Este documento apresenta uma introdução sobre a produção historiográfica sobre a Baixada Fluminense e o município de Duque de Caxias. A seguir, divide-se em quatro capítulos que abordam: 1) o passado agrário e escravista de Iguaçu e Estrela; 2) a transição entre o rural e o urbano-industrial no século XX; 3) o tenorismo e as disputas políticas locais e regionais; 4) Caxias como local de trabalhadores e desordem no período de 1900 a 1964.
Este documento apresenta uma introdução sobre a produção historiográfica sobre a Baixada Fluminense e o município de Duque de Caxias. A seguir, divide-se em quatro capítulos que abordam: 1) o passado agrário e escravista de Iguaçu e Estrela; 2) a transição entre o rural e o urbano-industrial no século XX; 3) o tenorismo e as disputas políticas locais e regionais; 4) Caxias como local de trabalhadores e desordem no período de 1900 a 1964.
Este documento apresenta uma introdução sobre a produção historiográfica sobre a Baixada Fluminense e o município de Duque de Caxias. A seguir, divide-se em quatro capítulos que abordam: 1) o passado agrário e escravista de Iguaçu e Estrela; 2) a transição entre o rural e o urbano-industrial no século XX; 3) o tenorismo e as disputas políticas locais e regionais; 4) Caxias como local de trabalhadores e desordem no período de 1900 a 1964.
Este documento apresenta uma introdução sobre a produção historiográfica sobre a Baixada Fluminense e o município de Duque de Caxias. A seguir, divide-se em quatro capítulos que abordam: 1) o passado agrário e escravista de Iguaçu e Estrela; 2) a transição entre o rural e o urbano-industrial no século XX; 3) o tenorismo e as disputas políticas locais e regionais; 4) Caxias como local de trabalhadores e desordem no período de 1900 a 1964.
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MARLCIA SANTOS DE SOUZA
ESCAVANDO O PASSADO DA CIDADE
Histria Poltica da Cidade de Duque de Caxias
UFF - NITERI
2002
2
NDICE
Introduo A produo sobre a Baixada Fluminense A produo sobre a Histria do Municpio de Duque de Caxias
Captulo I. Antecedentes histricos: o passado agrrio e escravista de Iguau e Estrela. I.1 A lgica da ocupao portuguesa em Iguau e Estrela I.2 Os caminhos da f I.3 Os caminhos do ouro e do caf em Iguau e Estrela I.4 Os elementos da desordem no sculo XIX I.5 Novos deslocamentos e a crise do escravismo fluminense em Iguau e Estrela
Captulo II. Entre o rural e o urbano-industrial: a produo de uma regio moderna e as disputas polticas locais II.1 A expanso urbana em Caxias e o poder poltico local nas primeiras dcadas do sculo XX II.2 A trajetria de Tenrio Cavalcanti: situao exemplar II.3 A disputa poltica em Caxias no Ps-30 II.4 As marcas do projeto de colonizao e modernizao do Estado Novo II.5 Os ncleos coloniais: cinturo verde da capital II.6 Caxias: uma cidade para menores II.7 A Fbrica Nacional de Motores e a cidade imaginada
Captulo III. O tenorismo por meio da Luta Democrtica e as disputas pelo poder poltico local e regional III.1 Tenrio na corte da rainha UDN III.2 As trs faces da Luta Democrtica III.2.1 A face udenista III.2.2 A face trabalhista III.2.3 A terceira face: o retorno conservador e o silncio
Captulo IV. Caxias: lugar do trabalhador e da desordem IV.1 A presena comunista em Caxias IV.2 A presena comunista no movimento campons IV.3 A presena comunista no movimento operrio da FNM IV.4 A disputa pela representao operria e camponesa IV.5 Evas agitadoras e vermelhas IV.6 O debate tnico e a Unio Cultural dos Homens de Cor IV.7 O saque de 62: movimento operrio e polcia privada
3 IV.8. O golpe militar e a consolidao da ordem
Concluso
Anexos
Bibliografia
AGRADECIMENTOS
A realizao deste trabalho s foi possvel por conta das contribuies recebidas de diversas pessoas e instituies de pesquisa. Portanto, gostaria de agradecer a: Prof. Dra. Vrgnia Fontes, pela competncia, partilha, carinho e calmaria nos momentos de minhas tormentas; Prof. Dra. Sonia Regina de Mendona, pela contribuio quando o trabalho ainda era incipiente; CNPq e CAPES, pela ajuda financeira dispensada a esta pesquisa; Associao de Professores Pesquisadores de Histria Clio e Centro de Memria, Histria e Documentao da Histria da Baixada Fluminense/FEUDUC, pelo acesso ao acervo e pela solidariedade incondicional de Antnio Jorge, Antnio Augusto, Alexandre Marques, Maria do Carmo, Claudinei, Nielson, Erclia, Ndia, Auzenir, Paulo Pedro, Marize de Jesus, Shirley, Sandra, Elizabete, Maria Jos e Ceclia; Arquivo da Arquidiocese de Petrpolis, Biblioteca Nacional, Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro e Arquivo Nacional, e todos os seus funcionrios, sempre dispostos a contribuir quando solicitados; Instituto Histrico de Duque de Caxias e o de Nova Iguau, em especial nas pessoas de Tnia M. Almeida e Ney Alberto, pelo acesso ao acervo e pelo carinho no atendimento; Jos Cludio Souza Alves, pela reviso final do trabalho, pela contribuio nas discusses e pela presena qualitativa e afetiva nos momentos difceis; Companheiros do Sindicato dos Profissionais da Educao SEPE/Ncleo de Duque de Caxias, pelo incentivo e compreenso de minhas ausncias. Meu agradecimento especial a Ftima Davi, Elosa, Marisa, Soneli, Ndia, Dalva, Rodnei, Neide, Arilson, Daniela, Cristina, Nilda, Ruth, Leontina, Ktia Veillard e Tuninhos;
4 Todos que concederam entrevistas e, em especial, Rogrio Torres, pela disponibilidade, carinho e acesso a seu acervo pessoal; Meus pais, Hilda e Souza, desbravadores desta cidade, meu filho, Gabriel, e toda a minha famlia, pelo amor eterno; Meus amigos e companheiros de luta que ainda sonham com um mundo diferente do atual: Marlene, Zoraida, Tereza Duarte, Romildo, Fernando, Luciene, Leu, Viviane, Deise, Miguel, Celso, Paulinha, Marina, Maria, Solange, Joo, Nina, Tereza Franco, Joana, Rita, Edna, Ivanete, lvaro, Darcy, Alair, os arcamundianos e meus irmos baianos; Meus amigos da Ps-graduao da UFF, que partilharam comigo seus projetos e saberes, em especial Mrcia, Dbora, Marcela e Ccero.
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INTRODUO
O presente trabalho teve origem em minha dissertao de Mestrado em Histria na Universidade Federal Fluminense. Consiste no esforo de escavar o passado da cidade de Duque de Caxias no perodo de 1900 a 1964, privilegiando o mapeamento dos diferentes grupos de poder e dos projetos polticos em disputa no seu interior. Memrias silenciadas das organizaes e experincias dos trabalhadores, assim como de seus projetos de mundo e de lugar, so partes significativas deste livro. Consideradas igualmente importantes so as trajetrias das principais lideranas locais e regionais, as memrias das disputas polticas entre o Amaralismo e o Tenorismo, entre aqueles que disputavam a representao e o voto dos trabalhadores. Escavar o passado da cidade um esforo de desenterrar as runas da estrutura arquitetnica do poder em Duque de Caxias. Um difcil trabalho de levantamento de dados e fontes, de apresentao do processo de ocupao e do dilogo estabelecido entre a sociedade com esse espao na longa durao. O mapeamento dos vrios grupos de poder e a identificao das tenses, contradies e disputas operadas no espao local revelam um conjunto de projetos polticos e de interpretaes da cidade que requer uma anlise mais aprofundada. Esta pesquisa realizou mais um levantamento. Um trabalho caleidoscpico de momentos, movimentos e conflitos a serem analisados. Duque de Caxias um dos municpios que compem a Baixada Fluminense. No entanto, as definies do que vem a ser Baixada Fluminense so mltiplas. Geograficamente, a Baixada Fluminense corresponderia regio de plancies que se estendem entre o litoral e a Serra do Mar, indo do municpio de Campos, no extremo Norte, at o de Itagua, prximo cidade do Rio de Janeiro. 1 Outro conceito fisiogrfico utilizado pelos gegrafos e tambm recorrente o de Baixada ou Recncavo da Guanabara, restrito regio do entorno da Baa de Guanabara, indo de Cachoeira de Macacu a Itagua. 2
Em 1962, o jornalista do Dirio ltima Hora, Maurcio Hill, conceituou a Baixada Fluminense como o Nordeste sem seca, ao compar-la com regies do pas com gritante situao de misria e onde proliferavam as ligas camponesas. Mrio
1 GEIGER, P. Pinchas e SANTOS, Ruth Lyra. Notas sobre a evoluo da ocupao humana da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: IBGE, 1955, pp. 292-293. 2 SOARES, M. T. S. Nova Iguau. Absoro de uma Clula Urbana pelo Grande Rio, Revista Brasileira de Geografia, n 2, ano XVII, Rio de Janeiro: IBGE, 1955.
6 Grynszpan partiu dessa concepo para estudar a mobilizao camponesa na Baixada Fluminense, definindo-a em funo dos conflitos agrrios estudados e abrangendo: Duque de Caxias, Nova Iguau, Mag, Itagua, Itabora e Cachoeira de Macacu. 3
J a Fundao para o Desenvolvimento da Regio Metropolitana do Rio de Janeiro (FUNDREM), adotando critrios como grau de urbanizao, violncia e densidade populacional, restringiu a Baixada ao que ela denominou de Unidades Urbanas Integradas a Oeste (UUIO) do Rio de Janeiro. Segundo esse critrio, a Baixada Fluminense seria composta pelos atuais municpios de Duque de Caxias, So Joo de Meriti, Nilpolis, Nova Iguau, Belford Roxo, Queimados, Japeri e Mesquita (ver Anexo 1). Recentemente, o Centro de Memria da Histria da Baixada Fluminense/FEUDUC elaborou um roteiro de visitao denominado Os Caminhos da F e do Barroco na Baixada Fluminense, em funo da exposio Devoo e Esquecimento. Presena do Barroco na Baixada Fluminense, realizada pela Casa Frana-Brasil, em parceria com a FEUDUC. A denominao de Baixada Fluminense utilizada na exposio e no roteiro abrangia os oito municpios citados pela FUNDREM, acrescida por Mag e Guapimirim, ou seja, as cercanias da Guanabara, excluindo-se Rio de Janeiro, Itabora e Niteri. justamente nesse territrio da Baixada que a presena de uma arte colonial de influncia barroca teve presena significativa, com um acervo exuberante e esquecido. As mais importantes igrejas de estilo barroco, quase sempre de frente para o mar ou para os rios, favorecem o entendimento da lgica ordenada no perodo colonial e dos caminhos que integravam a sede do governo-geral com o planalto mineiro. O recorte utilizado pelo poder pblico na dcada de 1990 e no incio do sculo XXI o fisiogrfico e compreende os municpios de Nova Iguau, Duque de Caxias, So Joo de Meriti, Belford Roxo, Queimados, Mesquita, Japeri, Nilpolis, Mag, Guapimirim, Paracambi, Seropdica e Itagua. Est evidenciado que o conceito de Baixada Fluminense possui mltiplas definies e seu recorte se altera a partir do objeto do pesquisador, dos objetivos das instituies de pesquisa e dos rgos pblicos. Logo, mesmo no campo fisiogrfico, as fronteiras da regio ora so alargadas ora se encurtam.
3 GRYNSPAN, Mrio. Mobilizao Camponesa e Competio Poltica no Estado do Rio de Janeiro (1950-1964). Rio de Janeiro, 1987, pp. 17-20. Dissertao de Mestrado pelo Museu Nacional.
7 A Baixada Fluminense aqui empregada se aproxima das UUIO elaboradas pela FUNDREM. No passado colonial, esses municpios fizeram parte de Iguau e Estrela, e foram pensados enquanto um conjunto. No sculo XIX, esse territrio foi organizado a partir da criao de duas Vilas, a de Iguau e a de Estrela, tendo sua histria articulada. No incio do perodo republicano, uma reforma administrativa transformou esse territrio num nico municpio, o de Nova Iguau, que, a partir da dcada de 1940, experimentou um processo de fragmentao, com o surgimento dos municpios de Duque de Caxias, Nilpolis, So Joo de Meriti, Belford Roxo, Japeri, Queimados e Mesquita. Alm disso, no passado agrrio, o territrio do atual municpio de Duque de Caxias localizava-se nos limites de Iguau e de Estrela. Parte do territrio das Freguesias de Meriti e Jacutinga compe atualmente o primeiro e o segundo distritos de Caxias. A Freguesia do Pilar atualmente compe o segundo e o quarto distrito. J o territrio da antiga Vila de Estrela, que foi partilhado entre o municpio de Mag e o de Nova Iguau aps a sua extino, deu origem ao terceiro distrito. Hoje, o municpio de Duque de Caxias est dividido administrativamente em quatro distritos: Duque de Caxias, Campos Elseos, Imbari e Xerm. Caxias atualmente o terceiro municpio mais populoso do Estado do Rio de Janeiro, ficando atrs de So Gonalo (889.828) e do municpio do Rio (5.851.914). Sua populao est estimada atualmente em 770.865 habitantes, 4 concentrados praticamente no primeiro e no segundo distritos. Seu territrio recortado pelas Rodovias Washington Lus e Rio- Mag, formando corredores de expanso populacional e de atrao de investimentos pblicos e privados. Tais investimentos tm favorecido a produo de uma imagem da cidade em vias de integrao lgica modernizadora promovida pelo mercado (ver Anexo 2). Sua proximidade com a cidade do Rio de Janeiro (ver Anexo 3) foi facilitada pela construo das Linhas Vermelha e Amarela. A duplicao da Rodovia Washington Lus e os incentivos municipais atuaram como atrativos a novos investimentos, principalmente na ampliao do plo petroqumico e na inaugurao do plo gs- qumico. Um outro setor que se vem destacando o do consumo, retratado pelos investimentos na instalao de shoppings, hipermercados e lojas de marca que concorrem com os pequenos e mdios comerciantes locais.
4 Censo de 2000 (IBGE). In: MARTINS, Alex e SOARES, Sergio. Cidades Lotadas. IBGE Divulga os Primeiros Nmeros do Censo de 2000. Baixada Fluminense a Regio que mais Cresceu. Jornal O Dia, Rio de Janeiro, 20 de maio de 2001.
8 Apesar de Duque de Caxias ser o segundo municpio do Estado do Rio de Janeiro em arrecadao de ICMS, so visveis a ausncia de infra-estrutura urbana e as precrias condies de vida de sua populao. Segundo o Mapa da Excluso Social, elaborado em 1991 pelo IPPUR/UFRJ, 5 a Baixada Fluminense concentrava 26% da populao total do estado, sendo o segundo colgio eleitoral. O rendimento mdio dessa populao situava-se em torno de um salrio-mnimo, contra 5,5 salrios da Zona Sul carioca e de Niteri, alm de 1,4 da mdia do estado. A Baixada Fluminense detinha apenas 10% do total da renda familiar, o que revela uma segregao espacial e econmica brutal. A segregao construda historicamente nessa periferia e a utilizao da violncia como instrumento de manuteno do domnio do poder poltico local e de proteo propriedade geraram a produo de dois fenmenos que tm sido marcas de identificao da Baixada, principalmente nas ltimas duas dcadas: o extermnio e a ascenso de matadores no domnio do Legislativo e do Executivo local. 6
A Folha de So Paulo publicou, no dia 17 de outubro de 1999, uma lista dos municpios mais violentos do Brasil. Caxias se enquadra na lista como a cidade mais violenta do estado do Rio de Janeiro e a dcima quarta do pas, com uma taxa de 76,6 homicdios por cem mil habitantes. Uma guerra oculta e sem direito solidariedade ou a julgamento, se considerarmos que a ONU estipulou o ndice de cinqenta mortos por cem mil habitantes para que uma regio seja definida como em estado de guerra e receba ajuda internacional. A revista poca, de 30 de agosto de 1999, comparou o nmero de homicdios na Baixada Fluminense com os mortos na guerra de Kosovo, entre 24 de maro e 9 de junho. Morreram mais pessoas exterminadas na Baixada Fluminense do que nos ataques da Otan em Kosovo. Aproximadamente 606 pessoas foram mortas durante os bombardeios a Kosovo. Durante o mesmo perodo, 647 pessoas foram executadas na Baixada Fluminense, uma mdia de oito mortos por dia, um a cada trs horas. No municpio de Duque de Caxias foram executadas 183 pessoas em apenas quatro meses. 7
Aparentemente, poderamos afirmar a existncia de um paradoxo: uma cidade portadora de um oramento significativo e de um crescimento econmico relevante para
5 Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. 6 Para saber mais, ver ALVES, Jos Cludio Souza. Baixada Fluminense: a violncia na construo de uma periferia. So Paulo: USP, 1998. 7 Os dados foram obtidos por Alexandre Medeiros. Ele comparou os dados fornecidos pelo relatrio Who Nato Killed, divulgado pelo Ministrio da Informao da Srvia, com os dados obtidos nos livros de ocorrncias dos Institutos Mdico-Legais dos municpios da Baixada Fluminense.
9 a conjuntura fluminense, com ndices de pobreza e violncia to altos. Todavia, o que temos o retrato de uma periferia, no uma periferia qualquer, mas de uma periferia do principal porto de escoamento de ouro do planalto mineiro do sculo XVIII, do centro poltico do Imprio e da Repblica at os anos 60. Atualmente, periferia de uma importante metrpole brasileira, o que j indica a relevncia da pesquisa no campo da historiografia. A opo pela anlise do processo histrico da produo dessa periferia se deu tambm por conta de minha atuao nos movimentos sociais, no Sindicato dos Profissionais da Educao (SEPE), no Centro de Memria da Histria da Baixada Fluminense e na Associao de Professores Pesquisadores de Histria (APPH-Clio). 8
A militncia poltica possibilitou-me o acesso a dados e discusses acerca da realidade social do municpio. J a atuao no Centro de Memria e na Associao de Professores permitiu o contato com produes historiogrficas acerca da Baixada Fluminense. A preocupao com a memria local, a necessidade de compreender a Histria da regio e a inquietao frente ao esquecimento e ao silncio dessa Histria nos bancos escolares me levaram a participar de mltiplas experincias de divulgao dos trabalhos existentes e a produzir material que facilitasse o acesso a eles. Ao mesmo tempo, fez surgir a necessidade de um estudo dinmico de uma Histria da produo dessa periferia, vista aqui no como exceo, mas como produto e meio de produo e reproduo da vida social. Caxias no visto aqui como um lugar esterilizado, desprovido de Histria, e sim como um lugar modelado pelas condies materiais e naturais herdadas, bem como pela ao contnua dos diferentes sujeitos histricos. Milton Santos aponta a necessidade de pensarmos o territrio como espao usado, carregado de heranas culturais e materiais do passado e do tempo presente. No esforo de compreender o territrio e seu uso, faz-se necessrio incluir os diferentes atores sociais e o dilogo estabelecido com o lugar. 9
O processo de ocupao do territrio da Baixada Fluminense, particularmente de Duque de Caxias, foi desenhado a partir dos interesses dos grupos dominantes locais subordinados aos ncleos centrais de poder e dos interesses dos grupos que detinham o controle do aparelho burocrtico e poltico do poder central. Ao mesmo tempo, foi
8 A Associao foi criada por um grupo de professores de Histria preocupados com a produo acadmica da Histria da Baixada Fluminense. 9 Territrio e Sociedade. Entrevista com Milton Santos. So Paulo: Fundao Perseu Abramo, 2000.
10 produzido pelas formas de ocupao popular, por meio de autoconstruo de moradias, ocupaes urbanas, formao de favelas, lutas dos lavradores pela terra e prticas de movimentos sociais que buscavam a implantao de equipamentos urbanos como saneamento, pavimentao, passarelas, escolas, postos, hospitais pblicos etc. Mike Davis, em seu livro Cidade de Quartzo, instiga a pensar as formas encontradas e aplicadas pelo capitalismo nos espaos geogrficos. 10 No caso vertente, escavar o passado tambm nos coloca frente a frente com as mltiplas facetas do capitalismo em uma periferia muito prxima a um importante centro poltico do pas, uma periferia modelada por um processo de industrializao fortemente impulsionado pela verba pblica. Ao mesmo tempo, uma periferia desprovida de investimentos pblicos em polticas que garantam o mnimo de condies de vida para o conjunto dos trabalhadores. Maurcio de Abreu apontou, em seu estudo sobre a evoluo urbana da cidade carioca, que grande parte dos recursos pblicos tem privilegiado apenas os locais que asseguram um retorno financeiro ao capital investido, isto , as reas ricas, promovendo uma disparidade em relao s periferias, que, quanto mais distantes das reas privilegiadas da cidade, mais se afastam do acesso oferta de meios de consumo coletivo e de renda. 11
O que podemos observar nessa periferia que os parcos investimentos pblicos em equipamentos urbanos beneficiaram os setores privados envolvidos no controle da propriedade rural, do comrcio e da especulao imobiliria. A ausncia de polticas pblicas que atendessem s necessidades do conjunto dos trabalhadores fortaleceu prticas polticas clientelsticas, beneficiando aqueles que promovem o assistencialismo. J os investimentos estatais na produo foram mais significativos em Caxias, onde reas vazias e baratas foram utilizadas para implementar os projetos de desenvolvimento industrial, de abastecimento agrcola e de colonizao, transformando essa rea em lugar de transbordo populacional do aglomerado urbano carioca. A concentrao de trabalhadores pobres em uma regio desprovida de infra- estrutura, assim como a luta pela terra e por melhores condies de trabalho, transformaram a regio em espao de tenses, onde constantemente o consentimento no se consolidava e o uso da coero tornou-se a nica estratgia de controle social.
10 DAVIS, Mike. Cidade de Quartzo. So Paulo: Pgina Aberta, 1993. 11 ABREU, Maurcio. Evoluo urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO, 1997, p. 11.
11 Francisco de Oliveira nos alerta ainda, em seu ensaio Crtica Razo Dualista, para a simbiose, a organicidade, a unidade entre um setor atrasado e um setor moderno, ou seja, o moderno se alimenta do atrasado. Em Caxias, o que se verifica em todo o seu processo de modernizao a sua imbricao com o arcaico, isto , com a violncia, o autoritarismo, o clientelismo, o paternalismo e o assistencialismo. Mesmo no caso dos projetos getulistas que se apresentavam como modernizadores, encontra-se a permanncia de prticas polticas e alianas que poderiam ser classificadas de atrasadas. Nesse sentido, analisar o processo histrico de produo e controle dessa periferia implica: problematizar as condies de sua construo, considerar a simbiose existente entre o moderno e o arcaico, mapear as diferentes foras polticas, identificar as relaes estabelecidas entre o centro e a periferia, e entre os vrios grupos de poder que se articulam ou que disputam o controle do poder local.
A produo sobre a Baixada Fluminense
O debate acerca da definio do que seria a Baixada Fluminense acaba nos remetendo s variadas interpretaes recebidas ao longo do tempo. Diferentes grupos de estudiosos, pesquisadores e instituies falaram sobre a Baixada a partir de abordagens especficas. As primeiras obras sobre a Baixada, de carter histrico, relataram os aspectos da ocupao da regio no perodo colonial at o sculo XIX. So memrias 12 ou relatos de viajantes 13 que descreveram a geografia, a organizao administrativa e religiosa das freguesias e o cotidiano encontrado. Essas memrias e relatos, assim como os relatrios do Marqus do Lavradio, tornaram-se o lugar de visitao do memorialista iguauano Jos Maia Forte. A obra Memria da Fundao de Iguassu foi um marco da produo sobre a Baixada Fluminense e inaugurou uma tradio baseada na afirmao da Baixada como lugar de memria e de Histria. Uma Histria que privilegiava a compilao dos
12 Inventrios e memrias histricas de Pizarro. As memrias histricas foram publicadas em 1945. Ver ARAJO, J. de S. A. Pizarro. Memrias histricas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945, vv. 1, 2 e 3. 13 SAINT-HILAIRE, Augusto. Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Geraes. Rio de Janeiro: Companhia da Editora Nacional, 1932 [Coleo Biblioteca Pedaggica Brasileira, srie V, V.V.]; SILVA, Danuzio Gil Bernardino da (org.). Os dirios de Langsdorff, v. I Rio de Janeiro e Minas Gerais. Campinas: Associao Internacional de Estudos Langsdorff/Rio de Janeiro: FIOCRUZ e Casa de Oswaldo Cruz, 1997.
12 documentos oficiais, o relato dos fatos, a exaltao da importncia poltica da regio e dos grandes personagens polticos. 14 Maia Forte privilegiou em sua composio o passado colonial e a fundao da Vila. Baseando-se principalmente em Monsenhor Pizarro, realizou um trabalho de investigao, identificando as freguesias constitudas no territrio iguauano. O trabalho realizado por Maia tornou sua obra pioneira na historiografia da Baixada Fluminense. A obra de Maia Forte foi acompanhada pela publicao de Polyantha Comemorativa ao Primeiro Centenrio do Municpio de Nova Iguau. Ambas fizeram parte de um conjunto de iniciativas de comemorao do centenrio do municpio, fundado em 1833. Enquanto a obra de Maia Forte descrevia as memrias da fundao da Vila de Iguau, Polyantha apresentava as caractersticas do municpio naquele momento. O material era composto pelo mapa e pelo braso do municpio, por fotos do interventor federal no estado do Rio de Janeiro, Ary Parreiras, e seus auxiliares, fotos do Chefe do Governo Provisrio, Getlio Vargas, e de polticos locais como: do interventor do municpio, Arruda Negreiros; do Deputado Federal, Manoel Reis; de membros da Associao dos Fruticultores; de juristas; do Baro do Tingu e do Coronel Bernardino Soares, smbolos do passado glorioso. Havia ainda um conjunto de fotos dos vrios distritos, das melhores residncias, dos prdios pblicos, das igrejas, dos investimentos do Governo Provisrio no melhoramento das estradas, das inauguraes que contaram com a presena de Vargas, comparando a Nova Iguau de antes com a de 1933, ou seja, aps a interveno do governo de Vargas. Na parte final da obra, havia um conjunto de textos e artigos de jornais que exaltavam o municpio e seus distritos, os homens iguauanos de projeo nacional e regional, como Duque de Caxias, o Comendador Francisco Soares, o Mrquez de Itanhaem e o liberal Rangel Pestana. Todo esse acervo publicado afirmava uma imagem triunfante do municpio, exaltava a figura dos interventores e principalmente do lder nacional.
14 MAIA FORTE, J. Mattoso. Memria da fundao de Iguau. Rio de Janeiro: Typ. do Jornal do Commercio, 1933; LUSTOSA, Jos. Cidade de Duque de Caxias: desenvolvimento histrico do municpio - dados gerais. Rio de Janeiro: IBGE, 1958; MEDEIROS, Arlindo de. Memria histrica de So Joo de Meriti. So Joo de Meriti: Edio do Autor, 1958; VELHO, Las Costa. Caxias ponto a ponto. Duque de Caxias: Agora, 1965; PEIXOTO, Rui Afrnio. Imagens iguauanas. Nova Iguau: Edio do Autor, 1968; PEREIRA, Waldick. A mudana da Vila. Nova Iguau: Arsgrfica, 1970, e Cana, caf e laranja. Rio de Janeiro: FGV/SEEC do Rio de Janeiro, 1977; MORAES, Dalva Lazaroni. Esboo histrico-geogrfico do municpio de Duque de Caxias. Duque de Caxias: Arsgrfica, 1978; PEREZ, Guilherme. Baixada Fluminense: os caminhos do ouro. Rio de Janeiro: Impresso Brasil Grfica Register, 1993.
13 Na dcada de 1940, foi publicado o artigo Geografia dos Transportes no Brasil, de Moacir M. F. Silva, 15 editado pela Revista Brasileira de Geografia. O artigo estabelece apenas uma descrio dos caminhos do ouro e das estradas que integravam o porto carioca ao planalto mineiro e ao Vale do Paraba cafeeiro. Em sua descrio, so relatados em detalhes os caminhos que cortavam a Baixada Fluminense, sem, contudo, estabelecer qualquer anlise acerca das marcas desses caminhos na Baixada e em Petrpolis. As obras dos memorialistas que foram produzidas nas dcadas de 1950 a 1970 esto relacionadas ao esforo de construo da Histria dos municpios recm- emancipados de Nova Iguau. 16 Orientados pela leitura da obra de Maia Forte e das fontes por ele utilizadas, elaboram uma Histria para So Joo de Meriti e Duque de Caxias. Alm do passado agrrio, descrevem aspectos acerca dos grandes vultos e heris do municpio, dos prdios importantes e da vida pblica, exaltando a grandeza dessas localidades. Uma historiografia que tentava reagir s conturbaes experimentadas nessa imensa periferia urbana como: o rpido crescimento populacional, a subalternizao, a violncia, a idia de atraso, a viso de lugar desprovido de identidade e de Histria. Pretendia-se negar a imagem de periferia meramente depositria de mo-de-obra barata e desqualificada, ou seja, de uma periferia nomeada de dormitrio, imagem to veiculada pela imprensa. 17
No mesmo perodo, um grupo de gegrafos ligados ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) passou a produzir vrias interpretaes da Baixada. 18 O lugar de produo dos gegrafos se distinguia dos memorialistas pelas teorias e metodologias aplicadas, pela escrita e apresentao dos objetos, e principalmente pelo distanciamento da interferncia do poder poltico local em suas pesquisas. Enquanto as produes locais caracterizavam-se pelo tom ufanista e apaixonado, as dos geogrficos possuam um carter mais crtico e analtico.
15 SILVA, Moacir M. F. Geografia dos Transportes no Brasil. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, ano II, n 2, abril de 1940. 16 Caxias se emancipou em 1943; So Joo e Nilpolis, em 1947. 17 LUSTOSA, Jos. Cidade de Duque de Caxias: desenvolvimento histrico do municpio - dados gerais. Rio de Janeiro: Servio Grfico do IBGE, 1958; MEDEIROS, Arlindo. Memria histrica de So Joo de Meriti. Rio de Janeiro: Edio do Autor, 1958, e Reportagens fluminenses. So Joo de Meriti: Edio do Autor, 1929; VELHO, Las Costa Velho. Caxias ponto a ponto (1953-57). Duque de Caxias: Agora, 1965; LAZARONI, Dalva. Esboo histrico-geogrfico do municpio de Caxias. Duque de Caxias: Arsgrfica, 1978. 18 GEIGER e SANTOS, 1955; GEIGER e MESQUITA, 1956; SOARES, 1962; LAMEGO, 1945, 1963 e 1964; GEIGER, 1978.
14 Atento relao da Baixada com a metrpole carioca, a produo dos gegrafos esteve centrada na anlise do processo de ocupao humana na regio, levando-se em considerao as condies ambientais herdadas, a base econmica constitutiva do passado agrrio e a anlise do processo de transio do rural para a absoro da Baixada enquanto clula urbana incorporada ao Rio de Janeiro. A obra de Geiger e Ruth Santos, Notas sobre a evoluo da ocupao humana; a de Geiger e Mesquita, Estudos rurais; a de Terezinha Segadas Soares, Absoro de uma clula urbana; e a de Geiger, Loteamentos na Baixada Fluminense, compem um conjunto de obras do perodo mencionado que focalizou a estrutura agrria da Baixada Fluminense e o processo de sua urbanizao at os anos 50, mantendo-se ainda na atualidade referenciais de relevncia para os pesquisadores. Apesar da importncia das obras dos gegrafos, os memorialistas que produziram no mesmo perodo no estabeleceram uma mediao com essas produes, exceto com as de Lamego: O homem e o brejo, O homem e a serra e O homem e a Guanabara. 19 Por desconhecimento ou pelo desejo de mant-las no esquecimento, a contribuio dos gegrafos ficou restrita academia. Esquecer, silenciar as falas de fora, ou seja, dos que no eram interlocutores do local, era algo tambm associado ao fato de que a contribuio dos gegrafos no servia proposta de exaltao da Baixada e de suas memorveis lideranas polticas. O mesmo processo pode ser identificado nas obras produzidas nos anos 70 acerca de Estrela: um artigo do IHGB e uma dissertao de mestrado da UFF. 20 O artigo de Azevedo Pond, O Porto Estrela, apresenta uma narrativa das condies fundadoras do porto, de seu apogeu e decadncia no sculo XIX. Segundo ele, a decadncia produzida fora provocada pelo trmino da escravido e das condies de insalubridade. Interessante ressaltar que o discurso da decadncia tambm estava presente nas obras dos memorialistas locais, isto , a idia de um passado glorioso quando os bares viviam seu apogeu e a idia de decadncia ps-abolio e o impaludismo. J a dissertao de Vnia Fres, O Municpio de Estrela (1846-1892), dedicou-se ao estudo do processo de fundao e desmantelamento da Vila de Estrela.
19 LAMEGO, Alberto Ribeiro. O homem e o brejo. Rio de Janeiro: Geogrfica Brasileira, 1945; O homem e a serra. Rio de Janeiro: IBGE-CNG, 1963; O homem e a Guanabara. Rio de Janeiro: IBGE, 1964. 20 AZEVEDO POND, F. de P. O Porto Estrela, Revista do IHBG, v. 293, Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1972; FRES, Vnia. Municpio de Estrela (1846-1892). Rio de Janeiro, 1974. Dissertao de Mestrado pela UFF.
15 Apesar de no desconsiderar as condies ambientais existentes, a autora aponta outras causas para o desmonte da estrutura administrativa do municpio de Estrela: a implantao da Estrada de Ferro Pedro II, que beneficiou o cafeicultor, mas tambm desviou a via de circulao Rio e Minas Gerais para outras reas. Ela aponta indicativos para que se pense acerca do impacto dos interesses do centro nessa periferia. Mesmo diante da importncia da obra de Vnia Fres para pensar a regio no sculo XIX, apenas o artigo de Azevedo Pond foi citado por um dos memorialistas. A constatao feita indica tambm outra possibilidade: os memorialistas tinham mais facilidade de acessar as publicaes do IHBG e do IBGE. As dissertaes e teses pareciam distantes, sem um mltiplo reconhecimento, raras eram as excees. O distanciamento empobrecia as interpretaes construdas no local, mantendo-as ainda prisioneira de uma Histria factual com um amontoado de dados compilados. Ainda nos anos 60 e 70, alguns iguauanos, professores e proprietrios de escolas em Nova Iguau, compunham um grupo que poderamos nomear de Guardies da Memria de Nova Iguau. 21 Colecionavam peas e documentos cartoriais, jornais, iconografias e obras j produzidas acerca de Iguau no Instituto Histrico. Organizaram uma exposio permanente, encontros de normalistas para rememorar a Histria regional, publicaram pequenos artigos narrando aspectos da Histria Iguauana, refizeram e fotografaram o trajeto das Estradas do Comrcio e da Polcia. Alm disso, eles divulgaram no peridico local, Jornal de Hoje, uma coluna titulada Histria Cronolgica de Nova Iguau, escrita pelo professor Rui Afrnio Peixoto, contendo os principais marcos cronolgicos da Histria local desde 1500 at fins da dcada de 1980. Longe de ser uma obra historiogrfica, tornou-se mais um banco de informaes consideradas por ele importantes. Rui Afrnio tambm reuniu em uma publicao titulada Imagens iguauanas uma coletnea de diversos artigos relativos a assuntos abordados por ele. Os artigos so referentes aos homens ilustres do passado e aos do tempo mais recente, ao Executivo municipal, descrio das nobiliarquias, dos caminhos, das ferrovias, das igrejas, dos procos e at da reproduo de um romance iguauano do sculo XIX. Os artigos no possuam uma ordem cronolgica ou uma temtica; apresentavam informaes e curiosidades acerca de lugares e pessoas. A preocupao central era a de fornecer informaes acerca do passado de Nova Iguau para os professores sem a preocupao
21 Os principais nomes desse grupo eram Rui Afrnio Peixoto, Waldick Pereira e Ney Alberto.
16 de analis-las ou de produzir um sentido para elas. Poderamos classific-la como um ba de coisas que podem ser acessadas pelo pesquisador. 22
Apesar da importncia do trabalho do grupo, apenas duas obras historiogrficas foram produzidas, ambas por Waldick Pereira: A mudana da Vila e Cana, caf e laranja. Sua primeira obra, datada de 1970, trata das causas que promoveram a mudana da sede de Iguau Velho, isto , Vila de Cava, para Maxambomba, no entorno da estao ferroviria. Aparentemente, poderamos afirmar que A mudana da Vila pouco se diferenciaria das demais obras memorialistas. Entretanto, tornou-se clssica no apenas por apresentar as justificativas para a transferncia, mas principalmente pelas cenas apresentadas do cotidiano da Vila de Iguau no sculo XIX. Podemos ver na obra o objeto perseguido pelo autor, o caminho construdo, as fontes utilizadas e a explicao apresentada para a transferncia. Nesse sentido, possvel apontar certo rigor investigativo dos documentos e um esforo de interpretao, marcando, dessa forma, sua diferena em relao s demais obras memorialistas produzidas at o momento. J a segunda obra, datada de 1977, publicada pela Fundao Getlio Vargas e pela Secretaria Estadual de Educao e Cultura, apresenta um perfil acadmico. O autor estabeleceu um dilogo com outras produes cientficas da poca, recorrendo tambm ao uso de um corpus documental representativo. Na introduo de Cana, caf e laranja, Ovdio de Abreu Filho reconhece o pioneirismo de Pereira no que tange produo de uma Histria Econmica de Nova Iguau e a importncia da abordagem do processo da produo de laranja, da decadncia da estrutura agrria e do retalhamento das fazendas e chcaras para compor os loteamentos urbanos. Entretanto, chama a ateno para o fato de a obra estar aprisionada ao modelo dos ciclos econmicos e metfora bionaturalista (idia de ciclo vital: incio, apogeu e decadncia), que naturaliza a economia, desconsiderando as diferenas no nvel de produo. 23
Se, de um lado, a obra pioneira de Waldick indicou possibilidades de pesquisas, apresentou informaes significativas, revelou a importncia do estudo do processo da transio do rural para o urbano em Nova Iguau e fortaleceu a Baixada como lugar possvel de ser investigado; por outro, limitou-se a analisar o quantitativo e os problemas do produto no mercado, ou seja, a circulao em detrimento da produo e das relaes de trabalho.
22 PEIXOTO, Ruy Afrnio. Imagens iguauanas. Nova Iguau: Tip. do Colgio Afrnio Peixoto, 1968. 23 PEREIRA, 1977, p. 6.
17 Um outro aspecto a ser considerado o silenciamento do processo de fragmentao experimentado em Nova Iguau. Os impactos provocados pelas emancipaes de Caxias, So Joo de Meriti e Nilpolis no se constituram naquele momento objeto de pesquisa nem de escritos por parte dos memorialistas. Porm, cada vez mais, a Histria de Nova Iguau foi-se constituindo pelo estreitamento de suas fronteiras e, conseqentemente, os processos histricos dos vizinhos deixam de ter importncia nos escritos do perodo, o que explicaria, no que tange economia, por exemplo, falar da laranja, e no da Fbrica Nacional de Motores ou da produo agrcola dos lavradores da regio. O mesmo ocorre com os memorialistas que investiram na produo de uma Histria para So Joo de Meriti e Caxias, partilharam de um passado agrrio comum a Nova Iguau e traaram histricos recentes desvinculando-se da relao regionalizada, quer seja da relao com o conjunto da Baixada, quer seja da relao com a metrpole carioca. Em nvel regional, a conjuntura da dcada de 1970 ficou marcada tambm pela transferncia da sede da capital federal para Braslia e pela criao, em 1960, do estado da Guanabara. Ao perder o estatuto de sede do poder central, a cidade carioca, agora estado da Guanabara, recupera, de certa forma, uma maior autonomia poltica e, ao mesmo tempo, mantm a posio de importante centro poltico do pas. De 1960 a 1975, pensar a cidade carioca restringia-se a pensar os prprios limites do estado da Guanabara, apesar das interferncias dos municpios-satlites. O escritrio de Arquitetura M. Roberto, ao elaborar, em 1970, um Plano de Desenvolvimento para Duque de Caxias, ressentiu-se da ausncia de um plano de mbito metropolitano que apontasse diretrizes gerais de polticas de desenvolvimento integrado para o conjunto da regio metropolitana. Entretanto, a partir da fuso do estado da Guanabara com o estado do Rio de Janeiro em 1975, a conjuntura foi alterada e colocava como questo poltica e econmica central a construo do que seria a Regio Metropolitana do Rio de Janeiro. Durante o Governo Faria Lima, foi criada a Fundao para o Desenvolvimento da Regio Metropolitana do Rio de Janeiro (FUNDREM), o que favoreceu a produo de vrias pesquisas e levantamentos de dados sobre a Baixada Fluminense, culminando com a produo dos planos diretores das Unidades Urbanas Integradas de Oeste (UUIO). 24 Nos planos, cada municpio analisado na relao com as outras unidades
24 Os planos diretores dos municpios de Duque de Caxias, Nova Iguau, So Joo de Meriti e Nilpolis formavam o conjunto do documento Planejamento Urbano-Baixada Fluminense.
18 administrativas da Regio Metropolitana, principalmente com as UUIO (Baixada Fluminense) e a cidade carioca, estabelecendo-se um quadro comparativo e analtico. As pesquisas revelaram as carncias e distores quanto ao uso do solo, ao sistema virio e aos transportes, sade da populao, educao, ao lazer e infra-estrutura urbana. Na dcada de 1980, as vrias dissertaes de mestrado em planejamento urbano da Coordenao dos Programas de Ps-Graduao de Engenharia (COPPE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) estiveram centradas na concepo da impossibilidade de se pensar a metrpole carioca isoladamente. Logo, qualquer proposta de planejamento urbano para a cidade do Rio de Janeiro deveria estar balizada pela ao integrada da Regio Metropolitana. Ao analisar diferentes temas como investimentos pblicos, localizao residencial, renda familiar, urbanizao, industrializao, migraes e distribuio populacional, esses trabalhos, embora tratando, em sua maioria, da cidade do Rio de Janeiro, incorporam informaes e quadros comparativos do interior da Regio Metropolitana. Conseqentemente, as pesquisas realizadas forneceram uma quantidade de informaes e dados acerca da Baixada Fluminense e revelaram as profundas desigualdades intra-regionais.
A concepo terica que se tornou central para este conjunto de anlises foi a que interpreta a Regio Metropolitana a partir da relao ncleo-periferia. Dessa forma, a Baixada deixa de ser a rea incorporada dos gegrafos, tornando-se a periferia urbana dos urbanistas. Suas deficincias de infra-estrutura, suas populaes carentes e o abandono do poder pblico receberam uma interpretao relacionada com o ncleo privilegiado, formado pelo Centro e pela Zona Sul da cidade carioca. 25
Partindo do mesmo pressuposto terico, o programa de estudos do Centro de Pesquisas Urbanas do Instituto Brasileiro de Administrao Municipal (IBAM) iniciou um conjunto de pesquisas para analisar a influncia das polticas pblicas sobre a distribuio espacial da populao de baixa renda na Regio Metropolitana do Rio de Janeiro. Maurcio de Abreu, um dos responsveis pela pesquisa, buscou os elementos histricos para a discusso da estrutura urbana atual. Seu trabalho centrou-se na anlise do processo de construo/transformao do espao metropolitano carioca de forma integrada, ou seja, que analisasse as aes dos agentes modeladores do Rio de Janeiro no conjunto de suas inter-relaes, conflitos e
25 ALVES, Jos Cludio. Baixada Fluminense: a violncia na construo de uma periferia. So Paulo: USP, 1998.
19 contradies. 26 Parte do resultado dessa pesquisa foi publicada sob o ttulo de Evoluo Urbana do Rio de Janeiro e representou um marco diferenciador nas interpretaes acerca da Baixada Fluminense. Incorporada Regio Metropolitana como rea perifrica, passa a ser interpretada como rea segregada, reservada como espao de ocupao de trabalhadores pobres e desprovida de investimentos pblicos. Em 1995, o Observatrio de Polticas Pblicas e Gesto Municipal, 27 vinculado ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da UFRJ, em parceria com a Federao de rgos para Assistncia Social e Educacional (Fase), organizou um seminrio titulado: Baixada Fluminense: Povo, Cultura e Poder. 28 Nele, foi apresentado o Mapa da Excluso Social da Baixada Fluminense, que comparava padres de renda, infra-estrutura urbana, servios e composio tnica entre a cidade carioca e a Baixada Fluminense. 29
Os dados apresentados denunciavam a imensa desigualdade inter-regional existente e, ao mesmo tempo, apontavam a emergncia de se pensar em polticas pblicas para reunir condies de superar essa desigualdade. Durante os dias em que o seminrio foi realizado, um conjunto de trabalhos tratou de temticas que problematizaram a realidade social e econmica, tais como: saneamento, impactos dos processos de emancipaes, disputas polticas, votaes do eleitorado da Baixada, aspectos da Histria e da economia local, o que favoreceu um intercmbio de vrias pesquisas em curso, voltadas principalmente para planejamento urbano, poder poltico, meio ambiente e polticas pblicas, que apontassem alternativas para o desenvolvimento da Baixada. Apesar do pioneirismo das instituies que promoveram o evento, no foram asseguradas a realizao de outros seminrios e a continuidade do frum de debates. Cabe ainda ressaltar que, durante a realizao do seminrio, os memorialistas ficaram de fora das discusses, afirmando a diferena entre eles e a fala da academia. A Histria mais recente ou os debates que envolviam o poder poltico local no tempo presente no eram considerados por eles.
26 ABREU, Maurcio. A evoluo urbana do Rio de Janeiro. 3 ed. Rio de Janeiro: IPLANRIO, 1997, p. 11, e Natureza e sociedade no Rio de Janeiro (org.). Rio de Janeiro: PCR/SMCTE/DGDIC/DE, 1992. 27 O Observatrio representou um instrumento sistemtico de estudo, pesquisa, organizao e difuso sobre, de um lado, os novos padres de desigualdades e excluso social surgidos nas cidades com a crise de reestruturao econmica, e de outro, os novos modelos de polticas urbanas e gesto local. 28 O seminrio foi realizado no perodo de 2 a 6 de outubro, no Centro de Formao de Lderes de Nova Iguau. 29 A Fase publicou, ainda em 1995, uma obra organizada por Jorge Florncio, intitulada Saneamento ambiental na Baixada: cidadania e gesto democrtica.
20 Durante as dcadas mencionadas, 1980 e 1990, dissertaes e teses foram elaboradas em diferentes instituies acadmicas. Socilogos, antroplogos, urbanistas, gegrafos, assistentes sociais e historiadores realizaram estudos especficos, nos quais a Baixada emerge como importante campo de pesquisa. Trabalhos sobre movimentos reivindicatrios dos moradores, baile funk, mobilizao camponesa entre 1950 e 1964, presena do proletariado urbano nas ocupaes de terra, atuao poltica da Igreja Catlica, transio da fruticultura para os loteamentos urbanos, organizao dos quilombos de escravos foragidos no sculo passado, violncia na construo do poder poltico local, atuao de militantes femininas, trajetria de lideranas polticas etc. 30
Os trabalhos recentes revelaram uma pluralidade de perspectivas disciplinares e um novo conjunto de interpretaes sobre a regio, principalmente no que se refere s mltiplas formas de resistncia dos trabalhadores, dinmica da estrutura agrria, s disputas pelo poder poltico existentes no interior da Baixada Fluminense e s trajetrias de vida. No que se refere ainda trajetria de indivduos, foi produzido um conjunto de relatos, de depoimentos e biografias de atores sociais considerados importantes na histria local, seja impresso, seja em filmes de curta e longa metragem. Eles foram produzidos pelos atores envolvidos ou familiares, pelos rgos pblicos locais, por instituies polticas e de preservao da memria. 31
30 Respectivamente: BERNARDES, Jlia Ado. Espao e Movimentos Reivindicatrios: O Caso de Nova Iguau. Rio de Janeiro, 1983. Dissertao de Mestrado pela UFRJ; BELOCH, Israel. Capa preta e Lurdinha: Tenrio Cavalcanti e o povo da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Record, 1986; VIANNA JR, Hermano Paes. O Baile Funk Carioca: Festas e Estilos de Vida Metropolitanos. Rio de Janeiro, 1987. Dissertao de Mestrado pelo Museu Nacional; GRYNSZPAN, Mrio. Mobilizao camponesa e competio poltica no estado do Rio de Janeiro (1950-1964). Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1987; RAMALHO, Jos Ricardo. Estado patro e luta operria. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; LIMA, Ulisses. Luta armada na Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Edio do Autor, 1991; ALVES, J. Cludio. Igreja Catlica: Opo pelos Pobres, Poltica e Poder: O Caso da Parquia do Pilar. Rio de Janeiro, 1991. Dissertao pela PUC/RJ; SOUZA, Sonali Maria de. Da Laranja ao Lote: Transformaes Sociais em Nova Iguau. Rio de Janeiro, 1992. Dissertao de Mestrado pelo Museu Nacional; GOMES, Flavio dos Santos. Histrias de Quilombolas: Mocambos e Comunidades de Senzalas no Rio de Janeiro. Sc. XIX. Cap. I. So Paulo, 1992. Dissertao de Mestrado/UNICAMP; ALVES, J. Cludio. Baixada Fluminense: A Violncia da Construo de uma Periferia. So Paulo, 1998. Tese de Doutorado pela USP; BURDICK, John. Procurando Deus no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1998; MIGNOT, Ana C. V. Ba de Memrias, Bastidores de Histrias. O Legado Pioneiro de Armanda lvaro Alberto. Rio de Janeiro, 1997. Tese de Doutorado pela PUC; MACEDO, Elza D. V. Ordem na Casa e Vamos Luta. Movimento de Mulheres no Rio de Janeiro: 1945-1964. Lydia da Cunha: Uma Militante. Niteri, 2001. Tese de Doutorado pela UFF. 31 Entre as trajetrias, podemos destacar: SILVA, Arlindo. Memria de Tenrio Cavalcanti segundo a narrativa a Arlindo Silva. Rio de Janeiro: Edies O Cruzeiro, 1954; PUREZA, Jos. Memria camponesa. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982; CAVALCANTI, Sandra Tenrio. Tenrio, meu pai. Rio de Janeiro: Global, 1986; FORTES, Maria do Carmo. Tenrio, o homem e mito. Rio de Janeiro: Record, 1986; GHELLER, Elza M. (org.) Josefa, a resistncia de uma camponesa brasileira. So Paulo: Paulinas, 1996.
21 Alm das trajetrias individuais, os relatos de memria da violncia, da impunidade e das experincias profissionais da promotora Tnia Maria Salles Moreira e do jornalista e delegado Santos Lemos revelam possibilidades de leituras da realidade social e das disputas polticas operadas na regio. 32
No incio dos anos 90, um grupo formado por professores da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Duque de Caxias, da rede pblica de ensino e por ex- alunos do curso de graduao e ps-graduao em Histria da FEUDUC iniciou um levantamento de fontes e obras j produzidas acerca da Baixada Fluminense. Fundaram, ento, o Centro de Memria e Documentao da Histria da Baixada Fluminense e a Associao de Professores Pesquisadores de Histria (APPH-Clio). Transitando entre o produzido pelos memorialistas e pela academia, o grupo iniciou um conjunto de prticas para favorecer o acesso aos conhecimentos elaborados e fomentar novas pesquisas. Para circular a produo local, foi criada uma revista, a Hidra de Igoassu. O grupo organizou, ainda, cursos para professores da rede pblica; estabeleceu parcerias com outras universidades; e promoveu os Congressos de Professores Pesquisadores da Histria da Baixada Fluminense, em que diferentes produes e instituies acadmicas renem-se a cada dois anos para comunicar pesquisas em curso, divulgar as j produzidas e promover debate acerca da Histria do tempo presente, at ento no considerada pelos memorialistas. Um conjunto de novos grupos que se dedicam Histria da Baixada Fluminense surgiu nesta dcada, constituindo uma rede de memria e histria na Baixada Fluminense. Revistas, vdeos, livros, exposies, cadernos de textos tm sido produzidos pelos diferentes grupos, disputando concepo de mundo, de memria e de Histria da Baixada Fluminense. Temos ainda os governos municipais, com suas publicaes, propagandas e slogans de exaltao de suas localidades e de seus mandatos, e a imprensa, com sua produo cotidiana de matrias sobre a regio, sua influncia sobre as interpretaes da Baixada, sua lgica institucional, suas vinculaes polticas.
32 LEMOS, Santos. Sangue no 311. Rio de Janeiro: Reper, 1967; O negro Sabar. Rio de Janeiro: Destaque, 1977; Os donos da cidade. Rio de Janeiro: Caxias Recortes, 1980; MOREIRA, Tnia Maria Salles. Chacinas e falcatruas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999.
22 A produo sobre a histria do municpio de Duque de Caxias
A primeira obra sobre a Histria de Duque de Caxias foi construda em 1958, por Jos Lustosa. A obra Cidade de Duque de Caxias: desenvolvimento histrico do municpio: dados gerais foi publicada pela grfica do IBGE, com a intermediao de Barbosa Leite. Barbosa era funcionrio do instituto, poeta, pintor e membro do grupo cultural caxiense ARCO-Arte Comunicao. 33 Esse grupo atuou em Caxias no final dos anos 50 e na dcada de 1960, participando de lutas por biblioteca, por melhoria da educao e pela valorizao da cultura local. Organizava vendas e divulgaes de livros, exposies de arte e criou o Jornal O Grupo. Era composto por estudantes, fotgrafos, artistas e comunistas preocupados com a cultura e a memria da cidade. Apesar de Lustosa no possuir uma participao orgnica no grupo, mantinha uma relao de proximidade, sendo sua obra incentivada, divulgada e vendida pelo ARCO. Lustosa era dentista, residia em Caxias e possua um consultrio dentrio no local. Era um memorialista preocupado em construir uma Histria para a cidade. Foi largamente influenciado pela obra de um outro memorialista iguauano, Jos Mattoso Maia Forte. Uma memria de um passado agrrio glorioso ameaado constantemente pelo impaludismo. Essas marcas tambm aparecem na obra de Lustosa. A diferena que Maia Forte restringiu sua obra memria do passado agrrio e da fundao da Vila de Iguau, enquanto Lustosa traou um panorama da Histria de Caxias do perodo colonial at a dcada de 1950. Alm das fontes utilizadas por Maia Forte, Lustosa utilizou-se de fotos e dados fornecidos pela Cmara Municipal e pelas secretarias da cidade, transformando sua obra em um dos lugares guardadores de imagens e registros de memrias da cidade. A segunda obra, Caxias, ponto a ponto (1953 a 1957), foi escrita por Las Costa Velho e publicada por sua Editora Agora, em 1965. Las Costa Velho era mineiro, jornalista, radialista e poltico de Caxias, e se apresentava como irmo de f de Hydekel de Freitas. O prprio autor refere-se sua obra como um simples registro de fatos e
33 O grupo era composto por Barbosa Leite, Newton Menezes, Guilherme Perez, Rogrio Torres, Armando Valente, Solano Trindade e outros. Barbosa Leite publicou poemas, produziu pinturas e artigos nos jornais locais, incentivou o teatro. Guilherme Perez e Valente organizaram uma exposio de fotos na FUNARTE, denominada Caxias, uma Cidade. Rogrio Peres produziu pinturas, artigos para a imprensa local e militou no Partido Comunista juntamente com Newton Menezes, um dos fundadores do Sindicato dos Petroleiros. Newton e Rogrio Torres produziram posteriormente o livro Sonegao, fome e saque, obra importantssima para a compreenso da Histria da Baixada nos anos 60. Solano Trindade era comunista, publicou poemas, escreveu artigos para a imprensa local e atuou em diversos eventos culturais da cidade.
23 coisas do municpio, um amontoado de coisas e mais nada. Refere-se a Maia Forte e s fontes utilizadas por ele, procurando compilar uma srie de informaes sem se preocupar em articul-las. Em alguns momentos, a obra parece ser composta por um conjunto de pequenos artigos e charges e, em outros, um dirio contendo anotaes de acontecimentos que o autor julgou importantes para os que futuramente desejarem escrever a Histria da cidade. Homenageia o prefeito de Caxias, Joaquim Tenrio Cavalcanti, e critica os erros das altas autoridades, pelo desamparo do que ele chama de Grandioso Municpio. O terceiro trabalho tem como autora Dalva Lazaroni de Moraes e foi publicado pela Arsgrfica Editora Ltda., em 1978. Irm de um importante poltico local, Elias Lazaroni, era professora em Caxias e diretora da Biblioteca Municipal. Esse cargo e suas relaes pessoais possibilitaram a formao de um grupo para a realizao de um levantamento de obras e documentos sobre a cidade. Sua obra est marcada, primeiramente, pelas informaes que aparecem em Maia Forte e em Lustosa. Em segundo, pela transcrio integral dos relatos deixados por Monsenhor Pizarro, do Cdigo de Postura de Estrela (ocupando 22 pginas do livro), de leis municipais, de documentos da Cmara, das secretarias, das escolas locais, sem a preocupao com uma leitura problematizadora dos documentos. Isso sem contar com o dicionrio de palavras indgenas presentes nos logradouros e ruas do municpio, que contm 101 pginas e trazido no final da obra. O Esboo histrico-geogrfico do municpio de Duque de Caxias foi organizado em trs captulos. O primeiro contm informaes sobre a geografia, a gente e a economia. O segundo, sobre a Histria do municpio, e o terceiro, acerca dos aspectos tursticos do municpio. O conjunto do material reafirma a exaltao da cidade, reverencia as famlias poderosas e os grandes personagens. O maior de todos eles, segundo a autora, foi o patrono da cidade, Duque de Caxias, ao qual dedicou 11 pginas com transcrio de documentos relacionados sua vida pessoal e militar. 34
Apesar da contribuio dos trs memorialistas, suas obras so marcadas pela ausncia de rigor acadmico, pela influncia de uma Histria orientada pelo paradigma
34 A autora publicou ainda, na dcada de 1990, uma obra titulada Quilombo e Tiradentes na Baixada Fluminense: uma homenagem a Solano Trindade, em que editou trs textos. O primeiro se referia ao trfico e escravido na Baixada, integrando-os histria macro e fazendo referncia a historiadores conceituados como Dcio Freitas. O segundo uma homenagem bem escrita da trajetria potica de Solano Trindade. O terceiro, um texto que menciona a atuao de Tiradentes quando fora nomeado para fazer a segurana do caminho do ouro. Como a obra no se props a tratar da histria da cidade, optamos por mencion-la apenas aqui.
24 rankeano, pela vinculao dos autores com o aparato burocrtico municipal e com os grupos dominantes locais. O lugar social dos autores, revelado por suas origens, ofcio, formao e compromissos polticos, explica o silncio existente acerca das lutas camponesas em Xerm, do movimento operrio na FNM/FIAT, do processo de urbanizao da cidade e das disputas violentas pelo controle do poder poltico local. O trabalho aqui apresentado se prope, em primeiro lugar, a consolidar uma Histria que, por meio de sua primeira sntese, possa fugir dos limites temporais at ento impostos pela maioria das obras acadmicas, embora sejam elas as que mais contriburam para esta pesquisa. O caminho escolhido apresenta limites e indica pesquisas que ainda carecem de realizao para uma melhor compreenso da Histria da cidade. Entretanto, possibilita-nos tambm um olhar de longa durao para o conjunto da vida social de uma periferia muito prxima da cidade carioca. Em segundo lugar, visa estabelecer uma crtica a esse modelo predominante de historiografia sobre a cidade de Duque de Caxias, escavando, assim, seu passado e revelando os meandros das disputas polticas e dos projetos de poder que nela existiram. Este livro organizou-se da seguinte maneira: O Captulo I constitudo de um antecedente histrico em que realizamos o estudo do passado agrrio e escravista da regio. Por meio dele, ser-nos- possvel descrever o processo de ocupao, dos ordenamentos e deslocamentos tecidos no tabuleiro poltico e econmico da Baixada Fluminense, bem como identificar as transformaes que ocorreram no campo administrativo e poltico durante o sculo XIX. Essa compreenso se faz necessria elaborao da anlise da produo da regio moderna no decorrer da primeira metade do sculo XX, sobre a qual se detm o segundo captulo. Desse modo, no primeiro captulo foi utilizado um corpus documental variado: inventrios, censos oficiais, ordenamentos de compromissos das irmandades religiosas, assentos de batismo, de matrimnio e de bitos, processos criminais, documentos do Exrcito, relatos de viajantes, obras de memorialistas, dissertaes e teses. O Captulo II apresenta uma abordagem do processo formador de Caxias em uma regio moderna, ou seja, urbana industrial. Nesse captulo, traamos o perfil dos diferentes projetos e as disputas pelo controle do poder poltico local, assim como identificamos os vrios agentes modeladores desse espao e construtores do conjunto da vida social. As fontes para a construo desse captulo foram as obras bibliogrficas de Tenrio Cavalcanti, os documentos oficiais, as dissertaes e teses, as narrativas de
25 memria, os depoimentos orais e peridicos, principalmente a Luta Democrtica e O Grupo. O Captulo III trata das disputas pelo poder poltico local entre o amaralismo e o tenorismo nos anos 50 e 60. Analisa, sobretudo, as ambigidades e as concepes polticas de uma das mais polmicas lideranas polticas da regio, Tenrio Cavalcanti. Nele, utilizamos os dados do Tribunal Regional Eleitoral e da Cmara Municipal de Duque de Caxias; a coluna Escreve Tenrio, produzida durante todo o ano de 1958, perodo em que Cavalcanti era udenista, e o de 1962, quando se tornou candidato das esquerdas nas disputas ao governo do estado do Rio de Janeiro; os depoimentos orais e outros peridicos. O Captulo IV constitui-se de um mapeamento das diferentes organizaes dos trabalhadores rurais e urbanos, de uma descrio das disputas pelas representaes polticas em seu interior, bem como da organicidade dos movimentos sociais nos anos 50 e 60. Ainda nesse captulo, o saque de 1962 revisitado a partir da Luta Democrtica e da revista Fatos e Fotos. Registram-se o esforo de identificarmos as disputas operadas em um acontecimento decisivo para a vida poltica da cidade e da Baixada Fluminense e a anlise das marcas deixadas pelo golpe militar na vida social e no poder poltico local. Para construir esse captulo, utilizamos os depoimentos orais dos militantes, dissertaes e teses, peridicos, relatos de memria de militantes e documentos dos movimentos.
26 CAPTULO I ANTECEDENTES HISTRICOS: O PASSADO ESCRAVISTA DE IGUAU E ESTRELA
Nas margens dos rios Iguau e Meriti, habitavam os ndios Jacutingas, 35 que chamavam essa regio de Trairaponga. 36 Seu principal rio, o Iguau, foi utilizado como entrada para a ocupao colonizadora do recncavo e seu nome foi emprestado a uma das sesmarias, criada posteriormente pelos portugueses. No relatrio do Marqus do Lavradio ao Vice-Rei de Vasconcelos, 37 consta que, em 1503, Gonalves Coelho e o navegador Amrico Vespcio levaram para Portugal quarenta escravos indgenas, em que mais da metade eram mulheres seqestradas da aldeia Jacutinga. Portanto, a histria dos primeiros habitantes das terras iguauanas no difere do que ocorreu em quase toda a colnia: extrao de madeira, escambo, escravido, doenas bacteriolgicas e aproveitamento das dissenses internas entre naes indgenas, a fim de que o europeu pudesse impor seu domnio. Houve uma ocupao mais permanente com a presena francesa no Rio de Janeiro. 38 Eles se instalaram no Fundo do Rio, implementando um trabalho missionrio e estabelecendo uma relao de escambo com os Jacutingas. Em troca de madeira e alimentos, os Tupinambs recebiam dos franceses produtos manufaturados. Segundo as cartas do padre Jos de Anchieta de 1584, 39 havia cerca de sete a oito beneditinos franceses, que vestiam os meninos gentios com seus hbitos brancos, realizando um trabalho de catequizao e de plantio nas margens do rio Iguau. Porm, a atuao francesa foi interrompida em 1564, durante a guerra contra os portugueses.
35 Os Tupinambs eram chamados de Jacutingas por utilizarem as penas da jacutinga para se enfeitar. As jacutingas so conhecidas como aves cantadoras por emitirem um som que vem de suas asas quando se deslocam ou se acasalam. 36 Anteriormente presena dos Jacutingas, h vestgios da presena de sambaquieiros na regio. Entretanto, sabemos muito pouco sobre eles. Recentemente, foi criado um Laboratrio de Arqueologia na FEUDUC e este grupo vem realizando pesquisas arqueolgicas na Baixada Fluminense, em parceria com o Museu Nacional. 37 O relatrio est datado de 1769-1779. Ver MAIA FORTE, Jos Mattoso. Memria da fundao de Iguass. Rio de Janeiro: Typ. do Jornal do Commercio & Companhia, 1933. 38 NIGRA, D. Clemente M. da Silva. A Antiga Fazenda de So Bento de Iguau, Revista do SPHAN, n 7, 1943, pp. 257-258. 39 Cartas Jesuticas III. Cartas de Joseph de Anchieta S. J. Publicao da Academia Brasileira, p. 313. [Coleo Afrnio Peixoto].
27 Aps essa guerra sangrenta, os portugueses fundaram a cidade do Rio de Janeiro. O confronto levou morte mais de doze mil 40 pessoas de ambos os lados. Os Jacutingas sofreram com a guerra e a ocupao lusa, que os reduziram escravido e motivaram a fuga para o interior, na direo das matas da Serra dos rgos, da Serra do Tingu e da Serra da Taquara. Em 1565, o Ouvidor-mor, Cristvo Monteiro, recebeu a doao de parte das terras da Sesmaria de Iguau, em agradecimento sua atuao na luta contra os franceses. Monteiro construiu o primeiro engenho aucareiro da regio em sua Fazenda de Aguassu ou Iguassu. 41 No mesmo perodo, Cristovo de Barros recebeu tambm sesmarias nas margens da Baa da Guanabara, localidade que atualmente compreende o municpio de Mag. A ocupao portuguesa nas cercanias da Guanabara tornou-se necessria para a defesa da cidade e tambm para assegurar o domnio luso na regio. Trs anos depois, Martim Afonso fez a doao de outra vasta rea da Sesmaria de Iguau 42 a seu primo Brs Cubas. Apesar de ele ter sido o maior concessionrio da sesmaria, nunca se apossou dessas terras e novas doaes foram realizadas. Jorge Lus R. da Silveira analisou a estrutura fundiria de Iguau e identificou 46 doaes realizadas no sculo XVI, em que 43 possuam mais de 1.000 braas, sendo a maior com 3.000 de frente por 9.000 de fundos. A partir de 1569, as novas doaes de terras foram reduzidas, concentrando-se no interior da regio, e a extenso das propriedades era menor, demarcando a diminuio das opes de escolha de terras e a interiorizao das fronteiras agrcolas. 43 Alguns proprietrios ampliaram suas ocupaes mediante o desinteresse inicial dos sesmeeiros por suas terras e a ausncia de controle da demarcao dos limites territoriais das propriedades. J as terras que margeavam os rios Inhomirim, Imbari e Estrela foram doadas a partir da ltima dcada do sculo XVI aos sesmeeiros Antnio Fonseca, Domingues Fernandes, Joo e Simo Botelho etc. Essa rea passou a ser conhecida por Piedade de Inhomirim e, posteriormente, por Estrela. Durante todo o sculo XVI e XVII, novos
40 RIBEIRO, Darcy. A formao e o sentido do Brasil. So Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 33. 41 A fazenda de Iguau conhecida atualmente por So Bento. No final do sculo XVI, ela foi doada aos beneditinos, isto , os religiosos membros da Ordem de So Bento. Somente no sculo XVII foi construdo o Mosteiro de So Bento. 42 A Sesmaria atingia parte do atual centro de Duque de Caxias, So Joo de Meriti at a Estrada de Santos. (Livro de Tombo 63, PI. Registro de Monsenhor Pizarro. Revista do Instituto Histrico. Apud: MAIA FORTE, 1933, pp. 8-9.) 43 SILVEIRA, J. L. R. da. Transformaes na Estrutura Fundiria do Municpio de Nova Iguau durante a Crise do Escravismo Fluminense. Niteri, 1988, pp. 123-131. Dissertao de Mestrado pela UFF.
28 colonos chegaram, ampliando a ocupao lusa e afirmando as cercanias da Guanabara como reas de produo agrcola voltadas exportao e ao comrcio intercolonial.
I.1 A lgica da ocupao portuguesa em Iguau e Estrela
No lugar das aldeias indgenas, foram sendo instalados engenhos, capelas, mosteiros, tabernas, portos e estradas. A topografia da regio era propcia ao plantio da cana, e os rios facilitavam o escoamento da produo e a comunicao com a cidade porturia do Rio de Janeiro. Alm disso, a existncia de uma reserva de madeira considervel viabilizou sua extrao e comercializao, permitiu a construo dos engenhos e das embarcaes e estimulou a produo de carvo. A extrao de madeira manteve-se como atividade comercial vantajosa na regio pelo menos at meados do sculo XX. No inventrio do Comendador Bento Rodrigues Vianna, datado de 1869, consta que uma poro de madeira para a construo, de maior parte estragada, estava calculada em quinhentos mil ris (500$000). Utilizando o mesmo inventrio, podemos comparar esse valor com o de outros bens. O valor de um escravo nesse perodo, em que o trfico externo j havia sido extinto, variava entre trezentos a um conto de ris e duzentos mil ris (300$000 e 1.200$00, respectivamente). Com um conto de ris, comprava-se um escravo ladino; 44 com um conto e duzentos ris, um escravo barqueiro que conhecia bem a geografia da localidade, era hbil na conduo de embarcaes e nas negociaes com os quilombolas, evitando-se, dessa forma, possveis saques. Tais dados mostram, de um lado, a importncia das vias fluviais, que, ainda em 1869, articulavam a circulao de produtos na localidade. De outro, permite-nos perceber o quanto poderia ser rendosa uma poro de madeira em bom estado, o que tornava sua extrao lucrativa. 45
A economia da regio se integrava, de um lado, aos interesses da metrpole portuguesa, tornando-se uma rea de produo agroexportadora, fornecedora de madeira e de alimentos para abastecer a Capitania do Rio de Janeiro. De outro, favorecia o acesso de um pequeno grupo de pessoas propriedade da terra e explorao da fora de trabalho das populaes indgenas e, posteriormente, dos escravos africanos.
44 Era comum chamar o escravo analfabeto e sem especializao de boal. J o que possua certa especializao era chamado de ladino e era mais valorizado no mercado. 45 Inventrio de Bento Domingos Vianna. Comarca de Iguassu, 1 Ofcio. Estado do Rio de Janeiro, Repblica dos Estados Unidos do Brasil. Tombo n 196, Mao n 7, 1869.
29 Segundo Joo Fragoso, 46 a acumulao de riqueza realizada na Capitania do Rio de Janeiro iniciou-se com as doaes de terras e a explorao da mo-de-obra escrava indgena, j que o preo do escravo africano era alto e a ausncia de liquidez impedia inicialmente o acesso a ele. Para Elmo da Silva Amador, a fora de trabalho que movia a economia do recncavo no sculo XVI era a mo-de-obra indgena.
Ao final do sculo XVI, eram segundo Anchieta (1585), 3.850 os moradores da cidade do Rio de Janeiro, sendo trs mil ndios e mamelucos e apenas cem negros. Nas povoaes que foram sendo criadas na Baixada, junto aos rios que demandavam para o recncavo, deveriam ser provavelmente vinte mil habitantes, com o predomnio absoluto de ndios. 47
Os nmeros de Anchieta podem no expressar uma realidade exata da poca, mas so demonstrativos. A cidade do Rio, no perodo citado, era porturia. As construes voltadas para o mar marcavam seu lugar de trocas comerciais e somente no sculo XVII a populao da cidade do Rio cresceu, chegando a vinte mil habitantes, ampliando, assim, sua ocupao, seu carter urbano e sua importncia. J o recncavo era lugar de produo agrcola; portanto, necessitava de um contingente maior de fora de trabalho, por meio da aquisio de mo-de-obra escrava africana, facilitada, posteriormente, pela pequena acumulao realizada com a extrao de madeira, a produo aucareira e de alimentos. Essa aquisio beneficiava os mercadores da Provncia do Rio de Janeiro, que enriqueciam com o trfico e com os crditos fornecidos aos proprietrios de terra da regio fluminense. Por outro lado, os proprietrios poderiam ampliar a produo agrcola local, a criao de animais e a extenso de seu domnio. A presena escrava do africano tornou-se, gradativamente, cada vez mais significativa na Baixada Fluminense; porm, isso no representou o desaparecimento absoluto da populao indgena. Ainda no sculo XVIII, encontramos em vrios assentos de bitos, de batismo e de matrimnio a presena de ndios na regio.
Aos quinze de novembro de mil e setecentos e sete annos, nesta Freguezia de Nossa Senhora da Piedade de Aguass, faleceu Pedro, ndio, cazado com Ignez, preta escrava de Igncio Ozrio, com todos os sacramentos, foi por mim
46 FRAGOSO, Jos L. A Espera das Frotas: Hierarquia Social e Formas de Acumulao no Rio de Janeiro Sc. XVII, Cadernos de Laboratrio Interdisciplinar de Pesquisa em Histria Social. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, 1995, pp. 53-62. 47 AMADOR, Elmo da Silva. Baa de Guanabara: Um Balano Histrico. In: ABREU, Maurcio de Almeida (org.). Natureza e sociedade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: PCR/SMCTE/DGDI/DE, 1992, p. 216.
30 encomendado pelo amor de Deus e sepultado no adro desta matriz de que fiz este assento. Proco Joo Furtado Salvador de Mendona. 48
A descoberta de ouro no planalto mineiro no sculo XVIII transformou a regio porturia do Rio de Janeiro no principal centro econmico e poltico da colnia. Segundo Joo Fragoso, durante as trs primeiras dcadas, o aumento da importao de africanos e, conseqentemente, da comercializao de escravos a transformou em um ncleo de acumulao interna significativa.
[...] no seria de todo absurdo postular que o porto carioca tenha absorvido, no mnimo, a metade do total de exportao de africanos para o Brasil durante o sculo XVIII, ou seja, mais ou menos 650.000 indivduos. 49
O aquecimento das atividades mercantis e a posio de centro do poder poltico colonial a partir de 1763 transformaram a cidade no principal plo de atrao populacional. No final do sculo XVIII, sua populao j atingia os sessenta mil habitantes, tornando-se o principal centro urbano de toda a colnia. Salvador, que foi a sede do Governo-Geral e a principal cidade durante o sculo XVI, somente no sculo XIX atingiu a marca dos cinqenta mil habitantes. 50
A importncia econmica do Sudeste refletiu-se tambm em Iguau, sendo realizadas novas concesses de terras durante o sculo XVIII. O repasse representou, segundo Silveira, uma concentrao de terras, j que, das 68 concesses, 32 possuam mais de 3.000 braas e 18 delas foram entregues a pessoas que j possuam terras em Iguau. 51 Assim, o modelo escravista instaurou uma estrutura agrria em Iguau, beneficiando um pequeno grupo de proprietrios que se dedicava produo agrcola para atender o mercado da nova sede da colnia e a economia agroexportadora. A sustentao do modelo escravista em Iguau foi assegurada tambm pela instalao de um aparato administrativo e de controle com base religiosa, imposta pela metrpole. Nas reas principais de transbordo das mercadorias, formaram-se ncleos articulados.
48 Livro de Assentos de bitos da Freguezia de Nossa Senhora da Piedade de Aguass, de 1761-1766. 49 FRAGOSO, J. L. e FLORENTINO, Manolo. O arcasmo como projeto. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1996, p. 35. 50 Os dados do Rio foram extrados do texto j citado de Amador Elmo da Silva, 1992, p. 229. O referente a Salvador foi encontrado na obra SCWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. Cia das Letras, 1988, pp. 77-94. 51 SILVEIRA, 1988, p. 124.
31 Nas margens dos principais rios, foram instalados portos e capelas. Construdas de pau a pique, freqentemente novas capelas substituam as anteriores, o que explica datas diferentes para a construo de uma mesma capela. Com o crescimento do arraial, as capelas construdas nos engenhos, juntamente com uma matriz, passavam a formar uma parquia. A matriz erguida tornava-se instrumento de organizao de seus fregueses, registrando nascimentos, casamentos, bitos e outros acontecimentos nos Livros de Tomo. Os livros de assentos de batismo, matrimnio e bitos so valiosas fontes de investigao do passado escravista da regio. Os assentos das Freguesias do Pilar, de Inhomirim, de Suru, de Guia de Pocababa e das demais freguesias que compem atualmente o Municpio de Mag podem ser encontrados no Arquivo do Bispado de Petrpolis. A partilha dessa documentao se deu a partir da criao da Diocese de Petrpolis, em 1946 (ver Anexo). O territrio de abrangncia da diocese era constitudo pela rea de serra e pela rea do Recncavo da Guanabara, onde atualmente situam-se os municpios de Mag, Duque de Caxias e parte de So Joo de Meriti. Os assentos de Jacutinga, Marapicu, Piedade de Iguau e de Meriti podem ser encontrados no Arquivo do Bispado da Diocese de Nova Iguau, criada em 1960. Apesar de a Parquia de Meriti fazer parte da Diocese de Petrpolis, a Freguesia de Meriti abarcava parte do atual territrio de Nilpolis e de reas que passaram a compor o territrio de abrangncia da Diocese de Nova Iguau, o que explica o fato de os livros de assento de Meriti estarem no Arquivo do Bispado dessa diocese. A matriz paroquial estabelecia uma sede religiosa territorial, na qual seus fregueses se relacionavam por meio de quermesses e cultos. A partir do sculo XVII, a organizao paroquial estabeleceu as bases para a estrutura administrativa e a criao das freguesias. Durante os sculos XVII e XVIII, seis freguesias foram organizadas na regio de Iguau e Estrela: N. Senhora do Pilar do Aguassu (1612), N. S. da Piedade de Aguassu (1619), So Joo Batista do Trairaponga (1644) que depois passou a ser So Joo Batista de Meriti , N. S. da Piedade de Anhum-mirim (1677), Santo Antnio de Jacutinga (1657) e N. Senhora da Conceio de Marapicu (1737). 52 Elas funcionavam
52 As datas apresentadas so das primeiras igrejas das freguesias. As datas da fundao das freguesias so: Pilar (1637), Jacutinga (1657), Piedade de Iguau (1719), Meriti (1747) e Marapicu (1759), Anhum- Mirim (1677).
32 como normatizadoras da ordem portuguesa e articulavam os interesses daqueles que controlavam os meios de produo na regio (ver Anexo 4). 53
As Freguesias do Pilar, Meriti, Anhum-mirim e Jacutinga ocupavam parte do atual territrio do municpio de Duque de Caxias. Os limites de cada uma foram traados sem muito rigor e sofreram diversas alteraes ao longo do tempo. No sculo XVIII, as Freguesias de Pilar e Meriti pertenciam ao Distrito de Iraj; Piedade, Jacutinga e Marapicu, ao Distrito de Guaratiba. As condies ambientais e o modelo implantado exigiam o uso permanente da mo-de-obra do escravo africano para desobstruir os rios; construir canais, diques e pontes; abrir estradas, assegurar a produo de tijolos e aguardente; lidar com a manufatura do acar, o cultivo de alimentos para a subsistncia da fazenda e para a comercializao com o porto carioca; levantar os prdios da casa grande, das capelas e das olarias; criar gado; transportar as mercadorias e conduzir as embarcaes. As linhas divisrias dos engenhos eram traadas a partir das fronteiras demarcadas pelos rios que cortavam a regio. A exemplo do Recncavo Baiano, onde a gua dominava essas terras, penetrando em toda parte e controlando o ritmo e a organizao das atividades humanas, 54 no Recncavo Guanabarino a geografia exerceu uma influncia similar na estrutura econmica. O desmatamento realizado pela extrao de madeira e pela instalao das fazendas intensificou o encharcamento das reas mais baixas. Os proprietrios de terra e de escravos conviviam com a presena de muitos trechos de manguezais, e os sedimentos nessas plancies limitavam a expanso aucareira. Por outro lado, era essa mesma geografia que favorecia o escoamento da produo e a articulao com a cidade do Rio de Janeiro, principal rea porturia colonial do sculo XVIII. A produo da regio era escoada por pequenas embarcaes nos portos 55
instalados nas proximidades dos engenhos. Ao chegar ao porto principal da freguesia mais prxima, transportava-se a produo para as embarcaes maiores com destino ao Rio de Janeiro. Dessa forma, era necessrio disponibilizar um grupo de escravos que conhecesse a geografia da regio, a fim de garantir um bom trnsito e a segurana das mercadorias. Nas reas mais distantes dos rios, o transporte dos produtos at os portos
53 Observe que, estrategicamente, os portugueses nomearam os arraiais com os nomes dos padroeiros de suas igrejas matrizes e incorporaram como segundo nome referncias indgenas como: Meriti, Iguau. Jacutinga, Anhum-mirim etc. 54 SCHWARTZ, 1988, p. 9. 55 A Freguesia de Meriti possua 14 portos; a de Jacutinga, 9; a do Pilar, 9; a de Piedade de Iguau, 2; e a de Estrela, 2.
33 principais era feito no lombo de burros, o que favoreceu a criao de animais tanto para garantir o fornecimento de carne como para realizar o transporte. Os principais portos localizavam-se nas margens dos rios Iguau, Pilar, Meriti, Estrela e Sarapu. 56 O primeiro foi o principal escoadouro colonial da Baixada Fluminense durante o sculo XVI. Por ele, chegava-se s guas da Baa da Guanabara em direo ao porto do Rio de Janeiro, para embarcar a produo agroexportadora com destino Europa ou para a comercializao no mercado interno. A dificuldade existente para analisar a economia agrria da Baixada Fluminense est relacionada escassez de dados sobre os sculos XVI e XVII. Para esse perodo, as informaes obtidas limitam-se s Cartas de Doao de Sesmaria, aos registros de Monsenhor Pizarro em suas Memrias Histricas do Rio de Janeiro, aos Inventrios de Transmisso de Abadia da primeira e mais importante fazenda da Baixada: a de Iguau, pertencente aos beneditinos. A fazenda de Monteiro foi instalada no atual bairro de So Bento, em Duque de Caxias. Em 1591, com a morte do proprietrio, suas terras foram repassadas para a Ordem de So Bento. 57 Em 1645, foi construda a capela de N. S. das Candeias, que, no sculo seguinte, recebeu nova denominao: N. S. do Rosrio de Iguau. A partir do sculo XVII, os beneditinos ampliaram seus limites e sua produo aucareira. Construram o sobrado 58 nas proximidades da capela, a fim de impedir que esta desmoronasse, ergueram uma olaria, um engenho de farinha, aumentaram a criao de gado e de aves. Segundo o documento de transmisso da abadia de Frei Francisco das Chagas para o Frei Rosendo do Rosrio, constava no inventrio de 1685 um total de 48 escravos, 780 arrobas de acar, 5 pipas de aguardente, 113 cabeas de gado etc. Ainda no sculo XVII, foi registrada na fazenda a presena de 25 escravos trabalhando diariamente nos trs fornos de sua olaria. 59
56 Principais portos localizados nas atuais fronteiras do municpio de Duque de Caxias: Porto Estrela (na divisa com Mag, perto da Fazenda Fragoso; atendia a ela e carga que vinha de Mag nos lombos de burros); Porto da Chacrinha (rea prxima ao atual centro de Duque de Caxias, conhecida como povoamento de Trairaponga); Porto de Pau Ferro (margens da Baa da Guanabara, entrando pelo Rio Meriti at os Portos da Pedra, do Bento e do Pico); e Porto Pilar e Anhang (cortava o litoral da fazenda Iguau, desaguava no Rio Iguau, defrontava-se com os Portos Retiro e Piaba). Ver PEIXOTO, Rui Afrnio. Imagens iguauanas. Nova Iguau: Edio do Autor, 1968. 57 A escritura foi assinada em 1596. 58 O sobrado de estilo barroco foi construdo de 1754 a 1757. Na parte de cima, foram instalados os quartos dos beneditinos e um varando; embaixo, uma oficina, a cozinha com fogo e forno lenha, o refeitrio e um depsito de mantimentos. 59 PEREIRA, Waldick. Cana, caf e laranja: histria econmica de Nova Iguau. Rio de Janeiro: FGV/SEEC do Rio de Janeiro, 1977, p. 20.
34 Apesar da limitao dos dados, possvel tecer algumas consideraes acerca da economia a partir das informaes contidas nas Estatsticas do Marqus do Lavradio referentes ao sculo XVIII. Os engenhos constitudos nas Freguesias de Iguau eram predominantemente de mdio porte, com cerca de dez a quarenta escravos. 60 Essa predominncia no excluiu a presena de engenhos de grande porte, como o do Capito Luciano Gomes, com 74 escravos; o de Madureira e o de Mato Grosso, com 70; e o de Cachoeira, com 80. possvel perceber, a partir dos dados apresentados pelo Marqus de Lavradio, a presena de um mesmo proprietrio para mais de um engenho, a de parentes prximos controlando outros engenhos e a de padres proprietrios. Os engenhos de Marapicu e Cabussu estavam vinculados ao Morgadio dos Ramos e concentravam duzentos escravos. O Engenho de Santo Antnio do Mato foi arrematado pelo proprietrio do Engenho de Mato Grosso, pertencente a Igncio de Andrade Souto Maior Rendon. O arremate j indicava uma pequena capacidade de concentrao de terra de alguns dos proprietrios da localidade.
Engenhos, escravos e produo de Iguau em 1779-89. Freguesia Engenhos P. de acar Aguardente Escravos Meriti 11 94 caixas 56 pipas e meia 330 Pilar 1 e 3 engenhocas 40 caixas 17 pipas 74 Jacutinga 07 163 caixas 77 pipas e meia 236 Marapicu 04 152 caixas 76 pipas 270 Pied. de Iguau 02 No consta 30 pipas 70 Total 25 449 caixas 257 pipas 980 Fonte: Estatstica realizada pelo Governo do Marqus do Lavradio, entre 1769-1779. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. 1 a Parte do Tomo LXXVI, pp. 320-324.
Ao observarmos a lista de engenhos relacionados nas estatsticas do Marqus do Lavradio, 61 podemos identificar a ausncia do Engenho de Iguau, ou melhor, de So Bento, o que pode indicar que a estatstica realizada no conseguiu relacionar todos os engenhos. Somem-se a esses dados, os dos engenhos e da produo da Freguesia de Anhum-mirim, que, pelos registros de Monsenhor Pizarro, chegavam a 16 engenhos de
60 COSTA, Iraci Del Nero da. Nota Sobre a Posse de Escravos nos Engenhos e Engenhocas Fluminenses 1778. Revista do IHGB, n 28, So Paulo: USP, 1988, pp. 11-113. 61 Estatstica Realizada pelo Governo do Marqus do Lavradio, entre 1769-1779. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, 1 Parte do Tomo LXXVI, pp. 320-324.
35 acar e nove de aguardente, uma produo no-especificada de milho, de mandioca e de arroz na parte baixa; e de legumes, ma, marmelo, pssego, figo, uva, pinhes, pra e outras rvores frutferas na serra. 62
Na Freguesia do Pilar, somente um engenho e trs engenhocas foram citados, quando a estatstica do mesmo censo apontava a presena de 2.027 habitantes livres e 1.868 escravos no local. Onde trabalhavam os escravos restantes do Pilar? Outra indagao acerca do Pilar se refere grande concentrao de habitantes livres, tendo em vista que, no quadro geral de Iguau, a presena de escravos era sempre maior do que a de habitantes livres. Isto pode indicar a presena significativa de terras arrendadas para agricultores organizados por meio da agricultura familiar, alguns deles contando com o trabalho de uns poucos escravos, ou ainda a presena de trabalhadores livres na produo, principalmente de alimentos e em atividades de armazenamento, circulao e trocas comerciais.
Populao Iguauana em 1779-89 Freguesia Hab. Livres % Escravos % Total Marapicu 902 49,5 919 50,0 1821 Jacutinga 1.402 39,6 2.130 60,0 3540 Meriti 638 39,5 978 60,5 1616 Piedade de Iguau 963 44,0 1.219 56,0 2182 Pilar 2.027 52,0 1.868 48,0 3895 Total 5.932 45,4 7122 54,6 13054 Fonte: Estatstica realizada no Governo do Marqus do Lavradio, entre 1769-1779. Revista do IHGB, 1 Parte do Tomo LXXVI, pp. 320-324.
Waldick Pereira 63 afirmou que a relao apresentada pela estatstica do Marqus do Lavradio restringia-se apenas s fazendas produtoras de acar. interessante observar que mais da metade da mo-de-obra escrava no estava sendo empregada nos engenhos aucareiros e mesmo a que se encontrava nos engenhos tambm produzia arroz, feijo, milho e farinha. Isso sem contar com aquela que era utilizada no transporte, na manuteno das vias fluviais, nas olarias e na criao de animais, o que
62 ARAJO, J. de S. Pizarro E. Memrias histricas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945, vv. 1, 2 e 3, p. 227. 63 PEREIRA, 1977, p. 25.
36 indica uma lgica econmica interna que coabitava com as determinaes externas da metrpole portuguesa. Os dados da estatstica revelam ainda que a principal rea produtora de acar, assim como de outros alimentos destinados ao mercado do Rio e da Europa, era a Freguesia de Jacutinga, da qual a fazenda dos beneditinos fazia parte. Essa rea localizava-se entre os Rios Iguau e Sarapu, nas proximidades das margens da Baa da Guanabara, seguindo em direo a Maxambomba. Em seguida, temos a Freguesia do Pilar destacando-se na produo de farinha e a da Piedade de Iguau, na de arroz. As duas Freguesias eram as mais populosas e estavam localizadas nas margens do Rio Iguau, sendo que a do Pilar estava mais prxima das guas da baa, alm de ser tambm local de passagem do ouro mineiro.
Produo agrcola anual/saca entre 1769-1779 Freguesia Farinha Feijo Milho Arroz Total/saca Meriti 800 140 145 390 1.475 Jacutinga 20.000 600 600 6.000 27.200 Pilar 13.000 100 450 2.500 15.750 Piedade 8.000 200 240 6.000 14.480 Marapicu 120 480 180 1.500 930 Total/prod. 41.920 1.520 1.615 16.390 Fonte: Estatstica realizada pelo Governo do Marqus do Lavradio entre 1769-1779. Revista do IHGB, 1 a Parte do Tomo LXXVI, pp. 320-324.
Partindo das informaes contidas no relatrio do Marqus do Lavradio, Jorge Silveira analisou a produo agrcola e a populao escrava de quatro freguesias iguauanas: Piedade, Jacutinga, Meriti e Marapicu, no conjunto das 12 freguesias que compunham o Distrito de Iraj e de Guaratiba. As quatro freguesias iguauanas, juntas, detinham 30% da produo de acar, 25% da produo de aguardente, 27% dos engenhos, 56% das engenhocas, 53% da produo de alimentos destinados ao mercado interno e 37% da populao escrava dos dois distritos. 64 Tais nmeros revelam certa importncia da regio no quadro produtivo dos dois distritos da jurisdio da sede do Governo-Geral. Todavia, no se pode afirmar que a regio tenha desenvolvido um papel de grande relevncia na economia agroexportadora da colnia durante o sculo XVIII.
64 SILVEIRA, 1998, p. 64.
37 Durante todo esse perodo, o cenrio fluminense foi movimentado a partir dos interesses econmicos locais e metropolitanos. De um lado, a regio se integrou lgica externa determinada pela metrpole portuguesa, produzindo a principal mercadoria de exportao e servindo de ligao com o novo centro da economia colonial: o planalto mineiro. De outro, os proprietrios de terras e de escravos procuraram desenvolver uma produo agrria articulada com as demandas internas, tornando-a uma regio produtora para o consumo regional, fornecendo alimentos, madeira, tijolos e carvo. Dessa forma, era possvel estabelecer uma pequena margem de autonomia econmica para suportar as flutuaes do mercado externo e assegurar uma acumulao, mesmo que pequena.
I.2 Os caminhos da f
Toda essa lgica colonial construda na regio foi legitimada pela Igreja Catlica. Ela desempenhou um papel relevante na estruturao e no controle da ordem colonial estabelecida. Ao mesmo tempo, legitimou o poder poltico local, exaltando ou afirmando o domnio dos proprietrios de terra e da igreja. Apesar disso, possvel perceber que o controle exercido pela Igreja esteve marcado pela tenso entre os interesses da metrpole portuguesa e os interesses locais. Para melhor compreendermos os caminhos da f em Iguau, utilizamos os inventrios de 1794, elaborados pelo Monsenhor Pizarro durante sua visita regio. Os inventrios das Igrejas Matrizes do Recncavo apresentam uma lista do patrimnio paroquial em pratas, imagens e mveis, assim como os valores fixados pelo trabalho do proco, dicono e do sacristo; por missa, festividade, encomendao, batizado e casamento (distinguindo o valor para o branco e para o escravo); por certides; por visitaes; e pelos sepultamentos e tudo o que era necessrio sua realizao: cas, opas, 65 cruz, roupas, adornos, velas, grades etc. O sepultamento (e tudo aquilo que o envolvia) era feito pela Fbrica controlada por uma irmandade religiosa. A Fbrica possua um fabriqueiro nomeado pelo proco. Em cada matriz, podemos identificar cerca de trs a quatro irmandades religiosas. 66 As irmandades eram espaos de sociabilidade dos leigos e de demarcao
65 Cas e opas so tipos de indumentrias e adereos das irmandades e confrarias. 66 Segundo Monsenhor Pizarro e os ordenamentos analisados na Freguesia de N. S. do Pilar, existiam as seguintes irmandades: Santssimo, anexada N. S. do Pilar (1745); N. S. do Rosrio, anexada Confraria de S. Benedito (1728); S. Miguel e Almas (1730); e N. S. da Conceio (1730). Na Freguesia de Piedade de Aguassu, existiam as irmandades: Santssimo, anexada N. S. da Piedade (1751); S. Miguel (1757);
38 das diferenas tnicas e econmicas. Foi possvel identificar que as irmandades dos padroeiros, juntamente com a do Santssimo, ocupavam o altar-mor, eram as irmandades dos brancos proprietrios, portanto eram as mais ricas. A irmandade de N. Senhora da Conceio era a irmandade dos pardos, dos mestios, a de So Miguel e das Almas era dos artesos e taberneiros, a do Rosrio e a Confraria de S. Benedito eram as dos homens de cor. A disposio dos altares de cada irmandade dentro da igreja obedecia a uma hierarquia entre as irmandades. A matriz do Pilar, por exemplo, possua quatro irmandades: a primeira, do Santssimo, criada em 1745; a segunda, N. S. do Pilar, criada em 1735; a terceira, a de N. S. do Rosrio, em 1728 e; a quarta, a de So Miguel e das Almas. 67 A Irmandade do Pilar era a mais importante dessa freguesia, e seu altar era o de maior destaque. Possua um livro de registro da entrada dos irmos, do registro de seus deveres e fazeres anuais e esmolas; um segundo para registro das dvidas, despesas e quitaes; e um terceiro para alegaes da fbrica e termos. No caso especfico da irmandade do Pilar, localizamos no Arquivo do Bispado de Petrpolis um livro especfico para o registro de dvidas e quitaes de arrendamentos anuais das terras pertencentes irmandade. Segundo os inventrios, o papel das irmandades iguauanas era: manter cruz, castiais, adornos e toalhas asseadas; preservar a pintura e a imagem do altar daquela irmandade; promover uma maior devoo, venerao e exaltao ao Santssimo e ao santo da irmandade por meio de procisses, festividades e cultos; cobrar a omisso dos fiis; e organizar os sepultamentos. As finanas da fbrica eram de responsabilidade das irmandades, e estas, em conjunto com o proco, deveriam manter a matriz em bom estado de conservao. No arquivo do bispado de Petrpolis, localizamos os Livros de Compromisso das Irmandades do Glorioso Arcanjo So Miguel e Almas, de 1730 e o de Nossa Senhora do Rozrio, de 1728, ambas pertencentes Freguesia de Nossa Senhora do Pillar do Aguass.
N. S. do Rosrio; e N. S. da Conceio dos Homens Pardos (1730). Na Freguesia de Jacutinga, existiam as irmandades: Santssimo, anexada a do padroeiro (1751); N. S. do Socorro dos Homens Pardos e das Almas (1719) e; N. S. do Rosrio dos Pretos (1733). As da Freguesia de Meriti eram: Santssimo, anexada ao padroeiro (1745); N. S. do Rosrio (anterior a 1699) e; N. S. da Conceio (anterior a 1699). 67 Freguesia de N. S. do Pilar Orago do Iguau. Retirado do Livro das Visitas Pastorais feitas pelo Monsenhor Pizarro no ano de 1794, fls. 86 a 96. O Inventrio foi organizado pelo Arquivo da Cria Metropolitana por meio dos relatrios de Pizarro, dos documentos emitidos e recebidos dos corregedores das Cmaras e Provedores das Capelas.
39 No ordenamento de compromisso da Irmandade de S. Miguel, podemos identificar algumas das obrigaes dos irmos: mandar rezar uma missa em todas as segundas-feiras do ano por todos os irmos vivos e defuntos, e garantir a participao de quatro irmos usando opas e cas acesas no altar; deixar os afazeres na igreja para preparar a festa do padroeiro; dar e recolher esmolas; manter os trs livros da irmandade em dia; 68 realizar o sepultamento de forasteiros brancos, pobres e degenerados que falecessem no local; realizar o sepultamento e o acompanhamento dos irmos da irmandade e de seus respectivos filhos menores de 12 anos (j a esposa e filhos maiores s teriam direito caso fossem membros da irmandade); acompanhar as procisses e os sepultamentos; cobrar pelos servios prestados; manter uma casa para depositar o defunto; manter a cruz com manga verde, uma esquife 69 e seis opas 70 verdes para o uso em algumas ocasies por pessoas que no fossem irmos etc. O Ordenamento de Compromisso de S. Miguel e Almas explicita a hierarquizao existente entre os irmos da mesma irmandade:
Captulo 13. Haver nesta irmandade um juiz que ser obrigado a dar de esmola nove mil ris, um escrivo que ser obrigado a dar de esmola dez mil ris e doze irmos de mesa que daro no mnimo dois mil e quinhentos e quarenta ris. Haver tambm um procurador e um tesoureiro, os quais pelo trabalho que tem no ficaro obrigados a dar esmolas por este compromisso, mas se quiser por servio de Deus, bem das almas e aumento desta irmandade, contribua com o que puder. 71
comum encontrarmos, nos inventrios, a preocupao com a boa morte. As doaes feitas no apenas s irmandades, como tambm a outros institutos de caridade, representavam uma forma de assegurar a passagem segura para o cu. Pizarro descreveu no inventrio:
[...] s a Irmandade do Pilar possua 75 braas de terras em testada, e 300 de serto, dentro dos quais entra o terreno da igreja e do cemitrio, que foram doadas por Manoel Pires e sua mulher Caterine. 72
68 No Captulo 11 do ordenamento de compromisso, consta que irmandade deveria ter trs livros, um para registrar os deveres e fazeres anuais e das esmolas, o segundo para registrar as dvidas, despesas e quitaes e o terceiro para alegaes da fbrica e termos. 69 Caixo. 70 Capa sem mangas com aberturas por onde se enfiam os braos. So adornos feitos com as cores e os smbolos das confrarias e irmandades religiosas. 71 Compromisso da Irmandade do Glorioso Arcanjo So Miguel e Almas pertencente Freguesia de N. Senhora do Pillar do Aguassu no ano de 1730. 72 Freguesia de N. S. do Pilar. Orago do Iguass, retirado do Livro das Visitas feitas pelo Monsenhor Pizarro no ano de 1794, fls. 86 a 91.
40 Alm do monoplio do sepultamento, as irmandades recebiam doaes em propriedades e em obras, o que ampliava o patrimnio da Igreja, assegurava os privilgios dos componentes das irmandades, a conservao das igrejas e o sustento dos procos. As terras obtidas pelas irmandades eram freqentemente arrendadas. Encontramos o registro, no inventrio de Bento Viana, da quantia de 1.000$000 deixada pelo morto para cada uma das seguintes instituies: Santa Casa de Misericrdia, Casa dos Expostos da Santa Casa e a Casa de Socorro de Pedro, todas na corte. Assim, a preocupao com a boa morte mantinha tambm as instituies de assistncia e caridade. Como era inexistente a presena dessas instituies em Iguau, as doaes eram enviadas para a cidade do Rio de Janeiro. A Igreja desempenhava o papel de fiscalizadora e controladora da ordem portuguesa. As visitas pastorais eram feitas por representantes do alto clero, com o objetivo de registrar a situao geral de cada parquia, como produo e nmero de habitantes da Freguesia; traar o histrico da matriz, de suas filiais e dos procos; fiscalizar os Livros de Tomo e as finanas das Fbricas; e emitir um parecer da atuao do proco. possvel perceber, nos relatos da visitao de Monsenhor Pizarro, uma srie de registros das igrejas das parquias no final do sculo XVIII. Reclamava-se das irmandades, do no-cumprimento das obrigaes e da ausncia de uma participao mais efetiva dos fiis. Podemos identificar nos relatos algumas das causas da crise apontadas por Pizarro:
1. O temor do solteiro de ser identificado e apreendido para soldado, o que levava ocultao de fiis durante o perodo de visitao do Monsenhor;
[...] o total de almas compreende mais de uma terceira parte porque ordinariamente os brancos, os pardos solteiros e libertos, que temem ser apreendidos para soldados, jamais se manifestam, antes procuram ocultar-se quando podem. 73
2. A ocultao de escravos para escapar ao pagamento obrigatrio da dzima pela compra e da sisa pela venda, o que gerava uma diminuio dos recursos disponveis para as irmandades e uma sonegao da tributao imposta pela Coroa;
73 Freguesia de Santo Antnio. Orago de Jacutinga. Livro das Visitas Pastorais do Monsenhor Pizarro em 1794, fls. 78 a 85.
41 Os senhores de escravos igualmente ocultam ao Rol todos os que tm subtrado, muitas vezes uma boa parte e alguns at a metade [...] Em conseqncia deste procedimento padecem os procos [...] No havendo dinheiro, no pode a irmandade e a igreja satisfazer todos os encargos de missa que obrigada, padecendo, por isso mesmo, as almas dos irmos defuntos, pela indevoo e a falta de caridade dos vivos. 74
3. As reclamaes dos colonos em razo das violncias cometidas pelos procos e dos abusos na cobrana das taxas dos servios prestados pela igreja;
O reverendo Francisco Xavier Tavares de Moraes foi aclamado injusto extorsor por obrigar os donos de escravos que dem pataca e meia para duas missas; neste tempo a esmola ordinria de uma missa era meia pataca e a de corpo presente, doze vintns [...]. 75
4. A falta de participao das irmandades no cuidado dos altares e a ausncia dos fiis nos rituais religiosos.
E bem me persuadi na sua aniquilao, vendo que um s irmo destas intituladas irmandades apareceu para pegar uma vela e acompanhar a procisso das almas no dia em que abri as visitas, fazendo-se preciso rogar a 3 homens que tomassem as Opas da Irmandade do Santssimo para um deles levar a cruz [...] Ordenei que, no satisfazendo elas com o que deviam, que fossem privadas dos privilgios, graas e regalias a elas concedidas no uso e faculdade de sepultura. 76
Os relatos acima, alm de demonstrarem certa tenso entre os colonos e a igreja, so relevantes para nos fazer pensar acerca da sonegao de informao dos colonos, com vista a burlar a realidade e diminuir os benefcios a serem pagos Coroa e igreja. Ao mesmo tempo, demonstram a importncia da atuao da igreja como instrumento de ordenamento e controle interno.
A religio estabelecia a justificativa universal que ia desde o nome da Freguesia at as relaes escravistas [...] Na construo das matrizes e das capelas j se entreviam as imbricaes dos interesses que movimentavam o poder local. De um lado, a Coroa portuguesa liberando a Fazenda Real (tributos) para obras de construo, de outro, as doaes de terrenos por proprietrios em busca de prestgio social e de proximidade com os que tinham o monoplio dos bens da
74 Idem. 75 Freguesia Nossa Senhora do Pilar. Orago do Iguassu. Livro das Visitas Pastorais do Monsenhor Pizarro no ano de 1794, fls. 86 a 91. 76 Freguesia de So Joo Batista. Orago de Meriti. Livro das Visitas Pastorais do Monsenhor Pizarro no ano de 1794, fls. 18 a 24.
42 salvao, isso quando no visavam elevao religiosa dos seus prprios nomes [...]. 77
Todo esse jogo poltico demonstra a face do poder construda na colnia. A Coroa portuguesa legitimava e utilizava-se dos recursos tributados pela igreja e da lgica religiosa enquanto instrumento de controle interno. Em troca, investia recursos da Fazenda Real na construo de templos, ostentando o poder da Coroa. Por sua vez, a estrutura poltica instalada pela metrpole e exercida pela igreja servia aos interesses daqueles que controlavam o poder econmico local.
I.3 Os caminhos do ouro e do caf em Iguau e Estrela
Durante o sculo XVIII, a cidade do Rio e seu porto ganharam importncia econmica por serem escoadouro do ouro mineiro. A crescente necessidade de integrar o planalto ao porto atraiu investimentos na abertura de estradas para circular a produo mineradora e os produtos importados da Europa, principalmente as manufaturas e os escravos. O Caminho dos Guaianazes e Goitacazes era o nico existente em 1699 e levava aproximadamente trs meses para ser percorrido. 78 As ameaas provocadas pela pirataria e pela demora oneravam o transporte, exigindo uma volumosa mo-de-obra, formada, muitas vezes, por escravos alugados. Por outro lado, essa situao fez surgir proprietrios de terras e de escravos que sobreviviam e lucravam ofertando pouso, 79
alugando burros e parte de seus escravos para assegurar a circulao de mercadorias e pessoas. Em 1717, por exemplo, o capito Loureno Carvalho de Paraty possua trezentos escravos de aluguel para transportar as mercadorias de Minas para Paraty e vice-versa. 80
Diante desse quadro, a Coroa portuguesa delegou poderes ao governador do Rio de Janeiro, Artur de S, para elaborar um relatrio de gastos necessrios para a abertura
77 ALVES, J. Cludio. Baixada Fluminense: A Violncia na Construo de uma Periferia. So Paulo, 1998. Tese de Doutorado pela USP. 78 O Caminho dos Guaianazes atravessava a Serra do Mar e os campos de Cunha, pondo Piratininga ao alcance de Parati, na costa fluminense, de onde, por mar, se atingia o Rio de Janeiro. O Caminho dos Goitacazes era uma bifurcao do Caminho dos Guaianazes, em Guaratinguet, e que demandava Minas Gerais, atravessando a Serra da Mantiqueira pela garganta do Emba. Ver SILVA, Moacir M. F. Geografia dos Transportes no Brasil, Revista Brasileira de Geografia, ano II, n 2, Rio de Janeiro, abril de 1940. 79 Lugar de descanso, armazenamento e trocas comerciais. 80 MAIA, Thereza e Tom. Paraty: histrias, festas, folclore e monumentos. Rio de Janeiro: Expresso e Cultura, 1991, p. 16.
43 de novos caminhos, visando encurtar o tempo gasto na viagem e facilitar a fiscalizao. Garcia Rodrigues Paes, bandeirante paulista, elaborou um projeto de construo de um novo caminho que reduziria o tempo gasto da viagem do porto carioca ao planalto mineiro para 15 dias apenas (ver Anexo 6). Os recursos disponibilizados pela Coroa para a abertura do novo caminho foram escassos, levando Garcia Paes a fazer os investimentos necessrios e utilizar-se de seus prprios escravos. Em troca, recebeu do rei portugus a exclusividade do uso do caminho por dois anos, o controle das passagens dos rios Paraba do Sul e Parabuna e a doao de sesmarias. O caminho de Paes, inaugurado em 1700, atravessava Jacutinga e Pilar, transformando essas Freguesias em entrepostos de uma das principais rotas da colnia. O Porto do Pilar passou a escoar a produo para o Rio pela Baa da Guanabara, enquanto algumas fazendas ou arraiais tornaram-se reas de pouso dos tropeiros e de controle da ordem, como foi o caso da fazenda do Couto, em Mantiquira, e de Paty de Alferes, respectivamente. 81
A abertura do caminho novo por Garcia Paes estimulou o surgimento de outros caminhos que passaram a cortar a regio. Em 1722, foi criado o Caminho do Proena, que atravessava Estrela em direo a Serra de Petrpolis, Trs Rios, Rio Paraba e Minas em at sete dias. Estrela transformou-se em importante rea de pouso e seu porto, no principal escoadouro do ouro. A partir da metade do sculo XVIII, o ouro mineiro tornou-se escasso, culminando na crise definitiva de 1760, o que no significou a decadncia generalizada do Sudeste. Minas Gerais reorientou-se para fornecer os suprimentos necessrios a seu espao urbano e cidade do Rio, principalmente na agropecuria. A produo aucareira fluminense expandiu-se em direo a Campos de Goitacazes, aps uma recuperao do produto no mercado europeu e norte-americano. Alm disso, no se pode esquecer da produo agrcola para o abastecimento interno da sede do Governo- Geral e para as relaes de trocas intercolonial com Angola, principalmente da aguardente, que era largamente utilizada no trfico de escravos. Entre o final do sculo XVIII e a primeira metade do sculo XIX, a produo cafeeira afirmou-se no cenrio fluminense, expandindo-se pelo recncavo at chegar ao Vale do Paraba. O caf tornou-se o principal produto exportador brasileiro no sculo XIX, e o Vale do Paraba, seu grande centro produtor. Algumas fazendas de Iguau
81 A famlia Werneck era residente do Pilar e foi uma das fundadoras de Paty de Alferes, instalando no local uma fazenda de pouso.
44 iniciaram o plantio de caf, principalmente nas reas de serra, porm, a maior parte da regio era muito baixa, o que inviabilizava a concorrncia com a produtividade do Vale. Segundo Waldick Pereira, em 1848, havia apenas 16 fazendas de caf em Iguau e com baixa produtividade, destinada principalmente ao abastecimento interno. 82 Em Anhum- mirim, Monsenhor Pizarro tambm identificou a produo cafeeira no p da serra e o artista ingls J. J. Steinmann pintou duas fazendas de caf nas margens do caminho do Proena, entre Mag e Serra dos rgos. 83
Com o caf se espalhando pelos planaltos fluminense e mineiro, nas margens do Rio Paraba, mais uma vez a Baixada exercia o papel de integrao do porto carioca com a serra. Em 1811, os comerciantes iguauanos, organizados na Junta Real do Comrcio, iniciaram a construo da Estrada do Comrcio, que foi inaugurada em 1822. Pelo caminho, passavam boiadas e varas de porcos, transportavam-se madeiras, couros, farinha de mandioca, feijo, milho e ouro oriundos de Minas Gerais com destino ao Rio de Janeiro. 84
A Estrada do Comrcio beneficiou a Freguesia de Piedade de Iguau, transformando os portos de Iguau e de Cava em centros de trocas comerciais. Dessa forma, a imbricao dos interesses da metrpole portuguesa com os dos grandes proprietrios movimentou o tabuleiro econmico e poltico de Iguau, alterando os lugares sociais definidos anteriormente. A regio agroexportadora e produtora de alimentos para o abastecimento do porto carioca foi transformada tambm em territrio de ligao do porto com as reas cafeicultoras, isto , lugar de passagem, de armazenamento e de trocas comerciais. No mesmo perodo da abertura da Estrada do Comrcio, tambm foi aberta a Estrada da Polcia, que integrava Cava ao atual centro de Vassouras. Famlias do Pilar e de Iguau, assim como famlias das reas mineradoras com capital disponvel, instalaram-se nas serras, investindo no caf e na circulao de mercadorias. 85
As reas de Estrela, Pilar e Cava permaneceram como entrepostos comerciais e locais de passagem de um grande contingente de escravos africanos que seguiam em direo ao Vale do Paraba. Por outro lado, as propriedades agrrias mais distantes dos
82 PEREIRA, 1977, p. 72; LEVY, Carlos Roberto Maciel et al. Iconografia e paisagem. Rio de Janeiro: Edies Pinakotheke, 1994, pp. 25-27. [Coleo Cultura Inglesa]. 83 ARAJO, J. de S. Pizarro E. Memrias histricas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945, v. 3, pp. 226-227. 84 PEREIRA, Waldick. A mudana da Vila. Nova Iguau: Arsgrfica, 1970, p. 42. 85 Para exemplificar, podemos citar o caso do Baro do Tingu, importante proprietrio e homem de negcios em Iguau e Vassouras.
45 principais portos mantinham parte do abastecimento dos produtos agrcolas para Minas Gerais, Rio de Janeiro e para o comrcio intercolonial. Novamente, a hidrografia e os caminhos pesavam sobre Iguau. A produo do caf do Vale do Paraba era escoada pelos Portos de Estrela e do Pilar, pelas Estradas do Comrcio e da Polcia, que desembocavam em Cava (Iguau Velho). Estrela e Cava foram transformadas em vilas-entrepostos, onde as pessoas que animavam suas vidas eram os elementos em trnsito, como afirma Soares.
Eram tropeiros, viajantes, mercadores, comissrios de caf, sendo pequena a populao estvel, predominantemente constituda por negociantes, botequineiros e ferradores. Os grandes proprietrios rurais no residiam nos aglomerados. J os trabalhadores da terra, s os das imediaes das vilas delas se serviam, pois havia um grande nmero de vendas espalhadas pelos caminhos, tornando desnecessria sua ida ao aglomerado. 86
Pilar no chegou a se constituir como vila, mas, segundo o viajante francs Saint Hilaire, em 1818, a regio era linda, com uma s rua, da qual se via a matriz. O casaro era aparatoso e com muitas lojas de fazendas. A regio possua trs mil habitantes que lavravam cana, arroz, milho, feijo e caf, cujos gneros levavam com facilidade para o Rio de Janeiro, sendo que todos os ribeires e rios vizinhos eram navegveis. 87 Foi somente com a expanso do caf em direo a Vassouras e Trs Rios que a circulao do Porto do Pilar cresceu. Quando um arraial tornava-se uma regio economicamente importante ou era considerado como local estratgico por razes de segurana, poderia ser elevado categoria de vila. A transformao poderia ser feita por solicitao de proprietrios com prestgio ou pelo poder central. As condies prvias eram a construo dos prdios da igreja matriz, da Cmara, da cadeia e um pelourinho. A importncia dos trs centros de circulao de mercadorias e de pessoas contribuiu para que Magepe, Iguau e Estrela fossem elevadas categoria de vila, ou seja, de municpio. Em 1789, foi fundada a Vila de Magepe, formada pelas Freguesias de Piedade de Magepe, de N. S. da Ajuda de Aguapemirim, S. Nicolau do Suru, N. S. Guia de Pacobaba e as ilhas do arquiplago de Paquet. Em 1833, Iguau foi elevada condio de vila, sendo composta pelas Freguesias de Piedade do Iguau, Pilar, Meriti,
86 SOARES, M. T. Segadas. Nova Iguau. Absoro de uma Clula Urbana pelo Grande Rio, Revista Brasileira de Geografia, n 2, ano XVII, abr/jun, Rio de Janeiro: IBGE, 1955, pp. 163-165. 87 SAINT- HILAIRE, Augusto de. Segunda Viagem do Rio de Janeiro a Minas Geraes e a So Paulo (1822). Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1932, pp. 19-30. [Biblioteca Pedaggica Brasileira, Srie V, v. V.]
46 Marapicu e Santo Antnio de Jacutinga. O local escolhido para ser a sede da Vila foi Cava. As funes religiosas, administrativas e judicirias davam aglomerao um esboo de funo regional. Em 1835, a vila de Iguau foi extinta por trs fatores. O primeiro est relacionado com os conflitos provocados pela interferncia da Cmara sobre o porto de um proprietrio e a utilizao de uma casa para alojar a comisso sanitarista sem a autorizao do dono. O segundo, pelas divergncias estabelecidas entre a Cmara e o Juiz de Paz. O terceiro, pelas tenses existentes entre os proprietrios de terra de Inhomirim e Iguau, j que os primeiros no viram com bons olhos sua anexao a uma localidade distante de seus interesses. 88 O prestgio dos bares 89 da regio iguauana garantiu que, no ano seguinte, a vila fosse restaurada. 90
Na regio de Anhum-mirim e Estrela, a movimentao foi ampliada aps a chegada da famlia real ao Rio de Janeiro, em 1808, e, conseqentemente, com o fim do monoplio colonial. Com a abertura dos portos, as possibilidades de investimentos privados na produo e nos servios se efetivaram. O crescimento do Porto Estrela, sua posio estratgica no combate s rebelies do planalto e a existncia de fazendas protegidas pela serra e pela mata, nas margens do caminho do ouro, tornaram-se argumentos importantes para a transferncia da fbrica de plvora instalada na Lagoa Rodrigues de Freitas para Raiz da Serra. Um outro aspecto a ser considerado era que a fbrica de plvora tornara-se perigosa para a populao da corte, em face dos acidentes ocorridos durante o fabrico. Alm disso, j havia um armazm de plvora nas margens do Rio Estrela. Aps a desapropriao das Fazendas da Cordoaria e da Mandioca, esta ltima de propriedade do Baro de Langsdorff, em 1826, foi instalada em Raiz da Serra de Estrela a Fbrica de Plvora Estrela. 91 A fbrica passou a abrigar um contingente significativo de escravos
88 A subordinao de Inhomirim a uma Cmara distante de seu cotidiano e de seus interesses provocou a insatisfao dos proprietrios. A deciso da Assemblia Legislativa da Provncia do Rio foi a extino da Vila de Iguau e a anexao provisria das Freguesias de Piedade, Marapicu, Jacutinga e Pilar a Niteri. Inhomirim foi anexada Vila de Mag e, mais tarde, com a criao da Vila de Estrela, passou a fazer parte desta. A Freguesia criada recentemente sob a denominao de SantAnna de Palmeiras (Tingu) foi anexada a Vassouras (Ver MAIA FORTE, 1933, pp. 13-16). 89 Nobiliarquias iguauanas: Marqus de Itanham (tutor de D. Pedro), Baro do Pilar, Baro de Palmeiras, Baro de Guandu, Conde de Iguau (casado com a filha nascida de D. Pedro I com a Marquesa de Santos), Baro de Mesquita, Baro do Bonfim, Baro de Tingu, Marqus de So Joo Marcos, Visconde de Gericin, Conde de Sarapu, Baro de Ub, Conde de Aljezur etc. (Ver PEIXOTO, 1968). 90 MAIA FORTE, 1933, p. 58. 91 Segundo Livro de Registros da Fbrica no Sculo XIX: pp. 169 e 170. O livro se encontra nas dependncias da fbrica hoje denominada IMBEL, pertencente ao Exrcito brasileiro.
47 que trabalhavam no fabrico da plvora e de militares que atuavam no comando, na fiscalizao e na defesa. Apesar da importncia do Porto, do crescente aumento da circulao de pessoas e de mercadorias, afirmando-se enquanto lugar de pouso, o trajeto era penoso:
Tomava-se na praia dos Mineiros, no Rio de Janeiro, uma passagem em uma falua, 92 s 11 horas da manh, e aproava-se ao porto da Estrela, passando pelo Boqueiro, na ponta oriental da Ilha do Governador [...] Do porto da Estrela desembarcava-se em qualquer dos ancoradouros de Francisco Alves Machado Martinho e de Joviniano Varela, s 5 horas da tarde, quando o tempo favorecia. A pernoitando em qualquer das casas desses que davam franca hospitalidade ou em uma estalagem do lugar. No outro dia, seguia-se a cavalo ou de carro, fornecido pelo cidado Albino Jos de Sequeira Fragoso, pela estrada de Minas at Fragoso, importante passagem obrigatria de todo o comrcio dessa provncia [...] Do Fragoso subia-se a serra da Estrela para chegar a Petrpolis com uma viagem de duas a cinco horas [...]. 93
Na dcada de 40, conhecida como a era do vapor, as embarcaes tornaram-se maiores, mais seguras e mais velozes, facilitando o acesso ao porto. Quinze anos mais tarde, as duas companhias de navegao se fundiram, criando a Companhia a Vapor. Tambm os caminhos receberam investimentos. Foi planejada uma nova estrada, saindo de Estrela para Paraibuna, em substituio do Proena, que se encontrava em estado precrio. Em 1844, a Estrada Normal de Estrela estava aberta em toda a sua extenso, o que facilitava tambm o acesso recm-criada colnia de Petrpolis. Tais melhoramentos e a crescente alta do caf contriburam para que, em 1847, Estrela fosse elevada categoria de vila e incorporasse a antiga Freguesia do Pilar (atuais segundo e quarto distritos do municpio de Duque de Caxias). Dessa forma, a nova vila, formada pelas Freguesias de Inhomirim, Pilar, Guia de Pacobaba, Suru e pela colnia de Petrpolis, tornou-se uma das mais importantes da Baixada. A partir de 1856, a Empresa Estrada Unio deu continuidade ao caminho at Paraibuna. A Estrada Normal de Estrela e a Unio Indstria promoveram uma diminuio do tempo gasto no trajeto e apresentavam melhores condies de circulao. Esse beneficiamento favoreceu Estrela, fazendo de seu porto o principal escoadouro fluminense do sculo XIX.
92 Falua era uma espcie de bote com velas pesando vinte a quarenta toneladas. Era manejada por um patro e seus remadores negros. 93 Apud AZEVEDO POND, Francisco de Paula. O Porto Estrela, Revista do IHBG, v. 293, Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1972, pp. 49 e 50.
48 A existncia de trs vilas redefiniu a estrutura administrativa na Baixada. As antigas Freguesias foram partilhadas entre as vilas constitudas. Jacutinga, Piedade, Marapicu e Meriti passaram a fazer parte da Vila de Iguau, enquanto Pilar, Xerm, Inhomirim, Guia de Pocababa, Suru e Petrpolis compunham a Vila de Estrela. J Mag englobava as Freguesias de Piedade de Magepe, N. Senhora da Ajuda de Aguapimirim, N. S. Aparecida e Paquequer (atual Terespolis). Na Vila de Iguau, os proprietrios de terras e de escravos associavam-se tambm s atividades mercantis em Cava. Em Estrela, proprietrios e comerciantes beneficiavam-se com os investimentos privados oriundos da cidade do Rio de Janeiro, alterando o cotidiano de seu Porto. Em Mag, a pesca e a intensificao de movimentao dos Portos de Guia de Pacobaba, Mangu, Ipiranga e So Francisco, principalmente, aqueciam as trocas comerciais. Alm disso, a produo aucareira e da farinha de mandioca, voltada para as atividades mercantis, assegurava o domnio dos proprietrios no lugar. Aps a emancipao brasileira e a fundao do Imprio, a cidade do Rio de Janeiro tornou-se a sede do poder central, e a regio fluminense, o centro econmico do pas. A presena de imigrantes europeus e comerciantes ingleses, a emergncia de uma aristocracia cafeeira que transitava entre o rural e o espao da cidade, bem como o aumento da compra de escravos para o trabalho de ganho e para o trabalho nas fazendas, contriburam para que, em 1870, a populao carioca j atingisse os 250 mil habitantes. 94
O crescimento do setor mercantil e da populao valorizou a propriedade urbana da cidade do Rio de Janeiro. Em contrapartida, as reas perifricas, no-produtoras de caf e que no ocupavam lugar de circulao considervel, sofreram uma crescente desvalorizao da propriedade agrria ao compararmos com os valores dos imveis da corte.
[...] o capito Bento Luiz da Oliveira Braga, que, em 1800, comprou em Igua uma fazenda de uma lgua de terras em quadra, com uma engenhoca completa, uma casa de farinha, um alambique, 44 cativos, 17 bois, 18 bestas, cavalos, casas de vivenda coberta de telhas, senzalas, arvoredos e plantaes tudo isto por 9: 000$000 ris. No mesmo ano, entretanto, Bernardo Manoel da Silva Guimares adquiriu uma loja de fazendas na rua do Ouvidor por 12: 000$000 ris. 95
94 Os dados do Rio foram extrados do texto j citado de Amador Elmo da Silva, 1992, p. 229. Os referentes a Salvador foram encontrados na obra de SCWARTZ, 1988, pp. 77-94. 95 FRAGOSO, 1996, p. 68.
49 Apesar da desvalorizao da propriedade agrria iguauana frente da cidade carioca no incio dos oitocentos, Silveira identificou um movimento de revalorizao dessas terras e a ampliao do latifndio no perodo de crise do modelo escravista, aps o fim do trfico externo. Para ele, o latifndio se mostrou como propriedade mais bem protegida contra as transformaes que ocorriam e se constituiu como meio de obteno de renda monetria, de complemento de rendas pelo sistema de arrendamento e de instrumento de coero sobre os trabalhadores, garantindo, assim, os mecanismos de dominao social. 96
A compra de terras, mesmo nos momentos de crise, se explica pela necessidade de garantir mo-de-obra e fontes complementares de renda. A escravido decresceu de importncia ao longo de sua desagregao [...] e ser proprietrio de imveis rurais tornou-se garantia de crdito hipotecrio, provocando uma corrida implantao de novos empreendimentos produtivos. 97
Silveira analisou o processo de concentrao fundiria no perodo de 1855-57 utilizando-se das declaraes de terra realizadas no perodo. Nos limites das Freguesias de Piedade e Jacutinga, identificou que apenas 93 indivduos ou familiares mantinham o controle da terra, enquanto a populao livre chegava a 5.881 habitantes. 98 A manuteno do latifndio era garantida por meio da ampliao das fronteiras agrcolas, em que escravos, assalariados e arrendatrios produziam para abastecer de alimentos a cidade carioca e manter o lucro dos proprietrios. Como j visto, as transformaes ocorridas nesse perodo determinaram o lugar do Recncavo Guanabarino como regio subordinada aos interesses do poder central imperial, realizando o papel de territrio de ligao do porto com o planalto e de entreposto comercial. Tal lgica no expressou uma excluso de Iguau e de Estrela, mas uma redefinio de papel frente economia nacional e ao crescimento da importncia do espao da cidade do Rio de Janeiro. Todo esse movimento produziu reordenamentos, desvalorizando determinadas reas de Iguau e Estrela, e, em contrapartida, valorizando outras. Privilegiou a circulao em detrimento da produo agrcola e favoreceu as condies para o surgimento de um tipo de trabalho escravo, tambm baseado no trnsito. Ao mesmo tempo, mantiveram-nas como regio fornecedora de alimentos para a cidade carioca,
96 SILVEIRA, 1998, pp. 203-204. 97 Idem, 89. 98 Idem, p. 203.
50 promovendo o latifndio e beneficiando os grandes proprietrios locais. Por outro lado, as famlias que mantinham o latifndio controlavam o poder poltico local e asseguravam as condies de sobrevivncia de uma estrutura agrria em crise. Algumas famlias, principalmente as residentes nas reas de pouso, circulao e trocas, tambm se envolveram nas atividades comerciais, que serviam de mecanismo de complementao e acumulao de renda. A produo cafeeira promoveu uma modificao da composio da Baixada, na medida em que os proprietrios, ao se deslocarem para as residncias na corte e gradualmente reduzirem o uso de suas terras para a produo, investiram e ganharam mais com a intermediao.
I.4 Os elementos da desordem no sculo XIX
Alm do crescimento populacional da cidade do Rio e de seus arredores, o sculo XIX ficou marcado pela formao do Estado Nacional e pela consolidao da unidade territorial. As disputas pelo domnio da sociedade poltica entre liberais e conservadores expressavam-se nas revoltas regionalizadas. Apesar do conflito entre duas possibilidades, o da centralizao e o da descentralizao, o projeto vitorioso baseou-se no voto censitrio, na manuteno da estrutura fundiria anterior, no modelo escravocrata e agroexportador. Duas obras historiogrficas, A construo da ordem, de Murilo de Carvalho, e O tempo de Saquarema, de Ilmar Rohloff, tm sido muito utilizadas para ajudar a pensar a estrutura do Brasil no sculo XIX. Segundo Murilo de Carvalho, a definio pelo regime monrquico se deu por conta da formao ideolgica comum da elite, com bases no direito romano e no absolutismo. J para Ilmar Rohloff, a escolha atendia s necessidades de garantia dos interesses econmicos da recm-constituda classe senhorial. Para ambos, a ameaa da ordem e da tranqilidade da chamada boa sociedade ou da elite marcou o sc. XIX. Carvalho apresenta como ameaa os conflitos intra-elite promovidos pelos desacordos dos arranjos institucionais, pelas disputas pelo controle da esfera poltica entre o poder central do Rio de Janeiro e os regionais. Rohloff define como elementos da desordem as tenses provocadas pelo mundo da rua, representado por aqueles que no eram senhores nem escravos. Para ele, os senhores tinham o interesse de manter a ordem e a funo de controlar sua escravaria. J os homens livres,
51 despossuidores de escravos e de rendas, por estarem potencialmente descontentes com essa ordem, situavam-se fora do controle da classe senhorial. Coube ao Estado estabelecer os mecanismos de controle da rua. O cdigo criminal e a organizao das milcias e da Guarda Municipal foram os arranjos construdos para a manuteno dos interesses da boa sociedade. 99
No caso de Iguau, as ameaas ordem foram tecidas por dois fatores. O primeiro, pelas disputas existentes entre os proprietrios de terras em torno do domnio do poder local, tanto na disputa pelos cargos de vereadores na Cmara como pela concesso de ttulos nobilirquicos e de privilgios. A importncia da Cmara devia-se a seu papel executivo e administrativo, em que os grupos polticos atuavam em causa prpria. As eleies eram fraudulentas, votavam os mortos e os vivos, no havia propaganda eleitoral e os que queriam ser eleitos deveriam fazer combinaes, participar de algum grupo de amigos bem situados ou pertencer a alguma famlia importante. As disputas eram violentas e, muitas vezes, envolviam homens de uma mesma famlia ou do mesmo grupo. Situao exemplar ocorreu na dcada de 50 do sculo XIX: o chefe do Partido Conservador era o comendador Francisco Jos Soares e o do Liberal, seu filho, o coronel Francisco Jos Soares Filho. Eram constantes os conflitos entre conservadores e liberais, tornando um dito popular da poca famoso: Deus nos livre da poltica de Iguau e das febres de Macacu. 100
A ameaa da desordem tambm justificava um maior rigor no controle da Vila. Em 1887, foi feita uma reforma no Cdigo de Postura da Vila de Iguau. Entre as proibies, algumas merecem destaque: dar tiro com arma de fogo; correr a cavalo na vila; ofender por qualquer modo o decoro pblico; fazer pasquim contra a vida privada, mesmo que fosse com relao a uma s pessoa, e preg-lo em qualquer lugar ou mesmo larg-lo em lugar que pudesse ser achado e lido; usar facas de ponta, exceto os tropeiros, carreiros, lenhadores e oficiais de justia; jogar parada em vendas e tavernas e; reunirem-se 12 ou mais pessoas em tabernas se nada tivessem a vender ou comprar. Todas essas imposies visavam manter o controle poltico da vila. As imposies eram fiscalizadas pelos exigentes e bigodudos inspetores de quarteiro de
99 Ver MATTOS, Ilmar Rohloff. O tempo de Saquarema. Rio de Janeiro: Acces, 1994; CARVALHO, Jos Murilo de. A construo da ordem. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/Relume Dumar, 1996. 100 PEIXOTO, 1968, p. 26.
52 coletes e grossas correntes. Essa poltica era conhecida na poca pela frase: Pena para os infratores: grades, po e gua. 101
O segundo elemento da desordem era a rebeldia negra, expressa na formao dos quilombos iguauanos, nas fugas e nos assassinatos de senhores. Ao analisar a experincia escrava fluminense, Flvio Gomes 102 contabilizou a composio tnica dos escravos capturados em Iguau. Ele identificou que, dos 83 escravos capturados entre 1816 e 1817, 45 eram naturais da frica, 26 eram brasileiros e 4 no foram identificados. Entre os africanos, havia uma presena maior de Cabindas, de Cassanges, de Benguelas, do Congo e de Moambique. Os dados possibilitam a compreenso da composio tnica dos revoltosos presos no perodo mencionado; contudo, no so suficientes para identificar a composio tnica da populao escrava da regio. Alm disso, os documentos indicam que, entre os quilombos iguauanos, estavam presentes escravos de diferentes localidades fluminenses: de Guandu, Macacu, Maca, Vassouras e da Corte. No esforo de mapear a origem tnica dos escravos da regio de Iguau e de Estrela, analisamos 641 assentos de batismo da Freguesia do Pilar, no perodo de 1791- 1809. O quadro apresentado no representa a totalidade das freguesias e muito menos os percentuais exatos quanto composio tnica dos escravos da Baixada; porm, os dados so exemplares no sentido de possibilitar a identificao das regies de origem das escravas no perodo mencionado, na Freguesia do Pilar. Dos 641 assentos, 38% das mes dos batizados eram de origem africana e 39%, nascidas no Brasil, o que significa praticamente a mesma quantidade de escravos africanos e brasileiros. Um quantitativo de aproximadamente 23% no pde ser identificado, quer seja pelo silncio existente no documento acerca da origem tnica, quer pelo fato de o assento encontrar-se ilegvel ou danificado.
101 PEIXOTO, 1968, p. 27. 102 GOMES, Flvio dos Santos. Histrias de Quilombolas: Mocambos e Comunidades de Senzalas no Rio de Janeiro Sc. XIX. So Paulo, 1992. Dissertao de Mestrado pela UNICAMP.
53 Freguesia do Pillar do Aguass Livro de Assento de Batismo de Escravos 1791-1809 Composio tnica das mes dos batizados. A F R I C A N A S Angola
54
Benguela
35 Congo
10
Rebola
04 Cassange
01
Mina
01 Moam- bique
01
Quila- mane
01
Nao*
139 Total
246
%
38
B R A S I L E I R A S
Mulata
01
Crioula
199
Parda
23 Cabra
23 Preta escrava
02 Preta Forra
01 Total
248 %
39
No Identifica dos Total 147 % 23
* Observao: Segundo Mariza de Carvalho Soares, usualmente o termo possui dois sistemas de classificao no-rigorosos: 1) aquele que nomeia os povos gentios a serem catequizados; e 2) aqueles que nomeia as diferentes naes com as quais os portugueses se relacionaram no processo de expanso colonial. 103
Como podemos observar na tabela acima, a maioria das escravas africanas tem as seguintes procedncias: Angola, Benguela, Congo e as de nao. Apesar do esforo da demonstrao, reconhecemos o limite do trabalho realizado e a importncia de um trabalho de investigao de maior flego, no qual fosse possvel computar os dados da composio tnica dos livros de assentos das vrias freguesias por perodo, a fim de que pudssemos identificar as flutuaes, as permanncias e as descontinuidades presentes. J no que se refere resistncia escrava, Flvio Gomes seguiu as trilhas dos processos criminais e das correspondncias policiais. As primeiras informaes sobre a existncia de quilombos em Iguau so referentes ao ano de 1808 e foram fornecidas por cartas e ofcios emitidos/recebidos por Presidentes da Provncia do Rio de Janeiro, Ministros da Justia, Secretrios de Polcia, pelo Imperador e por militares do Exrcito. O Ministro da Justia Gama Cerqueira, em 1878, chamava os quilombos de Iguau de Hidra Iguauana. Na mitologia grega, a monstruosa Hidra era uma espcie
103 Ver SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000, p. 103.
54 de drago com vrias cabeas e parecia indestrutvel. Vivia no rio de Lerna, que era pantanoso e lodoso, localizado na regio do Peloponeso. A exemplo da Hidra de Lerna, os quilombos iguauanos eram muitos, estavam localizados nas margens dos rios Iguau, Estrela, Pilar, Sarapu, Suru e nas reas de manguezais, possuam at cem pessoas e eram tidos como indestrutveis (ver Anexo 7). 104
[...] em resposta ao seu ofcio de ontem, mencionando as providncias que tens tomado relativamente existncia de um quilombo nas margens do rio Iguau, no tendo sido possvel at agora extingui-lo, por achar-se colocado em lugar inaccessvel, convido-o a progredir ativamente nas diligncias a fim de serem capturados no s os escravos como os demais indivduos que ali porventura forem encontrados. 105
A geografia, o conhecimento da regio e a facilidade de circulao atravs dos rios garantiram certa proteo aos quilombos de Iguau. Os quilombolas controlavam a extrao de madeira e a produo de lenha, catavam caranguejo, pescavam, furtavam, cobravam tributos em mercadorias pela passagem nos rios e negociavam o excedente produzido pelos escravos de So Bento, nas horas de folga, em terras concedidas a eles pelos beneditinos. Esses escravos convertidos e confiveis de So Bento recebiam dos beneditinos a concesso de uso de lotes da fazenda. A produo de subsistncia e a criao de animais reduziam os custos com a alimentao dos escravos. No ofcio da Secretaria de Polcia da Provncia do Rio de Janeiro, datado de 1860, consta que, entre os quilombolas presos, havia um escravo de So Bento. Este dado aponta para a existncia de fugitivos da fazenda entre a listagem dos prisioneiros do Quilombo de Iguau. Tal fato revela o quanto a vida na fazenda So Bento tambm estava marcada pelas tenses. Logo, a vida escrava dos no-convertidos e dos escravos novos de So Bento no se diferenciava ou diferenciava-se muito pouco das demais fazendas da regio. Os quilombolas negociavam com os taberneiros locais armas e mercadorias no- produzidas no local. A teia constituda garantia a segurana dos quilombolas, que eram avisados da chegada da polcia pelos taberneiros e pelos escravos de So Bento.
O resultado o mesmo porque mantendo eles relaes constantes com os donos de vendas prximas que lhes compram lenhas e fornecem mantimentos e, assim,
104 GOMES, 1992. 105 Ofcio enviado ao Chefe de Polcia pelo Presidente da Provncia Silva Motta, em 15 de novembro de 1859. Podemos encontrar cpia das correspondncias aqui utilizadas no Instituto Histrico de Nova Iguau e no Centro de Memria, Documentao e Histria da Baixada Fluminense/FEUDUC.
55 concorrem para a conservao dos quilombos, bem como acontece com um fulano Pendo, da taberna, sita margem do Sarapu, no lugar denominado de Vassoura, e com um certo Garcia com venda no Pilar. Enquanto existir estes reconhecidos asilados e protetores de quilombolas, sero iludidas e burladas todas as diligncias. 106
Quando a polcia conseguia atacar, a maioria dos quilombolas fugia. A habilidade com as canoas, o conhecimento da geografia do lugar, as armadilhas com estepes venenosos espalhadas pelas reas pantanosas e a acolhida que recebiam dos escravos da Fazenda de So Bento, em suas senzalas, garantiam aos quilombolas uma fuga bem-sucedida e a reorganizao do quilombo. Outra possibilidade de fuga era em direo s serras e matas prximas, como a de Xerm.
[...] soube que o famoso quilombola Nicolau, e a nica preta que havia no quilombo, estavam se arranchando em um morro, no muito distante dali. Quintella veio me dar-me parte do lugar do Xerm. 107
A rede de solidariedade e de proteo aos quilombolas foi duramente combatida pelas autoridades locais e provinciais. Localizamos no Arquivo do Rio de Janeiro vrias solicitaes de provises para os capites-do-mato, feitas pelos proprietrios de terra e pela Cmara de Iguau. Claudinei Moraes da Silva 108 localizou no Arquivo Histrico de Exrcito documentos referentes a uma perseguio ao quilombo de Iguau, realizada em 1825. De acordo com esses documentos, o Imperador havia recebido uma representao do francs Luis Dupyr, estabelecido na fazenda de Bento Antnio Vahia (conhecido posteriormente como conde do Sarapu). O francs residia na Freguesia de Meriti e foi atacado ao desembarcar no Porto do Gramacho por quatro negros rebeldes de um grande quilombo existente entre os rios Sarapu e Iguau. O Imperador ordenou ao Ministro de Estado que o quilombo fosse destrudo. A Secretaria de Estado dos Negcios da Guerra, o Intendente-Geral da Polcia e o General Governador das Armas da Corte e Provncia determinaram o bloqueio e a destruio do quilombo. A Intendncia-Geral de Polcia ordenou Diviso Militar da Guarda Real da
106 Ofcio enviado ao Presidente da Provncia pelo substituto do Secretrio de Polcia Mathias Mor de Barros, datado de 16 de novembro de 1859. 107 Ofcio do Secretrio de Polcia para o Presidente da Provncia, datado de 30 de dezembro de 1860. 108 Claudinei Moraes foi aluno do curso de Ps-graduao em Histria Social do Brasil pela FEUDUC e colaborador do Centro de Memria da Instituio. Podemos localizar o documento citado no Centro de Memria da FEUDUC.
56 Polcia 109 que executasse as instrues. Elas foram redigidas em dez artigos pelo Quartel da Glria, em 27 de abril de 1825, e assinadas pelo coronel Miguel Antnio Flangini. 110
Nas instrues, havia a descrio detalhada do plano de emboscada da diligncia: trs escolares (embarcaes a remo) iriam entrar no Rio Sarapu, quatro iriam bloquear a costa do Sarapu e do Iguau, trs iriam entrar no Iguau para atacar o quilombo e duas iriam para o Rio Estrela, na altura da Ilha do Governador, para cercar um bergantim raso que estava no prolongamento da Barra do Iguau, com a seguinte tarefa:
[...] navegaro para elle, e segurando as canas que acharem ao cortado, ou nas suas immediaes, passaro a bordo e aprehendero os negros ou os pardos que ahi acharem, fazendo todo o empenho por tomar hum preto que chamo de Rey do Quilombo, e que dizem vai ali todos os dias depois das 5 ou 6 da tarde, e l se demora at as 11 da noite. 111
Alm das investidas pelos rios, haveria ainda o cerco por terra. No relatrio final da diligncia, o coronel Flangini descreveu em detalhes a execuo. No dia 29 de abril, ele marchou de seu quartel com 15 homens e, durante a madrugada, reuniu-se ao Destacamento do Batalho de So Paulo, composto de 160 praas, s ordens do capito Joo Fernandes Gaviso. Essas informaes nos remetem a duas questes. A primeira refere-se importncia dada destruio do quilombo iguauano, que mobilizou 180 militares, sem contar com os homens cedidos por proprietrios locais, o que representava para a poca uma investida significativa. A segunda est relacionada presena do Batalho de So Paulo. No haveria militares suficientes na Corte para a realizao da emboscada? O que teria levado o coronel Flangini a sair de seu quartel com um nmero reduzido de homens? As respostas a tais indagaes poderiam estar relacionadas necessidade de sigilo da operao. Outras diligncias foram realizadas e fracassaram,
109 Segundo Claudinei Moraes da Silva, a Diviso Militar da Guarda Real da Polcia foi criada em 1809. A diviso era constituda por praas de Exrcito (primeira linha) e por oficiais ou de milcias. A DMGR deu origem posteriormente PM do Estado do Rio de Janeiro. Ver: SILVA, Claudinei Moraes da. Baixada Fluminense: A Guerra aos Quilombos. Rio de Janeiro, 2000. Comunicao apresentada no I Congresso de Histria da Baixada Fluminense/FEUDUC. 110 Ordens enviadas para o Intendente-Geral da Polcia. Livro de Ordens da Corte, 28 de setembro de 1824 a 22 de outubro de 1825, n 162. Arquivo Histrico do Exrcito. 111 Instruoens que deve executar o Snr. Tenente Francisco Miguel de Abreo, artigo 4. 27 de abril de 1825. Livro de Ordens da Corte, 28 de setembro de 1824 a 22 de outubro de 1825, n 162. Arquivo Histrico do Exrcito.
57 no apenas pelo desconhecimento da geografia da regio, mas, sobretudo, por terem sido delatadas aos quilombolas. Como confiar na milcia local? O que fazer para que os taberneiros locais e negros de ganho da cidade carioca no percebessem a movimentao das tropas? A meu ver, os rgos de represso do Estado imperial acreditaram que a interveno da milcia paulista garantiria a surpresa da emboscada. Como j dito, a rede de proteo existente entre quilombolas, taberneiros, escravos de So Bento, comerciantes e negros de ganho da cidade carioca possua nas terras iguauanas uma forte oposio dos proprietrios de terras. A ajuda local recebida est impressa no relatrio final da diligncia. O fornecimento de alimentos para as tropas e de guarnies dos escolares foi feito na casa do Sr. Bento Antnio Vahia, perto da Barra do Sarapu. H ainda elogios e agradecimentos para o senhor do engenho e da olaria da Vassoura, o capito reformado, Francisco Garcia do Amaral:
[...] he digno de toda a contemplao pela boa vontade e promptido com que me prestou quantos auxlios delle requeri e outros que de sua deliberao ofereceu, sem exceptuar o de seu trabalho pessoal, tendo fornecido gratuitamente raoens de aguardente para as tropas, escravos e utencilios para servio dellas, carros para carregar e descarregar mantimentos e embarcaoens, tanto para passagem dos Destacamentos no Sarapuhi, como para conduo delles desde o rio at o Saco do Alferes. 112
Alm dos senhores de engenho, h uma meno de reconhecimento pelo patriotismo de Javiano Joo de Souza, morador nas olarias, por prestar servios e guiar as tropas. Sua atuao mencionada no relatrio como demonstrao de fidelidade ao monarca. As atuaes de Bento Vahia, Amaral Garcia e Joo Souza so exemplares ao favorecer a compreenso das tenses que foram produzidas pelos diferentes interesses econmicos: os interesses dos proprietrios de terra e de escravos em manter a condio de classe dominante; dos taberneiros locais e comerciantes cariocas, que, em troca de alguma possibilidade de acumulao, acoitavam aqueles que poderiam ser fornecedores e consumidores; e finalmente os interesses dos escravos fugitivos, dos escravos da fazenda de So Bento e dos negros de ganho que trabalhavam na corte e que viam na Baixada uma pequena possibilidade de sobrevivncia e liberdade.
112 Relatrio assinado pelo coronel Miguel Antnio Flangini e enviado ao Ilmo. e Exmo. Sr. Joo Vieira de Carvalho em 2 de maio de 1825. Livro de Ordens da Corte, 28 de setembro de 1824 a 22 de outubro de 1825, n 162. Arquivo Histrico do Exrcito.
58 Flvio Gomes j indicava em seu trabalho que a Baixada Fluminense havia se tornado uma possibilidade de permanncia no apenas para os fugitivos locais, mas tambm para os do interior da Provncia. Nos registros de 1926, aparece um dado representativo: dos 469 escravos fugitivos do interior da Provncia, 121 foram aprisionados nas cinco freguesias de Iguau. Isso sem mencionar aqueles que nunca foram aprisionados, j que as prises foram realizadas individualmente ou em pequenos grupos. No aparecem nos relatos policiais notcias de apreenso de um quilombo inteiro. Na fuga de 1838, em Paty de Alferes, na Vila de Vassouras, h registros da escolha feita por um dos grupos de fugitivos. Cerca de mais de trezentos escravos fugiram da fazenda Freguesia e da Maravilha e se dividiram em dois grupos. O grupo liderado por Manoel Congo era o maior. Os escravos desse grupo foram capturados ou retornaram, frente impossibilidade de sobreviver sem alimentos na Serra da Taquara e da promessa de anistia. O segundo grupo teria seguido em direo ao Quilombo do Pilar. 113
Lbano Soares iniciou sua obra acerca das Casas de Zung, 114 relatando a relao de proximidade entre escravos urbanos da cidade carioca com escravos e quilombos do Recncavo, especificamente de Mag. Ele nos apresentou Catarina Cassange, freqentadora de uma Casa de Zung no Rio de Janeiro, e que, por intermdio do negro Aleixo, seguiu para o Quilombo de Laranjeiras, no Distrito de Guapimirim. 115 O Recncavo aparece articulado com a cidade carioca, onde libertos e escravos residiam nos cortios e nos quilombos que circundavam a cidade. 116
A expedio organizada em 1825 tambm exemplar nesse sentido. Apesar de todo o investimento e da ajuda recebida, as tropas no conseguiram encontrar os quilombolas. Eles haviam partido algum tempo antes, em direo a Maria do Carmo, esquerda do Iguau, acima. As tropas queimaram o mocambo e receberam ordem de abandonar o local. Somente os escolares que vigiavam a Barra do Sarapu encontraram duas canoas. Em uma delas, estavam quatro negros, dois foram mortos durante uma tentativa
113 GOMES, 1992. 114 Casa de quitanda, de angu, de festas. Casa de sociabilidade de negros, onde estes realizavam seus cultos religiosos, festejavam, danavam e se alimentavam. 115 SOARES, C. E. Lbano. Zung: rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro: Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro, 1998, pp. 15-17. 116 Ver SOUZA, Jorge Prata de (org.). Escravido: ofcios e liberdade. Rio de Janeiro: Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro/APERJ, 1998.
59 de fuga e dois foram aprisionados. Na outra, havia dois negros que, aps o tiroteio, lanaram-se ao mar. Todavia, esses negros no eram quilombolas de Iguau. Alguns deles pertenciam ao senhor Sebastio Machado, da Ilha de Paquet, e outros provinham das imediaes de Macacu. A geografia, a circulao escrava e a proximidade com a corte constituram-se ingredientes fundamentais para a organizao e a sobrevivncia quilombola na regio. Essa presena do escravo que transitava na regio pode ser sentida tambm nos assentos de batismo dos escravos da Igreja de N. Senhora do Pilar. Encontramos com freqncia a presena de padrinhos que no so da mesma fazenda da me do batizado ou que pertencem a proprietrios diferentes, assim como o registro de padrinhos forros.
Aos vinte e cinco dias do ms de fevereiro de mil setecentos e noventa e oito anos, nesta freguesia de Nossa Senhora do Pilar de Aguass, batizei e pus os santos leos a Antnia inocente, filha natural de Rosa de Angola e escrava de Jos de Souza Coelho, foram padrinhos Joo Benguela e sua mulher Anglica, tambm Benguela, e escravos de Manuel. 117
A mo-de-obra escrava estava integrada a tarefas de conduo de mercadoria, pessoas, abertura de estradas e manuteno das vias de circulao, o que lhe garantia uma vasta rede de sociabilidade, o conhecimento da geografia do lugar, as possibilidades de fuga, de acoite e de comercializao das mercadorias produzidas por eles e das adquiridas por meio da cobrana de tributao e roubo. As condies de sobrevivncia tambm poderiam ser mantidas pela possibilidade da pesca, da cata ao caranguejo, da produo de carvo, do comrcio com negociantes da cidade carioca e da possibilidade de acoite temporrio nas serras de Mantiquira, de Petrpolis, dos rgos e a de Estrela. Afinal, no seria difcil compreender os fatores que contriburam para transformar esse espao em palco de tenso permanente, expressa pela presena dos mais importantes quilombos da regio, o de Iguau e o de Pilar. Alm dos quilombos localizados nas margens dos rios, temos registros da existncia de quilombos nas reas de serra e floresta: no Macio do Tingu, na Freguesia de Santana de Palmeira e na Pedra da Contenda. O Quilombo da Serra dos Caboclos, o Quilombo dos Gallinhas e o Quilombo do Kwanza so mencionados em relatrios policiais e no Novo Dicionrio de Geografia do Brazil.
117 Livro de Batismo de Escravos de 1782-1793. Igreja Nossa Senhora do Pillar do Aguass. O livro pode ser encontrado no Arquivo do Bispado de Petrpolis.
60 A Estrada da Polcia 118 foi construda no mesmo perodo da Estrada do Comrcio, com o objetivo de integrar o porto iguauano ao Vale do Paraba e, principalmente, desmantelar as rotas de fuga e o Quilombo dos Caboclos, que tanto incmodo provocava aos senhores de escravo. A estrada favoreceu a perseguio aos quilombolas, dificultou a permanncia de mocambos naquelas proximidades e ainda serviu para escoar o caf do Vale Fluminense. Como visto, a ameaa ordem era sempre tratada como caso de polcia. O controle social era mantido pela coero exercida pelas milcias e por capites-do-mato, sustentados pelo poder pblico imperial. O cdigo criminal foi constitudo para dificultar os contatos e a aglutinao de negros. Impunham-se restries aos horrios de funcionamento das tabernas, a proibio de ajuntamento de escravos, sob pena de multa e de cadeia para o taberneiro e de aoite para o escravo, a proibio de realizao de qualquer tipo de negcio com escravos e as perseguies aos que vendessem armas aos rebeldes. No Cdigo de Postura da Vila de Estrela, podemos ver com clareza a preocupao em manter o controle da escravaria como explicitado nos artigos 11, 69 e 70: Art.11- O boticrio ou vendedor de drogas, que vender substncias venenosas a pessoas desconhecidas, ou suspeitas, ou a escravos ser multado em 30$000 ris. [...] Art. 69- Fica proibido o toque do tambor nas danas e candombls dos pretos, sob a pena de 10$000 ris de multa imposta ao dono, administrador ou feitor de qualquer fazenda. [...] Art. 70- As pessoas residentes neste municpio [...] podero os juzes de Paz conceder o uso de pistolas, espadas e espingardas de caa provando com dois fiadores, que tenham as qualidades exigidas no artigo 107 do Cdigo do Processo Criminal [...] Na disposio deste artigo no se compreendem os fazendeiros, administradores ou seus famulos que tais armas usam somente dentro os limites de suas fazendas e situaes. 119
No artigo 70, est cristalizada a preocupao com o porte de armas, sendo este prerrogativa dos proprietrios de terras e de seus feitores, ou ainda dos que apresentarem carta de um fiador. Apesar de toda a preocupao, a presena dos quilombolas s se findou com a abolio da escravido. Em 1870, os beneditinos aboliram a escravido na fazenda de So Bento. As campanhas e os apelos abolicionistas da poca, o fim do trfico externo, as fugas e, principalmente, a obrigatoriedade de enviar voluntrios para a Guerra do Paraguai
118 Construda no mesmo perodo da construo da Estrada do Comrcio, comeava na Pavuna, estendendo-se a 120km at o Rio Preto, atravessava a Vila de Iguau em direo a Vassouras e Valena. Ver PINTO, Alfredo Moreira. Novo Dicionrio Geogrfico do Brazil. Rio de Janeiro: IHGB, 1899. 119 Uma cpia do Cdigo de Postura de Estrela pode ser encontrada no acervo do CEMPEDOCH/BF.
61 fizeram com que os beneditinos no conseguissem manter a produo da fazenda por falta de mo-de-obra. Por outro lado, as pssimas condies ambientais provocadas pelo abandono e pelo assoreamento dos rios, pelos aterros e desmatamentos transformaram as reas porturias da Baixada em reas de risco. A circulao de pessoas contaminadas, alm da ausncia de investimento em saneamento, eram fatores agravantes para as localidades mais prximas da Baa da Guanabara. As condies ambientais, as condies de trabalho e os maus-tratos convertiam os escravos nas principais vtimas das epidemias de clera e malria. Na dcada de 70, a reduo da populao escrava de Iguau chegou a quase 30%. Em 1840, a populao escrava totalizava 62% dos habitantes da regio e, em 1872, representava apenas 32,5%. 120 Apesar da diminuio, a presena escrava no perodo ainda era representativa para a conjuntura fluminense. As notcias de quilombolas na regio ainda se fizeram presentes na dcada de 70.
Informam-nos de que no Quilombo do Bomba, estabelecido em terras da freguesia de Jacutinga, entre os rios Sarapu e Iguau, em dias de semana passada teve lugar um horrendo sacrifcio para castigo de sdito rebelde. O preto de nome Mateus, conhecido no quilombo por Antnio Maca, foi morto por ordem do chefe e depois feito em pequenos pedaos. Um outro parceiro deste infeliz, que tambm havia se revoltado e que foi condenado ao mesmo gnero de morte, conseguiu fugir do acampamento. Sendo porm perseguido atirou-se ao rio Sarapu onde pereceu afogado. Acrescenta o nosso informante que, depois destas cenas, alguns moradores do quilombo, em nmero de quarenta e tantos, embarcaram em oito canoas e transportaram-se para outro acampamento margem do rio Iguapi. Os moradores daquelas imediaes pedem-nos para somente noticiar isto, porquanto j perderam todas as esperanas de que a nossa polcia intente qualquer diligncias. 121
Ao analisar a reportagem, Flvio Gomes aponta algumas possibilidades de interpretao: 1) os dois escravos condenados possuam os nomes dos escravos que guiaram e acompanharam expedies anteriores de destruio ao quilombo do Bomba; logo, a execuo poderia ser um ritual de punio dos quilombolas, rituais parecidos foram narrados entre os maroons saramakas no Suriname e entre os povos Cabindas na frica; 2) o mesmo noticirio denominava o quilombo do Bomba como uma Nova Cabinda. Os Cabindas, na frica, viviam ao Norte de Angola, bem prximo bacia do Rio Zaire, com vasta experincia de sobrevivncia nas margens dos rios, sendo exmios
120 GOMES, 1992, p. 57. 121 Monitor Campista, 24 de maro de 1880. Apud: GOMES, Flvio dos Santos. Histrias de quilombolas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 139.
62 construtores de embarcaes, hbeis navegadores e pescadores. As experincias vividas na frica certamente foram fundamentais para a sobrevivncia em Iguau; muitos elementos culturais afros foram recriados em nosso pas; 3) o nmero de visitantes, quarenta e tantos, somados com os que residiam no quilombo, expressam um quantitativo significativo de quilombolas para o perodo; e 4) a imprensa que noticiou o ritual era extremamente influenciada pelo racismo cientfico e, com freqncia, referia- se aos quilombolas da regio como feras; logo, seria impossvel afirmar que o ritual aconteceu como narrado. 122
Curiosamente, a histria dos quilombos iguauanos no pode ser contada como a histria dos derrotados, mas sim como a histria de uma experincia escrava que garantiu a muitos a possibilidade de viver fora do cativeiro. Os esforos locais e a ao repressora do imprio no conseguiram impedir as tenses, as fugas e a permanncia quilombola na regio. A manuteno da estrutura escravocrata e da propriedade da terra s foi assegurada mediante uma constante interveno do poder central. Logo, podemos considerar que as fraes da classe dominante que atuavam no local possuam uma relao de reciprocidade e de dependncia da mediao ou da interveno da sociedade poltica presente no Estado imperial. Essa dependncia afirmava ainda mais a subordinao local aos interesses do centro.
I.5 Novos deslocamentos e a crise do escravismo em Iguau e Estrela
A expanso da economia cafeeira no Vale do Paraba atraiu investimentos na modernizao dos transportes para facilitar a circulao do porto com o planalto. Em 1854, um empreendimento privado de grande porte foi inaugurado pelo Baro de Mau em Guia de Pocababa. A Estrada de Ferro Baro de Mau reduziu o tempo gasto de viagem, facilitou o acesso a Petrpolis, diminuiu o nmero de mo-de-obra escrava que era reservada para a realizao do transporte do caf e reduziu os riscos na circulao das mercadorias. Em 1860, Mau associou-se Companhia Unio Indstria, completando o percurso da estrada at Minas, retirando do Porto de Estrela sua funo de principal rea de entreposto. A partir da, o eixo de circulao econmica ficou
122 Para mais informaes, ver GOMES, Flvio dos Santos. Histrias de quilombolas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, pp. 43-178.
63 centrado no Porto de Guia de Pocababa e na estao do Baro de Mau, com um aumento de 19.175 passageiros, em 1854, para 42.901, em 1869. 123
Os investimentos e os lucros do Baro de Mau foram atingidos durante a dcada de 60, quando uma nova ferrovia cortou a Baixada Fluminense. J no era mais necessrio atravessar a baa, tomar o trem e ainda percorrer a Estrada Unio e Indstria para se chegar a Trs Rios. Bastava utilizar a Estrada de Ferro Pedro II, 124 saindo da cidade do Rio de Janeiro, para atravessar a Baixada e se chegar ao mesmo destino (ver Anexo 8). Esse novo deslocamento gerou um quadro de crise para Estrela e de decadncia da ferrovia do Baro. Outra rea atingida pela construo da Estrada Pedro II foi Cava, a sede da Vila de Iguau. A estao de Maxambomba tornou-se o novo centro de trocas. Como nova sede da vila, deixou Cava no esquecimento. Os rios que funcionavam como antigas vias de circulao foram abandonados, sem conservao, agravando os problemas ambientais do lugar. Nesse momento, os eixos de ocupao privilegiados deixam de ser as margens dos rios e passam a ser as proximidades das estaes ferrovirias e das rodovias. Some-se a isto o fim do modelo escravista. As incertezas causadas pelos deslocamentos, pelas transformaes das relaes de trabalho e da economia tradicional foram utilizadas para anunciar a crise. Esse discurso de crise e da busca do passado brilhante dos bares foi muito utilizado no final do XIX e no incio do XX, a fim de justificar as solicitaes de investimentos pblicos na agricultura fluminense e no saneamento bsico, com vista a conter o impaludismo e revalorizar a propriedade rural. possvel perceber que, apesar do discurso da crise, os proprietrios de terras resistiam possibilidade do fim da economia agrria. Atravs do arrendamento, das meias, da criao de gado, da utilizao do trabalho livre, conservaram-se como produtores de alimentos e criadores de animais. A propriedade da terra garantia o acesso a emprstimos bancrios e a uma extensa clientela agregada e subordinada, ampliando, dessa forma, o poder poltico dessa classe dominante local. No Oeste da Vila Iguau, os proprietrios investiram na diversificao agrcola com a produo da fruticultura. A partir de 1883, as laranjas iguauanas comearam a ser vendidas no Rio de Janeiro e em So Paulo. Quando Nilo Peanha beneficiou a
123 FRES, Vnia. Municpio de Estrela 1846-1892. Rio de Janeiro, 1974, p. 31. Dissertao de Mestrado em Histria pela UFF. 124 O primeiro trecho da Estrada de Ferro Pedro II foi inaugurado em 1858.
64 laranja fluminense em 1910, ampliaram-se a comercializao e a exportao, logo, a expanso da produo de laranjas compunha o novo cenrio iguauano. Uma outra forma de capitalizao para esses proprietrios era a venda das terras, inaugurando o que Silveira nomeou de Projeto Imobilirio, isto , o retalhamento e a venda de lotes menores sem trabalho incorporado. As propriedades de pequeno e mdio porte integraram-se a esse projeto.
O processo de empobrecimento da regio beneficiou os grandes senhores de terra, que viram a oferta desses bens imveis crescer. Somente aps a Repblica que os proprietrios das grandes unidades agrcolas passaram a dispor de suas terras, como forma de obteno de capitais. 125
Apesar da sobrevivncia das propriedades, na parte leste de Iguau (atual municpio de Duque de Caxias) e em Estrela os impactos provocados pelos deslocamentos foram visveis. A instalao da Estrada de Ferro Leopoldina, em 1886 (ver Anexo 9), cortando o territrio da atual Duque de Caxias, integrando-o ao aglomerado urbano do Rio de Janeiro, no evitou o despovoamento que ocorria no local. Em Estrela, a perda da importncia econmica provocou o desmantelamento do porto que existia e a desvalorizao da Variante de Inhomrim. Em 1891, uma reforma administrativa levou Estrela a perder sua condio de vila, e seu territrio foi anexado aos municpios de Mag e de Iguau. Parte da freguesia de Anhummirim e a freguesia de S. Nicolau do Suru ficaram para o municpio de Mag. Parte da Freguesia de Anhum-mirim e parte da Freguesia do Pilar ficaram com Iguau. Com essa reforma, as vilas receberam a denominao de municpios e as freguesias, de distritos. Assim, o territrio do municpio de Iguau foi ampliado e passou a ser composto pelos Distritos de Santo Antnio de Jacutinga, Marapicu (Queimados), Piedade de Iguau, Meriti (atual estao de Duque de Caxias), SantAna de Palmeiras (Tingu) e Pilar. Xerm e a parte de Estrela que coube a Iguau passaram a fazer parte do Distrito do Pilar. Paralelamente, as lojas e os espaos da cidade do Rio de Janeiro eram cada vez mais valorizados no mercado. reas at ento ocupadas por trabalhadores pobres, negros e mestios experimentaram um processo de gentrificao. 126 Em fins do sculo XIX e no incio do XX, os cortios e as vilas sofreram perseguies e desmonte por
125 SILVEIRA, 1998, p. 146. 126 Valorizao de reas anteriormente desvalorizadas e ocupadas por populaes pobres. A valorizao expulsa os setores populares para novas reas perifricas.
65 parte das comisses de higiene e sade pblica, da polcia, dos especuladores e do governo municipal. Proibiam-se novas construes de moradias coletivas e populares, expulsando as camadas mais empobrecidas do centro. 127
A ao nomeada civilizadora de Pereira Passos no incio do sculo XX expulsou os trabalhadores pobres alojados nos cortios para os morros e para a periferia da metrpole carioca. A reforma urbana, posta em prtica em 1904, afirmava a lgica do projeto como inquestionvel e inevitvel, como se fosse algo natural. No foi levada em considerao a incluso dos trabalhadores na nova Paris projetada, ou seja, no foi includa na pauta do poder pblico uma reurbanizao que levasse em conta a construo de habitaes populares em substituio s anteriores (cortios e barracos). O crescimento da cidade do Rio de Janeiro e a especulao imobiliria em suas mediaes transformaram a periferia na alternativa possvel para os trabalhadores pobres que chegavam diariamente capital da Repblica. A partir da segunda dcada do sculo XX, o territrio caxiense sofrer um processo de urbanizao, transformando-se em periferia da periferia da capital do pas, como veremos no prximo captulo. Durante todo o processo histrico da regio, podemos observar a estrutura econmica implantada e os deslocamentos realizados em suas fronteiras. Enquanto nos sculos XVI e XVII a economia se centrava na produo aucareira situada na parte leste da sesmaria (Freguesias de Pilar, Santo Antnio de Jacutinga e Meriti, onde hoje se localiza o municpio de Duque de Caxias, na poca, as reas mais prximas do Porto do Rio de Janeiro), no sculo XVIII a principal sub-regio ficava a Noroeste (Freguesia de Estrela), na rea de escoamento do ouro oriundo de Minas Gerais. Tambm nesse perodo, o Porto do Pilar teve um papel relevante como escoadouro do ouro trazido pela Serra de Mantiquira. Durante o sculo XIX, Estrela e Cava tornaram-se reas centrais de escoamento do caf mineiro e de investimento do capital privado alocado na abertura de estradas e na construo da ferrovia Baro de Mau, principais vias de circulao de mercadorias do eixo Minas-Rio. Por volta da dcada de 60, pode-se perceber um novo deslocamento, em face da inaugurao da Estrada de Ferro Pedro II, levando Estrela e Cava a uma desvalorizao de suas antigas funes. O Vale do Paraba, durante a metade do sculo XIX, j havia se tornado a principal rea cafeeira de todo o Imprio. As reas mais prximas ao Vale tornaram-se entrepostos comerciais.
127 CHALHOUB, Sidney. Cidade febril. Cortios e epidemias na corte imperial. So Paulo: Cia. das Letras, 1996.
66 A transformao da cidade do Rio de Janeiro em sede do Governo-Geral e, posteriormente, do Governo Imperial e Republicano, tornou ainda mais imbricada a economia local com a regional e central. Nos sculos XVI, XVII e meados do XVIII, a cidade do Rio de Janeiro precisava do Recncavo para obter alimentos, combustvel e tijolos. Na segunda metade do XVIII, dependia dela para armazenar e transbordar a produo mineira. Passando para o sculo XIX, o Recncavo passaria a armazenar e escoar a produo cafeeira do Vale do Paraba. Posteriormente, durante a primeira metade do XX, para abrigar os trabalhadores pobres. O primeiro captulo aqui apresentado representou um esforo de sintetizar o processo de ocupao colonizadora, no qual a Igreja teve um papel significativo de enquadramento da regio ao projeto de colonizao portuguesa. Esse processo foi permeado pelas tenses existentes nas relaes entre os interesses da Coroa portuguesa, da Igreja Catlica e dos proprietrios de terra e de escravos. Tenses provocadas tambm pelos conflitos operados no interior do modelo escravista. A partir do sculo XVIII, possvel identificar um processo de subalternizao maior dos grupos de poder local s deliberaes determinadas pelo poder central, que ora beneficiava um conjunto de proprietrios com suas medidas econmicas, ora desconsiderava os interesses de outros que sofriam com os deslocamentos impostos.
67
CAPTULO II ENTRE O RURAL E O URBANO-INDUSTRIAL: A PRODUO DE UMA REGIO MODERNA E AS DISPUTAS POLTICAS LOCAIS
O Captulo II est centrado nos processos de ocupao urbana e de enquadramento da regio ao modelo de desenvolvimento industrial durante a primeira metade do sculo XX. No processo de transio do rural para o urbano, dois aspectos so importantes. O primeiro est relacionado ao mapeamento dos grupos de poder local, que nos permite discordar da historiografia local. recorrente a afirmao dessa produo local de que o perodo de transio entre o sculo XIX e o incio do XX um perodo vazio de poder, pura expresso da decadncia. O que temos um processo de continuidade de antigos proprietrios incorporando forasteiros que expressaram, em suas trajetrias no local, capacidade de acumulao de propriedade e de integrao ao bloco de poder dos comerciantes locais. O caso de Tenrio exemplar para pensarmos a composio do poder local e as transformaes experimentadas nessa periferia. O segundo aspecto se refere s mudanas operadas no local, principalmente ps anos 20, com os investimentos pblicos que beneficiaram os interesses privados. Ps- 30, Caxias tornou-se ainda um lugar impactado pelos projetos modernizantes do Governo Vargas, remodelando rapidamente o desenho da regio. Os projetos aqui mencionados so: 1) o investimento em saneamento bsico e na diversificao agrcola como estratgias de revalorizao fundiria e recuperao da produo agrria; 2) a implementao do Ncleo Colonial So Bento como poltica de colonizao nas terras pblicas; 3) a instalao da Cidade dos Meninos como prtica de assistncia e de formao do trabalhador nacional; e 4) a construo da cidade do motor para o fabrico de avies e, principalmente, como espao de formao do trabalhador nacional a servio da industrializao. Embora os trs primeiros projetos estivessem relacionados a polticas agrrias, no caso especfico de Caxias, eles favoreceram a ocupao urbana da localidade. De um lado, por conta da vinda de um conjunto de trabalhadores pblicos para a regio, seja para o trabalho na Cidade dos Meninos, seja para a incorporao a estrutura do Ncleo colonial. Do outro, porque os investimentos feitos revalorizaram a terra e atraram
68 empresas loteadoras para o seu entorno. Por meio dos projetos implementados, o getulismo e o amaralismo alargaram sua rea de influncia, fizeram-se presentes nas disputas e no domnio do poder poltico local. Para melhor compreendermos as transformaes produzidas em Caxias, consideramos relevante a apresentao do quadro das reformas administrativas que ocorreram em Iguau durante a primeira metade do sculo XX. Em 1916, atravs da Lei n 1.331, o nome da sede do municpio perde a denominao de Maxambomba para Nova Iguau, e a Lei n 1.932 criou o Distrito de So Matheus (estao de Engenheiro Neiva), que passou a se chamar Nilpolis, em 1921. Em 1931, foi criado o Distrito de Estrela e o de Duque de Caxias, tendo o segundo como sede a Estao de Meriti. At a dcada de 1940, o municpio de Nova Iguau estava dividido administrativamente em nove distritos: Nova Iguau (centro de Nova Iguau, Mesquita, Morro Agudo, Andrade Arajo, Prata, Ambahi, Santa Rita, Ahiva, Amaral, Carlos Sampaio, parte de Belford Roxo, Helipolis e Itaipu); Queimados (Queimados e Austin); Jos Bulhes (Jos Bulhes, Retiro, So Bernardino, Iguau Velho, Barreira, Tingu, Paineiras, Rio DOuro, Santo Antnio e So Pedro); So Joo de Meriti (So Joo de Meriti, parte de Belford Roxo, So Matheus, Thomazinho, Itinga, Rocha Sobrinho, Vila Rosaly, Coqueiros e Coelho da Rocha; Bonfim (Bonfim e Santa Branca); Xerm (Xerm, Pilar, Actura e Rosrio); Nilpolis (Nilpolis); Caxias (Centro de Caxias e Sarapu); e Estrela (Imbari, Santa Lcia, Parada Anglica e Estao de Estrela). A partir de 1943, iniciou-se o processo de fragmentao de Nova Iguau, com o surgimento de novos municpios: Duque de Caxias (1943), So Joo de Meriti e Nilpolis (1947), Queimados e Belford Roxo (1990), Japeri (1991) e Mesquita (1999). As peas do tabuleiro econmico e poltico de Nova Iguau tambm se movimentavam de variadas formas nessa primeira metade do sculo XX. No Oeste, a fruticultura reanimou a produo agrcola, principalmente aps o beneficiamento da laranja, durante o governo de Nilo Peanha.
[...] os laranjais substituram os cafezais e canaviais, os laranjeiros substituram os bares e oficiais da Guarda Nacional, os bangals e barraces de beneficiamento de frutos substituram as casas das fazendas e senzalas. A sociedade abandonara os sales luz de vela e gs para freqentar os clubes recreativos iluminados a luz eltrica, com seus bailes de orquestras. 128
128 PEREIRA, 1977, pp. VIII-IX.
69
Nas dcadas de 1920 e 1930, Nova Iguau tornou-se a maior produtora de laranjas do pas, exportando para So Paulo, Argentina e Europa. Alm das chcaras, foi instalado em Iguau um Parking House do Ministrio da Agricultura, isto , uma casa da laranja que orientava e preparava a fruta para a exportao. Especuladores estruturaram casas de embalagem do fruto para a exportao, onde beneficiavam a laranja utilizando mquinas para facilitar a seleo e a embalagem do produto. O italiano Francisco Baroni, conhecido nos anos 30 como o rei da laranja, era um dos mais importantes especuladores locais, tendo construdo trs casas de embalagem da fruta para a exportao, sendo duas em Nova Iguau e uma em Campo Grande. Na Praa Mau havia ainda os escritrios que efetivavam as negociaes no porto carioca. 129
A estrutura estabelecida com a fruticultura produziu uma nova hierarquia social nas terras iguauanas: o grande proprietrio produtor e arrendatrio; o chacareiro, isto , o proprietrio da chcara ou arrendatrio, que organizava o processo de produo da laranja em propriedades menores; o lavrador assalariado e permanente, que atuava diretamente na produo em troca de moradia, subsistncia e uma pequena remunerao; o lavrador temporrio, que era contratado nos perodos de colheita e de beneficiamento da laranja; o meeiro; e os especuladores que compravam a laranja, preparavam o produto para a exportao e negociavam com o mercado externo. 130
Evidentemente, eram os especuladores que mais lucravam com o negcio da laranja. Os Cocozza, Rinaldi, Duccine, Di Gregrio, Oliveira, Vaz Martins e Vaz Teixeira eram imigrantes europeus que passaram a controlar esse mercado de laranjas emergente. Memorialistas e polticos tradicionais rememoram ainda hoje os tempos dourados da laranja. O tempo em que Nova Iguau era conhecida como a Califrnia do Brasil ou a Cidade Perfume. 131 Apesar da euforia da primeira metade da dcada de 1920, os especuladores e chacareiros sofreram com as flutuaes externas provocadas pela crise europia e pela Segunda Guerra Mundial, o que inviabilizava a exportao pelo Atlntico, restringindo a exportao para a Argentina. A baixa cotao do produto no mercado argentino e a ausncia de um mercado interno consumidor de laranjas levaram o negcio a uma crise que atingiu seu auge a partir de 1945, quando o mercado
129 CARVALHO, Iracema Baroni. Laranjas brasileiras. Nova Iguau: SMCEL, 1999. 130 SOUZA, Sonali Maria de. Da laranja ao lote. Transformaes sociais em Nova Iguau. Rio de Janeiro: PPGAS/UFRJ, 1992. 131 CARVALHO, 1999, p. 17.
70 europeu inicia a recuperao ps-guerra. Conseqentemente, boa parte do laranjal apodrecia, gerando condies favorveis ao surgimento das pragas, o que desmantelou definitivamente a citricultura na regio. Durante a dcada de 1950, tornou-se mais lucrativo o retalhamento das propriedades agrrias do que a aplicao de recursos para revigorar a citricultura. A incorporao da regio ao aglomerado urbano do Grande Rio transformou rapidamente a paisagem da Califrnia brasileira em bairros de loteamentos para trabalhadores pobres, onde a autoconstruo das moradias e a ausncia de infra-estrutura urbana passaram a predominar. 132
Nos limites do atual municpio de Duque de Caxias, a produo de laranja no dominou vasto territrio, apesar de ter tido alguns proprietrios com uma produo de laranja significativa. As condies do ambiente degradado e das doenas provocaram uma brusca reduo da populao no incio dos novecentos. Somente a partir dos investimentos em saneamento nas trs primeiras dcadas do sculo XX que a regio passou a sofrer um processo de fragmentao do territrio agrrio, incorporando-se rapidamente ao aglomerado urbano da cidade carioca. Alm do saneamento, a abertura da Estrada Rio-Petrpolis, os investimentos realizados pelo Governo Vargas na regio e a proximidade da cidade do Rio de Janeiro, facilitada pela Estrada de Ferro da Leopoldina, favoreceram um processo acelerado da ocupao urbana em Caxias a partir dos anos 30.
II.1 A expanso urbana em Caxias e o poder poltico local nas primeiras dcadas do sculo XX
Os proprietrios de terras, os comerciantes e os especuladores imobilirios consideravam essencial a presena de investimentos pblicos para assegurar a recuperao da produo agrcola e a revalorizao das terras fluminenses. A exigncia do saneamento para dar continuidade ao processo de ocupao humana e sobrevivncia rural esteve presente na fala dessas fraes da classe dominante. Os primeiros ensaios de saneamento na Baixada iniciaram-se ainda em 1844, coordenados pela Comisso de Estudos e Saneamento da Baixada. Posteriormente, vrias comisses foram constitudas, entretanto os resultados eram parciais e
132 Para analisar o processo de urbanizao das reas que compunham os laranjais, ver a obra de Sonali Souza.
71 ineficientes. 133 Os parcos recursos investidos e a lgica ambiental adotada no foram suficientes para resolver o impaludismo e o encharcamento da regio. Somente em 1911, durante o governo de Nilo Peanha, os investimentos em saneamento beneficiaram os arredores da estao de Meriti (atualmente chamada de Duque de Caxias). Ao assumir a Presidncia da Repblica, aps a morte de Afonso Pena, Nilo Peanha procurou manter e ampliar sua base poltica na regio fluminense. Almejava obter flego e construir um eixo alternativo de poder, rompendo com o domnio paulista e mineiro, e ainda estabelecer uma margem de negociao durante a disputa pela sucesso presidencial. A arte de distribuir benefcios e cargos pblicos em troca de fidelidade eleitoral tornou-se uma prtica poltica recorrente durante a chamada Primeira Repblica. Na distribuio de favores, a clientela da Baixada foi considerada. Assim, com base no discurso da decadncia fluminense e da busca da recuperao da idade do ouro, ou seja, do passado brilhante dos bares, casares e fazendas, os polticos iguauanos obtiveram de Nilo um projeto de recuperao da economia agrria fluminense, por meio do beneficiamento da laranja, 134 de uma poltica de diversificao da produo e de investimentos em saneamento para as reas mais carentes, como Meriti. 135
Meriti gozava de m fama no s pela febre palustre, como pelas arruaas constantes provocadas pelos maus elementos [...] Existia um carro de aves na estao servindo de cadeia e uma tina de gua salgada fora. Depois da clssica surra, eram os marginais banhados na tina [...] Pouco a pouco Meriti ia melhorando. Depois da gua que Nilo Peanha deu e de algum saneamento, Meriti j no era mais Meriti do pavor [...] O sentimento era de renovao. 136
Observe-se que, no relato mitolgico sobre o passado de Meriti, Nilo Peanha visto como o redentor e o renovador de uma regio marcada pelo atraso e pela ausncia de lei. Apesar disso, segundo o mesmo relato, o saneamento realizado apenas amenizou o impacto alarmante das condies ambientais, sendo qualificado como algum saneamento. A gua dada era simplesmente uma bica de gua instalada na atual Praa do Pacificador, ao lado da estao de Meriti. Contudo, as iniciativas foram
133 LAMEGO, Alberto Ribeiro. O homem e a Guanabara. Rio de Janeiro: IBGE, 1964, p. 227. 134 Com base no financiamento da laranja e nos investimentos em saneamento, as terras iguauanas a Oeste foram revalorizadas e parte da economia agrria da regio foi recuperada. J na rea do atual municpio de Duque de Caxias, a produo agrcola existente na poca permaneceu a mesma: cereais, banana, mandioca, cana, criao de gado, produo de carvo, de tijolos e cermicas nas olarias. 135 Ver FERREIRA, Marieta de Moraes. Em busca da Idade do Ouro: as elites polticas fluminenses na Primeira Repblica (1889-1930). Rio de Janeiro: UFRJ, 1994. 136 Jornal Tpico, 25/08/58, p. 8.
72 consideradas como sinal de superao do pavor, j que garantiram condies de permanncia no local. Em 1872, a populao local era de 10.542 habitantes e, em 1900, ficou reduzida a 800. 137 Em dez anos (1910-1920), houve uma retomada do crescimento populacional de 800 para 2.920 habitantes. 138
O crescimento aqui apontado no se d ainda com base na expanso urbana da cidade carioca, mas sim em decorrncia de um esforo de sobrevivncia de uma economia agrria decadente. A construo simultnea de uma linguagem recorrente da catstrofe que se abateu sobre a regio era feita paralelamente a um constante fluxo de recursos que beneficiou determinados setores sociais. Segundo Jos Lus Machado, 139 em 1918 surgiram os primeiros loteamentos, que foram feitos pelo engenheiro Abel Furquim Mendes. Ele dividiu a rea ao longo da via frrea e colocou os lotes venda por 50 mil ris cada. A iniciativa foi considerada um fracasso por Machado, j que Furquim no conseguiu de imediato vender os lotes. Poderamos citar alguns fatores que contriburam para esse fracasso. Um primeiro aspecto a considerar a constatao de que os investimentos na desobstruo dos rios para facilitar a passagem das guas deformaram os rios ondulados, transformando-os em valas retas e rasas, o que agravou as condies ambientais. 140 As reas encharcadas ainda eram um empecilho para a ocupao urbana e as doenas eram uma ameaa constante, principalmente nos perodos de muita chuva. Um outro aspecto era a perda de expresso da atividade rural na localidade e a desvalorizao das terras nos anos 20, favorecendo o abandono ou a manuteno da propriedade por meio do controle exercido pelos administradores ou ainda do arrendamento. As dificuldades do meeiro em investir na recuperao do solo e no plantio somavam-se insegurana de tal investimento, j que este no era o proprietrio. Era mais fcil assegurar a posse da propriedade utilizando-se do gado, que exigia um nmero menor de trabalhadores.
137 LUSTOSA, Jos. Cidade de Duque de Caxias: desenvolvimento histrico do municpio de Duque de Caxias: dados gerais. Rio de Janeiro: Grfica do IBGE, 1958. 138 BELOCH, Israel. Capa Preta e Lurdinha. Tenrio Cavalcanti e o povo da Baixada. Rio de Janeiro: Record, 1986, p. 22. 139 O Jornal Tpico, de 25 de agosto de 1958, apresentou Jos Lus Machado como o primeiro corretor de imveis de Caxias, animador de programas de alto-falantes, pintor de letras, publicitrio, orador oficial das solenidades pblicas e privadas, como a inaugurao da bica dgua por Nilo Peanha e da inaugurao da Estrada Rio-Petrpolis, com a presena de Washington Lus. Ele chegou a Caxias no incio do sculo XX. Residia inicialmente em Bonsucesso e seus familiares eram proprietrios de terras em Caxias, desde 1891. Seu pai, o Comendador Bento Antnio Machado, chegou a Caxias em 1900. Foi tambm Machadinho que mudou a denominao da placa da estao de Meriti para Duque de Caxias, escoltado por quatro homens que impediam qualquer reao sua iniciativa. Em 1931, o deputado Manoel Reis props a criao do Distrito de Duque de Caxias. 140 ABREU, 1992, p. 229.
73 O terceiro est relacionado com a ausncia de financiamentos de longo prazo na compra dos lotes, aos parcos recursos financeiros dos novos moradores e inexistncia de uma estrutura urbana como iluminao, ruas pavimentadas, gua tratada, escolas e assistncia mdica. Tudo isso dificultava o acesso e a permanncia no local. Alm disso, os trabalhadores e a populao que chegava do interior para a cidade do Rio de Janeiro estavam ocupando os arredores das estaes da Estrada de Ferro Leopoldina, ou seja, a periferia da cidade do Rio de Janeiro, e somente a partir dos anos 20 que Meriti torna-se a alternativa de expanso do aglomerado urbano carioca. Machado afirma ainda que, durante esse perodo, o domnio do poder poltico local estava centrado em quatro famlias tradicionais, proprietrias de terra.
Havia quatro famlias principais constitudas pelos donos de engenhos locais: Capito Lus Antnio dos Santos, proprietrio da Fazenda do Pau de Ferro (onde hoje o Tanque do Anil/ Parque Beira-Mar); Coronel Macieira, proprietrio da Fazenda do Engenho Velho (onde hoje o 25 de Agosto); Antnio Telles Bittencourt, proprietrio da Fazenda da Vassoura (onde hoje Vila Leopoldina/Gramacho), e a Fazenda Vassourinha (onde hoje Parque Lafaiete). Os dois chefes polticos mais importantes eram os Coronis Joo Telles Bittencourt e Jos Eliseu Alvarenga Freire. 141
Alm da propriedade da terra, algumas dessas famlias controlavam as atividades comerciais nos arredores da estao de Meriti e participavam do aparato burocrtico e administrativo da Cmara, em Nova Iguau, dominando-o. Situao exemplar era a do chefe poltico local mais importante, Joo Telles de Bittencourt. Sua famlia possua uma longa tradio na regio, sendo proprietria de terras em Estrela, Sarapu e nos arredores de Meriti, alm de ter uma longa trajetria de atuao nas Guardas Nacional e Municipal. Joo Telles era proprietrio do Engenho do Porto, produzia cermicas em suas olarias e era comerciante local. Foi delegado de polcia em Meriti, tornou-se prefeito do municpio de Nova Iguau no perodo de 1926 a 1930 e vereador caxiense em 1947. 142
A irm de Joo Telles casou-se com Isaas Lomba, um imigrante espanhol que trabalhava na olaria dos Telles. Manoel Isaas Lomba tornou-se um dos mais abastados comerciantes locais. Era na casa
141 Jornal Tpico, 25/08/58, p. 3. 142 LAZARONI, Dalva. Esboo histrico-geogrfico do municpio de Duque de Caxias. Rio de Janeiro: Arsgrfica, 1978, pp. 81-84.
74 da famlia Lomba que grandes autoridades hospedavam-se quando visitavam a regio, como aconteceu com Washington Lus na inaugurao da rodovia Rio-Petrpolis. 143
O poder poltico local era, dessa forma, controlado por uns poucos proprietrios e pelos mais importantes comerciantes locais. Eles possuam propriedades, atuavam no comrcio, nos aparelhos de controle, como as delegacias, e no aparato burocrtico da administrao local. O comrcio local era controlado tambm por imigrantes portugueses, espanhis, srios e rabes. Muitos desses imigrantes abandonaram a Europa durante a guerra de 1914. Seguiam o curso das estaes, compravam uma pequena rea e instalavam seu comrcio (secos e molhados, aougue, armarinho e botecos) ou simplesmente tornavam-se moradores do lugar. A proximidade de Meriti com o Distrito Federal favorecia tambm a especulao imobiliria. A desvalorizao crescente da propriedade rural na localidade, principalmente a partir da dcada de 1920, permitiu a compra de grandes fazendas por preos baixos. Nas mos de poucos indivduos ou empresas imobilirias, foram posteriormente retalhadas e vendidas. Alguns proprietrios contrataram empresas imobilirias para efetuar o retalhamento e as vendas.
O sistema mais comum o proprietrio da terra, quando no dispe de recursos, fazer sociedade com uma companhia loteadora que se encarrega dos trabalhos de engenharia e venda dos terrenos. A rea fragmentada no maior nmero de lotes possvel e os terrenos so vendidos a preos baixos por unidade, mas altssimos, se considerarmos o lucro extraordinrio que a sociedade obtm com a venda da rea toda. 144
A venda de lotes sem a menor infra-estrutura aos trabalhadores pobres reduzia a necessidade de investimentos, rendendo lucros atraentes. Guilherme Fuchs era filho de um casal alemo que veio para o Brasil a fim de fugir da crise que a Alemanha sofria, durante e aps a Primeira Grande Guerra. Em suas memrias, ele diz que, no incio do sculo XX, seus pais instalaram-se na Vila do Centenrio (bairro de Caxias) e l ele nasceu. Seu pai era marceneiro e, aps concluir a montagem da primeira escada caracol
143 FORTES, M. do Carmo Cavalcanti. Tenrio, o homem e o mito. Rio de Janeiro: Record, 1986. 144 SOARES, 1962, p. 233.
75 do Rio de Janeiro, economizou alguns mil-ris para adquirir trs lotes no primeiro loteamento da antiga Meriti. 145 Guilherme descreve a situao do Centenrio e de Meriti no incio da dcada de 1920:
Centenrio ficava a dois quilmetros da estao de Meriti. O caminho era tortuoso e cheio de lama, buracos e valas. Um foco de mosquitos terrvel que obrigava meus pais a utilizar verdadeiras estratgias para evitar malria e outras febres [...] O rancho era de pau a pique, no tinha portas nem janelas. A cobertura era de sap. O cho de terra socado, um fogo de lenha, moblia rudimentar [...] Uma das tarefas noturnas era eliminar bichos do p com uma agulha esterilizada no lampio [...] Minha me ia uma vez por semana feira da Penha ou da Praa da Bandeira, pois Meriti no tinha sequer leite para vender. 146
O relato acima reafirma a memria de uma regio semi-rural estreitamente vinculada e dependente dos centros urbanos, onde os moradores de Meriti e de seus arredores recorriam a outros centros comerciais do Rio de Janeiro para obter o mnimo necessrio sobrevivncia. Armanda lvaro Alberto, uma professora pioneira da Escola Nova, em 1921 instalou uma escola em Meriti, chamada Escola Proletria de Meriti. 147 Armanda afirmava em seus relatrios que as dificuldades encontradas por ela para manter o aluno na escola eram muitas. A presena do aluno constantemente era ameaada por epidemias e febres, pela necessidade de os filhos maiores cuidarem dos menores para que seus pais pudessem trabalhar e pelas pssimas condies de acesso escola, inviabilizado nos perodos de chuva. 148
O quadro crtico do lugar, apresentado nos relatos, no impediu o retalhamento e a venda dos lotes. O baixo preo dos terrenos e o transporte ferrovirio, ligando Meriti cidade do Rio Janeiro, atraram posteriormente para a regio inmeros trabalhadores pobres. Em 1920, novamente os apelos dos proprietrios, comerciantes e especuladores foram atendidos pelo Estado. Durante o governo de Epitcio Pessoa, um Decreto Federal estabeleceu um contrato com a
145 FUCHS, Guilherme. Depoimentos e reflexes de um teuto brasileiro: uma crnica. Rio de Janeiro: Edio do Autor, 1988. 146 FUCHS, 1988, pp. 13 e 14. 147 Armanda era moradora do Rio de Janeiro. Seu irmo possua uma fbrica nos arredores de Meriti. Durante as visitas ao local, decidiu instalar uma escola proletria. Com a ajuda do irmo, fundou a Escola Proletria, que, posteriormente, recebeu o nome de Escola Regional de Meriti. A escola tornou-se pioneira no Brasil, inaugurando, em sua perspectiva pedaggica, a Escola Nova e o mtodo montessoriano. Ver Jornal Tpico, 23/08/1958, p. 12. 148 LBERTO, Armanda lvaro. A escola de Meriti: documentrio de 1921-1964. Rio de Janeiro: MEC- INEP/ CBPE, 1968.
76 Empresa Melhoramentos da Baixada Fluminense, cabendo a ela a tarefa de realizar o saneamento. Em 1922, essa empresa desapropriou as terras da fazenda do Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro, da Congregao Beneditina do Brasil, a mais antiga e uma das mais extensas de toda a Baixada. Localizada prximo ferrovia que ligava o Sarapu a Iguau, portanto entre os principais rios da regio. Novamente possvel identificar investimentos de recursos pblicos beneficiando uma empresa de saneamento. O empreendimento garantiu as condies para que os antigos proprietrios de terras e os grupos especuladores intensificassem o retalhamento e a venda dos lotes. Novos loteamentos surgiram aps 1922, como afirma Machado:
O primeiro foi a Vila Centenrio, 149 propriedade de Dona Francisca Antnio Tom, no antigo stio da Jaqueira [...] O segundo foi a Vila Itamarati (Itatiaia), propriedade de Antnio Gonalves Ferreira Neto [...] E o terceiro, foi o loteamento do Parque Lafaiete. 150
Em 1929, havia 3.302 lotes aprovados no territrio do atual municpio de Duque de Caxias. Na dcada seguinte, o nmero de lotes aprovados quase triplicou, chegando a 9.169. 151 Logo, possvel identificar que at os anos 30 a regio ainda no havia sido incorporada como rea de transbordo da cidade carioca. Entretanto, a partir de fins dos anos 20 e nos anos 30, crescentemente tornou-se clula urbana incorporada. O acesso cidade do Rio de Janeiro, facilitado pelas estaes ferrovirias de Meriti, Gramacho, Actura (atual Campos Elseos) e Rosrio (atual Saracuruna), pela instalao da energia eltrica nos arredores de Meriti, em 1924, e pela construo da Estrada Rio-Petrpolis, em 1928, ampliou o fluxo de pessoas na localidade e provocou algumas alteraes. Entre as mais significativas, estavam a incorporao de trabalhadores nas obras de construo da Rio-Petrpolis e a reatualizao do perfil do lugar como rea de passagem e de pouso para os que seguiam em direo Serra de Petrpolis. Conseqentemente, as atividades comerciais aumentaram em Meriti, e novos investimentos foram feitos na construo de hotis nas margens da estrada.
149 Vrias famlias alems obtiveram lotes e se instalaram na Vila do Centenrio. 150 Jornal Tpico, 25/08/1958, p. 3. 151 FUNDREM, 1978.
77 Ainda foi possvel identificar a instalao de uma rede de prostituio integrada a alguns dos hotis da cidade e a chegada diria ao Distrito Federal de um nmero significativo de trabalhadores pobres, oriundos do interior do estado do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, do Esprito Santo e do Nordeste brasileiro, em busca de emprego e de uma vida melhor. Somem-se a isso as disputas pelas terras vazias que intensificaram a grilagem e a criao de novos loteamentos nos arredores da Rio-Petrpolis, reanimando a ocupao de reas decadentes como a do Pilar e o aumento do desmatamento, das reas de floresta, realizado por madeireiras e produtores de carvo. Conseqentemente, a populao de Caxias cresceu de forma significativa na dcada de 1920: de 2.920 habitantes para 28.756, em 1930. 152
A corrida para o Oeste da cidade do Rio de Janeiro em busca de emprego, moradia e terra para lavrar revelava-se penosa para os trabalhadores que tinham de enfrentar a violncia, a malria, os conflitos de terras entre grileiros e lavradores, o trabalho duro e os baixssimos salrios. Para os trabalhadores, o sonho dourado poderia transformar-se em um pesadelo. J para os proprietrios, os especuladores, as empresas imobilirias, os comerciantes e aqueles articulados sociedade poltica, Caxias representava o acesso a extensas propriedades e a possibilidade de lucro fcil. O que podemos identificar no processo aqui apontado que, at 1930, a regio era essencialmente rural, embora no contasse com grandes produtos de exportao ou grande procura. Alm disso, de forma tradicional, a regio territrio de passagem obrigatria, cortada por estradas cujo percurso se altera regularmente, deslocando as fortunas assentadas por um significativo comrcio ribeirinho. As fraes da classe dominante local parecem constituir-se de: grandes proprietrios fundirios, dos quais uma parte no reside no local, deixando as terras aos cuidados de administradores que, paulatinamente, adquirem poder local, tanto pela violncia quanto pela intermediao de favores, e, posteriormente, pela ocupao e pelo retalhamento de parte dessas terras; comerciantes locais residentes, interessados na regio e que, crescentemente, detm o controle do poder poltico local, em funo do absentesmo dos proprietrios originais; aventureiros e/ou apadrinhados menores dos poderes centrais, cujos ganhos derivam de especulao futura sobre o uso das terras. Isso implica um deslocamento da propriedade da terra para comerciantes ou ocupantes cedidos por proprietrios, reforando o movimento de especulao e uma crescente promiscuidade dos poderes
152 BELOCH, 1986, p. 22.
78 locais (baseados no uso da violncia e na subalternidade), e as aes de poder central, cuja finalidade de cunho nacional no responde a interesses diretos da Baixada, mas fornece meios para o enriquecimento lateral desses setores. Quanto ocupao de terras pelos setores populares, duas frentes simultneas so percebidas: a presena de uma pequena produo de subsistncia, com alguma venda para o mercado, e a constituio do lugar como residncia ou trabalho.
II.1.1. A trajetria de Tenrio Cavalcanti: situao exemplar
na conjuntura apresentada que Natalcio Tenrio Cavalcanti chega a Caxias. Sua trajetria est intimamente ligada Histria da regio. Um forasteiro apadrinhado que se tornou administrador de extensas propriedades, sendo beneficiado como segurana e encarregado da obra de construo da rodovia Rio-Petrpolis. Pelo uso da violncia e de suas funes, tornou-se proprietrio e comerciante, incorporando-se a uma das famlias tradicionais do lugar. Compreender sua trajetria implica conhecer o processo constitutivo da periferia estudada. O pai de Tenrio Cavalcanti era um pequeno proprietrio de terras e cabo eleitoral do empresrio e deputado federal nordestino Natalcio Camboim de Vasconcelos. Com a morte do pai, a famlia decidiu que Tenrio deveria vir para o Rio de Janeiro, a fim de fugir da vingana e da possibilidade de ser morto. O apadrinhamento lhe assegurou emprego e acesso a uma rede de relaes de favorecimento que o conduziram a Hildebrando de Gis 153 e Edgar de Pinho. Hildebrando era diretor do Departamento de Porto, Rios e Canais e, por intermdio dele, Tenrio tornou-se controlador de ponto nas obras da Estrada Rio-So Paulo. Edgar de Pinho era um engenheiro baiano com situao privilegiada no Rio. Era cunhado de Otvio Mangabeira, Ministro das Relaes Exteriores no governo de Washington Lus. No foi possvel encontrar registros quanto ao processo que transformou Edgar de Pinho em um dos mais importantes proprietrios de terras da regio. Evidentemente, o fato de residir no Rio de Janeiro
153 Hildebrando era baiano, formado em engenharia e filho de um funcionrio da Prefeitura do Rio de Janeiro, o engenheiro Coriolano Ges. Em 1927, ele era diretor do Departamento de Portos Rios e Canais. Hidelbrando era influente no Governo de Washington Lus, indicando Tenrio para as obras da Estrada Rio-So Paulo e Rio-Petrpolis. Durante o Governo de Vargas, dirigiu as obras de saneamento da Baixada Fluminense.
79 e de possuir relaes de parentescos com polticos importantes da esfera federal contribuiu para a sua trajetria. No muito difcil compreender o interesse de Edgar em obter terras nas proximidades da Estrada Rio-Petrpolis, que viria a ser construda. Por outro lado, no seria tambm difcil perceber o quanto ele foi beneficiado pelo fato de a nova estrada cortar sua propriedade. Edgar adquiriu duas fazendas em Caxias: a Santa Cruz (atual bairro Santa Cruz e Barro Branco) e a Santo Antnio (Xerm). Tenrio afirmava em seus relatos que:
Santa Cruz tornou-se a mais densa concentrao de operrios, cruzamento de homens que trabalhavam na construo da Rio-Petrpolis a servio da firma empreiteira Dolabela Portela & Cia. Atiava o crime na parte pertinente questo das terras, a enorme valorizao dos trechos que seriam rasgados pela rodovia, que despertava interesse e especulao no mercado de terrenos rurais. 154
Edgar de Pinho mantinha a posse das propriedades e a possibilidade do alargamento das fronteiras de suas propriedades por meio da ao de administradores. Alis, o prprio Tenrio mencionou o nome de outros importantes administradores que provocavam pavor pela imensa lista de crimes cometidos. Entre eles, citado o nome do negro Jos Francisco, que trabalhava para o Sr. Walter Smith, na fazenda do Km 37 da Rio-Petrpolis. Jos Francisco era freqentador dos candombls, carregava amuletos protetores que teriam o poder de desviar as balas disparadas contra ele. Possua prestgio com os homens da poltica dominante e possua fama de matador profissional. Tambm ele possua um bando de homens sob o seu comando. Um outro administrador muito temido era o da fazenda Capim Melado, de propriedade de Joaquim Pacheco Rocha. Seu nome era Joo de Souza, e tambm possua seu bando, sendo temido por sua prtica violenta. 155
Como se pode ver, Tenrio no era um caso parte, e sim mais um dos muitos que atuavam na defesa dos interesses dos que pagassem por seus servios. O alagoano tornou-se o administrador de Edgar
154 SILVA, 1954, p. 21. 155 SILVA, 1954, p. 23.
80 de Pinho, substituindo o antigo, que fora assassinado nas disputas de terra e conflitos com posseiros. 156
Segundo sua filha, Maria do Carmo Cavalcanti Fortes,
Natalcio teria amplas possibilidades de enriquecimento. Naquela rea iniciavam-se a produo de carvo de lenha e a especulao imobiliria [...] Estava em suas mos e em sua cabea superar os problemas e explorar as vantagens. Mais tarde, quem sabe? At poderia adquirir parte dessas terras [...] A empreitada era perigosa, mas as perspectivas de lucro, tentadoras [...] Deixar de ser empregado para ser patro. 157
Tenrio receberia um bom ordenado, uma participao nos lucros da lavoura e na extrao de lenha, um revlver e o direito de residir com sua esposa e me na casa grande da fazenda Santo Antnio. Teria como funo, alm da administrao e da segurana da fazenda, o acompanhamento das obras da Estrada Rio-Petrpolis, a seleo e a direo dos operrios que trabalhavam na construo da rodovia, 158 e a segurana da estrada, funo atribuda pelo prprio Presidente Washington Lus. 159
Para Tenrio, Edgar de Pinho era o proprietrio da maior extenso de terras da regio. Ele arrendou as matas de sua propriedade a uma empresa alem. Operando na extrao de lenha e madeira e na fabricao de carvo, rapidamente os lotes de terra foram desmatados por seiscentos homens contratados pela firma. Armazns, depsitos e barraces foram instalados na fazenda. 160
Para impor o controle sobre as propriedades, Tenrio organizou um grupo de homens armados que atuavam na segurana e na realizao das tarefas indicadas por ele. Seu bando era composto por homens nordestinos fiis que sabiam pegar no gatilho. Logo, Tenrio tornou-se conhecido e temido na regio. A aliana de Cavalcanti com as foras de sustentao de Washington Luis o aproximou de um importante coronel iguauano, Getlio de Moura, ampliando, assim, sua rede de apadrinhamento poltico. Getlio de Moura nasceu em 1903, em Itagua. Em 1924, passou a trabalhar como funcionrio da Estrada de Ferro Central do Brasil. Em Nova Iguau, tornou-se um dos mais importantes coronis da regio, tendo ele tambm seu grupo armado e certo domnio da polcia local. Cursou o internato do Colgio Pedro II e, em 1931, bacharelou-se pela Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro,
156 FORTES, 1986, p. 47. 157 FORTES, 1986, pp. 47-48. 158 A rodovia cortava as propriedades de Edgar de Pinho. 159 FORTES, 1986, p. 57. 160 SILVA, 1954, p. 33.
81 especializando-se em Direito criminal. 161 Moura poderia ser visto por Tenrio como uma figura poltica exemplar a ser seguida. Aps o golpe de 30 e a cassao de Washington Lus e Mangabeira, as obras da rodovia foram paralisadas e as tenses foram acirradas: desemprego, roubos de animais e saques nas lavouras, tornando, assim, a atuao dos administradores de fazendas ainda mais violenta. Tenrio relatou em suas memrias que os retirantes, ex-revolucionrios 162 e desempregados da Rio-Petrpolis concentravam-se nas reas de Nossa Senhora da Penha, Barro Branco, Santo Antnio, Jaguar, Estrela e So Bento. Sem emprego, renda ou alimentao, constantemente a localidade era obrigada a conviver com assaltos, mendicncia, vendedores ambulantes e biscateiros pedindo trabalho. 163
Na fazenda Santo Antnio, os conflitos foram ainda maiores. A crise ps-30 provocou um recesso no mercado, e o carvo produzido ficou empilhado. Outra conseqncia da crise foi que, em 1932, os salrios deixaram de ser pagos pela firma alem. Ela enviou um representante para negociar e, aps algumas promessas no-cumpridas, estourou a greve. Uma das mais importantes lideranas grevistas era Hildebrando de Paiva. Juntamente com outros trabalhadores, aprisionaram o representante e os funcionrios da firma no celeiro. Os grevistas afirmavam que s os libertariam aps o pagamento da dvida. Natalcio narrou em suas memrias o conflito:
No mesmo dia da priso de Orlando ocorreu um forte tiroteio entre as turmas de assalariados e empregados meus. Os rebeldes haviam arrombado um depsito da fazenda que eu administrava, e retirado grande quantidade de rifles, assim como centenas de cartuchos. Estavam para resistir a qualquer situao, at mesmo s foras policiais. Na fazenda N. S. da Penha verificou-se tambm srio choque entre policiais de Estrela e Caxias com grupos grevistas. Houve mortos e muitos feridos. Aquilo ameaava piorar, caminhando para uma verdadeira luta em massa, com a possibilidade de alastrar-se por toda a Baixada. 164
Natalcio, que estava fora, retornou e organizou uma emboscada, assustou e expulsou os grevistas da fazenda Santo Antnio. Libertou os prisioneiros e reassumiu o controle de toda a
161 . Dicionrio histrico-bibliogrfico brasileiro DHBB (1930-1983). 1 ed. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas: CPDOC, 1984, v. 3, p. 2.309. 162 O que Tenrio chama aqui de revolucionrios foram os que apoiaram a Revoluo de 30. 163 SILVA, Ar1indo Medeiros. Memrias de Tenrio Cavalcanti segundo a narrativa de Arlindo Silva. Rio de Janeiro: Edies O Cruzeiro, 1954, p. 32. 164 SILVA, 1954, p. 34.
82 propriedade. Logo a seguir, cem policiais invadiram a fazenda de Santo Antnio para libertar Osvaldo; contudo, encontraram-no livre. Posteriormente, Tenrio esteve envolvido em outro conflito. Dessa vez com policiais que invadiram a fazenda procura de alguns de seus homens. Houve um tiroteio violento e, segundo ele, os policiais saquearam a fazenda, levando mercadorias e dinheiro. Incendiaram casas, mataram alguns de seus homens e feriram outros. O estrago deixado na fazenda e o risco de um novo conflito tornaram a permanncia ali impraticvel. Natalcio mudou-se com sua esposa e me para o centro de Caxias. A fazenda foi novamente saqueada e Tenrio foi preso pelos danos provocados e pelo enfrentamento com a polcia. Edgar de Pinho interveio, libertou Tenrio, rompeu o arrendamento e entrou na justia para que a firma alem pagasse os atrasados aos trabalhadores. Apesar da perda do trabalho, Tenrio encontrava-se em situao estvel. Sua atuao na fazenda e a grilagem lhe asseguraram a aquisio de lotes que se valorizavam. Assim, de administrador, ele se transformara em scio de Edgar de Pinho.
De 1927 at 1934 ganhei uma centena de contos de ris na construo da Estrada Rio-Petrpolis, na venda de madeira e carvo da fazenda de que fui scio, margem da referida rodovia. Com esse dinheiro comprei muitos lotes de terreno e constru vrias casas, logo aps o meu casamento. 165
Tenrio havia se casado com uma das filhas do comerciante Lomba, em 31 de outubro de 1931. Poderamos estranhar que a filha de um comerciante abastado e sobrinha-neta do chefe poltico Joo Telles de Bittencourt se casasse com um capataz envolvido em confrontos com mortes, um homem chamado por muitos de bandoleiro. Porm, vrios fatores contriburam para isso: a) a famlia Bittencourt possua uma longa tradio nos mecanismos de controle social e de defesa da propriedade privada, como a Guarda Nacional e as delegacias policiais. A proximidade com a violncia, portanto, no era uma novidade na famlia; b) segundo os relatos de Tenrio, a famlia Lomba sofria uma crise financeira que se acentuara nos anos 30, diminuindo, assim, as possibilidades de exigncia de um casamento melhor para a filha. Tenrio, por sua vez, dizia-se scio de Edgar de Pinho, e possua outras
165 BELOCH, 1986, p. 87.
83 propriedades e boas relaes polticas. Ao se casar com Walquria Santos Lomba, foi incorporado a uma das famlias mais tradicionais de Meriti. O envolvimento de Natalcio nas constantes situaes de conflitos armados ameaava a imagem e os negcios de Edgar, levando-o a dispensar Tenrio da administrao de suas propriedades. Sem romper com o padrinho e recebendo uma boa indenizao, Tenrio comprou uma residncia no centro de Caxias, prximo casa do sogro, e tornou-se comerciante ao abrir uma casa de material de construo e de madeira. A loja possibilitava-lhe o acesso a uma grande clientela e a prtica de prestao de favores a uma populao que crescia e que era responsvel pela autoconstruo de suas moradias. A incorporao a uma famlia tradicional e proprietria favoreceu-lhe uma maior proximidade com o coronel Getlio de Moura, uma das mais expressivas figuras polticas da regio. Posteriormente, o prprio Getlio o encaminharia para a vida poltica e o incentivaria a fazer o curso de Direito. Est nesse conjunto de fatores a grande diferena entre Tenrio e os demais administradores de seu tempo: ter um apadrinhamento importante; ser administrador de uma extensa rea de terra pertencente a um proprietrio com boas relaes com a esfera federal; receber parte dos lucros, principalmente o da produo e venda de carvo; obter terras para especular; tornar-se comerciante de uma loja de material de construo em uma regio que apresentava um rpido crescimento populacional; aliar-se com uma famlia tradicional do lugar; entrar para a vida pblica e cursar Direito, o que diminua a fora da imagem de bandoleiro e afirmava sua atuao no universo da legalidade e da poltica. Dessa forma, terra, grilagem, propriedade, violncia, comrcio e poder so palavras-chave nesse quadro poltico que se desenhava em Meriti.
II.2. A disputa poltica em Caxias no Ps-30
A partir da dcada de 1930, Meriti, chamada agora de Duque de Caxias, experimentou um processo acelerado de crescimento de sua populao. Transformou-se de rea rural para a de periferia urbana industrial. Analisar esse processo, identificar os novos deslocamentos realizados no local e mapear a composio de poder que agora se configura permitem-nos perceber permanncias e constituies de novos projetos em curso. Nesse sentido, consideramos relevante, em primeiro lugar, apontar as mudanas
84 conjunturais do ps-30. A partir da apresentao das redefinies das foras polticas e das disputas pelo poder local, regional e nacional, busca-se compreender os projetos de colonizao implantados pelo governo Vargas e perceber os impactos provocados pelas polticas pblicas nesse espao vivido. Aps o golpe de 1930, houve uma alterao no jogo poltico nacional e regional. As antigas foras hegemnicas foram substitudas por outras. Com o exlio do ex-ministro Mangabeira e tendo Edgar de Pinho perdido parte de seu prestgio poltico, Tenrio Cavalcanti e Getlio de Moura enfrentaram dificuldades. A prefeitura de Nova Iguau passou a ser governada por interventores, apesar da resistncia do chefe poltico local, Getlio de Moura, que a ocupou fora, fato conhecido no local como Revoluo Iguauana. 166 Em dezembro do mesmo ano do golpe, Getlio de Moura foi afastado do cargo, aps a ocupao da cidade pelas tropas do Exrcito. Posteriormente, foi processado por ter acusado o Governo Provisrio de crime poltico e, em 1931, foi anistiado por Vargas. Tenrio Cavalcanti manteve-se articulado a seus antigos aliados polticos, compondo, assim, as foras de oposio ao Governo Provisrio. Sua posio poltica definiu a manifestao de apoio Revoluo Constitucionalista de 1932.
A Revoluo paulista chegava at ns, na Baixada Fluminense, como badaladas plangentes de um sino [...] chamando o resto da nao luta [...] Sentia o desejo de ser paulista, de poder atravessar as linhas interditas da fronteira e tambm me filiar aos valentes soldados. 167
Apesar da derrota, os paulistas conseguiram convocar a Assemblia Nacional Constituinte. Para concorrer s eleies para a Assemblia Nacional Constituinte, os antigos chefes polticos fluminenses criaram, em 1933, a UPF (Unio Progressista Fluminense) e o PRP (Partido Radical Popular). A grande maioria dos integrantes dos dois partidos era, em 1922, da corrente nilista, isto , apoiava a candidatura de Nilo Peanha, em oposio de Arthur Bernardes. Alijados da poltica fluminense desde ento, tentaram rearticular-se com a campanha da Aliana Liberal, em 1929. Aps a vitria do golpe de 30, as divergncias regionais e as disputas polticas colocaram em
166 Ver Revoluo Iguauana. In: PEIXOTO, Ruy Afrnio. Imagens iguauanas. Nova Iguau: Tip. Colgio Afrnio Peixoto, 1968, pp. 105-106. 167 Depoimento de Tenrio a Arlindo Silva. In: SILVA, Arlindo. Memrias de Tenrio Cavalcanti segundo a narrativa a Arlindo Silva. Rio de Janeiro: Edies O Cruzeiro, 1954, pp. 44-45.
85 campos opostos esses chefes. O bloco da UPF era liderado pelo general Cristvo Barcelos e por Jos Eduardo Prado Kelly, incorporando setores aliados de Washington Lus. O PRP era liderado por Raul Fernandes, Joo Guimares e Jos Eduardo Macedo, adeptos do getulismo na regio fluminense. Ari Parreiras, interventor federal no estado do Rio de Janeiro, negou-se a apoiar qualquer dos partidos nas eleies de 1933. O PRP elegeu a maior bancada do estado, com dez representantes, enquanto a UPF elegeu apenas trs, demonstrando sua fora poltica. 168
Na Baixada Fluminense, Getlio de Moura entrou para a UPF. Lanado como candidato a deputado constituinte, elegeu-se como suplente, no chegando a assumir uma cadeira no Legislativo federal. A fora de maior sustentao do governo federal estava organizada no PRP, tendo Manoel Reis como sua principal liderana em Nova Iguau. Manoel Reis nasceu em Nova Iguau, em 1876. Era proprietrio de terras e bacharelou-se em Cincias Jurdicas e Sociais. No perodo de 1910 a 1912, durante o governo de Hermes da Fonseca, foi Secretrio do Ministro da Aviao. Foi eleito deputado federal, ocupando uma cadeira na Cmara de 1912-1914. Foi deputado estadual e vereador da Cmara Municipal de Nova Iguau, que presidiu de 1916 at dezembro de 1923. Nas eleies para a Assemblia Nacional Constituinte, foi eleito suplente e assumiu a cadeira em julho de 1934. Durante os primeiros cinco anos do Governo Vargas, Manoel Reis atuou articulando seus interesses regionais com os do getulismo. Sua residncia era conhecida como o local em que o Presidente Getlio Vargas descansava, e ele era visto como o homem do presidente na Baixada Fluminense. Em 1935, faleceu. 169
Nas eleies para deputados federais e estaduais, realizadas em 1934, a UPF elegeu oito deputados federais e 19 estaduais, enquanto o PRP, cinco federais e 18 estaduais. Apesar da vitria da UPF, as alianas polticas estabelecidas na Assemblia Estadual garantiram ao PRP uma bancada composta por 23 parlamentares, enquanto seu opositor possua 22, o que garantia ainda a hegemonia regional. Nas eleies para o governo do estado de 1935, Tenrio e Moura trabalharam na candidatura da UPF e saram derrotados. O candidato da UPF, Cristvo Barcelos,
168 ABREU, Alzira Alves de (org.). Dicionrio histrico-bibliogrfico brasileiro (DHBB). Ps 30. 2 ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas: CPDOC, 2001, v. IV, pp. 4.345-46, e v. V, pp. 5.852-53. 169 Manoel Reis foi um dos mais importantes aliados de Vargas em Nova Iguau. Durante as visitas do presidente a Nova Iguau, era na propriedade dele que Vargas descansava.
86 perdeu as eleies para o candidato do PRP e de Vargas, o Almirante Protgenes, 170
aps um acirrado conflito. Preocupados com o papel da Regio Fluminense na sucesso presidencial em 1938, os governos estaduais de outras regies e o governo federal intervieram na disputa eleitoral de 1935. Essa interferncia levou os polticos fluminenses a criarem a Unio Popular pela Autonomia Fluminense no mesmo ano. 171
Nas eleies municipais de 1936, Tenrio concorreu ao Legislativo municipal iguauano pela UPF, a convite de Getlio de Moura. Os dois foram eleitos vereadores de Nova Iguau, fortalecendo a poltica de aliana com o novo prefeito eleito, o advogado Ricardo Xavier da Silveira. 172 Alm da atuao no Legislativo, Getlio de Moura tinha ainda o controle da polcia local, o que lhe assegurava certo domnio dos instrumentos de coero e uma rede de proteo. A concesso feita pelo governo Vargas, dividindo seus prstimos, era um esforo para manter a convivncia poltica na regio e abrir um canal de proximidade com as lideranas regionais. Assim, para uns, entregava o controle policial; para outros, o controle administrativo. Apesar das concesses, os que se organizaram na UPF tinham de enfrentar as foras da mquina do governo federal e estadual, que atuavam no sentido de fortalecer o prestgio de Vargas e de seus aliados fiis na regio, integrados ao PRP. Um conjunto de investimentos do governo federal foi ampliando o domnio varguista na regio. Investimento em melhoramentos e aberturas de estradas na localidade, implantao de uma Comisso de Saneamento da Baixada, construo de um Hospital Pblico em Nova Iguau, apoio aos citricultores, eletrificao da Estrada de Ferro Pedro II, em 1938, foram fatores que fortaleceram os interventores estaduais. Estes subordinavam a distribuio de obras e favores fidelidade eleitoral. Com a instalao do Estado Novo em 1937, os partidos foram extintos pelo Decreto de 03/12/37, assim como o Movimento Autonomista, recm-criado, e os rgos legislativos do pas foram suprimidos. O chefe poltico iguauano, Getlio de Moura, perdeu o domnio da polcia local, que foi substituda por
170 Uma das principais lideranas da conspirao contra o presidente Arthur Bernardes. Ele esteve preso na Fortaleza de Santa Cruz, onde recebeu a visita de Ernani do Amaral Peixoto, membro da Escola Naval do Rio de Janeiro e irmo de uma das lideranas do Levante de 1924, em apoio aos revoltosos de 5 de julho de 1922. Protgenes apoiou o golpe de 1930 e tornou-se Ministro da Marinha no Governo Provisrio. Em 1933, Protgenes indicou Amaral Peixoto para o cargo de ajudante-de-ordem do Presidente, para substituir Celso Pestana, morto em um acidente com o carro em que viajava Getlio Vargas de Petrpolis para o Distrito Federal. Em 1935, foi eleito governador do estado do Rio de Janeiro. Ver: DHBB, 1984, v. III, pp. 2.448/49. 171 DHBB Ps-30, 2001, v. V, p. 5852. 172 Ricardo Xavier da Silveira era filho de Joaquim Xavier da Silveira, prefeito do Rio de Janeiro em 1901 e 1902. Lanou-se candidato a prefeito pelo UPF.
87 investigadores da Polcia Federal e, posteriormente, por delegados indicados por Agenor Barcelos Feio, 173
Secretrio de Segurana do governo estadual. A indicao de delegados pela esfera estadual e federal foi uma medida centralizadora que quebrou os crculos tradicionais de reciprocidade, gerando tenses e realinhamentos polticos. Acabaram, ento, as concesses para assegurar o acesso aos cargos pblicos e aos benefcios. Tenrio e Moura teriam de se posicionar frente ao Governo Vargas e amaralista. O governador Amaral Peixoto manteve Ricardo Xavier da Silveira na prefeitura de Nova Iguau at 1943, marcando a posio poltica de aliana de Xavier da Silveira com o getulismo. Em 1945, Moura rendeu-se aos projetos amaralistas, tornou-se interventor na prefeitura de Nova Iguau, indicou o prefeito que o substituiu, Manoel Augusto da Silva, e lanou-se candidato a deputado federal, compondo, assim, as foras do PSD (Partido Social Democrtico) na regio. Em 1945, Getlio de Moura foi eleito deputado federal pelo PSD, participando, assim, da Assemblia Nacional Constituinte e, em 1946, passou a exercer mandato ordinrio. Tenrio Cavalcanti, por sua vez, perdeu o mandato de vereador e manteve-se alinhado a Edgar de Pinho e oposio, sem romper com seus padrinhos polticos iguauanos. Uma situao exemplar acerca da manuteno da aliana poltica entre Tenrio e as lideranas iguauanas, Moura e Xavier, narrada por uma das filhas de Tenrio, Do Carmo Cavalcanti Fortes, em seu livro Tenrio, o homem e o mito. Segundo ela, Joaquim Peanha havia se candidatado nas eleies de 1936 para o Legislativo municipal. Como no obteve sucesso no pleito, foi nomeado delegado de Caxias em 1937, tornando-se o maior inimigo de Tenrio de Cavalcanti. Ele efetuou a priso de Tenrio por duas vezes a primeira por porte de armas e a segunda pela acusao de conspirao contra os governos estadual e federal. Segundo o prprio Tenrio, Peanha era simpatizante do integralismo, e essa agremiao possua forte penetrao em Caxias, principalmente entre os ferrovirios. Os integralistas organizaram um movimento em maio de 1938, investindo contra o Palcio da Guanabara. Tenrio foi acionado pelo delegado de Nova Iguau, 174 para que impedisse a investida dos irmos Dantas, as principais lideranas integralistas de Caxias.
173 O Coronel Agenor Barcelos Feio veio do Rio Grande do Sul aps prestar servios ditadura varguista. Atuou na deposio do General Flores, que pretendia resistir ao golpe de 1937. Como prmio, recebeu o cargo de chefe da Polcia do Estado do Rio de Janeiro e o de orientador poltico. 174 No podemos esquecer que, nesse perodo, o prefeito de Nova Iguau era Ricardo Xavier. Tenrio atendeu a uma solicitao de seus aliados iguauanos.
88
O delegado de Nova Iguau, amigo meu, telefonou-me pedindo ajuda. Dizia que no deveria permitir que os integralistas atravessassem a fronteira para o Rio, pois as passagens viveis para o estado vizinho estavam bloqueadas e as de Caxias no, dependia de um pequeno reforo. Concordei, no era favorvel s atitudes agressivas em relao ao presidente [...] Consegui, com a ajuda dos meus homens, prender os integralistas e entreguei-os Delegacia de Nova Iguau. 175
A priso dos integralistas e a tortura que sofreram na delegacia geraram um clima de tenso entre Tenrio, Peanha e os integralistas. Tempos depois, mais um tiroteio ocorreu, dessa vez envolvendo Tenrio e os integralistas Jos e Manoel Dantas, Amrico Soares, Joaquim Peanha e um de seus homens mais temidos, Homero de Carvalho. Natalcio chamava esse homem forte de Peanha de pistoleiro frio, calculista e traioeiro, um leopardo na traio e um lobo faminto na agressividade. O confronto foi violento, porm no houve mortes. Moura, que estava em companhia de Tenrio durante o tiroteio, acionou Ricardo Xavier e, juntos, seguiram para Niteri. Natalcio ficou detido em Niteri por pouco tempo, foi solto graas s intervenes de seus aliados polticos. Quando Joaquim Peanha assumiu a Delegacia de Caxias, os conflitos com Tenrio foram tornando-se ainda mais violentos. Os tiroteios, as emboscadas e as mortes eram parte do cenrio da cidade. Os dois bandos agiam com extrema crueldade. Em suas memrias, Natalcio narra com detalhes a priso que realizou de Manoel Ferreira, acusado por ele de matar um de seus correligionrios, o fiscal da prefeitura Pereira Lima. Aps interrog- lo moda de Felinto Muller, com socos, pontaps, tapas na cara do miservel, Tenrio o entregou famlia de Pereira Lima, para que esta escolhesse o destino dele. Esses homens, chamados por muitos de Lampies da Baixada, faziam suas leis e seus cdigos de conduta. Entretanto, os que deveriam representar a lei e a justia tambm atuavam como inquisidores, determinando a priso e o castigo a ser dado. Peanha era acusado de reunir um grupo de criminosos a seu servio e de realizar as maiores atrocidades contra prisioneiros e opositores de Vargas. O Homem da Capa Preta descrevia Peanha assim:
175 CAVALCANTI, Sandra Maria. Tenrio, meu pai. Rio de Janeiro: Global, 1986, p. 96.
89 Era arrojado como um leo, malandro como uma raposa e, s vezes, perverso como uma hiena. Mente fecunda para conceber tocaias e eliminar opositores do governo [...] as diferenas eram decididas bala no meio da rua. Era uma musa do crime, porque se deixara apaixonar irremediavelmente pelas lutas polticas [...] Caxias era sua. Ele era o feitor da senzala. 176
Evidentemente, essas prticas violentas no eram prerrogativas exclusivas de Caxias. No Norte fluminense, havia uma organizao chamada de Bando da Morte que eliminava pessoas por dinheiro. Em outras reas da Regio Fluminense, a violncia era o instrumento utilizado para solucionar os conflitos e as disputas polticas. Talvez a proximidade de Caxias com o grande centro carioca e seu rpido crescimento populacional ampliassem as tenses internas e a violncia. Tais tenses eram provocadas pela grande concentrao de trabalhadores pobres sem acesso s mnimas condies de vida, pela intensa disputa por um eleitorado novo que crescia rapidamente e pela impunidade. Uma outra marca da regio era a presena de grupos armados, liderados por polticos com projeo. Apesar de Tenrio ter obtido maior destaque na mdia, ele afirmava que Getlio de Moura sempre teve uma participao direta ou indireta em todos os grandes episdios que o envolveram. Moura era visto como um grande coronel de Nova Iguau e tambm possua seu bando de homens armados. Contudo, ele conseguia manter a aparncia de homem pacfico, principalmente quando se tornou o representante do PSD na Baixada Fluminense. 177 Talvez esse fato justifique a afirmao recorrente no perodo de que Tenrio seria apenas um testa-de-ferro de Moura. Logo, adquiriu importncia poltica, deixando de ser apenas um subordinado, para se tornar um aliado de peso. Em mais um conflito armado entre Natalcio e Manuel Costa, um forasteiro que vivia em companhia de Homero de Carvalho, Tenrio foi baleado e ficou em estado grave, enquanto Manuel Costa faleceu no confronto. Natalcio ficou internado durante seis meses e acusou o delegado Peanha de ser o mandante da tocaia. Durante esse perodo, recebeu assistncia e apoio de seu padrinho de casamento, Edgar de Pinho e dos chefes polticos iguauanos, Xavier da Silveira e da Silveira e Getlio de Moura. Posteriormente, Peanha foi esfaqueado e morto dentro do trem que o trazia diariamente a Caxias. Tenrio foi o acusado do crime e detido por quarenta dias em Niteri, apesar de alegar inocncia e insinuar que a morte do delegado estava relacionada s divergncias existentes entre Peanha e Moura. A falta de provas contra Tenrio e a proteo de seus padrinhos polticos asseguram-lhe a liberdade, sob a
176 SILVA, 1954, p. 71. 177 SILVA, 1954, p. 85.
90 condio de se afastar do Rio de Janeiro. Ele e sua famlia foram para Alagoas, retornando para o Rio de Janeiro sete meses depois. 178 Segundo Sandra Cavalcanti, a quarta filha de Tenrio, a permanncia da famlia em Alagoas tornou-se difcil, devido impossibilidade de manuteno do padro de vida anterior e das dificuldades enfrentadas pela famlia Cavalcanti naquele momento. 179
quarenta dias em Niteri, apesar de alegar inocncia e insinuar que a morte do delegado estava relacionada s divergncias existentes entre Peanha e Moura. A falta de provas contra Tenrio e a proteo de seus padrinhos polticos asseguram-lhe a liberdade, sob a condio de se afastar do Rio de Janeiro. Ele e sua famlia foram para Alagoas, retornando para o Rio de Janeiro sete meses depois. 178
Segundo Sandra Cavalcanti, a quarta filha de Tenrio, a permanncia da famlia em Alagoas tornou-se difcil, devido impossibilidade de manuteno do padro de vida anterior e das dificuldades enfrentadas pela famlia Cavalcanti naquele momento. 179
Aps o retorno ao Rio, Tenrio foi convidado por Xavier da Silveira para assumir o cargo de agente fiscal da Agncia de Caxias, em 1940. Responsvel pelo controle da arrecadao de impostos, retomou antigos negcios e seguiu os passos de Moura, cursando a Faculdade de Direito, formando-se em 1944. Durante esse perodo, Tenrio e sua famlia passaram a residir em Nova Iguau, participando ativamente da vida social e poltica da Califrnia Brasileira. O cargo de agente fiscal possibilitou-lhe o retorno ao jogo poltico e o estabelecimento de alianas com comerciantes locais, por meio de redues de impostos e de troca de favores. A atuao de Tenrio como advogado lhe proporcionava tambm o acesso a uma clientela popular que recorria a seus servios, ampliando sua popularidade. Aps a morte da esposa, o Sr. Lomba refugiou-se em Friburgo e Tenrio comprou a parte da casa que cabia aos herdeiros, reformou-a e mudou-se para ela. 180
Em Caxias, apesar da boa relao que Tenrio mantinha com os polticos iguauanos e de sua retomada vida poltica, o clima de tenses e rivalidades permanecia. A conjuntura de ditadura, da forte presena dos projetos de colonizao do estadonovista, da fundao do municpio de Caxias e da instalao da Delegacia 311 favoreceu a presena de prefeitos e delegados interventores. Eles eram chamados por
178 SILVA, 1954, p. 80. 179 CAVALCANTI, 1986, pp. 111-117. 178 SILVA, 1954, p. 80. 179 CAVALCANTI, 1986, pp. 111-117. 180 FORTES, Maria do Carmo Cavalcanti. Tenrio: o homem e o mito. Rio de Janeiro: Record, 1986, pp. 80-97.
91 Tenrio de estrangeiros importados para Caxias, ou seja, de elemento estranhos prtica poltica tradicional, onde o local controlava a escolha dos delegados, do Executivo e do Legislativo. 181 Os estranhamentos entre Tenrio e os chamados estrangeiros aqueciam o cotidiano poltico da cidade. Para melhor explicitar a conjuntura tecida, apresentaremos um histrico dos projetos varguistas institudos na cidade de Caxias.
II.3 As marcas do projeto de colonizao e modernizao do governo Varguista
O projeto de colonizao do governo federal central para analisarmos a dinmica demogrfica da Baixada e a incorporao da regio ao modelo de desenvolvimento industrial. Ao mesmo tempo, revela-se fundamental para compreendermos sua relao com a constituio de formas de poder marcadas pela violncia. Apesar de sua importncia, em nenhuma das obras produzidas sobre a Baixada at o presente momento, esses fatores foram tratados em conjunto. No que se refere aos ncleos coloniais e Cidade dos Meninos, no foi possvel localizar, at o momento, obras historiogrficas que nos ajudassem a pensar tais polticas. 182
Apesar da impossibilidade de aprofundar as investigaes desses projetos, o esforo aqui empreendido pode apontar questes importantes a serem aprofundadas. Simultaneamente, pode indicar aspectos essenciais para o entendimento da dinmica do conjunto da vida social na regio. A partir do crescimento da industrializao nos anos 30 e do aumento das atividades comerciais e de servios, o Distrito Federal tornou-se uma alternativa para aqueles que sofriam com a concentrao de terras e com a expulso do campo. Todos os dias, chegavam de outras regies do pas pessoas em busca de melhores condies de vida. O crescimento da populao da cidade do Rio de Janeiro e a inexistncia de reas disponveis para as moradias populares promoveram um processo de segregao espacial e econmica. As reas perifricas que margeavam as estaes da Leopoldina passaram a abrigar essa populao, que, quanto mais pobre, mais distante da cidade se alojava.
181 GRYNSPAN, Mario. Os Idiomas da Patronagem: Um Estudo da Trajetria de Tenrio Cavalcanti, Revista Brasileira de Cincias Sociais, n 14, ano 5, So Paulo: ANPOCS, outubro de 1990, pp. 73-90. 182 Apesar do esforo pioneiro, ressentimo-nos pela ausncia de uma pesquisa que aprofundasse as experincias dos ncleos agrcolas na Baixada e da Cidade dos Meninos, principalmente relativa ao perodo de seu funcionamento.
92 O entorno da estao de Meriti e, posteriormente, de Sarapu, tornou-se mais uma possibilidade de abrigo dos trabalhadores empobrecidos. Caxias foi transformada em uma rea de transbordo dessa populao, cumprindo o papel de periferia da periferia da cidade do Rio de Janeiro. Um outro aspecto importante a ser considerado era a emergncia de recuperar a economia agrria, com vistas a equilibrar a economia fluminense e garantir o abastecimento do Distrito Federal com produtos agrcolas. Em 1933, foi criada a Comisso de Saneamento da Baixada Fluminense, tendo como objetivos a reduo das reas pantanosas e das doenas, e o estabelecimento de um programa tcnico que beneficiasse as terras da Baixada. O saneamento realizado pela Comisso consistiu: na drenagem dos rios Meriti, Sarapu, Iguau e Estrela; na instalao de bicas de gua tratada; na aplicao de inseticidas; e na drenagem e no aterro das reas alagadias.
A Histria do povoamento desse trecho do Estado do Rio de Janeiro em distanciados dias resume-se num combate ininterrupto contra o pntano [...] Foi precisamente nessa rea, que se estendia por vales de rios e regatos, obstrudos, formando banhados infectos, pntanos infindveis, plancies abauladas e desertas (brejos e charcos), que se fez sentir desde logo a ao benemrita e inigualvel da Comisso de Saneamento da Baixada Fluminense. 183
O saneamento realizado pela Comisso garantiu as condies mnimas para atender aos interesses de fraes da classe dominantes locais e regionais, alm de integrar a Baixada Fluminense ao projeto nacional de colonizao e modernizao inaugurado pelo governo Vargas, principalmente durante o Estado Novo. possvel identificar, nesse projeto, algumas caractersticas: a redescoberta e a ocupao dos espaos vazios, principalmente de reas desvalorizadas, por meio da reduo das reas pantanosas, do controle das doenas e do aumento da produo agrcola; o desenvolvimento industrial a partir da forte interveno estatal; e o fornecimento de uma educao tcnica que promovesse o nacionalismo e o progresso agrrio e industrial. Esse projeto deixou marcas em Duque de Caxias e foi efetivado por meio da forte interveno do poder pblico, expresso na instalao do Ncleo Agrcola de So Bento, da Fbrica Nacional de Motores e da Cidade dos Meninos.
183 NIGRA, Clemente da Silva. Ncleo Colonial de So Bento, Revista do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, n 7, p. 24, Rio de Janeiro: Ministrio da Educao e Cultura, 31 de agosto de 1940.
93 II.4 Os ncleos coloniais: cinturo verde da capital
Uma das grandes preocupaes do Estado era impedir a apropriao indevida de terras pblicas na regio. Nesse sentido, o investimento em saneamento bsico deveria ser acompanhado de um projeto de colonizao. Logo, os ncleos agrcolas foram implementados como instrumentos de ocupao das terras da Unio e de reas vazias, como recurso para frear o movimento migratrio urbano, visto como ameaador segurana do Distrito Federal e como meio de assegurar o abastecimento de alimento para a capital federal. No discurso estatal, os ncleos cumpririam o papel de valorizao do homem do campo ao lhes fornecer educao e orientao tcnica capazes de assegurar uma maior racionalidade e produtividade agrcola, e de manter um cinturo agrcola como modelo de desenvolvimento e de manuteno do abastecimento urbano. 184
Os primeiros ncleos fundados na Regio Fluminense foram o de Santa Cruz (1930), o de So Bento (1932), o de Tingu (1938) e o de Duque de Caxias (1941). 185 Os ltimos trs estavam localizados na Baixada Fluminense. Os mais antigos, So Bento e Tingu, possuam 4.596 e 3.105 hectares, respectivamente. Em todos os ncleos, havia produo de hortalias, legumes (principalmente tomate, quiabo, berinjela, abbora e aipim) e fruticulturas (bananais e laranjais predominavam nos ncleos); havia tambm a explorao de madeira extrada das florestas e da lenha, o que incentivou o plantio de eucaliptos. Nos lotes empobrecidos e arenosos, a criao de gado foi permitida. 186
O Ncleo Colonial So Bento foi instalado nos limites do atual municpio de Caxias pelo Decreto n 22.226, de 14 de dezembro de 1932. As terras dos beneditinos, que denominamos de Fazenda de So Bento, e as terras da Fazenda Aurora haviam sido desapropriadas pelo Estado, em 1921, pelo Decreto n 15.036 e ocupada pela empresa responsvel pelo saneamento da Baixada. Em 1931, o contrato existente entre o Estado e a Empresa de Melhoramentos foi rescindido pelo Ministrio da Agricultura, e as terras hipotecadas tornaram-se da Unio. Portanto, esse territrio era um espao disponvel para o
184 ALVES, J.C.S et al. Memria da Rural, Revista Universidade Rural, v. 18, n s 1-2, dezembro de 1996, pp. 63-71. 185 Ocupava parte do territrio de Duque de Caxias e parte do territrio de Mag. 186 GEIGER, Pedro Pichas e MESQUITA, Myrian. Estudos rurais na Baixada Fluminense (1951-1953). Rio de Janeiro: IBGE, 1956, pp. 153-163; e GRYNSZPAN, Mario. Mobilizao camponesa e competio poltica no estado do Rio de Janeiro (1950-1964). Rio de Janeiro, 1987, p. 46. Dissertao de Mestrado em Antropologia Social pelo Museu Nacional.
94 projeto de colonizao. O Ncleo compreendia ainda as reas da Chacrinha, do Retiro da Glria e do Frazo. 187
Segundo o documento do INCRA, o Ncleo Colonial So Bento possua uma rea de 102 quilmetros quadrados dividida em duas partes. A primeira era denominada de sede, com lotes urbanos, isto , com setenta residncias construdas inicialmente entre 1939 e 1940, alm das adaptadas de paiis, armazns e currais. Na sede, funcionava toda a administrao do ncleo: cooperativa, casa do administrador, tulha, telgrafo, escola, clube de esportes, posto mdico, farmcia etc. A outra era constituda por lotes rurais, compondo sete glebas: 1) a atual entrada do Parque Fluminense; 2) o atual bairro do Wona; 3) a atual Cidade dos Meninos; 4) o lado direito de So Bento at o atual Lote XV; 5) o atual bairro do Baby, pertencente hoje a Belford Roxo; 6) o atual bairro do Amap; 7) a Fbrica de Plvora, atual Vale do Ip. Posteriormente, mais duas escolas foram instaladas nas glebas, a do Amap e a Baby, assim como outras residncias de colonos. 188
O Estado desempenharia as tarefas de: retalhar a terra e distribuir os lotes; 189 construir moradias para os colonos; 190 financiar a venda em pequenas prestaes; orientar quanto explorao da terra (preparo do terreno, indicao da cultura mais adequada, assistncia tcnica); assegurar assistncia mdica ao colono e sua famlia; fornecer, durante algum tempo, mquinas necessrias e sementes; 191
incentivar a criao de cooperativas; e fiscalizar o andamento do ncleo. Apesar de o projeto de colonizao ter-se expandindo no segundo governo de Vargas e ter favorecido o acesso de pequenos lavradores terra, 192 as crticas a ele podem revelar algumas das causas de seu baixo desenvolvimento e fracasso. De um lado, a morosidade na organizao das colnias, o desvirtuamento da origem do projeto devido transformao dos lotes em stios de veraneio, as
187 A rea compreendia o atual bairro de So Bento, Cidade dos Meninos, at o fundo da baa, onde hoje funciona o Aterro Metropolitano do Jardim Gramacho. Ver: Extinto Ncleo Colonial de So Bento. Rio de Janeiro: INCRA, 1975. 188 Cada residncia possua uma rea de 39 metros quadrados, com dois quartos, banheiro, cozinha e varanda sem ladrilho e forro de madeira, sem muros. As ruas no tinham calamento nem meio-fio. Havia ainda algumas residncias que foram adaptadas de cocheiras, galpes, depsitos, paiis etc. Ver: Extinto Ncleo Colonial de So Bento. Rio de Janeiro: INCRA, 1975, pp. 5-6. 189 Os pagamentos dos lotes e da construo deveriam ser efetuados a longo prazo pelo colono, a partir do terceiro ano de sua instalao no ncleo. 190 As moradias deveriam obedecer a uma estrutura padronizada, com garantia de higiene. 191 A Universidade Federal Rural, transferida de Niteri para Itagua durante o Estado Novo, teria o papel de assegurar assistncia tcnica capaz de dar condies de permanncia do homem no campo e de desenvolver a economia agrria fluminense. Ver ALVES, 1996, p. 65. 192 Na dcada de 1950, novos ncleos foram criados: o de Papucaia (Estrada de Friburgo, no municpio de Macacu) e o de Santa Alice (entre Itagua e Pira), fazendo surgir inmeros requerimentos de lotes no Ministrio da Agricultura.
95 dificuldades em desenvolver as atividades agrcolas, j que boa parte das terras adquiridas necessitava de investimentos em saneamento. De outro, havia os parcos financiamentos aos lavradores, que, por serem pobres, no conseguiam investir na produo e garantir sua sobrevivncia. Sem auxlio, arrendavam parte de sua propriedade ou ainda instalavam uma vendinha nos limites dela. Havia ainda os conflitos estabelecidos: pelas orientaes dos tcnicos, incompatveis muitas vezes com a experincia do lavrador ou inviabilizadas pela ausncia de recursos; pela impossibilidade da produo nos lotes empobrecidos; pelas dificuldades na venda e no transporte das mercadorias (quase toda dirigida para o Distrito Federal); e pela ineficincia das cooperativas por causa das desconfianas que os lavradores tinham em relao a seus dirigentes e da exigncia de um capital inicial para se associar. 193
Em Caxias, alm dos empecilhos citados, o Ncleo Colonial So Bento enfrentou a dificuldade de estar situado em uma rea de expanso urbana da metrpole carioca. As obras de saneamento e a implantao do ncleo e de uma estrutura administrativa mantida pelo Estado contriburam inicialmente para o surgimento de um grupo de pequenos lavradores. Ainda hoje, na memria de antigos moradores do ncleo, podemos identificar uma memria saudosista de um tempo em que o Ministrio da Agricultura, por meio de seus administradores, assegurava todas as necessidades do ncleo, desde a produo e venda at a organizao dos espaos e momentos de sociabilidades entre eles, embora tambm controlassem o tempo, inclusive impedindo a entrada de pessoas sem autorizao. A porteira vigiada transformava o espao sede em espao controlado, vigiado. Posteriormente ao perodo do auge, iniciou-se uma desestruturao do projeto e os antigos colonos foram incorporados populao urbana. O isolamento e a ausncia de financiamento e de transporte para escoar a produo contriburam para que o lavrador se transformasse em sitiante, com uma produo apenas de subsistncia. Conseqentemente, muitas reas reservadas ao plantio foram transformadas em lotes urbanos. Por um outro lado, os investimentos pblicos na regio beneficiaram as terras no entorno da Estrada Rio-Petrpolis, interiorizando a ocupao de Caxias, em direo ao Pilar.
[...] seguindo o exemplo do Ministrio da Agricultura, grandes propriedades, que jaziam abandonadas, so adquiridas nessa regio por empresas particulares. Realizados os primeiros melhoramentos indispensveis, so retalhados os
193 GEIGER e MESQUITA, 1956, pp. 153-163.
96 terrenos de domnio particular. Vendem-se os lotes sob o pagamento a longo prazo. 194
Nos lotes comprados, os trabalhadores realizavam sua autoconstruo, sendo obrigados a conviver com a ausncia de iluminao, de rea de lazer, de esgotamento sanitrio, de assistncia mdica, de educao e principalmente, de abastecimento de gua. Os trabalhadores eram tambm expostos s ameaas constantes de enchentes. Apesar disso, a populao de Caxias triplicou em apenas uma dcada. Em 1930, a populao era de 28.756 e, em 1940, j atingia os 99.987 habitantes. 195 A aglomerao urbana misturava-se paisagem agrria e interiorana do ncleo colonial.
II.5 Caxias: uma cidade para menores
Em meados dos anos 30, a primeira-dama, Sra. Darcy Vargas, e um grupo de amigas iniciaram um levantamento de fundos para erguer um ncleo de abrigo, de educao e de treinamento para meninas. Para isso, em 1939, criaram a Fundao Darcy Vargas. Em 1941, Walt Disney esteve no Brasil lanando o espetculo Fantasia, para promover seus filmes e personagens. Toda a arrecadao do espetculo foi doada Cidade das Meninas. No ano seguinte, pelo Decreto n 34.675, o Estado desmembrou uma rea de 19 milhes de metros quadrados, pertencente ao Ncleo Colonial So Bento, e, em 1943, transferiu-a para a Fundao Darcy Vargas (Decreto n 5.441). 196
Nessa rea, teve incio a instalao da Cidade das Meninas, tendo como objetivo inicial receber meninas abandonadas ou de famlias empobrecidas, para que recebessem preparo fsico, moral, educacional e religioso. Em 1942, a Sra. Darcy Vargas patrocinou a publicao da obra Cidade das Meninas, contendo estudos preliminares e sugestes de Rubens Porto para o projeto. A cidade-jardim foi idealizada pelo autor a partir de uma solicitao da primeira-dama. Rubens Porto diz que participara da elaborao do projeto da Casa do Pequeno Jornaleiro e que contara com a ajuda de Melle Germaine Marsaud para pensar o plano educacional.
194 NIGRA, 1940, p. 27. 195 BELOCH, 1986. 196 Dossi 08100 do processo da Procuradoria-Geral da Repblica. Ver tambm: Atuao do Ministrio da Sade no Caso de Contaminao Ambiental por Pesticidas Organoclorados na Cidade dos Meninos, Municpio de Duque de Caxias, RJ. Braslia: Ministrio da Sade, 2002.
97 A Cidade das Meninas foi idealizada juntamente com outros projetos voltados moralizao, conteno das situaes de violncia urbana promovida por desabrigados e populaes empobrecidas, ao treinamento para o trabalho, ou seja, formao do trabalhador nacional e, finalmente, promoo e diversificao agrcola, e ao desenvolvimento industrial. Entre os projetos criados, podemos destacar a Casa do Pequeno Jornaleiro, a Escola de Pesca de Marambaia e a Escola Agrcola de Paty de Alferes. Rubens Porto diz que a Cidade das Meninas viria, entre vrios fatores, a atender a uma orientao do Primeiro Congresso Latino-Americano de Criminologia, realizado em Buenos Aires, em 1938, e que recebeu a adeso do Brasil:
A implantao das casas-lares destinadas reduo geral dos menores em estado de perigo, as quais devero ser instaladas preferencialmente em colnias agrcolas e industriais orientadas pedagogicamente, de acordo com o tipo argentino da Colnia Ricardo Gutirrez. 197
A cidade idealizada previa a construo inicial de duzentos ou trezentos lares habitados por um grupo de vinte ou trinta meninas e de moas acompanhadas por responsveis adultos. As moas atuariam na ajuda com os pequenos. Como futuras mes, as meninas seriam preparadas para o casamento, para elevar a moral das famlias empobrecidas e, ainda, estariam aptas para o trabalho domstico, para a economia do lar e para o mundo do trabalho quando fosse necessrio famlia e sua prpria subsistncia. Assim, elas cumpririam a primeira e principal funo social da mulher que reside no lar, assegurando a existncia e a educao dos filhos, a felicidade dos seus. Porto utiliza-se de um dispositivo elaborado pelo Conselho Profissional da Fundao Abrigo Redentor para legitimar ainda mais seu projeto: preciso voltar-se para a assistncia s meninas abandonadas, livrando-as da prostituio, e prepar-las para ser esposas, mes, operrias de costura. 198
Para tal, era necessria uma educao que assegurasse o preparo fsico, intelectual, moral e religioso. A ginstica, o trabalho domstico, a produo agrcola, a floricultura, as aulas de forno e fogo, de higiene, de costura, reparo e bordado eram ingredientes essenciais formao familiar e profissional da mulher do meio popular. A formao moral e religiosa levaria as moas e futuras mes a aprenderem o melhor caminho, a melhor atitude e a melhor maneira de proceder.
197 PORTO, Rubens. Cidade das meninas. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942, p. 61. 198 PORTO, 1942, p. 57.
98 O ensino das meninas estaria dividido em: 1) estudos primrios para elevar o lado intelectual com as seguintes disciplinas: portugus, histria, geografia, aritmtica, contabilidade familiar, religio, noes de cincias fsicas e naturais, canto e desenho; 2) ensino profissional com especializao em profisses agrcolas (leitaria, criao de aves, criao de coelhos, jardinagem e floricultura) e profisses domsticas (cozinha, copeira, lavadeira, arrumadeira, ama-seca, passadeira e engomadeira), alm de profisses diversas (corte, costura e remendo, moda, bordado, renda, crochets artsticos, cabeleireira, brochura, cartonagem, encadernao, fabrico de cestos e flores, vendedora, tecelagem e tapearia). J a formao familiar consistiria em prepar-las a partir de ocupaes que permitiriam a criao de hbitos e disciplina de trabalho (alimentao, corte, costura, reparao, remendos, reforma, conserto, limpeza de roupas, passar a ferro, arrumar a casa, jardinagem, leitaria e criao). 199
Caberia cidade-jardim assegurar a assistncia mdica e preparar tambm a sada: organizar o prprio enxoval, encaminhar para um emprego que lhe garantisse a sobrevivncia at que o casamento estivesse vista. Para administrar a cidade, Porto aconselhava que fosse entregue as Franciscanas Missionrias de Maria, em razo da experincia acumulada e da formao profissional e moderna que as caracterizavam. 200
Aps o fim do Estado Novo, em 1946, o patrimnio da Fundao Darcy Vargas foi transferido para a Fundao Abrigo Cristo Redentor 201 e, um ano depois, a cidade deixou de ser das meninas, e sim dos meninos, tornando-se uma escola agrcola. A administrao da cidade foi entregue ao Sr. Levy Miranda. Somente posteriormente que a cidade passou a receber meninas. Elas foram incorporadas estrutura do abrigo sem que o projeto inicial fosse considerado. 202
A Fundao Abrigo Cristo Redentor tinha o papel de receber menores carentes, frutos da estrutura social vigente, e lev-los a adquirir tcnicas agrcolas e a produzir uma agricultura de subsistncia, objetivando a reduo dos custos com a manuteno da cidade. Houve tambm uma reduo da quantidade de pavilhes previstos para a construo. O projeto inicial previa a construo de oitenta
199 Para Rubens Porto, a formao profissional corresponde a todas as especializaes necessrias a uma jovem, seja para aguardar o momento de fundar seu lar, seja para que possa faz-lo com mais liberdade, sem ser constrangida pelas obrigaes materiais, ou ainda para prepar-la para o trabalho profissional, a fim de completar a renda familiar nos momentos difceis. Ver PORTO, 1942, pp. 35-57. 200 PORTO, 1942, p. 65. 201 Em 1923, foi criada a Associao Civil Cristo Redentor para assistir mendigos e menores desamparados no Rio de Janeiro. Em 1943, ela se tornou uma fundao pblica. 202 Relatrio do projeto: Estudos de processos de transportes orgnicos, solos e guas subterrneas para o estabelecimento de legislao ambiental e de medidas de remediaes adequadas. Rio de Janeiro: Servio Social da PUC/RJ, 1996.
99 pavilhes com capacidade de abrigar cinqenta crianas cada, mas apenas quarenta foram levantados. Os meninos seriam agrupados nesses pavilhes por idade. 203
Alm do preparo cvico e fsico, da assistncia, da orientao religiosa e educativa, a Cidade, agora dos Meninos, tinha o objetivo de preparar para o trabalho, principalmente para atividades agrcolas que exigissem recursos menores. Querendo ou no, o menino seria lavrador (sem terra, claro) ou marceneiro, isto , um trabalhador simples. Apesar disso, o discurso reinante era de que os menores pobres e abandonados teriam um internato ou um semi-internato privilegiado pelas suas belezas naturais, pelo contato direto com a terra, pelo ambiente saudvel, tranqilo, com ar puro e boas instalaes, dando a aparncia de um verdadeiro ato de caridade. Reunir mais de dois mil menores nesse espao vigiado parecia soluo para os meninos de rua, que tanto incmodo provocavam na cidade do Rio de Janeiro e no centro de Caxias. 204
Como havia espao ocioso na Cidade dos Meninos, devido aos parcos recursos investidos, em 1947, o Ministrio da Sade ocupou como emprstimo cerca de oito pavilhes, para que fosse instalado o Instituto de Malariologia. At aquele momento, o Servio de Malria da Baixada Fluminense (SMBF), instalado em So Bento em 1938, combatia a malria por meio do ataque ao transmissor na fase larvria, nos criadouros. Em 1941, foi criado o Servio Nacional de Malria, que incorporou o SMBF, e, em 1947, o combate passou a ser feito na fase alada (adulta), por intermdio da dedetizao domiciliar. Nesse perodo, iniciou-se uma campanha de erradicao da malria em que o D.D.T. passou a ser utilizado em larga escala no estado do Rio de Janeiro e em todo o pas, reduzindo drasticamente o nmero de casos positivos, algo que estimulou o consumo do pesticida. Para atender a essa necessidade, o Instituto de Malariologia planejou a construo de uma fbrica de HCH (Hexacloro Ciclo-Hexano, tambm conhecido como BHC). A fbrica foi inaugurada em 1950, na Cidade dos Meninos, e foi construda com recursos do Servio Nacional de Malria, do Servio Nacional de Febre Amarela e do Servio Nacional de Peste, subordinados ao Ministrio da Educao e Sade. A Fundao Rockfeller tambm se fez presente na inaugurao, j que fornecia recursos e conhecimento em projetos de sade pblica no Brasil. 205
203 Idem. 204 Idem. 205 Atuao do Ministrio da Sade no Caso de Contaminao Ambiental por Pesticidas Organoclorados, na Cidade dos Meninos, Municpio de Duque de Caxias, RJ. Braslia, Ministrio da Sade, 2002, pp. 14- 15.
100 Segundo o relatrio elaborado pela PUC/RJ em 1996, trs fatores foram determinantes para a instalao da fbrica. O primeiro estava associado necessidade de controlar a avassaladora disseminao da febre amarela no pas. O segundo, ao uso comercial do BHC no pas e nos Estados Unidos como poderoso pesticida. E, em terceiro lugar, a chegada de um qumico holands ao Brasil, gerando a possibilidade de o pas tornar-se auto-suficiente frente ao mercado internacional, evitando, dessa forma, a dependncia externa e os riscos com os prazos de entrega muito longos. Alm disso, as necessidades internas de regular a produo, fabricar e baixar os custos do produto, visto como a grande revoluo tcnica de combate s pragas, tambm influenciaram na deciso de sua implantao. A fbrica era composta por: Fbrica (produo, processamento qumico); Biotrio (ala das cobaias); Entomologia (casa do mosquito e do barbeiro); Patologia (ala do hospital); Profiltico; Pavilho (administrao, refeitrio e moradia dos funcionrios); e Necrotrio. 206
A face perversa dessa poltica consiste no fato de ter associado menores a pesticidas e de ter inaugurado a fbrica em 1950, quando a utilizao do BHC estava sendo contestada por diversos pases, por ser cancergeno. A curiosidade que, apesar de os Estados Unidos e a Inglaterra proibirem a comercializao do produto, o Ministrio da Sade instalou a fbrica na cidade cheia de menores e funcionrios pblicos. Em 1952, a Cidade dos Meninos foi atingida por uma exploso, e um incndio na fbrica de gelo atingiu cinco tambores de DDT e HCH, vitimando sete funcionrios. A Fundao Abrigo Cristo Redentor protestou e exigiu que a fbrica desocupasse a cidade. Some-se a isso a suspenso do fornecimento de cloro por uma empresa fluminense, o que obrigaria a fbrica a comprar o produto em lugares mais distantes, encarecendo o produto e aumentando a concorrncia no mercado com as empresas Matarazzo e Cldor. Conseqentemente, o funcionamento da fbrica ficou comprometido e, em 1954, o processo de desativao foi iniciado. Em 1955, foi suspensa a produo de HCH, tendo continuidade apenas a manipulao do D.D.T. Algumas unidades do Instituto de Malariologia foram transferidas para So Cristvo e Minas Gerais; entretanto, os laboratrios e a fbrica permaneceram na cidade e, somente em 1962, a fbrica foi definitivamente fechada. 207
206 Relatrio do projeto: Estudos de processos de transportes orgnicos, solos e guas subterrneas para o estabelecimento de legislao ambiental e de medidas de remediaes adequadas. Rio de Janeiro: Servio Social da PUC/RJ, 1996. 207 Atuao do Ministrio da Sade no Caso de Contaminao Ambiental por Pesticidas Organoclorados, na Cidade dos Meninos, Municpio de Duque de Caxias, RJ. Braslia: Ministrio da Sade, 2002, p. 15.
101 Apesar do pouco tempo de funcionamento, a fbrica produzia BHC para atender ao mercado interno, ou seja, uma quantidade nada desprezvel. Cerca de quatrocentas toneladas do produto foram abandonadas no local, e o Instituto de Malariologia foi transferido para Minas Gerais. O p existente se espalhou pelo local, contaminando rios, solo e a populao residente. A ao criminosa do Ministrio da Sade, consistente em instalar na Cidade dos Meninos a fbrica de BHC e, posteriormente a seu fechamento, no ter assegurado o transporte do produto qumico, apenas uma das faces do descaso para com a populao ali residente. O projeto da Cidade para Menores segregou crianas e adolescentes em um espao vigiado e contribuiu para a instalao de um quadro de funcionrios pblicos federais nas imediaes da cidade, com a finalidade de atender os menores e atuar na fbrica. J a produo do pesticida foi largamente utilizada nas lavouras e no combate malria. Em 1947, havia 7.044 casos positivos de malria em Caxias. Em 1949, 323 casos e, em 1955, apenas quatro casos. 208 A erradicao da malria poderia ser comemorada com sucesso se o preo pago no tivesse sido a contaminao do solo, dos rios, da produo agrcola e, principalmente, dos menores e da populao local.
II.6 A Fbrica Nacional de Motores e a cidade imaginada
O projeto de colonizao e de desenvolvimento industrial do Estado Novo deixou marcas profundas em Caxias por meio da instalao da FNM. O projeto de cidade industrial, idealizado e colocado em prtica, estava impregnado de uma concepo de nacionalidade e de sociedade. Dentro dessa lgica, a sociedade idealizada era hierarquizada e ordenada a partir das orientaes do poder central, visto como provedor das necessidades bsicas do homem e condutor da nao sua vocao: o progresso e a felicidade. A construo da Siderrgica de Volta Redonda e da FNM so expresses da aliana estabelecida entre o governo brasileiro e os Estados Unidos em fins da dcada de 1930 e incio da de 1940. De um lado, um impulso na promoo de uma indstria de base que assegurasse a expanso do capitalismo no Brasil a partir do desenvolvimento industrial. De outro, a criao de um espao de formao do trabalhador nacional. O jeca sem qualificao poderia vir a ser o trabalhador qualificado a partir do
208 VELHO, 1965, p. 61.
102 treinamento em servio. Alm disso, o ao e a fbrica de motores de avio eram necessrios ao avano das foras contrrias ao nazismo. A influncia da conjuntura de guerra, associada a uma percepo redentora e herica do Estado num sentido estrito, compunham ingredientes reconstrutores do Brasil no perodo de ditadura varguista: autoridade, comando, disciplina, obedincia, treinamento e nacionalismo. Os dirigentes do Estado e seus representantes em Caxias incorporavam o papel de desbravadores, de conquistadores e dominadores da natureza, transformando o que era selvagem em moderno. O que era selvagem no projeto de construo da cidade fabril em Xerm era o lugar: ona, porco-do-mato, cobras e um pntano profundo cheio de jacars e mutucas. As nuvens de mosquitos, os marimbondos e a malria eram ameaas ao projeto modernizador; dessa forma, o rigor disciplinar e o patriotismo eram armas poderosas nessa empreitada civilizadora. Segundo os depoimentos de antigos operrios, possvel identificar algumas das dificuldades enfrentadas por eles durante a fase da construo da fbrica:
Tinha a carpintaria da fbrica, que fazia uns cinco ou seis caixes por dia [...] e morria era gente de malria. 209
Ns viemos para a fbrica pela mata virgem, de menor e com fome [...] S tinha um pavilho e mais nada. Na poca trabalhavam mais ou menos seis mil pessoas e, para virmos para a fbrica, viemos pela serra. Descemos a serra abaixo pelo meio do mato, no tinha a estrada de Santa Rosa, no tinha estrada nenhuma. Entrava por Santa Cruz, que era mata virgem [...] Pra baixo de Xerm, tudo era mato, s tinha a estao que era de tbua, no tinha tijolo. 210
O trem mencionado no depoimento inicialmente transportava madeira de Xerm e, com a instalao da fbrica, passou a transportar peas que vinham do Rio de Janeiro. Eventualmente, trazia passageiros para a fbrica e garantia o escoamento da produo fabril. A Estrada de Ferro Rio DOuro garantia ao local contato com a civilizao, ou seja, com o Rio de Janeiro. Muitos operrios gostavam de ir estao para ver a movimentao que a chegada do trem promovia.
209 SILVA, Andra Manes e Outros. A histria da evoluo urbana dos bairros de Duque de Caxias: bairro de Xerm. Duque de Caxias: FEUDUC, 1998, p. 12. 210 Entrevista feita por Mrcia Neumeyer Benfeita a Benedito Agostinho Alves em 2000. Benedito Alves foi operrio da FNM no perodo da primeira fase, ou seja, da militarizao. A entrevista pode ser encontrada no Banco de Memria do Centro de Memria da Histria da Baixada Fluminense/FEUDUC.
103 O trem vinha de Francisco de S com aquelas peas que eram necessrias para a fbrica. Peas pesadas de mquinas chegavam na Mantiquira. O trem vinha l de baixo do Rio, passava em Belford Roxo e descarregava aqui. 211
possvel ler nos depoimentos dos operrios a afirmao positiva em torno desse projeto modernizador e civilizador do Estado, personalizado na figura do Brigadeiro Guedes Muniz. Transformar um lugar de mata virgem em cidade fabril era, no mnimo, visto como um empreendimento ousado. A escolha do lugar parecia perfeita para a realizao do projeto. Segundo Jos Ricardo Ramalho, a escolha de Caxias para a instalao da FNM se deu por vrios fatores. O genro de Getlio Vargas, Amaral Peixoto, conhecido como o dono do estado do Rio de Janeiro, queria dar regio status industrial. Xerm era uma rea estratgica, em razo da existncia da Estrada de Ferro Rio Douro 212 e da Estrada Rio-Petrpolis, favorecendo, assim, a comunicao e a chegada dos equipamentos necessrios instalao da fbrica, e tambm por causa de suas condies fsicas. O terreno situado no nvel do mar diminuiria os custos. A existncia de gua em abundncia, de reas planas para o campo de pouso e de uma extensa rea de terras vazias coberta por vegetao facilitava sua transformao em terras da Unio. Some-se a isso o fato de a rea escolhida ser protegida por serras e possuir apenas duas possibilidades de acesso, o que a tornava ideal, pela possibilidade de defesa de uma fbrica militar. Ao mesmo tempo, a proximidade de Caxias com a capital da Repblica facilitava o acesso de tcnicos e o escoamento da produo. 213
Todo o processo de instalao e funcionamento da fbrica foi controlado pelo Brigadeiro. O esprito desbravador do Brigadeiro, seu carisma e sua posio de patro, de protetor, de provedor, de autoridade militar eram legitimados pelo Estado Novo. O paternalismo, de um lado, e a severa disciplina, de outro, asseguravam a obedincia hierarquia e aos desgnios do comandante. As punies cometidas contra os chamados desajustados incluam desde o corte de horas e dias trabalhados at prises. O rigor exercido nas relaes de trabalho era garantido pela conjuntura de guerra. A transformao da fbrica em um verdadeiro quartel assegurava a equivalncia
211 Idem. 212 A Estrada de Ferro Rio DOuro foi construda na segunda metade do sculo XIX, com o objetivo de garantir o transporte de gua das reservas da Serra do Tingu para a cidade do Rio de Janeiro. 213 RAMALHO, J. Ricardo. Estado patro e luta operria: o caso FNM. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
104 entre o trabalho na fbrica com a prestao de servio militar, sendo distribudos certificados de reservistas. Por outro lado, os que abandonassem o servio eram tidos como desertores. Ramalho define o projeto da cidade do motor no restrito a uma simples construo de uma fbrica de guerra para produzir motores de avio, mas como um projeto amplo de cidade que inclua: a idia de uma indstria isolada que mantinha seus empregados longe da vida cotidiana de qualquer cidade. Essa idia de isolamento garantia a construo de uma cidade imaginada e concretizada, como se fosse um laboratrio experimental de uma cidade que se transformaria em um modelo de desenvolvimento e progresso; o uso de um discurso sobre a construo do trabalhador: tbula rasa transformada pela tecnologia e pela lgica da promoo do bem comum em uma mquina humana feliz que funcionava; o exemplo concreto de valorizao do trabalhador brasileiro por meio do rigoroso cumprimento das leis trabalhistas, da criao de uma escola de formao de trabalhadores, do fornecimento de refeies gratuitas, da garantia ao atendimento mdico regular, de acesso moradia e ao lazer; o modelo de dominao fabril que desse conta de superar os conflitos de classe a partir de um controle personalizado, carismtico e de perfil paternalista; a criao de uma cidade auto-sustentvel, na qual fosse garantida a produo de seu prprio alimento, suprimindo a presena do atravessador; 214
a construo de uma estrutura bsica que garantisse o comrcio local e a construo de escolas, unidades de sade, uma vila operria moderna e hotis para os engenheiros; a instalao de uma fbrica com mquinas maleveis que pudessem ser adaptadas a outros tipos de produo. A fbrica era tida como uma escola para ensinar os brasileiros, como lugar de criao e instrumento de conquista de uma libertao industrial;
214 Parte das terras da fbrica foi transformada em rea de produo agrcola, de criao de gado, de porco e de aves, visando ao abastecimento do refeitrio da fbrica. Lavradores foram trazidos pelo Brigadeiro e instalados em propriedades da fbrica, recebendo ajuda para construir suas casas. O lavrador assumia o compromisso de exclusividade, vendendo sua produo para a fbrica. Somente o excedente poderia ser comercializado no local ou em feiras vizinhas
105 a construo de uma expectativa de superao da fome, da misria, das doenas, das desigualdades nas relaes de trabalho e a certeza da viabilizao da felicidade operria. 215
O discurso elaborado pelo Brigadeiro, baseado na lgica da igualdade entre todos os trabalhadores e o da garantia da felicidade operria, confrontava-se com uma prtica que promovia a desigualdade, a discriminao e a segregao. At a concluso da vila operria, os trabalhadores viviam em acampamentos organizados a partir de um comando, de uma rigorosa disciplina e de uma hierarquia. Os acampamentos eram divididos em trs categorias: a de obra (os trabalhadores desses acampamentos eram chamados de arigs, 216 no possuam condies de higiene e realizavam todo o tipo de trabalho manual pesado); a de escritrio (administrao); e a oficina (os trabalhadores tinham formao tcnica e os acampamentos possuam higiene e trato pessoal). A partir do depoimento de Benedito Agostinho Alves, ainda possvel perceber a diversidade de situaes existentes nos acampamentos dos arigs. Neles, a presena de menores e de pessoas vistas como criminosas era apenas uma das marcas desse modelo adotado.
Eu nasci em 19... Na realidade, eu fui aumentado aqui na fbrica trs anos porque era de menor. Mas era uma turma de mais de uns trinta... O caso foi o seguinte: o Ministrio veio aqui tirar a carteira do pessoal. Ento, eu no tinha carteira, s registro. Ns todos. Eles perguntaram a idade e eu s tinha 17 anos... Ento, eles falaram: Vocs vo embora porque menor no pode trabalhar aqui, muito perigoso. Mas deixa ns trabalharmos, ganhar o po. Estamos acostumados ao trabalho, somos da roa. E ns fizemos uma choradeira. Bom, o que vocs podem fazer para ficar aqui combinar e autorizar a aumentar a idade de vocs para que continuem na fbrica. A gente autorizou, n? Ento, eu de 17 passei para 20 anos. O meu irmo tinha 16 e foi para 19. Vocs vo pro acampamento l na Rio-Petrpolis, ali no morro. L tinha seis acampamentos e l ficava o vigia por causa do acampamento de menor. Ns tnhamos gente aqui de toda espcie de criminoso. Tinha um camarada que matou em So Paulo e conseguiu fugir. Ento, ele chegou aqui na fbrica e falou com o brigadeiro, que comunicou a So Paulo, dizendo: Olha, o criminoso tal est trabalhando aqui, viu? Ningum vem buscar ele.
215 RAMALHO, 1989. 216 Era chamado de arig o trabalhador sem qualificao que realizava todo o trabalho pesado, inclusive o de desbravar o pantanal num ritmo acelerado, trabalhando dia e noite. O arig no ficava sempre no mesmo lugar, pois acompanhava a obra e alojava-se em acampamentos provisrios. Ver RAMALHO, 1989, p. 61.
106 E no buscava mesmo. Agora, no pode fugir. Ele trabalhava, compreendeu? Recebia o dinheiro dele e no tinha problema. 217
Quando o Brigadeiro necessitava de mo-de-obra, visitava a Delegacia de Caxias e trazia presos para a fbrica, o que indica que seu poder ultrapassava as fronteiras da cidade do motor. O trabalho, a disciplina rigorosa e o sentimento patritico eram vistos como remdio para consertar homens tortos. A fbrica era vista como um grande quartel militar redentor, ou seja, que corrigia comportamentos, integrava o sujeito ao universo do mundo do trabalho por meio da carteira assinada, ensinava um ofcio, alimentava e fornecia assistncia mdica. Em troca, exigia do operrio a alma. O trabalho do operrio no se restringia ao galpo de produo dos motores. Os arigs trabalhavam muitas vezes dia e noite no aterro de pntanos, na construo de infra-estrutura da cidade como: abertura de estradas e ruas, construo de moradias na vila, dos hotis dos engenheiros, da igreja, da escola, do cinema etc. A concepo elaborada no entorno do papel redentor e civilizador do Estado esteve associada ao discurso de construo de um operrio integrado. O trabalhador que havia participado do processo de construo da fbrica incorporava tambm para si o papel de desbravador e defensor da ptria em uma situao de guerra, portanto exemplo de orgulho nacional.
Eu passei trabalhando trs dias ajudando a fazer aquela estrada que vai para Mantiquira. Eu era de menor, sem britadeira, no tinha mquina. Seis homens colocando pedra, aquilo virando carrinho e fizemos aquela estrada. Eu ajudei a fazer. Eu passei trs dias com febre, mas no era de malria, era sarampo. Eu no queria me entregar [...] Quando chegou no outro dia amanheci, passei a mo s tinha caroo e fui para o isolamento, passei l oito dias. 218
A explorao exercida no trabalho e a diviso hierrquica da fbrica eram naturalizadas e apresentadas como necessrias para a realizao do grande empreendimento. A simples organizao de uma comisso para reivindicar qualquer melhoria era entendida pelo Brigadeiro como uma ofensa e um ato de ingratido. A desigualdade era tida como estgios pelos quais o trabalhador deveria passar para conseguir atingir os postos mais elevados na fbrica. O recrutamento dos operrios nos permite identificar a estrutura hierrquica estabelecida pela fbrica.
217 Entrevista com Benedito Agostinho Alves. 218 Idem.
107 Identificao e Origem dos Trabalhadores da FNM (1940/1947) Trabalhadores com formao tcnica especializada em motores de avio. Vieram da fbrica de construo naval do arsenal da Marinha (Ilha do Governador) e da Light. Operrios formados pelos cursos intensivos da Escola Tcnica Nacional: 1. operrio completo grande prtica e largo tirocnio (torneiro, frisador etc.); 2. operrio simples fazia operaes determinadas, como furar atravs do gabarito, tornear e abrir roscas em mquinas de rosquear. Foram atrados para a fbrica por meio de anncios de jornais que circulavam no Rio de Janeiro. Foram trazidos de escolas tcnicas existentes em vrias capitais, principalmente do Nordeste. Operrios para trabalhar nas obras de construo dos prdios e da infra- estrutura da fbrica e da cidade (arigs). A maioria veio das reas rurais, principalmente de Minas Gerais e do interior do estado do Rio de Janeiro. Trabalhadores rurais contratados para produzir alimentos em uma vasta rea (mais de 5 mil hectares). Muitos foram trazidos do Esprito Santo e Minas Gerais. Fonte: Ramalho, 1989, pp. 40-57.
Essas modalidades diferentes e sucessivas de dominao social reforavam a diferena interna do grupo operrio e dificultavam a construo da solidariedade entre os que viviam do trabalho. Apesar das diferenas, as experincias comuns, tanto na fbrica como no lugar de moradia, constituram aspectos importantes da construo da identidade operria. A construo da Vila Santa Alice exemplo da capacidade de organizao de um grupo de trabalhadores. Seu nome anterior foi Vila do Sopapo.
[...] No tinha tijolo, no tinha nada. Fincavam os paus. s vezes de noite vinham dez ou quinze homens. De manh cedo, amanhecia cinco ou seis casas, tudo barreada direitinho. Barreava, cimentava, pintava, ento o nome dela era Vila do Sopapo. 219
A memria operria da fase da construo (1940/1942) e da militarizao (1942/1947) est impregnada do discurso oficial, mas transita tambm pelas
219 Idem.
108 experincias comuns na fbrica, pela vida social local, em que todos, lavradores ou operrios, tcnicos ou arigs, eram identificados como trabalhadores da fbrica. O lugar que ocupavam lhes oferecia experincias e identidade de classe essenciais para a organizao do movimento operrio ps-ditadura. Com o trmino da guerra e do Estado Novo, o projeto inicial se alterou. A fbrica passou por um processo de desmilitarizao e alterao do produto elaborado por ela. Ainda sob o comando do Brigadeiro, a fbrica passou a desenvolver um programa de flexibilizao de sua produtividade. Saram da linha de produo tratores, fusos filatrios, bicicletas, geladeiras e, finalmente, motores de caminho. A FNM foi transformada na principal indstria de montagem de veculos pesados do pas. Nos relatos dos mais velhos, a fase da Sociedade Annima (1947/1968) vista como o incio da entrega da fbrica ao capital internacional. Apesar de a fbrica ser uma estatal e manter-se como de interesse nacional e de utilidade pblica, a presena do capital privado, por meio da compra de aes e da presena de tcnicos italianos no local, expressava o interesse do capital multinacional em dominar a fbrica.
A fbrica comeou a produzir geladeiras, bicicletas [...] A os olhos dos italianos cresceram, viram que a fbrica estava se saindo bem e deram em cima para ficar com a fbrica. Ficavam na Vila Engenheira morando l. Eles eram os chefes, compraram aes [...] A FNM passou a fabricar peas, foi melhorando, dando mais lucro, igual Siderrgica Nacional [...] Elas eram as maiores indstrias do Brasil, depois que veio a Petrobras e que botaram tudo fora. 220
O princpio da fase da Sociedade Annima era de integrar o capital privado ao investimento industrial. A lgica adotada transformou a fbrica e as vilas operrias em um esquema de domnio tradicional do capital. O tempo da fbrica na fase da militarizao tornou-se mtico para muitos, frente realidade ainda mais dura que se anunciava. Essa memria mitolgica impedia, muitas vezes, uma memria mais crtica do processo por parte dos trabalhadores mais antigos. As punies fsicas exercidas sobre os considerados desajustados, a obrigatoriedade do cumprimento de horas extras quando elas eram solicitadas, a ausncia de condies de higiene e de conforto nos acampamentos, assim como a hierarquia injusta e a diferena de tratamento, foram marcas desse processo, apesar de muitas vezes terem cado no esquecimento. Por sua vez, a memria de um tempo com mais direitos foi constantemente utilizada para denunciar a perda de ganhos conquistados.
220 Entrevista com Benedito Agostinho Alves.
109 A implantao do projeto da Cidade do Motor em Xerm mobilizou um significativo nmero de trabalhadores mais de seis mil , sem mencionar seus familiares, envolvidos na produo industrial, na produo de alimentos, na construo da cidade e nos servios. Atraiu camponeses do interior do estado do Rio de Janeiro e de diferentes regies brasileiras, como a de Minas Gerais e a do Esprito Santo, que viram no local a possibilidade de acesso a um pedao de terra e de venda da produo agrcola para a fbrica, o que gerava condies favorveis de permanncia inicial. Uma outra marca desse projeto em Caxias refere-se ampliao de reas no municpio pertencente Unio e da interveno estatal no cotidiano da cidade. Alm de So Bento, Cidade dos Meninos, as terras de Xerm foram incorporadas fbrica estatal. Conseqentemente, as lutas estabelecidas no interior da fbrica, as realizadas no bairro (visando garantir a permanncia dos trabalhadores nas vilas operrias) e as travadas no local pelo movimento campons nas dcadas de 1950 e 1960 levaram seus militantes a uma longa experincia de negociao e conflito com o poder pblico federal. Os projetos instalados pelo poder central em Caxias, nos anos 30 e 40, promoveram a ocupao urbana, a sobrevivncia de um campesinato nas reas perifricas do terceiro e quarto distritos e a incorporao da cidade ao projeto de desenvolvimento industrial. A cidade passou a ser conhecida como a cidade do Motor, do trabalho, do trabalhador. Some-se a isso o crescimento populacional da metrpole carioca e seu crescimento industrial nos anos 40 e 50, promovendo a incorporao de reas vizinhas a seu aglomerado urbano. Oriunda da prpria cidade do Rio de Janeiro e do interior do Nordeste, de Minas Gerais, do Esprito Santo e do estado fluminense, a populao de Duque de Caxias, no incio dos anos 50, chegava a 123.432 habitantes. A crescente movimentao de pessoas que trabalhavam na cidade carioca e residiam em Caxias produziu uma outra imagem da cidade posteriormente: a de cidade-dormitrio.
II.7 Emancipao e interveno no Municpio de Duque de Caxias
Em 1943, os distritos de Caxias, So Joo de Meriti, Xerm e Estrela se emanciparam, compondo o municpio de Duque de Caxias. O novo municpio passou a ser composto por trs distritos: Duque de Caxias, So Joo de Meriti e Imbari. Em
110 1947, So Joo de Meriti se emancipou de Duque de Caxias e, em 1954, o distrito de Imbari deu origem a outros dois distritos, o de Xerm e o de Campos Elseos. O processo de emancipao da cidade esteve relacionado organizao da Unio Popular Caxiense (UPC) e reforma territorial realizada por Amaral Peixoto, durante o Estado Novo. A UPC era formada por jornalistas, mdicos e polticos locais. Segundo seus fundadores, os objetivos iniciais dessa organizao eram: assegurar o encontro de solues para os problemas locais; organizar o trabalho de filantropia e promover o lazer. Para eles, os problemas locais encontrariam solues com o rompimento do domnio do poder de Nova Iguau, criando um novo municpio. Em 1940, foi criada a Comisso Pr-Emancipao, que era formada por Silvio Goulart, Rufino Gomes Jr., Amadeu Lanzoloti, Joaquim Linhares, Jos Baslio, Carlos Fraga e Antnio Moreira. No Manifesto Pr-Emancipao, Nova Iguau era vista como:
Madrasta, que de todos recebendo, a alguns tudo dando, a outros menos que merecem e aos ltimos nada fornecendo, ou melhor ou pior, tudo lhes negando. 221
Esse discurso nos permite perceber dois aspectos: o primeiro est relacionado poltica clientelstica do governo municipal de Nova Iguau, que no estava sendo cumprida, ou pelo menos no de forma satisfatria aos olhos de parte do ncleo de poder poltico de Caxias. O segundo diz respeito necessidade de criao de espaos de maior autonomia e de acesso a um aparato burocrtico novo, j que o anterior no era mais eficiente. Em 1937, comerciantes e membros da UPC fundaram a Associao Comercial de Caxias, fortalecendo e consolidando um ncleo de poder local com maior capacidade de interferncia. Em 1940, foi entregue a Amaral Peixoto um Manifesto Pr- emancipao, mas a reao do governo foi dura, e os manifestantes foram presos. Na lista dos manifestantes, no constava a assinatura de Tenrio. Sua ausncia no movimento pode ser creditada ao fato de que o prefeito de Nova Iguau no via com bons olhos a possibilidade de perda de parte do territrio iguauano, principalmente tratando-se de Caxias, que, em 1942, era a cidade que mais arrecadava imposto na Baixada. Somente aps a priso das lideranas do manifesto, Tenrio Cavalcanti e o Juiz Pinaud atuaram na defesa dos prisioneiros, obtendo a liberdade deles.
221 Apud SILVA, 1995, p. 12.
111 Apesar do esforo da UPC, a emancipao s se realizou a partir do controle dos interventores estadual e federal. Em 1940, Amaral Peixoto organizou uma comisso para estudar uma reforma administrativa do estado do Rio de Janeiro, que foi viabilizada em 1943. O processo de emancipao de Caxias esteve integrado ao projeto de reforma administrativa com base no discurso do Estado Novo, no qual um dos eixos fundamentais era a consolidao do nacionalismo, que tinha no comunismo e no excesso de regionalismo seus principais empecilhos. A emancipao dos locais mais populares ia ao encontro da necessidade de: reorganizar o quadro territorial para melhor control-los e administr-los; cooptar simpatia e apoio popular; e articular seu representante regional, Amaral Peixoto, com as fraes da classe dominante no local. 222
A concepo de municipalidade do Estado Novo no era de uma esfera poltica autnoma, mas de uma clula da nao, ou seja, o fundamento da nacionalidade. O Decreto 223 da reforma territorial foi acompanhado de um outro Decreto-Lei, 224 que fixou a nova diviso administrativa e judiciria e os pormenores da cerimnia de instalao dos novos municpios. A cerimnia seria realizada em todas as sedes dos municpios no mesmo tempo, dia e horrio, com o mesmo rito e finalidade, ou seja, propagar a nacionalidade, uma s vontade e um s sentimento.
[...] o que levaria a populao a festejar o evento, a introjetar o esprito de hierarquia, de ordenada distribuio das responsabilidades e, assim, ao cultivar os sentimentos a outros mais elevados, que buscavam aproximar e fundir os coraes, as inteligncias e as vontades na integrao do Brasil. 225
Dentro dessa lgica, a cidade passava a ser vista como clula fundada no nacionalismo e com pouqussimas possibilidades de autonomia. Logo, a fundao do municpio esteve imbricada a um projeto de identidade nacional com base no discurso de integrao da cidade de Duque de Caxias ao mundo do trabalho. Na letra do Hino Exaltao Cidade de Duque de Caxias, produzido por Barbosa Leite, o autor nos permite perceber a construo feita naquele momento: Toda a cidade uma orquestra de metais em inesperada atividade. Uma orquestra, portanto, ordenada, hierrquica e harmoniosa, construindo riqueza, inspirando belezas que ao
222 SILVA, 1995. 223 Decreto-Lei n 1.055, de 31/12/43. 224 Decreto-Lei n 1.056, de 31/12/43. 225 SILVA, 1995, p. 10. [CFSB1] Comentrio: Ir de encontro a ser contrrio; ir ao encontro de ser favorvel. No sei qual o contexto em questo. Acredito ser o segundo.
112 Brasil oferece. As belezas produzidas pelo trabalho deveriam ser controladas pelo Estado ou pelo capital privado nacional. O lugar da cidade de Caxias est dado: s do trabalho a namorada e sua populao, quando mal adormeces, j est levantando. Assim, a cidade dos que apenas dormem nela, chamada por muitos de dormitrio, atingiria a modernidade numa viso bem positivista, em que o progresso chegaria pela sua vocao: o trabalho. A restrio do espao da cidade a um lugar onde dormem os trabalhadores demonstra o projeto autoritrio implantado pelo Estado Novo. A participao poltica, o direito de eleger o Executivo municipal e o de definir as polticas pblicas eram desejos silenciados. Trabalho, ordem e progresso so palavras-chave que produzem uma memria da cidade ordeira, integrada ao capitalismo e com poder centralizado. A emancipao do municpio, portanto, no garantiu a construo de um aparato burocrtico local com autonomia, mas transformou a cidade em uma extenso do domnio amaralista e getulista, sendo governada por interventores indicados por Niteri.
Domnio de Interventores no Executivo Municipal (1944-1947) Nome Perodo O contabilista Homero Lara foi o primeiro prefeito a responder provisoriamente pelo expediente. 01/01/1944 a 10/09/1944 Heitor Luis Amaral Gurgel (primo de Amaral Peixoto). 11/09/1944 a 01/08/1945 Antnio Cavalcanti Rino Assumiu interinamente por trinta dias (02/08 a 02/09 de 1945) Dr. Jorge Deniz de Santiago 10/01/1945 a 22/03/1946 Gasto Reis 25/03/1946 a 18/10/1046 Jos dos Campos Manhes 18/10/1946 a 13/03/1947 Custdio Rocha Maia 31/03/1947 a 30/07/1947 Tenente Coronel Scipio da Silva 01/08/1947 a 28/09/1947 Fonte: Cmara Municipal de Duque de Caxias.
A viso que Tenrio teceu acerca dos interventores deixa clara sua insatisfao com a presena dos chamados estrangeiros. Para ele, era uma invaso de seu territrio, com o objetivo de disputar voto, prestgio poltico, cargo pblico, controle do aparato burocrtico e acumulao econmica.
113
Homero de Lara assumiu prometendo populao aquilo que ela mais almejava: gua encanada. Realizaram vrios comcios de propaganda do Governo, as valas foram abertas e as verbas gastas, mas a gua, mesmo, nada. No demorou muito e Lara foi substitudo por Heitor do Amaral Gurgel, primo do Governador Amaral Peixoto [...] A prosperidade de Caxias despertou a cobia de aventureiros e polticos inescrupulosos. O jogo e o lenocnio imperavam nos mafus da cidade. A corrupo campeava. 226
Heitor Gurgel, na prefeitura de Caxias, promovia perseguies torpes a meus amigos, nomeao de professoras analfabetas e de gente desclassificada para cargo de proa etc. Figuras inexpressivas, estranhas ao municpio, eram premiadas com o usufruto do monoplio do cimento, da gasolina e do cmbio negro. 227
O curioso que essa fala trata de corrupo, jogo e lenocnio como situaes estranhas cidade. Na verdade, algumas alteraes foram de fato implementadas. Quando Heitor Gurgel assumiu a prefeitura de Caxias, a roleta e as jogatinas no foram impedidas de funcionar. Conseqentemente, o fechamento dos cassinos da cidade carioca, associado ausncia de controle em Caxias, favoreceram a abertura de cassinos no lugar. Os jogos passaram a ser mais sofisticados e a movimentar grande soma de dinheiro, o que levou Joo Bicheiro a investir no setor. O rei do jogo mandou construir um prdio para um luxuoso cassino, situado na Rua Coronel Manoel Telles, investiu recursos na abertura de um pequeno canal para escoar as guas das chuvas e pavimentou parte da rua, a fim de favorecer o acesso dos carros que chegavam do Rio de Janeiro. Segundo Santos Lemos, apesar de o cassino ter sido construdo prximo ao Mangue, um lugar de pobres e bandidos, no era incomodado. Segundo ele, todos ganhavam com a jogatina: os funcionrios, o comrcio, a construo civil e a polcia, que recebia pelo silncio e pela proteo. Ainda afirmava que era preciso considerar o cassino sempre como um espao de espetculo para os moradores do Mangue:
[...] atrados pelas grandes luzes, pelos carros vistosos e pelas madames de vestidos lindos. E estas famlias ficavam nas portas dos barracos, apreciando de longe o movimento do carnaval [...] comentavam os carros, os vestidos, os ordenados dos empregados rezando para que os filhos se tornassem crupiers tambm. 228
226 FORTES, 1986, pp. 98-99. 227 CAVALCANTI, 1954, p. 99. 228 LEMOS, Silbert dos Santos. Os donos da cidade. Duque de Caxias: Grfica Editora Corcovado, 1980, p. 70.
114 Nas memrias de Santos Lemos, a populao do Mangue era promscua, composta de ladres e miserveis que sonhavam com o luxo, embora ele estivesse longe de seu alcance. Apesar do esteretipo constitudo em torno do morador do Mangue, os relatos de Lemos denunciam a dupla face da cidade: misria e acumulao ou prosperidade. Segundo Tenrio, a prosperidade de Caxias estava relacionada ao crescimento econmico, fenmeno chamado por alguns de surto progressista ou era do desenvolvimentismo. evidente que, para a realidade da Baixada Fluminense, houve um crescimento local nas dcadas de 1950 e 1960. Na segunda metade da dcada de 1950, o comrcio de Caxias estava em expanso; havia no municpio 206 indstrias que empregavam 3,18% de sua populao, bem como nove agncias bancrias e uma produo agrcola de CR$ 17.000.000,00. 229 Era o municpio que possua a maior arrecadao e a maior taxa de crescimento populacional da Baixada Fluminense. Possua 61.210 eleitores, sendo o terceiro colgio eleitoral do Estado. 230
Segundo o Censo de 1950, a cidade de D. de Caxias, coloca-se em dcimo sexto lugar em populao em todo o Brasil. Entre 15 cidades de populao acima de D. de Caxias, 10 so capitais de Estados, o que permite a Caxias colocar-se em sexto lugar entre as cidades de Santos, Campinas, Santo Andr, Pelotas e Juiz de Fora. 231
O crescimento populacional da cidade foi maior na dcada de 1960, atingindo aproximadamente 161%. Isso se explica por vrios fatores, tais como: incorporao ao aglomerado urbano carioca; abertura da Avenida Brasil, da Rodovia Dutra e Washington Lus nos anos 50, facilitando o acesso ao Rio de Janeiro e a atrao de novos investimentos nas margens das rodovias; organizao do campesinato fluminense, que, pela mobilizao, garantiu a permanncia na terra e a atrao de outros lavradores para a regio; e a atrao de trabalhadores para dar conta da construo e do funcionamento de mais duas estatais: a Refinaria de Duque de Caxias (REDUC),
229 Censo de 1950, IBGE. 230 Segundo o censo do IBGE, de 1950, havia em Caxias trinta metalrgicas, sete fbricas de cimento armado, vinte de artefato de madeira, sete de bebidas, 18 de cermicas, 14 de produtos qumicos, sete de torrefao de caf, 15 txteis. 231 Jornal Tpico, 25/08/58, p. 5.
115 iniciada em 1957 e concluda em 1961, e a primeira empresa petroqumica brasileira sob a denominao de FABOR (Fbrica de Borracha), em 1962. 232
Posteriormente implantao da REDUC e da FABOR, outras empresas dependentes da matria-prima fabricadas por elas foram instaladas no entorno, compondo o que atualmente denominamos de plo petroqumico. Desse modo, o conjunto de fatores apresentados foi determinante para a constituio da taxa de crescimento populacional de Caxias.
Populao do Estado e da Baixada nos anos 50 e 60. Ano 1950 1960 Crescimento Aproximado Estado 2.297. 194 3.367.738 47% Nilpolis 46.406 95.111 105% Nova Iguau 145.649 356.645 145% So Joo de Meriti 76.462 190.516 149% Duque de Caxias 92.459 241.026 161% Fonte: Censo Demogrfico de 1950 e 1960. IBGE
J no tocante infra-estrutura urbana, a situao era de abandono. Segundo os dados da Agncia de Estatstica do Municpio, em 1957 havia dez mil crianas em idade escolar fora da escola. Os dados do recenseamento do IBGE, de 1950, apontam que, das 20.152 crianas entre cinco e 14 anos, apenas 7.761 sabiam ler e escrever. Dos 92.459 habitantes, cerca de 14.048 homens e 17.741 mulheres eram analfabetos. 233
A maioria das escolas pblicas foi instalada em residncias ou prdios alugados, as chamadas escolas isoladas, sem a menor infra-estrutura. No havia carteiras suficientes e, em algumas, o matagal atraa a presena de cabras, cavalos e vacas. Os professores eram todos indicados pelos governos municipal e estadual, alargando, assim, a poltica do clientelismo. A grande maioria do corpo docente possua apenas o primrio ou o ginasial, o que, de certo modo, confirmava a denncia de Tenrio.
232 O projeto inicial era implantar o Conjunto Petroqumico Presidente Vargas. Entretanto, s foi possvel implantar a fbrica de borracha como unidade da REDUC. Atualmente a antiga FABOR conhecida como Petroflex. 233 Censo demogrfico do estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IBGE, 1955, p. 101, v. XXIII, tomo I. [Srie Regional.]
116 Somente em 1956, a primeira turma de normalistas da Escola Santo Antnio colou grau. O Jornal Tpico afirmava que as professoras com qualificao preferiam lecionar no Distrito Federal, j que l as condies de trabalho e de salrio eram melhores. 234
Na sade, a situao era ainda pior. Havia apenas o Posto Mdico do Sandu e os consultrios mdicos particulares. A nica alternativa era o Distrito Federal. A gua continuava a ser um grande problema. Havia apenas bicas e carros-pipa. Segundo Santos Lemos, a gua era insalubre, imprestvel para beber, obrigando que fosse apanhada em locais privilegiados, e, na maioria das vezes, distante das residncias. Outra possibilidade era a compra nos carros-pipa, o que, segundo ele, era uma fonte de renda para os funcionrios da prefeitura.
A falta de gua potvel deu uma boa fonte de renda para os funcionrios da prefeitura, que ganhavam gordas propinas com o carro-pipa, vend-las s pessoas com recursos, quando, a bem da verdade, a idia da distribuio surgiu no sentido de amenizar as dificuldades das famlias menos favorecidas pela sorte [...] Na Praa do Pacificador, havia uma bica pblica, com guarda municipal vigilante, no para que respeitassem a fila, mas sim para achacar donas-de-casa e negrinhos. Tinham que dar uns trocados para ter o direito de matar a sede. 235
Para ele, a cidade era constituda de humildes lavradores, criadores, operrios e assassinos, em sua grande maioria nordestinos e negros. A cidade crescia graas iniciativa particular, falta de fiscalizao, ao lenocnio, contraveno, total liberdade do comrcio em estabelecer os preos, sonegao de impostos, ao descumprimento das leis trabalhistas etc. Era uma cidade que ele chamava de cidade aberta, onde imperava a corrupo, a prostituio, a maconha, o jogo do bicho, a discriminao racial e a violncia policial, as duas ltimas expressas nas torturas de presos, na arbitrariedade e no extermnio, principalmente de negros. Lemos afirmava que a Delegacia 311 havia instalado em Caxias o pau-de-arara e fabricou a cisterna da morte. A cisterna ficava nos fundos da delegacia e servia de depsito para os corpos dos presos que morriam durante as torturas. Durante a ditadura varguista, o pau corria solto. Para ele, se o lema de nossa bandeira era ordem e progresso, o de Caxias era desordem e progresso. 236
Las Costa Velho dizia, em sua obra, que Caxias era a terra onde policial tambm era bandido. A impunidade para os donos da cidade inviabilizava tambm o
234 Jornal O Grupo, junho de 1957, p. 5; Jornal Tpico, 10 de maio de 1958, p. 3. 235 LEMOS, 1980, p. 59. 236 LEMOS, 1980, p. 26.
117 exerccio do Judicirio. Ele registrou uma conversa que teve com o juiz Hlio Albenaz Alves. O magistrado havia tentado fechar os 22 hotis de luxo que abrigavam a rede de prostituio da cidade.
Rapaz, eu cheguei em Caxias carregado de idealismo e bem-intencionado. Fechamos esses hotis e limpamos a cidade numa campanha nunca vista. No passou muito, comearam as mais variadas presses. Todos reclamavam o prejuzo que era dado ao municpio com o fechamento dessas casas. 237
Os que reclamavam da desordem da cidade, na verdade, dela dependiam. Os chamados rendez-vous e os hotis eram fontes de lucratividade. As rendas obtidas com a prostituio, com o jogo do bicho, com a misria que barateava o voto, com a grilagem, com os baixos salrios e o descumprimento das leis trabalhistas, com a sonegao de impostos, com a formao de clientela e com a violncia renderam a alguns uma acumulao inicial e a possibilidade de deslizar seus investimentos para outros setores como cartrio, transporte coletivo, cassinos, cargos pblicos etc. Ao entrarmos em contato com as vrias memrias de Caxias, um determinado retrato da cidade vai-se desenhando. Cada uma estabelece recortes e vises de mundo das diferentes fraes de poder. Nos relatos da imprensa, de Tenrio e de suas filhas, nas memrias de Santos Lemos, de Guilherme Fuchs e de tantos outros, o retrato da cidade est relacionado a assassinatos, prises, torturas, prostituio, jogo do bicho, discriminao racial, misria, autoritarismo e ausncia de infra-estrutura urbana. Memrias de uma cidade que estava longe de ser ordeira. Por outro lado, a cidade no era to aberta como apontava Lemos. Aps a afirmao de Tenrio na UDN e de sua eleio para o Legislativo fluminense em 1946 (2.800 votos), e para o Congresso Nacional nas eleies de 1950 (nove mil votos), 1954 (42.060 votos) e 1958 (46.029 votos), ele construiu seu prprio partido (numa acepo gramsciana), ou seja, sua organizao de poder, que chamamos aqui de tenorismo, ampliando sua rea de influncia. 238
Santos Lemos dizia que todos na cidade giravam como satlites em torno de Tenrio. At o rei dos bicheiros, que controlava a contraveno, lutando contra seus concorrentes com talo de cheque ou com armas, era protegido por Tenrio. O dono da cidade, tambm de arma na mo, dizia que um bicheiro bastava em Caxias. Contudo, o controle da cidade no era exercido apenas pelo tenorismo, visto que a Delegacia 311,
237 COSTA VELHO, Las. Caxias ponto a ponto. Rio de Janeiro: Agora, 1965, p. 31. 238 GRYNSPAN, 1990, p. 82.
118 tambm de armas nas mos, impunha o domnio sobre a populao empobrecida e assegurava a presena amaralista e getulista. O que temos em Caxias o retrato da poltica construda em uma periferia onde as disputas entre vrias fraes da classe dominante utilizam-se das armas para solucionar os conflitos, isto , recorrem coero. Evidentemente, os amaralistas e getulistas contavam tambm com a rdio, com o DIP, com as Leis Trabalhistas e com o aparato burocrtico estadual e federal para obter o consentimento. O mesmo ocorria com o tenorismo, que se utilizava do clientelismo em meio imensa populao pobre, desprovida de tudo. Como j visto, os empreendimentos realizados pelo poder central em Caxias (a instalao da Comisso de Saneamento da Baixada, do Ncleo Agrcola Fluminense, da FNM e da Cidade dos Meninos) ajudaram a compor a imagem de Getlio Vargas como provedor e modernizador. Por sua vez, o homem da capa preta tambm construiu sua imagem de provedor, de protetor, onde as prticas polticas de assistncia garantiam a formao de seu curral eleitoral. Guilherme Fuchs narra em seu Depoimento de um teuto brasileiro, suas memrias das prticas polticas de Tenrio:
A 27 de setembro, os comerciantes da cidade eram obrigados a fazer contribuies para o Sr. Tenrio, que, por sua vez, fazia sua mdia com o povo, distribuindo fartamente tecidos, mantimentos e brinquedos aos pobres, levando a fama de eterno benemrito [...]. 239
A reciprocidade forjada na distribuio de benefcios e na construo do mito de Getlio Vargas como modernizador e pai dos pobres; e a de Tenrio, como o Robin Hood nordestino, de origem pobre e humilde, que retribua a ajuda recebida por So Cosme e Damio, distribuindo roupas e outros bens, sustentavam uma estrutura capitalista que lucrava com a explorao da misria dos trabalhadores fluminenses. Um capitalismo que contava, em sua estratgia de implantao, com a corrupo do aparato policial e legal, com o apoio da sociedade poltica, que distribua servios, espaos, negcios e mo-de-obra, e com os esquemas de acumulao ilegais como jogatina, prostituio e a rede de hotis a ela associada, alm do jogo do bicho. O conjunto do Captulo II tratou de diferentes aspectos do processo de transio do passado agrrio para o da produo dessa regio enquanto lugar integrado lgica de
239 FUCHS, 1988, p. 25.
119 urbanizao e industrializao, bem como das imbricaes desse processo na composio das fraes dominantes no local e nas disputas polticas. Setores residentes que compunham a fora da tradio, do domnio da terra, da Guarda Nacional e do domnio do poder poltico local tentaram a todo custo manter-se enquanto classe dominante local, revitalizando seus negcios agrrios. Para isso, recorreram ao discurso da decadncia, para legitimar suas solicitaes de investimento pblico na regio. A vinculao do setor agrrio com o comrcio, controlado principalmente por imigrantes europeus, tornou-se uma alternativa frente a uma economia que se alterava e a um crescente aumento populacional. Um outro conjunto de proprietrios, no mais residentes no local, mantm a posse de suas propriedades por meio dos arrendamentos, da criao de gado e de administradores armados que fazem a segurana interna. Durante as trs primeiras dcadas do sculo XX, as interferncias do poder central no lugar beneficiaram proprietrios de terra, especuladores imobilirios e forasteiros que almejavam o enriquecimento a qualquer preo. A verba pblica foi aplicada em saneamento, na recuperao de reas alagadias, nos incentivos fruticultura e na abertura de estradas. Em fins dos anos 20, fraes dominantes locais estavam alinhadas ao domnio de Washington Lus e, dessa relao, obtinham benefcios e cargos pblicos. O controle da massa rural e urbana que reside e/ou trabalha no local exercido pelo poder local por meio da violncia de uma milcia local e da capanagem. Apadrinhamento e capanagem garantem a um forasteiro nordestino acesso propriedade e sua incorporao esfera de domnio do poder local, transformando a trajetria de Tenrio Cavalcanti exemplar para tratar da complexidade operada nessa periferia. A partir dos anos 30, a regio torna-se espao de transbordo populacional da cidade carioca e de presena de investimentos pblicos do centro, remodelando o desenho da localidade. O projeto de colonizao implantado pelo governo Vargas, principalmente durante o Estado Novo, recuperou reas encharcadas e desvalorizadas, beneficiando-as e favorecendo o retalhamento e a especulao de reas prximas. Nele, a regio foi apontada como rea de abastecimento de produo agrcola para a capital, como tradicionalmente era nos sculos anteriores, lugar de abrigo para menores, que tambm seriam integrados produo agrcola. Alm da vocao agrria e de reas de transbordo populacional, parte de seu territrio foi constituda como lugar de trabalho. A construo da cidade do motor
120 apresenta a sociedade imaginada pelo Governo Vargas: ordenada, disciplinada, hierarquizada e nacionalista. Sua arquitetura era composta pela fbrica, pelos hotis dos engenheiros, por uma estrada principal ligada Rodovia Washington Lus, a Estrada de Ferro Rio DOuro, que facilitava o acesso do maquinrio da fbrica, das vilas operrias e de uma rea rural que garantisse o abastecimento agrcola da fbrica por meio do arrendamento das terras pblicas a pequenos lavradores. O projeto de colonizao, associado a um conjunto de investimentos pblicos em estradas e transportes de massa (circulao), a promoo de prticas polticas autoritrias, expressas principalmente pela presena dos interventores e de um aparato de controle policial inescrupuloso, e a propaganda anunciadora dos direitos trabalhistas como concesso afirmaram o domnio getulista e o de seu representante estadual, Amaral Peixoto. As fraes da classe dominante local que se alinharam ao varguismo e que, portanto, foram beneficiadas em diferentes nveis pelo trfico de influncia tornaram-se os representantes do poder central no local. Entretanto, os fortemente ligados ainda estrutura anterior, prisioneiros dos laos polticos com o antigo bloco de poder fluminense/paulista, transitaram entre a adeso ao getulismo ou a oposio a ele. Ao nomear os interventores com poderes discricionrios, inclusive para o enriquecimento rpido e inescrupuloso, o poder central abriu brecha para descontentamentos locais que no almejavam alterar o status quo, mas sim assenhorear- se das fontes de recursos. Em Caxias, Tenrio Cavalcanti se afirmou s foras oposicionistas e construiu seu prprio partido, o tenorismo. Logo, tenoristas e amaralistas/getulistas enfrentaram disputas violentas pelo domnio do poder poltico local. As fraes locais subalternizadas apresentam, no processo de disputas, semelhanas no trato com a massa urbana, na forma e na luta que empregam contra os setores populares: o uso da violncia, das prticas polticas assistencialistas, a linguagem populista e o fortalecimento de figuras carismticas. Nesse sentido, analisar a constituio de uma classe dominante local subalternizada, cuja atividade econmica do ponto de vista do capitalismo central secundria, mas que responde pela coero frente aos setores populares e que ocupa um lugar privilegiado nas relaes de poder, nos pareceu bastante relevante.
121
CAPTULO III AS AMBIGIDADES DO TENORISMO POR MEIO DA LUTA DEMOCRTI CA E AS DISPUTAS PELO PODER POLTICO LOCAL E REGIONAL
Nas disputas pelo poder local em Caxias, amaralistas e tenoristas competiram por votos, cargos e prestgio poltico. Se Amaral Peixoto manteve um perfil conservador em sua trajetria poltica, o mesmo no se poderia dizer de Tenrio Cavalcanti. Ele transitou entre um perfil liberal conservador e um discurso populista e trabalhista, sendo, inclusive, representante das esquerdas nas eleies ao governo do estado do Rio de Janeiro, em 1962. Analisar as disputas pelo poder poltico local e regional, e o processo de transio da trajetria de Cavalcanti, pode nos ajudar a compreender as ambigidades do tenorismo e as disputas realizadas no interior de Caxias. Para analisar o tenorismo, recorremos, neste captulo, aos dados dos resultados eleitorais, aos peridicos, em especial ao jornal criado por Tenrio: Luta Democrtica. Ao investigarmos a Luta Democrtica, percebemos que as ambigidades de seu proprietrio apresentavam-se no jornal com riqueza de detalhes. Aparentemente, parecia existir mais de um jornal com o mesmo nome, sendo possvel identificar uma Luta udenista, uma trabalhista e uma silenciada. Entretanto, ao fazer as leituras da Coluna Escreve Tenrio e dos artigos assinados por ele, defrontamo-nos com suas contradies. Ainda assim, por meio da apresentao das temticas apresentadas no jornal, possvel reconhecer diferenas e permanncias no discurso tenorista.
122 Para facilitar o trabalho, definimos um caminho metodolgico em que fosse possvel fazer um contraponto do discurso tenorista de perfil udenista com o trabalhista. Assim, optamos pela anlise da Coluna Escreve Tenrio durante todo um ano para cada perfil, o que nos permitiria traar uma linha de continuidade para acessar diferentes temticas.
III.1 Tenrio na corte da rainha UDN
Com o fim do Estado Novo, em 1945, foram sendo constitudos os partidos de cunho nacional. Enquanto alguns polticos locais se alinharam ao bloco getulista representado principalmente pelo PSD (Partido Social Democrtico) e pelo PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), Tenrio manteve-se aliado a Edgar de Pinho, um dos fundadores da UDN (Unio Democrtica Nacional). Ele justificava sua deciso de se filiar UDN pela necessidade de uma base slida que o apoiasse e pelo fato de que suas exigncias para compor o quadro do PSD no haviam sido atendidas por Amaral Peixoto. Ele condicionou sua adeso, entre outras coisas, substituio do interventor municipal, Heitor Gurgel, primo e secretrio de Amaral, e demisso de toda a polcia da Delegacia 311. 240 O cacife poltico de Tenrio nos dois ltimos anos do Estado Novo no foi suficiente para que Amaral Peixoto aceitasse suas exigncias. Alm disso, os conflitos anteriores pesavam nessa relao. A filiao de Tenrio UDN tem gerado muitas controversas. O jornalista da Revista Manchete, Carlos Heitor Cony, em 1974, dizia:
Ele tinha tudo para ser o maior populista do Brasil: verborragia, noes gerais de todos os assuntos, valentia pessoal, mstica, folclore especfico de macho, logotipo vendvel e de boa feitura visual, garra para vencer, estmago para resistir aos brdios das campanhas. Apesar disso, ele se filiou UDN, partido de bacharis, de casusticos, homens sem talento e formosura ilibada, cuja nica concesso ao gosto popular era acenar de lenos brancos, que nada traduzia. 241
Sem entrar no mrito dos requisitos apontados pelo jornalista como necessrios a um populista, Cony apresenta Tenrio como um homem popular que se distanciaria do perfil dos udenistas. Certamente,
240 Ver GRYNSZPAN, 1990, p. 82. 241 CONY, Carlos Heitor. Dom Tenrio de Caxias. O Cavaleiro da Extica Figura. Revista Manchete, novembro de 1974.
123 o que favoreceu a entrada dele na UDN foi a relao mantida com a frao de classe da qual Edgar de Pinho fazia parte, sua oposio ao Estado Novo, seu conservadorismo e a aceitao de seu nome entre os udenistas, por conta de sua expressiva votao na Baixada Fluminense. A UDN precisava de representao na periferia, e Tenrio, de um partido de projeo nacional que lhe possibilitasse acesso s esferas do poder regional e nacional. Durante as eleies presidenciais, o candidato da UDN, Brigadeiro Eduardo Gomes, foi derrotado. Tenrio, que se dizia brigadeirista, atribua a ele a responsabilidade de ter livrado o pas da maior das tiranias, a do Estado Novo. A derrota udenista seria amenizada nas eleies de 1947, quando o candidato ao governo do estado do Rio de Janeiro pela UDN, Macedo Soares, venceu as eleies. A vitria do candidato da UDN, em primeira instncia, favoreceria Tenrio, j que, alm de ser um governo de seu partido, ele mantinha relaes pessoais com Soares. Em 1945, os conflitos entre Tenrio e Agenor Barcelos Feio levaram a famlia Cavalcanti a sair de Caxias e a residir na ento Guanabara. No perodo em que conclua seu curso de Direito e residia na cidade carioca, Tenrio e seus homens tornaram-se seguranas do senador Macedo. Aps o retorno a Caxias, Tenrio esteve novamente envolvido em um tiroteio, na porta da prefeitura, deixando-o por meses internado em um hospital no Leblon. Houve uma nova tentativa de priso e Tenrio foi ajudado pelo senador Macedo Soares, que intermediou a sua liberdade junto a Dutra. No entanto, segundo Tenrio, o genro de Vargas, Amaral Peixoto, continuou a ser a figura forte no Estado. Graas, entre outros fatores, vitria do General Dutra, eleito pela coligao PSD/PTB, o amaralismo e o getulismo mantiveram-se como foras hegemnicas. Na sucesso de 1950, Prado Kelly era o candidato a governador pela UDN e Amaral Peixoto pelo PSD. Durante o perodo eleitoral, o Deputado Estadual Tenrio Cavalcanti queixava-se por no ter recebido um nico ato de nomeao do governador Soares para seus partidrios e dizia:
Estava o Sr. Macedo Soares ao lado de Prado Kelly, apoiando-o pessoalmente, sem lhe poder dar uma graa governamental que pudesse favorecer sua candidatura, enquanto Amaral dispunha do controle das delegacias, do DNER, da Caixa Econmica, e todos os servidores por ele nomeados. 242
242 CAVALCANTI, 1954, pp. 155-156.
124 A fala revelava que, embora Soares fosse governador, a mquina administrativa estadual e federal era amaralista e getulista, o que dificultava a distribuio de favores aos udenistas. Por outro lado, a vitria de Tenrio nas eleies de 1946 fez com que ele deixasse de ser um mero cabo eleitoral e um segurana, para tornar-se um parlamentar do Legislativo estadual. O mandato de deputado e a imunidade parlamentar alargaram sua capacidade de atuao na vida poltica da cidade e do estado fluminense. Com a vitria de Amaral Peixoto nas eleies de 50 e o retorno de Vargas ao poder, a UDN foi, mais uma vez, derrotada, e os partidos varguistas foram fortalecidos. O domnio do bloco getulista tambm podia ser sentido em Caxias por intermdio da votao caxiense nas eleies presidenciais.
Votao do Eleitorado Caxiense nas Eleies Presidenciais de 1950 Candidatos Votao Getlio Vargas 8.556 Eduardo Gomes 1.598 Cristiano Monteiro Machado 276 Joo Mangabeira 14 Brancos 556 Nulos 4.547 Total 15.567 Fonte: TRE.
Ainda podemos observar essa presena das foras getulistas no Executivo Municipal e na Delegacia 311, que fabricava candidatos aos cargos de vereador e deputado estadual. No que se refere ao Executivo Municipal, podemos identificar um primeiro momento de domnio do PSD e, nos anos 50, do PTB. O primeiro prefeito eleito de Caxias foi Gasto Reis, 243 do PSD, o qual derrotou Correia Mier, 244 candidato que recebeu o apoio de Tenrio Cavalcanti. Durante a ausncia de Gasto Reis, assumiu a prefeitura o presidente da Cmara, o delegado
243 Dentista e proprietrio de cartrio em Caxias. 244 Correia Mier foi o loteador do bairro 25 de Agosto. Era visto como um homem empreendedor, com recursos financeiros, que planejou e idealizou um bairro com um olhar para o futuro. Ele assegurou espao em seu projeto para escolas, praas e estdio, e pavimentou todas as ruas antes da venda dos lotes. Esperava-se que tais investimentos atrassem aqueles que tivessem melhor poder aquisitivo no local. Os preos mais elevados dos lotes tornaram seu acesso proibitivo s camadas populares. O bairro atualmente considerado a Zona Sul de Caxias. Correia Mier era tambm muito badalado na imprensa, por ser presidente da Confederao Brasileira de Esportes, o que lhe garantia boa visibilidade.
125 Adelson Ramos. O domnio do amaralismo foi fortalecido com a vitria de Gasto Reis, entretanto no podemos deixar de considerar as relaes polticas existentes entre o homem de Amaral na Baixada, Getlio de Moura e Tenrio Cavalcanti. A meu ver, este fato justifica o depoimento de uma das lideranas petebistas de Caxias, o comerciante e advogado Newley Lopes Martins. Forte opositor de Tenrio, no via com bons olhos as concesses que o governo municipal fazia ao deputado udenista.
Getlio de Moura era o homem do Amaral na Baixada, era ele que indicava os cargos em Caxias [...]. Apesar de derrotado em Caxias, Gasto Reis concede a Tenrio tudo o que ele queria. 245
J nas eleies de 1950, o candidato do PTB, Braulino Matos Reis, foi eleito. Os conflitos polticos locais e as suspeitas de fraudes impediram que Braulino assumisse a prefeitura de imediato, sendo, portanto, ocupada pelo presidente da Cmara, Adolfo Davi. Somente depois de dois anos aps as eleies que Braulino assumiu a prefeitura. Segundo Newley, o PSD no deixou Braulino assumir o governo, inventando uma eleio suplementar. Contudo, sua vitria foi confirmada, j que a maioria dos vereadores eleitos era do PTB. Alm disso, Braulino ainda pde contar com o apoio do PR (Partido Rural), comandado pelo Padre Lins e pelo deputado Valdir de Souza Medeiros. Newley afirmava que o governo de Braulino havia representado para Caxias algo como Juscelino e seus 50 anos em 5 para o Brasil:
A maior obra de Braulino foi a honestidade e a persistncia com a coisa pblica. Ele fez a Praa do Pacificador, que no passava de um mangue, ele pavimentou as ruas laterais Presidente Kennedy [...].
Braulino conseguiu fazer seu sucessor. Nas eleies de 1954, o PTB permaneceu no poder ao eleger Francisco Correa. Durante o mandato do petebista, Tenrio implementou uma oposio acirrada na Cmara Municipal contra o governo. Em 1958, em pleno processo eleitoral, o quadro ficou ainda mais conflitante aps a emisso de um mandato de segurana, impetrado pela Cmara contra o prefeito, pelo descumprimento de uma legislao municipal que proibia a permanncia de casas de fogos no centro da cidade. O atraso do pagamento dos professores, a ausncia de habilidade poltica do
245 Entrevista realizada em 1995. Parte dela foi publicada pelo Jornal Tiro de Letra. A entrevista integral foi cedida para a pesquisa pelo jornal. Newley faleceu em 1996.
126 prefeito, a crise dos cofres pblicos municipais e a campanha oposicionista da UDN no garantiram ao PTB a continuidade. Nesse pleito de 1958, a forte presena de Joo Goulart e do candidato ao governo do estado, Roberto da Silveira, em Caxias, no impediu a derrota do candidato do PTB, Braulino de Mattos, que havia concorrido mais uma vez ao cargo. Talvez seja possvel acrescentar que a candidatura de Nelson Cintra, do PSB (Partido Socialista Brasileiro), dividiu em parte a votao trabalhista. Nelson Cintra apresentava-se no Jornal Tpico como o grande desbravador. Comprou a fazenda do espanhol Constantino Regis, quando este resolveu abandonar o local aps o assassinato do filho. Nessa fazenda, ele idealizou um bairro com escola, cinema, clube, cisterna dgua, igreja e praas, nomeado de Jardim Primavera, fundado em 23 de setembro de 1946. 246
Entretanto, o homem ideal para ocupar o loteamento que Cintra planejou deveria ser de origem europia. Alguns europeus (italianos, alemes, tchecos, ucranianos etc.) que fugiram da Segunda Grande Guerra foram atrados e se instalaram no bairro, transformando-o em refgio. O sonho de Cintra, porm, no se realizou. Poucos foram os europeus que vieram. Logo, o loteador resolveu vender os lotes para brasileiros. Em uma entrevista concedida por um dos moradores mais antigos do lugar, fica claro que somente as famlias brancas e com uma renda familiar estvel conseguiam comprar os lotes de Cintra. Como o entrevistado era campista, pobre e biscateiro, tinha de se contentar com o loteamento Santana do Pilar, localizado no interior do bairro, prximo estao de trem. Esse loteamento pertencia Diocese de Petrpolis e o preo era parcelado em longas prestaes. Durante todo o processo eleitoral, Cintra apresentava seu projeto de florescer Caxias, assim como havia feito com Jardim Primavera: planejando-a e organizando-a. O chamado professor apresentava-se como um verdadeiro administrador que no precisava do dinheiro pblico. Ele era um homem de recursos que mantinha quinhentas crianas pobres em escolas e prometia que os impostos passariam a ser pagos nos bancos, que faria a pavimentao de ruas e que construiria escolas para todas as crianas. 247 Essa estratgia acabou lhe assegurando uma presena poltica nas disputas eleitorais seguintes.
246 Tpico, 10 de maio de 1958. 247 Tpico, 7 de junho de 1958 e 26 de julho de 1958.
127 A derrota do PTB, por outro lado, no representou a vitria do candidato da UDN, Joaquim Tenrio, mas sim de Adolpho Davi, candidato de uma coligao liderada pelo PSP (Partido Social Progressista) que j havia assumido a prefeitura como presidente da Cmara.
Prefeitos eleitos em Caxias pelo voto direto de 1947 a 1962 Nome Perodo Gasto Reis PSD 28/09/1947 a 28/12/ 1950 Aderson Ramos (delegado) 28/12/1950 a 06/01/1951 (assumiu interinamente como Presidente da Cmara at as eleies) Adolpho David 31/01/1951 a 06/09/1952 (assumiu como Presidente da Cmara) Braulino de Matos Reis PTB 06/09/1952 a 31/01/1955 Francisco Corra Braulino- PTB 31/01/1955 a 15/01/1959 Joaquim Tenrio Cavalcanti- UDN 15/01/1959 a 31/01/1959 (assumiu como Presidente da Cmara) Adolpho David PSP 31/011959 a 31/01/1963 Euclides Filhares 06/10/1962 a 06/11/1962 (assumiu interinamente) Fonte: Cmara Municipal de Duque de Caxias.
Durante o perodo de 1947 a 1962, o Executivo Municipal esteve sob o controle do PSD e do PTB, exceto quando o Presidente da Cmara Municipal assumia interinamente, como foi o caso do primo de Tenrio, Joaquim T. Cavalcanti, que respondeu pela prefeitura por 16 dias. Apesar de a UDN no ter conseguido alcanar o resultado esperado nas eleies de 50, Tenrio podia se considerar vitorioso, elegendo- se Deputado Federal, cargo que lhe proporcionou afirmao no campo poltico nacional. Maria Benevides definiu a UDN como um partido conservador. Apesar do discurso liberal, era defensor de uma ditadura regeneradora, vista como estratgia para a implantao da democracia. Apesar dos eixos centrais que articulavam seus integrantes, a composio partidria era heterognea, agrupando fraes da classe dominante com perfis diferentes. Ela descreveu os trs udenismos mais expressivos: a) o chamado Histrico, formado por bacharis e legalistas; b) o Realista, que atuava segundo a conjuntura poltica; e c) o Grupo Bossa Nova, que estava preocupado mais com as questes
128 sociais, principalmente aps os resultados eleitorais de 1945 e 1950. Esse ltimo apresentava a UDN como ruim de voto. 248
Tenrio, ao contrrio, ampliava sua votao a cada eleio e sua rea de influncia para toda a Baixada e municpios vizinhos. Nas eleies de 1954 e 1958, ele foi o candidato Cmara Federal mais votado da UDN. 249 Era conservador e atuava segundo seus prprios interesses. Possua um discurso populista, instrumento utilizado para se aproximar de um eleitorado extremamente empobrecido e sem acesso s mnimas condies de vida, apresentando-se como defensor dos nordestinos oprimidos. Mrio Grynszpan apresenta como fatores essenciais do crescimento poltico de Tenrio Cavalcanti os seguintes aspectos: o crescimento eleitoral da Baixada Fluminense; a atuao como advogado em casos de projeo nacional, como o crime do Sacop e o da Machadinha; a imunidade parlamentar e o conhecimento das normas legais; a prtica assistencialista e clientelista; sua associao com grandes nomes nacionais, cavaleiros da moral e da legalidade que lhe outorgavam legitimidade; seu carisma; o mito da invencibilidade; e seu envolvimento em episdios violentos. Um desses acontecimentos foi o caso do delegado Albino Imparato, assassinado juntamente com seu assistente Bereco, trs dias depois de ter invadido a Associao Comercial de Caxias, durante uma conferncia com Afonso Arinos, organizada por Tenrio. O caso ganhou projeo nacional, principalmente quando sua casa foi ocupada pela polcia, o que atraiu lideranas polticas da UDN e representantes da Cmara Federal a Caxias, em manifestao de solidariedade. Tenrio, inclusive, pde contar com a presena e a intermediao de Afonso Arinos. 250
[...] apropriado politicamente o evento pde receber uma leitura em que, operando-se uma inverso, Tenrio, em vez de algum suspeito de participao num crime, figurava como um parlamentar que, na defesa de sua honra, de seu lar e de seus familiares, enfrentou corajosamente, inclusive com risco de vida, uma polcia que agia de forma arbitrria, violando, ela sim, preceitos legais, ignorando suas imunidades e desrespeitando, por conseguinte, o prprio Poder Legislativo. 251
Um outro fator fundamental para o seu crescimento foi a fundao de seu jornal, Luta Democrtica, com tiragem diria significativa (quinhentos mil exemplares nos
248 BENEVIDES, Maria Victria de Mesquita. A UDN e o Udenismo: ambigidades do liberalismo brasileiro (1945-1965). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 224. 249 BELOCH, 1986, pp. 49-54. 250 GRYNSZPAN, 1990, pp. 84-88. 251 Idem, p. 84.
129 bons dias). O jornal era seu instrumento de campanha, de defesa de seu posicionamento poltico, sendo apresentado como chicote do povo contra os poderosos. Sua projeo nacional e importncia poltica operavam como facilitadores na escolha a ser feita frente conjuntura interna da UDN, durante as eleies de 1958. A UDN se coligou com o PTB, lanando o nome de Roberto Silveira 252 para a candidatura ao governo do estado. Uma faco udenista dissidente, insatisfeita com o fato de a UDN no ter lanado candidatura prpria para o Executivo estadual e para o Senado, apoiou o candidatos do PSD. 253
Tenrio apoiou o candidato a governador do estado do Rio de Janeiro do PSD, Getlio de Moura, seu amigo particular e aliado poltico iguauano. Fez campanha tambm para o candidato a vice-governador, o presidente da UDN, Dr. Paulo Arajo. Para o Senado, apoiou inicialmente Miguel Couto e, posteriormente, assegurou espao em seu jornal para Afonso Arinos, cultuando sua formao acadmica e sua carreira poltica, pedindo votos para ele em sua coluna Escreve Tenrio, de 19 de setembro de 1958. Para justificar sua escolha perante o eleitorado fluminense, dizia em sua coluna que se manteria fiel UDN, caso o partido tivesse lanado candidatura prpria. Que a salvao da coletividade estava fora da demagogia do trabalhismo, do culto asfixiante da personalidade, da embriaguez do messianismo. A salvao estaria na democracia liberal. Logo, o nome de Moura expressaria o ideal liberal e conservador. As relaes pessoais e polticas travadas no passado e a forte presena do chefe poltico local expressa na votao da Baixada Fluminense que o reelegeu como deputado federal pelo PSD em 1950 e tambm em 1954 mantinham Getlio de Moura como um nome expressivo. Moura ocupou ainda a vice-presidncia e a presidncia da Rede Ferroviria Federal (1956/61) durante o governo de Juscelino. Controlava tambm
252 Roberto Silveira nasceu em Bom Jesus de Itabapoana (RJ), em 11 de junho de 1923. No incio dos anos 40 entrou para a Faculdade de Direito (RJ), participou do movimento estudantil, sendo eleito presidente do Centro Universitrio do Rio de Janeiro, atuando no apoio guerra contra os nazistas. Em 1942, entrou para o jornalismo atuando no DIP e no Dirio da Manh. Com o trmino do Estado Novo, filiou-se ao PTB e foi nomeado oficial de gabinete do interventor federal, Lcio Meira (1946). Em 1947, foi eleito deputado estadual pelo PTB e formou-se em Direito. Foi reeleito para a Assemblia Legislativa Estadual em 1950 e, em 1951, foi nomeado Secretrio do Interior e Justia do Governo de Amaral Peixoto. Em 1954, foi eleito vice-governador pela coligao PSD/PTB, tendo maior votao que o candidato a governador, Miguel Couto Filho. Tornou-se presidente do PTB fluminense. Em 1958, foi eleito ao governo do Estado pela coligao PTB/UDN/ PSB e PDC (Partido Democrtico Cristo). Seu vice era Paulo Bruno Brito, da UDN. Em 1961, foi vitimado pela queda de seu helicptero, vindo a falecer em 1962. Em 1963, seu irmo, Badger Silveira, elegeu-se para o governo do estado do Rio. Ver: Dicionrio Histrico Bibliogrfico Brasileiro, 1984, v. IV, pp. 3194-3195. 253 O candidato ao Governo do Estado do PSD era Getlio de Moura e seu vice, Celso Peanha.
130 os donos de cartrios, a distribuio de favores provenientes da mquina administrativa local e regional, possuindo uma clientela que se servia de seu ofcio como advogado e de um conjunto de prticas assistencialistas. 254
Tenrio dizia em seu jornal que o valoroso adversrio poltico, Getlio de Moura, nunca fugiu da luta pelo civismo, construiu uma carreira poltica brilhante com seu prprio esforo, destacando-se na funo de administrador da prefeitura de Nova Iguau e como legislador. Comparando Getlio de Moura com o candidato do PTB Tenrio, dizia:
Quem diria que o Sr. Roberto Silveira, que chegou um dia no palcio do Ing pleiteando um lugar no DIP... crescesse tanto. Roberto Silveira um rapaz moo e inteligente a quem a idia do poder deve empolgar como a menina moa a idia de casamento... No demoliu, nem construiu. Acompanha o Sr. Joo Goulart nas assemblias operrias, distribuiu alguns empregos e discursou em inauguraes de melhoramentos rotineiros realizados pelo Estado. 255
Roberto Silveira, porm, no era uma figura poltica inexpressiva. Havia sido eleito deputado estadual em 1947, reeleito em 1950. Em 1954, foi eleito vice- governador, tendo recebido mais votos que o candidato a governador. Durante a campanha eleitoral, Roberto Silveira investiu com prioridade na Baixada Fluminense, fazendo-se presente no cotidiano de Caxias e Nova Iguau. Entretanto, Cavalcanti creditava o crescimento de Roberto Silveira a Amaral Peixoto, que o projetou durante a ditadura varguista, e ao PTB, do Sr. Joo Goulart. Por sua vez, afirmava que Goulart representava a proximidade do trabalhismo com o comunismo, expresso em seu comparecimento aos comcios juntamente com Lus Carlos Prestes. Logo, Roberto Silveira seria a expresso do avano do PTB aliado ao comunismo. Para Tenrio, na medida em que o PCB ainda sofria com a ilegalidade, sua nica alternativa era a aliana com outros partidos. Ao mesmo tempo, o PTB necessitava do apoio comunista para se manter no poder. Nesse sentido, tanto o PTB quanto PCB atuavam como oportunistas. Ainda dizia que Prestes, no ardor da mocidade, poderia ter sido um filsofo, um idealista. Todavia, na dcada de 50, tornou-se um casusta.
Seu nacionalismo hipcrita o pe a salvo do crcere e do exlio por ele outrora experimentado [...] Hoje um indivduo Kar, barbeado francesa... mostrando a unha polida quando leva boca o copo de usque... Os seus correligionrios j no querem enforcar o ltimo burgus... J no cospem para o lado quando
254 DHBB, 1984, v. III, p. 2309. 255 Luta Democrtica, 04/02/1958, p. 5. Coluna Escreve Tenrio, 11/09/1958.
131 encontra na rua um sacerdote. Pelo contrrio, entram nas sacristias a fim de contratar missas de ao de graas para seus clientes eleitorais. 256
Apesar de afirmar que os comunistas perderam as suas convices ideolgicas e tornaram-se meros caadores de voto, paradoxalmente, o comunismo apresentado na Luta Democrtica dos anos 50 como um fantasma ameaador. Visto como antinacionalista, antipatritico, antidemocrtico, materialista, sendo, portanto, anticristo, inimigo da famlia e da moral cvica. Herdeiros da Alemanha, de Marx, de Lnin e de Stalin, representando os interesses do imperialismo russo. 257
As sentinelas da moral, da famlia, do nacionalismo, do combate vida degradada e do crime eram a Igreja Catlica, as Foras Armadas, a escola, os jornalistas catlicos e os polticos que defendiam o interesse da coletividade. Assim, a Igreja deveria ocupar as praas pblicas para combater o materialismo que se alastrava pelas cidades, propagar os princpios cristos e o anticomunismo. Tambm deveria combater o desquite, a degradao familiar e moral. 258
Em uma de suas colunas, intitulada Mo Estendida, Tenrio criticou duramente a posio do cardeal de So Paulo, D. Carmelo. Condenou sua atitude partidria, sua proximidade com Joo Goulart, quando este se aliou a comunistas e socialistas. O cardeal paulista, segundo ele, estaria rompendo com a neutralidade poltica da Igreja Romana, que estava acima e fora de todos os partidos e, principalmente, desacatando um preceito intransigente da Igreja: o combate ao comunismo e ao socialismo. 259
Em seu discurso, ele no identifica a posio anticomunista dos demais cardeais, em especial a do bispo da Diocese de Petrpolis, como partidria. Esse bispo, responsvel pelas Igrejas de Petrpolis, Mag, Caxias e S. Joo de Meriti, proibiu que os catlicos de sua diocese votassem em chapas de candidatos comunistas. Logo, dizia aos catlicos em quem votar. Esse dado nos possibilita identificar mais um grupo de poder significativo na regio: a Diocese de Petrpolis. O apoio assegurado aos candidatos da UDN e do PSD parece inquestionvel. Tenrio elogiava tambm a postura firme do cardeal do Rio de Janeiro contra os inimigos da Igreja. Em sua jornada cvica e crist, dizia o homem da capa preta:
256 Luta Democrtica, Coluna Escreve Tenrio, 13/09/1958. 257 Luta Democrtica, Coluna Escreve Tenrio, 11/01/1958. 258 Luta Democrtica, Coluna Escreve Tenrio, 26/07/1958. 259 No foi possvel apontar neste trabalho a atuao da Igreja Catlica na primeira metade do sculo XX. No conjunto do material visitado por esta pesquisa, havia um silncio a respeito da atuao da Igreja. A escassez de tempo no nos possibilitou empreender uma investigao a outras fontes.
132
Somos catlicos... Nascemos beijando a cruz que a Igreja nos apresenta como instrumento de redeno universal... Abominamos as idias que primam em riscar Deus das conscincias... Colocamo-nos contra as ideologias subversivas. Conhecemos o evangelho que manda dar a Csar o que de Csar e a Deus o que de Deus. Mas ns, cristos, que vivemos na democracia, temos o direito de escolher o Csar, a quem teremos que confiar nossos bens, nossa tranqilidade e nossa liberdade. 260
Esse Cavalcanti liberal, to devotado, catlico apostlico romano, o mesmo freqentador dos terreiros de candombl e dos centros de umbanda. Aquele que afirmava ter o corpo fechado para a morte, que era acusado de vrios assassinatos e que andava desfilando com sua capa preta e sua metralhadora, que ele carinhosamente chamava de Lurdinha. Nos filmes Amuleto de Ogum e Capa Preta e Lurdinha, assim como nas biografias publicadas por suas duas filhas, Maria do Carmo e Sandra Cavalcanti, a vinculao de Tenrio com as religies afro-brasileiras haviam sido herdadas de seu lugar de nascimento. Ele apresentado como um homem muito prximo delas e de um catolicismo popular. Alm disso, os terreiros de candombl e os centros de umbanda eram centros de poder significativos na regio, abrigavam um nmero representativo de eleitores, tornando-se tambm centros de poder da cidade. 261
III.2 As trs faces da Luta Democrtica
III.2.1 A face udenista
Maria Victoria Benevides apresenta em sua obra, A UDN e o udenismo: ambigidades do liberalismo brasileiro, a postura da UDN, durante o governo Dutra, como de oposio cordial. J nos anos 50, foi de oposio real, radical e golpista frente ao governo Vargas. 262 Essa oposio radical est presente nos discursos de Tenrio Cavalcanti ao narrar suas memrias a Arlindo Silva. Est presente tambm em seu jornal Luta Democrtica, principalmente em sua coluna Escreve Tenrio. Assim, a primeira face do jornal Luta Democrtica, chamamos de face udenista, liberal, conservadora e de oposio radical ao governo Vargas e, posteriormente, ao de Juscelino Kubitscheck.
260 Luta Democrtica, Coluna Escreve Tenrio, 21/09/1958. 261 As fontes consultadas no nos revelaram a possibilidade de analisar a contradio existente entre as flutuaes de f de Tenrio Cavalcanti. 262 BENEVIDES, 1981, pp. 61- 87.
133 O jornal Luta Democrtica foi fundado por Tenrio Cavalcanti e Hugo Baldessarin, em fevereiro de 1954. Teve, portanto, pouco tempo para fazer oposio a Vargas, por conta de seu suicdio em agosto. Todavia, de fevereiro a agosto, o jornal empenhou-se em acompanhar a apurao do Inqurito Policial-Militar, instaurado pela Aeronutica em torno do atentado que feriu Carlos Lacerda e matou o Major Rubens Vaz. Durante o perodo, o jornal desempenhou o papel de oposio radical contra Vargas e Amaral Peixoto, acusando-os de corrupo e de mandantes de atentados. 263
Os objetivos do jornal eram intensificar uma campanha antigetulista, promover a viso da oposio udenista junto s camadas populares e promover as campanhas eleitorais de Tenrio e de seus aliados. Durante as comemoraes de quatro anos de vida do jornal, Tenrio dizia que o programa do jornal era a defesa sem trgua em prol do regime democrtico, da defesa da ptria e de seu povo.
Lutando pelos que no podem ou no sabem lutar, amparando os fracos e os pequenos nas suas amarguras e nos seus sofrimentos, compensada pelos aplausos que chegam diariamente e pelo fato de ser proclamada reduto e baluarte de todos quantos tm sede de justia [...]. 264
Apesar da fala, o jornal era um reduto do discurso conservador da direita com uma linguagem popular. Atraa por suas manchetes carregadas de violncia, de noticirios policiais envolventes, de matrias sobre futebol e corridas de cavalo, da apresentao da agenda cultural contendo as programaes, a vida de artistas e os concursos de miss. Nas festas de aniversrio do jornal, Caxias recebia a visita de Pixinguinha, Lus Gonzaga, ngela Maria etc., o que projetava o peridico e seu proprietrio no meio artstico, jornalstico e popular. A Luta Democrtica tornou-se instrumento de oposio aos governos getulistas e de afirmao do nome de Tenrio enquanto parlamentar e jornalista. Os conflitos armados envolvendo o deputado no condiziam com sua nova condio de legalista. A relao entre o Homem da Capa Preta e o Delegado da Polcia de Caxias, Amyl Rechaid, parecia estar mais calma, como afirmava o jornalista da Revista Manchete. Em 1956, o jornalista Nestor de Holanda esteve em Caxias. Nessa poca, Tenrio estava realizando obras em sua casa, nas quais pretendia gastar 12 milhes de cruzeiros para torn-la ainda mais segura. O ttulo da manchete, Reina a Paz em
263 Dicionrio Histrico-Bibliogrfico Brasileiro 1930-1983. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas: CPDOC, 1984, v. III: 1958. 264 Luta Democrtica, 4 de fevereiro de 1958, p. 3.
134 Caxias, reporta-se a um perodo visto como de diminuio das tenses na cidade. Ele recorda os momentos de confrontos passados dizendo que Tenrio sempre foi acusado de causar revolues em Caxias, que era tido como um homem feroz, cercado de bandoleiros, inimigo mais perigoso de Amaral Peixoto e de seu antigo Secretrio de Segurana Pblica, Agenor Barcelos Feio.
Constava, ento, na cidade, que todos os delegados destacados para o Municpio levaram a funesta misso de fazer calar a lurdinha do deputado udenista, assim como, os fuzis, mosquetes, granadas, metralhadoras e at canhes dos homens que guarneciam a residncia do parlamentar. 265
O prprio Tenrio comentou o caso dizendo que, antes, ele vivia em sua casa cercado de, no mnimo, cinqenta cabras armados. Ele dizia que seu exrcito tinha ordem para atirar em quem pisasse em sua calada. Justificava essa atitude dizendo que, naquela poca, a voz geral era de que a polcia queria mat-lo. 266 A paz reinava no momento, segundo Tenrio, porque o atual delegado, Amyl Ney Rechaid, era um inimigo ntimo e sua delegacia no servia de instrumento a polticos. O delegado afirmava que um no temia o outro. Ele relatou ainda que deixou Tenrio trabalhar nas ltimas eleies livremente, apesar de ele ser amaralista. Quando Amaral Peixoto marcou de ir a Caxias, durante a campanha eleitoral anterior, o delegado pediu a Tenrio que sasse da cidade, a fim de evitar conflitos, e o deputado foi passar o dia no Quitandinha. Essa cordialidade, ou cdigos de convivncia poltica entre inimigos ntimos, era no mnimo novidade. Estaria mudando a poltica em Caxias? Por que um no temer o outro? A resposta veio logo em seguida. O jornalista afirmou ter procurado saber quem era o delegado e o apresentou como um homem rico, solteiro, grande industrial que gostava da vida policial. Trabalhou em vrios municpios, desvendou vrios crimes, construiu a delegacia de Nova Iguau e, ento, com seus prprios recursos (dois milhes), estava construindo a de Caxias. A reputao do delegado na cidade era a de um homem duro, que, em vez de prender, matava e que, desde a sua chegada, haviam sido mortos mais de cem bandidos. O delegado dizia que era inveno do povo, mas consentia que, dentro de pouco tempo, esses tipos desapareceriam da cidade. O jornalista ainda comentava:
265 HOLANDA, 1956, pp. 6-9. 266 Idem.
135 O deputado Tenrio afirma que o prprio delegado quem manda matar. O policial, porm, diz que mentira do deputado. Afirma que os ladres e bandidos de Caxias tm morrido em brigas que travaram entre eles mesmos, embora aceite a hiptese de alguns terem sido abatidos em conflitos com a polcia [...]. Famosos facnoras como Furaco, Jorge, os irmos Cabeludo e Slvio, Gaguinho, Juca, Pernambuco e outros perderam a vida, depois da gesto do delegado. E, interrogado sobre o assunto, o delegado informou: Quando a polcia entra em conflito com ladres, claro que defendo a polcia. O que no posso permitir que policiais morram no lugar dos ladres. E Tenrio, abraado ao delegado, disse: Este homem j matou mais do que as duas grandes guerras juntas. 267
Segundo o jornalista, apesar disso, o delegado era um bon-vivant, calmo e alegre. Ele morava em um luxuoso apartamento do Plaza Copacabana, recebia telefonemas de brotos, gostava de promover reunies com os amigos e pagava as despesas. no mnimo curiosa a capacidade apresentada pelo jornalista de fragmentar o sujeito de sua prtica. Mata, mas legal e o Mata, mas faz tornam-se visveis. Est explcita a banalizao da morte, bem como o papel de inquisidor que o delegado assume para si, definindo quem vive e quem morre. Logo, a paz aparente ou temporria no representou um perodo de calmaria; o extermnio e as disputas polticas continuavam fazendo parte do cotidiano da cidade. Outras reflexes podem surgir da leitura do documento. Qual a origem da fortuna do delegado? Teria ele a obtido com o trabalho que realizava? Segundo alguns entrevistados, Rechard no era um homem de posses antes de se tornar delegado, tendo acumulado o que possua com seu trabalho. Ficamos a imaginar o valor do salrio de um delegado na poca. Uma outra questo a perguntar: Teria Tenrio encontrado um adversrio capaz de concorrer com ele no mercado da violncia, intimidando-o? Trs fatores aparecem conjugados e so inerentes a essa paz aparente, a nosso ver. O primeiro est relacionado com a atuao de Tenrio na poltica nacional e sua ambio em concorrer a cargos mais expressivos, como o de governador do estado, o que exigia uma postura poltica que o desvinculasse da violncia e do crime. Exemplo disso era a afirmao de Tenrio de que no possua mais a quantidade de homens que tinha anteriormente para a sua segurana. O segundo tem a ver com a presena de um representante da esfera estadual de peso, com experincia e fama na Baixada. Havia ele sido delegado em Nova Iguau, fazia parte das foras
267 Idem.
136 amaralistas, juntamente com Moura. Logo, se Tenrio em 1958 estava apoiando o candidato ao governo do estado pelo PSD, a relao entre ele e o delegado no teria como ser de confronto. Creio ser interessante registrar que, posteriormente, nas eleies de 1962, Rechaid foi eleito deputado estadual pelo PSD, com 3.800 votos. 268 Portanto, um inimigo ntimo, cujo confronto poderia ser desastroso. Em terceiro lugar, o delegado procurou estabelecer alguns cdigos de boa vizinhana para evitar confrontos. Segundo o prprio Tenrio, ele havia sido consultado quanto escolha do delegado, tendo indicado Amyl para o cargo. Apesar do discurso de paz reinante, um vigiava o outro, o que revelava a permanncia da possibilidade do retorno das tenses. Duas fortalezas, em posies estratgicas de controle uma da outra, estavam sendo construdas e fortificadas. A nova delegacia estava sendo transformada em uma fortaleza, em uma posio que facilitasse o alvejar da casa de Tenrio. Do outro lado, do terrao da fortaleza de Tenrio, era possvel ver a movimentao na delegacia. O projeto de transformao da casa de Tenrio em uma fortaleza impressionante. Vale a pena transcrev-lo na ntegra:
Sua casa ser toda guarnecida por imensas chapas de ao, de grande espessura, fabricadas especialmente em Volta Redonda. Ter trs imensos abrigos subterrneos, prova de qualquer espcie de bombardeio. Nesses subterrneos, h vrias entradas secretas, por labirintos misteriosos, inclusive para automveis. Neles podero se abrigar mais de duzentas pessoas e dez carros. Todas as dependncias da casa tm alapes que, rapidamente, se transformam em elevadores e vo cair nos subterrneos. Na cozinha, que fica nos fundos, h uma sada falsa, tambm por baixo da terra, que vem bater na frente da casa. A escada principal do prdio ter um dispositivo especial que far com que ela se suspenda, sozinha, como escada de navio, e desaparea. Haver, em toda a casa, alm de campainhas de alarme e sistemas especiais de comunicaes secretas, uma rede telefnica interna e uma organizao de ditafones para qualquer de suas dependncias. Tenrio est construindo uma imensa cmara de oxignio, a nica no Brasil, do tamanho da outra, s existente na Alemanha. Alm disso, todas as portas de ao tero segredos de cofres, sendo que h as que abrem, automaticamente para o acesso de automveis. 269
As medidas de segurana tomadas por Tenrio, de um lado, so fruto de sua trajetria de violncia. Segundo o prprio, durante o perodo de 1928 a 1953, ele sofreu 47 ferimentos bala, esteve envolvido em 28 conflitos
268 TRE. 269 Idem.
137 violentos, sendo preso oito vezes. 270 Do outro, a conjuntura do momento era instvel para ele: fazia oposio ao presidente J K e sua poltica desenvolvimentista adotada. Somem-se a isso a incerteza do resultado do pleito de 1958 e a possibilidade da vitria do PTB, o que lhe colocaria em posio de fragilidade. Para se proteger e manter a visibilidade poltica, optou por um grupo menor de seguranas em sua defesa pessoal, investiu em sua fortaleza e em seu jornal. A Luta representou, nesse momento, um dos mais importantes instrumentos de mediao da ao poltica do parlamentar. Para facilitar a compreenso dessa face udenista do jornal, passaremos a analisar a coluna Escreve Tenrio, no ano de 1958. A escolha desse ano se deu por conta dos seguintes fatores: a) em 1958, o jornal estava consolidado, sendo veculo da campanha eleitoral de Tenrio; b) no pleito do ano referido, Tenrio obteve a maior votao entre os udenistas que se lanaram na disputa por uma cadeira do Congresso; e c) a oposio a JK apresenta-se com um perfil ainda mais radical, o que, de certa forma, nos permite identificar com maior riqueza o contedo do discurso poltico do udenista frente a algumas temticas ainda no abordadas. As escolhas temticas selecionadas na coluna de perfil udenista aqui relacionadas podem apontar a posio tenorista diante: a) da poltica econmica de JK; b) das relaes internacionais e; c) do cdigo eleitoral, para que possamos, posteriormente, compar-las com as de perfil trabalhista.
a) Poltica econmica de JK
Tenrio compara Juscelino com a figura mitolgica de caro, traando o perfil literrio da personalidade do presidente a partir da imaginosa seara dos smbolos mitolgicos.
O Brasil da atualidade possui no venturoso filho de Diamantina, um mulo do visionrio caro, que pretendeu galgar os espaos celestiais, usando asas pregadas com cera, que, despendidas pelo calor solar, levaram o vaidoso ao fundo do precipcio. 271
270 BELOCH, 1986, pp. 47-48. 271 Luta Democrtica, 09/01/58, p. 3.
138 Assim como caro, Juscelino havia lanado o pas no vo suicida de seus delrios. Para ele, o vo suicida de JK consistia na faanha de construir uma capital nos cafunds de Goiana, transportando todo o material pelos ares e em suas fantasmagricas metas administrativas. A exemplo de caro, sua aventura pela construo de Braslia e a nsia pelo progresso de seu qinqnio levariam Juscelino a uma queda fatal. Compara ainda JK com Rodrigues Alves. Segundo ele, o reurbanizador da capital era o gigante empreendedor que teve a seu favor a expanso das foras produtivas, a confiana pblica, o crdito no exterior, a estabilidade monetria e uma equipe de tcnicos competentes. J Juscelino cercou-se de auxiliares incompetentes, implementou uma poltica econmica que alimentou a inflao, anulou o crdito externo, desequilibrou o oramento, acelerou a desvalorizao da moeda nacional, sobrecarregou de impostos as exportaes e fez despesas suntuosas para atingir as miragens do turista desenhista de Braslia. 272
Para Tenrio, os principais problemas da economia nacional eram: 1) o da navegao martima e fluvial; 2) o da ampliao de ao; e 3) o do trigo. A evaso de divisas com fretes pesava sobre as exportaes e importaes. As perdas de divisas anuais com as aquisies de ao e de trigo impediam o crescimento econmico. 273
Tenrio prope solues para a crise: 1) substituir os burocratas por tcnicos; 2) obter emprstimos no exterior para investir na marinha mercante, na produo de trigo e de ao; 3) aproveitar ao mximo as matrias-primas nacionais, para manter o equilbrio da balana comercial; 4) fomentar continuamente as produes agrcolas e a pecuria, promover as industriais extrativas de matria-prima, para que os excedentes exportados garantissem uma constncia na formao de saldos disponveis. 274
Na fala de Tenrio, h inclusive uma crtica ao que ele chama de artificialismo industrial de base protecionista exagerada, que pesa sobre as demais fontes de produo. Baseado no discurso da classe dominante rural, ele afirmava que a lavoura, a pecuria e as indstrias extrativistas estariam abandonadas prpria sorte. A superao do subdesenvolvimento estaria no desenvolvimento tcnico da economia agrria, no fim do protecionismo aos produtos nacionais, no combate carestia, que provocava majorao dos salrios do proletariado e dos vencimentos do funcionalismo civil e militar, no fim
139 do controle dos preos agropecurios, na diminuio do imposto de renda e no combate sonegao. 275
Acusa o governo de Juscelino de ser fraudulento e de no prestar contas dos gastos pblicos. O desvio de verbas para a construo de Braslia estaria ameaando os projetos de Valorizao Econmica do Amazonas, de Combate Seca do Nordeste e de Valorizao do Vale So Francisco. Estaria tambm causando dficit pblico, emisses de dezenas de milhes e desequilbrio oramentrio. 276
Para combater a inflao, Tenrio aponta a seguinte receita: 1) reduzir o dficit pblico e controlar o aumento do salrio dos funcionrios pblicos e do salrio-mnimo; 2) impedir a desvalorizao da moeda nacional; 3) combater a sonegao; 4) impedir desperdcios com as metas e os gastos pblicos, isto , gastar somente o que estiver previsto no oramento; 5) no agravar o confisco cambial. 277
As receitas liberais so conhecidas. O que h de mais interessante, portanto, na fala de Tenrio a sua descrena na construo de Braslia, a certeza do fracasso da metas e da queda de Juscelino e a defesa do projeto ruralista como sada para o desenvolvimento, o que explica sua aliana com o que tinha de mais conservador no perodo. Tenrio chamava Juscelino de construtor de obras feitas. Os feitos do governo de JK aparecem como idealizados ou financiados por outros governos. Era o caso dos investimentos no potencial eltrico, de Volta Redonda, da Petrobras e da rede ferroviria. A nica realizao de JK seria a compra de dois aparelhos de aviao de superluxo para as suas excurses recreativas. 278 H um silncio acerca da construo da Refinaria de Duque de Caxias, iniciada em 1957, nas margens da nova rodovia, chamada de Washington Lus. Um nmero considervel de trabalhadores fluminenses foi mobilizado para esse trabalho e sua instalao iria mudar a vida econmica do municpio. Evidentemente que, segundo Tenrio, a Petrobras e seus investimentos eram coisas de Vargas e creio que no havia o interesse de promov-los. A REDUC seria uma iniciativa da Petrobras, apresentada por ele como uma grande empresa. O que nos chama a ateno o silncio, e ele cristaliza a postura de Tenrio. O deputado no fazia
140 a menor questo de dar visibilidade a JK; o esquecimento era uma estratgia poltica para manter o empreendimento fora do debate.
b) Relaes internacionais
Tenrio critica a poltica externa de Juscelino e sua demora em prestar solidariedade ao presidente dos Estados Unidos, aps os agravos sofridos pelo vice- presidente Nixon, durante uma visita ao Peru e Venezuela, na qual manifestantes, chamados por ele de comunistas, protestaram contra a presena do vice-presidente americano. Acusa o imperialismo russo no Leste Europeu de se regozijar com a matana de Budapeste. Contesta a acusao dos russos quando estes afirmam que os Estados Unidos e a Inglaterra foram criminosos em suas atuaes no Lbano e na Jordnia, e que tais polticas expressavam o imperialismo capitalista ocidental. Segundo Tenrio, essas interferncias eram fruto de um pacto entre os aliados e haviam sido feitas por solicitao dos respectivos governos. J no caso russo, era interveno, ditadura. A imprensa russa nada publicava de negativo de seu governo porque no havia liberdade de imprensa, diferente do que acontecia no Brasil, onde a oposio s tinha acesso aos jornais e ao rdio. J a televiso era controlada pelo governo brasileiro, para que o povo no tivesse acesso poltica fraudulenta de JK. 279
Na vspera da chegada do Secretrio de Estado norte-americano, Foster Dulles, Tenrio escreveu em sua coluna: Seja bem-vindo. Para ele, a visita de Foster poderia ser uma retomada da poltica de boa vizinhana que havia sido abandonada pelos ltimos governos norte-americanos. Os Estados Unidos estiveram mais preocupados em reconstruir a Europa do que em investir na Amrica Latina. Os conflitos ocorridos recentemente no Peru e na Venezuela levaram os nortistas a mudar de posio e reabilitar as finalidades da Unio Pan-Americana. Assim, o Brasil poderia esperar muito da cooperao norte-americana, principalmente no terreno tcnico e na concesso de emprstimos a longo prazo, dizia ele. 280
Tenrio defendia os Estados Unidos dos ataques sofridos, afirmando que os americanos h dcadas consumiam mais da metade das exportaes e que, nos ltimos anos, haviam emprestado mais de dois bilhes de dlares, mediante garantias mnimas.
279 Idem, 27/07/58. 280 Idem, 01/08/58.
141 Dizia ainda que os acordos firmados, desde a nossa independncia brasileira, com os Estados Unidos obedeceram sempre a uma poltica elevada e que s trouxeram benefcios. Todo o passado construtivo havia sido renegado por JK. 281
Uma aproximao maior com os americanos seria a sada para a crise econmica brasileira. Impediria o avano comunista e evitaria que o Brasil viesse a se tornar uma das muitas Repblicas Populares satlites da URSS. 282
O discurso de Tenrio explicita a posio da parcela da classe dominante brasileira mais conservadora. Uma fala transvertida de um contedo anticomunista e da concepo dos norte-americanos defensores da liberdade e da soberania americana. Assumia, dessa forma, o discurso capitalista, to presente no perodo da Guerra Fria.
c) Cdigo eleitoral
Tenrio criticava o Cdigo Eleitoral por no garantir a formao partidria com convico ideolgica. Conseqentemente, segundo ele, no havia estabilidade poltica, j que as convenincias polticas que determinavam as fuses. Aliados no mbito estadual tornavam-se antagnicos no Legislativo federal ou em outros estados. O que se via era a impossibilidade de qualquer partido contar com a maioria na Cmara dos Deputados, no Senado e nas Assemblias Legislativas. No havia observncia dos programas partidrios. Para ele, os modelos a serem seguidos seriam o ingls e o norte-americano, em que no havia tamanha pluralidade. J no Brasil, a exigncia de um nmero de eleitores inexpressivo para a obteno de um registro partidrio (cinqenta mil em qualquer parte do pas) produziu 14 partidos, dizia ele, e propunha: 1) unidade dos partidos que possussem similitude de idias e programas em blocos definitivos; 2) para se ter um partido nacional, exigncia de um mnimo de dois milhes de eleitores. 283
Dentro dessa perspectiva, somente os grandes partidos existiriam. Talvez ele estivesse pensando na possibilidade de unificao da UDN com o PSD, mediante a preocupao do domnio do PTB. No p em que as coisas andam, o PSD mais do que nunca obediente ao governo, corre o risco de ser dominado pelas autarquias do PTB. 284
142 Tenrio apontou, em vrias de suas falas, que Juscelino, apesar de ser do PSD, abriu mo de suas atribuies para outorgar a Joo Goulart a escolha dos Ministrios do Trabalho, da Agricultura, da Presidncia e da Previdncia Social, esquecendo que JK foi eleito pela coligao PSD/PTB. 285
As temticas apresentadas indicam vrios aspectos relevantes. A preocupao com o avano do PTB visvel no discurso tenorista. No esforo de se manter considerado no campo conservador, alia-se ao PSD, todavia, critica JK pelo domnio petebista. Tenrio se percebe como subalterno defensor dos pobres. No entanto, atua na defesa dos grandes proprietrios rurais em nvel nacional. Seus textos nada tm a ver com a situao da Baixada, e ele, paradoxalmente, uma figura especfica da Baixada. Ele no tem maior projeo em nvel nacional, mas, por se sentir subalternizado, torna-se uma espcie de defensor da frao da classe dominante mais tradicional, na qual os grandes proprietrios no tm expresso significativa. Enquanto a Baixada crescentemente um local de dependncia direta das formas de desenvolvimento industrial, Tenrio se alia no plano nacional com as foras distantes da realidade local. O silncio com relao Refinaria demonstra a complexidade da posio do personagem: atado a foras mais conservadoras, sequer se d conta de que a Baixada tornava-se continuamente lugar de industrializao acelerada e subalternizada, tal como ele prprio. Sua sobrevivncia poltica depende cada vez mais do voto popular e, embora tente se manter com estrutura prpria, cada vez mais se torna dependente das concesses polticas que o favoream. Quando se refere a Caxias, seu discurso um apelo de investimentos pblicos ou promessa salvadora. As falas acerca da cidade esto carregadas de relatos de suas condies. Segundo Cavalcanti, a precariedade das estradas de acesso ao municpio mantinha a cidade de certa forma isolada. A ausncia de distribuio de gua potvel e de higiene, a fome e a misria transformaram a cidade em foco de doenas. Estatsticas registraram mais de cem bitos infantis em Caxias, no ano de 1957, dizia Tenrio. A tuberculose e a poliomielite espalhavam-se velozmente pela cidade. 286 Como defensor dos injustiados, sua casa tornou-se um refgio para nordestinos e desamparados.
285 Idem, 18/07/58. 286 Idem, 15/11/58.
143 Minha casa, que deveria ser um osis de paz para o repouso, aps o sol a pino das refregas, , ao mesmo tempo quartel-general das minhas lutas, a cruz vermelha dos feridos da alma e do corpo, sem distino partidria, o confessionrio dos que tm alguma coisa a revelar, o pretrio dos que reclamam justia. 287
Ao mesmo tempo, ele apresenta o municpio como um dos mais promissores do Brasil. O futuro brilhante para os nordestinos viria por suas mos e seu esforo, e tambm por intermdio de Getlio de Moura. 288
Em fins de 1958, Caxias foi cenrio de uma tragdia que deixou vrias famlias desabrigadas por conta da enchente que arrasou a Favela do Mangue. Tenrio apresentou-se como um missionrio que recebeu a penosa tarefa de abrigar, vestir, alimentar e representar milhes de flagelados. Para arrecadar auxlios destinados aos desabrigados, criou a CAVEC (Comisso de Auxlio s Vtimas da Enchente de Caxias), obtendo ajuda de polticos e de autoridades pblicas. Finalmente, o apoio de Tenrio ao candidato do PSD, Getlio de Moura, fora recompensado com a presena do Ministro da Sade e do Presidente da LBA, Dr. Mrio Pinotti, a Caxias. Publicamente, o deputado afirmou sua admirao pela presena da enaltecida personalidade do mundo oficial, tecendo vrios elogios atuao de Pinotti. 289 Ao que nos parece, as personalidades do tal mundo oficial, isto , do poder central, o reconhecem mediante o apoio ao PSD e uma catstrofe ameaadora capital. O Ministro comprometeu-se a: 1) por meio do Servio de Endemias Rurais, aparelhar e pr em funcionamento o Hospital Duque de Caxias, construdo custa de contribuies privadas; 2) por intermdio da LBA, construir 1.500 residncias populares para acolher os desabrigados, um posto e uma escola. Tenrio diz, em seu artigo, que o Ministro passou o Natal em Caxias e que estava preocupado com uma possvel epidemia. Os barracos da favela inundada no possuam fossa, e a proliferao de doenas poderia atingir a capital, j que dois teros de seus habitantes trabalhavam no Distrito Federal. 290
A visita lhe assegurou uma audincia com o presidente Juscelino, a fim de solicitar liberao de recursos. Conseqentemente, obteve o repasse de verbas da LBA e do governo federal para a regio. Elas foram utilizadas por Tenrio para construir a Vila
144 So Jos, deslocar os moradores do Lixo para l e estruturar a Fundao da Vila So Jos. Em 1959, alm da Vila e da Fundao, ele construiu o Educandrio Maria Tenrio. Logo, ampliou sua clientela, tendo facilitado o contato permanente e direto com ela. At os dias atuais, a vila conhecida como Vila do Tenrio, como se ela tivesse sido financiada e construda por ele. Essa pequena aproximao de Tenrio com o Presidente contribuiu, de certa forma, para amenizar os ataques feitos ao governo federal. Ainda no esforo de sobreviver no campo conservador, manteve-se, durante o ano 1959, na oposio ao governador eleito, Roberto Silveira. Enfrentou o crescimento de sua popularidade em Caxias, principalmente aps a implantao de uma rede de abastecimento de gua para as casas do centro da cidade, da campanha salvacionista da Educao, em que todos eram convocados ao trabalho voluntrio na montagem de uma sala de aula e na tarefa de ensinar. Discordou do apoio da UDN candidatura de Jnio Quadros, apresentando-se como concorrente. Superestimou sua fora poltica, no conseguindo indicao. J seu antigo aliado, Getlio de Moura, aps a derrota eleitoral, foi recompensado com a nomeao, em 1959, de embaixador extraordinrio do Brasil em Honduras. Posteriormente, viajou para o exterior, com o objetivo de analisar outras experincias ferrovirias, a servio do governo federal, e participou da delegao brasileira na ONU. De certa forma, durante o perodo de 1959 a 1961, Moura esteve pouco presente em Nova Iguau, por conta das viagens e do domnio do PTB no governo do estado. Em 1961, aps a morte de Roberto da Silveira, Celso Peanha assumiu o governo do estado e nomeou Moura Secretrio Estadual de Obras Pblicas. O retorno ao aparelho burocrtico estadual durante o perodo 61/62 possibilitou- lhe uma retomada das disputas regionais e, em seguida, lanou-se candidato a deputado federal pelo PSD. Em contrapartida, Tenrio Cavalcanti no pde se beneficiar com o curto espao de domnio dos conservadores mais tradicionais no estado, por compor agora as foras trabalhistas. essa virada que veremos a seguir, por meio da Luta de perfil trabalhista.
III.2.2 A face trabalhista
Em 1960, Tenrio rompeu com a UDN e candidatou-se ao governo do estado da Guanabara por um partido trabalhista, o PRT (Partido Rural Trabalhista), e recebeu o
145 apoio do PSP (Partido Social Progressista). Alcanou o terceiro lugar, com 220 mil votos, o que favoreceu a vitria do udenista Carlos Lacerda. Essa virada de posio, do udenismo para o trabalhismo, tm tido duas leituras. A primeira refere-se necessidade de procurar outras legendas, em que ele pudesse lanar-se candidato a cargos mais importantes e, ao mesmo tempo, favorecer-se da votao fluminense, que era cada vez mais trabalhista. A segunda, de que essa virada no passava de uma estratgia udenista para fragilizar a candidatura do PTB e das esquerdas. Entretanto, essas duas leituras no so contraditrias e combinam estratgias partidrias e pessoais de Tenrio Cavalcanti. A forte presena do trabalhismo na votao fluminense, principalmente em Caxias, no poderia ser desprezada. De um lado, a popularidade do governador Roberto da Silveira, principalmente em Caxias, onde este se fazia presente com freqncia. Essa popularidade foi ainda ampliada aps a sua trgica morte, expressa pela instalao de importantes lugares de memria na cidade: a Praa Roberto Silveira, localizada frente da sede da prefeitura, com uma esttua do governador, e o Instituto de Educao, que recebeu tambm o seu nome. De outro, a forte presena do getulismo e de seus herdeiros no governo federal. No podemos esquecer que Caxias ficou marcada pelos investimentos do estado: na instalao da FNM, da REDUC e, posteriormente, da FABOR; na instalao do Ncleo Agrcola So Bento; na fundao da Cidade dos Meninos; e na abertura da Av. Brasil e em sua ligao com a Rodovia Washington Lus. Veja na tabela a seguir que os candidatos do PTB e do PSD foram os que obtiveram as maiores votaes nas eleies presidenciais de 1960. Observe que os mais votados foram os candidatos do PTB, com destaque para a votao de Joo Goulart.
Votao dos eleitores de Caxias nas eleies presidenciais de 1960 Total de eleitores: 63.303 Total de votantes: 48.000 Presidente/votao Vice-presidente/votao Henrique Teixeira Lott 16.366 Joo Goulart 19.943 Adhemar de Barros 15.319 Fernando Ferrari 13.744 Jnio Quadros 11.437 Milton Campos 9.394 Fonte: TRE.
Os investimentos do Estado produziram um discurso de que Caxias vivia seu perodo desenvolvimentista, de um progresso que havia apenas comeado. No entanto, essa presena concreta do Estado, tanto no controle exercido sobre a populao quanto
146 nos processo de ocupao e de industrializao, era acompanhada de ambigidades, vistas anteriormente, e de ausncias. A ausncia de infra-estrutura urbana, de investimentos na educao, na sade, na cultura e no lazer transformou a cidade em um depsito de trabalhadores, sem a menor qualidade de vida. Dessa forma, a populao transitava entre a identidade trabalhista e a velha prtica poltica clientelstica. Alm do trabalhismo e do clientelismo, o discurso comunista e as experincias de luta dos trabalhadores na regio constituam outra perspectiva de relao poltica com base na mobilizao e nas reivindicaes coletivas. O prprio Tenrio dizia que Caxias era um foco de comunistas. Logo, para se afirmar politicamente no estado do Rio e competir com a fora da tradio das duas mquinas governamentais, o PSD de Amaral Peixoto e o PTB de Silveira e Goulart, seria necessrio fazer algumas mudanas. Sua sobrevivncia poltica dependia da conquista de cargos eletivos e, conseqentemente, de sua capacidade de competir pelo eleitorado fluminense com o candidato do PTB, Badger da Silveira.
Tenrio, percebendo tambm essas mudanas no eleitorado da Baixada, realizar uma verdadeira converso esquerda, iniciando uma nova ambigidade, que seria a de apoiar as grandes reformas e manter o clientelismo do seu reduto eleitoral. 291
Essa converso esquerda marcou o incio de uma nova face da Luta Democrtica e de seu proprietrio: a face trabalhista, legalista, de aliana com os movimentos sindicais e sociais e de forte contestao Unio Para o Progresso (1960- 1964). Durante essa fase da Luta Democrtica, os movimentos campons, sindical e feminino tiveram acesso garantido ao jornal. Colunas como a Luta Sindical e a Luta Feminina adquiriram carter permanente. A primeira era destinada publicao de informes referentes a direitos trabalhistas, denncias, convocaes para eventos e assemblias. A segunda foi criada em 1962, para atender s demandas das lutas do movimento feminista, principalmente aquelas lideradas pela Associao Feminina da Guanabara, que atuava no combate carestia e sonegao de alimentos. Apesar de o movimento campons no possuir uma coluna especfica, as pginas da Luta Democrtica noticiavam os conflitos pelas desapropriaes de terra em
291 ALVES, 1998, p. 92.
147 Caxias e no Estado do Rio. O registro das tenses e dos confrontos entre polcia e camponeses, entre grileiros e a Associao dos Lavradores Fluminenses, foi bem visvel na Luta. Tenrio era apresentado como mediador e defensor das causas camponesas. As cenas de violncia nas reas conflagradas, com resistncia armada por parte dos camponeses, ganharam destaque tambm em vrios jornais da poca, ao longo dos anos 50 at o perodo do golpe militar. 292
Tambm possvel identificar nesta segunda fase a presena de propaganda, convites e textos dos centros de umbanda e de candombl, o que nos leva a supor que os terreiros passaram a ser mais considerados no processo de disputa eleitoral. No sentido de pontuar algumas das marcas dessa nova fase da Luta Democrtica, optamos por analisar o jornal durante todo o ano de 1962. A escolha do referido ano se deveu ao fato de ser o ano eleitoral em que Tenrio Cavalcanti foi candidato ao governo do estado do Rio de Janeiro por um Partido Trabalhista, sendo apoiado por vrios setores dos movimentos sociais e pelo PCB. Entre os que assinam o manifesto de apoio a Tenrio, podemos destacar: ferrovirios da Leopoldina, trabalhadores da Orla Martima, rodovirios de Niteri, servidores da Marinha de Guerra e do Departamento de Correios e Telgrafos, trabalhadores em empresas ferrovirias da Zona Central do Brasil, lideranas das Associaes de Lavradores (Rio das Ostras, Pedra Lisa, Paracambi, Duque de Caxias etc.), o presidente da Unio das Ligas Camponesas do estado do Rio de Janeiro, trabalhadores de Barra do Pira, trabalhadores das indstrias do acar, doces e conservas, trabalhadores da construo civil, txteis, vidreiros, metalrgicos, vesturios e sapateiros, parlamentares dos partidos coligados, lideranas de esquerda como Francisco Julio e Lus Carlos Prestes e os candidatos comunistas. 293
Impedidos de lanar candidatura prpria, os comunistas se definem pelo apoio candidatura de Tenrio Cavalcanti. No manifesto publicado na Luta, em 22 de maio de 1962, eles apresentam as justificativas dessa deciso: a atuao favorvel de Tenrio ao Movimento da Legalidade, em agosto de 1961; o fortalecimento de candidaturas comunistas e de esquerda em nvel estadual, para ajudar a construir a Frente de Libertao Nacional; e favorecer o debate pblico em torno dos grandes problemas nacionais: imperialismo, latifndio e as limitaes da democracia representativa que
292 Ver GRYNSZPAN, 1987. 293 GRYNSZPAN, Mrio. Lavradores e grileiros na Luta Democrtica. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1982.
148 mantinham excludos do acesso a voto soldados, marinheiros e analfabetos, assim como exclua o PCB da possibilidade de concorrer com candidatura prpria, mantendo-o na ilegalidade. Ao considerar o processo eleitoral como momento privilegiado de debate pblico e de denncia, o apoio a Tenrio tornou-se estratgico. Por meio da Luta Democrtica, o programa poltico defendido pelo Partido Comunista poderia ser largamente difundido, o que favoreceria, de certo modo, a organizao de comits de luta poltica permanente, e no apenas de comits eleitorais de curta durao. Quando Tenrio estabeleceu a aliana com comunistas e com setores dos movimentos sociais no campo e no espao urbano, o programa das esquerdas e as lutas que envolviam a mobilizao popular ganharam visibilidade na Luta Democrtica. Entretanto, possvel identificar na coluna Escreve Tenrio a presena de falas contraditrias de seu autor e seu perfil conservador. Diante da impossibilidade de apontarmos todas as marcas dessa face trabalhista, selecionamos algumas temticas estabelecidas nessa coluna e nos encartes especiais que possam nos ajudar a perceber as permanncias do discurso conservador e o que se apresenta como parte integrante do programa das novas foras polticas que apoiaram a candidatura de Tenrio. As temticas agora apresentadas so: a) relaes internacionais; b) desenvolvimento; e c) reforma agrria.
a) Relaes internacionais
Em um encarte intitulado Como se esmaga uma nao sem sangue, podemos identificar a mudana do discurso do jornal. Portugueses, ingleses e americanos so apresentados como vampiros que sugam o sangue dos latino-americanos.
A Amrica tem uma tradio de liberdade ligada altivez do ndio, seja o aborgine do Brasil, os Incas ou os Maias que a brutalidade espanhola esmagou [...] No sculo passado, os pases latino-americanos conquistaram a independncia quebrando os grilhes que os prendiam explorao de Portugal e Espanha. Logo aps, camos sob o jugo da explorao capitalista da Inglaterra. Deixando a Inglaterra de lado, avanaram na arena internacional o leopardo americano e o seu imperialismo [...]. 294
294 Cartilha para esclarecimento do povo brasileiro. Como se Esmaga uma Nao sem Sangue. O que Aliana para o Progresso. Luta Democrtica, 01 e 02/04/1962.
149 O objetivo do encarte era informar acerca da Aliana para o Progresso. Segundo o encarte, a Aliana para o Progresso dos norte-americanos tinha o objetivo de articular os governos reacionrios e privilegiados, para que continuassem a fome, o atraso e a misria dos povos latinos. Esses pases imperialistas criaram organismos internacionais de farta propaganda para promover a aliana e mascarar a dominao. No Brasil, a aliana impedia a reforma agrria, a Lei de Remessa de Lucros e as reformas de base, to imprescindveis ao desenvolvimento do pas. Assim, a aliana servia para manter as disparidades regionais, impedir o desenvolvimento nacional, impedir o acesso do povo educao, manter o exclusivismo da venda das matrias-primas nacionais para os Estados Unidos, fingir uma poltica de auxlio, manter a explorao dos trustes, acabar com as pequenas e mdias empresas e, principalmente, subordinar os trabalhadores. Estabelecer uma relao entre empregado e empregadores, de maneira que os patres possam fixar a seu bel-prazer uma poltica de boa vontade que o trabalhador deva receber como agradecimento e de cabea baixa. 295
A explorao imperialista e a formao dos trustes estariam levando os latinos fome e misria. A sada para o Brasil estaria nas reformas de base, no retorno ao presidencialismo e no investimento no desenvolvimento nacional. Em um outro suplemento especial intitulado Fome, Atraso e Misria e em um artigo de sua coluna de 4 de abril de 1962, Tenrio apresenta um mapa da fome no Brasil e no mundo, e faz um manifesto pelo desarmamento. Prope o uso dos 120 bilhes de dlares gastos em armamento para acabar com a fome na Amrica Latina, na frica e na sia. Defende o desarmamento, elogia o discurso de Santiago Dantas na Conferncia pelo Desarmamento em Genebra e chama a ateno para o fato de os pases imperialistas viverem da indstria blica, sendo, portanto, dependentes economicamente da poltica do armamento. Tanto o discurso antiimperialista quanto a bandeira pelo desarmamento fazem parte do programa das esquerdas nos anos 60. Enquanto Tenrio apresentava seu jornal como porta-voz dos interesses do povo e do nacionalismo, seu concorrente, o jornal O Globo, era apresentado como testa-de-ferro dos americanos:
O jornal O Globo, do Sr. Roberto Marinho, quase branco, que o Sr. Otvio Malta chama de The Globe, est a servio de seus patres americanos e dos
295 Idem.
150 gorilas brasileiros [...] Aquilo um balco... Azinhavrado por todas as traies cometidas contra o Brasil [...]. 296
O jornal O Globo era tambm apresentado como o porta-voz da fala do Sr. Carlos Lacerda e dos tubares que faziam oposio ao Sr. Joo Goulart. A nova face da Luta Democrtica revela a intensa metamorfose do discurso de nosso personagem. Seu jornal torna-se um porta-voz das concepes de mundo daqueles que compem essa rede de alianas polticas estabelecidas para o pleito de 1962. O que no significa, de maneira alguma, uma radical mudana poltica de Tenrio. Ele transita entre as concesses feitas com os novos aliados e suas matrizes conservadoras, como veremos adiante. Interessante ressaltar que a representao aqui no esgota o real; ao contrrio, so estratgias utilizadas para ocupar assentos mais vantajosos na esfera pblica.
b) Desenvolvimento
Na Coluna Escreve Tenrio, h um conjunto de artigos que discutem o conceito de subdesenvolvimento. Tenrio procura diferenciar o conceito de subdesenvolvimento do de atraso. Para ele, o Brasil no poderia ser enquadrado no perfil de atrasado e inferior. Ele critica a viso dominante no Brasil que considera os povos europeus e o norte-americano como superiores do ponto de vista cultural. Em contrapartida, exalta grandes personalidades brasileiras como Euclides da Cunha, Portinari, Manuel Bandeira, Rui Barbosa, Carlos Drummond e Oscar Niemeyer. Braslia, que no passado aparecia como um mero devaneio do caro brasileiro, surge agora como cone da grandeza de um povo mestio e capaz. Um povo que construiu uma nao nos trpicos e que se tornara modelo para o mundo.
No foi por acaso que se construiu Braslia, e o Brasil d ao mundo o modelo de cidade do milnio 2000. No histria de fada. um dos maiores documentos de cultura de um povo para exemplo e orgulho da coletividade que o realiza. Como expresso, como arte, como arquitetura, como cidade [...] E um povo atrasado no tem tcnicas e cultura para forjar uma estrofe, pintar os garotos de Portinari, erguer Braslia, rasgar a selva. 297
151 Nesse trecho, podemos identificar como o nacionalismo est muito presente em seus artigos, sendo indicado para superar a dominao imperialista. A estrutura agrria dominante mantinha o Brasil na condio de subdesenvolvimento. Ele creditava aos Estados Unidos a manuteno dessa estrutura econmica, que s viria a ser alterada com o investimento contnuo na industrializao. No h estranheza nesse discurso, j que a teoria do desenvolvimento e, posteriormente, a da dependncia faziam parte do debate da intelectualidade e das esquerdas dos anos 60. Todavia, apesar de assumir parte do discurso das esquerdas, de ter apoiado o Movimento da Legalidade, de ser favorvel ao plebiscito, ao presidencialismo e a Joo Goulart, Tenrio apresentava constantemente sua cunha conservadora. Fazia questo de dizer que no era comunista e afirmava o carter democrtico da revoluo industrial brasileira. Para ele, a presena de um exrcito que era modelo de dignidade para toda a Amrica Latina e garantia de liberdade humana distanciava a experincia brasileira das ditaduras, ou seja, a revoluo industrial brasileira estaria distante dos moldes violentos das ditaduras russa e chinesa, pois estaria trilhando um caminho prprio. Na verdade, podemos supor que seu projeto de nao nesse momento era o de um pas capitalista com base na industrializao acelerada, o que o aproximava das fraes da classe dominante desenvolvimentista, resguardando o contedo anticomunista, embora tenha estabelecido acordos estratgicos com comunistas brasileiros.
c) Reforma agrria
Em sua coluna do dia 12 de abril de 1962, Tenrio chama a ateno para a ameaa revolucionria dos camponeses. Para ele, o operariado urbano brasileiro estaria acomodado pelas vantagens e garantias trabalhistas obtidas, no representando nenhuma ameaa revolucionria. J o campons experimentava a radicalidade gerada pelas condies de vida no campo. Se na cidade a presena de um setor mdio, composto por funcionrios pblicos e por tcnicos, dividia o operariado, no campo no havia margem para mascaramento; a luta de classe estava clara. De um lado, estava o fazendeiro e, de outro, a massa camponesa. Ainda preocupado com a possibilidade da revoluo camponesa, Tenrio dirige sua fala para os governos e proprietrios de terra. Ele diz que a Revoluo Francesa havia comeado com um pequeno distrbio e o mesmo poderia vir acontecer no Brasil.
152 O governo federal estaria reagindo com violncia s manifestaes camponesas. Aps a morte do lder campons da Paraba, Joo Teixeira, o exrcito reprimiu o movimento tirando dos camponeses as espingardas pica-pau, de cano de chapu de sol, enquanto os fazendeiros exibiam seus mosquetes, metralhadoras, armas de calibre 45mm e farta munio. A ao repressora do governo, a concentrao de terras e o poder de fogo dos fazendeiros estariam comprimindo os camponeses como azeitonas em prensa. O deputado dizia temer que toque a vez a eles de manejarem a prensa. Podemos reconhecer, em seu discurso, a grande preocupao com a luta de classe no campo e com o intenso uso da coero. Nesse sentido, ele se apresenta como anunciador de estratgias necessrias para impedir a revoluo em curso, como veremos a seguir. Em sua coluna do dia 13 de abril de 1962, ele fez um apelo ao governo para que a reforma agrria fosse feita antes que o povo tomasse as rdeas. Temia que o governo perdesse o controle da situao e que a revoluo comeasse no campo. Era preciso estar atento s Ligas Camponesas, agir com inteligncia, castigando os culpados pela morte do lder campons, a fim de conter a revolta que poderia se alastrar. Dessa forma, a reforma agrria teria duas funes vitais: evitar as tenses no campo e garantir o abastecimento de alimentos para o espao urbano. Durante todo o perodo de 1962, a Luta Democrtica transitou entre o programa poltico dos partidos que compunham sua esfera de aliana, e que sustentava a candidatura de Tenrio Cavalcanti para o governo do estado, e o discurso liberal conservador. Podemos pontuar que, apesar de todas as formas de clientelismo, patronagem, violncia e coero, vrias fraes da classe dominada tentaram regularmente resistir a essas imposies, e uma das expresses o simples voto. Personagem contraditrio, Tenrio Cavalcanti se desloca gradualmente para uma atuao esquerda, mas guardando seu profundo sentimento conservador, como j registrado anteriormente. A escolha tenorista por um partido mais esquerda e por uma aliana com organizaes dos trabalhadores expressava seu esforo em obter um eleitorado at ento pouco valorizado. Trata-se de um esforo de acompanhar a votao da Baixada e, ao mesmo tempo, garantir uma vaga candidatura ao governo do estado, haja vista que sua candidatura pelos grandes partidos seria inviabilizada por conta de sua subalternizao. A estratgia utilizada lhe rendeu uma posio eleitoral surpreendente, como se depreende do resultado das eleies para o governo do estado em 1962.
153
Candidato Partido Poltico Votao Badger da Silveira PTB e PDC (P. Democrtico Cristo) 260.841 Tenrio Cavalcanti PST (P. Social Trabalhista) e PTN (P. Trabalhista Nacional) 224.734 Paulo Fernandes PSD, PRP (P. de Representao Popular) e PRT (P. de Representao Trabalhista). 108.822 Edmundo M. Soares PSB e PL (Partido Liberal) 79.201 Miguel Couto Filho PSP (P. Social Progressista), MTR (Movimento Trabalhista Renovador) e a UDN. 34.135 Fonte: Tribunal Superior Eleitoral.
Apesar de Tenrio ter sido derrotado pelo irmo do falecido Roberto Silveira, Badger da Silveira, sua votao foi expressiva, chegando em segundo lugar. Alm disso, a derrota nas eleies do Executivo estadual no deixou Natalcio fora do jogo poltico. Nesse mesmo pleito, ele havia lanado sua candidatura a deputado federal, sendo eleito para a Cmara Federal com 21.629 votos. A baixa votao obtida nas eleies para deputado federal, se comparada com a expressiva votao alcanada como candidato a governador do estado do Rio de Janeiro, revela a fora poltica da coligao com os partidos de esquerda que apoiaram outras candidaturas mais prximas a seus projetos de sociedade. A projeo alcanada com o resultado eleitoral, ao lado da manuteno das foras trabalhistas, o colocavam, pela primeira vez, ao lado daqueles que, em 1963, assumiram a presidncia da Repblica com Joo Goulart. Portanto, no perodo de 1962 at o golpe de 1964, o jornal Luta Democrtica manteve sua face populista, apoiou as reformas de base, o presidencialismo, combateu o capital estrangeiro, a sonegao de alimentos, tornou-se um espao de divulgao de campanhas populares, das lutas dos movimentos sociais, alm de atacar violentamente o Instituto Brasileiro de Ao Democrtica (IBAD) e expressar sua ostensiva oposio a Jango. Aps a deposio de Joo Goulart, pelo Golpe de 64, a Luta Democrtica perdeu as caractersticas anteriores. Constituiu-se, assim, sua terceira fase: a fase do silncio.
154 III.2.3 A terceira face: o retorno conservador e o silncio
Aps o golpe, as colunas destinadas aos movimentos sociais foram extintas, assim como os anncios dos centros de umbanda e candombl, to presentes na segunda fase do jornal. O espao passou a ser ocupado pelas igrejas evanglicas e pelas manchetes sensacionalistas. Os militares eram elogiados, e o discurso trabalhista, silenciado. Apesar da mudana na postura do jornal e na de seu proprietrio, os militares cassaram Natalcio, que se refugiou em seu stio na Vila So Jos. O jornal foi diminuindo sua tiragem e, em 1973, foi arrendado por um grupo de jornalistas liderados por Raul Azedo. O esforo de tentar manter o perfil oposicionista do jornal fez com que os arrendatrios sofressem perseguies. Raul Azevedo chegou a ser preso. A censura e as prises foram tornando a tiragem do jornal irregular e, em 1977, sua edio j era espordica, marcando os ltimos momentos de existncia da Luta Democrtica. A trajetria de Tenrio ps-golpe ser tratada mais adiante, no quarto captulo. Entretanto, os caminhos trilhados por nosso personagem emblemtico e contraditrio, at o momento, nos revelam as formas como o domnio poltico na regio se deu. Por meio do uso da violncia aberta ou mascarada, estabelecem-se as bases das relaes com os trabalhadores na regio e no Brasil. Durante o perodo em que os trabalhadores e as esquerdas avanaram em suas organizaes, e o consentimento no pde ser mantido, a resposta das foras mais conservadoras foi a coero estabelecida pela ditadura militar. Apesar do desmantelamento imposto, analisar o conjunto de experincias das diferentes fraes da classe dominada na cidade, assim como dos impactos provocados pelo golpe, pode explicar uma violncia ainda maior que se abateu sobre a regio e seus habitantes nas dcadas seguintes.
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CAPTULO IV CAXIAS: LUGAR DO TRABALHADOR E DA DESORDEM
Neste captulo, ao tentar mapear as diferentes foras que disputavam o poder local, sem perder de vista as relaes com outras esferas de poder, central ou regional, uma rede de organizaes da sociedade civil foi sendo identificada. Entretanto, tais organizaes, consideradas nas eleies de 62 como representativas e promotoras de um resultado eleitoral surpreendente, ainda no haviam sido tratadas conjuntamente. Ao pensarmos o poder construdo pelos vrios partidos, ou seja, as vrias organizaes da sociedade civil na localidade, faz-se necessrio pensar as interaes que estabelecem. Ao mapear as disputas estabelecidas pelas formulaes de projetos de sociedade e pelos interesses de classe, questes at ento desconsideradas foram surgindo como fundamentais para o entendimento do momento histrico vivido. De um lado, identificamos vrias organizaes: operria, camponesa, feminina, estudantil, cultural e de bairro, lideradas por militantes ou simpatizantes do Partido Comunista. De outro, organizaes religiosas e culturais que legitimaram as polticas elaboradas pela sociedade poltica ou por partidos conservadores, opondo-se concepo comunista, disputando representao, viso de mundo, votos e benefcios. A militncia comunista se caracterizava, sobretudo, pela capacidade de mobilizao, de defesa dos interesses de classe ou das lutas especficas, pela produo de um sindicalismo chamado por muitos de poltico. A nomeao dada ao movimento decorria de sua integrao s grandes polticas nacionais, da estratgia da ocupao e posse da terra, da articulao e solidariedade entre os diferentes movimentos de base, do
156 acesso a parlamentares e assessores ditos de esquerda e da interferncia partidria nas organizaes dos trabalhadores. A oposio a essa prtica e concepo poltica articulava-se com o poder pblico e explicitava a importncia da harmonizao entre as classes. Era defendida, por exemplo, pelos crculos operrios que buscavam mudana, sem necessariamente alterar a estrutura social. A Unio Cultural dos Homens de Cor tambm poderia ser enquadrada nesse ltimo caso. O ano de 1962 tornou-se um ano significativo no bojo dessas disputas: candidatura de Tenrio ao governo do estado, com o apoio de partidos de esquerda; greve geral em defesa de um ministrio trabalhista e do plebiscito que definisse a continuidade ou descontinuidade do parlamentarismo; ampliao das experincias de unificao das organizaes operrias; crescimento da luta contra a sonegao de alimentos no mercado e pelo controle dos preos; afirmao do movimento campons e de suas organizaes regionais e nacionais; fortalecimento do movimento estudantil e feminista etc. Por outro lado, justamente nesse ano que as tenses chegaram a seu limite em Caxias. O saque de 1962, expresso de desordem para muitos, levou os comerciantes locais a ampliarem sua capacidade de organizao na defesa de suas propriedades, criando uma milcia particular. E ainda puderam contar com a contribuio do governo do estado, que instalou no municpio um Batalho da Polcia Militar. Os mais organizados ainda obtiveram indenizaes que aceleraram a recuperao e a ampliao de seus respectivos empreendimentos. O lugar, que muitos desejavam ser o da ordem e do trabalho, sofreu ainda o impacto do golpe militar de 1964. A impossibilidade de manter a hegemonia e de estabelecer o consentimento levou as diferentes fraes da classe dominante no pas a escolherem o caminho da coero, da ditadura. Analisando as intervenes militares em Duque de Caxias, poderemos compreender o desmonte das organizaes dos trabalhadores e at de algumas organizaes da sociedade civil consideradas conservadoras.
IV.1 A presena comunista em Caxias
Os comunistas em Caxias haviam adquirido certa visibilidade. Caxias era um foco de comunistas, dizia Tenrio, referindo-se aos anos 50. A frase nos remete a
157 algumas indagaes como: 1. Quem eram esses comunistas? 2. A presena comunista em Caxias era de fato significativa? Onde atuavam? Durante o levantamento e a leitura das fontes, tentamos localizar essa presena. No Relatrio da Diviso da Ordem Poltica e Social (DOPS), 298 de 1946, h registros da presena comunista identificada pelo aparelho repressor. Inicialmente, o relato de um ato pblico de 1945, com a presena de Lus Carlos Prestes e cinco mil pessoas, o que indica que o ato reuniu um expressivo nmero de manifestantes na cidade. 299
No relatrio, tambm foi possvel identificar aspectos da organizao comunista. Em Caxias, havia um Comit Municipal do PC, sediado na Avenida Duque de Caxias, 30, e vrias clulas: Clula Lus Santana, na Rua Guandu; Clula Mau 1, 2 e 3 Seo; Clula 15 de Novembro; Clula Pedro Ernesto; Clula Antnio Peres, na Cermica Pedro II; Clula 3 de Janeiro a 23 de Maio, no Gramacho; Clula urea Batista, na Rua Camorim; e Clula B2, em Vila Meriti. Embora seja necessrio um olhar desconfiado para os dados e contedo dos relatrios do DOPS, o resultado eleitoral expressa forte penetrao do PC em Caxias.
Votao dos Partidos na Baixada Fluminense Municpio PSD UDN PCB PTB PRP Total Caxias 2.789 1.514 3.066 2.979 92 10.440 N. Iguau 6.608 2.524 2.802 1.519 112 13.365 Mag 1.420 1.213 1.214 441 71 3.959 Fonte: Relatrio da Secretaria de Segurana Pblica. Departamento de Ordem Poltica e Social, de 1946. Estado, Pasta 20. Arquivo Pblico do Rio de Janeiro.
Os dados revelam primeiramente a baixssima representao poltica na Baixada Fluminense. No caso especfico de Duque de Caxias, tnhamos uma populao de pouco mais de noventa mil habitantes e o nmero de eleitores no chegava a 11 mil. Esse ndice pode ser explicado pelo alto ndice de analfabetismo, excluindo-se, dessa forma, um nmero considervel de pessoas. Some-se a isso a composio populacional de migrantes nordestinos e do interior do pas que chegava todos os dias sem documentao ou ainda com seus ttulos por transferir.
298 O DOPS foi criado em 1938, para assegurar a fiscalizao, o controle e efetivar a represso poltica. 299 Relatrio da Secretaria de Segurana Pblica. Departamento de Ordem Poltica e Social de1946. Estado, Pasta 20. Arquivo Pblico do Rio de Janeiro.
158 Em segundo, o resultado das eleies cristaliza a influncia comunista na cidade, tendo o PCB a maior votao. Em seguida, temos duas agremiaes getulistas, o PTB, de cunho trabalhista, e o PSD, representando a fora dos interventores estaduais conservadores e a liderana de Amaral Peixoto. J a UDN, que representava a oposio a Vargas e era o partido de Tenrio Cavalcanti, vinha em quarto lugar na preferncia do eleitorado. Observe que, se somssemos a votao do PCB e do PTB, teramos mais de 60% da votao caxiense nos partidos mais vinculados ao trabalhismo ou concepo socialista. Ou ainda, se reunssemos a votao dos partidos getulistas, PTB e PSD, teramos mais de 50% do eleitorado. Por sua vez, no podemos desprezar a votao da UDN, que, embora menor, representava a oposio ao varguismo e possua um carter mais conservador, composto pelas fraes da classe dominante, subalternizadas esfera do domnio do Estado. Em 1947, em meio ao fortalecimento do discurso da Guerra Fria, o PCB, mais uma vez, caiu na ilegalidade e seus mandatos foram cassados. Assim, os comunistas e simpatizantes transitavam entre o apoio ao PTB e as agremiaes menores de cunho socialista. Os limites impostos pelos prazos reduziram a capacidade efetiva de um trabalho mais aprofundado nos relatrios do DOPS. Logo, limitei o trabalho s entrevistas feitas a antigos militantes e familiares, bem como s leituras das fontes e das dissertaes e teses localizadas. Apesar dos limites da pesquisa, foi possvel mapear presenas comunistas nas lutas travadas em Caxias nos anos 50 e 60. A necessidade de sobrevivncia frente s constantes perseguies e ilegalidade levou muitos militantes comunistas a omitirem sua filiao partidria, adotando codinomes entre si e, muitas vezes, mantendo sua atuao poltica em sigilo, at mesmo para os familiares, no intuito de se proteger e garantir a segurana dos mais prximos. Ao entrevistar familiares de antigos militantes comunistas, percebemos as dificuldades apresentadas por eles em descrever a atuao poltica dos pais, avs etc. Vrias falas mencionaram a lembrana de realizaes de reunies feitas em casa, nas quais as mulheres e as crianas eram impedidas de participar. Dessa forma, os entrevistados apontavam os limites pessoais acerca do conhecimento da trajetria poltica do familiar. Em outros casos, percebemos a presena de mulheres militantes nos movimentos campons, educacional e feminino que eram esposas de comunistas: Josefa Paulino, Armanda lvaro Alberto e Ldia Cunha, respectivamente. A atuao poltica dessas
159 mulheres nos movimentos sociais do campo, no espao urbano e na relao de casamento as transformava em comunistas aos olhos de muitos. Alis, Josefa relatou, em entrevistas realizadas em 1999, que, nos anos 60, resolveu entrar para o PC porque ela e seus companheiros j realizavam as tarefas do partido. Os empecilhos provocados pela escassez de tempo e pelo silncio nos levaram a optar pela identificao da presena comunista nos movimentos sindicais, no movimento cultural, no movimento campons e na participao de organizaes femininas e estudantis. A conjuntura poltica do perodo transitava entre a mobilizao, o esforo de organizao dos trabalhadores, a atuao de pessoas preocupadas com a cultura local, com a discriminao racial e de gnero e as tenses promovidas pelos conflitos no interior da fbrica, pela disputa da terra, pela luta contra o desabastecimento e a inflao, pela implantao de uma polcia privada e, posteriormente, pelo controle militar.
IV.2 A presena comunista no movimento campons
Na reportagem de 11 de maio de 1954, a Luta Democrtica apresentou Xerm como um dos lugarejos que compunham o Terceiro Distrito, 300 portanto uma rea perifrica do centro de Caxias onde as condies de vida de sua populao ainda eram mais precrias do que as do centro. O tom buclico e as matas ainda preservadas eram o que tinha de magnfico no lugar. Segundo a Luta, Xerm possua cinco mil habitantes residentes s da FNM eram duas mil pessoas. Possua ainda pequenas indstrias, como as de concreto armado, leo e anilina. Em Xerm, tambm havia quatro olarias, inmeras fazendas e um pequeno comrcio em torno da Estao de Ferro Rio DOuro e da Praa Joo Pinto. A energia eltrica era restrita aos dois estabelecimentos do governo: a FNM e a represa de Joo Pinto. O comrcio local e as residncias eram iluminados a lampio. Na estrada que ligava as localidades empresa FNM e Rodovia Rio-Petrpolis, somente eram encontrados caminhos abertos enxada e utilizados por carro de boi. O jornal ainda dizia que a populao de Xerm era ordeira e que a maioria vivia da lavoura, do corte de lenha e da produo de carvo, inclusive nas terras da FNM. Apesar do povo ordeiro, havia uma subdelegacia na FNM em que operrios e
300 O Terceiro Distrito era formado pelo atual Terceiro e pelo Quarto Distrito, ou seja, Xerm e Imbari.
160 lavradores que divergiam da poltica do PSD eram espancados. evidente que, em 1954, a Luta estava marcada pela face udenista e pela oposio acirrada ao amaralismo; logo, a acusao de espancamento para os que fizessem oposio ao governo no poderia ser levada ao p da letra. Porm, no se pode ignorar o papel de controle exercido pela subdelegacia. Nas dcadas de 1940 e 1950, a presena de lavradores em Xerm tornou-se mais significativa, principalmente nas terras da FNM, Penha Caixo, Piranema, So Loureno e Mato Grosso. Alm dos desbravadores, isto , dos que viviam na regio h dcadas, uma nova leva de camponeses foi-se alojando no local e em seu entorno, como Capivari e Fazenda Barro Branco (ver Anexos 11 e 12). Quatro aspectos considerveis contriburam para a chegada contnua de lavradores. O primeiro foi a presena de trabalhadores empregados na abertura da Rodovia Rio-Petrpolis, que, sem alternativa de trabalho e moradia, aps o trmino da obra, permaneceram no local, desbravando reas vazias e lavrando a terra. O segundo foi o saneamento realizado na dcada de 1930, que ofereceu melhor oportunidade de permanncia na regio. O terceiro, a proximidade de Caxias com o Distrito Federal e a Estrada de Ferro Rio DOuro, que favorecia o acesso ao espao urbano e, conseqentemente, a trabalhos temporrios que pudessem ajudar a complementar a renda familiar, enquanto o preparo e o plantio da terra eram feitos. O quarto, a formao dos ncleos coloniais, fator que atraiu os lavradores sem-terra. Assim, muitos que no conseguiram obter o seu lote acabaram se alojando nas reas mais afastadas do centro de Caxias. Some-se a esse quadro a crise da fruticultura fluminense no ps-guerra, resultando na expulso dos arrendadores e lavradores que trabalhavam nas chcaras e fazendas. Sem terra e sem emprego, a sada encontrada para muitos foi a ocupao de reas vazias ou abandonadas na Baixada Fluminense. Os lavradores ocupavam terras cedidas por outros camponeses, ocupavam reas vazias de mata fechada ou, ainda, arrendavam terras de grileiros. Desbravavam matas e caavam principalmente o tatu. Vendiam lenha, produziam carvo para se manter, enquanto construam uma cabana de estuque e lavravam a terra. Ainda havia aqueles que arrendaram terras da FNM e abasteciam a fbrica com produtos agrcolas, porcos e aves. Como vimos no Captulo II, o prprio Brigadeiro foi a Minas e ao Esprito Santo para trazer camponeses sem-terra para Xerm. Ao ter assegurado o acesso a um pedao de terra e, ao mesmo tempo, a um mercado
161 consumidor para a sua produo, o lavrador de Xerm encontrou possibilidade de sobrevivncia a partir de seu trabalho. Grynszpan identificou no Censo de 50 e 60 um crescimento representativo de posseiros na Baixada Fluminense. Enquanto na dcada de 1940 os posseiros controlavam apenas 0,03% dos estabelecimentos rurais, em 1960, controlavam 24%. 301
Esses nmeros so significativos, no sentido de apontar a capacidade de organizao dos lavradores em ocupar e assegurar a permanncia na terra. A possibilidade de acesso a trabalho e terra atraiu tambm camponeses sem-terra do interior do estado do Rio e at do espao urbano carioca, como foi o caso de Jos Pureza. Ele era um trabalhador urbano desempregado, comunista e residente na Favela do Groto, na Penha. A partir das orientaes do PCB, decidiu alojar-se em Xerm e tornar-se um campons. O prprio Jos Pureza dizia que nada sabia de plantio, tendo de aprender a ser um campons. Deixou a mulher e os filhos na Favela do Groto e passou a viver nas matas de Xerm, roubando aipim para matar a fome. A convivncia com outros camponeses lhe garantiu uma rede de proteo que lhe deu acesso a uma pequena extenso de terras. Na propriedade ocupada, ele construiu sua cabana, aprendeu a plantar e a caar. Logo, pde trazer a famlia para Xerm. 302
Entretanto, a difcil tarefa de lavrar a terra sem financiamento, sem instrumentos de trabalho adequados e ainda enfrentando conflitos pela manuteno da posse de terras tornava a condio do campons penosa. Eram vrias as situaes de conflitos vivenciadas pelos lavradores em Caxias. Quando a venda de reas ocupadas e lavradas pelo campons resultava na exigncia de desocupao da terra, o novo proprietrio utilizava-se da polcia e da justia para expulsar o lavrador. O conflito tambm era comum quando uma rea grilada era cedida para o lavrador a partir da exigncia de pagamento de arrendamento. A tenso se estabelecia quando o grileiro decidia repass-la aps o seu beneficiamento e valorizao, ou simplesmente quando este se apropriava da produo e expulsava o campons. Os despejos tambm ocorriam quando o lavrador ficava impossibilitado de efetuar o pagamento das rendas exigidas pelo arrendamento, e o grileiro o despejava; o grileiro vendia a posse para o lavrador e este no conseguia pagar as cotas devidas, e
301 GRYNSZPAN, Mrio. Mobilizao camponesa e competio poltica no estado do Rio de Janeiro (1950-1960). Rio de Janeiro, 1987, p. 37. Dissertao de Mestrado pelo Museu Nacional. 302 PUREZA, Jos. Memria camponesa. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982, pp. 17-22.
162 era expulso; um grileiro era desbancado por outro grileiro e este resolvia expulsar os lavradores que ocupavam a rea, desmontando, assim, os acordos feitos anteriormente. A resistncia camponesa era mais comum quando o lavrador arrendava uma terra e estabelecia uma parceria com outros lavradores, configurando uma posse coletiva ou quando terras pblicas arrendadas ou ocupadas por camponeses tornavam-se reas de conflito mediante a solicitao de reintegrao de posse ou ainda pela ao direta do Exrcito nos casos de ocupao. As estratgias de proprietrios e grileiros para desocupar a rea eram a ao judicial (reintegrao de posse e ordem de despejo), invaso das terras camponesas com o auxlio da polcia, Exrcito ou homens armados e pagos, roubo e/ou destruio de plantao e criao, incndio de cabanas, prises de lavradores, tocaias e assassinatos. Por sua vez, a necessidade de defender a posse da terra e de evitar os despejos fez com que os lavradores organizassem uma associao de lavradores. Em fins dos anos 40, os camponeses de Xerm criaram a primeira organizao camponesa fluminense. A presena de lideranas comunistas e a assessoria jurdica fornecida pelos advogados ligados ao PCB foram decisivas para a organizao camponesa e para a composio legal da associao. Pureza participou em 1949 da formao da Comisso de Lavradores, que tinha como objetivos defender os interesses dos camponeses e proteg-los da ao dos grileiros e das ameaas de despejo. Em 1952, foi criada a Associao dos Lavradores Fluminenses, tornando-se uma instituio legal. No interior da associao, existiam vrias comisses de trabalho, como a de finanas, de mulheres etc. Durante esse perodo, os conflitos entre os camponeses e os grileiros tornaram- se violentos, obrigando os lavradores a fugirem das tocaiais e a se armarem com suas espingardas. Os trabalhadores rurais constantemente eram presos, e essas prises sempre aconteciam nos momentos de conflitos. Entre os principais conflitos ocorridos em Caxias durante as dcadas de 1940 e 1950, podemos destacar os seguintes:
Ano Local Conflito Incio dos anos 40 Faz. Barro Branco Duzentas famlias camponesas ocuparam a rea.
1948
Terras da FNM
Colonos foram instalados sob forma de arrendamento, dando a tera como pagamento fbrica. Boa parte da produo dos lavradores era vendida FNM. Incio dos anos 50 Km 41 da Estrada Rio DOuro Grileiros fizeram um loteamento falso no km 41, anunciaram no jornal e ofereceram os lotes a
163 compradores. Os moradores compareceram ao local e alertaram os compradores de que a rea j estava ocupada. 1952 Fazenda S. Loureno 250 famlias rurais foram expulsas da fazenda. 1954 Fazenda Penha Caixo Cerca de quatrocentas famlias de posseiros foram expulsas da fazenda. 1954 Fazenda Piranema Conflitos e despejos so registrados na fazenda. 1954
Terras da FNM Dois mil lavradores conseguiram de Getlio Vargas a supresso da antiga forma de pagamento e a instituio de uma taxa proporcional lavoura de cada um. 1956 Fazenda Mato Grosso Posseiros foram ameaados de despejo e um deles foi assassinado. Final de 1950 Fazenda do Capivari Posseiros sofreram presso e despejo. Fontes: PUREZA, Jos. Memria camponesa. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982; GRYNSZPAN, Mrio. Fazendeiros e grileiros na Luta Democrtica. Rio de Janeiro: Museu Nacional/UFRJ, 1982 (mimeografado).
A mobilizao dos lavradores foi-se alastrando para outros municpios como Nova Iguau, Mag, Imb, Itagua, Itabora, Macacu e So Joo da Barra. Novos ncleos da Associao de Lavradores foram criados e, em 1959, na I Conferncia Estadual dos Lavradores, foi fundada a Federao de Lavradores e Trabalhadores Agrcolas do Estado do Rio de Janeiro (FALERJ), incluindo, portanto, os trabalhadores agrcolas de Campos. Segundo Pureza, a luta pela desapropriao das reas em conflito foi a principal bandeira de luta tirada na conferncia. A organizao da federao favoreceu a rede de solidariedade entre as associaes e as reas em conflito, bem como o acesso assessoria jurdica e aos rgos pblicos envolvidos com a questo agrria. Situao exemplar foi a que ocorreu em 1961, na Fazenda So Loureno, em Caxias. As foras policiais invadiram a fazenda para executar um mandado de despejo. A notcia espalhou-se pela regio e os lavradores de Tingu, de Nova Iguau e do local formaram um grupo armado com mais 250 homens. Os lavradores montaram um quartel-general no local para enfrentar a polcia e os grileiros. Camponeses de Mag tambm ficaram de prontido. No confronto, dois oficiais de justia e dois representantes do grileiro saram feridos. O quadro de tenses obrigou o governador Celso Peanha a intervir, assinando um decreto de desapropriao da rea. 303
O crescimento do movimento na Regio Fluminense deu maior visibilidade luta camponesa, que passou a ser manchete dos principais jornais do perodo. Em 1961,
303 GRYNSZPAN, Mrio. Fazendeiros e grileiros na Luta Democrtica. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1982, pp. 59-60.
164 os lavradores fluminenses fizeram-se presentes no I Congresso Nacional Campons, realizado em Belo Horizonte. Participaram do Congresso a ULTAB (Unio dos Lavradores e Trabalhadores Agrcolas do Brasil) e suas filiais, as Ligas Camponesas e o Master (Movimento dos Agricultores Sem-Terra). A palavra de ordem do congresso foi Reforma agrria na lei ou na marra. Portanto, a justia (luta pela desapropriao) e a luta armada quando necessria eram as estratgias para evitar os despejos e garantir a posse da terra. A articulao em nvel nacional oportunizou ao movimento campons fluminense uma maior compreenso da condio dos trabalhadores do campo e das mltiplas experincias de luta pela terra. A crescente politizao da estrutura agrria e os investimentos do PCB na formao de sua militncia, envolvendo-os nos debates polticos em nveis nacional e internacional, definiram o carter combativo do movimento. Podemos identificar, nos depoimentos de Josefa Paulino, esposa de Pureza, certo orgulho de ter participado com o companheiro da campanha O Petrleo Nosso, da Luta Contra a Sonegao e Pelo Controle dos Preos dos Alimentos, do Movimento da Legalidade, dos cursos de formao poltica, das campanhas eleitorais etc. Todo o processo formativo das lideranas, as experincias acumuladas e a capacidade de sensibilizar a opinio pblica para os problemas dos lavradores ampliaram a capacidade de resistncia e visibilidade do movimento campons. As prticas polticas construdas por ele no enfrentamento da violncia, a fim de evitar os despejos e manter a posse da terra, foram diversas. Os lavradores organizaram uma cooperativa para facilitar o escoamento e a venda da produo. Para evitar o deslocamento do campons at Belford Roxo ou ao centro de Caxias, com vistas a efetivar suas compras, a Cooperativa construiu um armazm. Por intermdio dele, seria garantido o abastecimento das mercadorias no produzidas pelos lavradores com preos mais baratos e a circulao da produo camponesa local. Para se custearem os deslocamentos das lideranas e alimentar a luta, o movimento realizava festas, almoos, rifas e solicitava ajuda parlamentar. As estratgias de luta iam da elaborao de abaixo-assinados, realizao de passeatas, elaborao de memorial contendo os relatos de violncia, de saque e de destruio das plantaes e moradias dos lavradores, idas aos gabinetes governamentais, ocupao de praas e de rgos pblicos em Niteri, com vistas a pressionar e sensibilizar o governo, a justia e a populao, visando evitar os despejos e garantir a posse de terra at a ocupao coletiva de reas vazias.
165 Tambm eram freqentes as idas ALERJ para obter mediaes e intervenes do Legislativo junto ao governo estadual na soluo das situaes de conflitos, assim como o uso do jurdico para embargar despejos, solicitar a desapropriao das reas ocupadas e realizar investigao cartorrias, objetivando a identificao de reas disponveis para ocupao. Nos momentos de maior radicalizao, ou seja, de ameaa de despejo, o movimento recorria imprensa, solicitando a cobertura do conflito e o registro de denncias das situaes de violncia sofridas pelos camponeses. Quando as intervenes do parlamento, do jurdico, da imprensa, dos governos estaduais e federais no resolviam, os lavradores utilizavam-se da resistncia armada. Os lavradores recorriam ainda ao Instituto Nacional de Imigrao (INIC), 304
rgo vinculado ao Ministrio da Agricultura e responsvel pela execuo do programa nacional de colonizao. O programa visava fixar o imigrante e favorecer o acesso de brasileiros pequena propriedade. Entretanto, tanto o INIC quanto o Conselho Nacional de Reforma Agrria do Ministrio da Agricultura no asseguraram uma poltica que contivesse a violncia cometida contra o lavrador, que distribusse terra e que financiasse a produo camponesa. Segundo a Luta Democrtica de 21 de maio de 1961, o INIC chegou a distribuir aos lavradores de Duque de Caxias uma parcela de terra que se encontrava sob a influncia do instituto. Todavia, a ausncia de financiamento, de assistncia tcnica e de acompanhamento levou o plano ao fracasso. Posteriormente, a rea foi loteada, por ser considerada imprpria para o plantio. A alegao usada pelo INIC foi o desgaste do solo provocado pelo uso intensivo e despreparado da terra, durante o perodo em que havia laranjais no local. Contraditoriamente, at as iniciativas dos lavradores que condiziam com a poltica do Servio Social Rural (SSR) 305 e do Ministrio da Agricultura no foram poupadas da violncia policial. O cooperativismo era um dos pilares centrais da poltica do Ministrio no Ps-30. Todavia, quando a Associao dos Lavradores de Duque de Caxias criou a Cooperativa de Consumo, enfrentou uma ordem de despejo emitida pelo delegado e a impunidade. Nenhum rgo pblico impediu que a polcia arrombasse a Cooperativa e levasse toda a mercadoria encontrada. Pureza relatou o ocorrido em suas memrias:
304 O INIC foi criado em 1954. Ver: DHBB Ps-30, 2001, v. III, p. 2.798. 305 O SSR foi criado em 1955, tendo como finalidade promover o aperfeioamento tcnico do meio rural, fomentar a economia das pequenas propriedades e atividades domsticas, incentivar a criao de cooperativas ou associaes. Ver DHBB Ps-30, 2001, v III, p. 5.370.
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O filho do fazendeiro de Capivari, em cujas terras a polcia tinha feito seu acampamento, encontrava-se no local. Mandaram ento que eu arrombasse a porta. Como me recusei, fui ameaado com faco e chibata. A polcia acabou arrombando a Cooperativa e fui levado preso para seu acampamento [...] O resultado de tudo foi que a Cooperativa ficou interditada e a mercadoria, nas mos da polcia. O Dr. Heitor da Rocha Faria obteve na justia uma indenizao pelo roubo da mercadoria, cuja importncia jamais foi paga. 306
A partir de outubro de 1962, foi criada a Superintendncia da Poltica de Reforma Agrria (SUPRA), unificando, assim, o SSR, o INIC e o Conselho Nacional de Reforma Agrria, com a finalidade de formular a poltica de reforma agrria, de promover a desapropriao de terras por interesse social, de planejar, executar e fazer executar, nos termos da legislao a reforma agrria. 307 Sua criao estava vinculada ao avano da organizao do campesinato e do acirramento dos conflitos expresso pela resistncia armada do lavrador. A desapropriao passou a ser justificada pelo interesse social, isto , pela identificao de conflito, envolvendo um nmero significativo de lavradores. Nas reas mais organizadas, a resistncia e a capacidade de presso junto ao poder pblico, ao Judicirio, ao Legislativo e aos Executivos estadual e federal impediram despejos com atos de desapropriao. Na maioria dos casos, o pagamento da desapropriao no era efetuado e, tempos depois, o conflito reeditava-se. No caso de Caxias, at as vsperas do golpe militar, as desapropriaes iniciadas ainda no haviam sido concludas, e os conflitos continuavam a fazer parte do cotidiano dos lavradores. Contudo, os atos de desapropriao representaram ainda a possibilidade de paralisar um despejo e evitar um enfrentamento armado ainda mais violento. Apesar de as ocupaes tornarem-se uma das mais importantes estratgias do movimento, elas no obtinham o resultado esperado quando feitas sem a assessoria do movimento ou com baixo nvel de organizao. Dificilmente os ocupantes conseguiam suportar a presso da polcia ou dos grileiros. Houve ainda em Caxias situaes em que algumas lutas travadas, conjuntamente com a associao, no tiveram um desfecho favorvel ao conjunto dos lavradores, restando-lhes o deslocamento para outras reas, o que gerava divises no interior do movimento e descrenas na fora das associaes. Exemplo dessa situao foi a que ocorreu na fazenda Anilina. Os lavradores se
306 PUREZA, Jos. Memria camponesa. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982, pp. 28-29. 307 DHBB ps 30, 2001, v. V, p. 5616.
167 dividiram, e os poucos que resistiram foram expulsos. Logo, era a capacidade de organizao, mobilizao e resistncia que tecia a possibilidade de desapropriao e permanncia na terra. Vejamos os principais conflitos de terra que ocorreram em Caxias no perodo de 1960 a 1964.
Ano e local Conflitos 1961 Piranema Grileiro utilizou-se da polcia para expulsar os lavradores. Soltou gado para destruir a plantao e impediu o conserto de uma ponte, isolando-os. 1961/Piranema e M. Grosso Grileiros tentaram expulsar os lavradores, incendiando suas moradias, derrubando casas e destruindo plantaes com tratores. 1961/Capivari A ENCO S.A. (Engenharia e Comrcio) apresentou-se como proprietria da rea e tentou expulsar os lavradores para lotear a fazenda. Cerca de quinhentos camponeses resistiram e a polcia foi enviada ao local. 1961 S. Loureno Foras policiais invadiram a rea para executar um mandado de despejo, incendiaram uma casa e prenderam um campons. Cerca de 250 camponeses enfrentaram os policiais, armaram emboscadas e feriram dois policiais e dois homens do grileiro. Interveno do governador. 1962 Capivari Policiais invadiram a rea para executar um mandato de despejo. Choque entre a polcia e os 2.500 lavradores. Suspenso do despejo. Interveno do governador Janotti: decreta a desapropriao das reas de tenso social (Capivari, Piranema e Penha Caixo). O pagamento no foi efetuado. 1962 Barro Branco Sociedade composta por oficiais do Exrcito perdeu seus depsitos em banco falido e foi ressarcida com a fazenda Barro Branco. A fazenda foi vendida para terceiros, que exigiram a terra desocupada. Os oficiais ocupam a rea militarmente, expulsando 250 famlias que a ocupavam h mais de vinte anos. Resistncia camponesa, interveno parlamentar e da imprensa. Negociao entre o movimento, o Exrcito e a SUPRA. 1963 Capivari Novas ameaas de despejo. Badger da Silveira alegou no ter recursos para efetuar o pagamento da desapropriao. Cerca de trezentos lavradores seguem para a ALERJ. Interveno federal: Goulart decreta a desapropriao de Capivari, Piranema, Penha Caixo e Mato Grosso. Assassinato do lavrador Afonso Rpio Braga. 1963 Capivari Boatos de invaso policial para efetuar o despejo. Cerca de dois mil camponeses cavaram trincheiras e se armaram de espingardas. Interveno da SUPRA. A verba da desapropriao no havia sido depositada integralmente. As tenses continuaram. 1963 Mato Grosso Comisso de lavradores entregam Luta Democrtica um memorial das violncias sofridas e pedem garantias de vida. Presena da SUPRA para retirar grileiros e gado. At 64, a posse das reas ainda no se efetivara. 1963 FNM FNM inicia um processo de reintegrao de posse das terras arrendadas aos lavradores. Solidariedade dos operrios da FNM e dos petroleiros. FNM promete doar as terras para a SUPRA. Doao no-realizada at 64. 1963 Anilina Lavradores ocupavam a rea com a autorizao do responsvel. Ao prosperar, grileiros utilizaram-se de violncia para exigir a tera. Os que entraram em contato com a associao e resistiram foram expulsos. 1964/ Cidade dos Meninos Cerca de trezentas famlias ocupam dez hectares das terras sem a participao da associao. Ordem de despejo; os lavradores abandonam o local. 64/ B. Branco Exrcito ocupa a fazenda e retira os lavradores da fazenda.
168 Fonte: GRYNSZPAN, Mrio. Fazendeiros e grileiros na Luta Democrtica. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1982, pp. 49-63.
O movimento campons contou ainda com o apoio e a solidariedade de outras organizaes operrias, lideradas por militantes sindicais comunistas. Quando em 1963 a FNM entrou com um pedido de reintegrao de posse de suas terras arrendadas, os trabalhadores da fbrica e da Refinaria de Duque de Caxias ameaaram entrar em greve, caso se consumasse o despejo dos lavradores. A presso fez com que o processo de reintegrao de posse fosse sustado. 308
A solidariedade dos petroleiros era novidade no cenrio poltico local, j que a REDUC iniciou seu funcionamento em 1961. Inicialmente, os petroleiros organizaram- se em torno de uma associao e, em 1962, criaram o sindicato. Apesar do pouco tempo de existncia, a experincia de organizao sindical e a prtica poltica da militncia comunista garantiram uma significativa adeso de petroleiros ao PCB, o que fortaleceu o sindicalismo politizado e engajado com as questes nacionais e as lutas dos trabalhadores. A solidariedade para com os camponeses instalados nas terras da FNM, portanto em terras pblicas, sensibilizou petroleiros e operrios da FNM, j que ambos eram obrigados a negociar com o governo federal suas reivindicaes. No caso ainda dos trabalhadores da FNM, havia outros fatores a considerar. A organizao sindical na FNM, em fins dos anos 50 a 64, garantiu a conquista de uma gesto participativa da fbrica e um nvel de politizao que fez com que o sindicato assumisse como pauta a reforma agrria. Ao estabelecer uma poltica de colaborao mtua com os lavradores da regio, o sindicato passou a ter uma atuao mais direta com a Associao dos Lavradores de Duque de Caxias. Essa escolha poltica tambm pode ser creditada proximidade do operariado com os lavradores das reas rurais no entorno da fbrica. Muitos operrios residiam nas vilas, convivendo quase que diariamente com os lavradores. 309
Em 1963, operrios da fbrica participaram das assemblias camponesas quando a PM ameaava despejar os lavradores da Fazenda So Loureno. Informes das condies e da luta dos lavradores eram dados nas assemblias, assim como era recolhida, entre os operrios, ajuda para as lutas camponesas. Alguns sindicalistas chegaram a propor ocupao de terras em suas assemblias. Essa aliana assumida entre as lideranas camponesas e operrias vinculadas ao Partido Comunista permitiu um
308 Idem. 309 RAMALHO, 1989, pp. 158-159.
169 alargamento da ao de cada movimento. Conseqentemente, o corporativismo estava sendo enfrentado pelas lideranas com a proposta de unidade dos trabalhadores da fbrica e do campo.
IV.3 A presena comunista no movimento operrio da FNM
Aps o trmino da Segunda Guerra e a deposio de Vargas, a FNM entrou em crise e teve suas atividades interrompidas. Em 1949, o governo brasileiro firmou um contrato de cooperao industrial com Isotta Fraschini para produzir caminhes. Porm, em 1950, Isotta encerrou suas atividades na Itlia, o que levou o governo italiano a orientar a FNM no sentido de assinar um novo contrato com a Alfa Romeo S.A. A indstria italiana fornecia chassis de caminho e nibus para a FNM, concedia direitos e licena de fabricao e prestava assessoria tcnica. Em 1952, a FNM colocou venda oitocentos caminhes e, no ano seguinte, mil. Em 1953, o contrato assinado com a Alfa Romeo foi alargado, com o objetivo de permitir o cumprimento das etapas de nacionalizao da produo em srie de caminhes. 310
Apesar do pioneirismo da FNM na produo automobilstica, na formao de mo-de-obra qualificada e no estmulo indstria de autopeas, a fbrica era constantemente alvo de campanha por privatizao. Portanto, ao estar ameaada pelo capital internacional, a fbrica tornou-se central na luta nacionalista. No poderamos deixar de levar em considerao que a dcada de 1950 esteve marcada pelo debate em torno das alternativas para o desenvolvimento brasileiro. De um lado, estava a defesa do nacionalismo e, conseqentemente, dos investimentos na indstria nacional; de outro, uma poltica que acelerasse a industrializao por meio da entrada macia do capital transnacional. Durante a primeira metade da dcada de 1950, isto , da segunda era Vargas, o discurso nacionalista, presente em muitos setores do movimento operrio, ganhou sentido de defesa dos interesses nacionais, de uma crescente estatizao acompanhada de autogesto por parte dos trabalhadores e de combate ao imperialismo norte- americano. Nesse sentido, o discurso nacionalista do governo, centrado no desenvolvimento da indstria nacional, chegava ao movimento operrio com fora. Com a morte de Vargas, a contradio acentuou-se. Apesar do discurso nacionalista ainda presente, cada vez mais o governo brasileiro investia na poltica de
310 RAMALHO, 1989, p. 87.
170 industrializao atrelada ao capital internacional. Enquanto a economia brasileira vivia momentos de crise e de um aumento brutal de sua dvida externa, a economia capitalista internacional passava por um processo de dolarizao, substituindo, assim, o antigo padro do ouro, o que evidenciava a crescente presena norte-americana no cenrio da economia mundial, principalmente na subordinao da Amrica Latina. dentro desse contexto que o movimento operrio da FNM foi-se constituindo no incio dos anos 50. A presena de novos operrios recrutados, entre eles os que traziam outras experincias polticas e eram filiados ao PCB, foi determinante para o surgimento e o crescimento do movimento. A presena significativa de comunistas na fbrica vinha ao encontro das orientaes do partido em ocupar espaos estratgicos da organizao operria e camponesa. Evidentemente, a FNM era um desses espaos estratgicos, por ser uma estatal, por seu pioneirismo na indstria automobilstica brasileira, por estar localizada prximo ao Distrito Federal, o que lhe assegurava visibilidade, e por estar ameaada pelo capital internacional, principalmente pela presena dos italianos. A atuao no enfrentamento e o investimento em um sindicalismo de base fizeram com que as lideranas comunistas conquistassem o respeito da categoria. Alm disso, novas adeses ao sindicato e ao PCB ampliaram a capacidade de presso e politizao do movimento. Assim, durante os anos 50 at 64, os trabalhadores da FNM construram uma experincia de organizao combativa: delegaes em todos os setores da fbrica, enfrentamentos cotidianos, reunies dirias no Bafo da Ona, onde se discutiam as questes relacionadas poltica nacional e internacional e onde se definiam as reivindicaes, as aes polticas dentro da fbrica, inclusive as greves.
Naquela poca tinha mais unio, tinha delegado dentro da fbrica [...] Eu, quase todo dia, podia tirar duas horas de almoo, e nessa hora tinha aquele bate-papo no Bafo da Ona. L, a gente comeava a falar, ningum saa, aquilo ficava cheio de gente. Eu gostava daquilo. Bafo da Ona o lugar de bate-papo, fica perto do rancho, tem um p de rvore onde o delegado ou outro cara subia e metia o sarrafo l de cima. 311
A poltica traada pelas lideranas comunistas baseava-se na representao dentro da fbrica, o que culminou com a criao do Conselho Sindical 51. Segundo Jos Ricardo Ramalho, os conselheiros eram escolhidos em funo do prestgio no trabalho,
311 Depoimento de um peo. Ver: Uma Greve Pelo Direito ao Trabalho: FIAT 1981, ACONTECEU ESPECIAL, 8, Rio de Janeiro: CEDI, outubro de 1981, p. 14.
171 atuavam como fiscais e possuam um sistema de comunicao eficiente. As idas aos gabinetes dos representantes da fbrica para negociar os interesses dos trabalhadores tornaram-se uma prtica recorrente no perodo. Nada era feito na empresa sem que o conselho fosse ouvido. A interveno sindical no cotidiano da fbrica desconsiderava a antiga hierarquizao existente, revertia o padro de dominao anterior
e tecia uma gesto democrtica. 312
A poltica de enfrentamento e o trabalho de formao e de organizao no interior da fbrica garantiram uma atuao poltica favorvel e bem-sucedida, fazendo aparecerem as conquistas. Alm disso, em fins dos anos 50, o movimento sindical fortalecido pela presena efetiva do Sindicato dos Metalrgicos da Guanabara, at ento impossibilitada pelos entraves impostos pela fbrica. O movimento operrio da FNM construiu um conjunto de prticas estratgicas que asseguraram a visibilidade sindical e o reconhecimento por parte dos operrios, da atuao de suas lideranas. O questionamento ao domnio que a fbrica exercia no processo de trabalho, nas vilas e na cooperativa desnaturalizava a explorao exercida pela empresa. Ao investir na desconstruo da imagem da fbrica poderosa, protetora e paternal, promoviam-se o reconhecimento e a legitimidade da luta operria em defesa dos direitos negados. Os encontros dirios de formao e organizao poltica na tribuna livre do Bafo da Ona, a interveno permanente no cotidiano da fbrica em defesa dos interesses dos trabalhadores, a crtica estrutura funcional e a discordncia pblica das decises da fbrica colocavam em evidncia a presena do sindicato e garantiam conquistas importantes para a categoria. Por outro lado, a atuao sindical tambm se fazia presente no cotidiano dos trabalhadores fora da fbrica. O questionamento da estrutura de gerenciamento fora dos muros da empresa, isto , da cooperativa de alimentos e das moradias nas vilas, afirmava uma outra possibilidade de gesto, com a participao dos trabalhadores. Por meio da atuao direta na fiscalizao e na gesto da cooperativa, no controle dos valores das mercadorias vendidas ao operariado, na fiscalizao do atendimento, na crtica da atuao da prefeitura da vila, dos contratos de aluguel, dos critrios para ocupao e permanncia nas casas, pretendia-se avanar na construo de uma gesto participativa. Ao propor a organizao de uma comisso de delegados que definissem os consertos das casas, o movimento sindical pretendia retirar o controle
312 RAMALHO, 1989, pp. 158-60.
172 exercido pelos engenheiros, que o concediam segundo os critrios por eles estabelecidos. Desse modo, o objetivo de atender aos interesses dos trabalhadores estava articulado constituio de um poder local diferenciado do existente at ento. Alm das estratgias apontadas, nos momentos de maior radicalizao e de impasse, o movimento sindical utilizava-se das greves. Os trabalhadores da FNM fizeram greve pela supresso da hora extra, vista como roubo das horas de descanso e impedimento para novos recrutamentos, por aumento salarial, pelo direito a trinta dias de frias, pelo pagamento das 240 horas mensais de trabalho, quando s eram pagas 234. Durante a primeira greve de 1961, cerca de cinco mil operrios cruzaram os braos, afirmando, assim, a fora do movimento. O nmero de sindicalizados aumentou consideravelmente aps a greve, e o sindicato conquistou uma Delegacia Sindical no interior da fbrica. A fora do movimento fez com que o destino da empresa passasse a ser assumido tambm pelos trabalhadores. O desmonte da fbrica ou a sua privatizao no interessavam aos comunistas e aos trabalhadores. Ambos atuavam na defesa da empresa nacional e da garantia do emprego, e na manuteno das conquistas adquiridas. Entretanto, ao assumir a gesto da fbrica, contraa-se tambm o compromisso com a sua produtividade, com a sua eficincia. Em 1963, dois acontecimentos importantes ocorreram na FNM: uma greve de quatro dias reivindicando aumento salarial e aplicao dos recursos da fbrica em sua ampliao e a visita do presidente Joo Goulart. Em seu discurso aos trabalhadores, ele apelou ao nacionalismo, mas criticou a situao da fbrica, a ineficincia dos trabalhadores das empresas estatais e o empreguismo. Chegou a contestar a atuao do Estado nas atividades industriais. Contraditoriamente, o discurso privatizador colocava nas mos dos trabalhadores a responsabilidade pelo sucesso ou pelo fracasso da fbrica, exigia dos trabalhadores um compromisso ainda maior com a produtividade e a lucratividade, gerando tenses no interior do movimento. Na tribuna livre, a discusso acerca do futuro da fbrica e da necessidade de defesa do patrimnio nacional e da gesto coletiva uniu os trabalhadores e gerou polmicas. Como garantir a produtividade e manter ao mesmo tempo os interesses dos trabalhadores frente a uma inflao galopante e ameaa de aumento de jornada de trabalho? Como garantir transparncia nas contas da fbrica e assegurar uma
173 interferncia em sua estrutura financeira? Como garantir a aplicao dos recursos da fbrica em sua ampliao e melhoria? Como mant-la diante da crescente concorrncia com a indstria automobilstica internacional? As respostas a tantas indagaes no puderam ser elaboradas, j que o processo foi interrompido pelo golpe militar de 1964. A fbrica foi ocupada, algumas prises, efetivadas, e o movimento, desestruturado.
IV.4 A disputa pela representao operria e camponesa
O crescimento do movimento campons e sindical na FNM provocou uma disputa pela representao camponesa e pelo operariado urbano. A competio se dava no apenas pelo desejo de falar em nome daqueles que se organizavam, como tambm dos que rejeitavam a liderana comunista e as organizaes existentes. No caso do movimento operrio e campons em Xerm, a oposio e a disputa pela representao desses trabalhadores foram largamente estabelecidas pela presena dos crculos catlicos. Os crculos operrios tm suas origens no movimento leigo iniciado no Brasil dos anos 20. Preocupados com as discusses dos problemas sociais, com a formao para o trabalho e a melhoria das condies de vida e de trabalho, os leigos iniciaram um movimento nos anos 30, a partir de grupos como a Associao de Universitrios Catlicos, a Ao Catlica Brasileira, a Liga Eleitoral Brasileira e o Movimento Operrio Catlico. Desse ltimo grupo, surgiram os crculos e, posteriormente, a Confederao Brasileira de Trabalhadores Cristos (CBTC). 313
Os primeiros crculos surgiram no Sul do pas por iniciativa do jesuta italiano Leopoldo Brentano. A base do movimento circulista estava centrada na tradio italiana e varguista: cooperativismo e natureza harmnica entre as classes. O lema dos crculos era: O trabalho cada vez mais dominante, a natureza cada vez mais dominada e o capital cada vez mais proporcionado. Entre os objetivos dos crculos, estavam: dar instruo, educao crist, assistncia social e material aos trabalhadores; promover o auxlio mtuo; defender os interesses dos trabalhadores e buscar melhoria sem recorrer luta de classe; enobrecer cultural e economicamente o trabalhador; orientar e conduzir a classe trabalhadora ao caminho seguro, resguardando-os da influncia comunista. 314
313 DHBB Ps-30, 2001, v. II, p. 1369. 314 DHBB Ps-30, edio 2001. Volume II: 1369.
174 No Rio de Janeiro, o cardeal Dom Sebastio Leme convidou o padre Bretano para ajudar na organizao circulista fluminense e, em 1936, os primeiros crculos foram criados. Durante o Estado Novo, os crculos proliferaram de forma significativa. No I Congresso Nacional Circulista, realizado no Rio de Janeiro, em 1937, havia 34 crculos no Brasil com 31 mil componentes e, no final do perodo, foram totalizados duzentos crculos com duzentos mil associados. O crescimento circulista durante o regime estadonovista se deu, entre outros fatores, pelo reconhecimento oficial do governo aos crculos e pelos benefcios concedidos em troca da ajuda circulista na administrao da legislao de bem-estar social. 315
Com a queda de Vargas em 1945, houve um declnio dos crculos e um descrdito dos princpios fundadores do movimento circulista. Todavia, com seu retorno ao poder, o movimento circulista tentou revitalizar-se aps a realizao de seu VII Congresso, em meados dos anos 50. A modernizao circulista comps a pauta central do congresso, tendo como resoluo a implementao das escolas de lderes operrios e o esforo de orientar os trabalhadores acerca da legislao trabalhista. Em 1956, o padre Belizrio Veloso, com a colaborao da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC/RJ), fundou na capital federal a primeira Escola de Lderes Operrios e o Movimento de Orientao Sindical, visando expandir os princpios circulistas. 316
Inicialmente, poderiam participar do movimento circulista o operariado urbano, o funcionrio pblico e os comercirios, ou seja, todo aquele que fosse assalariado. Posteriormente, os trabalhadores rurais tambm foram incorporados. Os crculos poderiam ser organizados por localidade ou por categoria, e articulavam-se em nveis estadual e nacional. No caso do Rio de Janeiro, o movimento circulista unificou-se em nvel regional na Federao dos Crculos Operrios Fluminense (FCOF) e, em nvel nacional, na Confederao Nacional dos Crculos Operrios. No caso de Xerm, havia o crculo da FNM e o crculo dos trabalhadores rurais que se articulavam no local. O Crculo Operrio da FNM era composto por trabalhadores catlicos da fbrica, residentes nas vilas e denominados pelos novos recrutados de antigos ou velhos. Eles eram os mais qualificados, haviam recebido sua formao profissional da fbrica, sentiam-se beneficiados com a hierarquia existente e possuam certa vivncia com a dominao anterior.
315 Idem. 316 DHBB Ps-30, 2001, v. II, p. 1.369; GRYNSZPAN, 1987, p. 255.
175 Esse grupo mantinha contato com a fbrica fora de seu lugar de trabalho e dela dependia para obter reformas das casas, investimentos na rea de lazer, como a doao de um terreno para a instalao de um clube de futebol, 317 entre outros. Havia ainda aqueles que trabalhavam na administrao da fbrica, prximos e dependentes daqueles que a gerenciavam, e os que faziam parte dos crculos por estarem preocupados com o avano comunista, com receio de perder vantagens pessoais concedidas, por se oporem atuao das lideranas sindicais e por discordarem das vinculaes do movimento com a poltica nacional e internacional. 318
O COC da FNM cumpria, assim, o papel de oposio ao movimento sindical e disputava a representao dos trabalhadores. Para tentar romper com a hegemonia do PCB na representao operria, componentes do COC chegaram a pensar na criao de uma associao profissional da fbrica que fosse reconhecida pelo Ministrio do Trabalho. Apesar da discordncia das estratgias e prticas construdas pelas lideranas sindicais, a proposta nunca foi consolidada, face ao fato de que, mesmo entre os operrios circulistas, havia o reconhecimento das vantagens obtidas pela ao sindical e da fora do movimento junto aos trabalhadores. O que se observa, dessa forma, a disputa por posies dentro do espao sindical. Segundo Ramalho, o COC da FNM era um COC especial, por ter um envolvimento sindical no interior da fbrica, afirmando, assim, os interesses da empresa. O COC recebia incentivos da fbrica e organizava tambm a oposio fora, isto , na igreja, nos clubes e no bairro. Situao exemplar foi o caso do padre Antnio da Costa Carvalho, incentivador e um dos criadores das atividades do crculo da empresa, que recebia uma gratificao que constava na folha de pagamento da fbrica. 319
O padre citado no era apenas o responsvel pelo crculo da empresa; era tambm assessor eclesistico da FCOF e atuante no movimento circulista dos trabalhadores rurais fluminenses. O Crculo dos Trabalhadores Rurais de Xerm era formado por lavradores catlicos e por pequenos proprietrios que rejeitavam a representao feita pela ALF e pelas lideranas comunistas. Os circulistas temiam o crescimento do comunismo, a violncia que se estabelecia durante os confrontos e, no
317 A sociabilidade fora constituda tambm pela procedncia de nascimento, reunindo em clubes ou times de futebol aqueles de procedncia regional comum. Da, por exemplo, a fundao do Clube Piau pelos nortistas. 318 RAMALHO, 1989, pp. 181-183. 319 Idem, 193.
176 caso dos pequenos proprietrios, a ameaa de perda da propriedade em face das ocupaes realizadas. Nos anos 50, os crculos ruralistas e a FCOF competiram com a ALF e com a FALERJ pela representao dos lavradores fluminenses. Enquanto as lideranas comunistas na ALF mantinham sua atuao na resistncia aos despejos e na poltica de ocupao de terras, a Igreja investia na promoo econmica, profissional e cultural da famlia lavradora, procurando atra-la para os Crculos Operrios Fluminenses. A formao, a assessoria tcnica e a promoo do iderio cristo conservador eram largamente oferecidas pelo Centro de Treinamento de Trabalhadores Rurais do Rio de Janeiro (CETERJ). Por meio dele, investia-se na formao e na construo de lideranas rurais com projetos opostos ao da FALERJ. Alm do movimento circulista, Mrio Grynszpan identificou em sua obra Mobilizao camponesa e competio poltica no estado do Rio de Janeiro outros atores disputando a representao dos lavradores fluminenses. 320
No mbito local, alm do movimento circulista, a disputa realizou-se nos anos de 1962 e 63 por meio da interveno de Tenrio Cavalcanti e de seus assessores. O jornal Luta Democrtica tornou-se espao para denncia e fala dos lavradores. Em 1962, o parlamentar acompanhou pessoalmente as situaes de conflitos, intervindo como advogado e mediador entre os camponeses e o poder pblico estadual e federal ou entre o movimento e o Exrcito. Tenrio apresentado na Luta como protetor e defensor do lavrador, fortalecendo, assim, sua liderana pessoal e sua candidatura ao governo do estado. J em 1963, a presena direta do deputado restringiu-se aos momentos de radicalizao dos conflitos. Por outro lado, o acompanhamento contnuo ao movimento passou a ser feito por um jornalista da Luta e assessor poltico. Nesse caso, a disputa pela representao no significou uma oposio a seus mais recentes aliados, mas uma afirmao de sua popularidade e liderana poltica. Na esfera estadual, a disputa pela representao foi exercida pelo governador Roberto Silveira, por meio de seu Plano Agrrio e da federao ligada ao PTB, que fazia oposio FALERJ. A candidatura de Roberto Silveira pela Coligao Popular Nacionalista abrigava tanto setores conservadores da UDN quanto comunistas incorporados a outros partidos. Tal fato implicou que seu governo guardasse
320 Para melhor compreenso da representao camponesa, ver as foras em cena em GRYNSZPAN, 1987, pp. 281-222.
177 ambigidades no que se refere principalmente questo agrria. De um lado, o compromisso assumido durante a campanha com os lavradores, ou seja, a reforma agrria e a proteo aos posseiros. De outro, a presso conservadora dos ruralistas, organizados na Federao das Associaes Rurais do Estado do Rio de Janeiro (FARERJ). Preocupados com o avano das ocupaes, das desapropriaes e da resistncia camponesa, faziam presso junto ao governo no sentido de garantir seus interesses. Em abril de 1959, o governo Roberto Silveira criou o Plano-Piloto de Ao Agrria com nfase no cooperativismo, antiga marca da poltica agrria dos governos de Vargas. O plano institua um conjunto de medidas que iam do mapeamento das reas ocupadas e cultivadas por posseiros ao uso do imposto territorial para estipular os valores com fins de desapropriao. Em seu conjunto, o plano representaria um avano, no sentido de reformar a estrutura agrria, mapear a realidade agrria fluminense, evitar a sonegao rural, proporcionar a presena policial nas reas de conflito e garantir assento legal para as desapropriaes. Entretanto, a presso conservadora dos ruralistas, expressa por suas bancadas na ALERJ, fez com que o governo recuasse. Em substituio ao plano original, a ALERJ aprovou o Plano de Colonizao e Aproveitamento de Terras Devolutas e Prprias do Estado, conhecido posteriormente como Plano-Piloto de Ao Agrria. Ele estava centrado na colonizao de terras pblicas e na atuao do governo, definida como a de solucionador amigvel das controvrsias. As desapropriaes foram silenciadas no Plano, o que provocou uma reao do movimento campons e dos comunistas, que ameaaram um rompimento com o governo. Aps o conflito estabelecido e a impossibilidade de solucion-lo, os comunistas tentaram aproveitar algumas de suas contradies para obter desapropriaes de reas em conflito. Por sua vez, Roberto Silveira passou a utiliz-lo como instrumento de cooptao dos lavradores, principalmente das reas beneficiadas pelo plano. Durante a realizao da I Conferncia Estadual dos Lavradores e Trabalhadores Agrcolas Fluminenses, convocada pela ALF e apoiada pelo governo, o PCB, por intermdio de suas lideranas, conseguiu manter o domnio. Ao fundar a FALERJ, frustrou a inteno do governo em criar uma federao vinculada ao PTB. Aps a derrota, o governo intensificou sua presena nas reas beneficiadas pelo Plano, atraindo para o seu projeto seis associaes.
178 Em julho de 1960, a Federao dos Lavradores do Estado do Rio de Janeiro (FLERJ) foi criada com o apoio do movimento circulista. Com o patrocnio do Plano Agrrio, a FLERJ organizou e convocou a II Conferncia. Duas concepes se confrontaram na disputa: a da legitimao ao plano, emitida pela FLERJ, e a da contestao feita pela FALERJ. Esta ltima denunciava os despejos, a violncia policial e a no-finalizao das desapropriaes realizadas. As perspectivas de projees nacionais de Roberto da Silveira eram determinantes no processo de disputa. Silenciar a FALERJ e as lideranas comunistas era a possibilidade de assegurar visibilidade para a fala que legitimava o PTB e a possvel candidatura de Silveira Presidncia da Repblica. Essa perspectiva do governador explica sua freqente presena na Baixada Fluminense, principalmente em Caxias, onde se concentrava o maior nmero de eleitores da Baixada. 321 Segundo Ruyter Poubel, durante os dois anos de seu governo, Roberto Silveira esteve 22 vezes em Caxias, o que d uma mdia de uma visita por ms. 322
Aps a morte de Silveira, Celso Peanha, do PSD, assume o governo, mas logo se afasta para lanar-se candidato ao Senado nas eleies de 1962. A perspectiva eleitoral de Peanha o reaproximou das negociaes com a FALERJ, considerando, inclusive, a indicao do nome da federao ao cargo de Executor do Plano Agrrio. Logo depois, a indicao da FALERJ foi substituda pelo agrnomo Irnio de Matos Pereira. Apesar da substituio, o novo executor atuou prximo FALERJ. A postura de Celso foi duramente criticada pela FLERJ, que se sentia desprestigiada. Quando em 62 o presidente da ALERJ, Carvalho Janotti, assumiu interinamente, a presso ruralista em torno da mudana do executor do Plano garantiu sua substituio. Apesar disso, a FALERJ ainda era considerada nas negociaes com o governo de Janotti. Quando o movimento de sindicalizao se ampliou, a Secretaria de Trabalho elaborou um Plano Estadual de Sindicalizao Rural, em conjunto com a FALERJ. 323
Em 1963, o novo governo eleito, Badger da Silveira, substituiu novamente o executor do Plano, afirmou a FLERJ e o movimento circulista como interlocutores, discriminando o PCB e desconsiderando a FALERJ. Essa postura foi uma resposta de Badger ao PCB e s suas lideranas, que apoiaram a candidatura de Tenrio Cavalcanti, por conta de uma discordncia no plano nacional com o PTB. Porm, expressa tambm
321 A Baixada Fluminense era o principal Colgio Eleitoral fluminense at a fuso com a Guanabara. 322 Informao fornecida por Ruyter Poubel, em entrevista realizada no ano de 2002. 323 GRYNSZPAN, 1987, p. 244.
179 o avano dos setores mais conservadores no controle do aparelho burocrtico estatal. Apesar de ter sido eleito pelo mesmo partido de Joo Goulart, o PTB, Badger criticava o presidente em exerccio e discordava das polticas agrrias implementadas pela SUPRA. Acusava a SUPRA de estar prxima da FALERJ e de no se articular com o Plano Agrrio. Apesar do esforo do governo em reprimir a ao da FALERJ, no ano de 1963 ocorreram inmeras ocupaes e confrontos armados, como vimos anteriormente. O caso do Capivari foi exemplar nesse sentido. No mesmo ano, Badger da Silveira nomeou o padre Antnio da Costa Carvalho como executor do Plano, estimulando a formao de organizaes camponesas em oposio s estimuladas e lideradas pelos comunistas. Apesar de a FALERJ ter pedido a exonerao do padre Carvalho e t-lo acusado de antinacionalista, de efetuar desvio de sementes e ferramentas, de estar a servio do latifndio, ele se manteve no cargo at o golpe militar. No mbito federal, a disputa pela representao do lavrador era realizada pela interveno da SUPRA, no ano de 1963. Por intermdio de seu superintendente, Joo Caruso, afirmava-se a presena do deputado Leonel Brizola e do PTB junto aos camponeses. A presso conservadora dos ruralistas e as crticas de Badger em torno das polticas agrrias da SUPRA, principalmente durante o levante de Capivari, fizeram com que Caruso fosse demitido em junho do mesmo ano. O governo de Joo Goulart indicou um substituto que tinha bom trnsito com o PSD e que, ao mesmo tempo, podia articular a SUPRA com o Plano Agrrio. Caberia ao Plano e SUPRA a elaborao de um projeto de reforma agrria para a Baixada Fluminense, o que poderia vir a representar o repensar das polticas agrrias no estado. Durante o perodo que se segue at o golpe militar, a SUPRA continuou relacionando-se com a FALERJ, conseguindo, ainda, manter as desapropriaes.
IV.5 Evas agitadoras e vermelhas
Localizamos na obra de Ana Chrystina Venncio Mignot, Ba de memrias, bastidores de histrias: o legado pioneiro de Armanda lvaro Alberto, uma referncia nota publicada no jornal A Manh. Nela, mulheres de Meriti repudiavam o fechamento da Unio Feminina Brasileira (UFB), ocorrido em 1935.
180 As mulheres trabalhadoras de Meriti, indignadas pela atitude arbitrria do governo mandando fechar ilegalmente a sede da Unio Feminina Brasileira, vm trazer o seu enrgico protesto contra mais esta violncia. Visto considerarem essa associao um rgo de defesa de seus interesses, elas declararam que havero de lutar por sua legalidade. 324
A UFB foi criada no mesmo ano de seu fechamento, em pleno perodo da Segunda Grande Guerra. As mulheres organizaram-se em torno do combate ao Cdigo Civil, que subordinava legalmente a mulher ao marido, do movimento em defesa da paz e da soberania nacional, do desejo de investir na elevao cultural da mulher, na igualdade econmica entre homens e mulheres, na garantia dos direitos da criana e do jovem etc. 325
Mulheres intelectuais e artistas do Rio de Janeiro elegeram uma diretoria provisria para organizar e representar a instituio. Armanda lvaro Alberto, fundadora da Escola Regional de Meriti 326 e militante da Educao, foi eleita presidente dessa diretoria. O envolvimento de Armanda em Caxias passava pela escola e, por meio dela, mantinha uma relao com educadores, artistas e, principalmente, com as mes dos alunos. Logo, o apoio das mulheres de Caxias UFB no causa estranhamento. Quando o governo Vargas decretou a ilegalidade da Aliana Nacional Libertadora (ANL), 327 uma srie de instituies da sociedade civil, intelectuais e militantes comunistas ficaram expostos aos atos autoritrios e violentos do poder central. O argumento utilizado pelos dirigentes do Estado para justificar o fechamento da UFB era a acusao de que a entidade estava filiada ANL. Afirmava tambm que as prticas da entidade eram conhecidas pela polcia e que havia comunistas entre as lideranas do movimento. A entidade defendeu-se junto imprensa e, juridicamente, contestou as acusaes.
324 MIGNOT, Ana Chrystina Venncio. Ba de memrias, bastidores de histria: o legado pioneiro de Armanda lvaro Alberto. Rio de Janeiro, 1997, p. 443. Tese de Doutorado do Departamento de Educao da PUC/RJ. 325 DHBB Ps-30, 2000, v. V, p. 5.845. 326 A Escola Meriti, instalada prximo estao de Caxias, era tida como modelo de autogesto e de experincia montessoriana. Artistas, intelectuais, profissionais liberais e comunidade escolar eram constantemente envolvidos nos projetos da escola. A ajuda ia desde a financeira at a dedicao pessoal ao projeto por meio do oferecimento de cursos, conferncias, atendimento mdico gratuito, horas de trabalho voluntrio junto s crianas e comunidade escolar. A escola era financiada pela contribuio voluntria e pela organizao de eventos. 327 A ANL era uma frente antiimperialista e antifascista que congregava o Partido Comunista, entidades estudantis e culturais, sindicatos etc. Desencantados com a postura fascista e autoritria de Vargas, os integrantes da ANL compunham o bloco de oposio ao governo. A ANL foi lanada publicamente em 30 de maro de 1935, no Teatro Joo Caetano, e tinha como presidente de honra Lus Carlos Prestes. Ver PRESTES, Anita Leocdia. Lus Carlos Prestes e a Aliana Nacional Libertadora. Petrpolis: Vozes, 1997, p. 41.
181 Segundo as feministas, o que unificava a UFB e a ANL era a luta contra o imperialismo, o latifndio e a defesa da democracia. Todavia, o apoio dado a essas bandeiras no representava adeso luta de classe ou incorporao da UFB ANL. Os depoimentos feitos pelas feministas imprensa, anteriores ao fechamento da UFB, enfocavam a unidade feminina, independentemente de classe, etnia ou credo religioso. Apesar disso, elas foram nomeadas pelo jornal O Globo de Evas Agitadoras. 328
Em dezembro de 1935, Armanda foi presa, juntamente com outras mulheres acusadas de envolvimento na rebelio comunista.
As mulheres envolvidas na rebelio extremista eram Maria Gergner Prestes ou Olga Benrio, Auguste Elise Evert ou Machla Berger, Carmem Alfaia de Ghiola, Julia dos Santos, Eneida Costa de Moraes, Valentina Leite Barbosa Bastos, Maria Werneck, Eugnia lvaro Moreira e Armanda lvaro Alberto. Tinham participado da propaganda comunista em nosso pas, velada ou ostensivamente, em colaborao na imprensa, ou colaborando com seus maridos ou parentes na difuso, entre ns, das idias comunistas. 329
Em Caxias, assim como em outras cidades, surgiu um Comit de Mulheres Pr- Anistia, voltado luta pela libertao dos presos revolucionrios da rebelio comunista de 1935 e das militantes femininas. Em junho de 1937, Armanda lvaro Alberto, Maria Werneck de Castro e Valentina Barbosa foram libertadas, mas somente em julho foram julgadas e absolvidas, no pela convico de suas inocncias, mas pelo excesso do prazo para a formulao das culpas. Como noticiara o jornal A Vanguarda: [...] As absolvies no retiraram muito dos absolvidos, sua condio de agitadores e de inimigos do regime. 330
A libertao de Armanda ocorreu no mesmo ano em que se instalou no Brasil a ditadura varguista, o que a afastou da vida poltica e do movimento de mulheres. At o golpe de 1964, dedicou-se sua proposta pedaggica na Escola Meriti, publicou vrias obras sobre educao infantil e livros didticos, ampliou sua escola e atuou na criao da Fundao lvaro Alberto. 331
Com a derrota do Estado Novo, a anistia para os presos polticos que ainda permaneciam detidos foi concedida. Muitos Comits Femininos Pr-Anistia foram
328 MIGNOT, 1997, pp. 235-244. 329 MIGNOT, 1997, p. 256. 330 Apud MIGNOT, 1997, p. 260. 331 SCHUMAHER, Schuma e BRAZIL, rico Vital (orgs.). Dicionrio mulheres do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000; Fundao Dr. lvaro Alberto: Uma Instituio que Honra a Cidade, Jornal Tpico, 23/08/1958, p. 12.
182 transformados em Comits de Defesa da Democracia e da Paz Mundial. Com a abertura poltica, o movimento de mulheres conseguiu se reestruturar e, em 1946, um grupo de mulheres, formado por intelectuais e trabalhadoras, reuniu-se para retomar a organizao feminina, fundando a Associao Feminina Fluminense (AFF), em Niteri. Segundo Elza Dely Veloso Macedo, em sua obra Ordem na Casa e Vamos Luta, a AFF tinha como objetivos fomentar a criao de ncleos, coordenar as atividades conjuntas, assessorar os ncleos existentes e aproximar a AFF dos departamentos femininos dos sindicatos em torno das demandas femininas. A AFF conseguiu articular ncleos no centro de Caxias, em Xerm, Mag, Campos etc. Esses ncleos receberam vrias denominaes: Comit Feminino, Ligas Femininas e Unio Feminina. Alm das demandas unificadoras, cada ncleo articulava-se a partir de demandas locais como bica dgua, escola para o bairro, calamento de rua, limpeza de uma vala, assistncia mdica, luz etc. A carestia foi uma das demandas que mais mobilizaram os ncleos femininos no Brasil inteiro. 332
Em Caxias, Lydia Cunha participou do Comit Pr-Anistia de Caxias, do Comit pela Democracia e pela Paz e foi uma das fundadoras da Unio Feminina Duque de Caxias (UFDC). Seu companheiro, Jos Antnio da Cunha, 333 era comunista e havia sido preso durante o Estado Novo. Aps a abertura poltica, ele foi eleito vereador nas eleies de 1947. Entretanto, sua presena na Cmara foi extremamente curta: assumiu em outubro e perdeu o mandato em novembro do mesmo ano. 334 Apesar de casada com um comunista, Lydia no se filiou ao partido e manteve-se apenas como militante do movimento feminista local. No incio dos anos 50, ela ingressou na Federao das Mulheres do Brasil (FMB). A federao foi gestada a partir da experincia do Instituto Feminino para o Servio Construtivo (IFSC), constitudo em 1946, no qual diferentes grupos de mulheres articulavam-se. Preservao da paz mundial, solidariedade humana, adeso a causas nacionalistas e a causas sociais como a luta contra a carestia, a proteo infncia e juventude eram bandeiras que unificavam diferentes grupos de mulheres.
332 MACEDO, Elza Dely Veloso. Ordem na Casa e Vamos Luta! Movimento de Mulheres no Rio de Janeiro 1945-1964. Lydia Cunha Uma Militante. Rio de Janeiro, 2001, pp. 117-148. Tese de Doutorado em Histria do Departamento de Histria da UFF. 333 Jos Cunha trabalhava no escritrio imobilirio de Manoel Vieira como contador. Manoel Vieira loteou parte do atual centro de Caxias, entre a atual Av. Nilo Peanha e S. Joo de Meriti. Informaes obtidas na entrevista realizada no incio de 2002 com Lucia Cunha, filha de Lydia e Jos Cunha. 334 Graas anulao da votao de uma das sees, seus eleitores foram convocados para um novo pleito. Aps apurao, Jos Cunha ficou na suplncia. Ver CMARA MUNICIPAL DE DUQUE DE CAXIAS. O Legislativo Duque de Caxias 40 anos. Rio de Janeiro: Mimeo, 1987.
183 No mesmo ano, o IFSC foi convidado a participar do Conselho da Federao Democrtica Internacional de Mulheres (FDIM) e, em 1947, Alice Tibiri representou as mulheres brasileiras no I Congresso do FDIM, realizado em Paris. Nele, as federaes nacionais afirmaram o compromisso com a luta pela igualdade entre homens e mulheres, pela abolio das discriminaes, pelo desarmamento e pelo combate ao imperialismo. Ainda em 1947, foi decretada a Lei de Segurana Nacional e, com ela, a cassao do PCB. No ano seguinte, os mandatos foram tambm cassados e muitos sindicatos sofreram interveno. As passeatas pela democratizao, pela defesa do petrleo e contra a carestia se intensificaram. Prises foram efetuadas, e algumas mulheres foram mortas em confrontos com a polcia. Apesar disso, o movimento de mulheres expandiu-se e, em 1948, quatro delegadas brasileiras participaram do II Congresso do FDIM, na Hungria. No ano seguinte, a FMB ganhou estatuto jurdico. 335
Nos anos de 1950 e 1952, delegaes femininas se fizeram presentes nos congressos internacionais em defesa da paz e, em 1953, no Congresso Mundial de Mulheres, em Copenhague. Entre as delegadas brasileiras, estava Lydia Cunha. Aps o congresso, um grupo latino foi convidado pelo Comit Antifascista de Mulheres Soviticas a conhecer a URSS. Lydia expressou, em suas anotaes, certo encantamento com a viagem e com a experincia, mas permaneceu fora dos quadros do PCB. Elza Dely aponta em sua pesquisa que as militantes do movimento de mulheres no eram em sua maioria comunistas, apesar da presena de muitas delas. Logo, o movimento transitava entre a perspectiva marxista e a liberal. Para a primeira, a opresso sofrida pela mulher resultava dos padres da sociedade capitalista, portanto a dominao e a opresso s poderiam ser eliminadas com a revoluo. Na segunda, o investimento nas conquistas especficas e imediatas e a lgica da unidade a partir do gnero predominavam. Todavia, o PCB definiu como seu projeto o fortalecimento dos movimentos sociais e a organizao das massas. Logo, as lutas especficas tambm eram afirmadas por suas lideranas. Por meio do estudo da trajetria de Lydia Cunha e de seu arquivo pessoal, cedido pelas filhas, Elza Dely apontou algumas consideraes acerca da identidade do movimento feminino. A primeira est relacionada ao perfil das militantes. As mulheres de projeo eram as casadas, havia todo um discurso de valorizao da feminilidade, do papel de ordenadora do lar. Para exercer a militncia, a casa deveria estar organizada, isto , crianas arrumadas, alimentadas e na escola; a casa e o marido bem cuidados. A
335 MACEDO, 2001, pp. 144-187.
184 segunda est relacionada ao perfil urbano do movimento. Na fronteira com o movimento urbano, surgiram alguns ncleos rurais, como os de Xerm, a partir da articulao via militncia comunista. O ncleo localizado em Xerm era inicialmente uma comisso de mulheres da Associao dos Lavradores Fluminense. Josefa, 336 esposa de Pureza, era uma de suas articuladoras. Inicialmente, ela atuou na organizao da comisso de finanas, criada a fim de obter recursos para o movimento, e, posteriormente, na organizao das mulheres. Nos depoimentos de Josefa, podemos identificar com clareza a importncia do papel da camponesa na luta diria em Xerm. Elas preparavam o alimento, cuidavam das crianas, organizavam os almoos e festas com fins de arrecadao de finanas, participavam junto com as crianas dos acampamentos e das ocupaes. Nos momentos de conflitos, pegavam nas espingardas para defender a posse da terra. Quando os maridos eram presos, a estratgia da comisso de mulheres para libertar os lavradores era a de fazer presso na delegacia. Aps cada priso, elas pegavam o trem na Estrada de Ferro Rio DOuro, desciam no Lote XV e, de l, seguiam para a delegacia de Caxias. Acampavam na porta at seus maridos serem soltos ou mediante a promessa da Polcia de libert-los naquele mesmo dia. Segundo Josefa, houve situaes em que elas permaneceram durante quase todo o dia na porta da delegacia, sem ter o que comer at que seus companheiros fossem libertados. Na medida em que o trabalho da comisso estava articulado com a Associao Feminina Fluminense, as lideranas das trabalhadoras rurais de Xerm entraram em contato com as experincias femininas de diferentes lugares, com os congressos regionais, nacionais e internacionais, sobretudo com as demandas unificadoras dos movimentos de mulheres. Josefa foi escolhida como delegada, representando as trabalhadoras rurais no Congresso de Mulheres, em 1953, realizado em So Paulo, e no I Congresso Latino-Americano de Mulheres, em 1954, no Rio de Janeiro. 337
A militncia de Josefa, o contato com comunistas por conta da filiao do marido e o incentivo dele para que ela ingressasse ao PCB foram fatores determinantes
336 Josefa nasceu em 1924, em Alagoas. Filha de bias-frias, viu sua me morrer por falta de recursos mdicos e seu pai, de doena de Chagas. rf, passou ainda pequena a trabalhar em casa de famlia, em troca de moradia e comida. Em seus depoimentos, ela se considerava uma escrava domstica. Quando, ainda jovem, conheceu Pureza, residente do Rio de Janeiro, vivo e com dois filhos, casaram-se e vieram para o Rio de Janeiro. Informaes obtidas nas entrevistas feitas com Josefa Paulino da Silva nos anos 90. Os depoimentos de Josefa esto reunidos em 15 fitas transcritas. 337 Ver as entrevistas feitas com Josefa.
185 para a sua deciso. Segundo seu depoimento, o marido lhe dizia que ela j fazia o trabalho do partido, portanto a filiao seria apenas a legalizao de algo que j existia. A experincia nos congressos, a formao e as orientaes partidrias levaram Josefa a intensificar a atuao na organizao e na formao das mulheres. Para isso, contava com a presena de Lydia Cunha (FMB), de Maria Felisberta Baptista Trindade (AFF), de Vita Campos (assessora do PCB), entre outras. As discusses giravam em torno da experincia do socialismo russo, da luta pela paz e do movimento contra a guerra da Coria e contra a bomba atmica, da luta pelos direitos femininos e as comemoraes do 8 de maro, da luta pela reforma agrria e contra a carestia, da sade da mulher, da necessidade da organizao das mulheres do campo etc. A partir de 1953, novas associaes de lavradoras foram surgindo. Entre elas, estava a Comisso de Mulheres de Piranema, a do km 41, a Associao Feminina de Barro Branco e a de Papa Folha, todas na Baixada Fluminense e filiadas AFF. Em 1956, uma delegao de trabalhadoras rurais participou do congresso estadual e, logo depois, do nacional, ambos realizados no Rio de Janeiro. No congresso nacional, Josefa foi escolhida para representar as camponesas no Congresso Mundial de Mulheres, que se realizaria na Hungria. Assim como ocorreu com Lydia, ela tambm esteve em Moscou. Durante os relatos de suas memrias de viagens, Josefa expressou emoo e tristeza, transbordando lgrimas, apesar do tempo passado. A dor de lembrar da fome e de comparar a condio das trabalhadoras rurais em Caxias com as de Moscou fez ecoar um silncio de uma dor adormecida trazida pelas recordaes. Segundo ela, ao chegar a Moscou, a delegao feminina foi recebida com uma mesa farta, fazendo-a lembrar-se dos seus, talvez sem ter o que comer. Para ela, havia dor em ver as camponesas russas fortes e utilizando tratores em seu trabalho, enquanto os trabalhadores rurais fluminenses preparavam e cavavam a terra para o plantio com as mos e com um pedao de pau. A viagem afirmou sua convico no socialismo e no PCB. Sua experincia no movimento e, principalmente, no PCB lhe assegurou o acesso a uma formao poltica e ao exerccio contnuo e disciplinado dos registros de prestao de contas de sua militncia aos companheiros. Estudar, planejar e registrar tornaram-se uma prtica cotidiana na vida de Josefa at a sua morte. O que fica evidenciado no movimento de mulheres do perodo recorrente a forte presena do internacionalismo, da vinculao de algumas das bandeiras do PCB s das mulheres, da manuteno das lutas especficas e localizadas. O movimento
186 cambiava entre um discurso politizado e a prtica da assistncia. A experincia poltica das mulheres militantes lhes possibilitou ocupar a arena poltica, superar os limites territoriais, projetar a certeza na igualdade e assumir a perspectiva da transformao social. Em agosto de 1962, a Luta Democrtica criou uma coluna chamada Luta Feminina, na qual Maria Silva era redatora. A coluna se apresentou como sendo diferente das outras, por ser uma coluna da cidad carioca, escrita pelas mulheres. No seria, portanto, dedicada culinria, ao sentimento ou moda.
Neste cantinho a mulher da Guanabara encontrar espao para pronunciar-se sobre problemas que no dizem respeito s preocupaes do vesturio, do corao ou da mesa. Aqui poder debater as suas preocupaes polticas, sociais e econmicas, seus problemas de trabalho, seus receios e esperana sobre a educao e o futuro das novas geraes. Aqui poder protestar contra as causas da alta do custo de vida, bem com contra a desorganizao da sociedade que gerou a ignomnia da existncia de centenas de homens e mulheres sem teto, dormindo s portas e contra as paredes dos suntuosos edifcios palacianos da cidade maravilhosa. 338
A coluna criticava a imprensa feminina e propunha ser, inicialmente, o lugar de fala da mulher carioca e, posteriormente, da mulher fluminense. No era para qualquer mulher que a coluna se dirigia, mas sim para a militante e para as associaes femininas. A Luta Democrtica apresentada na coluna como uma tribuna livre, independente e orientada por uma poltica nacionalista, antiimperialista e antifeudal. Logo, seria o nico peridico capaz de ser o porta-voz das lutas femininas e do movimento, ao mesmo tempo em que representava e defendia os interesses da mulher. Ao afirmar que as mulheres constituam 50% do conjunto da populao e que cada vez mais ocupavam lugar no mercado de trabalho, a coluna insinuou a justificativa para a sua criao. Ao mesmo tempo em que ela se tornava um espao de disputa pela fala da mulher e aproximava a candidatura de Tenrio do movimento de mulheres, a postulava-se como instrumento de formao e de conscientizao da responsabilidade feminina pelos encaminhamentos e solues dos problemas nacionais. H de se considerar que, ao criar a coluna, Tenrio Cavalcanti pretendia se aproximar desse eleitorado, mas reconhecia tambm a importncia e a visibilidade das organizaes femininas, principalmente da Liga Feminina da Guanabara. Na coluna de 11 de agosto de 1962, a atuao da Liga exaltada:
338 Coluna A Luta Feminina, Luta Democrtica, 07/07/1962, p. 4.
187
Regozijamos-nos com a ao da Liga Feminina do Estado da Guanabara, que, com mais de dois anos de existncia, tem estado presente, diariamente, na luta contra a carestia. A luta comeou em 1961, com a entrega de um memorial ao presidente da Repblica. Estudando, denunciando, apelando e exigindo. Foi no caso do leite, do acar, foi na destituio do Plenrio da COFAP, 339 foi no acervo de documentos apresentados presidncia e s autoridades sobre os negcios escusos dos grandes produtores, intermedirios e latifundirios, esclarecendo ao povo sobre a ao nefasta dos trustes.
As associaes femininas de Caxias assumem a luta contra a carestia e a sonegao, juntamente com a Liga da Guanabara. Imensamente atingidas pelo desabastecimento e pela alta dos alimentos bsicos, as mulheres se mobilizaram, conseguindo maior visibilidade. Assim, essas organizaes no poderiam ser desconsideradas nas disputas eleitorais. Vale lembrar que, na fase trabalhista da Luta Democrtica, a influncia do PCB e a divulgao de suas bandeiras de luta foram acordadas previamente.
IV.6 O debate tnico e a Unio Cultural dos Homens de Cor
A populao caxiense nos anos 50 e 60 constitui-se de forma significativa pela presena de negros. Segundo o censo de 1955, a populao de Caxias era composta por maioria de negros e pardos. Evidentemente, ainda era necessrio relativizar o nmero da populao branca, visto que, usualmente, a concepo do que vinha a ser negro restringia-se cor da pele. Logo, apesar de ser filho de negro, um indivduo com a pele mais clara poderia se considerar branco ou moreno.
Populao Presente por Sexo e Cor no Municpio de Duque de Caxias Ano: 1955 Classificao por cor Homens Mulheres Total Brancos 22.002 20.708 42.710 Pretos 10.695 10.482 21.177
339 A Comisso Federal de Abastecimento e Preos (COFAP) foi criada em 1951 por conta da presso do movimento feminino. A comisso era constituda de 13 representantes do comrcio, da indstria, da lavoura, da pecuria, das cooperativas de produto e consumo, da imprensa, das Foras Armadas, do Ministrio da Fazenda, da Aviao e Obras Pblicas. Havia ainda a presena de economistas do Ministrio da Fazenda. A presidncia da COFAP era nomeada pelo presidente da Repblica. Ver DHBB Ps-30, 2000, v. II, p. 1.466.
188 Amarelos 15 13 28 Pardos 14.108 13. 678 27.786 Total 47.173 45. 286 92.459 Observao: Somando-se o nmero de populao negra e parda, teremos um total de 48.968. Fonte: Censo Demogrfico do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: IBGE, 1955, v. XXIII, tomo I, p. 69. [Srie Regional.]
Apesar dessa presena, os registros e pesquisas em torno do negro na Baixada so incipientes. Essa presena permanece ainda hoje, no silncio e no esquecimento da historiografia. Ao longo de nosso levantamento de fontes e dos grupos de poder, conseguimos localizar nas obras de Santos Lemos e nas de Solano Trindade a presena negra em Caxias, nos anos 50 e 60. No caso do primeiro, Caxias aparece como lugar de excluso do negro. Ele publicou trs obras narrativas de memrias da cidade nos anos 50 e 60: Sangue no 311 (1967), O negro Sabar (1977) e Os donos da cidade (1980). O conjunto de suas obras faz parte de uma srie nomeada: Crimes que Abalaram Caxias. Santos Lemos apresentado na obra Sangue no 311 por Lauro da Silva Mello inicialmente como jornalista, depois como escrivo de polcia, advogado e, em fins de 60, delegado de uma cidade interiorana do estado. Segundo ele, Santos Lemos era um homem baixo, simples, que conhecia o submundo naquele perodo, descrevendo-o com habilidade em suas obras. Alguns chegam a apont-lo como o socilogo da cidade. Las Costa Velho o descreve na mesma obra como a testemunha dos atos selvagens.
Durante mais de 15 anos, Santos Lemos viveu neste mundo. Chegou a ser correspondente de oito jornais da antiga capital federal [...] O ambiente asqueroso chegou a transform-lo num alcolatra. 340
O prprio Lemos apresentava-se como aquele que estava to envolvido com o submundo que a ele havia se incorporado. 341 Quando Santos Lemos escreveu O negro Sabar, j era delegado, reprter e membro da Academia Duquecaxiense de Letras e Arte. Nessa obra, narra a trajetria de Ismael Gonalves da Silva, conhecido como Sabar, e ao mesmo tempo da cidade fronteiria capital federal. Carlos Ramos a define como uma narrativa da vida turbulenta do famoso bandido como pretexto para
340 LEMOS, 1967, p. 10. 341 Lemos presenciou a sada de policiais com um preso que seria transferido no dia seguinte. Ele foi obrigado a acompanh-los at a Rio-Petrpolis e a participar da execuo do preso. Isto foi imposto pelos policiais como garantia de seu silncio.
189 apresentar a realidade de uma poca e de uma cidade: [...] uma cidade reduto migratrio de nordestinos que ganharam a capital federal e faziam da ainda selvagem regio o seu dormitrio. 342
Lemos afirma, no prefcio, que sua obra O negro Sabar uma descrio da cidade no perodo de 1952-64 e da biografia de um homem, filho de coveiro, nascido em Mag e fruto de suas condies materiais e da discriminao racial. Sabar apresentado com um homem negro alto, freqentador dos rendez-vous da cidade, principalmente o de Olinda de Macedo, situado no centro de Caxias, prximo sede da prefeitura. Adorava maconha, cachaa, baralho, bilhar e a branca Rosa para se deitar. Algumas vezes, atuava como cafeto dela e realizava pequenos assaltos. Quando a coisa apertava, sumia por um tempo, mas logo retornava. Em situaes de fuga, poderia esconder-se provisoriamente no terreiro de Joozinho da Gomia. Sem formao e emprego, Sabar era o retrato de muitos negros e negras da cidade. Para sobreviver, eles viviam da prostituio, dos assaltos, da venda de maconha, das jogatinas, dos trabalhos pesados e temporrios ou, ainda, dos empregos de baixa remunerao. Aps a tentativa de um assalto, Sabar foi preso. Lemos relatou as torturas sofridas por ele na Delegacia 311, inclusive as surras de pau-de-arara que o deixaram quase morto e com seqelas terrveis. Quando saiu da priso, Sabar estava impossibilitado de realizar trabalhos pesados, restando-lhe a prestao de servio nas casas de famlias, encerando e limpando. Dormia de favor na garagem da delegacia, graas interferncia de Lemos. Sabar visto na obra como um bom malandro, vtima da violncia policial e da estrutura econmica. Ironicamente, regenerou-se a partir do sofrimento, sendo incorporado ao prprio espao da delegacia. Lemos dedica parte de suas obras para descrever o racismo em Caxias e registra vrias falas de negros e negras portadores de uma conscincia da discriminao racial. Em Sangue no 311, ele relata que, em 1954, a Cmara sancionou uma deliberao que impedia a renovao das licenas dos hotis que exploravam o lenocnio. O delegado Amil Ney Rechaird enviou uma ronda para assegurar o fechamento dos hotis, dos rendez-vous e das boates. Vrias mulheres foram presas, mas, segundo Lemos, apenas as negras e as velhas eram trancafiadas.
As bonitinhas ou com fama apenas transferiam-se da esquina do pecado para um hotel das luxrias, de braos dados com o alcagete, soldado ou
342 LEMOS, 1967.
190 investigador, pois quase todos tinham seus amantes no bas fond ou variavam cada noite com uma meretriz, que nunca era presa. 343
Algumas prisioneiras eram libertadas pelos cafetes, preocupados com o prejuzo de uma noite. J as negras e velhas no escapavam da ronda e da permanncia no xadrez. Ele nos apresenta COFAP, uma mulher extremamente gorda, com quarenta anos e mais de 25 de prostituio. Viera moa do Nordeste e, como no conseguira emprego, prostituiu-se para matar a fome. Era uma meretriz barata que servia aos trocadores de nibus ou estudantes nos lugares escuros do Shopping Center. 344
J Alzirinha era mulata de nariz achatado, gostava de cachaa e de maconha. Nada sabiam dela, exceto que era baixa e que sabia dar cabeada e rasteira como homem. No tinha medo da polcia e gostava de xingar os casais bem comportados. Jamais dormia com um homem que fosse da polcia, dizendo: Nem pagando! No gosto de tiras. S sabem fazer desgraa da gente, protegem os brancos, batem nos pretos. Em cima da mame aqui, eles no sobem. 345
Alzirinha tinha uma luta com o mundo: o da discriminao racial. Achava que a pobreza que sofreu no Nordeste, o seu desvirginamento na plantao de cana em Pernambuco e a prostituio nas ruas imundas de Caxias eram produtos de sua epiderme escura. 346
A conscincia do racismo sofrido estava presente nos relatos dos atores que o autor nos apresenta. Ele descrevia com certa admirao o sbio Fi, atravessador de ervas que vivia do aluguel de umas casinhas em uma vila. Alm disso, havia ainda os mixes de sua companheira apaixonada Geralda. Apesar de ser chamado de Rei da Maconha, Fi no era considerado perigoso. Dificilmente era preso porque dava propina para a polcia. Santos Lemos chamava Fi de sbio porque conhecia a histria do povo negro, de Zumbi, e explicava a condio do negro na atualidade. Para ele, a vida na cidade era uma reatualizao do passado escravo. A situao de explorao, o envolvimento com a maconha e com a prostituio, a violncia expressa pelas prises dos negros e pelo fato de os pretos encherem o cemitrio do Corte Oito eram os novos sinais da escravido imposta. Ele dizia sobre Palmares:
343 LEMOS, 1967, p. 76. 344 LEMOS, 1967, p. 77. 345 LEMOS, 1967, p. 81. 346 Ibidem.
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[...] queriam viver suas vidinhas, livres, trabalhando para eles mesmos. Brancos para l, negros para c [...] mas os homens brancos no se contiveram, era folga demais dos negros. Precisavam dos crioulos para a lavoura. A Histria se repete. Os brancos de hoje, os poderosos de Caxias, querem acabar com os negros, com os pobres, querem galgar postos sobre os cadveres dos homens de cor. 347
Fi responsabilizava o racismo e a pobreza por sua prpria condio e a de Geralda, que se prostituiu aos 15 anos, aps o seu pai ter abandonado sua me. Ao lermos as trs obras de Lemos, perguntamo-nos o porqu da nfase dada discriminao racial na cidade. Seria por conta do envolvimento pessoal que ele mantinha com esses negros ou pelo fato de o racismo ser to acentuado na cidade que era impossvel no se referir a ele? Talvez as duas coisas. O prprio autor afirmou em suas obras que os personagens narrados no eram virtuais, mas reais. Sua histria contada uma narrativa do que ele via; era o seu testemunho. A condio de pobreza do negro na cidade, associada vinculao de sua imagem marginalidade, fez com que negros letrados, mdicos, advogados, artistas e profissionais liberais apostassem em iniciativas de afirmao do negro. Surge, ento, em Caxias um ncleo da Unio Cultural Brasileira dos Homens de Cor (UCBHC), em 1949. As instituies de assistncia e as culturais como os clubes negros e as unies culturais proliferavam pelo pas aps o fechamento da Frente Negra Brasileira, 348 em 1937. A UCBHC de Caxias tinha sua sede no centro da cidade, com biblioteca, assistncia mdica, dentria e jurdica. Era composta por uma diretoria, duas subdiretorias, uma em Tingu e outra em Parada Anglica. Possua ainda vrios departamentos, como o feminino, o de propaganda, o de cultura e o de assistncia. A Unio organizava festejos, almoos, comemoraes nos dias da famlia negra e datas consideradas importantes, promovia atividades culturais que dessem visibilidade ao artista negro, movia processos em defesa dos associados, realizava concursos de beleza etc. Em 1954, Lea da Cruz Valentim foi coroada rainha da Unio Cultural, tendo obtido
347 LEMOS, 1980, p. 24. 348 A Frente Negra Brasileira foi criada em 1931 e congregava cerca de duzentos grupos e instituies. Voltada para a luta contra a discriminao racial, articulava variadas aes de protesto condio do negro. Ver SANTOS, Paulo Roberto dos. Instituies afro-brasileiras. Rio de Janeiro: Centro de Estudos Afro-Asiticos, 1984.
192 4.521 votos. Sua votao expressa, de certa forma, o alcance do envolvimento da Unio. 349
Lemos dizia que a UCBHC era um instrumento dos negros metidos a brancos que se valiam da lei e da cultura para fazer frente aos brancos: Eles lutavam com bailes e livros contra os brancos, sempre mais poderosos, que s queriam as negras para a cozinha ou para a cama [...]. Nos bailes da Unio Cultural, gente como Sabar no seria bem-vinda. Para Sabar, restavam-lhe seus amigos Fi, Rosa e Joozinho da Gomia. 350
Santos Lemos chamava os candombls de malditos, dizia que o som dos atabaques fazia parte do cenrio da cidade e que o Babalorix Joozinho da Gomia era um dos mais importantes donos da cidade. Joo Alves Torres Filho nasceu em 1914, era baiano, catlico at os 16 anos, quando uma doena o levou ao candombl. Tornou-se filho-de-santo de Jubiab (Severiano Manoel de Abreu), permanecendo em sua casa por trs anos. Passou a morar e atender na casa de sua madrinha, na Estrada da Liberdade. Posteriormente, precisou de um espao maior, instalando sua casa na Rua da Gomia, no bairro de So Caetano. As festas, os jogos de bzios e os ritos de iniciao tornaram sua casa conhecida, ampliando, assim, o nmero de seguidores de Joozinho. Entre os visitantes mais conhecidos, estavam Jorge Amado, Edson Carneiro e Roger Bastide. 351 Jorge Amado apresenta o terreiro de Joozinho em sua obra Bahia de Todos os Santos:
Um cruzeiro assinala a entrada do candombl, roa enorme, com srie de construes. Duas so maiores: a casa do pai-de-santo e o terreiro onde se realiza a festa. Joozinho, com um rosrio de contas de coco sobre o camisu, nos recebe em frente casa de Exu [...] Ele um mulato moo, de olhos langues, corpo flexvel de bailarino, agilssimo. Sua voz mansa [...] Jubiab o iniciou e o entregou ao caboclo Pedra Preta [...] A casa do caboclo uma rvore, uma gameleira sagrada, defendida por uma cerca de bambu, enfeitada de fitas, um altar na floresta [...]. 352
Jorge Amado ainda nos diz que a festa de Pedra Preta, em 2 de junho, era a maior realizada no terreiro da Gomia. Todo o terreiro ornamentado com bandeirolas, fitas, flores, mantos rendados para receber visitas de longe, artistas, pais-de-santo,
349 Luta Democrtica, 25 de maio de 1954. 350 LEMOS, 1980, pp. 78-79. 351 VARGAS, Francisco. Joozinho da Gomia: Candombl Perde o Rei, O Cruzeiro, 31 de maro de 1971, pp. 28-32. 352 AMADO, Jorge. Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistrios. Ilustrao de Carlos Bastos. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 155.
193 filhos-de-santo etc. A bebida Jurema era obrigatria, para no fazer desfeita aos presentes. Havia ainda um refresco de casca de abacaxi ou um alu de gengibre. Os atabaques, os agogs, as cabaas, as filhas-de-santo, as roupas bem acabadas, as danas, as coreografias ensaiadas por Joozinho, os cantos, as incorporaes e a comida completavam o cenrio. Uma outra festa que mereceu destaque do autor foi a dedicada aos mortos do terreiro: ogs, filhos e filhas-de-santo, em que, segundo dizem, os eguns ainda ligados ao terreiro vm na noite de exex danar em meio aos vivos, cantar seus cantos preferidos, honrar seus deuses. 353
O terreiro de Joozinho da Gomia tornou-se um dos mais importantes divulgadores do candombl de Angola e de caboclo na Bahia e, posteriormente, no Rio de Janeiro. Entrelaando as tradies bantas e nativas (indgenas), espalhava encantamentos por meio do caboclo Pedra Preta que incorporava. J o candombl de tradio jej-nag (influncia ioruba e fon) no via com bons olhos a incorporao das divindades indgenas tradio africana. Em fins de 1942, Joozinho veio ao Rio de Janeiro para instalar no Distrito Federal sua nova casa. Entretanto, as perseguies s religies de origem africana o fizeram retornar Bahia. Em 1948, com 34 anos, retornou ao Rio e instalou sua casa em uma periferia do Distrito Federal: Duque de Caxias. Nesse perodo, a Baixada Fluminense havia se tornado uma alternativa para os terreiros de candombl, principalmente ps a reforma de Pereira Passos e a intensificao das perseguies aos espaos sagrados afro-americanos. O terreiro da Gomia ganhou popularidade e tornou- se um espao de culto e de espetculos, onde as festas atraam pessoas importantes e trabalhadores pobres da capital e periferias fluminenses. Segundo a revista O Cruzeiro, em dias de festa, o terreiro de Joozinho reunia mais de seis mil crentes do candombl. 354
No dia do sepultamento de Joozinho da Gomia, em 1971, mais de quatro mil filhos-de-santo do Babalorix acompanharam o cortejo, o que revelou a permanncia de sua popularidade na regio at a sua morte. Entre os polticos importantes que mantinham contato com Joozinho, podemos destacar: Ademar de Barros, Getlio Vargas, Juscelino Kubitschek, embaixadores da Frana, do Paraguai e da Inglaterra, ministros do governo brasileiro etc. 355
353 Para ver mais: AMADO, 2002, pp. 154-161. 354 LEMOS, Ubiratan de. Joozinho da Gomia no Tribunal de Umbanda, O Cruzeiro, 17 de maro de 1956. 355 O Cruzeiro, 31/03/1971.
194 Em 1956, Joozinho da Gomia foi levado ao Tribunal de Umbanda, por ter desfilado no baile de carnaval, no Teatro Joo Caetano, travestido de Arlete, uma vedete da poca. Cerca de 3.800 tendas de Umbanda do Rio de Janeiro julgaram seu comportamento. Segundo a imprensa, a diretoria da Confederao Umbandista deixou os bzios resolverem e ele foi absolvido. Atravs das manchetes de 1956, foi possvel identificar as crticas ao comportamento ousado do Babalorix e aos presentes caros recebidos em troca de favores. Na revista O Cruzeiro, de 17 de maro de 1956, um jornalista indagou a Joozinho acerca das acusaes feitas contra ele, principalmente no que se referia cobrana de entradas no terreiro e aceitao de presentes caros em troca de favores. Frente s acusaes, Joozinho respondeu:
Voc conhece esse tipo de pessoa. Mas o que eu posso fazer para calar a lngua dessa gente [...] J sei que falaram dos carros, das porcelanas que tenho em casa. Sim, meu velho, eu tenho recebido alguns presentes por insistncia dos que foram beneficiados por favores meus. Mas no cultivo uma indstria de presentes, note bem! Tenho profisso liberal. Sou costureiro, alfaiate e crio porcos. Apesar de ser um criador-mirim, ponho o suficiente para comprar o feijo e a carne-seca. 356
Joozinho era um amante do carnaval, um exmio danarino que organizava espetculos nas casas de show, promovendo o candombl e a cultura negra. Por sua vez, era considerado por muitos como diplomata, um mediador entre seus filhos e as autoridades polticas que compunham a sua esfera de influncia. Era tido tambm como um acoiteiro de seus filhos-de-santo, mesmo daqueles que fugiam da polcia. A partir de 1952, ele manteve uma escola primria gratuita para trinta crianas, alargando ainda mais seu prestgio. Associou-se Sociedade Pr-Melhoramentos da Vila Leopoldina, contribuindo financeiramente para os investimentos de melhoria no bairro. Produzia e apresentava cantos religiosos nas rdios, tornando-se um dos mais expressivos babalorixs da Regio Fluminense, eleito pela imprensa como Rei do Candombl. Segundo Newley, Joozinho era o maior benfeitor de Caxias e recebia em mdia 140 pessoas por dia. Ele conseguiu uma bolsa de estudos e emprego na Frana para o fsico Natanael Ror, por meio dos contatos mantidos com diplomatas franceses. Ajudava seus filhos, financiava eventos e festas sociais:
356 O Cruzeiro, 17/03/1956.
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Estivemos com Joozinho para convid-lo para uma festa que estvamos organizando no Clube dos Quinhentos. Perguntamos quanto custaria a sua apresentao e ele financiou toda a festa. Pediu apenas cem convites para distribuir para seus amigos diplomatas. Joozinho ficou emocionado, dizendo que o convite proporcionou a ele a maior glria de sua vida: a sociedade de Caxias o chamava, o aceitava e o reconhecia. A apresentao de Joozinho foi o maior sucesso e provocou um rebu na cidade. 357
Joozinho mantinha tambm boas relaes com o getulismo. Recebia diplomatas e polticos do PSD e do PTB, nacionalmente conhecidos. Apesar de sua influncia, o Rei do Candombl no era bem-visto pela maioria das famlias pertencentes aos grupos dominantes locais. Sua condio de gay, suas apresentaes em clubes e boates, sua imagem irreverente e seu credo mantinham o pai-de-santo muitas vezes segregado do convvio social dessas famlias. Por outro lado, da Gomia foi o que mais projetou o candombl de Angola e a cultura afro-americana nos espaos de comunicao, enfrentando preconceitos mltiplos. Diferentes caminhos de superao da condio vivida pelo negro na cidade foram construdos, quer seja pelo caminho da assistncia, do religio ou das mudanas estruturais. Solano Trindade foi a melhor expresso desse ltimo caso. Ele nasceu em 1908, no Recife, e foi dicono da Igreja Presbiteriana. Em fins dos anos 20, deu incio sua produo de poesia negra e sua militncia poltica no movimento negro e de cultura popular. Participou, em 1934, do I Congresso Afro-Brasileiro, no Recife, e do II, em Salvador. Em 1936, participou da fundao do Mulato, a Frente Negra Pernambucana, e do Centro de Cultura Afro-Brasileira. Publicou sua primeira obra Poemas Negros e, em 1940, ajudou a fundar em Pelotas um grupo de arte popular. Chegou ao Rio de Janeiro e, em 1943, atuou na criao do Teatro Folclrico Brasileiro e, em 1949, do Teatro Popular Brasileiro. 358
Em 1943, Solano Trindade j residia em Caxias. Newton Menezes nos relatou em entrevista que ele e Maurcio Azedo atuavam na juventude comunista e ajudavam Solano no Teatro Popular Brasileiro. Em Caxias, Solano e Newton se articularam com Barbosa Leite, Plnio Batista, Guilherme Peres, Rogrio Torres e outros para promover a cultura caxiense. Eles fundaram o grupo ARCO e o jornal O GRUPO, para dar visibilidade s suas propostas: biblioteca pblica, escolas, feiras de livros, cursos de
357 Entrevista realizada em 1995, pelo Jornal Tiro de Letra. 358 Ver TRINDADE, Solano. Tem Gente com Fome e Outros Poemas. Antologia Potica. Rio de Janeiro: DGIO, 1988, p. 37.
196 artes, exposio das artes plsticas, construo de um teatro e de um centro cultural, das obras dos artistas locais etc. Organizaram feiras de amostras culturais, venda de livros, ajudaram na edio e na venda do livro de Jos Lustosa acerca da histria da cidade, e editaram uma revista intitulada Caderno de Cultura. 359
Newton Menezes nos diz na entrevista que, como havia comunistas e liberais no grupo, a unidade se dava a partir do vis cultural. Apesar da unidade, havia diferenas em torno das concepes polticas. Os comunistas, organizados em sua base, atuavam no movimento cultural, em movimentos dos Centros Pr-Melhoramentos de Bairros, nos movimentos operrios (metalrgico, ferrovirio, petroleiro, rodovirio, alfaiates etc.), camponeses e femininos. O partido possua uma sede em Caxias, onde eram realizados encontros, seminrios e debates com alguns nomes do partido e de intelectuais da esquerda. Newton nos relatou que leu uma obra de Leandro Konder e que concorda com o afirmado por ele acerca dos comunistas de seu tempo. Os comunistas eram movidos por uma crena quase positivista e crist. Dar ao povo a fala, a libertao e a possibilidade da transformao social.
Havia um sentimento maior, um sentimento humanista que nos movia. Um sentimento de vida, de negao da opresso. Queramos tirar o povo da misria sem nos importar com os sacrifcios que teramos que fazer. Intuitivamente, ns queramos a essncia do homem, o lugar do homem. Eu, Solano e outros comunistas como Salles, Corina, Z Cunha, Maneco, Grassneo, Batmasterson, Alecrim, Adelino, Valdair, Plnio Batista [...] tnhamos como meta a organizao das massas, fazer as pessoas se organizarem em qualquer coisa. De certa forma, formvamos uma igrejinha, ramos pretensiosos. 360
Para ele, Solano Trindade era portador dessa crena. Sua perspectiva marxista e humanista influenciou imensamente a produo potica. Dizia ter orgulho de sua origem pobre (Meu bairro era pobre, mas ficava bonito se metido um luar) e da descendncia africana e do passado do povo negro (Eu tenho orgulho de ser filho de escravo... Troncos, senzala, chicote, gritos, choros, gemidos. Oh! Que ritmos suaves, oh! Como essas coisas soam bem nos meus ouvidos). O orgulho de sua descendncia oprimida e seu compromisso de classe estavam acima de seu pertencimento tnico.
359 Entrevistas realizadas com Rogrio Torres e Guilherme Peres em 2000, e com Newton Menezes de Almeida Menezes, em 2002. 360 Entrevista realizada com Newton Menezes de Almeida, em 2000.
197 Orgulho Negro Negros que escravizam E vendem negros na frica No so meus irmos Negros senhores na Amrica A servio do capital No so meus irmos Negros opressores Em qualquer parte do mundo No so meus irmos S os negros oprimidos Escravizados Em luta por liberdade So meus irmos Para estes um poema Grande como o Nilo.
Para Solano, o negro s encontraria redeno quando as transformaes estruturais fossem realizadas. Assim pensava tambm a cidade. Para mud-la, era necessrio realizar uma mudana estrutural e universal.
Epigramas Caxienses A cidade onde eu moro como o mundo Tem criminosos e santos H os que exploram E h os explorados Quando o mundo mudar A cidade onde eu moro Mudar tambm...
A posio de Solano, por sua vez, no era imobilista; ao contrrio, era de contestao: Eu ia fazer um poema para voc amada [...] ia falar do seu corpo, de suas mos amadas [...] Quando soube que a polcia espancou um companheiro, o poema no saiu. Acreditava na transformao e a ela se dedicava com o que melhor sabia fazer:
198 arte, poesia e militncia no movimento negro: Alm do po com farinha, muita... muita liberdade. A imagem de Solano Trindade e de seus poemas tornou-se quase uma construo dele como um mito. Entre diferentes setores da cidade, sejam eles conservadores ou de esquerda, Solano visto como o maior poeta negro de seu tempo e o mais dedicado preservao da cultura popular. Via a arte como instrumento valioso de afirmao de identidade e de combate s estruturas injustas. Entretanto, no se pode dizer que o Partido Comunista em Caxias tenha investido de forma significativa na criao de organizaes especficas de composio tnica. Vale ressaltar o papel do PC no sentido de ampliar o horizonte de luta, formar militantes, sistematizar a prtica cotidiana e favorecer a superao das fronteiras locais e do corporativismo. Entretanto, o apoio das esquerdas e, principalmente, do PCB, e a candidatura de Tenrio Cavalcanti, personagem vinculado s foras conservadoras, com uma trajetria intimamente ligada violncia e s prticas polticas rejeitadas pelo partido, nos parecem uma ambigidade. Apesar da contradio, o crescimento dos movimentos sociais em diversas direes desde aqueles voltados a uma demanda de integrao at os voltados transformao mais substantiva da ordem social, atacando os fundamentos das desigualdades e da subalternizao foi visvel em Caxias, principalmente nos primeiros anos da dcada de 1960, antes do golpe militar. As tenses na cidade foram de significativa importncia em 1962: acirramento dos conflitos de terra, do movimento operrio unificado, que culminou com a greve geral, da luta contra a sonegao e a fome implementadas pelas mulheres e, principalmente, do saque que se alastrou por toda a Baixada Fluminense.
IV.7 O saque de 62 e a polcia privada
Em agosto de 1961, Jnio Quadros renunciou presidncia da Repblica e seu vice, Joo Goulart, estava na China. Vrias lideranas sindicais tentaram mobilizar uma greve geral pela volta do presidente, face s tentativas de golpe. No dia 25 de agosto, 18 mil ferrovirios deflagraram uma greve por algumas horas e, no dia 26, foi a vez dos trabalhadores da construo naval no Rio de Janeiro. A campanha pela legalidade mobilizou diferentes setores da sociedade civil e at mesmo os militares. Apesar de a campanha e a mobilizao terem impedido o golpe, no se conseguiu manter o
199 presidencialismo. Em setembro, o regime parlamentarista foi adotado, tendo como primeiro-ministro Tancredo Neves. 361
O ano de 1962 comeou em meio a uma crescente crise econmica e poltica. Congelamento das reformas de base, inflao, perdas salariais, carestia, sonegao de alimentos bsicos por parte dos produtores e dos comerciantes, uma vez que o valor das mercadorias agrcolas e de pecuria sofria desvalorizao. Por sua vez, foi tambm um perodo de crescimento das organizaes operrias e camponesas, das lutas em defesa das reformas de base e da democratizao. Algumas categorias chegaram a entrar em greve e havia ainda a ameaa de uma paralisao nacional para forar a composio de um gabinete ministerial favorvel s reformas de base. As presses da sociedade civil cresceram e o primeiro-ministro Tancredo renunciou. Joo Goulart indicou para substitu-lo San Tiago Dantas, que contava com o apoio dos setores nacionalistas, da esquerda no Congresso e do movimento sindical. Os setores conservadores reagiram e, por meio de seus representantes na UDN e no PSD, vetaram a indicao. Lideranas sindicais, por intermdio das confederaes nacionais, decretaram a greve geral para o dia 5 de julho. No dia da greve geral, Caxias e outros municpios da Baixada Fluminense tornaram-se manchetes dos principais jornais e revistas da poca, como a Luta Democrtica, o Jornal do Brasil e Fatos e Fotos. Devido greve, cerca de vinte mil pessoas, aglomeradas na Praa do Pacificador, esperavam por transporte para chegar ao trabalho. Como no havia conduo, a situao foi ficando tensa. A notcia da existncia de feijo escondido em lojas prximas dali provocou agitaes e saques. A revista Fatos e Fotos chamou o saque de: Motim da Fome e comparou a Baixada com a Arglia, onde o terrorismo foi substitudo pela pilhagem da fome. Dizia ainda a reportagem que o slogan popular era o mesmo em todo lugar: Vamos fazer o que a COFAP no faz e ensinar os portugueses a no roubar.
O povo s saqueou os proprietrios estrangeiros. Em So Joo de Meriti todas as lojas lusas foram saqueadas. O supermercado Duque s foi respeitado porque seu proprietrio, embora portugus, teve a feliz idia de colocar um cartaz: Aqui de um brasileiro e defensor da legalidade! Mas o golpe do nacionalismo no funcionou para todos. 362
361 DHBB Ps-30, 2000, v. III, pp. 2643-45. 362 ALBUQUERQUE, Joo Lus de e outros. Palavra de Ordem no Estado do Rio de Janeiro. Pilhagem de armazm e morte ao comerciante, Fatos e Fotos, n 76, 14-07-1962.
200 Ficava evidenciada a insatisfao da populao com a ausncia da COFAP, no que diz respeito garantia do abastecimento e fiscalizao da sonegao, assim como a revolta contra os comerciantes, principalmente os portugueses, que cobravam valores abusivos pelas mercadorias e ainda sonegavam para vender os produtos por um preo mais elevado. O saque iniciado em Caxias se espalhou pela Baixada. Cerca de 42 pessoas morreram, setecentas ficaram feridas e dois mil estabelecimentos comerciais foram atingidos. 363 Segundo a Luta Democrtica de 7 de julho, s em Caxias havia 675 feridos, oitocentas prises e um prejuzo de dois milhes e meio de cruzeiros. A resposta dos comerciantes veio logo em seguida. Duas polcias privadas, com o efetivo de oito mil homens, foram constitudas imediatamente. Uma pela Associao Comercial e outra pelo delegado Amyl Reichard. Enquanto a revista Fatos e Fotos publicava o que diziam os comerciantes e o chamado Corpo de Voluntrios, a Luta Democrtica abria espao para os setores sindicais. A Luta Democrtica denunciou os crimes, os espancamentos e as forras cometidas vista da polcia, acusando-a de omissa, de estar preocupada com resultados eleitorais e de temer a ao dos poderosos. Em seguida, descreve os dirigentes da polcia clandestina:
Os dirigentes da polcia clandestina, criada pela Associao Comercial de Caxias, so por demais conhecidos de nossa crnica policial. So eles Hydekel de Freitas Lima, candidato a deputado pelo Partido Republicano, seu irmo Juarez Lopes Martins, Getlio Gonalves da Silva e Jovani da Costa Bongosto. Todos registraram antecedentes na polcia. Outros do mesmo grupo j cometeram crimes e curras famosas, obrigando o prprio governador a tomar enrgicas providncias. 364
Ainda no mesmo artigo, setores sindicais estavam preocupados com as acusaes de que eles teriam iniciado o motim e temiam a invaso de suas sedes pela polcia clandestina. Assim narraram as atrocidades cometidas pela gangue:
J se sabe da morte de Gaudncio Maurcio, abatido na Praa do Roberto Silveira ao protestar contra o espancamento que os transviados Newley Lopes Martins, Getlio Gonalves da Silva e Juarez, irmo de Newley, faziam aos que saam de um armazm que estava sendo saqueado pelo povo em desespero.
363 TORRES, Rogrio e MENEZES, Newton. Sonegao, fome, saque. Rio de Janeiro: Consrcio de Administrao de Edies, 1987, p. 8. 364 LAHUD, Jos. Clima de Massacre, Luta Democrtica, 08/07/62, p. 2.
201 Apanhavam eles as garrafas e, com elas, desferiam golpes na cabea dos homens. Gaudncio, ao protestar, recebeu um tiro no ouvido. J noite, em dois carros, a mesma gangue percorreu a cidade, estando seus elementos armados de metralhadora e armas de grosso calibre.
Dirigentes sindicais, por meio da Luta, reivindicaram a ajuda do Exrcito e apelaram ao governador Carvalho Janotti sua interferncia, a fim de evitar um massacre. Questionaram a ao da autoridade policial em criar uma milcia de seis mil homens, quando o Exrcito estaria em condies de suprir as deficincias do aparelho policial. As respostas s acusaes feitas pelos sindicalistas esto contidas na revista Fatos e Fotos, que dizia:
Caxias enfrentou um problema grave de fundo poltico. Por isso, foi criado o Corpo de Milicianos. No dia do saque veio o apelo da AC do Municpio e foram chegando os voluntrios. Em pouco tempo, 250 homens pegavam em armas, em defesa de sua cidade. E durante as horas em que a cidade foi entregue aos saqueadores, eles conseguiram evitar tragdia maior. Polticos tentaram tirar proveito da situao, classificando-os de playboys e transviados. Mas o grupo distribuiu uma nota em resposta. Os transviados eram sete bancrios, 25 estudantes de nvel superior, sete advogados, um piloto, dois radialistas, quatro industriais, cinco contadores. O resto da milcia era composta por comerciantes. 365
Eronildes Batista, presidente da ACIDC e um dos dirigentes do Corpo de Voluntrios, dizia que no havia comando militar e que eles procuraram evitar novos saques e perturbaes. Negou que tivessem acontecido incidentes entre eles e o povo. Afirmou ainda que eles no eram favorveis fome, porm, no eram responsveis por ela.
Ningum acaba com a misria saqueando casas comerciais. O problema mais profundo e no pode ser resolvido com mazorcas. Se o socialismo tem que vir, que venha para todos. E no com alguns comerciantes de Caxias, responsabilizados, ao que parece, pela fome nacional [...] O Corpo de Voluntrios no anda armado, mas est disposto a tudo para garantir a ordem [...] Eles preferem a paz, mas esto dispostos guerra, em defesa de sua cidade e de seu patrimnio. 366
Apesar do confronto de posies, sindicalistas e comerciantes concordam em um aspecto. O saque no foi provocado apenas pela aglutinao de pessoas na praa e pela sonegao, mas principalmente pela misria vivida pelos trabalhadores caxienses.
365 Fatos e Fotos, n 76, 14-07-1962. 366 Ibidem.
202 A cidade sem lei, como a revista chamava Caxias, voltou ordem somente quando o Exrcito ocupou as ruas. Essa ordem, aos olhos de alguns sindicalistas e dos comerciantes, poderia ser rompida pela emergncia de novos conflitos. Os sindicalistas temiam pelo processo repressivo que se seguiria ao saque. J os comerciantes se voltaram para constituir caminhos que lhes protegessem de novas ameaas propriedade e garantisse a reproduo de seus mecanismos de dominao. Nesse sentido, eram necessrias a interferncia do poder pblico e a montagem de um esquema de segurana, seja pblico ou privado, que lhes garantisse proteo. No dia 12 de julho, a ACIDC recebeu em sua sede o governador Janotti, o secretrio de segurana Nicanor Camprio e os deputados estaduais S Rego, Valdir Medeiros e Geraldo Lomar, para discutirem as reivindicaes dos comerciantes no que tangia sua reestruturao e segurana. A associao reivindicou ao governo do estado: indenizao para os comerciantes, a utilizao de uma percia nas casas atingidas; a construo de um batalho da Polcia Militar e um policiamento permanente; a garantia de que a COFAP, em ritmo acentuado, abastecesse o comrcio varejista; a anistia de dbito bancrio e emprstimos para os comerciantes. Solicitaram ainda que as bancadas estaduais e federais fluminenses intermediassem, junto ao Banco do Brasil e ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico (BNDE), a liberao de recursos para reorganizar o comrcio local. J os sindicalistas, que tambm aguardavam a presena do governador e no foram ouvidos, emitiram uma nota de repdio pelo descaso e ressaltaram as preocupaes com o desfecho do processo. 367
Vrias reivindicaes da Associao Comercial foram atendidas, entre elas, a instalao de um Batalho da Polcia Militar em Caxias. Assim, qualquer ameaa ordem poderia rapidamente ser contida. Os comerciantes mais organizados e articulados conseguiram anistia de suas dvidas e a obteno de indenizaes. Alguns conseguiram at ampliar seu patrimnio, como foi o caso das Casas Nelson, que dariam lugar s Casas Sendas. A distribuio de benefcios no chegou a todos os comerciantes. Cerca de 50% dos comerciantes voltaram a funcionar em condies precrias e 30% no se restabeleceram. Somente 20% conseguiram se reerguer por meio dos financiamentos recebidos, o que gerou uma centralizao do capital comercial. 368
Jos Cludio Souza Alves analisou a violncia na construo da Baixada Fluminense. Para ele, a experincia do saque imprimiu nos comerciantes da Baixada a
367 Luta Democrtica, 13/07/1962. 368 TORRES e MENEZES, 1987, pp. 27-28.
203 possibilidade de organizao de uma milcia privada, financiada por eles, que lhes garantisse segurana, eliminando aqueles que os ameaassem de uma forma ou de outra, dando origem, assim, formao dos grupos de extermnio na Baixada Fluminense, ou seja, instalao, primeiramente, do Esquadro da Morte e, posteriormente, da Mo Branca. 369
O saque de 1962 foi a expresso de uma situao extrema vivida pela massa urbana local, exposta a situaes intolerveis de explorao, sonegao e pobreza. Frente ameaa da propriedade privada e ausncia de controle dessa massa, os comerciantes organizaram suas prprias milcias. A violncia aberta sobre o conjunto da populao ficou na impunidade, no havendo apurao quanto ao dos voluntrios. A presso feita sobre o poder pblico garantiu aos comerciantes a implantao de um Batalho da Polcia Militar, homens vindos de fora e que, constantemente, expunham a populao a batidas, aprisionando homens impossibilitados de comprovar ocupao. Em menos de dois anos, os movimentos sociais foram silenciados pelo golpe militar.
IV. 8 O golpe militar e a consolidao da ordem
Tem gente com fome Solano Trindade
Trem sujo da Leopoldina, Correndo, correndo, Parece dizer: Tem gente com fome, Tem gente com fome, Tem gente com fome... Piiiii! Estao de Caxias, De novo a correr, De novo a dizer Tem gente com fome, Tem gente com fome, Tem gente com fome... Vigrio Geral, Lucas, Cordovil, Brs de Pina, Penha Circular, Estao da Penha, Olaria, Ramos, Bonsucesso,
369 ALVES, Jos Cludio. Baixada Fluminense: A Violncia na Construo do Poder. So Paulo, 1998. Tese de Doutorado pelo Departamento de Sociologia da USP.
204 Carlos Chagas, Triagem, Mau Trem sujo da Leopoldina Correndo, correndo Parece dizer Tem gente com fome, Tem gente com fome, Tem gente com fome... Tantas caras tristes, Querendo chegar, Em algum destino, Em algum lugar... Trem sujo da Leopoldina, Correndo, correndo Parece dizer: Tem gente com fome, Tem gente com fome, Tem gente com fome... S nas estaes Quando vai parando, Lentamente, Comea a dizer: Se tem gente com fome, Dai de comer... Se tem gente com fome Dai de comer... Se tem gente com fome Dai de comer... Mas o freio de ar, Todo autoritrio, Manda o trem calar: Psiuuuuuuuuu.....
Em fins de 1962, o cenrio poltico nacional ainda se apresentava conturbado. As presses do movimento sindical, dos movimentos sociais, dos partidos de esquerda e dos setores que apoiavam o retorno do presidencialismo afirmaram a convocao do plebiscito, embora ele tenha sido convocado somente para 6 de janeiro de 1963. Ao assumir a chefia do Executivo, Joo Goulart no implementou as tais reformas to esperadas. O crescimento da radicalizao entre os partidos ultraconservadores e a crescente mobilizao do operariado, dos lavradores, do movimento estudantil e dos movimentos sociais, que cobravam as reformas de base, foraram Joo Goulart a se posicionar. Para manter uma base de sustentao junto s organizaes dos trabalhadores, anunciou a implantao das reformas de base, provocando reao dos militares, da classe mdia, da Igreja Catlica e de vrias parcelas da classe dominante. Em maro de 1964, Joo Goulart foi deposto pelos militares. Ao analisarmos a ao repressora dos militares e os impactos produzidos em Caxias, fica clara a fora do desmonte das organizaes dos trabalhadores. Quando a
205 notcia do golpe chegou aos operrios da FNM, eles pararam a fbrica e, na madrugada, as tropas militares a ocuparam. Muitos trabalhadores no regressaram ao trabalho. Fugas, prises e desaparecimentos provocaram at nos crculos a desaprovao da ao militar. Os trabalhadores ainda tentaram impedir o ingresso dos militares na FNM, mas a situao ficou insustentvel. Novas prises e a ocupao das vilas e de residncias foram efetuadas. A delegacia da FNM estava abarrotada de operrios presos, sendo muitos transferidos posteriormente para o DOPS. Na fbrica, os militares reuniam os operrios no ptio com as mos para cima. Muitos no resistiram e desmaiaram. O sindicato sofreu interveno, desmontando, assim, a organizao operria. 370
Nas reas rurais, no foi diferente. Em uma entrevista com Chico Silva, uma das lideranas camponesas, ficou clara a violncia sofrida pelos camponeses. Ele nos relatou que o Exrcito ocupou as propriedades procura de guerrilheiros. Um campons chegou a ser amarrado de cabea para baixo. Chico dizia que os militares levavam tudo o que encontravam, isto , plantao, bichos e ferramentas: Uma vida inteira sendo levada para os acampamentos militares instalados em Xerm. Prises, destruio de casas e medo. Chico conseguiu se esconder nas matas e subir a serra. Durante um bom tempo, no pde retornar. Josefa e Pureza fugiram para o Recife, com a ajuda do Partido Comunista. O casal s foi preso posteriormente no Nordeste, quando se envolveu na organizao dos bias-frias e no processo eleitoral local. Ambos foram identificados como procurados e sofreram com as torturas. Para completar o quadro, os militares retiraram os trilhos da Estrada de Ferro Rio DOuro, para isolar Xerm e impedir que os lavradores se rearticulassem em seus movimentos. A represso militar atingiu toda a cidade. Segundo Stlio Lacerda, situaes de extrema violncia foram cometidas pelo Batalho da Polcia Militar ps- 64: arrasto no centro de Caxias para prender prostitutas, malandros, bbados, desocupados e suspeitos; invaso do restaurante Mira Serra, situado prximo Praa Roberto Silveira, onde polticos, jornalistas, funcionrios pblicos, empresrios e lideranas comunitrias se reuniam; e invaso do Cinema Santa Rosa, no meio de uma sesso das 15h, com a priso dos que no puderam comprovar ocupao. 371
A REDUC tambm foi ocupada: lideranas sindicais foram presas e alguns funcionrios excludos do quadro da empresa. Newton Meneses, que estava na
370 RAMALHO, 1987, pp. 195-201. 371 LACERDA, 2001, pp. 107-108.
206 militncia sindical dos petroleiros, havia viajado um pouco antes do golpe para Moscou. Graas sua viagem, escapou da priso. A conjuntura brasileira fez com que ele demorasse em Moscou mais do que o planejado, s retornando meses depois. Ele foi excludo do quadro de funcionrios e s conseguiu retornar empresa aps a anistia. O movimento de mulheres tambm foi interrompido. Lydia Cunha se refugiou provisoriamente em uma pequena casa de um amigo, em Volta Redonda, at que pudesse retornar. Armanda entregou sua escola para o Instituto do Povo, uma instituio metodista. A idade e a conjuntura a fizeram parar de trabalhar. Militantes comunistas relataram em entrevista que foram obrigados a enterrar livros e documentos no quintal, a buscar refgios em lugares isolados ou simplesmente manter o silncio para sobreviver. Outros ainda enfrentaram a priso, a ausncia de apoio familiar e at o isolamento frente ao receio dos parentes de se envolverem e de serem atingidos pelo aparelho repressor da ditadura. Apesar da represso, alguns comunistas caxienses atuaram posteriormente nos movimentos de resistncia estudantil 372 e at na guerrilhas do Araguaia. O estudante Joaquim Fernando Lapoente era liderana na Unio Caxiense Estudantil e, em 1962 e 63, atuou na Unio Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES). Em 1968, assumiu a presidncia da Confederao Fluminense dos Estudantes Secundaristas (COFES) e atuou na organizao da passeata Dos Cem Mil em 1968.
Joaquim Fernando Lapoente, em 1965, respondeu a um Inqurito Policial Militar na Vila Militar [...] sob a acusao de atividades subversivas, sendo absolvido por falta de provas [...] Em 1969, ainda sob a mesma, foi preso e recolhido ao Regimento Sampaio Vila Militar/GB. Julgado e condenado a um ano de priso, cumprindo nove meses e vinte dias: trs meses no Regimento Sampaio, vinte dias na Ilha Grande e seis meses no DOPS [...]. 373
Antnio Alfaiate, liderana sindical e do movimento de bairro, seguiu para o Araguaia em 1970.
Era de gnio alegre, gostava de cantar e danar msicas nordestinas. Apesar de seu fsico franzino, jamais recusou uma tarefa, por mais pesada ou difcil que
372 O movimento estudantil em Caxias surgiu em 1954, sob a denominao de Unio Caxiense de Estudantes Secundaristas. Em 1957, surgiu uma segunda organizao, nomeada de Associao dos Estudantes de Duque de Caxias, e, no incio dos anos 60, as duas entidades se fundiram sob a designao de UEC. Ver: LACERDA, Stlio. Uma passagem pela Caxias dos anos 60. Rio de Janeiro: Edio do Autor, 2001, p. 205. 373 LACERDA, 2001, p. 209.
207 fosse. Pertencia ao Destacamento A Helenita Resende. Est desaparecido desde o dia 14-01-74, quando seu grupo travou forte tiroteio com os militares. 374
No processo das disputas eleitorais do Executivo local, tambm foi possvel sentir o peso do golpe. Como j vimos, em 1962 a candidatura de Tenrio Cavalcanti ao governo do estado do Rio de Janeiro foi derrotada, porm elegeu-se deputado federal e ainda conseguiu eleger seu parente, Joaquim Tenrio, a prefeito de Caxias. Aps o golpe, Tenrio foi cassado e retirou-se para o seu stio, na Vila So Jos.
Governos eleitos e que governaram no perodo de ditadura. Prefeito Mandato Joaquim Tenrio Cavalcanti 1063 a 1967 Moacyr do Carmo e Ruyter Poubel em substituio durante licena mdica. 1967 a 1971 Fonte: Cmara Municipal
Apesar de no participar diretamente das disputas eleitorais locais, Tenrio continuou a ser uma fora poltica de relevo. As reas de sua influncia foram herdadas pelos genros, Getlio Gonalves e Hydekel de Freitas, ambos dirigentes da Fora dos Voluntrios. Getlio Gonalves tornou-se presidente da Associao Comercial e Hydekel de Freitas tornou-se uma das mais importantes lideranas conservadoras de Duque de Caxias na dcada seguinte. Hydekel nasceu em Porcincula, interior do estado, em 1939, chegando ainda criana a Caxias. Seu pai era comerciante e investiu na compra de lotao, tornando-se organizador e proprietrio da empresa de transporte rodovirio Santo Antnio. Hydekel fazia parte do grupo dos playboys e fazia oposio a Tenrio Cavalcanti. Eleito deputado pelo Partido Republicano, tornou-se, logo depois, lder da bancada. Em 1964, casou-se com Natlia Sandra Cavalcanti, filha, assessora e secretria de Tenrio. Segundo a irm, Maria do Carmo, seu pai no queria o casamento, mas no teve como impedi-lo. Fica claro que, com a mudana da conjuntura, favorvel aos conservadores e aos militares, a posio poltica de Hydekel representou a possibilidade de permanncia na articulao do poder.
374 Guerrilha do Araguaia. Documento do PC do B. So Paulo: Editora Anita Garibaldi, 1996.
208 Aps a extino dos partidos polticos pelo Ato Institucional I, em 1965, e, conseqentemente, com a implantao do bipartidarismo, Hydekel ingressou na Arena, partido de sustentao do regime, tornando-se presidente do diretrio em Caxias. Nas eleies de 1966, ele disputou a vaga para a prefeitura com Moacyr do Carmo, do Movimento Democrtico Brasileiro (MDB) e foi derrotado. Obteve 17 mil votos, contra os 40 mil de Moacyr. 375
Moacyr do Carmo nasceu em 1920, no interior do estado. Era filho de agricultor. Com dez anos, foi para Bom Jesus estudar e, depois, para Maca. Em Niteri, comeou a cursar Medicina e foi requisitado no quarto ano para compor o Batalho de Sade Expedicionrio. Seguiu para a Itlia e, depois do fim da guerra, retornou ao Brasil. Em 1947, voltou a estudar. 376
Sem recursos, veio para Caxias e comeou a clinicar. Sua extensa clientela alargou a popularidade e o leque de influncias. Logo, tornou-se proprietrio de um cartrio. A pedido de Braulino e de Badger da Silveira, ingressou no PTB. Quando Badger saiu do governo para se lanar candidato, o presidente da Cmara, Janotti, assumiu e Moacyr ocupou o cargo de Secretrio de Comunicaes e Transporte por um tempo efmero. Com o bipartidarismo, filiou-se ao MDB. Nas disputas internas do MDB, firmou-se como candidato. 377
Em 1968, sob a administrao de Moacyr, Caxias foi considerada rea de Segurana Nacional. Segundo o relato do vice-prefeito, Ruyter Poubel, ele e um grupo de polticos locais chegaram a organizar uma ida a Braslia, para tentar evitar que Caxias entrasse na lista das reas de segurana nacional. Para ele, o grupo no tinha ainda noo da gravidade da situao e, ingenuamente, acreditou que poderia reverter o processo. Logo depois, foi detido por dez dias. Em 1971, iniciou-se um longo perodo de presena dos governos militares na cidade.
Interventores Militares e de Transio para a Nova Repblica Prefeito Mandato Francisco Estcio da Silva Assumiu provisoriamente at a posse do interventor militar General C. Marciano Medeiros 1971 a 1975
375 Dicionrio Ps-30, 2001, v. II, pp. 2383-84. 376 Depoimento de Moacyr do Carmo no documentrio produzido pela Secretaria Municipal de Cultura da PMDC. O documentrio faz parte do projeto Memria Viva da Cidade de Duque de Caxias. 376 Idem. 377 Idem.
209 Coronel Renato Moreira da Fonseca 1975 a 1978 Coronel Amrico de Barros 1978 a 1982 Hydekel de Freitas 1982 a 1985 Fonte: Cmara Municipal.
A impossibilidade de eleger os prefeitos, a ausncia de controle e fiscalizao da sociedade sobre as aes do Executivo e a falta de autonomia do Legislativo favoreceram o desvio de verbas pblicas para os setores privados. As bolsas de estudos se generalizaram e fizeram crescer o ensino privado. No caso da sade, as verbas do Instituto Nacional de Assistncia Mdica e Previdncia Social (INAMPS) financiavam as clnicas particulares. O superfaturamento, os exames fantasmas e a bitributao sobre os pacientes, ou seja, a clnica recebia pelo INAMPS e ainda cobrava dos pacientes pelos servios, tudo isso foi denunciado durante o governo do ltimo interventor. Esse fato culminou com a abertura de uma CPI pelo Congresso Nacional, a fim de apurar as fraudes em Caxias. Ainda durante o perodo militar, foi instalado o Aterro Metropolitano do Jardim Gramacho, nas margens da Baa de Guanabara, em cima dos manguezais, revelia da consulta populao, assim como foi assinado um acordo que garantiu Funerria de Duque de Caxias o monoplio funerrio por trinta anos. Logo, os valores de sepultamentos tornaram-se elevadssimos. Silncio, fraudes e privatizao so marcas deixadas pela ditadura. Em 1968, a FNM foi privatizada, passando para a Alfa Romeu, em meio revolta dos trabalhadores e ao inqurito aberto para apurar a existncia de fraudes. Em 1976, a fbrica passou para o domnio da Fiat, e os operrios iniciaram a convivncia com a racionalizao da produo, a automao, a intensificao dos ritmos de trabalho e a hiperexplorao da fora de trabalho.
Eu acho que na poca da FNM havia mais justia para os trabalhadores. At a alimentao era melhor: a pessoa tomava leite vontade, porque a pessoa precisa tomar leite. A classificao dos setores era tambm mais justa. Era ajudante, operador de mquina e depois, se era torno, por exemplo, era torneiro de 3 a , 2 a e 1 a . Ento, era padronizado. Agora na FIAT embolou o meio de campo. Apareceu um tal de operador classificado, operador especializado, no
210 sei o que mais, servente; e o camarada est trabalhando em torno, est trabalhando em retfica, est na furadeira [...]. 378
Apesar das mudanas no interior da fbrica, muitos operrios resistiram a elas.
No meu setor, o chefe pediu para eu trabalhar em quatro mquinas. Eu falei: No. Trabalho em uma e no mais do que uma, somente uma. Se eu for em outra, eu paro nessa e vou para a outra; porque a hora que a mquina quebrar, voc vai dizer que no mandou. A ele falou: Mas no para produo no! Eu falei: Eu sei que no para dar produo hoje. Hoje, no ? Porque amanh vai ser. Hoje no , voc quer s ver se tem condies. Amanh, voc quer que d. Ento, no vou fazer. 379
Embora os trabalhadores tentassem resistir, as demisses em massa foram ficando mais intensas. Em 1977, a fbrica possua 7.700 famlias operrias. Em 1981, eram somente trs mil operrios. 380 A partir de 1978, os trabalhadores reiniciaram sua organizao sindical e realizaram greves. A mais importante foi a de 42 dias, em 1981, contra o desemprego. Apesar da resistncia, a FIAT transferiu sua produo para Betim, em Minas Gerais, e fechou a fbrica de Xerm. O desemprego atingiu imensamente o bairro, que se movia em torno da fbrica e da cidade. Privatizao, desemprego e extermnio. Todos os dias, chegavam mais trabalhadores em busca de emprego e se alojavam como podiam, onde as condies de vida eram pssimas. Ainda nos anos 60, no relatrio do Plano de Desenvolvimento Local Integrado, produzido por M. Roberto Arquitetos, Caxias aparece como um local privilegiado para o investimento econmico, devido sua proximidade com o Rio de Janeiro, pela existncia de reas disponveis e baratas, pela facilidade de se obterem isenes fiscais e abrigar o plo petroqumico. Se as condies geogrficas eram favorveis, o mesmo no se poderia dizer de sua populao.
O processo migratrio est adquirindo crescente velocidade, tanto assim que os saldos de imigrantes radicados na cidade no ltimo decnio (1960-69) representam 42% do total ou perto de 80 mil pessoas. Isto quer dizer que a
378 Uma Greve pelo Direito ao Trabalho: Fiat 1981. ACONTECEU Especial, n 8, Rio de Janeiro: CEDI, outubro de 1981. 379 Idem. 380 Greve da FIAT de 42 Dias. Cartilha com o histrico da greve produzida pelo Comando de Greve em 30 de junho de 1981.
211 populao da cidade, em grande parte, formada de pessoas recentemente imigradas, por conseguinte, com limitadas condies de assimilao. 381
O relatrio apontava para o fato de que a atrao do capital para Caxias se dava, sobretudo, pelas condies geogrficas. Nele, havia tambm o preconceito, que classificava a populao como pobre e portadora de condies limitadas de assimilao. Contudo, isso no atrapalharia os investimentos; ao contrrio. A mo-de-obra especializada vinha de fora e a mais barata era farta. Como Jos Cludio apontou em sua obra, A Baixada Fluminense: a violncia na construo do poder, o controle de um grande contingente populacional em situao de extrema pobreza mais do que nunca se fazia necessrio para os comerciantes locais. Nesse sentido, o controle poltico passou a ser exercido pelo Exrcito e pelo Batalho da PM, e a defesa do patrimnio, pelos grupos de extermnios. Fica claro que Caxias, assim como toda a Baixada, tornou-se, mais uma vez, lugar de armazenamento e passagem, s que agora de trabalhadores pobres. Toda a memria de organizao, de experincia operria e de esforo de construo de participao poltica, no fora experimentada por toda a sua populao; ao contrrio, fora silenciada. J a experincia do getulismo parece que ganhou mais fora. A lembrana de um tempo que lembrado como menos trgico. Com a presena dos militares, os privilgios foram mantidos para um pequeno setor local, e o domnio dos representantes da Arena como Hydekel de Freitas, Ampliato Cabral, Samuel Corra etc. foi-se consolidando. A trajetria poltica de Hydekel exemplar para avaliarmos o processo que se deu em Caxias aps o golpe. Em 1970, Hydekel de Freitas reelegeu-se deputado estadual; em 1974 e 1978, a deputado federal. Em 1979, com a extino do bipartidarismo, filiou-se ao PDS e, em maio de 1982, foi nomeado prefeito interventor de Caxias. Em 1985, comps o PFL e, em 1986, concorreu a uma cadeira no Senado, sendo eleito suplente de Afonso Arinos. Em outubro de 1988, foi eleito prefeito de Caxias, numa aliana entre o PDS e o PFL, e, em 1990, aps a morte de Afonso Arinos, renunciou prefeitura, para ocupar a vaga no Senado. Ainda nesse mesmo ano, filiou-se ao Partido da Reconstruo Nacional (PRN), que elegera Fernando Collor de Melo. Em 1994, foi indiciado pela Comisso Parlamentar de Inqurito da Cmara, que investigava fraude na Previdncia. Seu
381 Plano de Desenvolvimento Local Integrado. Duque de Caxias, RJ: M. Roberto Arquitetos, 1969, v. III, p. 3.
212 envolvimento estava relacionado com seu apadrinhamento a um ex-procurador do INSS em Caxias. No mesmo ano, foi citado numa lista de pessoas 382 que supostamente teriam recebido dinheiro do jogo do bicho. 383
Progressivamente, houve a consolidao do conservadorismo, do clientelismo e do assistencialismo em meio a uma populao que crescia junto com a pobreza. Durante os anos que se seguiram ao perodo da ditadura militar, a ordem foi mantida pela coero aberta em todos os nveis. Os militares e suas polcias especiais faziam o controle poltico; o Batalho ocupava as ruas. Para evitar as ameaas das exploses populares e novas ameaas propriedade, os grupos de extermnio entravam em cena. A Diocese de Nova Iguau, por intermdio de seu bispo D. Adriano Hiplito, criou um Centro de Direitos Humanos e denunciou amplamente na imprensa os nmeros do extermnio na Baixada Fluminense: A Igreja no pode dormir sobre trezentos cadveres. Em resposta atuao da Diocese, em 1977, o bispo foi seqestrado, seu carro, explodido, e a sacristia da catedral de Nova Iguau acabou presenteada com uma bomba. 384 Apesar das denncias, os nmeros eram cada vez mais alarmantes. Em uma reportagem do dia 6 de junho de 1987, o Jornal do Brasil denunciou que, em trinta anos do Esquadro da Morte, mais de 15 mil pessoas haviam sido exterminadas. Paralelamente coero e violncia impostas, a economia local cresceu, com a formao do plo petroqumico (ver Anexo13). As empresas sentiam-se atradas pela matria-prima da REDUC, pela proximidade do local com a cidade do Rio de Janeiro e pelas vantagens oferecidas pelo poder pblico local. Acumulao de capital, de um lado; aumento da pobreza e pouqussima participao poltica na cidade durante os anos de chumbo, do outro.
382 A listagem foi descoberta pelo Procurador-Geral de Justia Antnio Carlos Biscaia, aps uma diligncia efetuada. 383 Dicionrio Ps-30, 2001, v. II, pp. 2383-84. 384 JB, 3 a 9/12/79; Jornal dos Esportes, 31/05/85.
213 CONCLUSO
Escavar o passado da cidade um esforo de sistematizar o passado da regio em sua longa durao. Ao investigarmos o processo de ocupao colonial, deparamo- nos com uma regio que foi, ao longo do tempo, integrada lgica da colonizao portuguesa. Inicialmente como rea produtora de acar e, posteriormente, como produtora de mercadorias agrcolas para abastecer o porto carioca e movimentar as trocas intercoloniais. Nesse processo, a geografia do Recncavo favoreceu um processo de circulao dessas mercadorias a partir dos rios que desaguavam na Baa de Guanabara. A Igreja Catlica desempenhou um papel preponderante na organizao administrativa do local, na produo e no controle social em nome do rei. As organizaes paroquiais passaram a constituir a estrutura administrativa das freguesias. A partir do sculo XVIII, a regio tornou-se lugar de ligao com o planalto mineiro, sendo cortada por caminhos que integravam Minas Gerais ao porto carioca, agora sede do Governo-Geral. Nesse momento, a Baixada Fluminense ocupou o papel de transbordo, armazenamento e de passagem de mercadorias, tropeiros e escravos. Alguns de seus portos tornaram-se os mais importantes da colnia, provocando o primeiro deslocamento no tabuleiro da regio. Novas ocupaes foram se dando na regio serrana como reas de pouso dos novos caminhos do ouro. No processo em curso, igrejas barrocas foram construdas nas margens dos rios e portos. Para organizar, enquadrar colonos e escravos lgica da f e da Coroa portuguesa, e, ao mesmo tempo, garantir a sociabilidade no local, vrias irmandades religiosas foram sendo institudas ao longo do sculo XVIII. Organizadas a partir do lugar de produo e da composio tnica, reproduziram as estruturas hierarquizadas de dominao. A movimentao da produo no se diferenciava do restante da colnia: a fora servil e escrava do ndio e do escravo africano. As condies de trnsito produziram uma escravaria submetida circulao. As tenses produzidas nos confrontos entre senhores e escravos fizeram surgir vrias experincias quilombolas durante o longo perodo de manuteno da escravido. A geografia, a proximidade com a cidade carioca, a articulao com escravos das fazendas e com os taberneiros garantiram aos
214 quilombolas a possibilidade de integrao economia local; portanto, sobrevivncia e tambm ao acoitamento. Os grupos dominantes locais, compostos por proprietrios de terras e escravos subalternizados ao poder central, ora eram beneficiados com a interveno necessria ao controle da escravaria, com a concesso de terras e privilgios, ora eram desconsiderados na hora da tomada de decises que implicassem alteraes na regio. No sculo XIX, o rpido crescimento populacional da cidade do Rio de Janeiro afirmou o papel da regio como abastecedora de alimentos do centro provincial e, posteriormente, da corte imperial. O avano da produo cafeeira sobre o Vale do Paraba e o crescimento das exportaes do caf tornaram, mais uma vez, a regio lugar de ligao do centro da economia com o centro poltico e porturio. Duas estruturas administrativas foram constitudas na Baixada: a Vila de Iguau e a Vila de Estrela. Novos deslocamentos foram institudos na regio, desvalorizando antigos portos e valorizando outros centros de circulao e armazenamento do caf, principalmente com a instalao da Estrada de Ferro Baro de Mau e Pedro II. Os deslocamentos realizados tambm se realizaram no campo administrativo, gerando a mudana da sede de Iguau Velho para Maxambomba e o desmantelamento da Vila de Estrela, agora incorporada a Nova Iguau e Guia de Pocababa. Os grupos dominantes locais utilizaram-se do discurso da decadncia da regio promovida pelos deslocamentos, pelo trmino do escravismo e pela crise da economia agrria, para obter recursos pblicos que os beneficiassem. A sobrevivncia desses setores se dava no momento pelo arrendamento de suas terras, pela obteno de recursos financeiros obtidos com as hipotecas, promovendo o aumento da concentrao fundiria. Ao mesmo tempo, recebiam investimentos pblicos em saneamento e no beneficiamento da laranja. No Oeste de Iguau, a fruticultura fomentou a reorganizao das relaes de trabalho e da produo agrcola da laranja at 1945, enquanto, no Leste, constituiu-se pelo crescente afastamento de proprietrios de suas fazendas. Para garantir a posse das propriedades, arrendavam, criavam gado, utilizavam-se de administradores e da capanagem ou simplesmente realizavam o retalhamento de suas terras para vender os lotes massa urbana recm-chegada capital federal. Os proprietrios residentes, alguns envolvidos com o comrcio, permaneceram no domnio do poder local. De forma subalterna, articulavam-se as esferas do poder central da Repblica.
215 O trfico de influncia tecido durante a Primeira Repblica favoreceu alguns setores tradicionais da regio e a presena de forasteiros que almejavam enriquecimento fcil. Caso exemplar o de Tenrio Cavalcanti: apadrinhado pelo trfico de influncia do bloco de Washington Lus, beneficiou-se com a capanagem, com o acompanhamento e a segurana nas obras da Rodovia Rio-Petrpolis, e com a manuteno do controle dos setores populares. Por meio da violncia e das funes realizadas, adquiriu propriedades, incorporou-se ao comrcio e a uma famlia tradicional do lugar. Sua articulao com uma importante liderana poltica iguauana o integrou diretamente s disputas polticas locais. Apesar do crescimento progressivo de pessoas em Caxias, a cidade encontrada por Tenrio ainda era uma tpica rea rural em processo de transformao, de urbanizao. Aps o golpe de 30, com a alterao do jogo poltico nacional, as antigas foras hegemnicas foram substitudas por outras. Novos arranjos regionais entraram em curso, favorecendo um processo maior de centralizao e de adeses de grupos polticos locais ao bloco getulista. A forte presena e a interveno do governo Vargas durante o Estado Novo se fizeram sentir em Caxias por meio dos projetos de colonizao e industrializao, dos investimentos em infra-estrutura, do processo de emancipao, das nomeaes de interventores e da imposio de um aparato repressor para manter o controle da massa urbana e a afirmao do amaralismo local. O crescimento do getulismo e de seu representante estadual, Amaral Peixoto, na regio subalternizou ainda mais os setores desvinculados de sua esfera de influncia. Durante o perodo de 1945 a 1960, Caxias foi palco de intensas disputas pelos poderes local e regional entre a UDN, o PSD e o PTB. Tenrio Cavalcanti, figura emblemtica e contraditria, a expresso de setores da classe dominante vinculados tradicionalmente propriedade da terra e que foram secundarizados e subalternizados pelas aes do poder central. Integrado UDN, intensifica sua prtica poltica assistencialista, funda seu prprio jornal, nomeado de Luta Democrtica em 1954, e atua como advogado em casos sensacionalistas, a fim de preservar seu eleitorado e manter sua base poltica. Compe seu prprio bloco de poder, o tenorismo, e se envolve em disputas violentas com o amaralismo. As formas de luta empregadas entre esses setores assemelham-se s utilizadas por eles contra os setores populares. Em nosso caso, escavar o passado nos colocou de frente para as mltiplas facetas do capitalismo em uma periferia e, ao mesmo tempo, nos mostrou a simbiose
216 existente entre o velho e o que se apresenta como novo, afirmando, dessa forma, o que j nos dizia Francisco Oliveira: a vinculao de Tenrio violncia, contraveno e sua associao com a famlia Lomba, retrato da tradio, ou ainda, sua vinculao com a UDN, um partido de liberais conceituados. Situao similar pode ser encontrada em seus opositores: eles fizeram uso do aparato policial para ampliar o projeto de dominao amaralista e getulista. Percorrendo as trilhas propostas por Gramsci, entramos em contato com diferentes organizaes da sociedade em Caxias, em diferentes direes, desde as voltadas integrao at as voltados para uma transformao mais substantiva da sociedade. Uma complexa disputa pela representao dos trabalhadores e pelas variadas concepes de sociedade e de cidade foi sendo travada nas dcadas de 1950 e 1960, apontando para uma conexo crescente entre lutas que eram mantidas separadamente, como a da FNM e a dos trabalhadores rurais, arriscando ampliar o horizonte e as lutas populares, que no se esgotavam no processo eleitoral. A atuao do Partido Comunista foi determinante para essa conexo e para as realizadas fora das fronteiras da cidade e do pas. As diferentes experincias de organizao dos setores populares construdas no local apontaram para a possibilidade de superao das condies materiais vividas, dos fundamentos das desigualdades e da subalternizao. Projetos de sociedade e de cidade divergentes do at ento tecido ganhavam fora em uma regio de acelerado crescimento populacional e industrial, vista por muitos como lugar de trabalhador. Um trabalhador fortemente constitudo pela aproximao com o trabalhismo e com o getulismo, expresso inclusive em sua votao. Frente ao avano da votao da Baixada no trabalhismo e ao crescimento do PTB nas disputas locais e regionais, Tenrio Cavalcanti incorpora-se a um partido de cunho trabalhista e socialista. Em 1962, disputa as eleies, com o apoio de setores da esquerda e do Partido Comunista, obtendo uma votao surpreendente, que lhe assegura o segundo lugar nas disputas com o PTB. Durante o ano referido, seu jornal tornou-se espao de defesa do programa das esquerdas e instrumento de comunicao das lutas dos movimentos sociais. Contraditoriamente, os setores que se apresentavam como alternativa estabelecem aliana com um nome antigo da tradio conservadora, envolvido com prticas polticas assistencialistas e com o uso da violncia como forma de controle dos setores populares.
217 Simultaneamente, o ano de 1962 ficou marcado, de um lado, pelo crescimento das foras de esquerda e, por outro, pela maior organizao dos comerciantes frente ao saque de 62. A experincia do saque apontou para os comerciantes a necessidade da manuteno da ordem e da defesa de suas propriedades. Para tanto, financiaram sua prpria milcia e obtiveram do poder pblico a implantao de um instrumento de controle da massa urbana empobrecida: o Batalho da Polcia Militar. A possibilidade de participao poltica dos trabalhadores foi brutalmente golpeada pelos militares em 1964, restando o silncio, a ordem e o conservadorismo. Ocupao militar, perseguio de lideranas comunistas, desmantelamento das organizaes dos trabalhadores, privatizaes inicialmente da FNM e, mais tarde, da FABOR , desemprego, fechamento da FIAT, aterro, crescimento das mfias da sade, da educao e do transporte, Lei de Segurana Nacional e extermnio. Numa perspectiva thompsoniana, os movimentos sociais, polticos e culturais aqui descritos, mesmo tendo sido destrudos pela represso, permanecem enquanto possibilidades. O passado no fica bloqueado pelo totalitarismo presentista dos projetos vitoriosos, mas existe enquanto compndio de experincias, pronto para ser analisado, compreendido e reinventado. Uma autoconstruo permanente de um projeto alternativo de vida e de cidade.
218
FONTES
Fontes Manuscritas
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219 Freguesia de Santo Antnio Orago de Jacutinga. Livro das Visitas de Monsenhor Pizarro em 1794, fls. 78 a 85. Freguesia N. S. da Piedade Orago de Iguassu. Livro das Visitas do Monsenhor Pizarro no ano de 1794, fls. 92 a 96. Freguesia de N. S. do Pilar - Orago do Iguassu. Retirado do Livro das Visitas Pastorais do Monsenhor Pizarro no ano de 1794, fls. 86 a 96; Freguesia de S. Joo Batista Orago de Meriti. Livro das Visitas Pastorais do Monsenhor Pizarro no ano de 1794, fls. 18 a 24. Livro de Arrendamento de Terras da Irmandade de N. S. do Pilar 1822-1849. Arquivo da Arquidiocese de Petrpolis. Livro de Assento de Batismo de Escravos 1791-1809. Freguezia N. S.do Pillar do Aguass. Arquivo da Arquidiocese de Petrpolis. Livro de Assento de Batismo de Escravos 1772. Freguezia de N. S. da Piedade de Aguass. Livro de Assento de Casamento de Escravos 1770-1773. Freguezia N. S. da Piedade do Aguass. Livro de Assento de bitos de Escravos 1757-1766. Freguezia N. S. da Piedade do Aguass. Relatrio da Secretaria de Segurana Pblica. Departamento de Ordem Poltica e Social-DOPS, de 1946. Estado, pasta 20. Arquivo Pblico do Rio de Janeiro.
Entrevistas
Francisco Silva Josefa Paulino Pedro de Souza Filho Guilherme Peres Rogrio Torres Lucia Cunha Newton Menezes Benedito Agostinho Alves
Peridicos
220
1. Jornais Luta Democrtica 04-02-58 e 09-01-58 Coluna A Luta Feminina, 07-07-62 e 10-07-62 Coluna Escreve Tenrio, 03-01-58, 04-02-58, 06-06-58, 09-06-58, 02-07-58, 06-07- 58, 12-07-58,16-07-58, 18-07-58, 26-07-58, 27-07-58, 28-07-58, 01-08-58, 10-08-58, 12-08-58, 16-08-58, 11-09-58, 13-09-58, 21,09-58, 28-09-58, 06-11-58, 15-11-58, 19- 11-58, 29-11-58, 27-12-58, 03-04-62, 07-04-58, 12-04-58 e 13-04-62. Cartilha Para Esclarecer o Povo Brasileiro. Como se Esmaga uma Nao Sem Sangue. O Que Aliana Para o Progresso 01 e 02 de abril de 1962. Coluna Escreve Tenrio de todo o ano de 1958 e 1962. O Grupo, junho de 1957 Tpico, 10-05-58, 07- 06-58, 26-07-58 e 25-08-58. O Municipal, 25-08-50, 25-08-51 e 20-03-53. 20-03-53; 25-08-51; 16-06-51; 01-05-51; 30-08-52. Tiro de Letra Entrevista Com Pedro de Souza, ano I, n 1, junho de 1995. O Velho Bruxo Revela Suas Andanas, ano I, n 2, julho de 1995. Neyley Lopes Martins. A Histria Viva de Caxias, ano I, n 3, agosto de 1995. Jornal do Brasil Exploso Popular no Estado do Rio, 06 de junho de 1962. Jornal O Dia Baixada Fluminense a Regio que mais Cresceu, 20 de maio de 2001. GALVO, Marcos e RODRIGUES, Mnica. Na Baixada, a Lei e a Pistola, 26 de agosto de 2001. A Folha da Cidade 17-10-1999. O Globo Lea Cristina. Economia Muda a Imagem de Caxias, 24-09-89, pp. 46-47. ENNE, Ana Lucia et al. Quando os Imigrantes Fazem a Histria, 07-07-1991. MUSSOI, Paulo. O Endereo dos Refugiados, 21-07-1996. MARINHO, Julia. Municpio Luta pra se Livrar dos Estigmas, Caderno Baixada, 25- 08-96, p. 6.
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