeza no era ele. Na dvida, prendi o cabelo, me olhei no espelho e bochechei pasta de
dente. Abri a porta e era Raimunda, com sua vassoura e um baldinho cheio de produtos e
panos de limpeza. Estava sorridente e perguntou:
Cheguei muito cedo? Fiquei com medo de voc sair quando seu pai chegar.
Ah... no... ele no vem informei, coando a cabea. Mas, entre. sa da frente
da porta. Est melhor?
Sim. No vou demorar muito, t? Mas, por que seu pai no vem? Desculpe a
pergunta, mas a sua primeira semana aqui e geralmente vocs esto loucas para dar um
pulo em casa, pegar alguma coisa...
Tenho tudo que preciso aqui afirmei, abrindo a geladeira.
Tenho visto muito voc com aquele professor que vive aqui... Como mesmo o
nome dele? Senti que uma sondagem estava por vir.
O Rico? Bem... somos amigos. Por onde quer comear? perguntei, tentando
distra-la com a pergunta, mas ela continuou.
Ele estudou aqui muito tempo, mas nunca morou mesmo. Na verdade, no entendo
por que ele trabalha aqui, soube que ele muito rico levantei a sobrancelha como se isso
fosse uma novidade, enquanto bebia um copo dgua. Desde muito moo ele sempre veio
com carros importados e todo tipo de novidade estrangeira. Voc j o conhecia antes?
indagou ela.
Pensei que ela fosse colocar um holofote na minha cara para firmar um interrogatrio
oficial, mas tentei mudar a situao a meu favor. Bem, ela quer falar... Ento, eu fao as
perguntas agora.
No respondi. Voc sempre o viu por aqui, conhece ele?
No muito, mas conheci alguns amigos dele que no eram boa companhia.
Por qu? queria ver onde ela queria chegar.
Faziam muita baguna, ele era mais quieto verdade, mas os amigos... viviam
bebendo e saindo com todas as garotas do campus.
Quanto tempo tem isso?
Uns trs ou quatro anos. A maioria nem terminou o curso, somente ele e o amigo
dele.
Senti uma entonao especial na palavra amigo e deixei-a continuar.
J fez amizade com alguma garota daqui?
Ainda no, estive ocupada. respondi sem pacincia.
E sua companheira de quarto meio difcil de encontrar, no ? Quando quiser
conversar pode ir l em casa, Carla gostou muito de voc, ela tambm precisa de uma
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companhia mais jovem de vez em quando...
Bem, vou sair pra comprar algumas coisas falei, encerrando a conversa. Seu
dinheiro est em cima da geladeira, fique vontade e bata a porta quando sair.
Peguei minha mochila e sa meditando sobre aquela conversa. Ele no combinava com
aquela histria toda de farras, festas e... garotas. E ele tambm era mais jovem quando tudo
aconteceu. No queria mais pensar sobre aquele assunto.
A tarde foi entediante, comprei algumas coisas no mercado, a maioria besteiras e
macarro instantneo. Fui ao shopping, mas nada me animava. Pensei em ir ao cinema
sozinha, mas no havia nenhum filme que me chamasse a ateno. Comprei um vestido cor
de terra que, segundo a vendedora, realava meus olhos e marcava a cintura. O tecido era mole
e me caa bem. No estava curtindo aquilo, mas no queria voltar sem nada novo. Eu
geralmente amava fazer compras, mas agora s queria ir embora e esperar o Rico chegar.
Ao abrir a porta do quarto, o mesmo estava irreconhecvel. At as coisas da Michele
estavam super arrumadas e orgulhosa por de certa forma ter proporcionado a ns mesmas
tudo aquilo, decidi que repetiria.
Comecei a me arrumar e coloquei o vestido novo. Como j estava mais animada
porque Rico iria chegar logo, pude realmente notar como aquela roupa me cara bem. Passei
um tempo decidindo se iria fazer uma sondagem com o Rico a respeito dos comentrios de
Raimunda. Ainda estava maquinava os rodeios que faria para chegar ao assunto que queria,
quando ele bateu na porta. Quando a abri, ele me fitou de cima abaixo e falou, sorrindo
maliciosamente:
melhor a gente no ficar em casa hoje... Depois, Rico me convidou para ir ao
cinema e de repente todos os filmes pareciam interessantes...
Da em diante nosso namoro s escondidas estava oficializado. Todos os dias nos
encontrvamos, ele sempre estava na minha casa ou eu na dele. Passvamos muito tempo
conversando, ele fazia de tudo para me agradar e eu passei a mim-lo de todas as formas
possveis. Foram vrios piqueniques no terrao, caminhadas na Lagoa e beijos escondidos na
escada a cada intervalo. Havia uma tenso fsica evidente quando estvamos a ss. Ele sempre
dava um jeito de recuar, mas no tocvamos no assunto. Eu sabia o quanto ele estava me
preservando, mas sabia tambm que isso no duraria muito tempo.
Certa noite, ele ficou de ir para a minha casa no final da tarde. Era sbado e eu j tinha
armado para no ir para Petrpolis, pois no final de semana seguinte seria o seu aniversrio
e ele viajaria para ver os pais. Nesse dia eu tinha pedido para Raimunda dar uma limpeza no
quarto para mim. Agora Michele rachava comigo, pois tinha ficado encantada ao ver as coisas
to arrumadas. Tomei um banho e deitei na cama j arrumada para ler meu livro enquanto
esperava por ele. Depois de quase uma hora lendo, meu celular apitou, vi que havia chegado
mensagem. Li o seguinte: abra porta meu anjo!
Corri para a porta e ele estava l, deslumbrante, vestindo a camisa que eu havia lhe
dado de aniversrio alis, muito mais bonito do que o modelo do catlogo da loja. Ele entrou
com dois sacos de lanche para viagem, uma garrafa de vinho e uma mochila. Beijou-me e me
abraou tirando meus ps do cho. Depois entrou.
Nossa! Passou a tarde arrumando isso aqui? Voc tem TOC, confessa... brincou,
rindo.
A Raimunda deu uma faxina pra mim.
Ficou bem melhor! elogiou ele, largando as coisas na pia e vindo em minha
direo. Pegue um casaco, vamos sair ordenou.
Mas ns no amos ficar por aqui?
Mudei de ideia.
No est muito frio, no preciso de casaco reclamei chateada aps todo o esforo
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para deixar o quarto impecvel.
Confie em mim, vai precisar disse ele com um sorriso de quem sabe das coisas.
Obedeci.
Entramos no carro e partimos. Tentei convenc-lo a me dizer aonde iramos, mas ele
foi irredutvel na surpresa. Depois de um longo perodo de insistncia comecei a tentar
deduzir nosso trajeto. Percebi que amos para a zona sul, mas graas ao lanche do carro sabia
que no se tratava de um daqueles carrrimos restaurantes. Tambm no era o caminho
normal para a casa dele. Em pouco tempo vi que estvamos entrando na Marina da Glria e
me animei, suspeitando que faramos um belssimo piquenique em algum deck do local. Ele
estacionou o carro e saiu para abrir a minha porta, como sempre. Pegou minha mo e me
conduziu andando elegantemente, cumprimentando algumas pessoas pelo caminho. Enfim,
paramos na frente de um lindo iate. Olhei para ele desacreditada quando ele adentrou sem
cerimnia no veculo. Ele fez sinal para que eu entrasse e me pegou pela cintura me colocando
para dentro.
Voc no me disse que tinha um iate! falei, com um sorriso afetado.
No meu informou ele tirando meu cabelo do rosto por causa do vento. de
um amigo. Mas s por hoje, nosso concluiu ele, sorrindo e me beijando carinhosamente.
Nesse momento vi sair do interior do iate um individuo moreno, baixinho e forte, que
proclamou com firmeza:
Tudo certo chefe, pode ir!
Alderico me guiou at o interior do barco e comeou a se preparar para pilot-lo. Tirei
o casaco e fiquei ali olhando, pensando quantas habilidades fabulosas dele eu ainda no
conhecia. Ele era uma deliciosa caixinha de surpresas. Partimos e eu fiquei vislumbrando a
orla enquanto nos afastvamos. As luzes do Rio de janeiro completavam aquele encontro
divino. Quando j estvamos longe o suficiente para no ouvirmos mais nada alm de ns
mesmos e as ondas do mar, ele desligou o barco e me conduziu para a parte externa do
mesmo. Depois pegou a garrafa de vinho, abriu me servindo uma taa. Eu nunca havia bebido,
mas no queria decepcion-lo evidenciando a minha total inexperincia em, bom... tudo.
Brindamos e eu falei:
Feliz aniversrio antecipado meu amor! ento, tomei o primeiro gole. No
consegui evitar de torcer a cara com o forte sabor, no estava acostumada com nada que no
fosse gasoso e doce. Ele riu e eu acabei rindo tambm. Ele tirou a taa da minha mo e me
cercou pela cintura, me puxando para perto dele devagar.
Acho melhor voc ir se acostumando com o buquet da minha boca, meu anjo
disse ele acariciando minha face com as costas da mo que segurava a taa. Eu no sabia o
que era buquet, mas sabia que precisaria de um autocontrole formidvel para resistir a
qualquer coisa que me levasse at seus lbios. Havia uma leve brisa gelada do mar, que me
causou um arrepio, mas no pensei em sair dali para pegar o casaco. Ele comeou a passar
seu rosto no meu e cheirou meu cabelo como sempre. Depois veio descendo novamente,
agora pelo meu pescoo at o meu ombro e deu um beijo nele. Minha mo passava pelas suas
costas por dentro do casaco e pude sentir sua confortvel pele quente e seu msculos
definidos. Quando finalmente ficamos cara a cara de novo, eu o beijei de modo visceral e ele
correspondeu. Puxou meu corpo mais forte contra o dele e nos abraamos com um furor
quase selvagem. Naquele momento, desejei ardentemente sermos um s, eu e ele. Sempre
pensei como seria a minha primeira vez depois de casada, mas eu nunca tinha sentido esse
desejo todo que estava sentindo naquele momento. Meu primeiro namoro fora mais uma
amizade e um ponto no infinito se comparado imensido de sentimentos que eu sentia
agora. Eu j era dele, de alma e esprito, s faltava o corpo. Ele me pegou no colo, me encostou
na borda do iate e me sentou ali. De repente, nos separamos, ofegantes. Ele me olhou,
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indeciso, como se esperasse uma confirmao minha para avanar. Naqueles segundos, tentei
me lembrar de tudo que aprendi para tomar a deciso mais sensata. Estvamos num ambiente
de eletricidade magntica, atrados como dois ms. Naquele momento, todos os conselhos que
me foram dados eram ecos distantes na minha cabea. Eu nunca fui o tipo de garota muito
exigente comigo, mesmo em relao a obedecer tudo que me ensinavam. Na verdade, sempre
fiz o que quis. Achava que bastava que acreditassem que eu era perfeitinha e tudo ficaria
bem. Mas ali eu era livre para fazer minhas escolhas, e achei que no amor todas as respostas
se encontravam. Nos breves segundos em que nos olhvamos, pairando naquele ambiente de
extrema tenso fsica, ele perguntou baixinho:
Angelina, sua criatura maravilhosa, por que esta me provocando?
Olhei para ele com um sorriso sorrateiro e, enfim, no resisti mais. Eu mesma voei
para cima dele para no mudar de ideia novamente, e ali, luz da lua, nos amamos
intensamente.
Acordamos, abraados. Eu podia morrer ali. Estava feliz e experimentando minha
primeira manh ao lado dele. Era uma mulher, enfim. Amada e amando. O sol entrava tmido
pela porta entreaberta trazendo um ambiente sereno ao lugar. Tudo estava perfeito, at meu
celular tocar. Era minha me. De repente, o mundo real caiu na minha cabea. O que eu iria
dizer? Eu odiava mentir para os meus pais, mas eles no iriam entender aquela paixo
desenfreada em to pouco tempo. Receosa, atendi e mais uma vez menti. Disse que estava
acordando naquele instante e que iria comear a arrumar o quarto. Minha me falou algumas
amenidades e pediu para eu ler a Bblia, j que no iria igreja. Prometi que sim e desliguei
assim que pude, retornando para desfrutar dos braos do meu amado. Passei o resto do dia
pegando uma coisinha aqui, outra ali, sorrindo e colocando tudo no lugar de novo. Ah, l`amour!
CAPTULO V
A COLHEITA
O semestre seguiu assim, em lua-de-mel, nos encontrvamos quase todo dia na
minha casa ou na dele, sempre escondidos. Todo mundo j sabia o que estava rolando,
mas ningum comentava, nem a Michele.
Eu era pura paixo. Mesmo com o passar dos meses meu corao disparava cada vez
que nos vamos. Passamos todos os finais de semana juntos, exceto o do aniversrio dele,
porque ele foi ver a famlia. Eu praticamente no ia em casa nunca e sempre inventava
alguma coisa no final de semana. Quando ia, passava o dia em Petrpolis contando os minutos
para voltar. No pensei em contar nada aos meus pais e nem Natasha, pois sabia que iriam
me criticar. Eu e Michele ficamos um pouco mais prximas e conversvamos com mais
frequncia, mas sem muita intromisso na vida uma da outra. De vez em quando, Raimunda
me chamava para almoar e eu ia para l. Sempre fazamos oraes antes de comer, o que me
fazia lembrar de casa. Ela tambm sabia do meu namoro s escondidas, mas no falava nada.
Frequentemente tentava arrancar alguma coisa de mim, mas eu sempre escapava pela
tangente. Carina, sua neta, adorava brincar comigo, e eu s vezes a levava para a repblica. Eu
e Carla conversvamos bastante e ela me parecia uma pessoa muito centrada e forte, que no
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se preocupava em julgar ningum, por isso eu ficava mais vontade com ela.
Certa tarde, eu estava ajudando Carla a olhar Carina enquanto ela estendia a roupa e
perguntei sobre o pai da menina. Eu sempre via seus pais se esforando tanto para dar o
melhor para a filha, ento queria saber se ela recebia alguma ajuda do pai ou se ele havia
falecido. Carla parou, olhando fixamente para a lagoa por alguns segundos e depois disse que
no sabia onde ele estava, que havia ido embora assim que soube que ela estava grvida e eu
me senti mal por ter perguntado naquele momento encantador, mas ela continuou:
Ele era aluno daqui, sabe? Tinha uma condio muito melhor do que a minha. Eu
sempre fui jeitosa, gostava de andar por a como aluna e at fiz umas amizades. Meus pais
no gostavam e eu sempre saa fugida para as festas e chopadas. Foi quando o conheci. Fiquei
encantada com a educao dele e ele me tratou como uma princesa, me apaixonei
perdidamente. Como meu pai era zelador da faculdade, namorvamos escondido para no cair
no ouvido dele. Aps alguns meses ficando com ele, engravidei. Era final do semestre e quando
contei o ocorrido, ele logo quis dar um jeito na situao. Mas eu no deixei ela olhou com
uma expresso resignada para Carina. Descobri naquele momento que ele nunca foi a
pessoa que eu amava. Pensei que ele iria voltar atrs, mas no voltou. Em vez disso, transferiu
a faculdade para fora do pas meus olhos encheram-se de lgrimas. Sei que fiz a melhor
escolha depois que ele se foi.
A Carina mesmo uma graa, uma beno argumentei.
No estou falando dela minhas sobrancelhas se uniram. Estou falando de
Jesus.
Depois que ele foi embora tambm pensei em me livrar da gravidez, mas quando
meus pais descobriram, maior foi o meu choque com todo o apoio que me deram. Falaram
que iriam me ajudar e que eu precisava de outro pai para ela, um pai que nunca a
abandonaria. E mais ainda, que Ele poderia me prover como um marido faria.
Como um marido? contestei, sem entender.
Sim. Em todas as necessidades, e assim tem sido. Deixe me ver... Osias Cap 2:14: 16.
Portanto, eis que eu a atrairei, e a levarei para o deserto, e lhe falarei ao corao. E lhe
darei as suas vinhas dali, e o vale de Acor, por porta de esperana; e ali cantar, como nos dias
de sua mocidade, e como no dia em que subiu da terra do Egito. E naquele dia, diz o SENHOR, tu
me chamars: Meu marido; e no mais me chamars: Meu senhor.
As lgrimas involuntariamente rolaram pelo meu rosto, nunca tinha visto o amor de
Deus assim to presente. A certeza que ela tinha de sua proteo era invejvel e eu me senti
culpada por no estar mais orando e nem lendo a Bblia. Alis, eu nem tinha mais uma Bblia.
Decidi que compraria uma novamente. Levantei-me para partir e Carla ainda me disse:
Quando quiser estudar a palavra pode vir, leio para o meu pai todos os dias,
podemos ler juntas.
E ento me deu um abrao e comeou a gritar para Carina colocar o chinelo.
Voltei para a repblica sentindo um aperto no peito, uma falta, no sabia do qu. Pela
primeira vez me senti mal por estar to distante dos meus pais. Eu estava vivendo uma vida
paralela da qual eles nem tinham ideia, mas esse meu novo mundo no se encaixava no deles.
Eles eram muito cheios de doutrina e regras, estava bom assim, pelo menos por enquanto.
Talvez quando eu estivesse perto de me formar contaria a eles. At l, Rico j teria me pedido
em casamento sorri com a ideia e talvez desse tempo dele se converter para o meu pai
aprovar. Ns nos amvamos tanto... Sabia que ele faria qualquer coisa por mim.
Quando cheguei na repblica ele estava sentado no sof vendo o jogo com os amigos.
Ele me viu e sorriu para mim... Meu pequeno mundo particular. S respirar onde ele estava j
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me deixava feliz. Nesse instante, Michele e suas insuportveis amigas desceram a escada.
Percebi que a loira de mecha azul, vulgo Desiree, ficou encarando nitidamente o Rico com
expresso raivosa e comecei a ferver por dentro. No gostei daquela atitude e fui me sentar ao
lado dele. Ele olhou rpido para ela enquanto eu me sentava e depois me abraou, continuando
a comentar o jogo com os amigos. Apesar do nosso namoro no ser explicitamente pblico,
achei um desaforo ela encar-lo daquele jeito sabendo que estvamos juntos. Mais abusada
ainda, ela veio perguntado para um garoto ao nosso lado quem estava jogando e se sentou no
cho, encostando no sof, quase na minha perna. Afinal, o que aquela aliengena queria ali?
Minha cara ficou pssima e dessa vez vi que ele ficou incomodado tambm, pois logo levantou
e me puxou pela mo at a escada. Eu ia subir na frente dele e quando pisei no primeiro
degrau ele me virou subitamente e me deu um beijo ardente e demorado bem ali, na frente de
todo mundo, o que levantou um sonoro a da moada l embaixo. Depois me pegou no
colo e subiu as escadas. Pude ver a cara pattica de deboche dela enquanto eu subia vitoriosa
nos braos dele e fiquei muito satisfeita com o recado dado.
Qual o problema dessa garota? perguntei, ainda em seu colo.
Ele respondeu somente:
Inveja e chutou a porta do meu quarto para dentro.
Estava chegando o perodo de provas e eu estava bem atrasada na leitura dos livros,
no sabia se leria tudo a tempo e estava ficando em pnico. No gostava de falar de matria
quando eu e Rico estvamos juntos, e na sala de aula ramos formais ao mximo um com o
outro (com exceo de umas risadinhas charmosas de vez em quando).
As avaliaes estavam se aproximando, ele percebeu meu conflito e sempre que vinha
eu tinha algo para fazer. Eu sabia que ele iria passar todo o perodo de frias de Julho na
Alemanha com seus pais, e eu em Petrpolis com os meus. Ento, cada minuto agora era
precioso. Foi quando ele sugeriu que poderia me dar uma ajudinha com as provas. Como
professor, ele tinha acesso a tudo e podia me passar as questes das provas para eu saber o
que estudar. No comeo achei um absurdo, afinal ele j tinha feito praticamente todos os meus
trabalhos do semestre para ficarmos com mais tempo livre, mas quando ele disse que era isso
ou ele deixar de vir para eu estudar tudo que faltava, no pensei duas vezes. Afinal, no era o
gabarito, s as perguntas. Nesse dia fui dormir inquieta, me revirei vrias vezes at pegar no
sono e finalmente quando fechei os olhos pude sentir grama na minha mo.
Abri os olhos e estava l de novo, no velho e conhecido parque, deitada naquela grama
sem fim. Sentei-me e notei que o tempo estava mudando, algumas nuvens vinham em minha
direo. Nessa hora senti uma pontada no peito e um vazio estarrecedor, faltava algo ao meu
redor. Levantei depressa com o um impulso de um animal pronto para caar, olhei ao redor e
parecia que uma parte de mim havia fugido, eu estava incompleta. Seguindo meus instintos,
corri o mais rpido que pude para achar o elo perdido. Quanto mais eu corria, mais o
desespero aumentava. De repente, senti o cheiro que me acalmou instantaneamente. No era
mais de ma ou de mel, era um cheiro inebriante que me lembrava o aroma da pele dele.
Segui o perfume e cheguei ao local onde a escada estava. Nela, cinco homens esquerda
seguravam suas bandejas. Em cima de cada uma havia clices transbordando de um certo tipo
de vinho e eu me aproximei, sorridente e com intimidade. Dessa vez o homem nem precisou
me oferecer, eu precisava beber. O odor era desesperadoramente atraente, e eu diria vital,
para a minha sobrevivncia. Peguei a taa e a levantei num gesto sutil de agradecimento ao
homem-anjo. Trouxe para perto do nariz como uma grande apreciadora e descobri ,enfim, o
que era buquet. Bebi, degustando cada gole lentamente, deixava escorrer pelo meu rosto e s
vezes pelas bordas da taa. Dessa vez, no senti a felicidade de antes e sim um intenso e
avassalador alvio. Eu necessitava daquilo como do ar para viver. A taa caiu da minha mo, eu
ainda estava absorvida pela sensao de paz quando me virei para checar a bandeja. Ela j
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estava l, virada para mim, refletindo minha imagem contornada por aquele cu cinzento. Meu
vestido se transformou em vermelho prpura, eu estava altiva e me sentindo completa de
novo. Logo a bandeja caiu, fiquei imvel para apreciar o espetculo da transformao como se
j estivesse habituada com tudo aquilo. O homem tremeu e ento saltou para a frente me
fazendo dar um pulo desconcertado para trs. Diante de mim estava agora um leo de olhos
vermelhos. Ele deu passos lentos, rugindo na minha direo como se fosse atacar e eu fiquei
apavorada! Subitamente, ouvi um estrondoso trovo. Ele olhou para o cu relutante e raivoso
como se estivesse recebendo alguma ordem, eu estava tonta demais para fugir Foi ento que
ele partiu para a floresta como os outros animais. Sa correndo dali com medo que ele voltasse,
mas estava com muita tontura e ca. Fechei os olhos com fora e ainda escondia a cabea
entre os braos quando ouvi:
Angelina! Angelina! Acorda! Vai se atrasar, hein menina!
Abri os olhos e contemplei Michele me acordando. Sentei rpido e olhei tudo em volta,
meu corao ainda estava disparado. Os sonhos estavam sendo demasiados repetitivos e
ntidos. O que significava tudo aquilo?
Michele informou que j estava de sada e que s tinha me acordado porque sabia que
eu tinha avaliao. Levantei, me arrumei ainda tonta e sa para fazer as provas. Fiz todas com
absoluta segurana das respostas. Esse era um assunto resolvido. Porm, a cada dia eu ficava
mais triste. Sabia que nosso tempo juntos estava acabando, esse era o meu dia cinzento, eu
achava.
Enfim chegou o dia da viagem dele. Fora apenas um semestre, mas parecia que as
coisas mais importantes da minha vida aconteceram nele. No tinha ideia de como iria
sobreviver sem o Rico naquelas melanclicas frias.
Acordamos na casa dele e as malas j estavam prontas. No consegui pregar o olho a
noite toda. Fiquei contemplando seu rosto, com algumas lgrimas caindo de vez em quando e
meu corao nunca estivera to apertado. Eu no sabia que amar poderia doer tanto. Ele era o
meu deitar e a minha razo para acordar todos os dias. Pouco depois ele acordou e se virou
para mim, a luz da janela batia em seu rosto fazendo-o parecer celestial. Mas, diferente dos
dias normais, ele no sorriu. Talvez a dor estivesse no peito dele tambm. Ele me abraou e
ficou assim por alguns minutos. Essa atitude dele fez meu corao apertar ainda mais, estava
realmente parecendo uma despedida. Nos arrumamos e tomamos caf, a maior parte do
tempo em silncio. O fiz prometer vrias vezes que me ligaria todos os dias e que noite nos
falaramos no MSN. O interfone tocou e era o txi que solicitamos para ir ao aeroporto. Ele
insistiu para que eu voltasse direto para a repblica alegando que, quanto mais se
prolongasse a despedida, pior seria para ns dois. Mas nenhum segundo sem ele era vlido e
depois de eu muito bater o p, ele me levou.
Fomos silenciosos e abraados por todo o caminho. Quando chegamos no aeroporto,
ele foi direto para o check in e para a sala de espera. Quando anunciaram o vo dele, tive que
me controlar para no ser ridcula e sair gritando, implorando para que ele no fosse. Ao invs
disso, beijei-o entristecida e nos abraamos apertado. Sem mais nenhuma palavra, ele se foi.
Antes de sumir de vista ele se virou para me olhar mais uma vez. Depois, fazendo um
movimento mudo com os lbios, ele disse: Eu te amo! Meu corao quase parou.
Retornei para a repblica para arrumar minhas coisas pois meu pai viria me buscar
no fim da tarde. Chorei o caminho todo. Como podia j estar com tanta saudade?
s cinco horas da tarde em ponto meu pai chegou, eu j estava pronta. A felicidade dele
de me levar para casa por um ms no condizia com o meu estado de esprito, mas disfarcei o
melhor que pude. Quando chegamos em casa havia uma festa surpresa minha espera, mas
tudo que eu no desejava era aquele retorno triunfal. Minha me reuniu toda a famlia e
amigos e serviu um belo banquete. Achei pssimo porque alm de ter que disfarar minha
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tristeza para meus pais, tinha que fazer sala para aquela gente toda. Fiquei alienada a maior
parte do tempo. Quando tudo acabou, ajudei minha me a arrumar as coisas e subi para o
meu quarto. Ao entrar ali, parecia um lugar estranho. No sentia mais aquele como o meu
lugar porque ali Rico no existia. Imaginei como seria duro dormir longe dos seus braos, do
seu cheiro, do seu corao...
Larguei a bolsa no cho e decidi arrumar as roupas depois, era tarde e eu estava
exausta. A nica coisa que me importava era deixar meu celular ao lado da cama, pois havia
pedido ao Rico que ligasse assim que chegasse. Quando deitei pouco depois minha me
entrou no quarto.
Tudo bem, querida?
Por que no consigo esconder nada dela?
Sim me, s estou cansada.
Voc me pareceu meio... ausente hoje. Acho que no foi uma boa ideia essa festa,
no ?
No, me! Foi timo rever todos. s cansao mesmo, fiquei estudando at tarde
vrios dias, s isso.
Boa noite ento, amanh conversamos melhor ela me deu um beijo na testa e
saiu. Eu sabia que ela no estava convencida e que a conversa no acabaria ali.
Acordei vrias vezes noite para checar o celular, mas no havia recados. Quando
acordei de manh, chequei de novo, nada. Achei que ele estava confuso com o horrio da
Alemanha e levantei para tomar um banho e arrumar as coisas. Quando acabei, desci para
tomar caf, Vitor veio correndo e deu um pulo no meu colo. Ele estava muito mais esperto e
falante. Resolvi que depois do caf iria lev-lo na praa.
A praa estava cheia de crianas, perfeita para um dia ensolarado. Fiquei ali olhando
meu irmozinho com os amigos e conferindo o celular a cada cinco minutos. Pensei se Rico
estaria com a mesma saudade que eu estava dele. Eu estava gostando de rever minha famlia,
s queria que ele tambm estivesse ali. Decidi que, quando ele voltasse, conversaramos sobre
ele conhecer meus pais. Afinal, o que meu pai poderia fazer? Eu j era maior de idade, no
mximo ele iria ficar de cara feia no incio, mas depois que conhecesse o Rico, com certeza
eles iriam se dar bem.
Voltamos para casa e chegou a hora do almoo, fui para a cozinha ajudar minha me a
distrair a cabea com alguma coisa, seno iria pirar. Quando comecei a descascar umas
batatas, minha me comeou o esperado interrogatrio:
Como foi sua experincia de morar sozinha, filha?
Senti falta da sua comida falei rindo para tentar distra-la.
Fez muitos amigos? continuou ela.
No muitos. O pessoal l meio esquisito, cabelos azuis...
E a Michele?
uma das mais esquisitas, mas comeamos a nos dar bem de um tempo par c.
Ela vai vir ver a famlia dela?
Sim vem, acho que j deve ter chegado.
Ela podia ter apanhado carona com seu pai e voc.
Acho que no, ela no queria vir ontem e eu no queria que ela falasse demais no
carro, pensei.
Convide-a para vir aqui um dia desses, quero agradec-la pela vaga que lhe
arrumou.
Est bem, vou falar com ela. J acabei me, vou subir para ver meus e-mails e
depois deso para almoar.
Subi as escadas, tranquei meu quarto e liguei o computador. Com certeza ele devia ter
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mandado alguma mensagem. Decepcionada, verifiquei que no havia nenhum e-mail para
mim. Tambm, estive to ocupada que no dava mais tanta ateno aos meus amigos e acabei
afastando alguns. Mas minha maior frustrao foi pela falta do e-mail dele. Eu no tinha
nenhum nmero de telefone para ligar. No peguei pois no saberia o que dizer ao meu pai
se ele visse uma ligao minha para a Alemanha. Alm do que, ele garantiu que iria me ligar
todos os dias.
O dia correu se arrastando e eu estava cada vez mais aflita. Chequei todos os sites
jornalsticos possveis para ver se algum avio havia cado na noite anterior, mas graas a
Deus, no. s nove horas da noite eu estava beira da loucura e sem ningum para conversar.
Foi ento que resolvi mandar, eu mesma, um e-mail zangado para ele falando de como estava
saudosa e preocupada, e pedi que me ligasse imediatamente.
Dez horas. Onze horas. Meia noite. Nada. Eu j no sabia mais o que pensar, resolvi
acreditar que ele se empolgou ao ver a famlia e passou o dia inteiro com eles. Afinal, ele no
os via a tempos, mas no dia seguinte com certeza iria me ligar. Passei a noite toda no MSN, ca
no sono umas cinco horas da manh. Acordei com o celular tocando e dei um esperanoso
pulo da cama. Era Michele. Minha vontade de atender era zero, mas pelo menos era algum
que conhecia o Rico e eu podia falar sobre ele. Ento, atendi.
Oi gata, chegou bem? perguntou ela.
Sim claro, e voc? perguntei, sem o menor interesse.
Bem, vamos ver se nos vemos por aqui.
Minha me quer convid-la para almoar esses dias.
Ok, mas estou falando de balada gata, voc precisa aproveitar agora que est
solteirinha de novo brincou ela.
Solteirinha? Eu?
Vamos ver, me liga no final de semana, t? respondi rudemente.
Desliguei, irritada pelo fato das pessoas serem to fteis e achar que s porque eu no
estava ao lado dele naquele momento, no tnhamos um compromisso. Mas o pior estava por
vir: passaram-se horas, um dia, uma semana, duas semanas e nenhuma notcia dele.
Tudo era branco... e preto. No conseguia ver as cores, nem sentir os cheiros. A dor
era diria e... fsica. No conseguia comer, no conseguia dormir, e mesmo assim queria ficar
o dia inteiro na cama. Os poucos momentos em que dormia conseguia fugir da realidade. s
vezes sonhava com ele, o que me dava um alvio temporrio e uma enorme e lenta facada no
peito quando eu acordava. Se fosse mais egosta, desejaria morrer para acabar com aquela
dor, mas pelos meus pais no pedia isso. Eles j estavam preocupados e confusos com o meu
estado. No pedia nada, s ia... sobrevivendo.
Meus olhos estavam constantemente cheio de lgrimas, minhas olheiras eram minhas
mais fieis companheiras. Eu s queria que algum, ou algo, fizesse aquilo parar. Eu estava
habituada a ter todos os meus desejos atendidos e esse simplesmente no era. Meu pai
sempre fora do estilo compensador, se eu fizesse a minha parte, ele me dava o que eu queria,
e no era difcil agrad-lo. Comecei a refletir sobre como era o meu relacionamento com Deus
antes de eu ir estudar no Rio de janeiro e conclu que tambm era assim. Ele sempre me dava
o que eu pedia, mas eu sabia que eu no estava agradando-O no momento. Minha tristeza
ficou notria para os meus pais, e as inmeras vezes que eles tentaram conversar comigo
foram inteis. Eles me levavam igreja, mas eu no prestava ateno em nada. Eu estava
doente, doente de amor. Michele me ligou vrias vezes, mas eu no a atendia. Certo dia, minha
me a atendeu no telefone e convido-a para ir l em casa sem me consultar para ver se eu me
animava. Era sbado noite. Eu estava em frente ao computador vendo fotos da Alemanha e
digitando idiotamente o nome dele no Google. Em um dos links apareceu o site nomes e
significados. Entrei, s por curiosidade. Tudo que era relacionado a ele me interessava, at as
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coisas mais simplrias. Afinal, aquele nome regera minha vida pelos ltimos seis meses. Tive
um choque quando o significado apareceu: chefe dos principados! Achei aquilo horrvel, eu
havia aprendido sobre principados e potestades na igreja quando criana e achei que no
tinha nada a ver com Rico. Por mais que estivssemos, provisoriamente (eu esperava)
separados, sabia que ele no era uma pessoa do mal. Resolvi entrar num dicionrio online e
procurar outro significado para principado, eis o que achei: territrio cujo governo pertence
a um prncipe ou a uma princesa. Este sim parecia com ele. Foi quando Michele entrou no
meu quarto sem ser convidada.
Nossa gata! Voc t horrvel!
Tudo bom com voc tambm, Michele? respondi ofendida.
O que aconteceu? No atende mais minhas ligaes... daqui a uma semana as aulas
voltam, no bom me esnobar tanto assim agora brincou ela, tentando me animar.
S estou cansada.
Nada disso! Hoje eu vim com uma misso e voc no me escapa falou ela,
abrindo meu armrio com a maior intimidade e escolhendo uma roupa.
No vou sair, Michele! reafirmei, irritada.
No vamos a nenhuma festa, vamos a um... barzinho sei l, conversar, ver gente,
tem muitos gatinhos aqui perto. Voc sabia que s vezes at vejo alguns garotos da igreja l,
danadinhos!
Eu no estou solteira! gritei, beira de um ataque de nervos.
Michele arregalou os olhos pela minha reao, mas no se abateu.
Conversamos sobre isso l tambm disse ela, com a roupa j na mo.
Nem reparei no que ela escolheu, mas vesti. Talvez fosse bom para mim desabafar
com algum. S teria que ir a um bar menos badalado para no pagar muito mico caso eu
desabasse no choro.
Meus pais ficaram felizes ao me ver saindo com ela. Ah, se eles soubessem quem ela
realmente era...
Fomos andando pela rua e ela comeou a falar enquanto acendia um cigarro.
E ento, o que est te abalando tanto, amiga?
Bem... voc j sabe de mim e do Rico, no ?
A faculdade inteira sabe, gata respondeu ela com um sorriso irnico.
Pois , desde que vim pra c ainda no nos falamos, estou confusa. Ele prometeu
que iria ligar, mas no ligou. No mandou e-mail, nada. No posso ter me enganado tanto
assim sobre ele... Passamos tanta coisa juntos, eu sei que ele tambm gosta de mim.
Pode at ser que sim Angelina, mas voc sabia que isso estava fadado a dar errado,
no ?
Que cabea preconceituosa! pensei, e logo ela que era to moderninha. Segui em frente
e contestei:
No acho que a nossa diferena de idade seja um problema, isso muito comum
hoje em dia. Tambm no acho que o fato dele ser professor importa tanto, sou maior de idade
e estamos na faculdade e no no colegial.
No estou falando disso, estou falando do resto... Voc sabia no que estava se
metendo acusou ela, ironicamente.
Resto? Que resto?
Do que voc est falando, Michele? Me d um bom motivo para isso no dar certo?
A noiva dele, por exemplo! Achei que voc era mais... religiosa quanto a isso.
Noiva? Como ele pode ser noivo se passou os ltimos meses grudado comigo todos os
dias?
Com essa bomba na minha cabea me virei e agarrei Michele pelos braos, virando-a
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para mim para ter certeza de ter ouvido direito.
O que voc disse? O que est inventando, Michele? Pensei que fosse minha amiga...
esbravejei, abalada.
Voc j sabia, claro... pestanejou ela, comeando a desconfiar que no. Todo
mundo sabe que ele tem uma noiva que vive viajando.
As lgrimas comearam a escorrer pelo meu rosto e me abaixei sem foras para
respirar. Tudo comeou a girar e a ficar preto, achei que fosse desmaiar. Michele me segurou
e pediu ajuda a um rapaz que passava para me colocar no banco mais prximo.
Acho melhor lev-la para casa, voc est branca, vou chamar um txi!
No! supliquei. Fique aqui.
Abracei-a desesperada e ela retribuiu, no comeo meio sem jeito, mas depois
realmente me confortando.
Desculpe disse ela, enquanto eu soluava cada vez mais , eu jurava que voc
sabia de tudo, achei que era por isso que vocs se escondiam e ningum tocava no assunto.
Como eu podia saber se no fiz amizade com ningum? Falava muito superficialmente
com algumas pessoas, o meu mundo s girava em torno dele, refleti.
Rico tinha sido como um cometa, que atravessou a minha existncia monopolizando
toda a minha ateno.
Voc no tem culpa, eu que sou uma idiota! esbravejei, chorando.
Depois de alguns minutos soluando sem parar, vrios flashes comearam a passar
pela minha cabea: os telefonemas atendidos na varanda; o porta retrato digital que havia
sumido da sala; seu aniversrio viajando... e no havia motivo melhor para ele no ter me
ligado ainda. Tudo se encaixava.
Aos poucos fui me recuperando. Michele ficou ali, quietinha, enquanto eu estava
deitada no colo dela. No sabia que ela podia ser to legal.
Enxuguei o rosto com a mo, me virei para ela preparada para tudo e implorei:
Por favor, me conte tudo que voc sabe.
Ela me olhou fixamente por alguns instantes e depois comeou:
Bem, no muito. S sei que ele tem uma noiva desde a poca de faculdade.
Ningum nunca a viu, a no ser os amigos mais prximos dele. Ela do tipo que no fica no
p sabe, mas ele tambm nunca tinha sado da linha assim explicitamente como fez com voc.
Se fazia alguma coisa errada, era bem discreto. Com voc foi diferente, ele no fez muita
questo de esconder. E olha que no faltou uma fila de alunas querendo o seu lugar. Desiree
uma delas.
Por isso ela me olhava to feio quando eu estava com ele... constatei.
Eles ficaram uma vez, numa chopada, logo quando ele virou professor. Ele no foi
atrs dela, foi o contrrio. Ela vivia se oferecendo para ele e ento um dia eles ficaram. Foram
s uns beijinhos, mas se dependesse dela teria sido mais. Ele estava se divertindo com os
amigos, no quis levar isso adiante e deixou ela ir embora da chopada sozinha. Depois disso,
ela ainda o perseguiu algumas vezes, mas ele nunca retribuiu. Dizia que no podia continuar
com aquilo por causa da noiva. Ela sabia do noivado dele e no se importava de ser a outra,
mesmo assim ele no a quis. Ela uma menina muito cobiada e no costuma ser rejeitada,
ento passou a odi-lo, e de quebra odiou voc tambm por ter conseguido o que ela sempre
quis.
Aquilo fora demais para mim. Queria sair correndo e fugir. Agradeci a companhia e o
apoio de Michele, mas disse que queria voltar para casa sozinha com todas aquelas
informaes para organizar meus pensamentos.
No comente nada disso com meus pais, est bem? pedi a ela.
No se preocupe, se precisar conversar me liga ento me abraou e nos
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separamos.
Comecei a caminhar torcendo para que tudo aquilo fosse um pesadelo, do qual eu
acordaria a qualquer momento. Preferia mil vezes ter uma fera daquelas me devorando do
que sentir aquele sentimento, que me despedaava por dentro. Caminhei lentamente
pensando em tudo que ouvi. No tinha pressa de chegar em casa e ter que fazer cara de
afortunada. Comecei a lembrar de tudo que passamos juntos: nossos piqueniques; nossos
cineminhas, nossos momentos de intimidade... Eu tinha me entregado completamente a ele,
como ele podia fazer aquilo comigo?
De repente parei para chorar mais um pouco, procurei um lugar para me sentar e me
dei conta de que estava exatamente em frente ao templo da nossa igreja. Parei ali, olhando
para o templo e pensando na minha situao. Caminhei lentamente at o primeiro degrau da
escada e, ao invs de sentar ca ali de joelhos, aos prantos, sem me importar com quem
estivesse passando. Comecei a pedir perdo a Deus pelo que tinha feito, pelas minhas
mentiras aos meus pais, por ter esquecido de Deus e do Seus ensinamentos, por no ler mais
a Bblia, por no saber mais quem eu era, por ter me entregado ao Rico antes do casamento, e
inacreditavelmente , por ainda am-lo tanto apesar de tudo indicar que era to errado.
Fiquei ali, orando e implorando a Deus que fizesse aquela dor parar, que o trouxesse
de volta para mim e consertasse as coisas entre ns. Depois de um longo e sofrido perodo,
resolvi voltar para casa.
Felizmente j era tarde e meus pais estavam dormindo. Peguei um remdio para
insnia na cozinha, tomei e subi. Eu queria dormir o mais rpido possvel e esquecer tudo.
CAPTULO VI
REVELAO
Abri os olhos sentindo gotas de chuva no meu rosto e quando dei por mim estava no cenrio
dos meus sonhos. Levantei da grama e vi que meu vestido vermelho estava todo molhado,
assim como meu cabelo e todo o resto. Uma forte dor no corao me acompanhava. Comecei
a caminhar com a esperana de encontrar o fruto da felicidade que sempre me aguardava,
no me importava se precisasse enfrentar um leo para consegui-lo; eu o necessitava mais do
que nunca para preencher aquele enorme vazio. Segui por um bom tempo andando sozinha e
a chuva apertou. Eu me sentia perdida e sem rumo, no havia nada nem ningum para me
guiar. Finalmente, de longe contemplei a escada. Dirigi-me a ela andando mais rpido e
conforme me aproximava vi que quatro homens estavam de p esquerda dela, com suas
bandejas como das outras vezes. Desci lentamente os trs primeiros degraus, jogando o corpo
meio sem vida. Parei em frente ao quarto homem e contemplei, furiosa, a bandeja vazia.
Meus olhos se encheram de dio ao me virar para ele. Com um semblante irritantemente
tranquilo ele sorriu levemente para mim e olhou para a floresta, assim como os outros trs
abaixo dele. Apreensiva, virei o rosto na mesma direo para ver se era alguns dos animais
voltando para me devorar. Foi ento que meu mundo parou. Pude contemplar distncia a
torturante viso de Alderico, saindo da floresta e caminhando na minha direo, segurando
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uma inexplicvel fita preta. Ele se aproximava andando lentamente e a chuva molhava seu
cabelo. Ele estava todo vestido de preto e seus olhos brilhavam ao olhar para mim. S de v-lo,
imediatamente a felicidade me consumiu, eu no precisava de mais nada, sua presena era
tudo que eu desejava, no havia nenhum fruto no mundo que pudesse substituir aquilo.
Quis correr em sua direo, mas meus ps estavam presos no cho. Ele sorriu e olhou,
balanando negativamente a cabea quando fiz isso. Comeou a subir os degraus lentamente
e, enfim, parou na minha frente. Eu queria pular sobre ele, abra-lo, beij-lo... Havia esperado
tanto tempo! Mas no conseguia me mexer, era como se estivesse congelada. Eu sabia, pelo
seu olhar, que era ele quem estava me detendo. Se me libertasse, eu poderia alcan-lo, mas
agora no podia. Ele se aproximou de mim, pegou meus punhos com suavidade, levou-os
boca e, carinhosamente, os beijou. Depois, passou a fita ao redor deles e fez um lao. No era
novidade que eu era sua prisioneira. Ficamos nos admirando mutuamente durante alguns
silenciosos minutos, meus olhos revelavam tudo o que eu queria dele. Eu podia sentir o ar
entrando em meus pulmes novamente, jurei para mim mesma que nunca mais iria deix-lo,
no importava o que houvesse. Foi ento que um enorme barulho estrondou atrs de mim e
me virei para trs, assustada. Ao olhar, pude contemplar um enorme drago que soltava um
intenso fogo pela boca apesar da chuva forte. Voltei-me para Rico, mas ele no estava mais l.
Tentei desatar minhas mos e no conseguia. Ento, corri. Corri o mximo que pude sem
olhar para trs, mas a lembrana de Rico me deteve, ele ainda poderia estar l correndo risco.
Ento, parei e me virei. O grande drago olhou para mim e soltou seu fogo ensurdecedor na
minha direo com toda fora. Imediatamente me abaixei e protegi o rosto, imaginando que
seria meu fim. Pude sentir um claro intenso minha volta, mas no sentia nada me queimar.
O fogo persistia, sem me afetar. Levantei a cabea, intrigada por aquela inofensiva luz e vi que
entre mim e a luz que saa da boca do drago havia o contorno de um homem sentado num
cavalo. Ele tinha um grande arco nas mos e uma coroa em sua cabea. Disparava flechas
certeiras na direo do drago, que imediatamente comeou a fugir. Foi ento que percebi
que a luz no vinha da boca do drago. Na verdade, emanava do arqueiro. Queria ver a face
dele, mas no conseguia pois sua luz inibia minha viso. Depois que o drago se foi, abriu-se
um grande claro no cu e as nuvens se separaram. Ofuscada pela forte claridade eu, de
repente, acordei com minha me abrindo a janela do quarto e me chamando para irmos
igreja.
Esse sonho foi, sem dvida, o mais intrigante de todos. Sempre achei que sonhar era
bom, principalmente naquelas ltimas semanas pois era uma forma de fugir da minha triste
realidade. Mas s vezes eles tambm poderiam ser perturbadores e ruins. Quando voc sonha,
na maioria das vezes no sabe que est sonhando e ento faz as coisas meio sem pensar.
Decidi que a partir daquele momento estaria mais atenta caso aparecesse de novo naquele
lugar, no cederia a nenhuma presso ou desejo sem antes raciocinar bem. Parecia que
quele mundo parte realmente existia para mim. No me deixaria mais ser controlada e no
tocaria em nada sem analisar antes, no queria mais animais terrveis vindo atrs de mim.
Queria saber quem se interporia por mim daquela maneira... e recordei que, at no sonho,
Rico me abandonara. Uma pontada aguda atingiu meu corao quando lembrei dessa parte do
sonho. Ele estava to real, e to... lindo. Eu no precisava refletir muito para saber o que
significava aquele lao. Eu estava completamente presa a ele, ele controlava o meu mundo, e
mesmo assim me abandonou. Mas algum no me abandonou. Comecei a pensar no
cavalheiro luminoso. Quem seria este, que estava a meu favor? Mesmo sem eu pedir nada, ele
estava l, de graa. Queria compartilhar esses sonhos com algum,mas no sabia com quem.
Essa pessoa teria que saber da existncia do Rico e s a Michele sabendo j era gente demais
naquela pequena cidade. Se contasse a Michele, ela provavelmente iria rir, o que no me
ajudaria muito. Lembrei de como ela fora gentil comigo na noite anterior e resolvi ligar para
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ela para, quem sabe, nos encontrarmos na igreja. No sabia se a famlia dela ainda ia l, mas
seria bom ter algum para conversar francamente aps o culto, algum que fizesse parte do
meu segundo mundo. Liguei para ela e, surpreendentemente, j estava acordada. Convidei-a e,
depois de relutar um pouco, ela aceitou.
Nos encontramos na porta da igreja e eu j havia guardado lugar para ela comigo, l no
fundo. Ela chegou com uma roupa simples e recatada, que no combinava com seu aspecto no
dia-a-dia, mas mesmo assim, bem melhor. Antes que eu dissesse alguma coisa, ela debochou:
minha roupa de igreja, pea nica, no fala nada! sorriu e entramos.
Fiquei observando as pessoas minha volta, entrando, sorrindo, brincando e se
cumprimentando. Existia felicidade por toda parte, menos em mim. Como podia haver
felicidade num mundo onde Rico no habitava? Para mim, era com se ele fosse o centro da
terra.
Os louvores comearam e nos levantamos. Em poucos minutos tomei um susto:
Michele estava se debulhando em lgrimas ao meu lado. Querendo dar-lhe apoio da mesma
forma que ela fizera comigo, passei o brao em volta dos seus ombros. Os soluos do seu
choro aguavam a minha prpria dor. Nos abraamos e choramos juntas por muito tempo.
Mesmo eu no sabendo a razo dela, dor dor.
Quando os louvores acabaram, nos sentamos e nos entregaram alguns lenos de papel,
havia me esquecido como o pessoal dali era gentil. A palavra comeou e senti muita falta da
Natasha ao ver o pai dela no plpito. Em certo momento, a palavra prendeu minha ateno
completamente, era como se estivesse falando particularmente comigo.
...muitos de vocs aqui hoje podem estar com o corao partido, cheio de dio, rancor e
decepo. Desiludidos com o que as pessoas lhes fizeram ou disseram. Esto se sentindo trados,
desanimados e at mesmo sem vontade de viver. Quero lhes revelar uma coisa: esse tipo de
desgosto s acontece quando estamos olhando o alvo errado. Se as pessoas continuam te ferindo
e te decepcionando, eu lhes pergunto:onde est o seu foco? Pois eu lhes digo: nas pessoas e no
em Jesus! Pessoas sempre vo nos decepcionar, podem contar com isso. Se voc acredita que
algum to perfeito que est imune, voc est em idolatria! Isso mesmo: idolatria no s
adorar imagens. Pode ser idolatria pelo seu trabalho, por um hobbie, por uma pessoa. Enfim,
tudo aquilo que voc coloca acima de Deus na sua vida, tudo que consome todo o seu ser de um
jeito nocivo e txico. Quando voc no tem tempo nem disposio para nada alm daquilo,
abandona seus sonhos, seus afazeres, seus amigos, sua famlia... Voc deposita tantas
expectativas e energias em seu dolo que, quando ele te decepciona, voc se arrebenta por
dentro...
Aquelas palavras tocaram fundo o meu corao, eu sabia agora que esse era o meu
maior pecado: a idolatria. Eu fiquei to focada s no pecado da carne que no imaginava que o
maior deles se alojava no meu corao.
Ele continuou:
Em Marcos 12:10 est escrito:
Amars, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu corao, e de toda a tua alma, e de todo o
teu entendimento, e de todas as tuas foras; este o primeiro mandamento.
Voc j se entregou assim a algum ser humano? Se o fez, cometeu um grande erro. Seres
humanos so limitados. Deus no quer o resto do seu ser, Ele no divide a Sua glria, Ele quer
toda a sua vida consagrada a Ele. Quando voc entreg-la confiando plenamente nEle, Ele te
mostrar o caminho que deve seguir. A maioria de ns s aprende caindo e Deus no tem prazer
no nosso sofrimento. Mas nessa hora, quando as pessoas com quem voc mais contava te
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decepcionam e so completamente indiferentes sua dor, esse o grande momento onde voc
tem a oportunidade de comear a aprender o grande segredo: o verdadeiro amor de Cristo no
te desaponta. No tentem ser felizes na sua prpria fora, entreguem seus medos e suas
angustias no colo do pai. Ele aquele que no te abandona mesmo quando todos fazem isso. Ele
vitorioso e com ele vem a nossa vitria. Vamos terminar com um versculo que retrata bem a
imagem desse nosso amado amigo e salvador, em Apocalipse 6:2:
E olhei, e eis um cavalo branco; e o que estava assentado sobre ele tinha um arco; e foi-
lhe dada uma coroa, e saiu vitorioso para vencer...
Assim aquele em quem ns confiamos: valente e vitorioso. No se esqueam, s vezes o
que parece o fim pode ser a chance de um recomeo, e recomear sempre uma coisa boa!
Senti meu corao bater forte ao ouvir aquilo. Eu queria recomear, mas no tinha
foras. Queria acreditar que aquelas palavras eram para mim, mas tinha tanta gente ali que as
merecia mais do que eu... Seria pretenso minha creditar que Deus estaria falando comigo.
Mas aquela parbola do cavaleiro com um arco...
As lgrimas voltaram a rolar incontrolavelmente dos meus olhos. Era Ele: Jesus, o meu
cavaleiro protetor. Mas como podia ser? Eu estava to errada diante das doutrinas que
aprendi, to... afastada de tudo que se referia a Ele. Como Ele podia me amar apesar de tudo
que eu estava fazendo? Tudo aquilo me deixou profundamente culpada e constrangida.
Levantei para ir embora, decidida a buscar conhecer mais esse Jesus que nunca antes me
fora apresentado daquela forma.
Quando samos da igreja, Michele estava silenciosa e pela primeira vez no estava
rindo ou zoando algum na rua. Caminhamos at um banco enquanto meus pais se
despediam das pessoas.
Seus pais no vm mais aqui, Michele?
No respondeu ela, olhando para baixo.
No queria invadir a privacidade dela, mas queria ajud-la de alguma forma pois era
ntido que ela tambm estava sofrendo. Segurei na mo dela e falei:
Voc pode se abrir comigo Michele, te devo uma. Voc foi muito bacana comigo
ontem noite e tambm por ter mantido tudo em segredo at agora.
Ela me olhou por alguns segundos decidindo. Ento, desabou:
So meus pais, esto se separando. Eles nunca tiveram um casamento perfeito mas
agora foi a gota dgua, minha me descobriu que ele tem uma amante. O pior que eu j
sabia, tinha surpreendido meu pai com essa mulher no escritrio dele uma vez. Mas eu e meu
pai sempre fomos muito unidos e decidi me calar. Alm do mais, no queria ver minha me
sofrer mais do que j sofria com as brigas. A partir de ento sempre senti que a estava traindo,
evitava olhar nos olhos dela e me afastei sem perceber. Quando cheguei em casa depois que
nos despedimos ontem, a encontrei sentada no sof aos prantos, dizendo que meu pai tinha
ido embora. Acho que ele esperou eu chegar para ela no ficar s. Hoje de manh ela foi para
a casa da irm dela no Rio, para refrescar a cabea. Estou sozinha em casa e cada vez que
olho para aquelas paredes, eu choro. Lembro de todos ns l, juntos e... ela no conseguiu
continuar e tornou a chorar. Abracei-a como ela tinha feito comigo. Estvamos mais unidas,
podia compreender alguns comportamentos dela agora. Medo de namorar uma pessoa s,
nunca querer voltar para casa, falta de compromisso com as coisas... Era to triste... Porque
ela era uma menina to linda e, como eu podia ver pela primeira vez, to sensvel.
Na ltima semana que estava em casa procurei no parecer to deprimida, apesar de
ainda chorar todas as noites. Tentei dar mais ateno minha famlia. Samos para comer
fora, fui trabalhar com meu pai um dia para ocupar a cabea, brinquei muito com Vitor, fiz
um minicurso de culinria com minha me para aprender algumas receitinhas bsicas. Ainda
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checava meus e-mails no mnimo trs vezes por dia. O que realmente mudou que comprei
uma Bblia nova e a lia todas as noites antes de dormir. Certa noite, Michele apareceu l em
casa enquanto eu lia, ela se interessou em ouvir. Nos ltimos dias, ela sempre vinha ler
comigo e prometemos continuar com esse hbito quando voltssemos ao Campus.
Enfim, chegou o dia de voltar, Michele iria de carona conosco. Eu era um misto de
ansiedade e medo. Ser que ele estaria l? O que faria se o visse?
A viagem foi rpida e cheia de risadas da Michele e meu pai contando piadas. Quando
chegamos repblica meu pai nem desceu do carro. Estava to mudado...
Ele me abraou e me liberou. Olhei para aquele cenrio e senti um n na garganta.
Michele passou o brao pelos meus ombros e recitou um versculo que ela adorou em uma de
nossas leituras, fica em Ageu 2:9:
A glria dessa segunda casa ser maior do que a primeira, diz o senhor dos exrcitos,
e nela trarei a paz.
Sorri para ela e respirei fundo tentando parecer confiante. Ento, comeamos a
caminhar. Entramos e havia uma baguna conhecida instalada ali. Uns dos meninos trouxera
um Playstation, acabando de vez com as nossas chances de ver televiso. Havia alunos por
todos os lados e, dessa vez, eu no era a novata.
Um medo onipresente se apossou de mim, vasculhei a sala procurando sinal dele e
nada. Subimos as escadas e no corredor houve berros estridentes das amigas da Michele, que
berrou na mesma intensidade e as abraou. Como ela conseguia ignorar to bem a prpria
dor?
Entrei no quarto e joguei as coisas na cama. Fiquei ali por um tempo, lembrando tudo
que vivi naquele local, constatando sobre como minha presena de novo ali me fazia ter
certeza de que tudo fora real, pelo menos para mim. Comecei a arrumar as minhas coisas sem
vontade nenhuma, s para me manter ocupada. No aguentava mais meu constante choro
noturno.
Ainda era cedo quando terminei e resolvi ir ver Carla e seus familiares para dar-lhes
um oi. Quando cheguei, todos estavam na sala conversando e fizeram uma grande festa ao
me ver. At seu Amino, que no conversava muito comigo, me deu um forte abrao. Carla se
apressou em passar um caf fresquinho e fomos para trs da casa, em frente ao lago, nos
sentar em duas cadeiras antigas.
Voc est muito abatida, Angelina. Aconteceu alguma coisa? Ficou doente?
Mais ou menos, doente de amor... Sabe quando voc est apaixonada e parece que
tem uma manta protegendo seu corao? Arrancaram minha manta desabafei com um
sorriso afetado.
Ela deu um sorriso irnico, depois olhou para a lagoa e falou:
Sei bem o que isso, achei at que com voc demorou muito... senti que ela
sabia do que eu estava falando. Ela continuou:
Ns mulheres somos peritas em confundir felicidade com alegria, lutamos por
momentos de felicidade pagando qualquer preo por ele e muitas vezes com as pessoas
erradas. Na verdade, o que sustenta uma vida saudvel a alegria, e esta considerada uma
uno de Deus sabia? S ele pode dar.
Depois de ouvir, calada e pensativa, perguntei:
Pois , mas s vezes nos enganamos sobre as pessoas... falei, cabisbaixa.
S nos confundimos se no pedimos direo a Deus! tomei um tapa com luva de
pelica. A Bblia nos alerta que h muito lobos em pele de cordeiro e que devemos vigiar pois
o diabo como um leo buscando a quem possa tragar. Ele tem as artimanhas dele para
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conhecer o ser humano e as suas fraquezas. Sei bem do que estou falando, no vigiei e
tambm ca numa armadilha dessas... terminou ela, me mirando por cima da xcara
enquanto tomava seu caf.
Lobo? Leo? Essa metfora de animais fez as imagens dos meus sonhos comearem a
passar como flashes na minha cabea. Cada um daqueles homens se transformando em feras
consumidas de dio por mim, cada bandeja daquela era segurada por aqueles... demnios! Era
isso que eles representavam? Inimigos da minha alma, que me prepararam vrias armadilhas
desde que eu abri a caixa de Pandora, comendo aquela maldita ma. De repente, era como se
eu tivesse sofrido uma iluminao, ainda que imperfeita. Eu no sabia como, no sabia por
que, mas as coisas estavam ficando mais claras agora. No ltimo sonho, a figura de Alderico
chefe dos principados me dominava completamente. Fiquei intrigada com toda essa
informao. Agradeci o caf, disse que precisava ajeitar algumas coisas ainda e parti para a
repblica, desorientada. Fui direto para o computador para pesquisar mais os smbolos dos
sonhos. J sabia que a figura do cavaleiro representava Jesus, e que o lobo e o leo eram
demnios. Alderico representava o chefe dos principados. Mas e o urso? O mel? O vinho? Eu
queria saber tudo. Entrei num site bblico e digitei na pesquisa as trs palavras juntas:
leopardo, urso, leo. Eis o que encontrei em Apocalipse 13:
E vi subir do mar uma besta que tinha sete cabeas e dez chifres, e sobre os seus chifres
dez diademas, e sobre as suas cabeas um nome de blasfmia. E a besta que vi era semelhante
ao leopardo, e os seus ps como os de urso, e a sua boca como a de leo; e o drago deulhe o
seu poder, e o seu trono, e grande poderio.
E vi uma das suas cabeas como ferida de morte, e a sua chaga mortal foi curada; e toda
a terra se maravilhou aps a besta. E adoraram o drago que deu besta o seu poder; e
adoraram a besta, dizendo: Quem semelhante besta? Quem poder batalhar contra ela?
E foi-lhe dada uma boca, para proferir grandes coisas e blasfmias; e deu-se-lhe poder
para agir por quarenta e dois meses. E abriu a sua boca em blasfmias contra Deus, para
blasfemar do seu nome, e do seu tabernculo, e dos que habitam no cu.
E foi-lhe permitido fazer guerra aos santos, e venc-los; e deu-se-lhe poder sobre
toda a tribo, e lngua, e nao. E adoraram-na todos os que habitam sobre a terra, esses cujos
nomes no esto escritos no livro da vida do Cordeiro que foi morto desde a fundao do mundo.
Se algum tem ouvidos, oua.
Agora tudo se encaixava, eu podia ver o que estava acontecendo: estava sendo
traioeiramente seduzida ao pecado. O inimigo da minha alma estava em guerra espiritual
contra mim usando todo tipo de armas sujas e vis, usando iscas maravilhosas que me atraam
at ele. E ento, eu o adorava atravs das minhas atitudes e o meu retorno era o sofrimento.
Fui independente de Deus em todas as minhas escolhas at ali, simplesmente ignorei tudo que
eu j havia aprendido sobre uma vida santa. Eu havia blasfemado de Deus de todas as formas
possveis desde que cheguei, no com a minha boca, mas com o meu desprezo. Eu O diminu
na minha vida. Eu precisava de algum para se interpor entre mim e esses demnios que eu
mesma atraa. E eu sabia quem era Ele. Eu precisava da Sua graa, eu sabia que essa graa
poderia agir mesmo em meio s minhas imperfeies, mas estava disposta a fazer a minha
parte. Quarenta e dois meses era o tempo do meu curso na faculdade , trs anos e meio
quase, seria o tempo da minha provao? Meu corao estava pesaroso e eu decidi que iria
lutar contra aquilo com todas as foras que me restavam. Estava disposta a fazer concesses
para agir corretamente dali em diante. Com o apoio do meu cavaleiro, eu poderia vencer.
Dormi com a Bblia no peito naquela noite.
Acordei cedo e tomei caf com Michele no quarto, j que tnhamos trazido umas
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comprinhas de Petrpolis. Conversamos um pouco sobre os alunos novos que ela vira na
noite anterior. Algo mudara em Michele, ela ainda era a mesma espalhafatosa, mas estava
mais leve, mais fcil de conversar. Era bom ter uma por amiga por ali. Afinal, como se eu
ainda fosse caloura, no tinha feito muitas amizades no campus, algo que eu pretendia mudar
naquele semestre.
Nas aulas que consegui assistir naquele primeiro dia fui mera figurante, nem sabia o
que se passava minha volta. Cada pedao daquela faculdade me lembrava ele.
Fui at a secretaria s para olhar o nome dele no quadro dos professores e ter a
certeza de que tudo fora real. Isso s fez aumentar minha dor. O nome dele ainda estava l,
mas no havia sinal da sua presena. Comecei a achar que seria melhor assim, talvez eu
conseguisse esquec-lo... Acho que no.
No final da aula eu no queria voltar para a repblica sem antes passar em um lugar
que se transformara em um dos meus locais preferidos ali. Sabia das lembranas que me
traria, mas estava disposta a enfrentar meus fantasmas, achei que faria uma catarse ou coisa
assim.
Subi as escadas e, ao cruzar a porta, vi que o lago brilhava como nunca. Nosso recanto
de piquenique em nada mudara. Fiquei ali contemplando tudo e segurando as incansveis e
insistentes lgrimas. A dor surgiu em meu peito bruscamente e aumentou a tal ponto que
decidi fugir.. Quando ia me virar para partir, ouvi:
Com fome?
Olhei de sbito e ele estava l, bem atrs de mim, com um saco de lanches na mo,
exatamente como antes. Achei que estava delirando. O campo de eletricidade adormecido
religou-se imediatamente ao meu corpo, contraindo todos os meus msculos em sinal de
autodefesa. A beleza dele contra o sol era como um soco no estmago, de modo que fiquei em
frangalhos. Minhas lembranas no lhe faziam jus. No sabia o que fazer: se pulava no
pescoo dele ou se me jogava do terrao abaixo. Queria sair correndo dali, mas o desejo por
ele tinha uma influncia paralisante e tirnica na minha mente. Cruzei os braos pelo corpo,
abraando a minha cintura, desejando que fossem uma vestimenta de chumbo contra os raios
de seduo que ele emanava sobre mim. Ele deu um passo na minha direo e eu recuei,
desconcertada. Ele entendeu, depois suspirou fundo, abaixando o olhar, e falou:
Olha, eu sei que tenho muito que me desculpar, mas se voc me deixar falar...
Como foi a sua viagem? reagi.
sobre isso que quero falar...
Sua noivinha foi? rosnei, enfurecida, desejando no ser to vulnervel.
Precisamos conversar... insistiu ele.
Pra qu? Pra voc me contar a sua nova coleo de mentiras? A essa altura eu j
prendia o choro com muita dificuldade.
Eu no queria que fosse desse jeito, com voc com essa raiva de mim.
Impossvel, ento bufei, empurrando-o de um jeito decidido para tentar sair pela
porta, mas ele me segurou pelo brao e falou:
Ok, voc quer a verdade, no ? Ento, espero que possa aguenta-la de uma vez: eu
estou casado! um buraco se abriu sob o meu cho e minha queda comeou. J era
noivo quando nos conhecemos, ela mais velha do que eu 15 anos, diplomata e est na
Alemanha. Amlia o nome dela, e est sempre viajando. Como eu no aguentei acompanh-
la sem fazer nada o tempo todo nas suas viagens pelo mundo, ela comprou aquele
apartamento para eu ter um porto seguro enquanto ela trabalha. O carro foi ela que me deu
tambm. Meus pais moram em Gramado, no Rio Grande do Sul, so pessoas simples. Minha
me sempre me culpou por deix-la s, aturando a bebedeira do meu pai, mas eu tinha que
fazer isso por mim. Conheci a Amlia logo no comeo da faculdade, numa boate, e ela logo se
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apaixonou por mim. Comeamos a nos ver mais vezes, ela me dava vrios presentes e eu fui
me aproveitando da situao. Ela me emprestava seus carros para ir faculdade e enquanto
ela viajava, eu saa s vezes com outras pessoas. Assim que me formei, logo prestei concurso
para dar aula aqui, queria me livrar dela financeiramente e viver independente. Mas a
mordomia nos acostuma mal e mesmo depois que passei, fui arrastando esse relacionamento.
E ento eu conheci voc. Voc era to diferente das outras, to pura... Nunca pensei que isso
fosse to longe. Quando voc disse que me amava naquele dia no meu apartamento, eu me
senti o homem mais sujo do universo. Foi por isso que evitei tantas vezes que algo a mais
acontecesse entre ns, no era justo com voc, eu no sou o tipo de cara que te merece. Eu
queria parar de te ver, mas estar com voc significava reconquistar algo que eu perdi desde
que fiquei com ela: ficar com algum s por vontade, sem nenhum interesse. Voc no
precisava de muito para ser feliz e fiquei encantado com a sua simplicidade. No meu
aniversrio, ela me pediu para ir v-la e eu fui, mas pensei em voc o tempo todo. Sabia que
no era digno de voc, tinha raiva de mim quando voc estava nos meus braos, mas no meu
egosmo eu te queria. Queria algo que no fosse ela que tivesse me dado. Quando vi que o
semestre ia acabar e que teria que te deixar para passar as frias na Alemanha, pensei em
desistir de tudo. Tentei forjar uma briga e pedir um tempo para poder ficar aqui com voc. Fui
me distanciando aos poucos. Mas nessa poca ela me contou que estava com cncer, e eu...
no poderia abandon-la naquele momento, no depois de tudo que ela fez por mim. Senti que
deveria dar apoio a ela, e tambm achava que voc merecia algo melhor. Casamos como ela
sempre sonhou e em poucos dias eu descobri a verdade: fui enganado por ela da mesma
forma que a enganei! Ela no estava doente, mentiu para eu no abandon-la. Estava
desesperada, sentindo que estava me perdendo. Fiquei furioso, mas acabei perdoando, j sabia
como era ruim abrir mo de algum que se gostava muito. Eu j no era o mesmo com ela,
no queria mais toc-la e vivia arrumando cursos para ficar longe de casa. Passei uma
semana na Frana pensando em fugir e vir ver voc, s pensava em voltar e te procurar. Foi
ento que, quando voltei decidido a acabar com tudo, ela me largou. Conheceu outra pessoa e
agora eles esto juntos. Na verdade, foi um alvio para mim, foi uma... carta de alforria. Decidi
voltar e ver como as coisas iam por aqui. Meu emprego estava garantido, ento resolvi ficar e
lutar por voc. No fiz contato antes porque no sabia como me receberia, achei que com o
tempo voc j teria me esquecido ou me odiaria. Quando vi voc subindo a escada que dava
aqui no resisti: comprei esse lanche e vim falar com voc. Essa a minha histria, esse sou
eu.
O ltimo tapete que estava sob os meus ps foi arrancado, pensei que eu iria vomitar
aps toda aquela estpida tentativa de confisso reconciliatria. A dor era tanta que eu no
sabia se iria suportar. Foi quando uma raiva incontrolvel me possuiu, a nica vez desde ento
que meu amor-prprio deu algum sinal de vida. Olhei bem em seus olhos e dei-lhe um tapa na
cara com toda a minha fora. Ele ficou ali, parado, olhando para o cho sem reagir. E eu,
queria dar outro tapa... mas agora em mim mesma. Como eu ainda podia am-lo? Seria eu
uma masoquista ou coisa assim? Onde estava a minha autoestima? Lgrimas de amor e dio
comearam a escorrer pela minha face e em pouco tempo no consegui mais segurar.
Coloquei as mos no rosto e desabei a chorar, soluava tanto que parecia que ia perder o
flego. Pedi a Deus foras para no sentir o que estava sentindo, mas tudo piorou quando ele
se aproximou e me abraou junto ao seu peito. Seu cheiro s fez piorar as coisas. Eu sabia
que aquela proximidade era pouco indicada no momento, mas fora muito desejada nos
ltimos dias, era uma mistura perfeita de cu e inferno. Percebi que aquele campo de batalha
estava obviamente desequilibrado. Olhei para ele com os olhos cheio de lgrimas e vi que
algumas tambm desciam pelo seu rosto. Tentei freneticamente me lembrar de todas as
razes pelas quais eu deveria repudi-lo com todo o meu ser, mas s encontrei a provvel
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ameaa de ceder. Ele encostou a sua testa na minha e eu fiquei ali, incrdula, aceitando. Sabia
que isso era s o preldio do que iria acontecer. Vai ver que era uma desculpa sincera, eu dizia
para mim mesma. Minha mente conclamava: corra! E o meu corpo bradava: entregue-se. Eu
queria surrar a minha carne por sentir tamanho desejo por ele. Por que ele tinha que ser to
absurdamente atraente? Eu me sentia sugada por ele. Fechei os olhos e meu corpo comeou a
falar sozinho de novo, eu no conseguia controlar meus movimentos. Assim como no meu
sonho, ele me dominava de modo muito preocupante. Ele aproximou nossos lbios devagar,
me olhando, e em seguida eles se uniram com urgncia e paixo. Nos abraamos com fora,
meu corpo tremia e desfalecia nos braos dele novamente. Era mais forte do que eu. Desisti de
lutar. Nada mais me importava, ele estava ali e era meu de novo. Seu toque era o remdio pelo
qual minha dor tanto clamara. Ele foi extremamente carinhoso e apaixonado, me fez sentir de
novo a mulher mais desejada do mundo. Quando estvamos juntos eu me sentia completa, ele
era a parte de mim que faltara por todo aquele tempo... Eu sabia que era errado, sabia que era
idolatria, mas no sabia viver sem ele, isso era fato. Comecei a respirar um leve sopro de...
felicidade, mas eu sabia que era s um momento de felicidade.
Mais tarde descemos e, quando passamos pelo porto, ele ainda segurava a minha
mo. Eu queria acreditar que esse era o meu recomeo, mas alguma parte dentro de mim no
me deixava crer totalmente. Talvez fosse a ferida recente, mas poderia passar, no poderia?
Ele estava definitivamente instalado no quarto junto com seus amigos at alugar um
apartamento e isso me deixava mais tranquila. Quando Michele nos viu chegar de mos dadas
na sala da repblica, fez cara de incrdula. Cheguei a pensar que me puxaria pela orelha para
o nosso quarto ou coisa parecida, mas no falou nada. Subimos para eu arrumar as coisas
que faltavam, Rico foi para o seu quarto pegar as coisas para tomar banho. Quando ele saiu,
minutos depois, Michele adentrou furiosa no quarto.
Eu no acredito no que acabei de ver! Voc est ficando doida ou perdeu a
memria?
Michele, ele me contou toda a verdade, eles romperam de vez. Voc sabe que eu o
amo e por isso resolvi perdo-lo. No lemos esses dias que o amor tudo suporta?
E o que te faz pensar que ele diz a verdade agora, cabeo, depois de tanta mentira?
Voc lembra do que o pastor falou sobre recomear ser uma coisa boa?
Acho que ele no estava falando de recomear com esse safado e sim com algum
melhor, ou at sozinha se for o caso.
Esta a sua interpretao defendi.
Tudo bem Angelina, pelo visto voc prefere continuar fazendo as coisas do seu jeito,
mas depois no diz que no avisei. Quero saber o seguinte: nosso trato continua de p?
Que trato? perguntei.
Ela revirou os olhos e sacudiu a Bblia que estava na cama dela.
Ah, isso! Claro que sim, vamos ler todos os dias. Sei que tudo deu errado antes por
que deixei Deus de lado, mas agora no vou cometer o mesmo erro.
Sei, no acho que foi por isso que tudo deu errado, mas enfim... boa sorte. Vamos
comear a ler, ento?
Vamos respondi olhando para a porta, doida para ir ficar com Rico.
Lemos durante uma hora mais ou menos e um versculo ficou na minha mente a noite
toda:
No sabeis vs que a quem vos apresentardes por servos para lhe obedecer, sois
escravos daquele a quem obedeceis, ou do pecado para a morte, ou da obedincia para a
justia? (Rm 6:16)
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Depois daquele dia Michele disse que nunca mais fumaria, nem maconha, nem
cigarro, disse que no queria ser escrava do pecado. Depois, dormimos.
CAPTULO VII
A SEGUNDA QUEDA
No falvamos no que havia acontecido, eu estava confiante de que essa era uma nova fase.
Enterrei o ltimo ms de sofrimento no desespero covarde de no perd-lo mais dali para a
frente. As semanas seguiram tranquilas e estabeleci uma rotina de prioridades. De manh,
tomava caf com Rico e depois ia para a aula. Mais tarde almovamos juntos. tarde ele ia
para o quarto dele organizar suas aulas, ele no gostava que eu fosse l por causa dos seus
colegas de quarto. Desde que voltamos, Rico desenvolveu um cime fervoroso de mim. Acho
que ele sempre foi desse jeito, mas como sempre ficamos super juntos eu no conheci mais
ningum, mas agora era um cime diferente. Eu interpretava aquilo como amor e ficava feliz
de ser assim, mesmo que s vezes me incomodasse um pouco. Quando se passava muito
tempo e eu tinha que passar o final de semana em Petrpolis, ele fazia de tudo pra eu ficar e
se eu realmente fosse, me ligava vrias vezes. De qualquer forma, quando ele estava
trabalhando eu estudava, estava perdida em muitas matrias. E a me dava conta do quanto
tinha perdido no semestre anterior. Quando ele no tinha nada para fazer eu ficava com ele, e
noite eu lia a Bblia rapidamente com Michele e depois descia para encontr-lo de novo. Ok,
ok, no mudou tanto assim...
A novidade que eu estava na autoescola, pois meu trato com meu pai era: se eu
passasse para faculdade pblica, ele me daria um carro, e morando longe de tudo iria facilitar
muito a minha vida por ali.
Certa manh eu e Rico samos para o nosso caf matinal. Aproveitei que s tinha aula
a partir do segundo tempo para tocar em um assunto importante.
Quanto tempo faz que voc no v seus pais?
Ele uniu as sobrancelhas, fazendo-se de desentendido.
Por que isso agora? questionou, confuso.
s uma pergunta retruquei.
Faz mais ou menos um ano e meio. A ltima vez que fui l meu pai no estava
muito bem, mas depois melhorou.
O que ele tinha?
Coisa de velho. O que vai pedir?
O mesmo que voc. Mas... voc no sente falta deles?
At sinto, mas estou sempre to ocupado, e moro sem eles h tanto tempo que j
me acostumei com a ausncia.
Pois eu no defendi. Sinto muita falta dos meus pais, apesar de no ter dado
muita ateno a eles nos ltimos tempos. Queria ir mais vezes l... falei olhando pra ele e
mexendo num canudinho.
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Enquanto isso, Rico olhava para o lado tomando um caf e fingindo estar alheio
conversa. Ento, reuni foras e sugeri:
Queria te apresentar a eles no prximo final de semana...
Qu! Nem pensar. Eu... tenho muito o que fazer aqui, planejar as aulas... Alm do
que, no sei se uma boa ideia pelo que voc falou do seu pai.
No incio vai ser difcil, eu sei, mas as coisas se ajustaro com o tempo. No quero
esconder isso deles a vida toda.
Vamos fazer assim: deixa passar mais esse semestre e no final do ano vamos l. A
dizemos que nos conhecemos em outro lugar para amenizar a situao.
Eu no quero mais mentiras nisso! exigi, irritada.
E eu no quero conhecer seus pais agora! Vamos deixar para o fim do semestre, a
pensamos em algo.
Ou voc foge de novo... falei sem pensar.
Ele me olhou ofendido.
Desculpe, saiu sem pensar falei.
No queria provocar uma briga. Ento mudei de assunto, pelo menos por um tempo.
Estvamos a uma semana do meu aniversrio, sete de setembro, dia da Independncia
(bastante proftico, na minha atual situao), e eu estava feliz porque iramos passar esse dia
juntos. No fizemos planos, ele disse que queria fazer o meu dia especial. Eu estava na aula de
teoria literria e no via a hora de acabar. Meus dotes culinrios haviam melhorado muito
depois do minicurso com minha me. s vezes eu tinha dvidas e frequentemente ligava para
ela para pegar umas dicas. Eu tinha aprendido a fazer um macarro cremoso na panela de
presso que o Rico adorava, e tinha prometido fazer nosso almoo naquele dia.
Quando finalmente a aula acabou, voltei correndo para a repblica. Ao chegar, fui
surpreendida por uma viso avassaladora: um enorme carro importado estacionado na frente
da repblica, com um motorista dentro e uma mulher do lado de fora, encostada de costas para
mim conversando com o Rico, que estava com as duas mos no bolso, olhando para baixo.
Meu estmago comeou a embrulhar. Ela era ruiva, alta, cabelos longos e cacheados, que
estavam muito bem arrumados. Fui caminhando lentamente para a entrada da repblica
enquanto Rico no deu por mim. Eu no sabia quem ela era, mas imaginava. Quando cheguei
a uma distncia de conseguir de ver seu rostoa, fiquei completamente deprimida: ela era
linda! Tinha olhos verdes amendoados, a pele era branca e muito bem tratada, dava para ver
que era bem sucedida pois ela usava muitas jias. Estava vestindo um tailleur branco, que
moldava um corpo perfeitamente malhado (notei pelas pernas). Quando Rico tinha me dito
que ela era 15 anos mais velha do que ele, no era exatamente aquilo que eu imaginara, no
estava preparada para competir com tamanha beleza. Ao lado dela, eu simplesmente... era
abduzida pela minha mediocridade. Era um inegvel confronto entre a adolescente desajeitada
versos a diva maravilhosa. Minha terrvel suspeita se confirmou quando o colega de quarto de
Rico a cumprimentou: Tudo bom, Amlia?
Senti uma fraqueza arrebatar cada via do meu corpo, meu sangue ferveu
imediatamente quando ela passou a mo no brao dele enquanto falava. Aquele brao era
meu! Rico olhou para cima e finalmente me notou. Pela sua expresso, vi que ele ficou
alarmado. Eu nem queria que ele me olhasse enquanto estava na frente dela para evitar
comparaes. Surtei e passei marchando para dentro da repblica, torcendo para que ele
viesse imediatamente atrs de mim. Subi as escadas correndo para espiar pela janela. Fiquei
com raiva pois onde o carro dela estava no dava para eu enxergar direito. O pnico comeou
a me dominar. Comecei a andar de um lado para o outro do meu quarto roendo as unhas. O
que eles estariam conversando? E se ele me abandonasse de novo? Por que ela precisava ser
to bonita? Quantos anos ainda faltariam para ela parecer uma velha?
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De repente, no desespero de ser deixada, me lembrei que no tinha nenhuma
lembrana dele. Alis, no tnhamos nenhuma foto juntos! E se dessa vez fosse definitivo? Ele
ainda no tinha subido. Nervosa, resolvi quebrar as regras e ir at o quarto dele pegar alguma
coisa caso ele fosse embora. Entrei devagar e vi uma camisa dele, usada, pendurada na cama e,
ao lado, uma infeliz barata. Meu desespero foi maior e peguei a camisa correndo. Sabia que
no haveria fotos ali, ento voltei para o meu quarto para no ser apanhada em flagrante
naquele furto. Ele ainda no havia subido. Escondi a camisa e tomei um copo dgua batendo
o p, impaciente. O que eu iria dizer se ele terminasse comigo? Iria deix-lo ir e manter meu
orgulho, ou me jogaria aos ps dele implorando que ficasse? Eu estava beira da loucura
quando, finalmente, ele apareceu no quarto e me encontrou sentada, no fundo da cama,
abraando os joelhos, com os olhos arregalados. Parecia uma viciada em abstinncia.
No me movi, olhando para ele ensandecida por alguns instantes para ver a sua
reao. Ele andou at mim com uma expresso compreensiva, sentou-se ao meu lado e me
abraou. Abracei-o forte e algumas lgrimas desceram pelo meu rosto.
Por que voc est assim, meu anjo? perguntou ele.
O que ela queria?
Exatamente o que voc imagina confirmou ele, calmamente.
Meu corao petrificou.
E o que voc quer? perguntei, temerosa.
Voc! Eu te amo Angelina e no vou a lugar algum.
Abri um sorriso aliviado enquanto enxugava as lgrimas com a sua injustificvel
camisa em minhas mos. Imediatamente uma paz e uma felicidade sbita me dominaram. Era
a primeira vez que ele dizia, em voz alta, que me amava. Eu estava no cu novamente. Mesmo
que eu ainda estivesse cometendo muitos pecados, s podia ser o resultado das minhas
oraes. Dormimos abraados no meu quarto naquela noite, mas eu no devolvi a camisa.
Enfim, chegou o dia do meu aniversrio. Acordei enxergando o Rico com uma cmera
me filmando e Michele junto, cantando parabns. Ganhei uma cesta de caf da manh dela e
um porta-retrato dele, que me disse que era para colocar uma foto nossa. Achei perfeito.
Tomamos caf todos juntos e depois eu e Rico comeamos a nos arrumar, iramos sair para
um passeio. Ele s exigiu:
V de tnis.
Obedeci. A melhor parte do meu aniversrio que era sempre feriado e eu podia fazer
o que quisesse naquele dia. Enquanto estvamos no carro, o celular de Rico tocou e um frio
me subiu pela espinha. Logo me acalmei quando ele cumprimentou a me. Eu estava ficando
paranoica desde que vira aquela mulher.
Mas, o que houve agora? perguntou ele com uma expresso chateada. Ele j
bem grandinho, no quis repousar, ento agora se vira! No aguento mais voc me ligando
para pedir a mesma coisa toda hora percebi que ele falava de dinheiro. Quanto? Voc s
pode estar maluca, onde acha que eu vou arrumar isso tudo? Eu sou professor, lembra?
Uma pausa. Eu no estou mais com ela, me! recebi uma leve facada.
No acredito que a me dele pedia dinheiro da ex-namorada! No acredito que ela
sequer conhecia aquela bruxa.
Se ele no tivesse gasto o dinheiro do plano de sade em bebida, no estaria assim.
Vou ver o que posso fazer, tchau Ento, ele desligou na cara dela e deu um murro no
volante. Depois me pediu desculpa pela reao.
No tem problema falei, compreensiva. O que ele tem?
Cirrose heptica. Meu pai sempre foi um beberro. Agora precisa fazer uma
cirurgia que custa uma fortuna e vem em cima de mim falou ele, ainda com raiva.
Agora eu podia entender um pouco mais a falta de vontade dele de ver os pais. De um
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pai alcolatra e de uma me que faz o filho pedir dinheiro namorada, nem eu sentiria
saudades.
Coloquei uma msica no carro para quebrar o clima e comecei a reparar no caminho.
Estvamos subindo uma ladeira h bastante tempo e eu no tinha ideia de onde ele estava me
levando. Quando enfim chegamos, arregalei os olhos. Ele desligou o carro, puxou o freio de
mo e sorriu para mim como quem tinha aprontado. Estvamos na pedra da Gvea, na rampa
de vo de asa delta.
No... No... Voc no vai fazer isso comigo! declarei, rindo de nervoso.
Eu j te iniciei em tantas coisas, essa s mais uma disse ele, dando uma
piscadinha irresistvel.
Samos do carro e fomos de mos dadas na direo de uns rapazes, que logo o
cumprimentaram com entusiasmo. Comecei a receber pequenas dicas de um amigo dele,
enquanto Rico j se enchia de parafernlias. Depois, comeou a colocar tudo em mim
tambm. Eu no acreditava no que estava acontecendo. Ele no tinha ideia do quanto eu ficava
apavorada com altura. Pensei em dizer a verdade, mas isso aniquilaria o passeio. Eu j tinha
ido vrias vezes rampa de vo livre em Petrpolis com meus amigos, mas jamais pretendi
pular. Curiosa, perguntei:
Vou voar com voc?
Sim, se morrermos, morreremos juntos disse ele, sorrindo, enquanto me
arrumava.
A ideia romntica de morrer ao seu lado, apesar de sombria, me enterneceu. Decidi
aceitar o desafio e me entregar mesma sorte que a dele.
Nos colocamos nas devidas posies e Rico j estava atrs de mim, me ensinando a
correr. A ltima asa delta saltou e ns ramos os prximos da fila. Eu estava apavorada com a
altura, apesar da vista ser espetacular. Ento, ele sussurrou em meu ouvido:
Quero que esse dia seja inesquecvel para ns dois. Corre!
Comeamos a correr e em segundos eu j estava correndo no ar de olhos fechados.
Houve uma leve queda da asa delta no ar, me causando um frio na barriga, mas em instantes
ela comeou a pairar livremente. Ele solicitou:
Abra os olhos, que presente melhor eu poderia dar a um anjo, seno voar?
Quando o atendi, ainda insegura, me senti um prprio pssaro e a sensao era
energizante. O medo, por incrvel que parea, havia evaporado diante de tanta beleza. Voamos
em direo praia e passamos por cima do mar. Avistamos alguns golfinhos no oceano. Tudo
era to... pequeno l embaixo me fez lembrar de um Salmo de Davi, que tinha lido h pouco
tempo com Michele: (Sl 8:3 a 9).
Quando vejo os teus cus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que preparaste;
Que o homem mortal para que te lembres dele? E o filho do homem, para que o visites?
Pois pouco menor o fizeste do que os anjos, e de glria e de honra o coroaste.
Fazes com que ele tenha domnio sobre as obras das tuas mos; tudo puseste debaixo de
seus ps:
Todas as ovelhas e bois, assim como os animais do campo, as aves dos cus, e os peixes do
mar, e tudo o que passa pelas veredas dos mares.
Oh Senhor, Senhor nosso, quo admirvel o teu nome sobre toda a terra!
Aproveitei cada minuto daquele momento. Para minha surpresa, Rico me mostrou
uma cmera na ponta da asa e disse: Sorria! disparando a mquina.
Aquela era a nossa foto! Aquele era o meu presente! Era o melhor aniversrio da
minha vida!
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O resto do dia foi maravilhoso. Almoamos na beira da praia e passamos a tarde
curtindo o sol e o mar. Pensei no que tinha feito para merecer aquilo tudo nos meus ltimos
19 anos. Percebi que eu j no era mais a protagonista da minha histria, ele era. Minha vida
se diluiu na dele. Era como se nada tivesse acontecido antes dele aparecer. Quando enfim
voltamos, eu estava exausta. Era uma quarta-feira, eu tinha aula dia seguinte e estava com
aquela lombeira de mar. Resolvi dormir cedo e me despedi de Rico, que foi para o quarto dele
dormir. Naquele dia, no consegui ler a Bblia, Michele leu sozinha.
Depois de 20 aulas feitas nas ltimas quatro semanas, enfim, eu me achava pronta
para fazer a prova da autoescola, que aconteceria naquela quinta-feira, s 10 horas da manh.
Rico me ajudou com alguns treinos ao redor do campus, apesar de estar constantemente
preocupado pois sua me ligara insistentemente durante as ltimas semanas cobrando uma
providncia financeira. Eu sugeri que fssemos visit-los, mas Rico garantiu que no era
uma boa ideia, pois se ele aparecesse l sem os R$ 20.000,00 que ela estava exigindo s
haveria mais estresse. Como ele disse, sua me o culpava por t-la deixado s para aturar as
bebedeiras do pai. Acho que essa culpa o afetava de alguma maneira.
Na hora da prova eu estava tranquila, no via a hora de ganhar meu carro e qualquer
erro nessa ocasio poderia adiar mais o sonho. Graas a Deus, correu tudo bem. Eu estava
segura na hora em que peguei o volante e fiz tudo direitinho: no deixei o carro morrer,
coloquei as setas na hora exata e entrei na baliza com perfeio. Passei no teste e sa pulando
e correndo para o colo do Rico, que me levou para um almoo de comemorao. Fomos num
restaurante de frutos do mar em frente praia de Barra de Guaratiba, onde h muito tempo
ele queria me levar. A vista era linda e estava um dia ensolarado. Liguei para meus pais para
dar a grande notcia de que tinha passado no teste. Minha me ficou radiante, mas meu pai
estava tentando disfarar o nervosismo. Ele no conseguia imaginar sua filhinha sozinha,
dirigindo pela serra Rio-Petrpolis, mas eu sabia que cumpriria o combinado. Eles pediram
que eu fosse naquele final de semana para comemorarmos, e ento meu pai depositaria o
dinheiro na minha conta. A princpio, ele disse que queria vir comprar o carro comigo, mas
como eu j tinha ido concessionria algumas vezes com ele, ns j sabamos o que eu iria
comprar e por quanto. Insisti que queria resolver tudo sozinha. Ele entendeu e aceitou, desde
que eu ligasse para ele durante as negociaes. Rico estava estranho durante o almoo, s
vezes meio ausente. Imaginei que era por causa de seus pais. Tentei prender sua ateno
dizendo que iria Petrpolis no final de semana, pois ele geralmente no gostava dessa
notcia. Para minha surpresa, quando o avisei ele estacou, bebendo calmamente uma batida de
coco e me olhando, pensativo. Depois, disse que tudo bem pois ele tinha umas provas para
corrigir. Isso no era nem um pouco tpico dele, mas achei bom no levantarmos uma
discusso.
Quando chegamos na repblica e avisei a Michele que eu iria a Petrpolis, ela disse
que tambm iria, de carona com um amigo do stimo perodo. Ele tambm era de l e me
ofereceu carona. Aceitei na hora. Iramos sair sbado de manh cedo e eu aproveitaria para
estudar para as provas da semana seguinte e terminar um trabalho para segunda-feira.
Comecei a arrumar minhas coisas na sexta-feira e, pela primeira vez, eu estava
empolgada por ir, mesmo sabendo que morreria de saudade do Rico. Assim, tive uma ideia que
iria mostrar a ele, na prtica, o quanto eu o amava. Claro que eu estava louca para comprar
meu carro, mas queria tirar logo aquele fardo do pai dos ombros dele. Ento, pensei em
emprestar-lhe os 20 mil reais e enrolar um pouco mais meu pai em relao compra. Depois,
o Rico compraria um carro parcelado para mim e meu pai nunca saberia do negcio. At eu
terminar a faculdade, o carro j estaria pago e no meu nome. Se eu fosse agora a Petrpolis,
foraria a barra para que meu pai depositasse logo o dinheiro. Rico entrou no meu quarto
enquanto eu arrumava a mala e no ouvi seus passos, pois estava de costas para a porta. Ele
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me abraou por trs e cheirou meu cabelo beijando minha cabea. Fechei os olhos, sorrindo,
e me virei para abra-lo. Vi na expresso do seu rosto que algo se passava em sua mente e
no sabia se devia perguntar-lhe o motivo de estar to misterioso. Tinha medo dele pedir para
eu ficar e de eu acabar cedendo.
No leve muitas roupas para eu poder vir aqui sentir seu cheiro de vez em quando
brincou ele.
Como voc vai entrar aqui sem a chave? provoquei, sorrindo.
Se bater o desespero, eu arrombo a porta! sorriu ele de volta me dando um longo
e fogoso beijo.
Minha vida estava perfeita, eu estava com o amor da minha vida e iria poder ajud-lo
quando mais precisava. Alm disso, estava me dando cada vez melhor com a Michele.
Acordei bem cedo pois combinamos de sair s sete horas. Ento, coloquei o celular
para despertar s seis horas. Michele tinha dormido no quarto de Desiree, ela sempre fazia
isso quando o Rico dormia comigo, at nisso ela era legal. Por um breve momento, torci para
Desiree convenc-la a desistir de viajar, pois sabia que tinha uma chopada no final da tarde no
campus. Mas ela estava to mudada, que no ia mais a esses eventos.
Eu estava nos braos dele, estava chovendo muito naqueles dias de outubro e naquele
no era diferente. A tentao de ficar ali abraadinha e quentinha nos braos dele era
enorme, tive que me esforar muito para comear a levantar. Quando me sentei devagar na
cama para no acord-lo, ele me puxou de supeto pra trs e nos cobriu com o edredom at a
cabea.
Estou decidindo se deixo voc ir sussurrou ele no meu ouvido.
E se eu te deixar algo pra vc se lembrar o dia todo? perguntei, maliciosa.
Ele entendeu o recado e por causa dessa brincadeirinha sedutora me atrasei para a
sada.
Michele me apresentou o amigo dela, Diego, que era muito simptico e no reclamou
do meu atraso. Entramos no carro e partimos s sete e meia. Estava muito frio naquele dia e
imaginei que na serra estaria pior. Depois de 20 minutos de viagem, paramos num posto
para tomar caf da manh, eu e Michele insistimos para rachar a gasolina com o Diego, mas
ele no aceitou. Nosso caf se prolongou um pouco, pois a conversa estava muito agradvel.
Eram oito e meia da manh quando decidimos partir. De repente, dei um pulo da cadeira e bati
com a mo na testa: tinha esquecido todo o meu material, inclusive a metade do trabalho.
Minhas notas no estavam muito boas naquele semestre e aquele trabalho poderia ajudar
muito na minha mdia. Como no tnhamos viajado muito ainda decidi voltar de txi, depois
pediria ao Rico que me deixasse na rodoviria. Eles no deixaram e insistiram em voltar
comigo. Concordei somente se rachasse a gasolina de todo o percurso com Diego. Ele cedeu,
senti que ele estava especialmente interessado na minha companhia, me aproveitei e fomos.
Chegando na repblica, ambos ficaram no carro e eu subi correndo para pegar as
coisas. Aproveitaria para dar mais um beijinho surpresa no Rico, claro. Fui at o meu quarto
e juntei tudo o que precisava. Depois de trancar minha porta fui at o quarto dele, mas a porta
estava trancada. Bati e chamei algumas vezes, mas no havia sinal de ningum l dentro.
Resolvi descer para ver se o carro dele estava l e quando pisei no ltimo degrau encontrei o
colega de quarto dele entrando na saleta. Perguntei se ele tinha visto o Rico, ele respondeu que
achava que ele tinha ido para o apartamento dele. Meu peito queimou e uma desagradvel e
velha sensao de vazio veio me visitar. H poucos dias, ele tinha dito que estava difcil achar
um apartamento. Fiquei ali parada, com cara de planta, e me sentei no sof. O menino tinha
dito acho e podia ter se enganado. Talvez Rico tivesse ido buscar algo que esqueceu no
antigo apartamento, mas j fazia tanto tempo... e justo naquele final de semana. Apesar de
tentar ser sensata, com certeza no conseguiria viajar com aquela dvida. Precisava decidir o
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que fazer e no podia deixar Michele e Diego esperando. Fui at o carro e disse que tinha
deixado uns livros com uma colega e teria que buscar na casa dela. Eles se ofereceram para ir
comigo, mas eu disse que iria atras-los muito eles e que o Rico ficara de me levar. Peguei
minhas coisas do carro e eles partiram.
Chamei um txi e fui direto para o antigo endereo dele, no acreditando que estava
vivendo de novo aquele pesadelo. Eu estava to feliz de manh cedo...
Liguei para o celular dele vrias vezes, mas ele no atendeu. O caminho parecia longo
demais e a ansiedade de saber a verdade estava me deixando maluca. Eu me disse mil vezes
que estava sendo uma idiota de fazer aquilo. Afinal, tinha sido s uma suposio do amigo dele,
ele devia ter ido perto da repblica comprar alguma coisa. Ele podia estar no banheiro! No
tinha olhado o banheiro! Comecei a me sentir levemente culpada por seguir aquela
premonio estpida. E se ele descobrisse essa loucura? Ficaria morrendo de raiva de mim.
Pensei em voltar para conferir a repblica, mas j estvamos longe demais, contornando a
lagoa, a metros do prdio. Mandei o txi esperar e passei pela portaria direto para o elevador.
O porteiro j me conhecia e no fez a menor cerimnia. Subi o elevador e a cada andar meu
estmago revirava. Pensei nas consequncias do que estava fazendo, ser que eu queria
mesmo saber a verdade?
Enfim, cheguei ao andar certo. Pensei bem, fechei os olhos e orei para estar errada. O
que eu diria quela mulher se ela estivesse l sozinha? Bem, valia o risco, mesmo sabendo
que teria que me explicar ao Rico depois. Certifiquei-me de que no ouvia a voz dele por trs
da porta, e enfim toquei a campainha. Depois de alguns segundos ouvi passos at a porta,
meu corao estava saindo pela boca. No queria me deprimir com a beleza daquela mulher
de novo. Em seguida, ela abriu a porta com uma camisola de seda que dava para ver suas
curvas perfeitas e deixando meu ego do tamanho de uma formiga. Fiquei ali parada com cara
de tacho, abri a boca e no sabia o que dizer. Ela perguntou, educadamente, como poderia me
ajudar, sorrindo com uma gentileza quase maternal. Alm de tudo, a maldita era simptica,
hrhrhrrh...
Eu estava a ponto de me desculpar dizendo que bati na porta errada quando a mesma
se abriu mais um pouco e pude v-lo atrs dela, perto da mesa. Estava sem camisa, vestindo
uma cueca samba cano. Ele olhou na minha direo e imediatamente arregalou os olhos.
De repente, perdi as foras e j estava caindo quando ela me segurou. Meu inconsciente
queria fugir da realidade e desmaiar, aquilo parecia ser o meu pior pesadelo. Em instantes me
recuperei, ainda olhando para o cho. Eu precisava sair dali. Ela insistiu para que eu entrasse
e me sentasse, mas sem dizer nada me virei e entrei no elevador, apertando o boto para
descer. Ca de costas no fundo do elevador e escorreguei at o cho, o ar me faltava. Meu corpo
todo tremia de dio e desespero, meu corao batia ensurdecedoramente. Sa correndo pela
portaria e ela j devia ter ligado para o porteiro falando do meu estado, pois ele berrou duas
vezes enquanto corria para a sada. Entrei no txi, bati a porta e desabei a chorar, me jogando
em cima da mala ao meu lado. O motorista me olhou assustado, perguntando o que havia
acontecido e se eu estava bem, mas eu no conseguia responder. A dor era tanta que eu
pensei que ia morrer... Chorava e socava a mala. Demorei uns cinco minutos interminveis
para me recuperar. De repente, ouvi algum socar vrias vezes a janela do carro ao meu lado.
Era o Rico, desesperado, nos mesmos trajes que o vira l em cima. Pedi ao motorista para ir
embora, mas no deu tempo. Rico abriu a porta e me tirou do carro fora pelos braos,
enquanto eu chorava pedindo-lhe para me largar. O motorista saiu para ver se me socorria,
mas acho que pensou ser uma simples briga de casal e ficou de prontido nos observando. O
porteiro tambm veio para a calada. Rico gritava dizendo que eu precisava ouvi-lo, e eu
gritava mais alto mandando ele me soltar. De repente, Amlia tambm estava l, com um robe
por cima da camisola, de braos cruzados e com os olhos assustados sem entender nada. Ela
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perguntou o que estava acontecendo e ele a ignorou. Inacreditavelmente, senti pena dela
tambm, estava na cara que ela no sabia de nada. Enfim, livrei meus braos e perguntei:
O que voc est fazendo aqui? ainda havia uma gota de esperana de ouvir algo
palpvel para eu me agarrar.
Voc sabe o qu eu preciso dela... disse ele me olhando e esperando
desesperadamente compreenso para aquela desculpa escabrosa.
Como ele podia ter feito isso comigo? Que tipo de homem falaria isso na frente dela?
Pela primeira vez, tive nojo dele. Ele continuou apelando:
meu pai Angelina, preciso ajud-lo, no aconteceu nada aqui hoje, s vim
conversar com ela e pedir...
Amlia interrompeu:
Eu que devia pedir satisfao, Rico. Quem essa garota? Por que est dizendo a
ela que no houve nada conosco hoje?
Meu fio de esperana se esvaiu. No havia outro sentimento mais presente em mim do
que a raiva. Fechei os olhos por alguns instantes e depois, com lgrimas de fria, olhei para
ele e disse:
Voc um fraco! Um garoto de programa de luxo! E um artista tambm falei
batendo palmas de sarcasmo. O Rico que eu sempre amei s existiu na minha cabea, eu
no tenho a menor ideia de quem voc !
Vamos embora daqui e conversamos no caminho disse ele, implorando e
segurando o meu brao.
Me solta! gritei. Eu odeio voc! Nunca mais quero te ver na minha vida! Pode
ficar com essa me de aluguel pra te dar tudo que voc quiser, s saiba que a mim voc no
pode comprar. Acabou!
Entrei no txi e o motorista ligou o carro decidido a partir. Pelo pouco que ouviu,
percebi que ele estava ao meu lado. Fui embora sem olhar para trs. Todo o amor que eu
sentia pelo Rico explodiu, se transformando novamente em desespero e em uma grande dor,
s que agora doa mais. Era realmente o fim. Tanta dedicao, tanta entrega, eu no tive
limites para am-lo! Eu iria dar a ele o dinheiro do meu carro! Por que ele no esperou mais
um final de semana? Eu sabia que esse no era o problema, mas o carter dele havia sido
revelado e isso eu no poderia mudar.
Uma total descrena no ser humano tomou conta dos meus pensamentos. Uma onda
de depresso e desinteresse pela vida me dominou, demorei alguns minutos para me lembrar
de onde estava, meu olhar era sombrio e sem vida.
Quebrando o silncio o motorista perguntou, solidrio:
Para onde voc quer ir, moa? Quer parar para eu lhe comprar um calmante ou pra
beber um copo dgua?
No respondi em meio s lgrimas que desciam no meu rosto inexpressivo.
Volte pra faculdade.
Cheguei na repblica e larguei minha mochila no cho do quarto. Chorei
soluantemente por vrias horas e quebrei algumas coisas na parede. Achava que nenhuma
dor no mundo poderia se comparar quela. Pensei que ele voltaria para a faculdade para ver se
eu estava ali, mas ele no veio. No comi nada o dia todo.
No final da tarde comecei a ouvir o barulho de msica que vinha do outro lado da
repblica. Um grupo de rock estava tocando por l. Sa do meu quarto s com a roupa do
corpo e os 40 reais de troco do txi. Fui andando para aquele evento soturno bem mais de
acordo com meu humor naquela hora. Tinha desligado meu celular para no falar com meus
pais, que j deviam ter ligado insistentemente. Ao chegar ao show, vi a maioria dos alunos
vestidos de preto, bebendo e pulando em frente ao palco, que ficava numa tenda escura.
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Algumas pessoas do lado de fora da tenda rodavam no ar objetos fluorescentes e eu me
embrenhei na multido desejando desaparecer no meio deles. O grupo tocava furioso e o som
fazia o cho tremer. Enquanto as pessoas ao meu redor pulavam balanando o meu corpo, eu
estava paralisada, olhando para a banda e contendo minhas lgrimas. Vi que no conseguia
fugir da minha dor, mesmo com tanto barulho. Eu precisava de qualquer coisa que me
anestesiasse. Foi ento que senti uma mo no meu ombro, me virei e vi um garoto magro,
alto, moreno, de cabelos grandes e obviamente alcoolizado. Ele falou algo embolado no meu
ouvido, que o som no me permitiu entender. Olhei para ele, indiferente, e peguei a bebida
que estava na sua mo e que parecia um tipo de batida de frutas. Virei o copo todo de uma s
vez para ver o efeito que teria. Ao contrrio do vinho que bebi com Rico, no senti vontade de
torcer a cara, apesar de sentir o lcool descer rasgando pela garganta, mas o meu desconforto
interno imunizava os outros incmodos. Devolvi o copo vazio e deixei o rapaz ali, sozinho na
multido. Sa da tenda observando tudo e todos ao meu redor, procurando no sabia o qu.
Avistei Desiree mais adiante com umas amigas, perto da entrada da floresta, sentadas
numa pedra e fumando maconha. Elas estavam gargalhando., Uma menina com feies
asiticas estava deitada, sorrindo e olhando hipnotizada para as rvores. Eu me identifiquei
mais com essa, pois eu queria estar assim, em paz, contemplando a natureza sem nenhuma
preocupao. Negar a realidade podia ser uma sada, mesmo que por alguns momentos.
Caminhei at perto delas sem me preocupar com a rejeio da minha rival. Parei bem
perto, mirando Desiree, que se virou para mim e fechou o sorriso.
O que quer aqui, patricinha? perguntou, me fuzilando com os olhos.
O mesmo que ela respondi apontando para a menina deitada, que continuava
ausente.
isso que o seu professorzinho anda te ensinando? perguntou a outra menina
morena, que estava ao lado de Desiree.
Quer fumar agora... No foi voc que nos impediu de fazer isso no quarto?
provocou Desiree.
Eu pago falei, jogando o dinheiro do bolso aos ps dela e indicando com um gesto.
Ela espiou o dinheiro no cho e levantou o olhar, maliciosamente rindo para mim.
Depois, pegou-o e guardou. Ento, enrolou a maconha preparando um cigarro e me entregou
com uma cara debochada. Depois, com uma falsa expresso gentil, acendeu um isqueiro na
frente do meu rosto. Observei aquela iniciativa cnica e conclu que merecia toda a minha
indiferena. Ao tentar acender o cigarro comecei a engasgar e todas caram na gargalhada. A
morena magrinha se levantou, dizendo com cinismo que seria minha professora naquele dia,
j que o meu professor estava ausente e me deu umas dicas de como tragar. Depois de uma
tragada correta me retirei, indo para longe delas mais para dentro da floresta, j escura. Ao
adentrar na floresta, minha cabea comeou a girar e eu ca sentada, tentando me apoiar num
tronco. No cho, comecei a sentir uma dormncia pelo corpo e me deitei aos ps daquela
rvore. Imaginei se tinha algo mais misturado naquele cigarro ou se era assim mesmo.
Minhas sensaes foram amplificadas e eu estava comeando a relaxar, mas acima de mim a
viso ainda rodava. Eu me segurava no cho como se ainda pudesse cair. Com o tempo, as
imagens foram se acalmando e eu trouxe o cigarro at a boca novamente. Estava mais calma,
isolada do mundo, com uma sensao de poder e de liberdade total. Eu estava excitada com
aquela situao. Pensei em ser pega pela polcia ou pelos meus pais e comecei a imaginar a
cena que meu pai faria ao ver aquilo. Comecei a rir desenfreadamente, gargalhei at doer o
estmago, depois fui me recuperando aos poucos. Eu havia conseguido escapar da realidade,
ainda que por breves minutos. Agora podia entender por que Michele fazia aquilo: era uma
fuga para os problemas dela tambm. Conclu momentaneamente que no havia porque fazer
tanta onda em cima daquela prtica. Por que foi que ela parou mesmo?
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Aps algum tempo a floresta ficou silenciosa, e eu sria. As lgrimas comearam a
descer lentamente em direo minha orelha enquanto eu estava ali deitada, recuperando a
minha tristeza. Meu cigarro j estava apagado por causa da brisa e eu desejei que estivesse
aceso. Talvez eu causasse um incndio e ficasse ali para sempre, sem dor. Eu estava sonolenta
quando a quietude foi interrompida pelo som de passos vindo em minha direo. Pude ver
acima de mim o rosto de Desiree. Ela falou:
Patricinha idiota!
Ri, e apaguei.
Despertei no banco de trs do carro com Desiree ao volante e sua amiga asitica no
banco do carona.
Onde est me levando? perguntei, ainda tonta.
Pra rodoviria respondeu Desiree, seca.
Sentei e fiquei muda o resto do caminho. Vi que minha mala estava aos ps de sua
amiga no banco da frente. Ao chegar, Desiree saiu do carro e levantou o banco para eu saltar.
Sa e peguei minha mala. Enquanto ainda estvamos ao lado do veculo eu a olhei sem graa e
falei:
Obrigada.
Ela me olhou friamente, sem dizer nada, e colocou o dinheiro que eu tinha lhe dado na
minha mo. Depois entrou no carro e partiu.
Comprei a passagem para Petrpolis e percebi que estava morrendo de fome. Comi
dois sanduches gigantes e tomei uma vitamina enquanto aguardava a sada do nibus.
Observei um menino de rua de mais ou menos quatro anos, descalo, batendo a cabea na
parede repetidamente. Refleti sobre como ele era tonto, carente, abandonado e solitrio.
Metaforicamente, parecia estar me vendo no espelho.
CAPTULO VIII
O INVERNO DA VIDA
Quando cheguei em casa, meus pais j estavam preocupados pelo horrio. Repeti a histria
que dissera para Michele e Diego, tirando a parte em que Rico iria me trazer. Estava enjoada
por causa das curvas do nibus na serra e foi o motivo perfeito para me recolher ao meu
quarto. Assim que deitei na minha cama, a expresso morta que carreguei por todo o
percurso do nibus se transformou em lgrimas de dor. Meu mundo havia sido aniquilado
mais duramente do que da ltima vez. No havia porque voltar ao Rio de Janeiro, eu no
suportaria v-lo novamente, o amor no se extinguia to rpido. Eu sabia que se ficasse por
perto, ele acabaria me dobrando novamente. Eu precisava fugir. Pensei em dizer aos meus
pais que o curso no era o que eu esperava, apesar de eu no me imaginar estudando outra
coisa. No sabia o que fazer, s sabia que no podia voltar. A tristeza me consumiu ao ponto
de sentir desnimo total de viver. Cansada, adormeci.
Meus olhos se abriram devagar e pude contemplar um gramado completamente seco
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e sem vida. Sentei para verificar a paisagem, as rvores estavam sem folhas e o cho repleto
delas. O outono j havia chegado quele lugar. Meu vestido agora era preto, estava vestida de
luto. Dessa vez no me levantei, me virei de lado lentamente e fechei os olhos, nada mais me
importava. No ligava se todas as feras juntas voltassem de uma vez para me pegar, eu queria
morrer. Devia ser menos doloroso do que o que eu estava sentindo, eu s queria que tudo
aquilo terminasse. Tive certeza que a traio era uma ferida profunda e incurvel na alma.
Fiquei ali por um bom tempo, s se ouvia o barulho das folhas ao vento, nada mais. Folhas
que passavam por cima de mim, algumas pousando no meu corpo. Eu queria voltar ao p e
me tornar parte da natureza novamente, a natureza era calma e corria no ciclo certo. Havia
paz ali.
Minha solido foi interrompida quando senti um vulto passar por trs de mim, me
assustando. Pensei ser uma das feras que j havia me farejado, continuei de olhos fechados e
nada aconteceu. Ouvi o som de passos, que pareciam humanos. Abri os olhos lentamente
olhando na direo do barulho, me preparando para o pior e pude ver Alderico a alguns
metros de mim, andando para longe. Meu corao acelerou imediatamente, ele deu uma
olhada sutil para trs, sorriu e continuou andando com a mesma roupa preta e as mos no
bolso. Era uma isca perfeita para mim. Eu queria que as feras voltassem... e o matassem!
Como ele podia sorrir enquanto eu estava ali, sofrendo sozinha? Tomada por uma ira
desumana, me coloquei de p e decidi que eu mesma podia fazer o servio: iria mat-lo!
Depois, me mataria. Comecei a andar em sua direo, consumida de raiva, acelerando cada vez
mais o passo, at que estava correndo o mais rpido que podia e inacreditavelmente no
conseguia alcan-lo. Eu odeio isso nos sonhos! Quando dei por mim, ele j havia desaparecido.
Trs bandejas me esperavam. Fiquei ali parada depois da decepo de t-lo perdido
mais uma vez pelo caminho. Ca sentada na escada, com as duas mos na cabea. Meu dio
era tanto que eu no conseguia respirar. Lembrei de tudo que ele havia feito e de tudo que ele
no fez. Eu queria vingana. Eu ainda o amava, mas isso s aumentava a minha dor. Amor e
dio, desejo e desespero se misturavam dentro de mim formando uma qumica mortal. Foi
ento que tive a ideia... Se pegasse o que havia na bandeja, algum mostro iria aparecer para
me devorar, a fera correria para floresta como as outras eu a seguiria at ela me matasse. E
todo aquele sofrimento iria acabar. Os sonhos, os desejos, as escolhas e a dor
principalmente a dor. Levantei e fui at a bandeja da vez. Nela havia uma faca de bronze e
conclu que no podia haver nada melhor. Com certeza, esse era o objeto do meu desejo,
facilitaria demais o meu desfecho. Peguei-a com as duas mos com a ponta voltada em minha
direo. Lembrei de Julieta, apesar de saber que ela havia morrido ainda sendo amada. Olhei
para a faca com prazer e dio. Como pude ser to burra? Nossos momentos juntos vieram
minha mente e as lgrimas desceram queimando pelo meu rosto. Eu olhava fixo para o objeto,
levantei alto a faca e fechei os olhos, preparada para acabar com tudo. Estava completamente
decidida quando ouvi uma criana gritar:
No!
Olhei para trs aturdida e avistei um menino, que devia ter mais ou menos oito anos.
Tinha olhos azuis, cabelos pretos e usava uma vestimenta branca e cumprida com algumas
marcas de sangue. Achei que ele estava machucado. Suas feies eram conhecidas, mas eu
no me lembrava de onde. Estava analisando o menino quando fui interrompida pelo barulho
da bandeja caindo. Virei-me e vi um enorme lobo na minha frente e o menino me agarrou por
trs, temendo. Segurei-o com uma mo para proteg-lo, com a outra virada para a frente
segurando a faca. Eu queria morrer, mas sozinha, no queria levar ningum comigo. Eu
precisava defend-lo. O Lobo avanava lentamente me olhando e espiando o menino. De suas
narinas s vezes saa fumaa enquanto ele respirava. Fiquei parada com a faca apontada para
a frente, contendo o mpeto de correr. Ele comeou a rosnar e a andar de um lado para o outro,
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nervoso, mas no avanava, era como se houvesse um muro invisvel entre ns. Uivava alto
como quem estava esperando uma permisso. Pensei em pedir para o menino correr mas o
lobo seria mais veloz e poderia peg-lo. Senti que podia proteg-lo ali. De repente, um uivo
saiu da mata, pensei ser a permisso que o lobo aguardava. Ele ouviu e olhou para mim num
relance, mas parecia insatisfeito. Depois de muito relutar, recuou e correu para a floresta.
A faca caiu da minha mo de nervoso e eu ca sentada. O menino veio para a minha
frente, desesperado, e me agarrou aliviado. Ficamos ali abraados, e eu senti que havia uma
ligao muito forte entre ns. Decidi que no iria larg-lo. Com as mos, comecei a procurar
ferimentos pelo seu corpo por causa daquele sangue todo, mas no havia nada. Ele se afastou
e sorriu alegremente, segurou o meu rosto me olhando nos olhos e anunciou:
Me espere, eu estou chegando!
Depois disso, me deu um beijo no rosto e correu para longe. Levantei aturdida e
comecei a correr atrs dele, gritando para que voltasse, com medo de que o lobo o perseguisse.
At que ele sumiu no horizonte.
Uma grande ventania comeou e muitas folhas foram levantadas. Tudo comeou a
girar em volta de mim e senti uma tontura. Ca desmaiada no campo de folhas...
Estava em minha cama novamente. Eram trs horas da madrugada quando acordei.
Dei um pulo da cama e acendi a luz. Fiquei feito doida passando a mo pelo cabelo e dizendo
lobo, faca, menino repetidas vezes para ver se enxergava algum sentido em tudo aquilo.
Estava impressionada com a sequncia dos sonhos e ainda um pouco tonta e enjoada. Liguei
meu computador e fui investigar na internet. Coloquei o MSN aberto pois Natasha podia estar
online. Ela era muito curiosa e achava significado em quase tudo, poderia me ajudar. Ouvi um
barulho e vi que tinha recebido uma mensagem instantnea. Era Rico, que estava online. Abri
relutante a mensagem e estava escrito: Eu te amo, por favor me responda. Meu corao
fraquejou, mas desta vez meu orgulho falou mais alto, eu no iria responder. Ele enviou outra
mensagem dizendo que agora tudo estava realmente terminado entre ele e Amlia, e que ele
queria me ver para acertarmos as coisas. A nica resposta que consegui dar foi: Sorte a dela
de ter se livrado de voc! e sa do MSN antes de me arrepender. No consegui pesquisar mais
nada, nada fazia sentido. Por que eu estava sofrendo tanto desde que fora para a faculdade?
Minha vida tinha sido sempre to tranquila ali... Desliguei o computador e voltei para a cama
para pensar. No tinha foras para mais nada, nem para orar. Tive que me agarrar na cama
para no voltar para a internet e ver o que ele tinha a me dizer novamente, mas eu sabia que
quanto mais contato pior seria para eu esquecer. Ainda tinha esperana de que tudo pudesse
ser um pesadelo e que eu acordaria na repblica, nos braos dele.
Acordei com o caf na cama servido por minha me. Ela disse que ficou muito tempo
sem me mimar e que estava sentindo falta. Pode at ser que fosse verdade, mas sem dvida o
maior propsito era fazer uma sondagem sem que ningum estivesse por perto. Eu me
sentia uma aliengena: enjoo, cabea pesada e boca amarga. Enfim, ela comeou:
E a, est tudo como voc gosta?
S voc mesmo, me... falei comendo um pedao do meu bolo de banana
preferido.
Ainda falta uma coisa... ela pegou um carto postal e um embrulho e me
entregou.
da Natasha! reconheci, animada Que fofa!
Lemos o carto juntas e depois eu abri o presente. Era o CD de uma banda gospel
inglesa. Tinha uma foto dela com o grupo, e ela j estava sem o aparelho nos dentes. Amei a
lembrana. Senti um pouco de culpa por t-la deixado de lado nos ltimos meses.
Minha me prosseguiu em sua busca.
Achei voc muito abatida nas frias, resolvi dar um reforo na sua alimentao
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dessa vez. O que houve com seu celular ontem? Tentei falar com voc o dia todo...
Lembrei do Rico e minha expresso esmoreceu na hora. Devolvi o pedao de bolo no
prato e ela percebeu.
Quer comer outra coisa? perguntou, solcita.
No vai me engordar, hein me! falei, tentando sorrir.
Ela respirou fundo e prosseguiu:
Sinto que h algo te incomodando minha filha, algo que voc no quer me contar.
Voc tem estado distante e assim fica difcil te ajudar. Eu e seu pai ficamos muito preocupados
com a sua depresso da ltima vez que esteve aqui. Voc sabe que pode contar comigo, no ?
Minha me era to maravilhosa que a culpa aumentou ainda mais. Pensei nas
atrocidades que tinha cometido na noite anterior e me senti imunda diante dela.
Me, muitas coisas aconteceram na minha vida esse ano, muitas mudanas e...
cobranas novas. Foi um ano difcil, isso tudo mexeu muito comigo, mas vou ficar bem, s...
uma questo de tempo.
Minha filha... voc est feliz l?
Ela puxou meu rosto e me olhou nos olhos aguardando uma resposta. Meus olhos se
encheram d'gua e no respondi.
Se quiser voltar, volte. Essa sua casa e s quero que seja feliz. No se sinta
obrigada a continuar no que no deseja.
No consegui segurar as lgrimas, que desceram pelo meu rosto. Abracei-a em
silncio. Era melhor deix-la pensar que fosse algum tipo de crise juvenil do que saber a
verdade.
Vou descer para colocar o caf do seu pai, te espero l embaixo.
Daqui a pouco eu vou, me respondi enxugando o rosto.
Ela saiu e eu me deitei novamente, sem a menor motivao para levantar. Olhei para o
teto tentando achar alguma razo para ter a esperana de que tudo aquilo iria passar logo,
mas no achei nenhuma. Olhei minha bolsa e resolvi arrum-la. Logo que a abri vi minha
Bblia. Resolvi ler algo aleatoriamente para ver se comeava bem o dia, por mais que no
acreditasse que iria ser um dia bom depois de tudo. Meu corao estava angustiado e eu
aceitaria qualquer alento. Eu precisaria de um milagre para arrancar Rico de dentro de mim.
No achava que merecia ajuda de Deus, mas j tinha ouvido falar tanto de Sua misericrdia
que resolvi apelar para ela quando orei rapidamente antes de abrir o versculo. Li o seguinte:
Porque o SENHOR te chamou como a mulher desamparada e triste de esprito; como a
mulher da mocidade, que fora desprezada, diz o teu Deus. Por um breve momento te deixei, mas
com grande misericrdia te recolherei; Com um pouco de ira escondi a minha face de ti por um
momento; mas com benignidade eterna me compadecerei de ti, diz o SENHOR, o teu Redentor.
( Is 54 6 a 9)
Fechei a Bblia e, abalada, ajoelhei em frente minha cama. Eu estava me sentindo
exatamente desamparada e triste de esprito. Eu j no tinha mais nada a perder, tudo que fiz
foi me afastar da presena de Deus e conceder tudo o que a minha alma desejou. Na verdade,
eu duvidava de que algum dia estive realmente prxima dEle. Foi ento que fiz a orao mais
honesta, mais simples e mais verdadeira de toda a minha vida:
Deus... ... voc tem visto o quanto estou sofrendo. No sei se mereo ou no, no
quero me justificar. De todos os erros que cometi, o maior foi no pedir o Seu conselho para
as decises que tomei. Eu no sei como fazer isso... como Te ouvir. Creio que algo muito
profundo, que eu nunca experimentei olhei pela janela com os olhos cheios de lgrimas.
Mas eu quero Deus, eu quero mesmo. Preencha esse... buraco gigante que est no meu peito,
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por favor. Me ajuda! Eu te imploro! No quero mais sofrer assim. Eu quero Te conhecer mais,
quero entender aqueles sonhos e todos os sinais que voc me envia para no errar de novo o
caminho. Se voc realmente est a, se realmente me aceita assim como eu sou, me ajude a
deixar de amar o Rico. O que eu realmente queria era ele transformado, mas seja feita a Tua
vontade... No quero mais levar minha vida de forma to independente. Por favor, seja meu
guia...
No consegui continuar pois j chorava e soluava muito, era a minha primeira
conversa sincera com Deus. Aps alguns instantes, uma leve brisa entrou pela janela do meu
quarto tocando o meu rosto, meu corao foi se acalmando e eu me senti mais confortada de
alguma maneira. Era como se, por alguns minutos, eu esquecesse de tudo. Fui absorvida por
uma intensa e inexplicvel paz. De alguma forma eu sabia que no estava ali sozinha.
Levantei, lavei o rosto e desci.
Depois do caf, resolvi ir na casa da Michele contar o ocorrido antes de Desiree.
Precisava conversar com algum sobre tudo que havia acontecido, mesmo sabendo que
ouviria muitos eu te disse, mas ela era confivel.
Quando cheguei, sua me me recebeu na porta com um enorme sorriso. Ela no
recebia muitas visitas pelo que eu sabia. Entrei e ela pediu que eu fosse at o quarto de
Michele. Relutei, pensando que ela estava dormindo, mas sua me insistiu dizendo que ela
estava acordada, s se sentia um pouco mal. Ser que ela enjoou da viagem tambm?
Quando abri a porta do quarto, ela estava deitada de lado na cama, abraando os
joelhos. Quando ela me viu, brinquei:
Quem est horrvel agora, hein? apesar de abatida vi que ela estava feliz em me
ver ali.
Oi Angelina, que bom que veio, pena que no vou poder sair com voc, estou
morreeeendo de clica disse ela fazendo uma careta.
Eu j conhecia aquele estado, toda vez que ela ficava naqueles dias ficava assim.
Sentei ao lado dela passando a mo no seu cabelo e disse:
Acho melhor eu aproveitar pra te contar algo agora ento, j que voc no pode me
bater falei com um sorriso triste de canto de boca.
O que foi? perguntou ela, sentando rapidamente na cama. O que voc
aprontou?
Eu, nada... respondi, abaixando os olhos.
Foi aquele safado, no ? Eu sabia que ele no era confivel. O que ele fez dessa vez?
Contei todo o ocorrido, desde quando ela me deixou na repblica na noite anterior e
comecei a chorar no meio da histria. Ela conteve o mpeto de me xingar e me abraou por
um momento. Eu gostava cada vez mais dela.
Ele no para voc, Angelina, olha s at onde chegou. Rico s o seu primeiro
amor, mas voc vai conseguir esquec-lo. Voc muito nova, tem muitos caras legais por a.
Eu no tenho dado sorte porque eu sou... voc sabe... meio agitada. Mas voc uma menina
maravilhosa, pura, no vai ficar s muito tempo.
Ouvi, achando tudo aquilo impossvel.
Eu no quero mais ningum, Michele, voc no entende? Eu amo o Rico de verdade,
estou decepcionada com ele, mais ainda o amo, mesmo depois de tudo. Como posso acreditar
que vou esquec-lo dessa forma? Posso at escolher no ficar com ele, mas no vou mudar
meus sentimentos to cedo decretei.
Voc j orou por isso?
Nem acreditei na pergunta, no era o tipo de rumo que a conversa dela geralmente
tomava.
Sim, hoje de manh respondi.
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Ento, confie! Tenho visto Deus responder minhas oraes tambm. Meu pai largou
aquela mulher e ele e minha me esto fazendo terapia de casal, acredita?
Meus olhos brilharam de felicidade com aquela notcia. Finalmente ela no seria mais
a pobre vtima de um lar desfeito. Nos abraamos novamente, comemorando. Ento, ela
continuou:
Tenho pensado muito em tudo isso que est acontecendo. Quando eu e voc nos
conhecemos, minha vida estava uma baguna, ainda estou pensando em como consert-la de
vez... ns rimos. Eu no tinha foco pros estudos, no me comprometia com nada,
tentava neutralizar a dor que meus pais me causavam com as brigas, me afastando o mximo
possvel deles. Eu nunca acreditei que poderia, ou queria, mudar nada minha volta, achei
que simplesmente tinha que me conformar com a minha m sorte. Mas agora, vendo essas
mudanas aqui em casa depois que comeamos a orar, algo inusitado surgiu na minha vida: a
esperana. Eu no tinha isso, sabe? Achava que nem tinha direito de pedir nada a Deus. Mas
agora, testemunhando essa sbita mudana no relacionamento dos meus pais, comeo a crer
cada vez mais em como Deus pode ser real pra ns se acreditarmos nEle. Fico motivada a
tentar coloc-lO a par de outras reas da minha vida tambm.
Fiquei impressionada ao constatar que, em meio s lutas, Deus podia estar
trabalhando.
Acho que uma deciso muito sbia, Michele. Eu no fiz isso antes e veja a minha
situao falei, dando um suspiro triste.
Passei a mo em sua cabea e desci at a cozinha para pegar um remdio para ela. Sua
me estava l e me entregou. Antes que eu subisse de novo, ela disse:
Angelina, obrigada por tudo.
Pelo qu? perguntei, confusa.
Michele mudou muito depois que voc foi morar com ela. Ela se aproximou de mim
novamente, est mais calma. Soube que ela foi igreja com voc, ela nunca queria ir comigo.
Estamos lendo a Bblia todos os dias noite, ela me contou que sempre faz isso com voc,
acho que voc foi um anjo na vida dela.
A palavra anjo me doeu um pouco, mas fiquei feliz com tudo que ouvi. Voltei para o
quarto e Michele estava no banheiro, ela me pediu para eu levar o remdio l. Fiquei
pensando em como as mulheres sofrem mais que os homens, at fisicamente. Ainda bem que
eu nunca tive esses problemas menstruais, pelo menos. Alis, fazia algum tempo que eu nem
ficava menstruada. Nunca fui muito regular, mas a ltima vez parecia uma eternidade. Senti
um frio na espinha, eu tinha chegado muito enjoada na noite anterior e no meu sonho
apareceu um menino, que nunca esteve l antes. Minha ligao com ele era bvia, eu o
protegi. Ele impediu que eu me matasse! Ai meu Deus... ele disse que estava chegando! Ser
que eu estou grvida? Sentei na cama, apavorada com a ideia. S de pensar o enjoo voltou.
Michele saiu do banheiro e eu entrei correndo, pensando que iria vomitar. Voltei para o
quarto, branca, e Michele perguntou se eu estava me sentindo mal. Falei para ela da minha
desconfiana e ela se apavorou conjuntamente.
Como pde ser to ingnua, Angelina? J que j estava vivendo isso, nunca pensou
em se prevenir? gritou ela.
Fala baixo Michele, sua me pode ouvir. Algumas vezes nos prevenamos, mas em
outras... respondi, ainda atnita.
Temos que fazer um teste! disse ela, decidida, se levantando.
No! Eu no quero saber! No agora. Amanh estaremos no campus e eu compro
um teste de farmcia. Tenho medo de fazer aqui e algum descobrir. Eu estava assombrada
com a possibilidade. Ficamos ali nos olhando, srias, sem saber o que dizer.
Bem, s uma suspeita, certo? No vamos pensar no pior agora concluiu ela,
68
tentando inutilmente me animar.
Despedi-me e fui para casa. O que eu faria se aquilo fosse verdade? Como falaria para
o Rico? Como falaria para os meus pais? E a minha faculdade? Eu teria que largar tudo para
cuidar de um beb sozinha?
Caminhei lentamente at em casa pensando em todas as consequncias daquela
situao. Idiotamente, me peguei pensando que, de repente, eu e o Rico ficaramos juntos e
formaramos uma famlia feliz, mas logo voltei realidade.
Quando cheguei, fui direto para o meu quarto. Minha me insistiu para eu almoar,
mas eu disse que ainda estava enjoada. Entrei na internet para ver se ele estava online, no
sabia se contaria para ele ou no. Ele no estava. Olhei meus e-mails e havia uma mensagem
dele:
Angelina,
sei que o que fiz no tem perdo, s me dei conta disso agora que a perdi. Voc no
entende porque sua vida foi muito diferente da minha, e nem por isso quero me justificar. S
quero que saiba que eu no consigo mais ficar sem voc. Fao o que quiser para ter uma
segunda chance (terceira, corrigi). Falo com seus pais, com seus avs, com quem quiser. Voc
afetou o meu mundo de uma maneira que no pode imaginar. Somente me d mais uma
chance, meu anjo. Eu te amo e no vou mais te decepcionar.
S seu, Rico.
Enquanto eu lia soluava cada vez mais, ele era a minha vida, era muito tentador.
Lembrava de cada detalhe do corpo, do cheiro, da voz dele. S de pensar que alguma parte dele
podia estar crescendo dentro de mim me deixava insensatamente feliz.
Mas eu tinha tomado uma deciso, no faria nada sem consultar Deus primeiro.
Resolvi contar tudo para Natasha atravs de um e-mail gigante e comecei a digitar. Ela era
uma pessoa muito ligada a Deus e iria me aconselhar bem, com certeza. Eu precisava muito
de ajuda. Eu era doente pelo Rico e agora sabia disso. Escrevi uma mensagem desesperada,
pedindo para ela voltar caso eu tivesse que enfrentar essa histria de gravidez sozinha. Sabia
que ela no me deixaria fazer nenhuma besteira. Orei para ela ler aquilo o mais rpido
possvel e apertei o enter, enviando a mensagem.
CAPTLO IX
GRANDES SURPRESAS
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In England...
Era tarde de domingo e Dante estava em casa. Natasha tinha sado em viajem com alguns
jovens missionrios e voltaria dali a trs semanas, ele estava sozinho. Seu curso de msica j
terminara e havia um grande conflito em sua cabea, ele tinha uma deciso a tomar: voltar
para o Brasil e para sua banda que tanto amava , ou ficar e aceitar o contrato que lhe
ofereceram para gravar sozinho em Londres. Ele no parava de pensar nisso h dias. Ento,
resolveu que era o momento perfeito para falar com seu melhor Conselheiro e decidiu orar.
Como sempre, entregou suas ansiedades ao Pai e pediu que Ele lhe desse uma direo, um
sinal de qual era Sua vontade para a vida dele. Quando acabou de orar, resolveu entrar no
computador pra falar com seus amigos do Brasil. Ao sentar na escrivaninha, percebeu que
Natasha deixara o computador ligado. Apertou qualquer tecla e o monitor acendeu, mostrando
aberta a caixa de mensagens de e-mails de sua irm. Ele viu que tinha chegado um e-mail
novo, de remetente Angelina, com o assunto: Me ajude, assunto de vida ou morte. Aquilo
mexeu muito com ele. Ele conhecia Angelina desde pequena e sabia que ela no era o tipo de
pessoa dada a termos exagerados como aqueles. Devia realmente estar precisando de ajuda.
Dante no tinha como avisar Natasha, pois ela estava na estrada e sem celular. Ele s tinha o
telefone da parada onde ela estaria dali a dois dias. Uma dvida se instalou na sua mente:
deveria ignorar o e-mail em respeito privacidade de sua irm? Ou deveria ler e ajudar
Angelina no que pudesse? Afinal, ele tambm era seu amigo, no tanto quanto Natasha, mas
tambm era fora o fato de que sempre tivera uma paixonite platnica por ela quando eram
pequenos, mas como ela sempre o tratara quase como irmo, ele ressentidamente desistiu. A
curiosidade venceu e ele tomou a deciso de abrir o e-mail.
Ao ler a mensagem, Dante ia ficando cada vez mais chocado com as notcias, e mais
compadecido tambm. No parecia um e-mail daquela ingnua garota que ele conheceu em
Petrpolis. Era uma mulher, com conflitos reais, e que necessitava urgentemente do
aconselhamento de algum mais neutro e sensato. Preocupado com o estado depressivo de
Angelina, ele interpretou o e-mail como uma resposta: algum precisava falar com aquela
menina. Na mesma hora, sem pensar muito, comprou sua passagem para o Brasil, com
horrio para a prxima madrugada. Concluiu que tomando a deciso de forma rpida estava
trazendo tona o que realmente queria: voltar para o seu pas. Fez as malas e deixou uma
carta de desculpas para sua irm explicando tudo. Devido ao tamanho do problema de
Angelina, acreditava que Natasha iria aprovar sua atitude, pois teria feito o mesmo se
pudesse.
No Brasil...
Ao chegar na faculdade tive notcias de que Rico tinha alugado um apartamento e no
estava mais l. Ele tambm havia tirado uns dias de licena, mas eu no sabia por qu. Fiquei
aliviada por no v-lo e desconfiada de que estivesse naquele apartamento. Mas, por hora, eu
tinha algo mais importante para resolver. Na parada da estrada e sem que meu pai visse,
comprei o teste de gravidez e o coloquei na bolsa. Michele era minha cmplice e distraiu-o na
hora da aquisio. Eu detestava aquele clima de inimigos, que eu mesma tinha criado entre
eu e meus pais com minhas mentiras. Inclusive, meu pai j tinha feito a transferncia do valor
do meu carro para a minha conta como presente de aniversrio. Como eu poderia fazer isso
com ele? Se eu estivesse mesmo grvida, quo grande seria seu desgosto...
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Ao chegar fomos ao banheiro, eu e Michele, juntas. Eu estava tremendo e ento Michele
segurou minhas mos e sugeriu:
Vamos orar.
Segurei nas mos dela com fora e ela orou pela minha situao. Ela estava realmente
mudada. Quando acabamos, entrei no banheiro para cumprir os procedimentos. Ao sair,
deixei o objeto do resultado na pia, eu saberia a resposta em cinco minutos. Pedi a Michele
para ficar olhando, pois eu estava muito nervosa, senti de novo vontade de vomitar. Foram os
cinco minutos mais longos da minha vida. Fiquei olhando para a janela tentando prever o meu
futuro. Seria mesmo um menino? Se fosse confirmado, eu esperava que fosse to lindo quanto
o pai. Eu cuidaria dele sozinha, assim como Carla fez com a Carina. Eu sabia que meus pais
me apoiariam, aps o trauma inicial, e eu tambm contava agora com Deus.
Apesar de saber de todas as mudanas e exigncias que a possvel vinda desse
indefeso ser trariam minha vida, no conseguia ver a maternidade como uma coisa ruim,
no tendo uma me como a minha. Na verdade, por vezes tentei entender os diversos
motivos pelos quais Deus desejava tanto que os seres humanos procriassem. Admiti que o
maior motivo pelo qual eu no desejava totalmente essa criana agora residia no meu
prprio egosmo, pois tudo girava em torno do meu universo desmoronado. Eu teria que
aprender a amar e a cuidar de algum alm de mim mesma, e aquele no era o momento mais
oportuno para mim. Conclu que talvez fosse esse o principal plano de Deus ao nos conceder
os filhos: nos ensinar a melhor refletir sobre o amor incondicional, independente dos nossos
problemas.
Achei que j tinham se passado mais de cinco minutos quando me virei. Michele me
olhava com uma expresso aliviada e disse:
O mpio tem muitas dores, mas aquele que confia no SENHOR a misericrdia o
cercar. Ser que ela decorou todos os versculos da Bblia? Negativo amiga, Deus te deu
outra chance.
Pulei em cima dela e a abracei, chorando de alivio. Minhas pernas ainda tremiam. Uma
pequena parte de mim se entristeceu pelo meu amado beb imaginrio, mas era melhor
assim. Por um momento fiquei confusa, pensando no menino do sonho: quem era ele, afinal?
Voltamos para o quarto para relaxar e tomarmos uma xcara de caf. Como o Rico
estava de licena naquela semana, eu s teria aula com ele na prxima e isso iria ajudar na
minha recuperao interna.
Estava muito mexida com tudo que tinha acontecido e depois da aula resolvi dar um
pulinho na casa da Carla para ver a Carina. A menina me viu de longe e veio correndo para o
meu colo. Abracei-a, pensando que um dia, com certeza, iria ser me, mas claro que em
outras circunstncias. Como sempre, todos me receberam bem. Eu e Carla conversamos nas
nossas cadeirinhas cativas em frente ao lago. Nesse dia, me senti compelida a abrir o jogo de
vez com ela. Contei tudo que acontecera, toda a minha agonia e sofrimento, e ela me escutou,
compreensiva. No sei por que no me abri com ela antes. Ela me contou que o pai de sua
filha era o antigo melhor amigo do Rico, e por isso ela no gostava muito dele, achava que ele
era da mesma laia. Depois de conversarmos longamente, me senti mais leve. Mas sabia que
isso s duraria at eu v-lo na prxima semana.
Caminhei tranquila de volta para o meu ninho, j estava entardecendo, o cu estava
lindo em nuances azul, laranja e rosa. Quando entrei na saleta da repblica tomei um susto.
Sentados no sof estavam Michele, um rapaz com rosto conhecido (mas no da faculdade) e
Dante. Meus olhos brilharam com aquela feio to familiar, corri e o abracei apertado. Por
alguns segundos, me senti em casa. Nos olhamos, enquanto eu no estava entendendo nada.
Ele estava... grande. Sempre foi alto, mas agora estava mais encorpado. Percebi que tambm j
havia tirado o aparelho, assim como Natasha na foto. Ele no era mais aquele garoto
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desengonado de Petrpolis: era um rapaz, e lindo. Seu novo corte de cabelo, apesar de ainda
deixar uma leve franjinha cada sobre a testa, deixava seus olhos azuis finalmente livres. Sua
pele estava perfeita e pela primeira vez notei que lindas covinhas ele fazia ao sorrir. Os ares
cinzentos de Londres tinham-lhe feito muito bem...
Depois do choque e com a mudana notvel perguntei, animada:
O que voc est fazendo aqui? Cad a Natasha? Ela est aqui? perguntei
,sondando ao redor.
Calma Espoleta, voc sempre afobada. Deixe-me ver como voc est, agora que
uma universitria disse ele sorrindo e me segurando pelos braos para me analisar.
Linda como sempre! constatou. Baixei os olhos, modestamente.
Espoleta era como ele me chamava desde pequena, pois eu estava sempre aprontando
com a Natasha. Fiquei ali, empertigada na frente dele, minha felicidade pela sua presena era
evidente.
Minha irm no veio, est viajando com um grupo missionrio pela Europa
anunciou ele, me soltando e colocando as mos no bolso.
Mas e voc, como veio parar aqui? indaguei, ansiosa.
No posso visitar uma velha amiga? respondeu sorrindo, para o meu agrado.
Claro que sim! respondi, internamente eufrica.
Enquanto estvamos abraados, meus olhos embaaram um pouco lembrando de tudo
que havia passado longe dele e de Natasha. Ele ficou ali comigo e notou discretamente a minha
emoo. Depois me apresentou ao rapaz que estava ao lado de Michele: era Murilo, baterista
da sua banda, logo me lembrei. Era uma rapaz alto, magro, cabelos curtos meio aloirados e
olhos castanhos. Nunca tnhamos conversado muito. Murilo e Michele j se conheciam do
tempo de colgio e conversavam animadamente. Dante pediu para eu lhe mostrar a faculdade,
samos para caminhar e eu segurei a sua mo.
J est escuro, voc no vai conseguiu ver muita coisa, mas tem um lago aqui atrs
e o reflexo da luz da lua fica lindo noite, vem ver. Conduzi-o, empolgada.
Quando chegamos no lago, o mesmo estava mais iluminado do que nunca. Olhei para
Dante para ver se ele tambm o admirava, mas ele me fitava, srio.
Como voc est? perguntou ele.
Bem... por qu? disse eu, no entendendo novamente a pergunta.
Preciso que saiba que vim aqui por voc. Cerrei os olhos, confusa. Li o e-mail
que enviou para Natasha, me perdoe por isso... confessou ele, sem jeito.
Baixei os olhos, imediatamente envergonhada com a situao. Ele tocou suavemente
em meu brao e me virou novamente para ele.
Quero que saiba que no a julgo por nada, sei que j est pagando um preo alto
demais. Vim porque somos amigos e Natasha no poderia vir to cedo. Queria saber se posso
te ajudar de alguma forma.
Olhei para ele, agradecida pela sua compaixo. Fiquei to lisonjeada por ele ter dito
que viera por minha causa que, indulgentemente, ignorei a invaso de privacidade cometida.
Ele continuou:
Se estiver realmente grvida, eu te ajudo a contar aos seus pais, estarei ao seu lado
para apoi-la no que precisar .
Eu o ouvi, paralisada com sua ateno e bondade, e pensei que talvez nem todos os
homens fossem capazes de fazer uma mulher sofrer tanto.
Eu no estou grvida revelei. Fiz o teste hoje, mas o resto infelizmente
realmente aconteceu.
Ele suspirou, aliviado, e me consolou:
Pelo menos uma coisa a menos pra voc se preocupar, o resto mais fcil de
72
curar...
Mas eu estou sofrendo muito por ele, voc nem imagina tudo que j passei.
O tipo de ligao que vocs tiveram os torna um s, por isso Deus nos recomenda
que seja preservada at o casamento. como se voc... colasse duas folhas de frente e depois
de algum tempo, quando tenta separ-las, pedaos de uma ficam grudadas na outra. Na
verdade, o ideal que no se desgrudem nunca mais, e sim permaneam juntas.
Meus olhos se umedeceram.
Mas eu nunca quis desgrudar dele, s no posso aguentar viver sendo trada...
O problema que voc no deveria ter se grudado com uma pessoa que no tem
uma aliana com voc. Ento, estava sem garantias. Essa aliana simbolizada pelo
matrimnio. Parece careta, mas verdade.
Fico espantada de ver um homem falando assim. Quer dizer, em geral vocs so
muito mais ansiosos do que ns... falei, balanando a cabea.
Nem por isso precisamos ceder aos nossos anseios. Ter desejo normal, o que
nos faz querer ficar juntos apesar de tudo. Com tantas preocupaes no relacionamento,
como filhos, parentes, despesas de uma famlia, se no tivssemos uma bela recompensa,
enlouqueceramos! Deus sbio em todos os seus planos pra ns, Ele conhece a raiz do
homem, somos movidos a compensaes. Ter domnio prprio para escolher esperar um
dom de que advm dEle.
Est me dizendo que voc ...
Virgem? Sim, eu sou.
Fiquei pasma com a tranquilidade daquela revelao nos dias atuais.
Sei que quando a encontrar, ser o melhor presente que levarei para minha noiva:
exclusividade.
Ento, no a encontrou ainda?
No, estou esperando ela aparecer. Sei que Deus j providenciou nosso encontro.
Ele escolhendo, no h como no dar certo.
E como saber quem ela ?
Meu corao est ligado ao dEle, Ele me dir.
Gostaria de ser confiante como voc, mas sempre que tento esquec-lo, ele aparece.
intil.
Voc deve evit-lo ao mximo nesse momento. Li no seu e-mail que ele seu
professor, no ? Sente na ltima cadeira, s fale o essencial. No leia mensagens dele e no o
atenda no telefone. a nica forma de esquecer. Ningum consegue ficar perto do fogo sem
se deixar consumir.
Era a pura verdade. Rico me consumia completamente. Quando Dante falava parecia
tudo mais fcil e cheguei a acreditar que conseguiria. Fiquei ali, contemplando-o, com a luz da
lua batendo na sua face e acendendo aqueles olhos maravilhosos. Ser que era o mesmo
Dante?
Bem que voc poderia ficar por aqui para me impedir de fazer alguma bobagem
falei rindo e sem graa para ele.
Ele sorriu de volta, mas rebateu:
Voc tem que fazer isso sozinha ou nunca se controlar. Sei que voc vai conseguir,
voc sabe que merece o melhor. Deus no quer te trazer sofrimento e sim paz e alegria. Vou
orar por voc de onde estiver.
Abracei-o novamente e me senti reconfortada aps a nossa conversa.
Ao voltarmos para a repblica, j havia anoitecido. O papo de Michele e Murilo ainda
evolua, animado. Dante interrompeu o amigo dizendo que era tarde e que eles deveriam ir
para o hotel pois iriam visitar uma gravadora no centro do Rio de janeiro bem cedo.
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Acompanhamos todos at o carro e Dante entrou no banco do carona. Ele segurou minha
mo pela janela e disse:
Se cuida, Espoleta...
Eu queria segur-lo ali.
Sua visita foi um presente pra mim, obrigada agradeci.
Eles partiram e eu e Michele ficamos olhando o carro se distanciando. Quando eles
sumiram de vista, me virei para Michele e ela estava com um sorriso malicioso no rosto.
Ento, perguntei:
O que foi?
Ela provocou:
Como esses meninos cresceram, hein? e caiu na gargalhada.
Comecei a rir tambm e dei um tapinha no ombro dela. Adoro garotas! Ento, entramos
para dormir, mas no sem antes orarmos juntas para agradecer as bnos daquele dia.
Acordei com meu celular despertando, me espreguicei e olhei minha cortia. Vi a foto
em que eu, Natasha e Dante estvamos abraados. Sorri, me lembrando da noite anterior.
Olhei para a cabeceira da minha cama e vi minha foto com Rico na asa delta. Peguei o porta-
retrato e passei os dedos sobre o rosto dele. Minha companheira, a dor, se aproximou para me
dar bom dia. Coloquei o objeto no lugar e me sentei. Ainda a olhava, quando ouvi:
Isso no vai ajudar muito a esquec-lo! era Michele, se levantando tambm.
Por que no joga isso fora? sugeriu.
No estou preparada para isso, Michele falei, ainda olhando para a foto, que me
parecia um sonho distante.
Por que no a guarda, pelo menos? Assim, no vai ver todo dia, j no bastam as
aulas que ter com ele?
verdade concordei. Nem consigo imaginar como sero essas aulas... pensei
em trancar a matria, mas teria que faz-la de novo com ele no prximo semestre. Prefiro
passar logo por isso.
Ainda bem que desistiu de trancar a faculdade. Pelo menos... falou ela j de p,
preparando um caf.
Ele no valia isso... declarei, sem estar convencida.
Chegamos na faculdade e Michele foi encontrar as amigas no trailer. Eu segui para a
minha sala. No caminho, havia algumas salas vazias. Passei por uma onde vi um crculo de
cadeiras com umas 12 pessoas ouvindo e uma menina falando. Ao passar pela sala, parei ao
ouvir a palavra Jesus.
Fiquei ali perto da porta sem ser vista para ouvir do que estavam falando. Ouvi a
menina com sotaque gacho dizendo:
Vocs perdem muito tempo falando de religio. No era essa a preocupao de
Jesus. Um amor forado por uma religiosidade fingida nunca esteve nos planos dEle. Alis, Ele
sempre criticou essa atitude. A maioria das pessoas acha que seguindo doutrinas ou
cumprindo obrigaes religiosas vo agrad-Lo, mas no isso que Ele deseja. Ele quer se
tornar seu melhor amigo. Se vocs realmente buscarem conhec-Lo, vero que Ele lhes dar
um propsito, um sentido na vida que permitir superar todo estresse e sofrimento e os
transformar profundamente.
Aproximei-me da porta e vi que ela segurava um livro. Ela parou e olhou para mim.
Era branca e alta, tinha um porte atltico, seus cabelos eram lisos e castanhos claros, seus
olhos eram pequenos e amendoados e havia algumas sardinhas em seu rosto. Tinha uma
expresso forte, vestia uma bermuda cqui at os joelhos, uma blusa branca e sandlias
rasteiras. Usava discretssimos brincos e mais nada. Seu estilo, eu diria, era... despojado.
Ela abriu um sorriso para mim, notei que seus lbios eram finos e seus dentes
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grandes.
Seja bem vinda, estava te esperando falou ela, ainda sorrindo.
Uni as sobrancelhas sorrindo para ela, sem entender.
Nos conhecemos? perguntei.
Ainda no, eu sou Ana Cristina Feller disse ela, estendendo a mo. Estou
esperando muitas pessoas que um Amigo foi buscar para mim. Voc uma delas concluiu,
me oferecendo uma cadeira.
Meu nome Angelina, parei aqui s por curiosidade, mas acredito no Amigo que
voc disse. Voc estuda aqui?
No, na verdade eu e meu grupo chegamos ontem ao Rio. Viajamos pelo Brasil
levando a Palavra em colgios e universidades.
Que timo! exclamei, entusiasmada. Estava mesmo precisando de um grupo
desses aqui. Vocs tm um nome ou coisa assim?
No respondeu ela olhando de volta para o livro. No queremos funcionar
como uma instituio. Nossos membros vieram de vrias denominaes diferentes, mas
temos todos um s propsito: seguir Jesus e levar a sua Palavra. Abandonamos nossas casas,
nossas famlias e partimos com essa misso, tiramos frias uma vez por ano para ver nossos
parentes. Estamos nisso h trs anos e Deus tem abenoado muito nossas jornadas. Nosso
grupo aumentou muito falou ela, virando-se para o grupo. Em nossas viagens, sempre
tem algum disposto a nos acompanhar. ramos cinco no incio, hoje somos 20. Mas sempre
deixamos bem claro as abdicaes que essa deciso implica, esse um tipo especfico de
ministrio que exige algumas renncias importantes, no para todos. Acreditamos que no
corpo de Cristo todos so importantes de formas diferentes, nenhum menos ou mais
importante. O que no podemos negligenciar os nossos dons. Bom, creio que por hoje s,
moada.
Houve um sonoro Ah! das pessoas presentes. Sorri ao ver que havia tantos cristos
ocultos naquela faculdade e me apressei em perguntar:
Por quanto tempo ficaro aqui?
At dezembro, a princpio. Mas Deus quem manda nesse negcio.
Quando ter outra reunio dessas? perguntei, ansiosa.
Amanh, na margem do lago s seis horas da manh. Vocs entram na aula s sete,
no ? Achei cedo, mas com certeza no perderia essa oportunidade. Ningum reclamou
tambm. Vamos orar e encerrar esse momento. Querido Pai, obrigada pelas pessoas
maravilhosas que o Senhor trouxe aqui hoje, que o Esprito Santo possa acompanhar cada
uma delas agora. Cumpra o seu propsito nessas vidas que lhe apresento, d tambm a mim a
poro necessria para permanecer. Te amamos.
Em nome de Jesus, Amm.
Eu mal podia esperar para contar a maravilhosa novidade a Michele, sabia que isso
tambm era a resposta de nossas oraes e estava ansiosa pelo dia seguinte. Fiquei
impressionada com a total entrega das pessoas daquele grupo. S uma f muito forte poderia
motivar tal atitude e mais uma vez cheguei concluso de que no sabia nada sobre Jesus. Ele
deveria ser mesmo muito melhor do que eu imaginava. Por alguns momentos me esqueci da
existncia de Rico... at olhar seu nome no quadro de professores do corredor. Sabia que ainda
levaria algum tempo para me recuperar. Estava com medo do que iria acontecer na prxima
semana quando o visse, mas tinha resolvido confiar a Deus aquela situao.
Cheguei na repblica e contei as novas a Michele que, como eu, ficou animadssima.
Fui ao computador mandar uma mensagem para Natasha e falar sobre esse grupo
missionrio aqui do Brasil. Ao entrar na minha caixa de mensagens fui surpreendida por uma
mensagem de Dante:
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Ol, Espoleta, espero que tenha acordado melhor. Esse final de semana eu e minha
banda tocaremos no restaurante do pai de um dos nossos integrantes em Petrpolis, se estiver
por aqui, passe por l. Segue abaixo o endereo...
Fiquei duplamente encantada: pelo convite e por ter lembrado de mim to logo saiu
daqui. Alis, eu estava inusitadamente empolgada em se tratando de Dante, parecia que ele
era... outra pessoa, ou eu era, no sei. S sei que passei boa parte da tarde pensando nele,
quando no estava platonicamente pensando em Rico.
No dia seguinte, eu e Michele estvamos no lago. Chegamos mais cedo que todos, s
Ana j estava presente calmamente sentada e olhando as guas. Nos cumprimentamos e ela
continuou ali. Sentamos ao seu lado.
Est uma linda manh, no canso de contemplar a obra de Suas mos... percebi
que ela no falava conosco. Bom dia meninas, dormiram bem?
Sim e voc? respondeu Michele, antes de ser apresentada. Sou Michele, colega
de quarto de Angelina, ela me falou sobre voc ontem...
Muito prazer, Michele, que bom v-la aqui. Respondendo sua pergunta, dormi
muito bem, tive sonhos maravilhosos! disse Ana, chamando minha ateno.
Voc sempre se lembra dos sonhos? perguntei, curiosa.
s vezes disse ela, balanando os ombros.
Acha que eles sempre tm algum significado? indaguei.
Nem sempre, mas Deus tem muitas formas de falar com cada um. Com a maioria,
suponho que os sonhos sejam s a nossa mente trabalhando noite.
Acha que Deus pode nos mandar alguma... mensagem enquanto dormimos?
insisti.
Deus pode tudo! Quem sou eu para limit-lo? Mas por que tanta curiosidade,
Angelina? Tem sonhado muito?
No muito, mas quando sonho sempre o mesmo sonho, com pequenas variaes
de personagens. Tento entender, mas no consigo. Eles parecem to... reais pra mim.
J ouviu falar em arrebatamento de esprito? perguntou ela.
O que isso?
Quando Deus revelou o livro de Apocalipse a Joo, ele foi arrebatado, mas s em
esprito. Seu corpo permanecia no mesmo lugar. L, Deus lhe revelou as coisas que ho de
acontecer, devemos estar atentos a situaes assim.
Fiquei impressionada com o que ela disse, que poderia me ajudar a entender a forma
como tudo parecia real na hora, mas no me ajudava a entender o resto.
Continuamos conversando at que os outros foram chegando. Ns sentamos ali na
grama mesmo, em roda, e oramos. Havia carinhas novas por l, o grupo j havia aumentado.
Ento, Ana comeou a falar:
Ser cristo... O que isso? ela pausou por alguns instantes. Acho que no
viver mais ou menos com Jesus, trata-se de uma entrega verdadeira e pessoal. A Sua palavra
veio para salvar o mundo e no para julg-lo, como muitos imaginam. Alguns no se acham
dignos do Seu amor, pois esto cheios de pecado (me inclu nesses). Deus de fato no ama o
pecado, mas ama o pecador. Jesus amor, esse sentimento a sua essncia. No h nada que
voc possa fazer para que Deus te ame mais, ou menos. Ele simplesmente escolheu te amar,
Ele livre pra isso. Devemos seguir o Seu exemplo e dar amor por deciso s pessoas, sem
esperar recompensas. O mesmo deve acontecer com o perdo: voc tem que ser livre para
perdoar as pessoas e seguir sua vida, foi assim que seus pecados foram perdoados na cruz,
gratuitamente. A falta de perdo s adoece a voc mesmo. Sei que s vezes difcil, mas assim
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como o amor, uma deciso. Confie que Deus pode consertar qualquer situao e qualquer
corao ferido, mesmo que a dor seja muito recente e profunda. Estou aqui para convid-los
para a aventura mais segura de suas vidas, porm a que parece a mais arriscada: confiar
plenamente em Jesus a partir de hoje. Ele disse que no precisaramos andar ansiosos pois
ele cuidaria de ns; Ele disse que se daria liberalmente queles que o buscassem de corao;
que o colocssemos em primeiro lugar em nossas vidas e nada nos faltaria...
Eu tenho feito isso. H trs anos entreguei minha vida a Ele e nesse caminho nem
doente eu fiquei porque confio a Ele todas as coisas. Muitos tm medo, acham que vo ter de
abrir mo de muitas coisas e isso um engano exagerado. Se tiverem que abdicar de algo, eu
lhes garanto: no ser nada comparado com o que vo ganhar. Fao esse convite hoje a vocs,
no tenham medo nem vergonha, pois Ele no teve quando morreu por voc...
Algumas pessoas se entreolharam e algumas encorajavam outras. Uma pessoa
perguntou:
E como fazemos isso?
Com uma simples orao respondeu Ana, se levantando. como eu disse, no
h nada que vocs possam fazer para Deus am-lo mais. Ele somente deseja ser convidado
para participar dessa jornada com voc. Algum se habilita para essa aventura?
Trs pessoas se levantaram imediatamente. Senti que devia fazer o mesmo, mas
estava com vergonha. Apesar de ter sido criada num lar cristo, nunca tinha feito isso
publicamente. Nunca tinha feito nenhum tipo de compromisso verbal com Deus, nem mesmo
me sentia prxima a Ele. Eu ia igreja, onde me diziam o que eu devia ou no devia fazer, e
achei que aquilo bastava para ter uma vida espiritual. Antes que eu me decidisse, Michele se
levantou e foi a motivao que me faltava; tambm me levantei. E ali, todos juntos,
entregamos nossas vidas a Ele, e dessa vez eu sabia que era para sempre.
No final da reunio senti um desejo imenso de me aconselhar com Ana. Mesmo a
conhecendo pouco, eu sentia que podia confiar nela.
Podemos conversar antes de eu ir pra aula? solicitei, tmida.
Claro, em que posso ajud-la? respondeu ela de forma afvel.
Olhei para Michele incomodada e ela percebeu que eu queria ficar a ss com Ana. Deu
de ombros e falou, revirando os olhos:
Eu j sei de tudo mesmo e saiu, virando-se na direo da faculdade.
Voltei-me sem graa para Ana e ainda tomando coragem, comecei:
Eu sinto que posso, na verdade preciso, me abrir com algum como voc. Algum
mais... experiente do que eu. Estou sofrendo bastante ultimamente por causa de uma pessoa,
tenho orado, mas no vejo melhoras no meu corao. Ele... me traiu... duas vezes. Na verdade,
quando nos conhecemos ele j tinha outro relacionamento, mas eu no sabia. Nunca imaginei
que nosso romance fosse chegar ao patamar que alcanou, pensei que minha empolgao
inicial era relativa ao fato de tudo ser novidade. Mas ele ... lindo, brilhante, perfeito. No sabia
que amar podia ser to... destrutivo. Em pouco tempo eu me entreguei a ele. Eu estava, na
verdade ainda estou, completamente apaixonada. Eu jurava que ele era o homem da minha
vida. Ele professor daqui, sabe? a pessoa mais encantadora que j conheci, sempre me
tratou como uma princesa, eu j idealizava nosso casamento perfeito, tive muitos motivos
para acreditar que ficaramos juntos. Quando descobri tudo, a dor quase me aniquilou. Eu...
flertei com a morte diariamente depois disso. Eu no conseguia respirar, no conseguia
comer, ele era uma obsesso, uma compulso pra mim. Eu me furtei do amor e do carinho de
meus pais durante meses sem ir pra casa s pra ficar com ele. Ele me ajudava nos trabalhos
da faculdade, porque nem nisso eu conseguia me concentrar. Achei que nosso amor era...
inabalvel. Quando reatamos, eu voltei a viver de novo, mesmo com a Michele sendo contra e
me aconselhando, decidi perdo-lo de forma irrevogvel. Eu sabia o quanto doa cada segundo
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longe dele e a nossa dedicao mutua s aumentou depois disso. Por meses nossa convivncia
foi feliz e pacfica, at que eu descobri que ele continuava com ela. Meu baque foi vertiginoso.
Ele diz que no, que foi s daquela vez, mas no importa. O fato que esse... buraco vazio me
acompanha desde ento, no esperava ser trada de novo de forma to fria e desapiedada. Eu
no sei o que fazer quando reencontr-lo. Sei que ele vai tentar se redimir comigo e sei que
sem ele a vida no tem mais graa para mim, eu acho que no sei mais viver sem ele...
Angelina, se voc pensa dessa forma sua prpria existncia j est condenada
levei um choque com a resposta to rude e direta. Escute, voc est olhando na direo
contrria. S Deus pode preencher o buraco que cada um de ns tem. Nossa necessidade de
realizao e de amor provm dEle. Ter expectativas de que ouro ser humano responsvel
por faz-la feliz ir sempre te frustrar, seja ele ou outro, porque nenhum ser humano
suportar tamanha carga. Se voc no aprender a ser feliz sozinha, no ser com mais
ningum. Isso que voc chama de amor exigiu tudo de voc. Como algum pode ser feliz
assim?
Refleti por um instante antes de responder.
Desde que... Rico entrou na minha vida, eu abandonei tudo sem qualquer ressalva.
Minha vida foi... suplantada pela dele. Meus amigos, minha famlia, meus estudos, pouco me
importam quando estou com ele. Eu sei que isso errado, mas no consigo evitar. Ele tudo o
que me importa, mesmo depois de tudo que fez. Ele era assim comigo tambm, passvamos
todo o tempo livre juntos. Se eu tinha que viajar para Petrpolis ele ficava louco da vida, eu
no entendo como ele pde...
Essa confiana exacerbada nos trs grandes dores quando entregues pessoa
errada.
Mas, como saber se a pessoa certa?
Voc pediu direo a Deus sobre esse relacionamento alguma vez? Pediu conselhos
a algum de sua confiana, pais, amigos, um lder espiritual?
Eles no iriam entender... justifiquei de pronto. O que eu estava sentindo era
to real e absoluto, que eles iriam achar que esse relacionamento com um professor era
devaneio adolescente.
Seu erro comeou a. Somos seres feitos para compartilhar Angelina, e no para
viver s. O objetivo de Cristo ter institudo uma igreja aqui na terra foi justamente para
dividirmos nossas cargas. Dvidas e dores tambm devem ser divididas, como voc est
fazendo agora. Sei que os jovens preferem colocar uma arma na boca ao invs de pedir
conselhos sobre sua vida amorosa, principalmente para os pais, mas a verdade que quem
est de fora desse romance totalitrio e avassalador tem condies de ver as coisas
melhores do que os envolvidos. Esse foi o seu medo, no foi? Voc no queria outro parecer
seno o seu, o veredicto j estava dado. Claro que no devemos nos aconselhar com pessoas
preconceituosas ou que tenham uma viso ftil da vida como achar que a situao
financeira ou cor da pele so mais importantes , mas com pessoas que nos amem e
desejem de fato a nossa felicidade.
Mas como fazer isso quando estamos gostando tanto de algum? Como questionar
um sentimento? perguntei, aturdida.
No estou dizendo para questionar o sentimento e sim a deciso de iniciar o
relacionamento, ou no. Todos queremos muitas coisas que so nocivas para ns, mas nem
por isso devemos obt-las. Os desejos da carne so uma armadilha impiedosa, o pecado afeta
nossa capacidade de enxergar o que bom, como se tivssemos lama nos olhos. A igreja em
torno de ns serve para nos alertar do perigo, esse um dos maiores benefcios da nossa
comunho. Viver isoladamente um principio orgulhoso, crer que voc o seu melhor juiz,
como se voc declarasse a sua independncia da igreja e at mesmo de Deus.
78
No foi essa a minha inteno... eu acho me defendi.
No estou dizendo que voc fez, ou faria isso conscientemente. O medo de se
relacionar e perder o controle absoluto da sua vida assustador, mas um santo remdio para a
alma compartilhar suas escolhas.
Olhei para baixo e suspirei, pensativa.
Agora queria que algum me convencesse a deixar de am-lo... reconheci.
Em primeiro lugar, voc deve descobrir o significado da palavra amor. Est bem
claro em I Corintios 13. As paixes arrebatadoras dificilmente tem algo a ver com o
verdadeiro e duradouro amor institudo por Deus. Esse sentimento enganoso, to
comumente confundido com amor, se vivido de forma errada pode adquirir o poder de
destruir uma pessoa, e eu no daria esse nome a isso. O amor faz bem e no atrai o mal. o
maior dom de Deus a ser alcanado e no trs dores consigo. Se vivido da forma correta,
capaz de iluminar uma rua inteira fazendo transparecer a glria de Deus pelos olhos dos
amantes.
Parei confusa.
Ana, se voc realmente pensa assim, por que est sozinha? perguntei,
angustiada.
Ela voltou-se para mim com uma expresso surpresa, e depois desfez-se num sorriso
terno.
O amor o maior dom querida, mas no o nico. Creio que Deus pode fazer
maravilhas atravs da vida de um casal que serve a Ele, mas o dom do celibato
especialmente retratado por Paulo na Bblia com muita relevncia. O solteiro que decide ter
uma vida devotada somente a Deus pode ter grande utilidade, que a vida de casado com seus
compromissos mtuos, no lhe permitiria ter. Cada parte do corpo de Cristo aqui na terra
tem uma funo, precisamos achar a nossa nessa jornada.
Quer dizer, ento, que devo esperar um namorado cristo aparecer, ou esperar o
Rico se converter para, juntos, recebermos esse dom?
Se voc v por esse prisma... quero dizer que no importa quem seja o seu
parceiro. Se voc no se posicionar, se no estabelecer seus parmetros, todos os
relacionamentos tendero a dar errado. Ser cristo no deve ser o seu nico e principal
critrio para escolher um namorado, o critrio deve ser uma pessoa que te ame e te respeite
acima de tudo. Algum que se proponha a ser responsvel por essa unio tanto quanto voc,
respeitando seus limites. Me diga uma coisa, Angelina: para que voc deseja se casar um dia?
Para ser feliz, claro... respondi com um sorriso afetado.
Resposta errada! arregalei os olhos. Voc deve se casar para fazer o outro
feliz. Esse o segredo de uma unio bendita e duradoura, que consequentemente far voc
feliz tambm. Mas precisa estabelecer seus critrios primeiro.
Acha que nessa condio... sem ser mais virgem, ainda arrumarei algum com
esses requisitos para me relacionar?
No h nada impossvel para Deus, mas antes de pensar nisso eu a aconselho a
comear a desfrutar de um relacionamento com Ele. Deus te ama e quer ser seu melhor
amigo e seu mais fiel conselheiro. Coloque suas ansiedades na mo dele, verdadeiramente, e
se deixe ser tratada. Depois que ele a tiver transformado, tudo fluir naturalmente. Quanto ao
sexo, isso uma beno, no se engane em pensar diferente. Mas foi dado como um presente
de Deus para os homens e mulheres que se comprometem um com o outro em fidelidade. O
casamento uma forma representativa do nosso relacionamento com Deus no futuro. A
Bblia diz que somos a noiva que Jesus vir buscar. Assim, o casamento aqui s um treino
para o nosso maior compromisso futuro, e o sexo, uma ddiva de Deus que gera a nossa mais
linda herana: os filhos.
79
Minhas lgrimas j escorriam suavemente ao ouvir tamanha sabedoria. Era isso que
eu desejava, esse amor to completo e verdadeiro. S no sabia se iria alcan-lo to logo eu
desejasse, j que o meu corao estava em cada espao preenchido.
Eu creio em tudo que disse Ana, mas ainda no sei o que fazer quanto ao Rico...
Ento pergunte ao seu melhor conselheiro, tenho certeza de que ele lhe dar a
resposta e ainda pode te surpreender no caminho...
Nos abraamos por um tempo e depois Ana orou por mim. Eu esperava realmente
absorver tudo que fora dito por ela.
Finalmente chegou a sexta-feira, eu mal podia esperar o final de semana para o meu
encontro-com-Dante. Sabia que ele, indubitavelmente, possua algum desconhecido antdoto
que imunizava Rico na minha mente enquanto estvamos juntos. Tinha falado com ele no
MSN e ele disse que na prxima semana viria me ajudar na compra do carro. Eu ainda
pensava no Rico, mas a distncia estava colaborando. Eu j no chorava tanto e estava
aprendendo com a Ana muitas coisas novas sobre mim e Deus.
Minha me estava especialmente feliz naquele final de semana. Ela e meu pai fariam
22 anos de casados no domingo e eu ficaria com Vitor para eles sarem. Eu tambm estava
feliz e animada, mas por outro motivo: tinha descoberto que havia vida-extra-Rico. Estava
conseguindo fazer alguns planos e almejando, quem sabe, at me divertir novamente. Eu
sabia que a segunda-feira no seria fcil, mas procurava no pensar nisso de forma alguma e
me sentia mais fortalecida.
s dez horas da noite Michele chegou e samos juntas para o show dos rapazes. No
caminho, Michele me contou que ela e Murilo trocaram muitos e-mails e que algo estava
crescendo entre eles. Eu sabia que isso era algo extremamente raro em se tratando de Michele,
por isso a incentivei a investir nesse relacionamento, mas que no fosse nada rpido demais.
Ela disse que sabia que isso era algo especial e que queria fazer tudo certo dessa vez. Mais
uma vez me orgulhei de minha amiga.
Quando chegamos, os meninos j estavam l afinando os instrumentos. Estava muito
frio, mas o bar estava cheio. Sentamos na parte interna do bar, na mesa onde estavam as
coisas deles. Dante me viu e abriu um sorriso especial, me acenando com a sobrancelha. Sorri
de volta, estranhamente tmida. Eu estava hesitante em relao queles sentimentos
inesperados sobre Dante, aquela satisfao anormal na sua presena. Era apenas Dante, o
irmo escalafobtico da minha melhor amiga. Mas ali, diante dele agora era como se eu
estivesse ante uma intempestiva, porm aprazvel apario. Quando ele se tornara to...
interessante? Fui subitamente raptada por minhas memrias e lembrei de quando conheci
Rico, do quanto eu o almejei de imediato e fiquei meio... enfeitiada por ele. Acho que o fato de
tudo ter sido to proibido devido diferena de idade e da posio na qual ele se encontrava
atiou mais o meu desejo. Mas agora, o que eu estava sentindo ali fazia e no fazia sentido. Era
como a bebida certa no copo errado. Era realmente inacreditvel para quem nos conheceu
fazendo guerra de travesseiros. ramos os mesmos, mas diferentes.
O evento comeou e ficamos ali, admirando-os, e no pude deixar de notar os olhares
furtivos de Michele e seu pretendente. Um grande grupo de jovens da cidade tinha vindo
prestigiar o evento e pude notar um considervel grupo de fs extasiadas por Dante. No
sabia que ele era to popular.
O show acabou e ainda havia uma fila de pessoas na espera por uma mesa. Dante e
seus parceiros vieram se sentar conosco. Outras meninas se juntaram a ns e imaginei serem
suas amigas. Uma delas o cumprimentou antes que ele chegasse at mim. Ele parou e
conversou alguns minutos com ela, rindo de vez em quando. Fiquei irritada por no conseguir
ouvir sobre o que eles falavam e intrigada porque ele estava to distrado com a dissertao
dela. Michele j confabulava alegremente com Murilo, enquanto eu aguardava com as mos
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entre os joelhos que meu anfitrio terminasse sua prosa. Felizmente o papo acabou, e enfim
ele me cumprimentou com um beijo no rosto.
Que bom que veio, Espoleta! Quer beber alguma coisa?
No, obrigada respondi, inadequadamente ressentida. O show foi timo! Tem
bastante gente aqui.
Temos muitos amigos na cidade! disse ele, enquanto chamava o garom.
E um largo f clube, pelo que notei... falei, com um falso sorriso.
Ossos do ofcio brincou ele, se gabando. Tenho boas notcias... continuou.
Fechamos o contrato com aquela gravadora do Rio. Na prxima semana estarei l
concluiu, pedindo um suco.
A semana toda? perguntei, eufrica
Sim respondeu ele, no entendendo a minha flagrante animao.
Seria perfeito para mim. Na primeira vez em que eu teria contato com o Rico de novo,
tudo que eu precisava era de um apoio to especial.
... disfarcei. Seria timo ter companhia para comprar o carro.
Voc quer fazer isso na prxima semana?
Sim.
Tudo bem, eu vou com voc, mas aviso logo que sou pechincheiro, no se
envergonhe.
Perfeito! respondi, me sentindo afortunada.
Ficamos por mais umas duas horas nos atualizando sobre os acontecimentos do
ltimo ano de nossas vidas. Claro que ele teve mais a contar do que eu, j que tudo que ele
precisava saber sobre mim tinha sido lido naquele constrangedor e-mail enviado Natasha.
Fomos sugados de volta ao mundo por Michele, dizendo que estava cansada e que queria
partir. Levantamos, e eles nos acompanharam at a calada.
Quer que eu te acompanhe at em casa? perguntou Dante, solcito.
No! protestou indevidamente Michele. Eu a levo.
Ele me olhou surpreso e disse:
Ok, pelo visto voc est bem protegida e me beijou no rosto.
Seu perfume era deleitosamente agradvel. Sorri, conformada, mas querendo
estrangular Michele.
Quando samos e demos alguns passos, olhei para ela, pasma:
O que foi aquilo? perguntei, furiosa.
J falei que isso especial! afirmou ela com ar de dignidade.
Voc falou de voc e do Murilo, no tire concluses por mim.
obvio que voc est caidinha pelo Dante, mas no foi por voc que fiz isso. Se ele
viesse, Murilo viria tambm e eu estou gostando mesmo dele... Achei a justificativa
descabida, mas ela concluiu: Quero que tudo caminhe muito devagar, que ele fique na
expectativa de me ver. Assim, sei que na hora certa tudo acontecer. No podemos ser to
acessveis, temos que dificultar.
Eu estava boquiaberta com a astcia de Michele, pois sabia que ela desejava aquela
companhia tanto quanto eu, mas mesmo assim achei louvvel. Parecia uma deusa pag do
amor proferindo suas tticas para fazer o homem amado cair em suas redes. Eu tinha muito
que aprender com ela...
Ainda estvamos caminhando quando o celular dela tocou e vibramos quando vimos
que j era Murilo. Ela se acalmou, atendeu tranquilamente, respondeu monossilabicamente s
perguntas que foram feitas e me senti includa em algo com um ela vai sim, finalizando com
um s sete est bom piscando pra mim.
Quando desligou, me contou que havamos sido convidadas para uma caminhada at
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uma cachoeira em Bonfim na manh seguinte. O plano funcionou!
Dormi na casa de Michele para eles nos pegarem l. Acordamos s cinco horas da
manh para testar mil mudas de roupas e biqunis e para arrumar o cabelo. Eles chegaram
pontualmente, mas demoramos uns dez minutos para sair a conselho de Michele para
aumentar a expectativa masculina. Minha ansiedade no me permitia ser to criteriosa.
Talvez se eu tivesse feito isso com Rico... Ah, deixa pra l.
Samos caminhando elegantemente com nossas mochilas nas costas. Entramos no
carro e colocamos um CD da banda deles para ouvir no caminho. Quando chegamos ao
comeo da trilha, eu no pude deixar de constatar que era ngreme, tipo muito ngreme.
Duvidei que chegaria no meio da subida, mas no falei nada pois isso deveria estar fora das
normas e regras de seduo do manual de Michele. No estava convencida de que queria
seduzir Dante... e nem de que no queria. S ansiava pela presena dele quase o tempo todo
desde que o revira, mas podia ser s amizade ou uma compensao inconsciente pela falta de
Rico.
Fiquei surpresa com a minha fora e disposio, demorei mais do que Michele para
ficar cansada, fui um verdadeiro prodgio. Ela parou, fazendo um certo charme, e Murilo
resolveu esperar por ela enquanto eu e Dante apostvamos corrida ladeira acima. Ele estava
sempre na minha frente, mas de vez em quando eu o puxava pela blusa e ele se deixava ser
ultrapassado. Quando chegamos ao topo, vi um rio correndo e uma linda queda dgua a
poucos passos de ns. Andamos at perto da queda e nos sentamos margem dela, enquanto
aguardvamos pacientemente os pombinhos relutantes.
Est em forma, hein Espoleta! exclamou Dante, j bastante suado.
Sua pele estava corada e seu cabelo molhado de suor. Sua blusa estava agarrada no
corpo, mas ele no fez meno de tir-la... infelizmente. Angeliiiina... Sabia que ele tinha uma
postura diferente, seus princpios regiam sua conduta e ele era respeitoso, o que o tornava
ainda mais fascinante. Imaginei que isso talvez estivesse instigando esse meu imprevisvel
interesse por ele: o fato dele no ser to... disponvel. Eu gostava de uma certa dificuldade, s
que essa dificuldade no era proibida, ou errada como com o Rico. Dante pensava como eu,
tinha as mesmas crenas e valores, a mesma idade... Comecei a cogitar a ideia de ser a bebida
certa para o copo certo.
Olhvamos a cachoeira quando ele jogou a mochila no cho, olhou maliciosamente
para mim e, dando alguns passos pra trs, sugeriu que iria se jogar:
Que tal um refresco? sugeriu.
Olhei a altura da queda e o fitei, aflita com as suas intenes.
Dante, no! muito alto! implorei inutilmente.
Mas tambm muito fundo! retrucou ele, divertido, conseguindo me assustar.
Determinado, saltou sem medo, de cabea, explodindo no lago abaixo. Fiquei espiando,
trmula, esperando-o emergir. Segundos depois pude contempl-lo balanando o cabelo
fotograficamente para trs e me incentivando a tomar a mesma deciso. Ainda o contemplava
indecisa quando Michele e Murilo se arremessaram no ar por trs de mim, arrebentando ao
lado dele na gua. S faltava eu, com um porm: meu pnico de altura. Eu j havia
inacreditavelmente pulado de asa delta com o Rico, mas por ele na poca teria ido parar
debaixo de um trem se ele pedisse. Agora, eu estava sozinha com as minhas fraquezas.
Michele e Murilo nadaram at uma pedra prxima e se sentaram juntos, me
aguardando. Dante me olhava e dizia:
Confie em mim.
Ele no sabia como a sua solicitao fazia sentido, duplamente. Resolvi que estava na
hora de comear a expulsar os medos que me paralisavam e aquele seria um bom comeo.
Pular naquela queda dgua seria fcil, se comparado ao meu pavor de me relacionar de novo.
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Mas, ainda assim era um grande desafio. Tirei minha blusa num ato de coragem e um aplauso
conjunto de incentivo me motivou a continuar. Tirei o short e conferi se estava tudo certo
com meu biquni. Repensei se valia a pena o risco ou se no seria melhor descer pela lateral,
andando. Mas eu j tinha seguido muito atalhos para alcanar os meus objetivos e queria
fazer as coisas do jeito certo dessa vez. Fechei os olhos, decidida, e me lancei corajosamente
no ar, enfrentando meus fantasmas. Colidi com a gua num impacto de libertao. Ainda
estava submersa quando percebi como o lago era profundo. Abri os olhos e no enxerguei
nada minha frente. Procurei a luz para segui-la at em cima, quando senti algum agarrar
meu brao e me puxar para a superfcie. Ao subir, deparei com Dante me sustentando em
seus braos e deduzi que estava nas mos certas. Ele me observou sorrindo por alguns
instantes, empolgado com a minha bravura, e eu correspondi ao seu olhar, hipnoticamente
satisfeita. Um feixe de luz do sol incidia bem em cima de ns, foram segundos que me
pareceram anos.
Num mpeto de lucidez ele me soltou, aturdido. Percebi que, tambm para ele, aquela
proximidade era penosa de assimilar.
Nadamos para a pedra, acanhados com nossos pensamentos. Ficamos ali algumas
horas conversando, eu ao lado de Michele e Dante ao lado de Murilo. Lanchamos e vimos que j
devia estar ficando tarde. Ento, resolvemos voltar. Eu e Michele j estvamos secas, mas os
meninos ainda se encontravam um pouco midos, pois haviam pulado de roupa e tudo. Nosso
casal amigo seguiu na frente, aos risos e cochichos. Eu e Dante os seguamos logo atrs, nos
entreolhando de vez em quando tentando no ser pegos. No falamos muito na volta. Depois
de eu ter tropeado num incontvel nmero de razes e pedras e estar a menos de dez minutos
do final da trilha, algo previsvel aconteceu: tombei, batendo com a cabea num galho baixo
acabando com a minha indefectvel jornada. Dante correu para me levantar, fiquei tonta por
alguns segundos e depois coloquei a mo na cabea vendo que sangrava um pouco. No dava
para ver o ferimento por causa do cabelo, mas pela quantidade de sangue no achei que era
muito grave. Dante entregou minha mochila para Murilo, me colocou no colo e se ps a
caminhar comigo pelo resto do caminho. Achei um exagero total, mas no pensei em abdicar
daquela apetitosa cilada. Enquanto ele me carregava, conferindo o caminho para no cairmos
os dois juntos, fiquei mirando sua pele de seda e seus lindos cabelos molhados balanando
enquanto andava. Percebi que seus braos eram mais fortes do que eu havia notado e me
senti confortavelmente amparada.
Ao chegar em casa, depois de ouvir algumas piadas sobre o meu desagradvel
incidente durante o caminho, sa relutante do carro me despedindo de todos. Tinha esperana
de que haveria mais algum convite para mais tarde, mas nada surgiu. Fui direto para o
banheiro, queria tomar um banho e examinar se o nublado ferimento ainda sangrava. Graas
a Deus, no. Segui para o meu quarto e deitei na cama, tentando entender o que estava
acontecendo comigo. H pouqussimo tempo eu s pensava em Rico e achava que morrer de
saudade seria uma questo de dias. Agora, estava ali, ainda com medo de encontr-lo no dia
seguinte, mas com pensamentos e desejos incrivelmente divididos.
Tomei banho, arrumei minha mala e fui brincar com Vitor para meus pais poderem
sair. Quando finalmente consegui botar meu irmozinho na cama, fui fechar a janela do seu
quarto e observei que Dante estava em frente minha casa, com seu violo nas costas,
caminhando indeciso pelo gramado. Fiquei escondida, espreitando, torcendo para ele tocar a
campainha. Em certo momento ele deu trs passos para trs e se virou, indo embora. Se no
fossem as minhas obrigaes familiares, eu sairia correndo atrs dele pela rua.
Dormi profundamente bem como, no acontecia h tempos. Acordei s cinco horas da
manh, pois pegaria carona com a me da Michele at a faculdade. Antes de levantar, me
lembrei do que teria que enfrentar naquele dia e uma pontada aguda atingiu meu corao. A
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recordao me tirou a fome. Acabei de me arrumar, peguei meus pertences e parti.
A faculdade estava cheia, por todo lado havia pessoas sentadas no gramado e
estudando. As provas finais estavam chegando e muitos trabalhos deveriam ser entregues.
Passei ilesa pelo primeiro e segundo tempo de aulas. Enfim, chegou o momento que eu mais
temia. Eu estava indisfaravelmente tensa com aquele relacionamento em suspenso. Tomei
coragem e segui para a sala onde encontraria com Rico. Antes de chegar, o avistei de longe.
Mudei de trajeto e pensei em me demorar mais um pouco, para entrar quando a aula j tivesse
comeado. Assim, no precisaria lhe dirigir a palavra, seria a rainha da frieza e indiferena.
No vendo outra sada segui adiante. Entrei quando vi que a sala estava cheia demais para ele
se reportar a mim em particular e fiquei chocada com o ntido abatimento em seu rosto. Ele
estava meio barbudo e despenteado no que isso ofuscasse sua teimosa beleza , mas
senti raiva de mim por estar to preocupada com ele. Ele olhava cadernos e livros, sentado
sua mesa, cabisbaixo. Tive a impresso de que ele no procurava nada e s estava ganhando
tempo. Colocou-se de p e levantou a cabea para a turma, passando os olhos por mim
rapidamente e depois prosseguiu com a aula. Logo no incio da sua dissertao, um aluno
atrasado entrou e se dirigiu a ele, sussurrando:
Meus psames... Rico acenou, agradecendo com a cabea.
Meu estmago revirou! No sabia o que havia acontecido, mas imaginava. Ser que o
pai dele estava to ruim assim? Isso explicava sua licena na ltima semana.
Tive uma vontade imediata de abra-lo, mas contive meu mpeto diante da classe.
Como eu queria ter estado ao seu lado naquele momento... Mesmo sabendo que ele no era
muito apegado famlia, imaginei a culpa que ele estava sentindo por no ter mandado o
dinheiro e o que ele devia ter ouvido de sua nada amvel me. Meus ressentimentos ficaram
de lado e uma grande compaixo tomou conta de mim, mas eu sabia que havia amor
reprimido misturado quilo tudo. Quando a aula terminou, esperei pacientemente que todos
se ausentassem, enquanto ele guardava suas coisas com uma feio aptica. Enquanto ele
ainda olhava a mochila, disperso, me aproximei e o surpreendi, colocando a minha mo sobre
a dele. Ele parou por uns instantes e levantou os olhos, no havia mais ningum ali. Coloquei
meu material sobre a sua mesa e fiz meno de abra-lo. Consternado e inconsolvel, ele
comeou a chorar em meus braos. Chorei, tambm compadecida do seu sofrimento. Pensei
em como seria mais fcil para ns dois se nada daquilo tivesse acontecido. Se ele no tivesse...
eu teria lhe dado o dinheiro. Mas no era o momento para julgamentos. Depois de alguns
segundos, ele recuou a cabea e me olhou, apertando os lbios como que travando as palavras.
Seu olhar era de arrependimento e desconsolo. Ele passou a mo no meu rosto e a sua face se
contorceu, levando-o de novo a chorar. Subitamente, ele pegou suas coisas e saiu, enquanto eu
fiquei ali, sozinha com todas as minhas dores, explodindo dentro de mim para abafar as
emoes.
O dia seguiu, sombrio. noite me dediquei leitura da Bblia com Michele e fiquei
feliz porque iria me reunir com Ana pela manh. No dia seguinte, ficamos espantadas ao ver
como o nosso grupo aumentara, devia haver umas 30 pessoas ali. A notcia de nossas
reunies matutinas tinha se espalhado at a outra repblica e Ana precisou falar mais alto
para que todos a ouvissem. Porm, dessa vez no foi s ela que falou. Alguns a interrompiam,
fazendo colocaes e contando suas experincias com Deus. No final, houve algumas
indicaes de livros e DVDs e uma conversa animada. Nossa orao foi unnime no
sentimento de gratido pelo que estava acontecendo. Sa de l edificada e me sentindo bem
mais firme na f.
Aps a aula me dirigi sada da faculdade. Testemunhei Michele distncia se
levantando do gramado alegremente, olhando para o celular e correndo em direo
repblica. S havia um motivo para tanta felicidade: Murilo devia ter chegado. Apressei o
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passo e, ao me aproximar, reconheci o seu carro. Mais adiante, os pombinhos se abraavam e
sorriam um para o outro. Uma onda de frustrao me acertou ao perceber que Murilo estava
s. Passei desapercebida por eles, que no tinham olhos para o mundo ao seu redor. Subi as
escadas olhando cada degrau quando, enfim, deparei com a minha triunfante viso: Dante,
sentado solitrio no sof da saleta. Aliviada, me escorei na porta. Ele notou a minha presena
e, desviando os olhos da TV, levantou-se com um largo sorriso. Caminhei at ele e o abracei,
beijando-o no rosto em seguida.
Voc veio... constatei, estupidificada.
Ansiosa pra comprar seu carro?
Sim disfarcei o interesse.
Quando quer ir?
Quando voc puder.
Pode ser hoje...
Vou me trocar e j volto falei, j com o p no primeiro degrau.
J almoou? perguntou ele, sugestivo.
Comemos no caminho respondi, subindo correndo.
Michele e Murilo preferiram ficar, ela tinha resolvido fazer um piquenique la Rico
no terrao, roubando minhas lembranas. Almoamos num fast food, pois eu estava ansiosa
para mostrar a ele o carro que eu queria. Chegando na concessionria, fui direto ao objeto do
meu desejo, abrindo suas portas e falando de todas as vantagens do veculo. Parecia que eu
estava vendendo o carro para ele. Dante ficou surpreso de ver como eu tinha colhido bem
todas as informaes e dispensei comentar que boa parte delas me tinham sido dadas pelo
Rico. Ao final da minha apresentao, ele questionou:
Pelo visto, minha vinda foi intil, voc j sabe o que quer.
Precisava de apoio moral brinquei. Mas, voc gostou?
a sua cara disse ele, me agradando.
Fechamos negcio e voltamos para a faculdade comemorando. Eu iria pegar o carro na
sexta-feira antes de ir a Petrpolis e estava animadssima com mais essa etapa vencida.
Chegamos na repblica por volta de seis horas da tarde e j estava escurecendo.
Quando entramos, Michele e Murilo assistiam TV, abraados. Suspeitamos ter perdido algo,
mas no comentamos nada. Quando me viu, Michele pediu que eu fosse ao quarto com ela
para preparar um caf. No entendi o motivo de tanta cerimnia com os meninos mas subi,
acompanhando-a. Ao entrar no quarto, ela me disse que tinha comentado das reunies de Ana
com Murilo e ele tinha se interessado em participar. Como o hotel deles era muito longe, ela
sugeriu que eles dormissem ali, pois o evento era muito cedo para eles voltarem a tempo. No
incio, fiquei apreensiva com a possibilidade. Eu j estava com ideias demais na cabea sobre
Dante e no queria ter oportunidade de fazer uma besteira. Aps Michele praticamente
implorar, concordei, mesmo que ainda receosa.
Ela desceu, estupidamente feliz e sem nenhum caf na mo para disfarar. Dante
sorriu de leve com a notcia, apertando os lbios para no manifestar seu aparente
contentamento, que na verdade era meu tambm. Pedimos uma pizza e comemos l em baixo.
Michele e Murilo subiram para arrumar o lugar onde os meninos dormiriam, no cho.
Ficamos mais um tempo conversando, eu contei sobre a nossa tradio de ler a Bblia juntas
toda noite e decidimos que iramos fazer isso todos juntos naquela noite tambm. Eu estava
radiante, at ser apanhada de surpresa com a apario do Rico na sala, nos olhando
evidentemente encolerizado. Empalideci com a presena dele e me levantei. Dante fez o
mesmo. Rico se aproximou altivo e disse:
Preciso falar com voc olhando com desprezo para Dante.
Sua atitude me irritou, me fiz de surda e fiz as apresentaes.
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Dante, esse o meu professor, Alderico. Professor, esse Dante, um amigo muito
querido.
Dante se endireitou ao perceber com quem falava e estendeu a mo educadamente,
cumprimentando-o com um polido e duro muito prazer. Sua mo ficou ali, desocupada,
enquanto eu cravava meus olhos no Rico, irritada com aquele comportamento. Peguei a mo
de Dante, que pairava sozinha no ar, e fiz meno de que iria subir com ele, dizendo:
J estvamos de sada, fique vontade.
Rico amortizou sua arrogncia inicial e visivelmente mais humilde insistiu:
Pode me ceder alguns minutos?
Claro, pode falar concedi, soberba.
A ss retrucou ele.
Dante soltou a minha mo, desviando a minha ateno para ele e pude ver seu
desagrado com aquela situao.
Vou subir declarou ele marchando escada acima e fazendo eu me sentir culpada.
Impaciente, virei para Rico e perguntei:
O que faz aqui?
Precisava te ver. No conseguimos conversar direito mais cedo.
No temos nada a falar, Rico. Sinto muito pelo que aconteceu com seu pai, de
verdade, mas no h assunto pendente entre ns.
Voc sabe que h disse ele, persuasivo, dando um passo frente e me
hipnotizando com aqueles olhos que faziam meu corpo ficar dormente.
Minha cabea disparou a tecla perigo quando ele chegou mais perto. Recuei um
degrau, indecisa.
No h mais motivos para ficarmos separados... falou ele. Tudo que eu
precisava saber sobre ns, agora eu sei. Fui um idiota expondo voc quela situao
imperdovel, mas voc sabe que eu te amo, nunca mais quero correr o risco de te perder. Sei
que voc forte o bastante para me perdoar...
Ele se aproximou mais, subindo um degrau abaixo de mim e o meu corao parecia
que iria explodir.
Minha vida est nas suas mos, meu anjo, sempre esteve. Voc foi a melhor coisa
que me aconteceu, s voc pode dar jeito em mim. Eu sou seu, sempre fui e sei que voc
minha tambm... disse ele, a centmetros do meu rosto.
Eu estava incomodamente tentada a ceder, foram os segundos mais perturbadores da
minha vida. De repente, como um flash, revi o rosto de Dante na cachoeira e me lembrei da
paz que senti ali com ele. Depois, me lembrei do meu desespero ao descobrir toda a verdade
sobre Rico, das coisas que estava aprendendo com Ana sobre o verdadeiro amor, que no
trazia dor, da palavra que Deus me deu no meu quarto quando estava solitria e sofrendo...
Fechei os olhos, apertando-os para raciocinar com a cabea e no com o corpo. Enfim,
numa atitude consciente e decidida, o afastei levemente para longe com a minha mo. Ele se
surpreendeu com a minha atitude, assim como eu.
Voc est certo sobre uma coisa... admiti, perplexa. Sou bastante forte pra te
perdoar... e tambm bastante forte pra te esquecer conclu, abrindo os olhos. V
embora, Rico. Vou gastar cada fio de energia que me sobrou para colocar o que tivemos numa
zona neutra da minha memria. No h mais espao na minha vida pra voc. Alis, voc
ocupava espao demais em mim, lugares que no eram seus, que eram da minha famlia, dos
meus amigos, dos meus interesses e principalmente de Deus. Eu estava abdicando de tudo isso
por voc, me anulei completamente. Quero algum que me respeite! E que principalmente
tenha as mesmas prioridades e princpios que eu. Acabou!
Ao finalizar meu espantoso discurso, subi a escada, vitoriosa, sem olhar para trs. Eu
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estava pulando de novo no lago e no sabia quo profundo seria.
Quando entrei no quarto, me apoiei no batente da porta, ainda impactada com av
minha atitude. Todos me fitavam, ansiosos. Dante estava sentado em minha cama, temeroso e
especialmente interessado. Sorri para Michele como que revelando o acontecido e caminhei
at Dante, me sentando ao seu lado. Minha companheira sorriu de volta e me ofereceu, com ar
festivo:
Caf?
Sim eu disse.
Todos j estavam tomando.
Um brinde! sugeriu ela.
A qu? perguntou Murilo, distrado.
Ao livre arbtrio! sugeriu Dante, peculiarmente contente.
Brindamos amigavelmente e depois lemos a Bblia juntos at as trs da manh. A cada
minuto que passava, eu percebia o quanto estava certa sobre a escolha que havia feito
naquela noite.
CAPTULO X
EVENTO INUSITADO
No dia seguinte mais novidades nos aguardavam, havia cinquenta pessoas
no lago e eu estava impressionada com a velocidade que essa empreitada tomava.
Minha surpresa foi maior quando vi Desiree se unir ao grupo, convidada por Michele.
Ana cumprimentava os novos convidados um por um, parando s vezes com algum
deles e ouvindo suas histrias. Quando chegou at ns, apresentei-a a Dante e Murilo
e falei de seus dons musicais. Ana ficou especialmente interessada nisso e pediu que
ficssemos aps o trmino da reunio para conversar.
Como da ltima vez, comungamos agradavelmente com a participao de todos nos
assuntos levantados. Eu ficava extasiada com os tremendos testemunhos de f que se
apresentavam ali. Nunca imaginei que aprenderia tanto sobre relacionar-se com Deus e em
to pouco tempo. Nossos convidados tambm se identificaram muito com o jeito despojado e
tranquilo de Ana levar a Palavra, ela no se colocava numa posio superior e tratava a todos
dando-lhes igual importncia. Refleti sobre a sua coragem de viajar sozinha com um
propsito que lhe exigia toda a ateno. Pela idade, Ana j deveria estar se preocupando em
talvez casar e constituir uma famlia, mas ela no parecia interessada em romance e muito
menos em seduzir algum. Estava sempre vestida com bermudas e blusas neutras, suas
sandlias rasteiras intercalavam com tnis confortveis, sua beleza invejvel s aparecia
quando ela abria a boca. Ela era cheia do Esprito de Deus, suas palavras tocavam os coraes
mais desconfiados, as pessoas se sentiam vontade com ela. Naquele dia, Desiree recebeu
Jesus junto com mais duas pessoas, me fazendo chorar.
Quando tudo terminou, aguardamos ela se despedir de todos. Ela se dirigiu a ns,
contente com a colheita daquele dia.
Vamos continuar em orao comentou ela, alegremente. Deus tem feito
maravilhas trazendo todos esses jovens aqui.
Constatei que esse era o segredo do sucesso da jornada: a orao. Resolvi que incluiria
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essas pessoas em minhas preces tambm.
E ento, Dante? iniciou ela a quantas anda o seu cach?
Depende respondeu ele sorrindo Pra que seria?
Bem, eu e o grupo estamos impressionados com o avivamento que est
acontecendo por aqui. Fora essas reunies, muitos jovens tm me procurado para conversar
e trazido ainda outros para serem aconselhados. Alguns pais tambm nos procuraram
dizendo que tudo isso foi resposta de suas oraes. Como no ficaremos aqui muito tempo,
queremos alcanar o maior nmero de pessoas possveis nesse local. Ento, tivemos uma
ideia: vamos organizar um grade show para o final do perodo. Gostaramos de contratar uma
banda gospel, faremos brincadeiras e haver uma Palavra. Pensamos em colocar algumas
barracas de lanches para atrair o pessoal tambm, mas... sabe como : no tempos muita
verba. Temos algumas pessoas que fazem doaes voluntrias para o grupo de misses, mas
no o suficiente. Repassamos parte dessa verba para bancar algumas internaes de ex-
viciados tambm. Portanto, peo que pense num preo justo. O que acha?
Olhei para Dante, entusiasmada com a possibilidade de acontecer um show dele ali.
Ele me olhou e sorriu acanhado, concordando.
Use a verba para outros fins, vamos tocar com o maior prazer, pode contar com a
gente.
Ana agradeceu, enternecida, e eu cheguei concluso que estava, indubitavelmente,
apaixonada por ele. Lembrei-me de Rico e fiquei confusa, pois eu achava que ainda o amava.
No entendia como aquele amor, cativante e potencialmente destrutivo, podia coexistir, no
sem alguma tenso, com outro tipo de amor, como o que eu sentia por Dante. Lembrei-me das
palavras de Ana em nossa conversa: talvez, o que eu sentia por Rico fosse mais uma... paixo,
ou dependncia emocional. J Dante no era como uma droga para mim e sim como o ar
fresco e a luz do sol. Isso fazia todo sentido. Parei, pensei mais uma vez e cheguei a uma sbita
e espantosa concluso: estava livre, no amava mais o Rico.
A semana correu maravilhosamente. Na nica aula que teria com o Rico, ele faltou.
Fiquei muito tempo com Ana e Dante planejando o evento, estava responsvel pela
organizao geral. Pessoas j me procuravam querendo participar e eu era pura alegria.
Contei aos meus pais o que estava acontecendo e percebi a felicidade na voz da minha me.
Nos dias que os meninos ficaram no Rio, se alojaram o tempo todo conosco. Porm,
arrumamos um quarto ao lado para eles, junto com outros dois meninos do grupo da Ana.
Lamos sempre a Bblia e nos divertimos muito planejando tudo. O namoro de Michele e
Murilo fora abertamente declarado, e ele iria conhecer a me dela no final de semana.
Enfim, chegou o dia de eu pegar meu carro. Dante foi comigo, pois eu temia dirigir na
estrada sozinha, j que tinha tirado a carteira recentemente. Ao entardecer, partimos para
Petrpolis. Eu agora amava visitar minha terrinha, com seus croquetes e salsichas alems.
Conversamos descontraidamente pelo caminho, comentando sobre o imediato florescimento
do romance de Michele e Murilo depois de se reverem. No caminho, Dante puxou um assunto
inesperado.
Como voc tem se sentido esses dias?
Estranhei a pergunta, j que ele tinha ficado comigo o tempo todo, exceto uma tarde
em que fora assinar o contrato com a gravadora.
Estou tima, por qu?
Bem... pausou ele, olhando para a frente quando cheguei aqui voc estava
bem arrasada por causa do... ele no terminou a frase, com medo de me magoar.
Do Rico conclu. Tambm achei que fosse demorar mais tempo para
recomear, ainda sinto as feridas cicatrizando. Mas posso afirmar que Deus tem feito seu
trabalho direitinho. Alm do qu... pestanejei pelo que iria dizer muita coisa mudou.
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Quer dizer que, em breve, voc talvez esteja pronta para comear outro
relacionamento afirmou ele, ainda imvel no volante.
Talvez instiguei , mas quero algum que pense como eu. Eu amava o Rico, mas
ele precisaria mudar muito para se transformar no homem que sempre sonhei.
Mas, se ele mudasse... indagou ele, curioso.
No acredito que isso v acontecer. falei, encerrando o assunto.
Nesse momento o carro comeou a engasgar, at que depois de andar lentamente
alguns metros parou de vez.
Olhei para ele e comentei:
Como pode ser? O carro zero?
Mas no movido a ar disse ele olhando para mim, pronto para disparar uma
risada. Assim que o fez e eu o acompanhei. Na mesma hora comeou a chover.
No acredito! falei, preocupada.
Bem, tem um posto a mais ou menos um quilmetro daqui, vou l buscar gasolina.
No! gritei No quero ficar sozinha, j est escuro.
Est certa disse ele , vamos juntos.
Ele saiu colocando sua carteira no bolso, foi at o meu lado do carro me cobrindo com
a sua jaqueta e me posicionando ao seu lado, fora da estrada. Comeamos a caminhar
abraados e chegamos concluso de que a jaqueta dele e nada era a mesma coisa, j que a
chuva era fina e mas ventava muito. Para culminar, havia neblina pela estrada ofuscando a
nossa viso. Entregues chuva, nos libertamos das jaquetas, mas continuamos abraados.
Percebemos uma luz e vimos que de trs de ns vinha um caminho. Dante me colocou no
acostamento e, esperanoso, foi pedir carona, mas o coitado foi acometido por um banho de
lama pelo motorista insensvel. Levei a mo boca, perplexa com o ocorrido. Ele se virou
lentamente para mim, todo enlameado e srio e, diferente do que eu esperava, caiu na
gargalhada. No pude evitar de fazer o mesmo. Resolvemos ir a p, mesmo arriscando pegar
um resfriado. Tambm tomei algumas rajadas de lama dos carros que passavam na estrada.
Chegamos ao posto e Dante resolveu procurar um banheiro para se limpar. No nico que
havia pia, no havia gua. Eu estava doida pra me lavar, j que estava encharcada da chuva e
queria pelo menos tirar a lama. Foi ento que avistei uma mangueira, peguei-a sorrateira
sem o Dante ver. Quando ele saiu do banheiro dos homens, decepcionado com a pia seca,
peguei-o de surpresa com um jato da mangueira. Ele tomou um susto e correu atrs de mim,
tomando-a da minha mo e me dando um banho tambm. Ficamos ali, nos divertindo igual
quando ramos crianas com a plateia do posto nos assistindo. Esperamos nos secar um
pouco e comemos dois pes de queijo e chocolate quentes. Ainda midos, conseguimos
carona na caamba de uma Kombi para voltar at o carro. O mesmo estava l parado, com o
pisca - alerta ligado. Abastecemos com a gasolina que compramos no posto e partimos.
No dia seguinte, eu estava obviamente gripada, e a voz do Dante ao telefone me
confirmou que ele tambm. Ele estava preocupado com a voz devido gravao que teria na
segunda-feira. A boa noticia era que Natasha voltaria na prxima semana, isso significava que
ela iria participar do show.
Passei o final de semana de cama sendo mimada pelos meus pais. Vimos filmes e
comemos muita sopa. Meu pai deu um trato no carro e tratou de fazer um seguro para que,
em ocasies como aquela, eu ter um reboque disposio. Achei excelente.
As semanas que se seguiram foram corridas. Eu estava me esforando para cuidar do
evento, estudar para as provas finais e me recuperar em todas as matrias em que havia me
afundado desde quando estava com Rico. Ainda precisei dar ateno a Natasha, que tinha
chegado, e claro, ter tempo de suspirar pelo Dante. Michele ficou um pouco enciumada, mas
logo fez amizade com Natasha tambm. Ela mesma ainda no sabia do meu interesse por seu
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irmo, eu tinha medo que ela interferisse. Queria que tudo corresse naturalmente se fosse da
vontade de Deus, mas na verdade eu imaginava que era uma questo de tempo. Eu notava o
prazer dele na minha companhia tambm, e no me importava em esperar nosso momento
chegar, apesar de estar ansiosa por isso.
Coloquei Carla e a me respectivamente responsveis por coordenar as comidas das
barracas e a equipe de limpeza do local, elas ficaram super empolgadas com as tarefas.
Ignorar o Rico j era tarefa fcil, praticamente s nos vamos dois dias de aula por
semana. Ele tentou se aproximar algumas vezes por assuntos diversos, mas eu fui firme em
mant-lo afastado. Ns poucas vezes em que ele me viu com Dante, fuzilou-o com os olhos. Mas
Dante, assim como eu, o ignorou.
Natasha se envolveu rapidamente com a equipe de Ana, principalmente com um
membro em especial: Thiago. Ambos andavam juntos para cima e para baixo e ela passou
vrios dias na repblica comigo por causa dele.
Os preparativos corriam bem e na ltima semana de provas Natasha foi convidada
por Ana para acompanh-los na prxima viagem ao norte do pas. Ela reconhecera seu dom,
Natasha sabia que havia nascido para isso e aceitou na hora. Mas uma vez eu iria ter que me
despedir dessa amiga amada, mas eu sabia que ela estava feliz e era isso que importava. Alm
do mais, eu planejava entrar para a famlia em breve...
s vezes, a espera por esse dia me angustiava e eu questionava se Dante tinha
realmente os mesmos sentimentos por mim. Mas a dvida se extinguia sempre que ele
aparecia e me olhava como se eu fosse a nica pessoa na face da Terra.
No ltimo final de semana anterior ao evento, Natasha j estava namorando Thiago e
o levou para conhecer a famlia em Petrpolis. Fui convidada para esse jantar de honra e,
quando cheguei, a me de Natasha me recebeu felicssima pois no nos vamos h tempos.
Ela conseguiu, de uma s vez, tirar meu casaco, me dar um beijo na testa e me conduzir para
a cadeira ao lado de Dante. Eu j me sentia parte dessa famlia desde pequena.
Decidimos que haveria uma sesso pipoca depois do jantar com fitas de quando
ramos pequenos. Eu estava na maioria delas, com certeza seria engraado. O jantar foi
animado e eu olhava para todos com carinho por serem to especiais para mim. A me de
Dante toda hora ajeitava o cabelo dele, o pai de Natasha fazia um descontrado interrogatrio
com Thiago, enquanto Natasha me olhava, vermelha com a situao. Dante puxava o cabelo
dela de vez em quando, se divertindo a cada pergunta capciosa que o pai dela fazia Thiago, e
eu segurava as gargalhadas. Refleti que esses peculiares laos de famlia que faziam a vida
valer a pena. Logo percebi que a presena de Thiago fora aprovada naquela casa. Ele era um
rapaz moreno, de porte mdio e traos indgenas. Seu temperamento era acanhado e calado,
ele vinha do Maranho. Apesar de sua timidez, Thiago era o alicerce das misses. Era ele
quem cuidava da parte prtica da coisa. Organizava as viagens, estadias e passaportes dos
missionrios.
Depois da sobremesa, fui raptada por Dante pela mo e samos despercebidos da sala.
Ele me levou ao segundo andar, parou no corredor e me disse:
Quero te mostrar uma coisa.
Entramos no seu quarto e vi que havia muitos papis jogados em cima da cama junto
com o seu violo. Era um quarto simples e pequeno, com uma cama de madeira e um armrio.
Havia uma prateleira que ele usava como escrivaninha. No pude deixar de perceber uma
antiga foto minha jogada em cima dos livros, me aproximei e peguei a foto. Ele sorriu sem
graa e disfarou pegando o violo.
Voc precisa de uma foto mais recente falei, brincando.
Vou providenciar disse ele me dando uma olhadela e voltando-se para as cordas
do instrumento. Fiz uma msica e quero que voc escute.
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Puxei a cadeira que estava perto da prateleira e, entusiasmada, me sentei na frente
dele.
Eu vou ser a primeira a ouvir? Que mximo! um louvor? perguntei, amarrando
o cabelo.
No respondeu ele, sem me olhar.
E ento ele comeou a tocar uma melodia suave e tranquila, que me trouxe paz
imediatamente. Sua voz doce se apoiava com harmonia e suavidade nos tons tocados. No
incio, pela letra, pensei que se tratava mesmo de um louvor, pois ele enaltecia algum falando
do prazer de sua presena. Com o decorrer da msica percebi que ele cantava para uma
mulher, para um amor. Ele se referia pessoa como guas tranquilas do meu corao,
exatamente como eu o imaginava para mim. Fiquei entorpecida com as palavras
encantadoras e sua linda voz. Desejei ardentemente que ele tivesse escrito tudo aquilo para
mim. Quando ele terminou, meus olhos estavam lacrimejantes.
Ele no olhou para mim de imediato e perguntou, afinando o violo:
Gostou?
No tive outra resposta, seno:
a cano mais linda que j ouvi na minha vida!
Ele olhou para mim com uma doura nos olhos que antes nunca havia arriscado
apresentar e confessou:
Fiz pra voc.
Suas palavras fizeram fogos de artifcio disparar na minha cabea, eu no acreditava
que tinha tanta sorte...
Ele tirou o violo do colo e o colocou de lado, depois puxou minha cadeira para mais
perto dele fazendo um frio percorrer a minha espinha. Reconheci que estava explodindo de
amor por ele. A msica ainda soava na minha cabea. Tive certeza que, por um amor como
esse, eu andaria na chuva com ele de novo, tomaria banho de lama sem reclamar, iria a p do
Rio a Petrpolis s para v-lo e decoraria todos os versculos da Bblia se fosse necessrio. Eu
ansiava por um toque carinhoso dele mais do que do ar que eu respirava. A espera havia
alimentado esse sentimento, tornando-o mais poderoso do que eu jamais imaginara. Eu no
estava mais com medo, sentia que o cho era firme.
Ele comeou a se aproximar do meu rosto lentamente e eu olhava nos seus
espetaculares olhos azuis sem acreditar. Finalmente estaramos juntos... Eu estava a ponto de
desmaiar quando chegamos a encostar no nariz um do outro, ainda sentindo o momento,
quando, de repente, a porta estourou desagradavelmente para dentro, com Natasha e Thiago
nos chamado pra ver as fitas de nossa infncia. Passado o susto, eu e Dante nos olhamos e
trocamos um sorriso cmplice. Nossos invasores nos puxaram com pressa para comear a
sesso e descemos com eles, refns.
No havia dois lugares juntos na sala, eu fiquei ao lado da me de Natasha e Dante no
cho, encostado na perna do pai na poltrona da frente. Nos olhvamos a cada minuto,
pensando no que havamos perdido, ou melhor, adiado. Para minha surpresa, no meio da
sesso meus pais chegaram, haviam sido convidados pelos pais dele e trouxeram ainda mais
fitas, pelo visto aquilo no iria acabar to cedo...
Dormi no sof depois da terceira fita. Acordei sacudida por minha me para irmos
para casa. Dante nos acompanhou at a porta e pensei que deveria estar horrorosa depois de
minha despropositada soneca. Despedimos-nos de todos e meu pai me cercava em seus
braos, me amparando como se eu fosse uma criana. Dante me olhou com carinho e beijou
meu rosto sonolento. Senti que acariciava minha mo s escondidas, sem querer solt-las.
Cheguei no Rio s seis e meia com Michele, viemos devagar pois eu estava dirigindo
pela primeira vez na serra. Demoramos mais do que o normal para chegar, mas no
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perdemos o horrio. Havia muito o que fazer, quarta era o ltimo dia de aula e o show seria
na quinta. Tnhamos conseguido divulg-lo em algumas rdios e em quatro universidades
diferentes. O grupo de jovens, s do nosso campus, j formavam 230 pessoas. As reunies
agora eram divididas em dias e horrios diferentes para poder alocar a todos. A maioria se
candidatou voluntariamente para ajudar na organizao do evento, eu j no era mais uma
desconhecida por ali. Estava frequentemente sendo requisitada para dar opinies sobre o
evento e at aconselhamento pessoal. Fiquei meio assustada com tudo isso no incio, mas Ana
me incentivou, dizendo que eu s precisava amar as pessoas e confiar em Deus para orient-
as: elas prprias achariam o caminho.
Eu no via Dante desde o dia do filme e estava aflita pois sabia que, depois do show, ele
partiria para uma turn de um ano pelo pas, acordada com a gravadora da sua banda. Meu
corao esmorecia s de pensar no assunto.
No dia da prova do Rico, fiquei encucada. Ele me olhava esquisito e tive medo dele
arrumar alguma maneira de me reprovar s para eu ter de atur-lo novamente. Ele s dava
aula at o segundo perodo e eu tinha feito de tudo para passar na matria dele, com louvor.
Cada vez que eu o olhava, me arrependia amargamente da pior coisa que tinha feito e sobre a
qual no podia voltar atrs: ter-me entregado a ele. Eu queria poder apagar esse captulo da
minha vida, mas no era possvel. Ana j tinha me dito diversas vezes que Deus j havia me
perdoado e que eu precisava me perdoar, mas eu simplesmente no conseguia. Pensava
sempre em como gostaria de ter guardado esse momento para o verdadeiro amor da minha
vida, aquele com quem eu desejava construir uma histria, mas o jeito era seguir em frente.
Acabei a prova e, quando a entreguei, Rico segurou a minha mo e eu a puxei de volta
com fora. Virei as costas sem lhe dirigir palavra e sa. Eu nunca mais o tinha visto com
ningum depois de mim, mas isso no me interessava mais. No gostava da maneira
obsessiva como ele olhava para mim e Dante, mas tentava no tomar conhecimento dele.
Enfim, chegou o grande dia. As tendas, as barracas e o palco j estavam armados. Um
grupo de pessoas testava o som e eu no via a hora de Dante e sua banda chegarem. As
pessoas iam se alojando devagar e se espalhando pelo gramado em frente ao palco. Muitos
rostos haviam mudado desde que entrei na faculdade. Pessoas que viviam bbadas se
transformaram em parceiros eficazes, que trabalhavam com empenho para que tudo sasse
perfeito. Eu no podia entender aqueles que no queriam se juntar a ns nessa empreitada
maravilhosa.
De longe, avistei Natasha indo correndo abraar Thiago. Logo atrs dela, Dante e seus
amigos vinham andando tambm. Dante parecia um monumento ao sol, de to lindo que
vinha caminhando na minha direo. Ele me enxergou e se apressou na frente dos outros.
No me contive e corri na direo dele, parecia que no o via h anos...
Pulei em seus braos dele e ficamos abraados. Quando nos olhamos por alguns
segundos, nossa felicidade ficou evidente. Pela primeira vez, Natasha percebeu o que estava
acontecendo entre ns e comemorou:
Poxa, nenhum dos dois ficou to alegre quando eu voltei! brincou. Mas fico
feliz que seja assim.
Olhei para ela e a abracei. No precisei dizer nada, ela sabia que o que viu era a
verdade, me conhecia o suficiente para saber que eu estava apaixonada.
Fomos para trs do palco, pois o gramado estava cada vez mais lotado. Dante e eu
precisvamos nos separar para ele comear os preparativos do show. Antes de partir, ele
sussurrou no meu ouvido:
Quando tudo isso acabar, vamos continuar de onde paramos.
Eu queria beij-lo ali mesmo, mas o nosso primeiro beijo tinha que ser especial e no
corrido, por isso me contive.
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s 17 horas estvamos nos bastidores e Ana mandou que eu reunisse a principal
equipe do evento: a intercesso. O grupo se dirigiu para uma tenda atrs do palco e
comearam as oraes pelas vidas que ali estavam reunidas. Ana orou sozinha por um
momento e depois subiu no palco, comeando a conduzir o show. Eu estava checando tudo ao
mesmo tempo: espiei o pblico e no dava mais para contar, o gramado estava coberto e no
se via mais a grama onde as pessoas estavam. A banda de Dante j era conhecida pelos jovens
no meio cristo e quando Ana os anunciou houve uma chuva de aplausos. Assobiei
empolgada, como uma f de carteirinha. Procurei no me distrair muito, mas a certa hora j
no via mais nada, s Dante cantando, iluminado. Muitos o acompanhavam na plateia, ele
tocou msicas prprias e outras de algumas bandas estrangeiras que o inspiravam. Houve
uma grande comoo nos louvores mais conhecidos. Em determinado momento, entre uma
msica e outra, os integrantes bebiam gua quando Dante anunciou:
Essa uma msica especial do nosso prximo CD, que eu fiz para algum que
mudou o curso da minha vida ele falava da deciso de ficar ou no na Inglaterra e concluiu:
Angelina, guas tranquilas do meu corao.
Quase ca para trs com a pblica declarao. Nos bastidores, todo mundo aplaudiu
com surpresa me olhando. Fiquei imediatamente vermelha como um tomate. Ana me olhava
rindo e deu uma piscadinha aprovando. Ele comeou a tocar e a plateia curtiu, silenciosa.
Pensei que iria morrer de emoo, queria congelar aquele momento da minha vida.
Quando eles encerraram o show, descemos para ouvir a pregao de Ana e eu conduzi
todos os colaboradores para que ficssemos juntos, sentados no espao reservado para ns
no gramado. Procurava Dante, mas no o encontrava, ele sara do palco com os meninos,
direto para se trocar. Logo que Ana comeou a falar, senti que ele passava os braos no meu
pescoo, sentando-se atrs de mim. Eu no tinha palavras pra agradecer o que ele tinha feito.
Prestamos ateno na Palavra e Ana estava especialmente inspirada naquele
momento. E ela foi clara e objetiva ao falar do amor do Pai, algo que ela experimentava to
bem. Houve alguns testemunhos tremendos no palco, causando lgrimas na multido e em
ns. Muitas pessoas receberam Jesus naquele dia e ns amos a todos para abra-los e orar
com eles, convidando-os para nossas reunies. No final do evento, foi trabalhoso juntar todos
que nos ajudaram para agradecer-lhes.
Dante se retirou para guardar os instrumentos e ajudar a desmontar o palco.
Combinamos de nos encontrar mais tarde, na repblica.
Ana veio at mim e, agradecida, me abraou. Alis, ela fez isso com todos que
ajudaram.
Foi um prazer muito grande trabalhar para o Pai com voc, Angelina.
Conhecer voc que foi um prazer Ana, voc foi um anjo na minha vida... declarei
eu com lgrima nos olhos, sabendo que ela logo partiria.
Quero te pedir uma coisa... solicitou ela, afagando meu rosto.
O qu? perguntei, chorosa.
Continue isso! afirmou ela.
O qu? Eu? Como? Eu no sei fazer isso como voc... rebati, desesperada.
No isso que estou pedindo. No faa como eu, faa como voc faria e vai dar
certo. Somente ame essas pessoas e pea ajuda, se precisar. Deixe que todos participem com
suas habilidades, vocs so uma igreja agora, devem apoiar uns aos outros. Tudo isso s
valer a pena se vocs permanecerem unidos.
Vou tentar! prometi amedrontada, porm decidida.
A famlia de Raimunda estava feliz da vida com o que havia faturado e eu tambm por
ter colaborado de alguma forma. Carla queria fazer um curso de auxiliar de enfermagem h
tempos, e agora j tinha o dinheiro.
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Depois de ajudar a desarmar as barracas, eu estava exausta. Passei os olhos ao redor e
vi que o palco j estava desarmado, mas no vi Dante por ali. Resolvi ir na frente para a
repblica para tomar um banho. Feito isso, fui para o quarto me arrumar enquanto ainda
estava s. Assim que acabei de me vestir, Michele entrou no quarto dizendo que iria se
arrumar tambm pois algumas pessoas que trabalharam no evento tinham decido fazer um
lual s nosso no lago, para comemorar. Achei a ideia tima. Michele partiu para o banheiro e
quando voltou eu ainda estava no quarto, aguardando Dante. Ela se aprontou e resolvemos
descer para esperar l embaixo. Quando abrimos a porta, Dante j estava quase batendo nela.
Sorri e ele pediu para entrar e pegar um casaco dele que tinha ficado l. Michele nos olhou,
sorrateira, e preferiu nos aguardar l embaixo. Para que servem as amigas...
Entramos e eu fechei a porta. Enquanto ele pegava o que queria, me sentei na cama
para esperar. No sabia o que fazer, ento resolvi puxar conversa.
Voc esteve timo no show elogiei.
Ele continuou mexendo nas coisas e me deu um sorriso rpido, meio envergonhado.
Depois se sentou ao meu lado, olhando para o cho.
E... o que voc achou? perguntou ele, parando para me olhar.
De qu? perguntei, s para confirmar.
Do que eu fiz... pra voc concluiu ele, referindo-se minha msica.
S acho que no mereo tudo isso... falei, baixando os olhos.
Por qu? O que a faz pensar que no merece?
As lgrimas encheram meus olhos.
Voc muito... especial, Dante. Eu sei que qualquer mulher desse show daria tudo
pra ter voc. Eu nunca conheci ningum to... digno, focado, amvel... so tantas qualidades
que nem posso descrever. Eu s acho que voc merece algum... melhor do que eu, sabe?
Como algum poderia ser melhor pra mim do que voc, Angelina? ele colocou a
mo no meu rosto virando-o para ele e chegou bem perto. Eu s tenho me sentido feliz
quando sei que vou te ver, eu sonho com voc, eu componho pensando em voc, eu tenho
orado por isso e j sei a resposta.
Olhei para ele, desacreditada. Tudo parecia maravilhoso. Olhar a sinceridade em seus
olhos era como ter a confirmao completa do meu desejo atendido. Eu queria muito poder
ser s dele em todos os sentidos, mas havia erros que eu no poderia corrigir, e ele no
merecia isso. Merecia a exclusividade de quem o amasse. Eu me sentia como se.... O tivesse
trado, mesmo sabendo que no nos amvamos dessa maneira quando tudo aconteceu com
Rico. Eu devia t-lo esperado, eu queria pedir perdo a ele, mas soaria ridculo. Pelo menos eu
precisava saber se ele, sendo cristo, conviveria bem com isso. Ele j havia me dito que tinha
se guardado para a pessoa certa. Ele sabia que eu no era mais virgem, mas eu j o amava
muito a essa altura e mesmo sabendo que ele merecia mais, se ele me quisesse mesmo assim,
eu seria dele para sempre, fazendo tudo certo dessa vez. Ento, olhei para ele novamente
esperanosa e antes de permitir que o que mais desejvamos acontecesse arrisquei,
esperando ouvir dele o que queria:
Eu s acho que voc deveria escolher algum que pudesse... ser s sua!
Ele me olhou, confuso, e recuou com um semblante estranho. Tentei interpretar suas
feies, mas fomos interrompidos por um barulho desordenado de buzina e algum gritando
meu nome. Corremos para a janela e vimos que era Rico, totalmente fora de si, como eu
nunca o vira antes. O barulho chamava a ateno de todos, o que s fez a minha raiva
aumentar. Desci correndo para acabar com aquela balburdia.
Marchei pela republica e vi Michele e Murilo encostados no meu carro guardando
algumas coisas. Outras pessoas olhavam, perplexas aquela cena deplorvel. Fui andando em
direo a Rico e Dante me seguia. Com medo de haver uma briga desnecessria, pedi a Dante
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que me aguardasse junto com Michele e Murilo, que eu despacharia o desordeiro. Com o bom
senso de sempre, ele consentiu, mas ficou A espreita caso eu precisasse.
Cheguei perto de Rico e pude sentiu o cheiro de lcool. Irritada, rosnei:
O que significa isso?
Eu quero falar com voc, meu anjo falou ele arrastando a voz, embriagado.
J lhe disse que no temos nada pra conversar! Fale baixo, est assustando a todos e
eu no sou surda.
Todos sabem que eu te amo, isso no mais segredo por aqui...
Ele ria e se aproximava, tentando me abraar. Desviei, segurando-lhe o brao para ele
no cair.
Voc tem que ir pra casa Rico, chamarei algum pra te levar...
No! protestou ele No antes de conversarmos. S vou embora se voc me
levar, entre no carro comigo, minhas pernas esto bambas...
Ele parecia tonto. Eu estava humilhada com aquela situao e achei melhor entrar no
carro para convenc-lo a acabar com aquilo. Levei-o at a porta do motorista e coloquei-o
para dentro. Dei a volta e Dante desencostou do meu carro em estado de alerta, fiz sinal de
calma com a mo e entrei no banco do carona. Coloquei as mos no rosto para tentar me
acalmar e achar as palavras para faz-lo entender que precisava ir. Foi ento que ouvi o
barulho da trava. Tirei as mos do rosto rapidamente e vi que ele ligava o carro. Gritei para
que ele desligasse, mas ele me ignorou e comeou a dar r. Parecia muito mais sbrio e srio
do que at ento. Meus amigos notaram que se tratava de algum tipo de sequestro idiota e
Dante entrou imediatamente no meu carro, com Michele atrs e Murilo no carona. Rico partiu
cantando pneu, seguindo para a estrada principal fora do campus. Dante dirigia logo atrs de
ns.
O que est fazendo? Ficou doido? Voc est bbado, no pode dirigir assim!
Eu estava em pnico com a frieza dele e seu olhar sombrio na estrada.
Olhei para trs, vi Dante segurando o celular e me mostrando, enquanto Murilo e
Michele me olhavam assustados. Mexi na minha cala e peguei meu celular no bolso no exato
momento em que tocou. Atendi e era Dante.
Angelina, o que est havendo? Por que entrou no carro? Voc quis ir com ele?
questionou ele, inquieto.
Claro que no! Esse idiota me raptou, chame a polcia, solicite uma blitz no meio do
caminho...
Nesse momento Rico arrancou o celular da minha mo e jogou pela janela.
No adianta tentar me substituir pelo primeiro idiota que apareceu, Angelina. Eu
sei que a mim que voc ama! gritou Rico, com os olhos cerrados. Por que no acredita
que eu posso mudar por voc? No acha que j me ignorou o suficiente? Entendo que voc
precisava desse tempo, mas hoje vou fazer voc entender que ainda nos amamos.
Acha que desse jeito eu vou acreditar? Alm de traidor, voc agora pirou de vez?
Vou te levar na casa dela, ela est l, ela mesma vai te dizer o que eu disse a ela
sobre voc...
Entendi que ele se referia Amlia e respondi:
Isso pattico e no tem mais a menor importncia porque eu no te amo mais!
gritei de volta.
Olhei novamente para trs para tentar descobrir se Dante havia conseguido chamar a
polcia, porm me deparei com uma expresso apavorada de todos no meu carro. Quando me
virei, Rico ultrapassava um caminho enquanto outro carro vinha na mo contrria. Ele
jogou o carro para fora da pista sem diminuir a velocidade e eu tapei o rosto, desesperada.
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CAPTULO XI
O ESPERADO
Uma luz muito forte me cegou quando tentei abrir os olhos. Depois de alguns instantes,
pude sentir minhas costas geladas. Estava especialmente silencioso ali. Quando finalmente
acordei estava em um lugar muito nebuloso, o cho estava cheio de limo e havia nuvens ao
meu redor dificultando a viso do local. Eu sabia que era o parque, mas sabia que seria difcil
andar nele daquele jeito. O cu estava completamente cinza e me levantei tremendo de frio.
Olhei volta e procurava alguma coisa, mas novamente no me lembrava o qu. Comecei a
caminhar lentamente, s vezes me perdia no meio das nuvens, tinha a sensao de que no
estava indo a lugar nenhum.
Andei um bom tempo, vagando e tentando enxergar qualquer ponto de referncia
quando enfim meu p esbarrou em algo. Avistei a faca do meu sonho anterior, de repente,
me lembrei do que procurava: o menino!
Peguei a faca e comecei a andar assustada, caminhava cada vez mais rpido para
encontr-lo, temia que estivesse machucado ou em perigo. J sabia que ele no era meu
filho, mas ainda assim nossa ligao era muito forte. Raciocinei que se ali estava a faca, a
escada estava a poucos metros de mim. Caminhei devagar seguindo minha memria visual e
encontrei a escada logo minha frente.
Havia dois homens em p, a nvoa que ali pairava deixava um buraco vazio em
torno da escada e ali todos nos vamos com perfeio. Na bandeja, havia uma pequena
semente, eu no fazia ideia do que significava, mas acreditei que poderia representar o
recomeo que eu tanto desejava. Talvez, possuindo-a, eu nunca mais sofresse; talvez toda a
dor, toda a culpa fosse deixada para trs, assim como toda a amargura que me impedia de ser
feliz de novo. Eu desejava esquecer todo aquele sofrimento que vivi e parar de sentir raiva de
mim por t-lo permitido. Uma pontada de esperana flechou meu corao abatido, fazia
muito tempo que eu queria ser feliz de novo. Tempo demais, alis.
Com um movimento quase involuntrio, minha mo comeou a se mover na direo
da semente enquanto meus olhos estavam fixos nela e a cada centmetro que eu me
aproximava, minha esperana era renovada. De repente, fui distrada por um pequeno
barulho minha direita. Senti que algum se aproximava, mas a nvoa no me permitia ver.
Por entre as nuvens que me cercavam vi sair a imagem do menino que procurava. Ele
caminhava srio na minha direo, eu estava muito feliz por v-lo bem, mas ele no mudava
sua expresso preocupada.
Chegando perto de mim, ele tocou minha mo que estava a centmetros da semente e
a conteve, trazendo-a de volta para mim. A expresso do homem que segurava a bandeja,
antes indiferente, se tornara raivosa em segundos. Percebi claramente que ele se abalou
com o meu recuo. Suas mos comearam a tremer com a bandeja e eu olhei assustada para
o menino, que permanecia calmo e se ajoelhou, inclinando a cabea como se estivesse
pronto a orar. Olhei para o homem e ele tremia cada vez mais. Eu sabia o que estava por vir...
Pude ver que a boca do menino se movia, ele realmente estava falando com algum.
Ajoelhei e resolvi fazer o mesmo. Talvez, se eu no tocasse na semente no houvesse
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nenhuma transformao. No consegui orar a princpio e espiei o homem, que comeara a
se transformar. Fechei os olhos o mais forte que pude e segurei na mo do menino, que
apertou a minha. S consegui dizer:
Senhor, nos ajude!
Dito isso, houve um repentino silncio, achei que minha prece havia sido atendida.
Abri os olhos devagar e vi que a centmetros do meu rosto havia uma enorme serpente me
fitando, pronta para dar o bote. Estarrecida, no me mexi. Queria olhar para o menino, mas
tinha medo de me mover. Percebi um movimento ao meu lado quando o menino
calmamente se levantou. Eu ainda era o foco da ateno da serpente. Observei-o com os
olhos enquanto ele passou para detrs dela e a mesma comeou a abaixar a cabea., Fiquei
com medo que ela o atacasse, mas ele no estava com medo. Ao contrrio, a olhava com
autoridade. Ela se abaixou e se virou at perto dos ps dele, submissa. Ele olhou para o cu
por alguns instantes e, num movimento brusco e preciso, pisou na cabea da serpente,
deixando-a parada sob seus ps. Ela no reagiu. Ele segurou minha mo e eu me coloquei de
p, assombrada com tudo aquilo. Depois, o menino voltou-se para a serpente retirando o p
da cabea dela. Temi por ele, mas a serpente imediatamente correu para a floresta sem
pestanejar.
Enquanto eu, pasma, a olhava a fugir, ele pegou a bandeja do cho e a virou na
minha direo. Para minha surpresa, meu vestido era branco novamente. As nuvens
comearam a se mover na direo da floresta, passando por ns e nos deixando sem ver
nada por alguns segundos. O cu se tornava cada vez mais claro e azul. Quando, enfim, as
nuvens terminaram de passar por ns, procurei meu pequeno e bravo companheiro.
Constatei que ali, livre da nvoa finalmente, estava Dante, segurando a bandeja. A felicidade
tomou conta de mim ao reconhec-lo. Ele largou a bandeja no cho e me olhando docemente
me chamou: Angelina!
Eu queria ir at ele, mas alguma fora me deteve, eu no conseguia me mover com
agilidade suficiente para atender a sua voz. Dante continuava a me chamar vrias vezes, sua
voz enfim me atraiu at ele...
Quando abri os olhos tudo estava nublado de novo. Eu ainda ouvia meu nome e
demorei alguns segundos at conseguir definir as formas com perfeio, O rosto de Dante
foi a primeira coisa que reconheci e achei que ainda estava sonhando. Identifiquei que eu
estava em um quarto de hospital, olhei para o seu lindo rosto e tentava falar com dificuldade,
mas ele reteve minha boca com a mo.
Lembrei-me do sonho e de como tudo parecia se encaixar agora: o menino era ele.
Ele aparecia como criana no sonho porque era assim que a sua alma era: pura como a de
uma criana. Ele era o amigo que estava me ensinado o caminho de andar com Deus. Foi ele
que me retirou do meu profundo desespero no primeiro sonho em que esteve comigo,
assim como na vida real ele me ajudou. Talvez fosse a confirmao que eu tanto esperava de
Deus.
Que bom te ver acordada... disse ele, sorrindo com a mo no meu rosto.
Voc me deu um susto danado, mas est bem agora.
Eu ainda estava confusa.
Voc sofreu um acidente com o Rico, bateram de carro num muro quando saram
da estrada comecei a me lembrar vagamente do episdio, arregalei os olhos me voltando
para Dante e exclamei:
O Rico!
Ele esta bem, fique calma falou ele, recuando um pouco. Saiu de l ainda
consciente, mas quebrou o brao. Voc bateu a cabea e ficou desacordada, aparentemente
no quebrou nada, mas tomou pontos na testa e est com o joelho inchado, ter que ficar
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mais um pouco para fazer uns exames de rotina. Tentei sentar, porm mais uma vez ele
me deteve. Fique quietinha, vou chamar seus pais, eles esto loucos pra te ver acordada.
Meu corao disparou com a hiptese de falar com eles e arregalei meus olhos com
pavor para Dante. A essa altura, eles j sabiam de tudo e eu teria muito que explicar. Dante
entendeu minha preocupao e me acalmou, antes que eu falasse.
Eles no sabem de nada, dissemos que foi um acidente e que Rico nosso amigo.
Voc no precisa explicar nada agora, s quando quiser.
Aliviada, agradeci e pedi que ele no demorasse.
Minutos depois meus pais entraram e pela cara vi que minha me tinha chorado.
Eu estou bem me, fique tranquila!
Ela me abraou me ignorando e tornou a chorar. Depois me beijou inmeras vezes.
Meu pai nos abraou e falou:
No sei se aguento mais um susto desses, melhor voc voltar pra casa falou
sorrindo e me beijando na testa.
Podia ter sido pior, mas eu sobrevivi. Sou de ferro, viu? falei, tentando acalm-
los.
Conversamos um pouco para esfriar os nimos, depois me explicaram como tudo
aconteceu, segundo o que eles sabiam. Resolveram ir conversar com o mdico para saber
quais seriam os prximos procedimentos. Quando eles iam saindo, Dante entrou, alegrando
meu universo.
Angelina... Tem algum querendo falar com voc... disse ele, visivelmente
contrariado. Acho que deveria receb-lo, ele est muito mal com tudo que aconteceu.
Presumi que ele falava de Rico, resolvi escut-lo para encerrar de vez a confuso.
Pode cham-lo, mas... fique por perto pedi.
Rico entrou, acanhado e com o brao engessado. Estava muito abatido e tinha um
embrulho na mo.
Oi disse ele, mordendo os lbios.
Oi.
Voc... est bem, agora?
Sim, anjos no morrem falei com um sorriso rpido. Ele abaixou a cabea e
fechou os olhos.
Angelina, me perdoe! Eu nunca quis te machucar, mas parece que s o que eu
fao... Levantei as sobrancelhas, concordando. Eu s queria... apagar todas as besteiras
que fiz com voc...
Eu sei como se sente falei, para surpresa dele. Eu queria apagar muita coisa
tambm, mas no d. Queria... te pedir desculpas, Rico...
Ele me olhou, atordoado.
Desculpas pelo qu? Voc nunca fez nada! exclamou ele. Eu que sou o vilo
aqui.
No existe vilo aqui, Rico. O pior vilo o que est dentro de ns. Voc tem os
seus erros, mas quem no os tem? Eu fui... injusta quando o acusei de ter sugado o meu
mundo porque fui eu que permiti, ningum faz nada conosco sem a nossa permisso. Eu me
afastei de todos porque quis, e me entreguei a voc por que quis. No sou um boneco sem
reao e poder de deciso, e voc nunca me forou a nada, a no ser a sair com voc naquele
carro... fiz uma pausa, vendo que a lembrana o feria.
Mas eu fui... um canalha com voc!
Mas eu quis correr o risco, no foi? Eu sabia das suas fraquezas e das minhas
quando voltamos... O que quero dizer que retirei essa culpa de voc, simplesmente porque
no verdade. Cada escolha tem uma consequncia, e eu tive as minhas por no consultar
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Deus sobre elas.
Como pode ser to... generosa comigo? Ele suspirou e continuou. Eu sei
como, isso no ? disse ele, levantando o pacote e abrindo. Vi que era uma Bblia rosa,
igual que eu havia deixado cair no lago. isso que te faz ser assim to... diferente. Eu
comprei outra pra voc, sei que perdeu a sua. Houve uma pausa enquanto ele a olhava.
Voc deve continuar a l-la, Angelina, isso faz de voc cada vez mais a pessoa que eu amo.
Sei que eu no entendo nada disso, mas sei que te faz bem. Eu te vejo crescendo e ajudando
tanta gente na faculdade... eu te admiro, e sei que tem algo a ver com isso concluiu ele,
balanando de novo a Bblia.
Olhei pra ele, compadecida, e aps fit-lo por algum tempo falei:
Fique com ela, Rico, voc precisa dela mais do que eu agora, eu j achei meu
caminho. Estou bem e desejo isso pra voc tambm, vai encontrar a mais do que eu jamais
poderia lhe oferecer. Eu realmente quero que voc seja feliz.
Ele se aproximou da cama, confuso. Sentou-se ao meu lado, passando a mo na
minha cabea e me olhando nos olhos, perguntou:
Se eu fizer isso, ainda terei uma chance com voc, meu anjo?
Meu futuro pertence a Deus, Alderico. Voc vai aprender isso a, dEle a resposta.
Somente...O conhea...
Ele me beijou no rosto e pousou o dele no meu por um instante. Fui tomada por uma
forte emoo e lgrimas escaparam dos meus olhos. Eu queria abra-lo, mas estava com
dores pelo corpo e por isso no me movi. Ele se levantou e mirou a Bblia, me olhou com um
sorriso triste, e ento se foi.
Em seguida, meus pais e o mdico entraram para me analisar. Comecei a sentir
dores no corpo e o mdico achou melhor eu descansar mais um pouco. Perguntei pelo
Dante e minha me disse que no sabia onde ele estava. Dormi esperando ele aparecer de
novo.
Acordei na manh seguinte me sentindo bem melhor, minha me dormia na cama de
acompanhante do quarto e vi pela janela que o sol brilhava. Sentei com calma na cama e
procurei um interfone para chamar a enfermeira pois estava com sede. Na mesinha ao lado
da minha cama, avistei um telefone e um envelope, onde estava escrito: para Angelina.
Estranhei e peguei a carta para ler,antes que minha me acordasse, caso fosse do Rico. Abri
rapidamente e li:
Espoleta,
Desculpe no poder me despedir, mas a minha turn foi antecipada. Quando voltei
ontem para falar com voc soube que estava dormindo, por isso resolvi escrever essa carta.
Tenho a sensao de que deixarei alguma parte de mim aqui. No sei o que aconteceu entre
ns e receio que tenha me enganado um pouco. No quero estragar nossa amizade, pois
conhecer voc melhor foi algo que no ser fcil de esquecer. De qualquer forma, teremos seis
meses para tocar nossas vidas. Voltarei no meio do ano e espero v-la bem e linda, como
sempre. Desculpe se me precipitei em relao a ns, espero que isso no estrague nada entre a
gente no futuro. Nunca pense que voc no merece o amor de algum, mesmo que voc no
possa retribu-lo da mesma forma. No me arrependo de ter me apaixonado por voc e
agradeo a sua sinceridade em relao ao que sente por mim. Isso s mostra o quo digna do
meu amor voc . No se preocupe comigo, ficarei bem.
Fique com Deus. Dante.
Despenquei num buraco fundo na velocidade da luz. Tudo ficou preto e senti que
meu corao iria parar. Como ele podia pensar que eu no o amava, depois de tudo? Como
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pode partir sem falar comigo? Fiquei pensando e tentando entender o que havia acontecido,
enquanto minha mente era tomada por lembranas velhas conhecidas.
Lembrei da nossa ltima conversa, e de como fomos interrompidos enquanto eu
dizia que ele merecia algum que fosse s sua! S podia ser isso, ele deve ter pensado que
eu ainda amava Rico e no podia ser s dele! Minha me acordou com meus soluos e correu
para me socorrer, pensando que eu estava com dor. Atordoada, contei-lhe toda a verdade,
que ela ouviu o tempo todo calada. Quando terminei, olhei para ela, chorosa e esperando
ouvir tudo que merecia, mas surpreendentemente o que ouvi foi:
uma pena, querida, uma pena que no me procurou antes pra te ajudar. Dante
um menino maravilhoso e lgico que eu aprovo esse namoro. Mas esse... Alderico, foi s
uma cilada pra voc. Recupere essa carinha, nada est perdido ainda, vocs esto vivos!
Vamos dar um jeito nisso.
Completamente apalermada, perguntei:
Me, voc me ouviu direito? Eu no sou mais virgem!
Ouvi sim, minha filha, e sinto muito que voc tenha que conviver com isso. Agora,
voc j adulta. Isso ser um problema seu e do homem que for se casar com voc, espero
que ele te ame assim como voc . Por agora, s desejo que voc pense melhor daqui pra
frente antes de agir.
Fiquei abismada com aquele tranquilo discurso. Quando ela ficou to moderninha?
Voc vai contar pro papai? perguntei, receosa.
Conte voc se, quiser. A vida sua e voc que sabe com quem deve compartilh-la.
Abracei minha me com cumplicidade e fiquei aliviada por derrubar tantas barreiras
entre ns.
Sa do hospital no mesmo dia e soube que Natasha partira na noite anterior com o
grupo de Ana. Fiquei triste por ter perdido tantas despedidas importantes. Passei as frias
em Petrpolis e, de vez em quando, buscava shows de Dante na internet. No houve um s
dia em que no pensei nele. Eu sabia que a oportunidade de esclarecermos aquele equvoco
entre ns iria chegar, mas no queria faz-lo por telefone. Pela primeira vez venci minha
ansiedade, confiei que se aquela unio fosse da vontade de Deus, ambos iramos esperar.
Dediquei-me muito a ler a Bblia e a orar, isso me ajudou a controlar minha saudade.
Aguardei aqueles seis meses em contagem regressiva, procurei me dedicar s pessoas que
havia conhecido no show, me encontrando com elas uma vez por semana para estudo da
Palavra. Michele era minha companhia constante e aguardava ansiosa a volta de Murilo.
Atravs dela, eu sempre tinha notcias de Dante. Minha msica j tocava nas rdios, Murilo
mandou um CD de presente pra Michele e Dante mandou um para mim com os dizeres:
para minha musa. Foi o nico contato que fez desde ento.
Esse CD era minha companhia mais constante no carro. Em maro, soube que em
maio Natasha iria se casar com Thiago e fiquei feliz por dois motivos:
1- Natasha estava feliz e iria se casar;
2- Dante viria para o casamento e iramos nos ver mais cedo.
Eu aguardava, ansiosa, pelo meu promissor outono...
CAPTULO XII
DUAS OPES
100
O casamento de Natasha estava extraordinariamente lindo. O pai dela alugou uma fazenda e
fez uma decorao ao ar livre com luzes e flores por todo lado. Minha amiga estava radiante, e
eu estava feliz como madrinha dela. Tinha mandado fazer um vestido especial para a ocasio
com uma costureira do meu pai. Eu queria estar perfeita para o meu reencontro com Dante.
Enquanto todos se posicionavam, meus olhos varriam minuciosamente o local procura dele.
Os convidados j estavam sentados e o altar perfeitamente arrumado numa tenda branca
coberta de lrios. Eu estava na fila de padrinhos, esperando impaciente por meu
acompanhante especial. Havia uma grande movimentao ao meu redor, pude ver distncia
Michele beijando Murilo e ambos se sentando com os convidados para a cerimnia. Meu
corao acelerou... Ele j devia estar ali. Antes que eu me voltasse para a fila, algum segurou
meu brao e falou:
V se no tropea no caminho, Espoleta.
Era ele, o alvo do meu amor. Abracei-o afobada, sem pensar em me amarrotar. Ele
retribuiu o meu abrao e sentimos a respirao ofegante um do outro. Olhei para ele e falei,
com os olhos cheios dgua:
Temos muito o que conversar...
Eu sei disse ele, sorrindo. No vai faltar oportunidade. concluiu ele, se
colocando na posio, pois a msica da nossa entrada havia comeado.
Contive minha ansiedade mais uma vez, eu estava ficando craque nisso: ter domnio
prprio.
Eu e Dante entramos juntos na igreja, o que me levou a ter certos pensamentos
matrimoniais sobre ns. Ele estava deslumbrante com aquele terno preto contrastando com a
sua pele branca e perfeita. Seu cabelo estava perfeitamente arrumado e seus olhos da cor do
cu brilhavam de felicidade. Se ficasse perto dele, o noivo se apagaria.
Durante a cerimnia eu chorei vrias vezes, claro. Principalmente quando Dante
tocou uma msica em homenagem irm. At Michele, que era mais durona, soltou umas
discretas lgrimas nessa hora.
Ana tambm estava presente como madrinha, era a primeira vez que eu a via de
vestido e estava encantadora. Fiquei animada ao rever tantos amigos amados de uma s vez,
havia tanto o que dizer e... comemorar.
Ao final da cerimnia, todos seguimos para o baile luz da lua. A banda de Dante iria
tocar, o que garantia a animao da festa e mais espera para o meu pobre corao.
Tiramos muitas fotos, eu e Natasha ficamos muito grudadas, eu j estava com saudade daquela
minha amiga querida, que continuaria suas viagem com o marido. Michele e Murilo danaram
a noite toda, e s vezes eu ficava com eles. A certa hora da noite, eu j estava descala.
Cansada, resolvi dar uma volta me afastando um pouco da multido para contemplar o cu
daquele lugar, que era to longe de tudo que as estrelas pareciam ser mais brilhantes por ali. A
lua estava enorme, era o cenrio perfeito para um casamento. Pensei que, se um dia eu me
casasse, gostaria que fosse assim. Estava entretida em meus pensamentos quando fui
interrompida:
Est uma noite linda, no? Quando me virei, vi Dante atrs de mim, com um copo
de gua na mo.
verdade respondi, tensa. J acabou de tocar?
Demos uma pausa disse ele, se aproximando.
Est tudo to... perfeito. Falei, olhando novamente a lua. Nessa hora, ele j estava
ao meu lado, olhando tambm.
No sabe como senti sua falta disse ele, fazendo minhas as suas palavras.
101
Comeou a tocar a minha msica e ouvimos os aplausos aos noivos, que inauguravam
a pista juntos. Olhei para Dante e vi que ele se abaixava para colocar o copo no cho.
Me permite? perguntou ele, estendendo os braos e me convidando para danar.
Sorri sorrateira e respondi: Claro.
Comeamos a danar e eu me aninhei nos ombros dele.
Tudo est perfeito, agora falei, com os olhos fechados.
Voc est perfeita sussurrou ele no meu ouvido.
Levantei a cabea para encar-lo. Finalmente ele iria se declarar e eu poderia explicar
tudo... Meu olhos miravam os dele, ansiando por isso. Vi que os dele tambm queriam algo
mais, mas alguma coisa o continha enquanto danvamos.
Voc cresceu muito, Espoleta... Por dentro, voc outra pessoa agora, uma pessoa
maravilhosa. Fico feliz de ter acompanhado isso no fim do ano passado. Sei que Deus viu sua
mudana e vai te compensar com uma vida maravilhosa.
Meu corao batia descompassado ao ouvir essas palavras. Eu no via a hora de poder
falar tambm, mas esperei que ele terminasse.
Quando comeamos a agradar a Deus, ele trabalha a nosso favor... ele fez uma
pausa e mordeu os lbios, tentando continuar. Lembra daquele versculo, que diz: Agrada-
te do Senhor e ele satisfar o desejo do seu corao? Eu estava ansiosa para que ele conclusse
logo e se declarasse para eu poder manifestar meus sentimentos. De repente, ele parou de
danar e olhou para algum atrs de mim, indicando com os olhos para que eu tambm
olhasse. Contrariada, me virei e vi que ali estava Rico, parado, nos observando. Seus cabelos
haviam crescido e ele estava mais homem, mas ainda um dos mais lindos que j vi. Estava de
terno tambm e com uma rosa na mo. Olhei para Dante, sem entender nada, e ele disse:
Sei que esse o desejo que voc esperava ser atendido. Confie em mim, ele mudou.
Dito isso, Dante saiu andando e cumprimentou Rico, batendo na mo dele como se fossem
velhos amigos.
Fiquei olhando-o partir, estarrecida, e depois vi Rico se aproximar de mim me
oferecendo a rosa. Peguei-a, ainda confusa.
Posso? perguntou ele, querendo continuar a dana.
Estava atordoada. Fazia tanto tempo! Como ele poderia estar ali?
O que faz aqui? perguntei.
uma longa histria, mas que valeu a pena. Ele suspirou lentamente, olhou para
o casamento e voltando os olhos para mim, continuou: Mas vou resumir pra voc. Quando
te visitei no hospital, eu estava muito abalado. Depois que sa do seu quarto sentei no
corredor e no conseguia conter as lgrimas, me culpava pelo que aconteceu e estava
desesperado por ter te perdido para sempre. Dante se sentou ao meu lado e colocou a mo no
meu ombro em solidariedade, dizendo que no havia sido minha inteno que o acidente
acontecesse. Fiquei impressionado com aquela atitude, ele deveria me odiar pelo que fiz, mas
no foi isso que ele fez. Senti que podia confiar nele e abri meu corao. Trocamos telefone e
desde ento conversamos vrias vezes para estudar a Bblia. s vezes, eu ia at o show deles,
mas conversvamos muito mesmo pela internet ou pelo telefone e eu me converti atravs
dele. Eu perguntava notcias suas, mas ele no sabia de nada e eu no me sentia no direito de
me aproximar. Dante me acompanhou nesse tempo de mudana, ele sabia do meu amor por
voc e me encorajou a procur-la. Ele me convidou para o casamento e agora estou aqui,
diante de voc, pra dizer que ainda te amo, que nunca deixei de te amar, e oro todo dia
esperando que voc me perdoe e, se ainda puder, que me d outra chance.
Fiquei impactada com todas aquelas informaes. Como Dante fizera tudo aquilo sem
que eu soubesse? Ele era mais... digno e generoso do que eu sequer poderia imaginar. Por
isso, nunca tinha me procurado: alm de acreditar que eu amava Rico, estava sendo leal a ele.
102
Olhei para Rico, compadecida de seus sentimentos. Pensei em quanto eu j o havia
amado, em tudo que tinha feito por ele e no pelo Dante. Olhei nos olhos dele e tive certeza do
que dizer:
Eu tambm te amo, Rico, amo o que voc fez por mim, voc foi o instrumento que
Deus usou para me transformar no que sou hoje. Mesmo sem saber, voc foi uma beno.
Amo o jeito que voc mudou por mim, mas sei que o maior beneficiado foi voc mesmo e fico
feliz por isso. J te perdoei h muito tempo e posso dizer que amo voc como irmo em
Cristo, agora. Houve uma pausa enquanto eu olhava para o casamento. Mas como
homem... no o amo mais, sinto muito.
A ltima lgrima de esperana desceu do rosto dele.
Eu sabia que podia esperar por isso respondeu ele, baixando o olhar.
Eu sempre senti um desejo muito forte por Rico, difcil de controlar. Mas agora eu
sabia que era s carne, meu corao j estava ocupado. No queria deix-lo s, mas eu
precisava sair dali. Nesse momento, vi a pessoa perfeita passando por ns: Ana, e a chamei.
Deixei os dois a ss e pedi licena. Algo dentro de mim me dizia que eles teriam muito
que conversar, e eu tinha algo muito importante a fazer, no podia esperar mais.
Sa correndo para a festa, procurando pelo Dante. Ningum sabia onde ele estava e tive
medo dele ter ido embora. Foi ento que tive a ideia de procur-lo no estacionamento, talvez
ele ainda estivesse l, partindo. Felizmente, ele estava, mas sentado sozinho no cap do carro
do pai, olhando as estrelas. Sem que ele percebesse, me aproximei e o surpreendi:
Nunca mais me deixe no meio de uma dana.
Ele se virou e me olhou, perplexo com a minha presena. Notei que ele tinha chorado.
Pulou do cap e veio em minha direo.
Pensei que ele era o desejo do seu corao, a quem voc pertencia unicamente
disse ele, unindo as sobrancelhas com as mos no bolso. Ele mudou por sua causa!
Voc no sabe nada sobre o que eu quero afirmei, olhando sria para ele. Meu
sonho ainda no se realizou!
Andei at chegar bem perto e passei a mo suavemente pelo seu rosto. Ele segurou
meu punho carinhosamente.
No sabe quanto tempo esperei por isso falou ele, beijando minha mo.
Olhei em seus olhos, a centmetros do seu rosto, e olhando sua boca eu disse:
Voc me disse uma vez que Deus tinha o melhor pra mim.... Eu quero o melhor, eu
quero voc!
Dante afastou delicadamente da minha testa uma mecha do meu cabelo, segurou meu
rosto e nossos lbios enfim se tocaram. Beijei-o com todo o meu amor. Ele correspondeu,
ainda apreensivo, e aos poucos se entregou me trazendo para perto dele com um abrao
apertado. Ficamos ali, apaixonados ao luar, para minha alegria eu estava em seus braos. As
lgrimas desciam dos nossos rostos, mas agora eram de alegria. Senti que tudo estava em
equilbrio, no devido lugar. Sabia que tnhamos sido designados um ao outro. Ele no era a luz
da minha vida, mas havia me ajudado a chegar at ela. S havia um Senhor para mim agora:
Jesus. Uma corda de trs ns no se rompe facilmente e Jesus era o nosso terceiro n, eu
sabia que seria feliz dali para a frente contando com Ele. Eu s queria que Dante fosse a
minha companhia nessa jornada porque ele era o meu grande amor! Eu estava
completamente feliz ao lado dele, at que a morte nos separasse, ou Jesus nos levasse antes.
Enquanto Rico era puro fogo e turbulncia, Dante era a perfeita paz e harmonia. Seu
amor era doce e tranquilo, mas no sem desejo. Alis, o controle do desejo em prol do seu
amor por Deus em primeiro lugar era justamente o que me fazia admirar tanto a fora dele
como homem. Ele era respeitoso, mas eu podia ver que tambm me desejava. Havia
expectativa em estar com ele, pois eu sabia que ele no cederia antes do tempo, e eu no
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pretendia provoc-lo levando-o a isso. Eu tambm amava Deus mais do que tudo agora, e
finalmente, eu havia me perdoado.
A espera fora, em grande escala, o nosso maior prazer. Dante me permitia ser quem
eu era sem querer me dominar, me incentivava a ir aos lugares, conhecer pessoas novas,
cumprir meus compromissos, me incentivava a crescer, enfim. Sempre que ele viajava, eu
morria de saudade, mas ele tambm me ensinou que saudade no era s sofrimento: podia
ser uma coisa boa, a expectativa de um maravilhoso reencontro. Cada vez que ele voltava era
como se fosse o dia mais feliz da minha vida. Passvamos o tempo todo juntos, a no ser que
eu tivesse que estudar, ou que ele estivesse gravando. Ele me levava em todos os seus shows
quando eu estava de frias e quando estvamos sozinhos ele cantava a minha msica...
A paisagem dessa vez estava diferente, o medo que me acompanhara das ltimas
vezes havia me deixado, eu sabia em quem podia confiar. Caminhei at o mesmo destino de
sempre, e ele estava l, o ltimo deles, com sua nefasta bandeja nas mos. Aproximei-me com
autoridade, sabia que esta no vinha de mim. Olhei em seus olhos e ele me analisava, srio. Na
bandeja havia um bezerro de ouro, smbolo de adorao e riqueza que eu j conhecia bem, a
palavra de Deus estava na minha mente agora. Lembrei de todas as escolhas ruins que fiz
antes, de como fui levada pelas minhas vontades, pelos desejos da minha carne e por tudo que
meu olho cobiava. Eu sabia que esse smbolo de riqueza e sucesso era algo que eu comeava
a desejar nos ltimos tempos na minha profisso. O que ele no sabia... que eu queria muito
mais agora.
Com toda a minha fora, dei um tapa por debaixo da bandeja fazendo o bezerro cair no
cho. Preparada para lutar, esperei que o anjo de branco se transformasse em alguma fera
para me devorar. Qual no foi a minha surpresa quando nada aconteceu e ele sorriu para
mim! Sua luz comeou a brilhar intensamente e pude ver que ele realmente era um anjo de
Deus. Olhei para o bezerro no cho e o mesmo se transformara em uma espada de ouro.
Fiquei parada, sem saber como agir. Nesse momento, todas as grandes feras anteriores
saram juntas de dentro da floresta, correndo e rosnando alucinadas na minha direo. Fiquei
desesperada e pensei em correr, havia fria nos olhos delas. O leo tinha olhos vermelhos e
mostrava suas presas, o leopardo era o mais veloz e s o lobo quase o acompanhava, ambos
vinham correndo e se empurrando para ver quem me pegava primeiro. O urso tambm
mostrava os dentes e em seu pescoo vinha enrolada a serpente, pronta para dar o bote como
antes. O drago lanava suas chamas de fogo e suas passadas faziam o cho tremer em volta
de mim. Olhei para o anjo e ele me retribuiu o olhar, depois olhou para a espada me indicando
o que fazer. Olhei o objeto e me abaixei para peg-la, ainda sem entender. Eu me posicionei
na direo deles e segurei-a firme, com as duas mos para a frente. Estava com medo, mas
no iria mais fugir. Estendi minha espada o mximo que pude e fechei os olhos. Se aquele
fosse o meu fim, eu no iria morrer sem lutar. De repente, ouvi um estrondo vindo de cima! O
cu nublado e cinzento se abriu e eis que o anjo se abaixou em reverncia; no consegui me
abaixar, no conseguia me mexer vendo tamanha luz.
Do cu, o meu cavaleiro salvador surgiu com seu arco, agora eu sabia quem Ele era: o
meu melhor amigo. As feras temeram diante dele, todas pararam ao avistar sua presena e se
encolheram como se fossem gatinhos. Com um s tiro, ele atingiu todas elas de uma vez, que
desapareceram como fumaa. Depois, com uma enorme cavalgada Ele se aproximou de mim,
sua luz era to forte que quase me cegou. Mas pude ouvi-Lo dizer: Leia! E sua voz era
como um trovo.
Ainda estava meio cega quando a luz foi se afastando, e Ele cavalgando de volta para os
cus. No, no era um sonho. Foi a maneira que Deus achou para falar comigo. Olhei para
minha mo e vi que a espada se transformara em uma Bblia. Abri imediatamente e li o nico
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versculo que estava escrito naquela:
Os cus e a terra tomo hoje por testemunhas contra vs, de que te tenho proposto a
vida e a morte, a bno e a maldio; escolhe pois a vida, para que vivas, tu e a tua
descendncia. (Deuteronmio 30:19)
Uma lgrima de gratido desceu pelo meu rosto. Ele no desistira de mim. Mesmo
depois de tantos pecados, Ele realmente me amava. Entendi que sempre foram anjos com as
bandejas, eu no podia ver porque estava longe de Deus. Eles s se transformavam em
demnios quando eu escolhia o pecado. Cada item que me foi oferecido representava um
pecado meu. A ma era a cobia, o mel a vaidade, o vinho a minha luxria, a fita a minha
idolatria, a faca a minha ira, a semente que no toquei seria o meu orgulho ferido, que me
impediria de perdoar.
As nuvens tinham ido embora e um grande sol se ps naquele lugar. Olhei para o meu
corpo e eu tinha oito anos novamente. Levantei o rosto para o cu, agradecida, e com as duas
mos mandei um beijinho para o meu Pai, como uma criana faria. Enfim, comecei a correr
livre por aquele grande espao que Deus me deu: a minha vida!
Aprendi que escolher o errado sempre mais fcil, as coisas boas e
permanentes nem sempre so as primeiras a aparecer. Se dependermos de
Deus, no cometeremos os mesmos erros de quando somos independentes
Dele. As escolhas so nossas... Rejeite a maldio e a beno te alcanar.
Fim
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Conhea a continuao, a histria de Rico Entre a mente e o corao
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