A Terceira Margem Do Rio: Pulsional Revista de Psicanálise
A Terceira Margem Do Rio: Pulsional Revista de Psicanálise
A Terceira Margem Do Rio: Pulsional Revista de Psicanálise
70
Pulsional Revista de Psicanlise, anos XIV/XV, nos 152/153, 70-81
partir do impacto produzido pelo atentado terrorista contra os Estados Unidos faz-se uma reflexo sobre a violncia, o dio e a intolerncia usando o referencial psicanaltico de Melanie Klein e algumas idias de Lvinas. A metfora da terceira margem do rio, retirada de uma histria de Guimares Rosa, usada para pensar a parentalidade como atividade de ser e de dar ser, de destinar a ser, de deixar o outro ser. Palavras-chave: Violncia, Melanie Klein, alteridade, Lvinas ased on the impact produced by the recent terrorist attacks against the United States, this article consists of a discussion on violence, hatred and intolerance, using Melanie Kleins psychoanalytic frame of reference and some ideas of Lvinas. The metaphor of the third bank of the river taken from a story by the writer Guimares Rosa, is used to consider parenthood as an activity of being and of giving being, of destining to be, of letting the other be. Key words: violence, Melanie Klein, otherness, Lvinas
Neste terceiro milnio, ele mandou matar as americanas porque elas no cobrem o rosto, fumam, bebem, falam de igual para igual com os homens e ainda, suprema ousadia, escolhem os seus prprios parceiros sexuais, no se submetendo a casamentos arranjados pelo cl. Quem achar que aqui h exagero pode consultar os manifestos denunciando os maus-tratos contra as mulheres afegs que circulavam pela Internet... (Jos Numane, O Estado de S. Paulo, 10.10.2001, p. A2.).
71
recente atentado terrorista nos Estados Unidos levou-me a pensar que o trabalho mais importante para combater a expanso do dio em escala mundial um persistente e profundo trabalho do pensamento que possa expor e desmontar a lgica que sustenta o fundamentalismo1 e as prticas terroristas. Comparo este trabalho do pensamento fora milenar da eroso da gua sobre a pedra: quanto mais dura for a rocha tanto mais surpreendente este insidioso poder de amolecer e dissolver. Penso na terra frtil com seus lenis freticos, suas reservas de gua que promovem o milagre da germinao. Penso em alguns momentos singulares de contato com o outro e com a sua alteridade. Estava mergulhada em devaneios, antes de escrever este texto, quando uma pessoa muito querida veio me falar da gua da palavra em uma cano de Caetano Veloso, A terceira margem do rio. Mas este no o ttulo de uma histria de Guimares Rosa, naquele livro Primeiras estrias? perguntei-me. Sim, exatamente. A cano foi composta pensando na histria de um pai de famlia que resolve retirar-se do convvio familiar adentrando-se em um horizonte invisvel: terceira margem do rio. Terceira margem do rio? Onde fica? no meio da travessia? um espao transicional, lugar de possveis? Para onde
foi, o pai retirou-se da tagarelice, da positividade da presena? Retraiu-se para dar lugar ao outro, sua alteridade? Questes que ficam por responder. Por enquanto, alguns versos esparsos da cano de Caetano: gua da palavra, gua calada pura. gua da palavra, gua de rosa dura. Proa da palavra, duro silncio, nosso pai. Margem da palavra. Entre as escuras duas Margens da palavra Clareira, luz madura Rosa da palavra Puro silncio, nosso pai. Sou muito grata a esta pessoa que me apresentou o horizonte potico para pensar sobre dio e intolerncia. Desde este instante, sentia, medida em que redigia, a fora persuasiva, refrescante, correndo por trs das letras e pensamentos. gua da palavra. Misterioso poder de mitigar a sede e fazer brotar pensamentos. Havia encontrado a terceira margem e um rio de gua viva surgia do encontro com o outro.
O OUTRO ENCONTRO
Chegara ao consultrio, como em tantas outras sextas-feiras, para o habitual horrio. Comecei a escutar a palavra daquele homem, a sua dor, o ritmo lento, pausado, de deixar sair as palavras da garganta de pedra, da garra impronuncivel que nos mantm isolados uns dos outros. Algumas palavras comearam a pingar como chuva leve batendo com
1. A verso islmica do fundamentalismo , infelizmente, apenas uma das possveis aparies desta forma de pensar; h tambm as verses crists e judaicas. Por outro lado, adeso cega a princpios sagrados, pretenso verdade ltima e a ordem de odiar e destruir os infiis pode derivar, tambm, de uma adeso fantica a qualquer forma de ideologia.
72
firmeza no cho, originando sons agudos de tes e tus, other-ness, alter-idade, batendo sobre a pedra como antimsseis da paz, ressoando, ecoando. Comecei a prestar ateno na msica deliciosa, frgil, sobre a pedra dura que se amolecia embaixo, que vergava para o fundo. Eu me sentia derretendo por dentro sem saber ainda o que aquilo significava, mas podendo sentir o trabalho de dissoluo de antigas certezas e algumas dores infantis e solitrias. Minhas fomes insaciadas cediam, o sentimento de humilhao e a opresso da necessidade experimentada, tudo, enfim, que tinha o poder de fazer de mim uma terrorista em potencial, tudo isto cedia. O ressentimento ia vergando sob o peso daquela gua, e eu me sentia deliciosamente incapaz de det-la. A palavra daquele homem era como uma gua profunda e fecunda que fazia brotar certas reservas milenares de emoo: eu era simplesmente a sede daquele misterioso acontecimento. Como possvel ter tanto poder a palavra? Lavra silenciosa, sulco, marca gua da palavra, sopro da palavra. Capaz de dissolver um mundo e de fundar um outro. Senti que se no fizesse esse trabalho da palavra, se no o fizesse logo e com a maior urgncia, estaria contribuindo pessoalmente para aumentar a violncia do mundo. Elucidar a prpria violncia apenas parte do esforo maior que visa elucidar a
violncia infiltrada na lgica fundamentalista que conduz aos atos de terror. A questo muito ampla e merece que se rena tudo que foi, at hoje, pensado sobre a inesgotvel violncia dos homens e a dificuldade de lidar com o outro sem imediatamente querer assimil-lo e devor-lo para dentro das prprias crenas e valores.2 MELANIE KLEIN
AJUDA A ELUCIDAR A VIOLNCIA
Neste sentido, o pensamento de uma psicanalista como Melanie Klein, que se debruou de modo sistemtico sobre a questo da agressividade e do dio, tem sua contribuio a dar para esta elucidao. Um amigo me havia dito que depois da destruio e das mortes daquela tera-feira de setembro, eu podia dizer aos meus alunos que Melanie Klein tinha boas razes para ter construdo sua teoria em torno do fenmeno do dio e da destrutividade que arde incansavelmente nas mentes e coraes. Nestes tempos sombrios de terror e fundamentalismo a nfase dada por ela destrutividade e agressividade um ponto-chave que tambm chamou a ateno de Freud desde a poca da Primeira Guerra Mundial e do estudo sobre a neurose obsessiva e a melancolia. Ele ficou profundamente impressionado com a presena de masoquismo, sadismo, agressividade e dio, que dificilmente
2. Entre os muitos filsofos e pensadores que precisam ser revisitados neste esforo de pensar a violncia do homem civilizado, creio que Lvinas um dos nomes mais importantes para explicitar as fontes de nossa intolerncia para com o estrangeiro e com o que diferente de ns mesmos.
73
podiam ser derivados apenas da libido. Alm da infinita e insacivel nsia de amor (Sehnsucht) postulada por Freud, e talvez at mesmo em decorrncia da impossibilidade de atender esta demanda insacivel, criam-se as condies para o surgimento de toda a forma de violncia. Algumas formas tm origem no ambiente: violncia da misria que corta a circulao dos bens necessrios vida e deriva dos regimes de distribuio da riqueza e a violncia dos sistemas ideolgicos e religiosos que estabelecem e definem os modos de circulao dos bens, ao mesmo tempo que criam sistemas de valores e interdies que do origem excluso e adeso fantica. Do lado psquico, a fora das exigncias pulsionais, a violncia do imaginrio e das interdies interiorizadas so capazes de reproduzir e amplificar, ao infinito, a violncia da ideologia e da religio. ANGSTIAS ARCAICAS Para Melanie Klein a violncia psquica anterior capacidade de amar; antecede a capacidade de pensar, postergar, agir, gerar recursos e projetos. Antes de tudo somos isto: um feixe de violentas necessidades e exigncias, mergulhado no mais aflitivo desamparo. Isto , antes de chegar a perceber e desejar o outro como um outro, com capacidade de manter a distncia e a diferena em relao a ele, somos um puro anseio vampiresco e voraz, um turbilho de angstias e um tumulto de desejos arcaicos que nos tornam indiscernveis uns dos outros; somos sede da mais pura violn-
cia do imaginrio, o que nos coloca em pleno estado de desamparo. A prpria violncia do anseio de incorporar e possuir o outro e a voracidade que caracteriza a mais primitiva forma de amar tornam o mundo perigoso e ameaador, por meio do mecanismo da projeo, pois o mundo fica todo impregnado da nsia de incorporao. Da surgem as mais arcaicas angstias persecutrias. O que quer dizer com isto? As angstias persecutrias so assim chamadas pois originam a sensao de estar sendo perseguido e atacado. So terrores; como o terror sem nome de cair para sempre, de ser abandonado, de ter seu Eu aniquilado, de ser morto, invadido, devorado ou destrudo por uma fora monstruosa que ultrapassa a capacidade de defesa. As imagens de ser engolido por uma onda gigantesca, devorado por um tubaro ou outro monstro qualquer podem ser figuraes das angstias persecutrias mais arcaicas.
DEFESAS PRIMITIVAS
Neste quadro em que predomina a violncia das pulses e do imaginrio, fazse necessrio construir defesas que possam diminuir e apaziguar em certa medida a intensidade das primeiras angstias. Um destes mecanismos de defesa a ciso que consiste em separar de forma radical as experincias boas e ms, isto , as que promovem prazer das que provocam qualquer forma de desprazer, desconforto ou dor. Melanie Klein acredita que as experincias de prazer so atribudas a uma pessoa, a me,
74
que se constitui ento como a me boa, capaz de prestar cuidados e amar. Por outro lado, as experincias ms so atribudas me que frustra, castiga ou deixa a criana em estado de frustrao. Isto quer dizer que nos primrdios da vida o psiquismo organiza suas experincias de prazer e desprazer polarizando ao mximo a distino entre ambas e atribuindo-as, por um lado, a um objeto idealmente bom e, por outro, a um terrvel perseguidor. Ora, o dinamismo que separa o bem purificado do mal radical est presente na lgica do fundamentalismo ao pregar a absoluta bondade de Deus em contraste com a maldade dos infiis que devem ser sumariamente aniquilados. Ao constituir um bem absoluto e inalcanvel, este fica protegido de toda possvel contaminao e assim pode permanecer incorruptvel; eterniza-se: torna-se uma reserva imaginria de bem que pode durar para sempre, o que responde a uma de nossas aspiraes mais profundas. Do outro lado, a grande vantagem de estar diante de um objeto absolutamente mau que nenhuma dvida se instala quanto ao que fazer com ele: s resta destruir e, impiedosamente, aniquilar o perseguidor. Ao constituir um objeto como sendo plenamente mau, consigo justificar qualquer ato de violncia contra ele. Sobretudo se o estou aniquilando em nome do Supremo Bem, ento toda e qualquer arbitrariedade contra ele ser justificada, ser considerada santa e bendita: aquele sobre quem projetei minha concepo de mal absoluto completamente destitudo de sua subje-
tividade, de seu direito defesa, de seus direitos tout court; torna-se um objeto desprezvel, mero dejeto. Do outro lado, para constituir um objeto idealmente bom preciso negar toda falta ou precariedade que porventura haja nele; isto faz parte da idealizao necessria para o surgimento do objeto imaculadamente bom e perfeito: ser um verdadeiro Deus. Melanie Klein considerava a negao um poderoso mecanismo de defesa arcaico que visa aniquilar percepes e aspectos indesejados das pessoas e est intimamente relacionada idealizao. Bem prximos do ideal mximo, Deus (ou Al, como querem os muulmanos), estariam os que conseguiram aproximar-se mais desta extrema qualidade do Bem: mrtires, santos e sacerdotes e a reside o perigo do fanatismo. Se Deus permanecesse inacessvel em uma esfera metafrica de bem absoluto, jamais poderamos vir a conhecer com muita certeza qual , exatamente, a sua vontade. O perigo comea quando julgamos que os mulls ou sacerdotes so representantes legtimos e porta-vozes do Bem Absoluto: o que nos leva a um movimento regressivo, colocando-nos cegamente submetidos a seus desgnios, da mesma forma que um dia, no passado, fomos obrigados a estar em relao a nossos pais. A partir deste instante, todas as arbitrariedades podero ser cometidas em nome do Deus Supremo ao pronunciar-se por intermdio de seus orculos e eleitos. Desde a descoberta do dirio de um dos
75
terroristas que organizou o atentado americano, pode-se vislumbrar nele um estado de profunda convico: ao matar e destruir os americanos, representantes de sat, estava cumprindo a vontade do Deus Supremo. Este discurso fanatizado revela aquela certeza absoluta que caracteriza os estados psicticos: no h dvida de que os americanos so satnicos e que o projeto de mat-los um gesto de obedincia ao Bem Supremo. No h lugar para dvida, indagao, crtica, meditao ou ponderao. O fundamentalismo taleban atravs da jihad (que significa obedincia cega vontade de Deus) transforma palavras e crenas em msseis a serem atirados contra os outros, isto, todos os que no participam das mesmas crenas e valores e que foram devidamente satanizados. Outro mecanismo de defesa descrito por Melanie Klein para lidar com a turbulncia emocional dos primeiros tempos, a fuga para o objeto bom, consiste em refugiar-se imaginariamente no seio do bom objeto ideal, o que permite negar a prpria fragilidade e desamparo e lanar-se deliciosa aventura de partilhar da onipotncia divina. Tornar-se muito poderoso, na verdade onipotente, a promessa mais sedutora do fundamentalismo. Este pode ser pensado como sendo sempre uma estratgia de resgatar poder e triunfar sobre a fragilidade da existncia humana. Podemos admitir que o sentimento de onipotncia no incio da vida uma importante defesa: nega a fragilidade, impotncia e desamparo dos primeiros tempos, de modo que, quanto mais in-
defesa e imatura a criana, maior ser o sentimento de onipotncia e a sensao de ser o centro do universo. Melanie Klein mostrou que o desenvolvimento psquico consiste no doloroso processo de perda do sentimento de onipotncia, de des-centramento; a exigncia constante de sair do lugar de sua majestade, o beb. O princpio de realidade obriga cada um a confrontar-se com a ignorncia, impotncia e exigncias da necessidade que estabelecem diferentes graus de dependncia e aprendizado. Ora, para aceitar que sou um ser de necessidade, sujeito ao adoecimento e morte, incapaz de resolver sozinho a grande maioria de minhas necessidades, preciso necessariamente abdicar do sentimento de onipotncia e de auto-suficincia. Este doloroso processo um prolongado luto que me faz chorar e lamentar ao mesmo tempo em que continuo nutrindo os mais secretos desejos de voltar a ser poderoso e triunfar sobre o desamparo. Era to prazeroso sentir-me o centro das atenes e o centro do mundo e to insuportvel e tedioso viver um cotidiano medocre ou at mesmo miservel quando comparado s grandiosas vivncias de poder e plenitude dos primrdios da vida! este o terreno que propicia adeso ao fanatismo religioso e ao fundamentalismo. Quanto mais intenso for o desejo de recuperar a onipotncia perdida e quanto mais profundo o desprezo por minhas aquisies cotidianas, tanto mais tornome presa fcil para a seduo do fundamentalismo e de todas as formas de fas-
76
cismo e nazismo. Estas ideologias prometem resgatar a perfeio e a onipotncia originrias, associando-me a alguma figura todo-poderosa ou seus representantes aqui na terra.
Entretanto, se eu permanecer aderida a uma aspirao cada vez mais forte e devoradora de recuperar o estado de onipotncia e plenitude, comeo a entrar na dinmica vertiginosa que culmina com o suicdio de tipo melanclico. Muitos autores na psicanlise3 j escreveram a respeito desta experincia-limite. Matar-se significa neste caso destruir a precariedade de um corpo e uma existncia que passaram a ser vividos sob o signo da falha, da precariedade e da insuficincia. uma lgica asfixiante que vai produzir a insidiosa, silenciosa transformao do corpo e existncia em dejetos. O vertiginoso percurso vai das mais leves formas de depreciar a vida, de frustrante, precria e imperfeita at consider-la indigna, insuportvel, at finalmente coisificar este corpo real a um ponto extremo, tornando-o matria fecal e fazendo do suicdio um gesto glorioso, via expressa de recuperao da grandiosidade perdida. A morte passa a ser procurada no em si mesma, como extino da vida, mas como via de acesso verdadeira plenitude, caminho para fazer cessar conflito, necessidade e dor da existncia: suicidarse virou estratgia de recuperao da
plenitude narcsica mais absoluta e optar pela morte no to difcil quando a vida foi depreciada at tornar-se equivalente matria fecal. O prprio corpo e a vida foram completamente coisificados e no difcil empreg-los como preo a ser pago pelo maior bem. H nisto a sensao grandiosa de estar a servio da misso herica de purificao e eliminao do mal. A grandiosidade da misso apaga a insignificncia da existncia; entrega-se o nada de sua vida atual pelo tudo da vida eterna. O suicida mata-se no para se destruir, mas para reconstituir a imaculada perfeio originria da existncia. H, nesta forma de morte, a busca de um sentido supremo e grandioso que possa preencher o vazio da vida; o mais extremo ato de onipotncia e recusa de assumir a condio humana e annima. Representa o triunfo sobre a impotncia, trivialidade e precariedade de uma existncia cotidiana atravessada pela misria e pela insignificncia.
Para Melanie Klein, a sada do estado de onipotncia mais agudo um longo processo de luto que comea a ser vivido desde o nascimento e prolonga-se at a morte. verdade que os psicticos, algumas personalidades muito narcsicas ou esquizides e os fanticos de qualquer seita nunca chegam a passar por este processo de transformao que Melanie Klein chamou de posio de-
77
pressiva. Neste caso o termo depressivo no se refere ao quadro psicopatolgico da depresso. Usemos uma metfora poltica para pensar um aspecto desta passagem. A diviso poltica do mundo era mais clara na poca da guerra fria, quando de um lado estavam os Estados Unidos e do outro a Unio Sovitica, e o mundo podia ser esquematicamente dividido em esquerda e direita. Ora, desde a queda do muro de Berlim e o desaparecimento do objetivo russo de levar a revoluo comunista ao planeta, o panorama poltico revelou-se ser muito mais complexo e difcil do que se pensava at ento. Diante do novo panorama geopoltico, a confuso tem sido to grande que acaba acontecendo a volta ao funcionamento anterior (ns somos do bem, os outros so do mal) ou uma regresso mais profunda para atos isolados de destruio fantica que parecem gritos de desespero ou movimentos descoordenados e anrquicos. Algo anlogo ocorre quando se entra na posio depressiva. Na posio anterior (chamada de esquizoparanide) podia-se separar to nitidamente o bom e o mau que as pessoas consideradas ms podiam ser aniquiladas como perseguidores perigosos. As experincias desagradveis e desconfortveis podiam ser descarregadas e evacuadas ou projetadas sobre o mundo e os outros. Na posio depressiva, entretanto, comea a acontecer uma confluncia entre amor e dio: os objetos j no so percebidos como exclusivamente bons e maus, perde-se a crena de que o mun-
do est dividido em viles e santinhos, relativizam-se todas estas atribuies de valor positivo e negativo s pessoas e a si prprio. Surge o panorama modificado de uma realidade psquica mais complexa, h um crescente reconhecimento da prpria agressividade, tornando-se impossvel acreditar que o mal est s no mundo e no outro. A realidade psquica passa a caracterizarse por um maior grau de tenso, pela presena de conflito que origina culpa, remorso e desejos de reparao. Uma grande decepo vivida pois o objeto ideal, perfeito e absolutamente doador deixa de existir. A criana comea a darse conta de que a me que alimenta a mesma que frustra, que no existe uma pessoa infalvel e inesgotvel; ocorre uma mudana muito perturbadora na qualidade do objeto bom. A me perfeita e onipresente substituda por algum que funciona suficientemente bem, mas tambm falha e angustia. Surge uma nova imagem parental contaminada em sua perfeio e danificada em sua completude. H um profundo pesar e um angustiante sentimento de responsabilidade com relao as outras pessoas. Diminui a necessidade de ser atendido e receber cuidados e aumenta o desejo de cuidar e proteger o outro. Desenvolve-se um maior grau de tolerncia com relao s falhas dos outros. A posio chama-se depressiva porque nela cumpre-se um processo de luto. Este consiste na aceitao da perda dos aspectos ideais das pessoas e na capacidade de abrir mo das representaes
78
mais radicais que exigem tudo, absolutamente bom para aceitar e enraizar em si representaes de alguma coisa, relativamente boa, morte da criana magnfica, gestao de nova subjetividade. tambm a passagem da posio do bero esplndido para uma postura de implicar-se e responsabilizar-se. Porm, a passagem para a posio depressiva a mais difcil das transformaes, envolvendo todo tipo de regresses posio anterior. No simples perder o status de criana magnfica e entrar no regime da realidade, com as exigncias de postergar a satisfao das necessidades, trabalhar, reconhecer o outro em sua diferena e desenvolver a capacidade de tolerar frustraes, pensar e sentir. As angstias que povoam os primeiros tempos somam-se s novas angstias da posio depressiva, e os problemas tornam-se infinitamente mais complexos: isto origina um forte movimento regressivo, na direo da posio esquizoparanide, perceptvel atravs das defesas manacas. Tais defesas sinalizam justamente a dificuldade de entrar no processo de luto da onipotncia, so tendncias a recuperar o status perdido e voltar a uma organizao mais simples e dualista do mundo. Os mecanismos de defesa da posio esquizoparanide envolviam cises radicais entre o Bem Absoluto e o Mal Radical e estratgias de evacuar e destruir tudo que causava desconforto, ao passo que na posio depressiva a criana busca novos mtodos para trabalhar o caos psquico e a violncia pulsional. So m-
todos mais introjetivos: desenvolve-se maior tolerncia ao desconforto de se ver bombardeado por pulses contraditrias e amplia-se a capacidade de suportar o conflito entre diferentes aspectos da experincia. Isto tudo quer dizer que mais trabalho psquico e maior capacidade de postergar a vivncia de prazer tornam-se necessrios. O resultado que ao fim deste penoso trabalho de implicao e responsabilizao de si nos acontecimentos, h um melhor aproveitamento da energia pulsional e maior integrao desta ao Ego. Os mecanismos da posio depressiva podem ser comparados a um lento processo de gestao, pois h criao de novo espao potencial ou espao psquico onde as representaes pictricas e verbais sero trabalhadas e modificadas, evitando a pura descarga das energias instintivas atravs de atos. A metfora de espao psquico sempre precria: leva-nos diretamente ao registro visual, para as imagens e o imaginrio com suas violentas estratgias de captura e cristalizao do pensar. Talvez 0possamos pensar em um espao virtual, um lugar escondido e invisvel, um no-topos ou lugar nenhum em que possamos ficar relativamente livres da captura e da priso do imaginrio. Para entender esta passagem das imagens idealizadas da infncia solido relativa e plena capacidade de pensar da maturidade, por meio da posio depressiva, podemos recorrer histria da terceira margem do rio. Entrar nesta posio j no fcil; porm ainda mais difcil
79
atravess-la: se as margens so crenas absolutas, ser preciso desprender-se delas, solt-las em direo ao meio do rio. A posio depressiva exige deixar morrer deuses e demnios e abandonar crenas infantis de que h um bem e um mal absolutos que podem ser perfeitamente localizados em estado purificado. S h verdadeiro crescimento medida que os dolos declinam e desaparecem juntamente com a idia de um pensamento mgico e imediatista. No lugar deste ltimo ser preciso desenvolver um verdadeiro trabalho de pensar, sentir e elaborar conflitos. E ainda criar uma grande capacidade de conviver com o estrangeiro, tolerar dor e frustrao e aceitar a condio humana de desamparo, transitoriedade e finitude. Estas so tarefas para uma vida inteira, por isso, dizem, nunca terminamos de elaborar a posio depressiva. o mergulho na direo da face escura do outro, desalojamento de certezas, lugar da dvida.
A terceira margem do rio o lugar da palavra, da gua da palavra. Casa da palavra. Onde o silncio mora. Na estria de Guimares Rosa, o pai retira-se para este lugar fora do alcance do familiar, lugar enigmtico, margem inexistente do rio. O que dizer disto? Que o pai retirouse para lugar inacessvel, inapreensvel; no quer deixar-se apreender em nenhum esquema ou cdigo. No vai permitir compreenso totalizante. A tradio judaica fala do carter impro-
nuncivel do nome de Deus. No poder pronunciar o seu nome corresponde ao lugar nenhum da terceira margem; exigncia de que o pai possa ficar inacessvel, em uma certa dimenso, ao imaginrio que petrifica. A interdio de imaginarizar Deus um importante limite para a insacivel atividade imaginria e linguageira, forma de impor silncio nas margens da palavra: meta de desubstantivar Deus, faz-lo passar de substantivo a verbo. No tempo verbal, pai princpio doador de vida, a parentalidade, ou o que alguns chamam o significante ser pai; isto , capaz de gerar vida, de dar vida, tornar-se capaz de autoria: um princpio vital. preciso pensar parentalidade no plano metafrico, como capacidade de gerar fruto, frutificar. Pensar no pai em termos de pura atividade, atividade de dar ser: da imagem esttica ao movimento que sugere instantaneidade, presentidade sempre recomeando; incessante brotar de gua na fonte. A metfora espacial da gestao de um espao psquico comea ento a temporalizar-se: o pai agora atividade de ser e de dar ser, de destinar a ser, de deixar o outro ser. Para deixar o outro ser preciso manter-se retrado, cancelado, em reserva, por isso na terceira margem do rio, em estado ausentemente disponvel. Muitos para quem contei a histria da terceira margem do rio ficavam indignados com a indiferena do pai, no meio daquele rio. Ser que isto indiferena ou abertura de espao, verdadeiro ende-
80
reamento ao outro? Uma certa indiferena, alguma descontinuidade necessria funo paterna para dar lugar mais plena emergncia do filho: ser pai como quem dissesse aos filhos Aprs vous, mes enfants.
dade, dimenso do outro e de si que sempre nos escapa apreenso e permanece enigmtica; sem a eleidade do outro e de si, ncleo indissolvel de alteridade, nada resistiria voracidade assimilativa do Eu. O pai enigmtico da terceira margem do rio o estrangeiro, o excedente de sentido in-assimilvel pelo eu-mesmo: sobretudo o silncio que pe em movimento a indagao, a dvida, a incerteza. Ao adentrar-se nesta borda invisvel o pai experimenta um modo outramente que ser de retrair-se, para deixar o outro ser. A terceira margem o lugar propcio atividade de dar ser.
81
lncio, nosso pai. Para se contrapor a um Deus triunfante e mortfero preciso ir ao encontro da terceira margem do rio, um horizonte capaz de desalojar a certeza passional e sanguinria e desmanchar a reivindicao de ser tudo, onipresente. Melanie Klein diria que ao atravessar a posio depressiva d-se um remanejamento de todos os dolos: me e pai todo-poderosos e a criana magnfica e desptica. H perda de brilho e grandiosidade e ganho de um sentimento de considerao para com o outro, estrangeiro para mim. Isto me faz pensar que falta aos fundamentalistas deixar morrer o seu deus poderoso, sanguinrio e narcsico e descobrir como adentrar a terceira margem do rio ao encontro do silncio do Pai. No seio do pai, preciso discernir o filho. O Deus do sculo vinte e um uma criana gritando de fome e sede, frgil, desamparada; precisa de gua da palavra. Entregou aos homens adultos a tarefa de pacificar o mundo. Sem apelao. Hora da palavra, Quando no se diz nada, Fora da palavra, Quando mais dentro aflora. Asa da palavra, asa parada agora. Casa da palavra. Onde o silncio mora. Puro silncio, nosso pai.4
DIVULGA
A Livraria Pulsional possui mala direta eletrnica com 3.600 endereos da rea psi. Divulgue suas atividades pela nossa mala. Consulte-nos.
Fones: (11) 3672-8345 3675-1190 / 3865-8950 e-mail: [email protected]
REFERNCIAS
Grunberger, B. Le narcisisme: essais de psychanalyse. Paris: Payot, 1993. Artigo recebido em outubro/2001 Verso aprovada em novembro/2001