Goes Psicanalise e Capitalismo
Goes Psicanalise e Capitalismo
Goes Psicanalise e Capitalismo
Clara de Ges
Garamond
Copyright 2008, Clara de Ges Direitos cedidos para esta edio Editora Garamond Ltda. Rua da Estrela, 79 - 3o andar CEP 20251-021 - Rio de Janeiro - Brasil Telefax: (21) 2504-9211 e-mail: [email protected] website: www.garamond.com.br Preparao de originais e reviso Carmem Cacciacarro Capa Raissa de Ges Projeto grfico e editorao Estdio Garamond / Anderson Leal
G543p Ges, Clara, 1956Psicanlise e capitalismo / Clara de Ges. - Rio de Janeiro : Garamond, 2008. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7617-154-6 1. Capitalismo - Aspectos psicolgicos. 2. Psicanlise. I. Ttulo. 08-4937. CDD: 150.195 CDU: 159.964.2
Todos os direitos reservados. A reproduo no-autorizada desta publicao, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violao da Lei n 9.610/98.
Este livro resultado de um ps-doutorado interrompido em virtude das razes que abundam na "Academia" quando a burocracia serve de desculpa s mesquinharias usuais. Fica o registro para que se inscreva em algum lugar que este o resultado de um trabalho feito quando eu estava afastada da sala de aula para fazer ps-doutorado. Parte do trabalho foi feito a partir do Seminrio de Eduardo Vidal, s quintas-feiras, na Letra Freudiana, embora ele no tenha nenhuma responsabilidade pelo que aqui escrevo. O livro foi se formando a partir de um Seminrio partilhado com Paulo Becker, dado tambm na Letra Freudiana, e das discusses com Thalita Aguiar, Cntia Almeida Ramos e Carlos Augusto Santana Pereira, alunos do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais. Agradeo a Cntia, Carlos e Thalita as leituras e sugestes, assim como o entusiasmo. Tambm a Paulo Becker, Ftima Vahia, Maurcio Lessa, Renata Salgado, Raissa de Ges, Conceio de Ges e Carlos Eduardo da Rocha e Silva, pelas leituras e sugestes, assim como pelos silncios. Agradeo a Carlos Nlson Coutinho pela acolhida. E finalmente ofereo este livro aos meus companheiros de trabalho da Letra Freudiana, escola de psicanlise.
SUMRIO
Prefcio Apresentao 1. Psicanlise e capitalismo 2. A economia psquica 3. A economia do capital 4. A economia do gozo Referncias bibliogrficas
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Prefcio
Paulo Becker
Este livro um marco na histria das ligaes profundas entre a psicanlise e o marxismo, que constitui um repertrio desesperador de mal-entendidos. No pelo mal-entendido em si, que de resto inerente aos discursos que circulam em determinado momento e sempre deixam escapar algo do real que procuram cernir. O que desesperador a impotncia para utilizar os conceitos fundamentais destes campos do saber, para faz-los trabalhar tendo em vista o trilhamento significante de que so constitudos, os sulcos que abriram no pensamento, deixando restos que sem dvida s poderiam mesmo ser elaborados pela sua posteridade. Ao invs disto, assistimos s tentativas de impor um todo coeso e mediocremente reducionista s obras de autores que no so simplesmente autores; a pretenso de estabelecer o verdadeiro Marx e o verdadeiro Freud, por exemplo, quando em verdade eles so verdadeiras pedras constituintes da nossa cultura moderna e que se estendem na contemporaneidade, exercendo a sua influncia sobre qualquer pensamento que vem vindo depois, ainda que pela sua negao. A verdade a Histria; nos descaminhos do inconsciente, um saber se precipita como verdade. A psicanalista e poeta soube se amalgamar historiadora, incorporando a proposio. A psicanlise e o marxismo certamente devem o seu surgimento s condies histricas do capitalismo, mas vo alm, ressignificando o passado e lanando as bases de um futuro. Ser um tempo, este j agora, em
que a Histria incorpora a noo de estrutura e descontinuidade simultaneamente, os efeitos de sujeito, os vestgios de que emanam significaes no mais datadas. Modo de produo um conceito atravs do qual Marx define o que uma estrutura. O ponto de partida entender o capitalismo como uma economia de gozo. O corte radical feito por Marx reinstaura a verdadeira economia poltica, que no prescinde da linguagem. Freud, Marx e Lacan detectaram a estrutura binria do significante. Dois plos, mercadoria A e B, permitem a circulao de um elemento terceiro, um objeto a mais que se apresenta como o resduo, presena invisvel de algo que comum s duas. Pode-se trocar uma mercadoria qualquer por outras em diversas propores, mas o seu valor de troca permanece o mesmo... de toda forma, estes dois objetos so iguais a um terceiro que, por si s, no nem um nem outro. Cada um dos dois, enquanto valor de troca, so redutveis ao terceiro, independente do outro (Karl Marx, Oeuvres, I: Le Capital, Gallimard-La Pleyade, 1973, p. 565) Clara de Ges nos torna compreensvel a assero de Lacan em sua Lgica do Fantasma (indito, p. 48): a desmistificao da pretensa conjuno do valor de troca com o valor de uso que Marx operou - fazendo aparecer a estrutura real onde se d a circulao do valor dependente do trabalho - vale tambm para a psicanlise. Pois no inconsciente algo funciona como valor de troca, e na via de sua identificao ao valor-de-uso que se fundam tanto o objetomercadoria quanto o objeto sexual. Tentaram usar Marx para postular um novo sujeito. um sonho recorrente. O novo homem no um novo sujeito. o sujeito de sempre, avisado da dimenso real material que o sobredetermina. Matria e no substncia; Marx, magnfico leitor de Aristteles, esclareceu que no h outra substncia seno o trabalho vivo,
energia, o desejo pulstil que emerge na dependncia profunda do Outro quando no enfrentamento da necessidade. E ele que nos diz: a essncia do homem poder tomar a sua prpria essncia como objeto. Exatamente como Hegel, Freud e Lacan; o sujeito se constitui no desejo do Outro. Marx no teria nada a opor quanto considerao da existncia dessa outra "quantidade desejante", que ele absolutamente no ignora, que se apreende como um dispndio de trabalho inerente ao prprio consumo e se esvai junto a sua noo de resto, resto composto do substrato da natureza e do trabalho "natural" de utiliz-la. O valor-de-uso portanto um amlgama do trabalho do homem e do trabalho da natureza, o que se torna claro na citao de Marx sobre William Petty; o trabalho o pai, mas a me a terra. O trabalho humano abstrato, uma pura quantidade real e formal, s pode se realizar na medida em que se serve do corpo da mercadoria. Ento temos um corpo enquanto valor de uso, consumo ou satisfao, quando ele se inscreve nos registros do real e do simblico, e tambm enquanto forma imaginria do valor, cuja existncia real e formal depende do corpo da mercadoria e ao mesmo tempo est fora dele (Karl Marx, Oeuvres, I: Le Capital, Gallimard-La Pleyade, 1973, p. 567). Freud e Lacan assinariam embaixo desta postulao, tambm vlida para o objeto do desejo. Para Zizek, existe uma homologia fundamental entre os mtodos interpretativos de Marx e de Freud - mais precisamente, entre suas respectivas anlises da mercadoria e do sonho. Em ambos os casos, a questo evitar o fascnio propriamente fetichista do "contedo" supostamente oculto por trs: o "segredo" a ser revelado pela anlise no o contedo oculto pela forma (a forma da mercadoria, a forma do sonho), mas, ao contrrio, o segredo dessa prpria forma. Pode-se dizer que o trabalho do sonho a prpria forma que ele conquistou, com um a mais que por ali passou, o prprio desejo. No h portanto uma verdade do inconsciente que
no esteja no prprio pensamento manifesto; trata-se do substituto originrio, uma bela expresso cunhada pela crtica de arte Rosalind Krauss, que encontra um antecedente nos estudos de Lacan sobre o recalque originrio. Para ele, a estrutura do recalque se d de um s golpe, e uma segunda representao, o S2, vem substituir uma original, o SI, que de fato nunca pertenceu ao conjunto das representaes ou significantes mas que possui uma existncia axiomtica que no deixa de exercer os seus efeitos. Ou seja, passa a existir com uma estrutura em operao. Enfim, vir um tempo em que o fascnio da forma, prpria de um modo de produo especfico, possa valer sem que a forma-mercadoria seduza pelo entupimento das necessidades, como se fosse possvel no perder nada de uma demanda que se retroalimenta... de sua prpria perda: a mais-valia. Porque o fetiche do dinheiro, os bilhes, os trilhes de hoje aspirados pela Histria, apenas a iluso do equivalente geral, mascarando a essncia da riqueza e das trocas, o ponto de real, o desejo-trabalho, que subverte a prpria lgica de uma equivalncia que se pretende universal.
Apresentao
O estilo em que escrito este livro marca um ponto de cruzamento entre o discurso que circula na Universidade e a poesia. O discurso acadmico parece sufocar vozes de testemunho que irrompem no texto dando-lhe o ritmo de uma profunda descontinuidade. No corpo do texto, pulsa um eco, um monlogo subjacente s frases, que de vez em quando brota entre pargrafos. So como falas de personagens submersos que permanecem em outro plano da narrativa. No prprio texto, o que est sendo formulado encarnado por vozes entrecortadas, abafadas, esquecidas. Assim que a teoria atravessada pela poesia, esburacada por ela. So poucos os trabalhos que articulam histria e psicanlise, e menos ainda aqueles que o fazem fora de uma perspectiva culturalista. Este livro original no campo da histria por isso, por apontar, de um ponto de vista estrutural, trabalhando a psicanlise como discurso, novos objetos, assim como a abordagem da reproduo ampliada do capital como forma e gozo. A racionalidade ocidental no responde mais pela rede de produo de sentido da selvageria contempornea; imprescindvel que seja incorporada s explicaes atuais a pulso de morte. H, neste livro, um caminho no qual se faz essa articulao.
1. Psicanlise e capitalismo
Os poemas e as revolues se separaram. Nem todos os heris morreram de overdose, mas... ainda assim, os poemas e as revolues se separaram. Andam cabisbaixos chafurdando entre batinas de padres e profetas... rabinos, pastores e ims. Os pobres, a quem eram to dedicados os acham demais. Por isso andam cabisbaixos chafurdando na lama dos esquecimentos. Envergonhadas nostalgias sussurram entre gritos inteis. Encarnados coraes rojos so como brasa dormida. Viro ainda os ventos s fornalhas ocultas? Transtornadas barricadas sem rumo incendiaro, ainda, as estrelas e poetas bbados de sangue dormiro,finalmente,em paz? Ainda que na Terra tudo cesse, os Cus respondero no com anjos e trombetas que estamos fartos deles, mas com raios e troves, tempestades de prata, carrossel. Urros infernais so uma espcie de batuque que permanece. Um ritmo ntimo e caribenho toma entranhas exangues de querer. Pode, a psicanlise, nos dizer alguma coisa a respeito desse sintoma da modernidade? A respeito desses seres exangues de querer? Pode-se falar de um colapso da modernidade, ou somente estamos a testemunhar a radicalidade crua de sua lgica posta a nu, a lgica do capital, pautada pela extrao de mais-valia?
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Findas as promessas de redeno e de revoluo, o que resta como destinatrio do sofrimento das gentes? Os ideais romnticos se foram e a prpria razo claudica no corao dos homens... resta a vastido do mercado... a aborrecida vastido do mercado... solido. A questo deste livro uma questo moral. O que o motiva uma angstia que se articula no campo da moral, em busca de uma nova tica; uma espcie de mal-estar indizvel que recusa a impotncia e sua conseqncia mais imediata, o desespero; desespero diante da barbrie na qual os tempos contemporneos mergulharam, desespero diante da indiferena; indiferena que torna homogneos os indivduos e atravessa todas as classes sociais; indiferena diante da morte tornada corriqueira e banal; morte despojada de rituais fnebres, uma vez que no h nenhuma Antgona que a pranteie. Antgona, a herona de Sfocles, recusa a posio de impotncia e lana-se ao impossvel. desse lugar, lugar do impossvel, que uma tica, a tica da psicanlise, se produz. Uma tica que se constri a partir de um lugar lgico, o lugar do impossvel na lgica modal. Quantos efeitos, ou defeitos, esse lugar pode causar em tempos de gatos pardos e conformidade? Em tempos de derrota e destruio, o lugar do impossvel aparece como um ponto de fuga, de morte, capaz de instaurar um profundo desequilbrio nessa ordem que nos aprisiona e constrange. O impossvel, bom que se diga, no tem nada a ver com utopias; no uma projeo nem temporal nem espacial, um deslocamento para um futuro imaginrio tal como prometia o comunismo, nem para uma ilha perdida como queria Thomas More. O impossvel o ponto radical da falha. a que Antgona, tal como Edipo em Colono, afirma a vida, ou um certo modo de viver a vida, nos umbrais da morte. Antgona afirma uma lei, uma lei diferente daquela da cidade, do Estado ou do capital; da deriva uma tica como sustentao de um compromisso e no como derivao do temor ou do interesse.
Psicanlise
capitalismo
Antgona tomada, por Lacan, como referncia para articular essa "nova" tica, a tica da psicanlise, ou a psicanlise como uma tica.1 Ela a filha de dipo, da linhagem dos labdcidas, a linhagem de Cadmo, fundador de Tebas. Justamente na fundao da cidade, Cadmo mata um drago de Ares e, por isso, a famlia amaldioada. Labdaco, neto de Cadmo, no contente com a maldio que pesa sobre a famlia, probe o culto a Dionsio e destroado pelas bacantes... Laio, seu filho, ainda uma criana, e por isso o poder entregue a um tio. Esse tio assassinado, e Laio, ento, foge. Hospeda-se na casa de Pelops, de onde seqestra o filho deste, o jovem Crisipo, com quem tem uma relao de amor. A essa altura j pode voltar para Tebas... A se casa com Jocasta e tem um filho, dipo. Sabe, ento, da existncia de um orculo, que anunciara que ele, Laio, seria assassinado pelo filho, dipo. Laio decide matar o menino para evitar que se cumpra o vaticnio, e entrega-o a um criado da casa para que o abandone na montanha. O criado toma a criana, mas no a mata. Entrega-a a um pastor para que a leve dali. O pastor leva dipo para Corinto, onde ele criado como se fosse o filho do rei. Ao crescer, dipo insultado por um bbado, que o chama de filho ilegtimo de Polibios, rei de Corinto. Transtornado, dipo se dirige a um orculo, que no lhe responde pergunta sobre sua origem, mas revela seu destino: matar o pai e se casar com a prpria me. Diante dessa profecia, acreditando ser filho de Polibios, dipo foge. Na estrada a caminho de Tebas, encontra um carro conduzido por um criado, que o empurra da estrada. dipo reage e termina por matar o criado e o homem que ele transportava. Tebas vivia acossada por um monstro, a Esfinge, que lanava um enigma ao viajante e, se ele no adivinhasse a resposta, o devorava. A cidade, ento, anunciara que se algum decifrasse o
1 LACAN, Jacques. O Seminrio, livro 7: a tica na psicanlise. Trad. Antnio Quinet. Rio Janeiro: Jorge Zahar,1997,p.96-97.
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enigma da esfinge, seria posto no comando da cidade e receberia a mo de Jocasta, rainha que enviuvara recentemente. dipo apresenta-se diante da esfinge, que lhe pergunta: "qual o animal que, ao amanhecer, tem quatro pernas, ao meio-dia, duas pernas e ao entardecer, trs"? dipo responde que o homem. E decifra o enigma da Esfinge, que desaparece Freud toma essa histria mtica, tornada trgica por Sfocles, para formular a prpria estrutura do que h de humano no enigma da existncia; do que h de trgico e irremedivel nessa existncia. dipo no pode fugir ao seu destino, mas o destino no se impe de fora pra dentro, sem que o sujeito o efetive com seu ato. H uma determinao, mas que no se impe passivamente. preciso que seja efetivada. dipo, efetivamente, mata um velho e casa-se com a rainha Jocasta, viva de Laio, e tem quatro filhos: Antgona, Ismene, Etocles e Polinices. Um dia, os deuses cobram a conta do parricdio e do incesto. Na tragdia, no importa quais eram as intenes da personagem, o que ela sabia ou no sabia. H uma objetividade implacvel na responsabilidade do ato advindo de um no saber. A psicanlise guarda essa marca da tragdia grega. O sujeito responsvel por seu ato ainda que ele seja causado pelo inconsciente. A peste desaba sobre a cidade de Tebas. Tirsias, o adivinho, consultado e responde que uma falta terrvel fora cometida e que somente com a punio do culpado o flagelo abandonaria a cidade. dipo, que detinha o poder, promulga a sentena de morte para o culpado. Comea a procura pelo culpado. O culpado o prprio dipo. O velho que matara na estrada era seu verdadeiro pai, e a mulher com quem tivera quatro filhos sua me. dipo cometera o pior dos crimes, e promulga contra si mesmo uma sentena pior que a morte: fura os prprios olhos e parte para o exlio. Ele parte acompanhado somente por Antgona, e amaldioa os filhos Etocles
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e Polinices, que o teriam desrespeitado e destratado. dipo prediz que um irmo matar o outro. Os irmos, para evitar que a maldio do pai os atingisse, resolvem exercer o poder alternadamente. Enquanto um estivesse frente da cidade, o outro estaria fora e s voltaria no momento de assumir o poder que periodicamente mudaria de mos. Etocles est no poder e, quando chega a vez de Polinices, ele o expulsa da cidade e no cumpre o trato estabelecido. Polinices rene um exrcito e cerca Tebas. Etocles prope um combate entre os dois. Matam-se um ao outro. Creonte, o tio, frente da cidade, determina que somente Etocles receba as honras fnebres; Polinices ficaria insepulto - pasto de ces e abutres - por ter se levantado contra a cidade. A entra Antgona, e toda uma discusso a respeito da Lei, de seus fundamentos e da obedincia. Antgona recusa-se a aceitar as ordens de Creonte, a lei da cidade, em nome de outra lei, a lei dos deuses. Arrisca e perde a vida para cumprir essa lei que vem de outro lugar... o lugar dos deuses, ou, diria Lacan, o lugar do inconsciente, do desejo inconsciente. O pai, dipo, j carregava essa marca. Ele renuncia ao poder e aos bens pelo ato de cegar-se e afirma seu desejo nos umbrais da morte. Da, uma nova tica se produz. Antgona desobedece. Em nome da sobrevivncia no se pode aceitar qualquer coisa. A vida no o bem maior. A questo agir conforme... o qu? O desejo que habita em cada um. Antgona opta pela vida que a conduz morte. Era essa a pena ditada por Creonte para quem ousasse sepultar Polinices. [...] uma primeira vez nas trevas ela foi recobrir o corpo do irmo com uma camada fina de poeira que o cobre o suficiente para que seja velado vista. Pois no se pode deixar ostentando na cara do mundo essa podrido onde os ces e os pssaros vm
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arrancar retalhos para lev-los, diz-nos o texto, para os altares no mago das cidades onde vo disseminar, ao mesmo tempo, o horror e a epidemia. Antgona fez, portanto, uma vez esse gesto. O que est para alm de um certo limite no deve ser visto. O mensageiro vai contar o ocorrido a Creonte e assegura que nenhum vestgio foi encontrado, que no se pode saber quem o fez. dada ordem de dispersar de novo a poeira. E desta vez Antgona surpreendida. O mensageiro que retorna descreve-nos o que ocorreu nos seguintes termos: primeiro eles limparam o cadver daquilo que o cobria, em seguida posicionaram-se na direo do vento para evitar as emanaes medonhas, pois isso fede. Mas um vento forte comeou a soprar e a poeira foi preenchendo a atmosfera e at mesmo, diz o texto, o grande ter. nesse momento em que todos se abrigam como podem, se encapucham em seus prprios braos, se soterram diante da mudana de aspecto da natureza, com a aproximao do obscurecimento total, do cataclismo, a que se manifesta a pequena Antgona. Ela reaparece ao lado do cadver soltando, diz o texto, os gemidos do pssaro cujos filhotes foram arrebatados.2 Antgona vincula-se a uma outra ordem. Enquanto "todos se abrigam como podem", Antgona geme. Diante e em meio a "emanaes medonhas", ela desafia os poderes constitudos e cumpre os rituais fnebres sobre o corpo do irmo morto. Ela sustenta uma ao que se referenda em uma outra razo que no a razo de Estado. Freud tomara a tragdia de dipo Rei para escrever a operao na qual o desejo humano se articula. Lacan toma Antgona, dando um passo a mais: afirmado, o desejo inconsciente, como causa, como operador, como trabalho na produo de nossa prpria humanidade,
2 LACAN, Jacques. O Seminrio, livro 7: a tica na psicanlise. Trad. Antnio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 319-320.
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ele agora ser posto no lugar do Bem nessa outra tica, a tica da psicanlise. A questo, para a psicanlise, no se coloca em termos do Bem como justificativa ou juzo da ao moral. A questo se arma em torno da sustentao do desejo diante dos inmeros apelos para que se o abandone em nome da conformidade ao servio dos bens e promessa de felicidade tornada um "direito" no alvorecer da sociedade burguesa. A psicanlise no somente tem uma tica prpria, mas, mais do que isso, ela mesma uma tica, diz Lacan. Freud a constitui como uma tica. Como se pode entender isso? Talvez possamos partir de uma definio de tica como formulao dos pressupostos da moral. A tica seria uma espcie de explicao para a moral, para a ao moral que estaria situada no campo da experincia. Caberia tica explicar por que se deve seguir um caminho e no outro para cumprir a lei moral. Quais os fundamentos de uma ao certa ou errada? A partir de que referncias possvel estabelecer o bem, o certo e o belo? As respostas variaram ao longo do tempo, mas, entre todas elas, um ponto estava sempre presente: o homem move-se em direo felicidade, e a felicidade atingida quando ele se comporta segundo o exerccio do Bem, que fundamenta, assim, a ao moral. Afirma-se o primado do Bem; seria da natureza humana agir conforme o Bem, pelo menos para viabilizar a vida em sociedade ou por uma razo transcendental, um imperativo categrico; por isso se diz que ele, o Bem, o fundamento do certo e do errado, das escolhas que devem ser feitas a partir do livre-arbtrio. Freud rompe com tudo isso. Ao afirmar o inconsciente como causa determinante da ao humana, ele desloca o Soberano Bem do lugar de fundamento, para substitu-lo pelo desamparo, justamente por algo que marca uma falta. O fundamento da ao moral uma falta traduzida em desamparo. O homem age moralmente para no perder o amor e a proteo do Pai... diante das intempries da natureza, das restries
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sociais, de seus prprios quereres incestuosos... justamente esse pai que no pode sustentar esse amor e proteo no ponto em que reivindicado substitudo pela Lei. Se a tica fornece os pressupostos da moral, ento fica claro que Freud realmente estabelece a psicanlise como tica, uma vez que ela produz uma explicao para a conscincia moral sem ter como referncia a felicidade, mas o desamparo. No "Projeto para uma psicologia cientfica",3 ele vai dizer que as razes da conscincia moral esto no desamparo. A partir da, em outro momento, articular a questo do desamparo e da conscincia moral ao pai. No ao pai biolgico, mas funo paterna de sustentar a interdio ao corpo da me. O desamparo aponta para a perda ou obteno do amor, e o amor que conta a, segundo Freud, o amor e a proteo do pai. Essa a base da conduta humana, e sobre essa hesitao entre ganhar ou perder o amor do pai que se instaura a conscincia moral. O medo do castigo o medo do abandono do pai. Assim que a tica um princpio do julgamento da ao dos homens pautada pelo bem. Pode variar a compreenso, o estabelecimento do que seja o bem, mas no seu lugar de referncia tica e moral. Enquanto a tica diz respeito ao sujeito, moral concerne o social, os costumes, um carter normativo. A moral, segundo Freud, tem uma presso externa vinculada ao super-eu, instncia coercitiva que, quando do "naufrgio do complexo de dipo",4 se instaura como suporte da conscincia moral, destinatrio da libido liberada desse "naufrgio" no qual o desejo inconsciente se articula.5 Assim que a instncia moral do super-eu
3 "El inicial desvalimiento dei ser humano es la fuente primordial de todos los motivos morais". FREUD, Sigmund. Obras Completas, vol. I. Buenos Aires: Amorrortu, 1994, p. 363 (traduo nossa). 4 A expresso de Freud. 5 Cf. FREUD, Sigmund. El yo y el ello. In: 1994. . Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu,
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est, de certo modo, articulada ao desejo; ao desejo como impossvel, pois se d no mbito de uma interdio, interdio do corpo da me. E o desejo a dimenso ativa e produtiva do impossvel, diz Lacan em algum lugar. E por a que a tica da psicanlise vai se produzindo, por a... pelo impossvel... O que nos remete ao Real, definido por Lacan, justamente, como impossvel. O impossvel no tem nada a ver com impotncia; pelo contrrio, Lacan os ope 1 1 1 1 1 ao outro. Posicionar-se diante do impossvel enquanto tal um modo de sair da posio de impotncia. A tica, desde Aristteles, articulada felicidade, e o obje1 1 vo do homem seria levar uma boa vida. A tica desdobra-se no apenas na moral, mas na poltica, que deve ser baseada na virtude, t|iie supe uma pedagogia que a fomente, para que se obtenha, justamente, a felicidade, o Bem supremo. De Aristteles a Hitler, o bem que^ evocado no fundamento da legitimidade da ao do homem. A eutansia praticada pelos nazistas em pessoas com proMcmas motores ou mentais era em nome do bem, pretendia libertar nquclas almas aprisionadas em um corpo doente. Prometia-se o li m do sofrimento. Lacan aponta trs tempos de certa forma necessrios e anteriores formulao da psicanlise como uma tica: Aristteles, o uTi I itarismo de Bentham e Kant. A tica de Aristteles organizase em torno do carter, de sua formao atravs da afirmao da virtude e de sua propagao atravs de uma pedagogia. E o Bem que se afirma como horizonte e justificativa da ao moral. Bentham, no sculo XVIII, no j mbito do utilitarismo, se pergunta o que leva os homens a praticar o bem. E responde: a busca da felicidade, pois seria da natureza humana fugir do que lhe provoca sofrimento e buscar o que lhe d prazer. A se situa a u I i I idade; til aquilo que torna o homem feliz, e essa felicidade se encontra no domnio dos bens. O bem da comunidade, ou da cidade, seria a soma dos bens individuais. Kant define o Soberano Bem em
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termos transcendentais e articula a obedincia a seus pressupostos, quilo que marca o homem como tal, quer dizer, experincia da liberdade, entendida como submisso tica conscincia moral. O bem justamente o que Freud comea por negar. Em O mal-estar na civilizao, diz que no h nada, nem no microcosmo nem no macrocosmo, preparado para a felicidade do homem. Detenhamo-nos, um pouco, na leitura feita por Lacan do texto freudiano, leitura que o leva a afirmar que a psicanlise uma tica. O Bem, Freud define como das Ding, diz Lacan, na interpretao que elabora ao longo do Seminrio VII.6 E das Ding o que est definitivamente perdido e interditado no corpo da me. Eis a um ponto de articulao do desejo que se d como distncia de si mesmo, uma vez que o estatuto do objeto7 o do impossvel. Ento, instaura-se uma relao problemtica com o desejo, que, por sua vez, a referncia em torno da qual a tica da psicanlise se articula. E o que das Dingl A Coisa? Comecemos por dizer que, na obra de Lacan, assim como na de Freud, no fcil, e por vezes mesmo impraticvel, definir
6 LACAN, Jacques. O Seminrio, livro 7: a tica na psicanlise. Trad. Antnio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 7 "O objeto pequeno a de Lacan refere-se a um certo excesso que , no objeto, mais do que o objeto - o objeto causa de desejo. Diramos que ele menos o objeto do desejo do que o elemento desejvel que pode residir em qualquer objeto: o impulso para um ponto de consumao alusivo, que pode ser perfeitamente incidental no objeto em si (por exemplo, uma camisa que um dia foi usada por Elvis Presley). isso que 'autentica' o objeto e/ou a experincia de t-lo (como a idia de virgindade em Esse obscuro objeto de desejo, de Bunuel). Se considerarmos Pulp Fiction, de Tarantino, veremos que a narrativa gira, em ltima instncia, em torno de um objeto perdido/roubado dentro de uma caixa que precisa ser recuperada por Vincent e Jules. Esse objeto no pode ser visto, e h apenas uma aluso a ele no brilho reflexivo dos rostos dos protagonistas. esse o objeto pequeno a: algo cuja autenticidade no pode ser representada nem materializada, e que apenas um reflexo da pulso de completar o circuito (quebrado) do gozo e conciliar-se com o desejo (impossvel)." ZIZEK apud DALY, Glyn. Arriscar o impossvel: conversas com Zizek. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 10.
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as palavras e formulaes em termos conceituais, embora Lacan tenha dedicado um ano de seu seminrio para o que chamou de "Os quatro conceitos fundamentais da psicanlise". A parte isso, o prprio modo de produo da psicanlise que impede o emprego de conceitos tais como a cincia ou a filosofia os reconhecem. Isso porque a psicanlise essencialmente o resultado de uma prtica clnica que se conjuga na particularidade de cada sujeito. Os conceitos em psicanlise no seguem o vis da filosofia. A filosofia, diz Freud, tem a iluso de "poder brindar uma imagem do universo coerente e sem lacunas";8 a psicanlise, no. Ela pressupe a lacuna e a falha; ela se constri muito mais nos moldes da perspectiva da cincia, que se mantm como abertura por onde se reconstri em funo dos avanos da pesquisa de campo, do que em termos filosficos ou religiosos. Tambm a religio pretende se legitimar como um discurso no qual A Verdade se articula. Nosso campo a clnica. E aos seus impasses que a teoria responde. Ela vai se inventando como resposta aos pontos de resistncia ao tratamento; como produo e efeito do desejo de Freud de formular "as leis" do psiquismo, as foras a presentes na materialidade dos sintomas. H uma apropriao e reproduo de conceitos forjados como respostas dadas aos impasses da clnica. Foi assim com a formulao da pulso de morte, do desejo inconsciente, de das Ding. Essas formulaes procuravam responder, apareciam como respostas ao que Freud descobria na clnica, pontos aos quais os pacientes se recusavam a cruzar e continuar as anlises. Por exemplo, como explicar a repetio de situaes extremamente dolorosas das quais o sujeito tenta se livrar e nas quais teima em recair? Ou o tipo de relao problemtica com o prprio desejo, que se revela na irrupo de uma angstia quase
8 FREUD, Sigmund. Nuevas Conferncias Introdutrias. Conferencia 35: Em torno de una cosmovision. In: p.180 (traduo nossa). . Obras Completas. Vol. XXII. Buenos Aires: Amorrortu, 1994,
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insuportvel justamente quando se aproxima de uma realizao qualquer? Essas so experincias recorrentes na clnica. Voltemos a das Ding. So vrias as formulaes que procuram apreend-la, e eu as tomarei em funo da questo que, aqui, se articula; a tica da psicanlise como uma tica que se diferencia e se ope tica do capitalismo, tica burguesa que alardeia uma moral que se justifica em nome do capital e do acmulo dos bens e do poder. A burguesia concebe uma organizao humana fundada na necessidade e na razo. A psicanlise toma sobre si a herana de Edipo, que renuncia aos bens e ao poder; e, necessidade, sobrepe a demanda e o desejo; e mais, define o desejo como o que resta de inarticulvel na demanda, ou seja, como impossvel de satisfazer. No que diz respeito ao que est em questo, ou seja, ao que se refere ao desejo, a seu aparato e desarvoramento, a posio do poder, qualquer que seja, em toda circunstncia, em toda incidncia, histrica ou no, sempre foi a mesma. Qual a proclamao de Alexandre chegando a Perspolis assim como Hitler chegando a Paris? O prembulo pouco importa [...] Vim liber-los disto ou daquilo. O essencial isto [...] Continuem trabalhando. Que o trabalho no pare. O que quer dizer [...] Que esteja claro que no absolutamente uma ocasio para manifestar o mnimo desejo. A moral do poder, do servio de bens [...] Quanto aos desejos, vocs podem ficar esperando sentados.9 Na psicanlise o desejo no espera sentado. Ao contrrio, ele faz acontecer. A tica da psicanlise sustenta o desejo como operador da vida. Esse desejo, no entanto, no tem nada a ver com vontade, satisfao ou plenitude. Ao contrrio. O desejo uma espcie de aguilho incessante e incansvel que vem carregado de
29 LACAN, Jacques. O Seminrio, livro 7: a tica na psicanlise. Trad. Antnio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 319-320.
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angstia, justamente aquilo de que as religies e filosofias orientais querem se livrar. O campo da satisfao ope-se ao campo do desejo. O desejo, na psicanlise, est articulado ao impossvel... logo... em seus efeitos no se encontra satisfao, mas um lanar-se adiante na construo da vida. O desejo no um meio para se conseguir alguma coisa, ele o prprio fim. No recuar diante do desejo no morrer antes da hora. O passo de Freud o de mostrar que, no nvel do princpio do prazer (que poderia indicar a felicidade) no h nenhum Soberano Bem - que o Soberano Bem, que das Ding, que a me, o objeto do incesto, um bem proibido e que no h outro bem. Tal o fundamento invertido, em Freud, da lei moral.10 Assim que a tica da psicanlise no a da felicidade ou da utilidade, ou da obedincia ao imperativo categrico. No se pauta pelo Bem que ratifique a ao, uma vez que a ao o fundamento de toda tica. Ao contrrio, ela se constitui como distncia estrutural com relao ao objeto que causa de desejo, quer dizer, que opera como "desejar". A ao que fundamenta a tica da psicanlise uma escuta, escuta na qual se articula o desejo, que, moda do oleiro, faz um pote, circunda das Ding, delineando um espao no qual o que h de mais ntimo circunscrito como o que h de mais radicalmente exterior: um pote cheio de vazio e cercado dele... de vazio. Vazio que pura exterioridade e que nos permite falar de ex-timidade, no lugar de uma intimidade. Freud fala em das Ding j no Projeto,u Nesse texto, um rascunho enviado a Fliess em 1895 e publicado apenas nos anos 50 do sculo XX... Fliess, o fiel e bizarro companheiro de Freud,
10 Ibidem, p. 40. 11 FREUD, Sigmund. Proyeto para una psicologia. In: Aires: Amorrortu, 1994, p.379 (traduo nossa). . Obras Completas. Vol I. Buenos
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interlocutor nos momentos iniciais das formulaes freudianas... Pois bem, Freud envia-lhe um manuscrito onde escreve o que deveria ser o modo de funcionamento do psiquismo sem considerar nenhuma patologia. Na parte do Projeto em que discute o modo como a realidade se produz, e pode ser distinguida de uma experincia alucinatria, atravs de uma operao do que chamou de Juzo, ele fala de das Ding. O juzo "[...] um meio de discernir o objeto que talvez tenha adquirido importncia prtica, originariamente um processo associativo de investiduras que vm de fora e investiduras provenientes do prprio corpo".12 A partir da ele nomeia das Ding como o resto dessa operao do Juzo, como o que se subtrai a essa operao, situando-se, portanto, em uma dimenso que nem alucinao nem testemunho de realidade. "O que chamamos 'coisas do mundo' so restos que se subtraem apreciao judicativa".13 Assim que das Ding se subtrai operao simblica fundadora do prprio inconsciente. uma pura exterioridade que Lacan utilizar como uma de suas nomeaes para o Real. Se a tica da psicanlise se articula a das Ding, isso quer dizer que ela tambm se articula ao real lacaniano, e da ao gozo e pulso de morte. Das Ding uma pura exterioridade em torno da qual as representaes inconscientes gravitam e contornam, repetindo a metfora do pote. No cerne da construo freudiana, das Ding permanece como buraco, falha em torno da qual a linguagem se ordena, produzindo a circunscrio de um vazio. Assim que no cerne do que seria o ser do humano est uma falha e no o bem ou o mal.
12 FREUD, Sigmund. Proyeto para una psicologia. In: Aires: Amorrortu, 1994, p.379 (traduo nossa). 13 FREUD, loc. cit.
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exangue a carne extinta suspira em vo... vero Ento, se das Ding o buraco, a falha, o que se subtrai ao julgamento instaurador de realidade; se o corpo da me interditado, das Ding impensvel. E se impensvel, estamos diante do que Lacan chamou de real. Se o objeto do desejo incestuoso est interditado, e ele est colocado no lugar do Bem, ento a tica da psicanlise aponta para a distncia do Bem supremo e no para sua aproximao. Aponta para que se estabelea uma distncia entre o sujeito e a Coisa, a Me - esse obscuro objeto de desejo, desde sempre e para sempre proibido, de cuja separao depende a instaurao da vida. Elimina-se, aqui, qualquer movimento em direo felicidade da completude, ao fim da angstia, ao paraso na Terra. [A tica] comea no momento em que o sujeito coloca em questo esse bem que buscara inconscientemente nas estruturas sociais - e onde da mesma feita (em um mesmo movimento) descobre a ligao profunda pela qual o que se apresenta para ele como lei est estreitamente ligado prpria estrutura do desejo. Se ele no descobre imediatamente esse desejo final que a explorao freudiana descobriu com o nome de desejo de incesto, descobre o que articula sua conduta de uma maneira que o objeto do seu desejo seja, para ele, sempre mantido distncia.'4 H, aqui, um deslocamento essencial: o fundamento da lei, articulado ao bem, no sentido de que a lei conduziria, justamente, ao bem, deslocado do "social", da necessidade antropolgica, para a estrutura do inconsciente na qual o desejo o operador. E
14 LACAN, Jacques. O Seminrio, livro 7: a tica na psicanlise. Trad. Antnio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 96-97.
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essa a escolha de Antgona. Acima (ou abaixo, tanto faz desde que no haja correspondncia entre elas) da lei da cidade est a lei dos deuses, a lei do desejo. Tal deslocamento possvel porque o que h de humano tem que ser articulado como significante ou, pelo menos, na ordem significante. O humano no se articula nem em termos biolgicos nem sociais. Tudo o que qualifica as representaes na ordem do bem encontrase tomado na refrao, no sistema de decomposio que lhe impe a estrutura dos trilhamentos inconscientes, a complexificao no sistema significante dos elementos. E somente por meio disso que o sujeito se relaciona com o que, para ele, se apresenta em seu horizonte como seu bem. Seu bem j lhe indicado como a resultante significativa de uma composio significante que se encontra convocada no nvel inconsciente, isto , l onde ele absolutamente no domina o sistema de direes, de investimentos, que regulam profundamente sua conduta.15 E nesse sentido que se pode dizer que o sujeito produzido pelo significante e marcado por um "no saber" que o determina. A necessidade, imperativo aparentemente responsvel pela manuteno da vida, tem que ser articulada em termos significantes. Essa articulao - da necessidade na ordem significante, quer dizer, no mbito da linguagem - a transforma em demanda, e da que se pode definir o desejo como "resto inarticulvel da demanda". E isso que aproxima das Ding do desejo. No nos esqueamos de que Freud define tambm das Ding como "coisas" inarticulveis, uma vez que esto subtradas ao Juzo a partir do qual a realidade se constitui. Tanto Marx quanto Freud no reduzem o campo da experincia humana Razo e Necessidade. A partir dessa "insuficincia"
15 Ibid., p.92.
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no redutora, podemos dizer que ambos apontam para a questo do desejo; desejo como operador e como resistncia. [...] o desejo nada mais do que a metonmia do discurso da demanda. E a mudana como tal. Insisto [...] essa articulao propriamente metonmica de um significante ao outro que chamamos de desejo no o novo objeto, nem o objeto anterior, a prpria mudana do objeto em si.16 Dizia, eu, que a questo deste livro uma questo moral; que a motivao para escrev-lo de ordem tica... o que em psicanlise implica colocar no centro da cena o desejo. uma questo de desejo, a questo deste livro, de gozo e de desejo, portanto de angstia. Angstia e desejo caminham de mos dadas pelas veredas da ao moral que est no cerne da ao humana. Pautada por uma outra tica, a tica da psicanlise, que pe no lugar do Bem, como referncia da moral, a sustentao do desejo, desejo que no se encaminha para a satisfao mas para manter, como operador, a vida insistentemente imbricada na pulso de morte, que, por sua vez, a sustenta como repetio, vale dizer, como resistncia morte. A pulso de morte sustenta a vida como resistncia morte "da a insistncia para que no se confunda "morte" com "pulso de morte". A pulso de morte secunda o sexo, transformando-o em erotismo; quanto morte... Voltemos tica da psicanlise. No se trata, aqui, da moral puritana assente no Utilitarismo, no servio dos bens que traz ao espao pblico a lgica do interesse privado; lgica devidamente desalojada desse lugar universal por Kant, na medida em que ele separa o fundamento da ao moral do interesse "menor' do indivduo e o articula Razo em torno da qual se define a "natureza humana". Assim que a tica da psicanlise instaura um outro lugar...
16 LACAN, Jacques. O Seminrio, livro 7: a tica na psicanlise. Trad. Antnio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 96-97.
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fiquei tentada a escrever "possvel", mas me lembrei que isso da ordem do impossvel... Ento, a tica da psicanlise instaura, a partir do impossvel, uma operao que se sustenta no inconsciente, no como programa idealista ou utpico, mas como afirmao de uma estrutura, justamente a estrutura do inconsciente. A moral de que se trata no a moral baseada em uma tica que promete a felicidade como Bem Supremo, em troca do sacrifcio do desejo, do apagamento da angstia, da negao do constante entrelaamento entre a vida e a morte, o que levou Freud formulao da "pulso de morte". No h como aplacar a angstia na relao do sujeito com seu desejo... j nos referimos a toda essa histria de das Ding como estrutura dessa relao que, no dizer de Lacan, sua prpria morte... vide o exemplo de Antgona. Assim que no se trata da moral que inaugura um estilo que se inscreve historicamente no sculo XVII, estilo correlato da formao da subjetividade moderna, do discurso da cincia e da acumulao primitiva do capital. A moral de que se trata aquela que se produz, como experincia desse pressuposto de no ceder sobre seu desejo; desejo cujo lugar de escuta e produo uma anlise, pois a que se afirma o campo do inconsciente enquanto tal. Freud localiza, como instncia moral, uma construo articulada ao super-eu... e o super-eu insacivel.17 Quanto mais se o satisfaz mais ele pede sacrifcios. E essa sua economia: tornar-se mais exigente na medida em que mais atendido. Apresenta-se como uma economia da falta baseada no excesso. Por isso, a psicanlise no pode prometer nenhum paraso na Terra ou no Cu. No pode prometer o fim da angstia ou o fim de um mal-estar que inerente, que define o que poderia ser chamado, se estivssemos no sculo XVIII, de verdadeira natureza humana. Isso porque o humano se
17 Cf. FREUD, Sigmund. El yo y el ello. In: Amorrortu, 1994. Obras Completas. Buenos Aires:
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instaura na vida atravs do desamparo, que o pe em contato, no momento em que nasce, com a ameaa da morte se ningum o recolher. Esse "recolhimento" vincula a pulso de morte experincia do amor e da proteo. A pulso de morte no se confunde com a morte propriamente dita. A pulso de morte condio da vida, pois sua presena aparece na estrutura mesma da repetio na qual a vida se constitui. O que se sabe, da vida e do sexo, passa pela pulso de morte. E isso, o erotismo e o gozo. Produz-se, a partir do super-eu, da constituio da instncia moral presente na conscincia, uma formao estrutural na qual um discurso comparece, discurso do qual est excluda toda promessa de completude, de normalidade, de ausncia de conflito. O sculo XXI comea sob o signo do assombro, os tempos sombrios, de que falava Hannah Arendt, tornaram-se medonhos. escapou do peito o "Corao das trevas", a selva no foi mantida entre os negros mas retornou no idioma dos brancos, a cincia brindou-nos com a bomba atmica e no parou mais. Hiroshima brilha no centro de nossa civilizao, o espao pblico tornou-se o loccus privilegiado do terror. A brutalidade campeia e a vida sussurra acabrunhada nos mercados da morte. Os ideais romnticos se foram. Permanece a longa e tediosa amplido do mercado, amplido na qual, aqui e ali, irrompem rochas como resistncias que no cessam... justamente porque se repetem... um pouco mais. Os cus de Bagd no tinham cessado ainda de suspirar mil e uma noites e j, a brisa do deserto, tombava sobre a cidade numa pesada tempestade de areia, a mesma brisa, que sempre refrescara os devaneios do Ocidente, trazia o cheiro da "me de todas as bombas" como anunciava o presidente dos Estados Unidos da Amrica, que fantasia materna, a do presidente... a me de todas as bombas... o presidente diz ao
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mundo o que espera do Oriente Mdio: que tenham aprendido a lio, um tanque norte-americano atira em um grupo de jornalistas, e o mundo assiste barbrie pela televiso, prisioneiros so levados para um territrio fora da lei. o que isso? um territrio fora da lei... a tortura no tem nenhum tipo de constrangimento, as crianas palestinas trocam o gnio da lmpada por submetralhadoras russas... bem menos poderosas... Diante de tudo isso, um discurso resiste selvageria do capital. Resiste como um horizonte perdido que incessantemente retorna como impossvel. Seria universal e absolutamente determinado que a matana assim se desse? A psicanlise no pretende eliminar o sofrimento dos homens com a promessa de parasos perdidos para alm da Morte ou da Histria (talvez uma esteja mais ligada outra do que se possa pensar). O que a psicanlise oferece em meio ao horror da contemporaneidade uma escuta e uma tica cuja matria o desejo e sua sustentao. No promulga uma retrica da salvao. Apenas uma escuta na qual se esvazia o sofrimento sintomtico, aquele que nos leva a procurar um analista. H como que uma decantao do sofrimento, decantao possvel quando o sujeito se v ou se reconhece na repetio que reitera e constitui o sintoma do qual se queixa. Um sofrimento aparentemente insensato se articula como pensamento cadeia significante, e isso tem conseqncias: perde foras quando falado, h uma espcie de esvaziamento. A repetio uma forma de resistncia. Resistncia que caminho no qual uma anlise se faz como percurso e obstculo. Uma anlise, por exemplo, no se d sem uma transferncia na qual o analisante imputa ao analista um lugar no seu sintoma. A transferncia, no entanto, se condio da anlise, tambm um obstculo a ela, uma vez que o analisante, por raiva ou por amor, tende a se enredar e a deixar de lado o sintoma fixando-se na pessoa do analista. Faz
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da transferncia o sintoma. Assim que o analista nem pode resistir transferncia e tentar interpret-la, nem sucumbir a ela acreditando que "de fato" lhe dirigido tanto amor e/ou tanto dio. desse modo que a psicanlise opera. E opera como um discurso advertido contra o Bem, contra a tentao da caridade e da compaixo, do exerccio do mandamento "amai ao prximo como a ti mesmo". Imperativo impossvel de cumprir, no tanto pelo "prximo", mas pelo "como a ti mesmo", pois h um abismo intransponvel entre "ti" e "mesmo". No cerne do que seria o "a ti mesmo", que poderia ser tomado como a "essncia" do eu, como suporte do "a ti mesmo", no se encontra uma identidade ontolgica, mas um conflito, uma diviso, uma falha. Diria Marx, luta. A psicanlise um discurso advertido quanto impossibilidade de responder a uma demanda que se apresenta ao analista, como evocao de uma promessa imaginria de findar o sofrimento atravs da compreenso, atravs do "conhece-te a ti mesmo" como se a causa de um padecer, ao ser desvendada, cessasse de existir. Aqueles que procuram uma anlise, por vezes, se comportam como os peregrinos da Antigidade: procuram um saber que os livre de um destino tanto mais ameaador quanto desconhecido. a velha esperana de que a compreenso liberte, como se fosse a ignorncia a causa de um pesar incompreensvel. quanto perigo tardio, passado decomposto futuro do pretrito desfeito algaravia de silncio aurora triste A escuta analtica implica o sujeito na produo de seu sofrimento sintomtico. A uma construo se produz e, no melhor dos casos, se desprende o prazer do sofrimento, o tanto de gozo ali retido, permitindo ao sujeito suportar a angstia da existncia diante da qual a Modernidade se erigiu como um sintoma.
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At o advento do que seria a Modernidade, por volta do final do sculo XV, o Homem, tal como o humanismo da Renascena constituiu, no existia como subjetividade delineada e, portanto, separada, irremediavelmente, do resto do Cosmos. No perodo que vai do Renascimento, final do sculo XV, at o sculo XVII, quando se consolida a cincia moderna, d-se um corte extraordinrio na cultura do Ocidente, corte esse que o Iluminismo, no sculo XVIII, vai arrematar. um corte de fundao. Produz-se um corte radical, efeito da separao que comea a acontecer entre o Pai e seus filhos, entre a criatura e o Criador. Trata-se do silncio de Deus, "le Dieu cach", de Pascal, ou o Deusgarantia, de Descartes. O sculo XVI ouvira os ltimos estertores de Deus nos msticos, os ltimos a suportar a presena desse Deus sfrego de amor. A partir desse corte, que se d tanto no mbito de um reordenamento da estrutura produtiva que revolvida em suas razes, quanto na formao da subjetividade, aparece a angstia e, com ela, uma construo que a acalme: a modernidade e todas as suas promessas. Assim que a experincia dessa angstia se inscreve historicamente. a experincia de uma solido jamais sentida porque se trata de uma angstia que somente um mundo despovoado de deuses poderia permitir. Da vem o consolo da Razo, assim como sua prepotncia. Da vem o romance e seu enredo carregado de sentido, como se fosse possvel explicar cada gesto de cada personagem, cada suspiro, cada olhar perdido. diante da falta do Pai, diante de um profundo desamparo, que a modernidade construda como promessa de felicidade. A felicidade no mais uma ddiva fruto da contemplao. Ela assegurada como garantia tecnocientfica, como progresso consumido no mercado dos bens e das almas. Por que dizemos que a modernidade um sintoma? Pelo seu carter de resposta angstia brutal do desamparo, resposta que
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rearticula de modo inteiramente original o simblico ao real: o discurso da cincia no qual o imaginrio comparece por seu carter pleno de sentido. A modernidade como sintoma, quer dizer, como formao discursiva atravs da qual a existncia se torna possvel. A cincia substitui a configurao que at ento existira, fundada nas escrituras interpretadas pelos doutores da Igreja, portanto em argumentos de autoridade. O real, que estava assente no colo de Deus, violentamente sacudido pelas matemticas, enquanto o imaginrio procura dar consistncia corporal a essa operao apresentando-o como se tivesse um sentido. Um saber se produz edificado sobre um no-saber inteiramente negado. Nos anos 1974/75 de seu Seminrio, Lacan se dispe a definir o que seriam esses trs termos, Real, Simblico e Imaginrio. Que sejam trs. O Real, o Simblico e o Imaginrio, o que quer dizer isso? H duas vertentes, uma que nos conduz a homogeneiz-los, o que arbitrrio. Que relao h entre eles? Poder-se-ia dizer que o real o que estritamente impensvel. Seria, ao menos, um ponto de partida. Faria um buraco no negcio. [...] O que de mais difcil eu introduzi, sublinhemos, que na medida em que o inconsciente se sustenta nesta alguma coisa que por mim definida, estruturada como o Simblico, do equvoco fundamental para com esta alguma coisa, que se trata, sob o termo de Simblico com que sempre vocs operam. Falo aqui daqueles que so dignos do nome de analista. O equvoco no o sentido. O sentido aquilo pelo que alguma coisa responde, que no o simblico, essa alguma coisa, que no h meio de suportar seno pelo imaginrio. Mas o que o imaginrio? [...] H algo que faz com que o ser falante se mostre destinado debilidade mental. E isto resulta to somente da definio de imaginrio, naquilo em que o ponto de partida deste
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a referncia ao corpo e ao fato de que sua representao, digo, tudo aquilo que por ele se representa, nada mais ser do que o reflexo do seu organismo.18 Assim que o real o impensvel, portanto o que no cessa de no se escrever (outra definio dada por Lacan, no Seminrio XX), o buraco que fura o simblico, que, por sua vez, da ordem do equvoco, e o imaginrio que recobre o organismo. A tica da psicanlise da ordem do real na medida mesma em que o que a se sustenta uma falha. A partir da que um sujeito se produz como efeito de estrutura; quer dizer, como efeito da ligao de um significante a outro significante. Nessa ligao, alguma coisa se perde e essa alguma coisa que fica como um resto da operao vai ser nomeada, por Lacan, como objeto a. Dessa perda, tambm o sujeito se produz como correlato do objeto - como se o sujeito j aparecesse atravessado pelo objeto, portanto, dividido. O discurso da psicanlise supe o reconhecimento da falta e da falha a partir da qual o sujeito aparece como efeito de estrutura. No oferece paliativos ou plulas. um discurso que parte da instaurao de uma experincia de limite, limite que efeito da interpretao, interpretao que o modo de operar desse discurso. O discurso do analista opera pela interpretao, cujo estatuto de ato, de ato analtico, chamado assim - "ato"- em virtude de seus efeitos no real do sintoma. um discurso que d suporte escuta analtica e que faz da fala, um texto; e o faz na medida em que a institui, a fala, como gramtica e no como sentido. O sentido, se apontar para a "compreenso" do sintoma, ter como resultado seu reforo. Assim que, atravs de uma escuta que se faa leitura, uma escuta que faa a passagem do som letra, da queixa ao sintoma, que assim se inscreve (e se escreve) na ordem significante como repetio. Ora, o sintoma s pode ser apontado como repetio se
18 LACAN, Jacques. Le Sminaire, livre 22: R.S.I.. (Trabalho no publicado e traduo nossa).
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for escutado e se se inscrever nessa escuta atravs da interpretao. Essa inscrio segue as regras de composio da linguagem; da falarmos em gramtica. A psicanlise instaura um discurso e isso que nos resta como limite loucura do capital. a respirao ofegante do tempo se espalha e, entre ns, gemem as crianas e as mulheres, o olhar humilhado dos homens sussurra estrelas, cercam-nos pressgios fatais, a escrita da histria oscila entre corpos mutilados e a internet invade o texto do mundo com fotos brutais, agarramo-nos aos escombros do mundo e de ns mesmos, construes milenares feitas de idias, pedras e suspiros, tombam sob os tanques dos novos senhores, jovens louros e robustos gritam a homens desorientados de medo e vergonha: - Speak english! Speak english! O capitalismo, com seu modo de produo baseado na produo de um excesso - excesso que deve ser gasto no mais curto intervalo de tempo possvel, para que maiores quantidades desse excesso sejam produzidas e a seguir consumidas estrutura-se em torno da promessa de um gozo sem limite. Quais so os corpos que suportam esse gozo, efeito da produo incessante de um excesso? Os africanos... a frica, o Oriente Mdio, as favelas do Rio de Janeiro, a periferia das cidades latino-americanas. O gozo sem limite, sustentado pela pulso de morte, leva matana. O gozo sem limite a promessa de um discurso, o discurso do capitalista, o discurso que se produz em um lao social chamado capital. essa a promessa do capitalismo: um gozo que se detm apenas diante do preo. O preo a face imaginria do valor; o valor, a face simblica do preo, e o real comparece no trabalho que opera a estrutura. Marx define o capital como uma relao social, chamada por Lacan de lao social, discurso ou es-
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trutura. O lao social define-se como dimenso simblica cuja face imaginria se traduz no preo transubstanciado em dinheiro e cuja dimenso real dada pelo trabalho que opera a estrutura, e opera na estrutura, descrita por Marx na forma do valor. o dinheiro que sustenta, quando efetiva o mercado na operao de compra e venda, a possibilidade do gozo dos bens, que no sofre nenhum entrave a no ser o estabelecimento do preo. essa a funo do dinheiro na estrutura, e esta funo que Marx aponta em O capital. O desejo de entesourar [diz Marx] , por natureza, insacivel. Do ponto de vista da qualidade ou da forma o dinheiro no conhece fronteiras: o representante universal da riqueza material, pois conversvel em qualquer mercadoria. Mas qualquer poro real de dinheiro quantitativamente limitada, sendo meio de compra de eficcia restrita. Essa condio entre a limitao quantitativa e o aspecto qualitativo sem limites impulsiona permanentemente o entesourador para o trabalho de Ssifo da acumulao. Conduzse, ele, como o conquistador que v, em cada pas conquistado apenas uma nova fronteira a ser ultrapassada.'9 Eis o modo de vida e o estilo promovido pelo Capital, a metonmia. A metonmia uma figura de estilo que supe, entre as palavras, uma ligao que permita a substituio de uma pela outra. E suposto, ento, de sada, a estrutura significante que assegure, como pressuposto necessrio, a ligao estrutural de um significante a outro significante, formando, assim, a cadeia significante. A figura da metonmia um tipo de ligao que permite a substituio de um significante por outro, no caso, tomar a parte pelo todo, o que supe um modo de ligao baseado na contigidade. Por exemplo, trinta velas despontam no horizonte. A vela, uma parte, tomada
19 MARX, Karl. O capital. Crtica da economia poltica. Livro I: O processo de produo do capital. Vol. 1. Rio de Janeiro: civilizao Brasileira, 1980, p.147.
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pelo barco, o todo. A metfora, por outro lado, obtida quando a relao que permite a substituio de uma palavra por outra, poderamos dizer, a substituio de um significante por outro, ou ainda, em termos freudianos, de uma representao por outra, est assegurada pela comparao. Lacan toma essas duas figuras, a metfora e a metonmia, e as aplica ao texto da Interpretao dos sonhos, substituindo o que Freud chamou de condensao e deslocamento na formao dos sonhos. Freud fala da produo do sonho, em virtude da censura onrica, a partir de um modo que chama de deslocamento e de outro que vai chamar de condensao. Ele pretende demonstrar que todo sonho a realizao de um desejo inconsciente e que este desejo est sob recalque; alis, por isso que ele inconsciente. Produzir o sonho, ou melhor, a produo do sonho, supe atravessar o recalque, chamado, nesse momento e nesse lugar - o sonho de censura onrica. E preciso atravess-la. Se o desejo inconsciente pudesse aparecer "tal qual" (e essa hiptese absurda porque o desejo no tem qualquer consistncia ontolgica), ele seria barrado por essa instncia, por essa operao, a operao da censura.pnrica. Assim que o desejo no se d "em si", mas se d suportado em um outro, em uma outra representao que o carregue. Nesse ponto, ele homlogo teoria do valor, expressa na forma do valor de Marx. Mas o que Freud prope? Prope a suposio de que esse desejo aparea travestido; com isso, ele explica o carter enigmtico dos sonhos, que chama de "deformao onrica". A deformao onrica, entretanto, no aleatria; ao contrrio, ela absolutamente determinada (ainda que sobredeterminada, quer dizer, com sobrepostas determinaes) em sua produo por dois modos de composio do sonho (poderamos dizer, em termos lacanianos, determinada pelas leis de composio da linguagem), a condensao e o deslocamento. Assim, um elemento do sonho transferido a
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uma representao aparentemente inofensiva para a conscincia, o que lhe permite compor o sonho no qual o desejo est presente metaforizado. Alm de uma composio como condensao, Freud fala da composio como deslocamento. A no se transferem traos que so fundidos uns aos outros formando uma representao inicialmente irreconhecvel ( por ser irreconhecvel que pode atravessar a censura onrica), mas se transferem as "cargas", as quantidades de que falaremos no prximo captulo. Uma determinada quantidade de energia libidinal adscrita a uma representao inconsciente deslocada a outra. Assim, podemos sonhar com algum que nos inteiramente indiferente e que no sonho nos desperta uma intensa manifestao afetiva. Freud d o exemplo de um sonho no qual havia um personagem que era efeito da fuso de traos de um tio, um colega e um professor; trata-se de um modo de condensao. J o afeto que essa figura despertava, no sonho, vinha deslocado de outro lugar. Lacan aponta a um deslocamento por contigidade, o que nos remete metonmia. Lacan vai chamar a condensao de metfora e o deslocamento de metonmia, aplicando ao sonho, quer dizer, a uma formao do inconsciente, o modo de produo da metfora e da metonmia. A metfora tida como um modo de produzir um ponto de parada na cadeia significante atravs de uma construo que permita estabelecer um sentido ou uma fantasia. A metonmia, por no estar amarrada a uma representao, mas ao deslocamento de quantidades, no teria um ponto de parada; dar-se-ia, ento, em um movimento incessante que remete de um significante a outro significante - ou de uma representao a outra representao. O carter incessante do capital me remete figura da metonmia. O desejo insacivel de que fala Marx; o dinheiro que no conhece fronteiras; o representante universal da riqueza material conversvel em qualquer mercadoria... e por a vai. Imputamos ao
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capital um trao da estrutura psictica, uma vez que no modo metonmico que uma fala psictica se articula. A metonmia remete infinitude. No capitalismo, o dinheiro sustenta essa promessa, a promessa de infinitude, na medida em que permite que se compre qualquer coisa desde que se tenha a quantidade necessria para pagar o limite imposto pelo preo. No h qualquer entrave operao da troca a no ser a posse de um bem... seria o dinheiro um bem? No. Nem isso. O dinheiro o suporte material de uma inscrio simblica, a inscrio do valor. Marx o examina, ao dinheiro, ainda no Livro I, de O capital, quando aponta seu carter paradoxal. Este consiste em expressar infinitude nos estreitos limites da finitude. E este o trao que permite a promessa de um gozo infinito. No cerne daquilo que poderia ser tomado como a essncia do dinheiro, Marx instaura o seu contrrio. Na crena em seu carter infinito, na crena de que o dinheiro pode tudo, h o carter absolutamente finito do preo. Revela-se a uma funo paradoxal. essa perspectiva dialtica que nos permite afirmar e reconhecer, nos objetos epistemolgicos que Marx constitui e sobre os quais se debrua, os operadores da estrutura. No so objetos cunhados no seio de qualquer ontologia, por isso no se inscrevem nem na ordem do Ser nem na da Substncia. Em sua perspectiva epistemolgica, Marx no os constitui como seres, mas como operaes. No toa que ele fala em modos de produo e no em capitalismo. O dinheiro carrega a promessa, a possibilidade de se comprar qualquer coisa, em qualquer lugar e a qualquer hora, ao mesmo tempo em que est preso ao limite que o preo impe. Sem a quantidade estabelecida pelo preo, a operao de troca no se realiza. O limite a infranquevel. E infinito na promessa e implacvel no carter finito da operao. O que, de certo modo, quer dizer que a possibilidade da infinitude est restrita posse do dinheiro.
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quantas fronteiras transtornadas acompanham os passos de depois? quanto de silncio necessrio a escavar, no corpo, os rastros dos deuses mortos? nanas do tempo, aurora de revs, entardecer. No modo de produo do capital, o dinheiro presentifica a metonmia, o que dificulta um ponto de parada, o estabelecimento de uma metfora, que mais no seja, delirante. Ou seria a guerra essa metfora? No modo de produo capitalista, o ponto de parada, o instante de produo de qualquer sentido est ancorado na guerra e no real da morte. A instncia imaginria do preo, encarnada no dinheiro, sustenta-se na operao simblica que se escreve na forma do valor e na operao do Real do trabalho. Assim, o Imaginrio (corpo do preo, dinheiro), o Simblico (forma do valor), e o Real (trabalho) se articulam como estrutura, como discurso cujo efeito a produo de determinado lao social, o lao social chamado capital. Aqui, jamais suficiente, ou satisfatrio, qualquer objeto, qualquer mercadoria. O mercado e sua dialtica aparente entre a oferta e a demanda se fundam na produo da prpria demanda como impossvel de satisfazer. Isso condio de possibilidade tanto do capitalismo quanto da psicanlise. Assim, podemos afirmar que o discurso da psicanlise um discurso que resiste, que insiste como resistncia - o prprio estatuto do inconsciente de resistncia significao - e que sem o capital e a prtica que instaura, no teria sido possvel a fundao da psicanlise. O discurso do capitalista condio de possibilidade da psicanlise. Condio de possibilidade, bom lembrar, no produz nem supe qualquer perspectiva teleolgica quanto inveno da psicanlise. No fosse o desejo de Freud... sabe-se l o que haveria. H um esgaramento das redes ancestrais de sustentao simblica, promovido pela implantao do capital como lao social hegemnico. A acumulao primitiva do capital subverte e desenraiza as formas de vida ancestrais nas quais as pessoas se re-
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conheciam e firmavam seu cotidiano. O Cosmos medieval refletindo o microcosmo no macrocosmos rasgado em infinito, derrubando as hierarquias tradicionalmente patriarcais. O capitalismo revolveu a face da terra e colocou as razes da vida a descoberto. Criou-se, a, uma espcie de solido na qual a angstia pode aparecer. E se h angstia, h desejo e recalque. No que antes do capitalismo no houvesse desejo. Mas a mediao era sempre coletiva. Existir era fazer parte de uma ordem muito bem constituda e hierarquizada. Era um mundo de crentes. E como escreveu Freud no artigo "O Futuro de uma Iluso": "[...] o crente est protegido em alto grau do perigo de contrair certas neuroses; a aceitao de uma neurose universal o dispensa da tarefa de produzir uma neurose pessoal".20 A neurose universal a religio. No bojo das revolues burguesas que pugnam por uma sociedade laica, o capital acaba por provocar e at exigir a produo de "neuroses pessoais" como modo de insero simblica. E essa a condio de possibilidade do sintoma psicanaltico e do sujeito. Sob o primado do capital, o lugar onde se reconhece e ratifica a existncia o mercado. A os homens se apresentam livres de toda e qualquer transcendncia. Apresentam-se como proprietrios! E aqueles expropriados de tudo? E aqueles que nada tm? Esses alienam uma parte de si mesmos e a apresentam como mercadoria a ser trocada por dinheiro, dinheiro que retorna quase imediatamente ao mercado atravs da compra de mercadorias necessrias subsistncia. Os trabalhadores vendem, no mercado, um gasto de suas vidas, sua capacidade de trabalho sob a forma de fora de trabalho; a mercadoria cujo consumo acrescenta valor ao capital que a comprou para faz-la produzir.
20 FREUD, Sigmund. El porvenir de una ilusion. In: Bueaos Aires: Amorrortu, 1994, p.44 (traduo nossa). . Obras Completas, vol. XXI.
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H um movimento constante e dinmico de destruio de todos os entraves que possam obliterar a hegemonia crescente do mercado. preciso ser proprietrio para existir no mercado dominado pelo valor de troca. O sujeito lanado despossudo de todas as suas referncias ancestrais, mgicas e religiosas. As iluses se sustentam, precariamente, nos terremotos incessantes produzidos pelo capital. posta a nu a implicao do significante no sujeito quando a comunidade, ou a Revelao, o que Lacan chamou de grande outro, escrito com "O" maisculo, est barrado. As relaes se tornam, cada vez mais, econmicas, livres das lealdades tradicionais, livres do discurso do mestre. A aparece, ou pode aparecer, a angstia, e se aparece a angstia, em termos lacanianos, se est diante do que ele chamou de objeto a, o objeto causa de desejo. O desejo pode, ento, se articular no sintoma de uma neurose pessoal... a partir da a psicanlise pode ser inventada. Na construo psicanaltica, o desejo pode se inscrever como o marco de um limite, limite derivado do resto insatisfeito da demanda. Isso deixa rastros, o rastro de um riscado, o caminho do risco. A psicanlise se faz estabelecendo marcos, fronteiras e riscados... fazendo escrita, demarcando um campo, um territrio cujas fronteiras no so riscadas apenas para serem ultrapassadas... mas inscritas como limite e repetio. Por isso no um discurso que tome o rumo das desconstrues em voga, das "novas" subjetividades, da desterritorializao. Rasgam-se as linhas, ou a des-linha do simulacro que percorre os cus da contemporaneidade como uma pipa perdida e desgovernada... mas a psicanlise resiste. A psicanlise se escreve como rastro de um percurso. Da que o discurso analtico se oferece e opera como limite. Isso produz uma outra tica, a tica do desejo. O desejo inscreve-se como o marco de um limite que o resto inarticulvel da demanda, portanto se inscreve como impossvel... mas deixa um rastro. O rastro de um riscado, o caminho do risco que trao. Assim que psicanlise se
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faz estabelecendo marcos, fronteiras e riscados. Vale dizer, que a psicanlise se faz como leitura de uma escrita, a escrita do inconsciente.21 Essa leitura tem uma peculiaridade. Ela intervm na escrita que l. Isso porque o trao mnmico que se marca como letra dessa escrita pode ser realinhado pela leitura que se faa interpretao. por a que a psicanlise intervm no real. De um desejo articulado falta enquanto dado estrutural, o capitalista no quer ouvir falar. Em seu lugar, formula a promessa de eliminar a falta pela aplicao da cincia tecnologia que oferea, no mercado, os meios de obter satisfao e negar a falta. Essa promessa sustentada pelo carter infinito do dinheiro. Para obter satisfao tem-se apenas que ter dinheiro... pois ela deve estar disponvel no mercado, uma vez que a onde se realizam as fantasias na cultura burguesa. Quanto mais se insiste no apelo "ao desejo" como jogada de marketing, mais ele afastado da cena contempornea, em nome do prazer. O desejo suprimido em nome do imprio do prazer, forma particular da alienao no modo de produo capitalista. O desejo supe e requer a represso, o recalque original, constitutivo, recalque estrutural cujo efeito , propriamente, o desejo. O sonho seu produto mais popular e universal, embora se d na particularidade de cada um. Da que se pode formular uma outra tica, a tica do desejo que no sucumbe ao ideal do Soberano Bem nem ao imperativo do mercado. O sujeito no se produz na ordem do prazer e est implicado, enredado, no sofrimento sintomtico que o leva a procurar uma anlise. Sua implicao no sintoma se chama "gozo", gozar do sintoma no qual o desejo est enredado a sina com a qual ele se apresenta diante do analista. Produz-se a uma escuta. E na escuta desse gozo, escuta que produz uma fala, um dizer; uma fala que se
21 Cf. REGO, Claudia Moraes. Trao, letra, escrita: Freud, Derrida, Lacan. Rio de Janeiro: 7 Letrjis, 2006
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faz texto, que supe a traduo do sofrer em palavras, sob a forma da metfora ou da metonmia, pois bem, nessa escuta que o gozo toma a forma de um sintoma (por isso dizemos que o sintoma uma metfora), efeito da interpretao que demarca as fronteiras nas quais uma anlise se d. A escuta produz uma interpretao a partir da qual o sujeito pode reconhecer sua implicao nos seus atos e fantasias, na perpetuao, atravs da repetio, do sintoma de que padece e do qual se queixa. Esse discurso produz um lao que no forma massa, quer dizer, que no se conclui na estrutura da identificao. essa uma assombrosa afirmao. Nenhum discurso a indicara at ento: a produo de um lao que no estivesse sustentado na forma da identificao, forma responsvel pela instaurao do prprio complexo de dipo. As conseqncias dessa formulao lacaniana vo alm do consultrio. Permite pensar, ou apontar para a possibilidade de uma formulao indita: um lao, que apesar de congregar um grupo no o transforme em massa.22 Ser que essa construo pode apontar para uma proposta poltica at aqui indita? restos de aurora gemem na praa deserta, suspiros aguardam, ainda, nos bancos, os amantes ausentes, uma palavra de ordem arqueja a meio fio. bandeiras vermelhas esto verdes de mofo. amarelos brotam, resistem, mas duram pouco, faz frio. No pasarn! o eco. O sculo XXI inscreve-se sob o signo do abismo. Uma marca que assinala a origem da Modernidade, retorna, instaurando, no tempo histrico, um tempo que repetio e no passagem linear
22 A propsito da noo de massa tal como Freud a constitui, ver "Psicologia das massas e anlise do Eu". (Cf. FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e anlise do Eu. Rio de Janeiro: Imago, 1993).
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e evolutiva, um tempo que no se transforma em cronologia. E que marca esta? A marca do fim, do fim do mundo, do fim da histria, do fim do sujeito. essa marca de Repetio que nos permite falar da Modernidade como sintoma produzido enquanto estrutura, modo de enlaamento que define a Modernidade como construo adscrita ao capital. Uma marca que retorna uma marca de origem. E uma marca que se inscreve como origem, justamente em funo de seu retorno, uma marca de fundao. Essa marca tem uma caracterstica prpria. Ela retorna, ela pode retornar, escapar ao rio de Herclito, justamente porque foi apagada como inscrio do primeiro tempo em que se deu como marca. Foi esquecida logo aps ser lida como signo de alguma coisa que ali se iniciava. Seu retorno uma segunda inscrio e essa inscrio se d como diferena. No repetio do Mesmo, mas repetio como diferena. Diferena que instaura origem, origem que se diferencia de comeo, pois no se perde no incio dos tempos histricos, mas retorna fundando a estrutura como repetio. Pode-se falar, a partir desta construo assente na repetio, de um tempo histrico que escape linearidade cronolgica e se constitua em um movimento circular que obedea estrutura da repetio.23 Entendemos repetio como estrutura, o que supe uma disjuno entre o ponto de partida e o ponto de chegada, por isso falamos em repetio como diferena. No ponto de disjuno, a abertura do acaso se insinua, e uma experincia de criao se torna possvel - uma possibilidade de liberdade. Kierkegaard pensa o tempo no como passagem dialtica do passado ao presente, e da a um futuro esperado, como se fosse o desenrolar de uma cronologia que se instaurasse como processo
23 Cf. KIERKEGAARD, S. Le Concept de Vangoisse. Paris: Gallimard, 1990.
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imanente ao Esprito ou matria. O tempo uma articulao entre a eternidade e o instante, na dimenso de um corte, quando o instante toca a eternidade e se inaugura uma experincia do tempo na qual a mudana se faz como salto e no como sntese dialtica conclusiva. O instante esse equvoco no qual tempo e eternidade se tocam, e esse contato que carrega o conceito de temporal no qual o tempo no cessa de rejeitar a eternidade e no qual a eternidade no cessa de penetrar o tempo. Somente ento toma sentido nossa diviso: o tempo presente, o tempo passado, o tempo a vir.24 O que est em questo que Kierkegaard no reconhece a mediao processual como forma de mudana no tempo. Falar em mudana como salto supe uma pura descontinuidade cuja causa remete a um ato, o que aproxima a filosofia de Kierkegaard da psicanlise. O ato a experincia possvel da liberdade? Liberdade articulada a acaso... Que marca esta que retornaria no alvorecer do sculo XXI e que podemos ler como reinscrio de um primeiro tempo, o tempo da fundao, fundao da Modernidade que lana suas bases no sculo XVI? E a marca de um fim como um comeo, comeo que, por ser reincidente, por se inscrever na ordem da repetio, podemos, com Kierkegaard, chamar de origem. as cidades esto cercadas defrio. muralhas intransponveis erguemse do dia pra noite, auroras de pedra so esculpidas nos portes, quem sabe dos campos de antanho? os corpos esto guardados e febris, ah, os caminhos de anto... l fora a morte campeia.
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No sculo XVI, o medo muda a face das cidades e dos caminhos.25 As muralhas das cidades so recompostas, e imensos portes de ferro substituem os de madeira. Os caminhos ficam impraticveis para viajantes solitrios. Bandos de mercenrios saqueiam as estradas e as plantaes. Proliferam as encarnaes e os mensageiros do grande Sat: as mulheres so propensas feitiaria; o judeu no mais um mero infiel mas um representante do prprio demnio; o Turco, o papa, Lutero, nesse discurso que os conflitos ganham sentido e nessa terminologia que a poltica se faz... em nome de Deus... Em nome de Deus tambm comeam a tomar forma os conflitos no sculo XXI. Alguma coisa retorna nesse "fim dos tempos"... Tal como no sculo XVI, quando os homens acreditavam estar s portas do Juzo Final, a certeza que circula entre ns a da morte. Portanto a marca da morte que se inscreve como origem da Modernidade, seno a da morte, pelo menos, a do medo; medo, menos da morte subjetiva e mais da morte de todos, do fim da humanidade. Os homens do sculo XVI se acreditavam s portas do Juzo Final e esperavam os anjos anunciadores do Apocalipse; os homens do sculo XXI fizeram da morte artigo vulgar, e os anjos se explodem a si mesmos. O conceito de Origem, com a temporalidade que implica e supe, nos permite dar uma prega no tempo, e ler, no sculo XXI, os rastros do sculo XVI: so marcas de fim, um fim que foi comeo, o comeo da Modernidade que, na poca, era lido como o fim... e foi de fato o fim de um mundo, o mundo feudal da chamada Idade Mdia. A Modernidade se faz com as cinzas do Medievo. H a um signo de morte que subjaz s Luzes da Razo e s promessas da Cincia.
25 Cf. DELUMEAU. Histria do medo no Ocidente: 1300-1800. So Paulo: Companhia das Letras, +996.
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Os cavaleiros do Apocalipse fizeram do Juzo Final um lugar de Origem. No ciclo incessante dos comeos, da constante evocao do Novo, sombreia um signo de fim. No sculo XXI ecoam os sinos do XVI, espcie de intervalo no qual um mundo se esvaa sem que outro mostrasse suas fundaes. Acreditava-se que a chegada do Filho do Homem era iminente, que vinha julgar os vivos e os mortos... Assim, no cheiro inequvoco dos cadveres, adubava-se a terra dos Novos Tempos. A produo da subjetividade moderna guarda esta marca: a marca da morte que se traduz em angstia e religiosidade. A solido radical do homem diante do Universo correlata da construo da subjetividade como uma formao que se inicia no sculo XVI e promete se esfacelar no sculo XXI. A subjetividade moderna uma espcie de resposta angstia provocada pelo afastamento do Pai, pelo silncio de Deus. Os msticos do sculo XVI foram os ltimos a escutar Seus gemidos, suportar Seus ardores, entregar-Lhe o corpo e a alma. A partir do sculo XVII, devem os homens se contentar com o exame da letra no corpo do texto da Palavra... no mais se ouvir a voz de Deus a soprar em seus ouvidos os segredos da eternidade. eternidades fugidias lampejam instantes, ciclos da natureza do conta de passagens, passagens que retornam nas paisagens do inverno, do vero, da primavera... do outono, passagens que acompanham a natureza e o planeta na volta do tempo, sempre... quando outra vez. nos idos do sculo XV, j virando o XVI, quando os anos ainda eram da graa, um instante tomba e se estica, demora, faz do tempo linha e rota... e os homens navegam... o instante pontual da eternidade vira reta e o plano do tempo tecido em comeo.
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O sculo XVI um sculo terrvel. o sculo que rasga o tempo em ruptura: o sculo do instante, do corte, da primeira experincia csmica de abismo. Os homens do sculo XVI se acreditavam s vsperas do Juzo Final. A certeza que circulava era a certeza da morte, a certeza do Apocalipse. A subjetividade que se construa nessa poca era tecida nos confessionrios. somente neste sculo que a confisso se tornar obrigatria. no esteio das culpas que a conscincia se produz e a permanece at que Descartes a desloque para o cogito, retirando-a de uma escuta eclesistica. No sculo XXI, as mudanas se insurgem e o mundo assente na Razo e na Representao, no racismo fruto do imperialismo, ameaa sucumbir em meio guerra de fundamentalismos. Atualizam-se as guerras de religio, e a mesma retrica retorna do fim dos tempos, assim como retornam os massacres que marcaram o incio da presena europia na Amrica e, posteriormente, na ndia; retornam os "massacres administrativos". Enquanto na Europa do sculo XVI protestantes e catlicos campeavam a matana entre si, na Amrica, os cristos estavam irmanados em promover carnificinas. O Novo Mundo era um territrio virgem a adubar com sangue alheio. H, no sculo XVI e, possivelmente, no sculo XXI, uma espcie de intervalo, um abismo na continuidade histrica, produzido no por um processo histrico autnomo calcado na repetio, mas pela ao poltica que reinscreve uma marca de origem. E possvel que se repita, entre ns, signos de tempos outros mais do que signos de novos tempos. singram nas costas nuas, caravelas naufragadas, tempo indistinto litoral estrelas cintilam no cu do meio-dia: lua nova. corpos latejam nas minas e plantaes: fantasmas danam em torno de fogueiras
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apagadas, rio de cinzas Amrica! teus filhos se matam, mes estrangulam crianas ao nascer da aurora atiram-se a precipcios com osfilhosao peito: gente que se recusa servido. Nas crises apontadas como crises da modernidade, dentre as quais as mais espetaculares foram alocadas sob o signo de ps-modernidade, no se v uma crise de paradigma. A Razo, a Representao e, no seu esteio, a Poltica, so evocadas como suportes simblicos que no mais dariam conta da produo de sentido na Modernidade que teriam ajudado a construir; no entanto, a estrutura que a produziu, que produziu a Modernidade, continua inalterada: o capital. No se pode mais recorrer a essas referncias para produzir um sentido eficaz ou satisfatrio que explique o mundo... mas a estrutura que as produziu e que lhes deu suporte permanece inalterada. A prpria lgica econmica mal se sustenta nas pernas e cada vez mais tem que apelar a uma alienao radical do sujeito para subsistir... a estrutura, no entanto, permanece inalterada. No h como explicar os terrveis massacres e a lgica mesma da guerra, apelando somente racionalidade dos interesses privados confundidos com o interesse do Imprio. preciso, ento, retornar questo da estrutura, da produo deste lao social especfico, o capital. preciso recorrer a outros discursos, a um discurso que tenha o gozo como questo pois o que o capital pressupe como lgica econmica um modo de gozar. Freud concebe o "psquico", seu funcionamento e sua constituio como uma economia, uma economia de quantidades que, em circulando, criam os trilhamentos, os traos mnmicos, responsveis pela produo do psiquismo. Lacan vai falar dessa economia, que Freud chama de "quantidades de energia"; como
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uma economia de gozo. Gozo que ele vai articular como "maisde-gozar", em referncia mais-valia, formulada por Marx em sua maior obra, O capital. E vai mais adiante, diz que foi Marx e no Freud o inventor do sintoma.26 Enfim, para definir o terceiro termo [o Real], no sintoma que identificamos o que se produz no campo do Real. Se o Real se manifesta na anlise, e no s na anlise, se a noo de sintoma foi introduzida por Marx muito antes de Freud, de modo que a se faz signo de alguma coisa que no anda bem no Real, se, em outros termos, ns somos capazes de operar sobre o sintoma porque o sintoma um efeito do Simblico sobre o Real.27 A meno de Lacan a Marx como inventor do sintoma serviu de fio condutor deste livro. Tivemos que alinhavar, em termos econmicos, o psiquismo analisado como um espao/tempo formado pela circulao de quantidades. Depois, ver a economia tal como Marx a formula, como uma economia poltica assente na produo de mercadorias, definindo-se, a partir da, um mercado cuja condio de possibilidade est assente na forma do valor. Da, comparamos o sonho forma do valor, estabelecendo, nessa comparao, uma homologia para, finalmente, articular o sintoma em termos de mais-de-gozar, em termos de mais-valia. Talvez seguindo este percurso se possa endossar a tese de Lacan segundo a qual foi Marx, e no Freud, o inventor do sintoma. Sintoma como cruzamento do real pelo simblico, ou da inscrio do simblico no real, entendendo-se o simblico como a forma do valor e o real como mais-valia. Em que sentido? No sentido de que a mais-valia indica o buraco e o limite do valor. Bom. Se Marx define o sintoma, o que Freud diz de economia?
26 LACAN, Jacques. Le Sminaire, livre 22: R.S.I.. (Trabalho no publicado). 27 Ibid., Lio do dia 10 de dezembro de 1974 (traduo nossa).
2. A economia psquica
No se pode dizer, de Freud, que, no incio era o verbo. Melhor seria dizer como se fora um segundo momento do verbo, sua escuta. No se pode dizer, de Freud, que no incio era o verbo. No incio era o ato. O verbo enquanto ato - passagem que deixa rastro. Rastro que se faz trao, trao que se faz letra. Letra que suporte material de escrita. Escrita que efeito de uma economia: circulao de quantidades... de energia, cuja passagem deixa um rastro, um sulco, um trilhamento que se faz caminho de futuras passagens, estabelecendo uma memria (da a denominao "mnmico") que lida e se lida porque uma escrita. No incioj era um ato que obriga a uma escuta, escuta que interpretao, a interpretao do grito. A interpretao um ato. Ato pelo qual o sujeito enlaado linguagem, e a partir desse enlaamento que se pode falar em sujeito. Assim que no incio estava um grito. Grito provocado por um estmulo, uma quantidade (Qn) de energia que atravessa um organismo que grita, uma quantidade de energia que produz um mal-estar e que provoca um grito. O grito o primeiro apelo lanado. O grito de um beb, um grito que evolui em choro. Primeiro apelo de um beb ao Outro, ao grande Outro, ao Outro escrito com letra maiscula. Esse Outro, com letra maiscula, esse grande Outro que se ope ao pequeno
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outro, que o "semelhante", nomeado de vrias maneiras ao longo do Seminrio e dos Escritos de Lacan. Interessa-nos reter, aqui, o grande Outro como Me e enquanto Linguagem, o "tesouro do significante". O grito tomado como um apelo por esse Outro. Ora, um apelo pede uma resposta. Algum outro que se coloca, ou que ocupa o lugar do grande Outro se v concernido pelo grito que, a partir da, apelo. O que suscita a pergunta: o que ele quer? E a advm uma interpretao. A interpretao uma operao na qual a linguagem est implicada. O sujeito est definitivamente entre os humanos porque seu grito se transforma em buraco, ou melhor, no contorno de um buraco (o buraco se faz a partir de seu contorno pois se no h contorno no h buraco, h um vazio sem bordas, h o nada) que aponta ao objeto a que, por sua vez, chama cena, o sujeito, o que implica, na operao, o significante. Recordemos que a definio de sujeito supe a cadeia significante. O sujeito o que um significante representa para outro significante. Assim, o grito carrega consigo o beb. O enlace linguagem se d quando esse Outro, ao se sentir concernido por esse apelo, o interpreta. A houve uma escuta porque houve uma interpretao. Algum sustentou a funo de escutar. Escutar o grito interpret-lo. Interpret-lo para que a vida persista naquele pedao de carne que grita. E preciso que algum outro reconhea que nesse grito h um apelo que escutado e interpretado como "ele precisa de alguma coisa". Esse "ele precisa de alguma coisa" aparece ao beb como uma demanda desse Outro que o escutou. Quem demanda, demanda alguma coisa... embora, em ltima instncia, Lacan diga que toda demanda demanda de amor! A j se insinua o desejo. O desencontro entre demanda e desejo faz, nos trilhamentos, a presena da falta. Assim o apelo de um beb que chora pode ser interpretado como um grito de fome, frio, ausncia; essa interpretao o amarra
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marca definitiva da existncia humana: o desamparo; primeira subjetivao da falta. Assim que comecemos pelo grito, o momento inaugural de um urro pelo qual um pedao de carne capturado pela linguagem... o grito de um beb que evolui em choro, primeiro apelo ao Outro, ao outro com letra maiscula, ao grande outro que escuta o grito como um apelo e que o interpreta conferindo-lhe um sentido; por exemplo, a me que escuta seu filho chorar e pensa, "ele est com fome", ou "ele est com frio', ou ainda "ele sente a minha falta". O trao o suporte do grito. Poder-se-ia dizer que no incio era o trao, mas o trao rastro, o resto que fica de uma passagem, passagem da palavra que ricocheteia a carne recm-inaugurada. O trao deixado pelo rastro da palavra escutado no propriamente pelo rgo que lhe corresponde - pois ele, o rgo, se produz dessa escuta - mas pela carne viva ainda no mapeada. uma escuta que esculpe a escrita de um corpo. Assim que no incio era mesmo uma escuta - nos distinguimos do Gnesis. Falar da fundao da psicanlise no falar da criao. No se trata da criao de um ser na figura da criatura ou do mundo, ou mesmo da natureza. Trata-se de um processo de produo, de produo do corpo e da alma. Assim que, no incio, era ou estava uma escuta. A escuta de um corpo que se escrevia como histeria. Assim que no incio estavam as histricas. Mas seria esse o incio? Talvez no. Talvez o incio fosse uma escolha. Talvez que, no incio, estivesse uma posio. Uma espcie de ponto de partida que condicionaria todo o resto. Que resto? A fundao do inconsciente e da psicanlise. Estava feita uma escolha metodolgica que permitiria essa fundao e que era, na verdade, uma escolha tica: a escolha pelo campo do mais estrito materialismo. Ento, por um lado, tinha-se a escuta do sofrimento das histricas tomado como verdadeiro e no como simulao; tinha-se a
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escuta e a produo da verdade do sujeito, por outro lado, tinha-se a inscrio dessa escuta no campo do materialismo. O materialismo na poca de Freud se confundia com a pura fisiologia, por isso a, que ele vai buscar suas referncias iniciais. Essa uma posio tica, levar em conta a palavra daquele que se queixa e lhe reconhecer um valor. Valor, no no sentido subjetivo do termo, mas no sentido de inscrio em uma instncia simblica que lhe permita circular. O valor que produto do trabalho, por isso valor; do trabalho do significante que produz o sintoma. A dupla face, ou, a dobradia entre materialismo e valor conferido palavra, constitui uma particularidade da tica da psicanlise: um certo posicionamento com relao verdade, no a verdade enquanto ideal platnico, ou a verdade revelada da teologia, mas a verdade como aquilo que se articula no dizer de um sujeito escutado a partir de uma escolha epistemolgica pelo materialismo. Foi a partir dessa dupla inciso que Freud pde conceber o aparelho psquico. Firmava-se uma espcie de materialidade estranha em um discurso que reunia os pressupostos da cincia a uma tica, dando um cunho "estranho" cincia e separando a tica da moral. A tica fica articulada ao desejo inconsciente, singularidade que se afirma na escuta da particularidade de cada fala, enquanto a moral se articula s formaes coletivas e ao imprio da Lei. o sopro frio da madrugada com vagar solfeja auroras na altura da nuca. tremores latejam no estrume do jardim, a noite se retira em combusto, relampeja. O aparelho psquico uma construo econmica. Freud parte de formulaes cunhadas no campo das foras fsico-qumicas e as desloca para o mbito do que chamou de foras psquicas. Essas foras, tanto
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as psquicas quanto as da fsica, guardam o mesmo estatuto material. As foras que agem no psiquismo, e das quais o prprio psiquismo efeito, so despojadas de qualquer transcendncia ou espiritualidade; so pura matria. Detenhamo-nos em uma dessas foras, a pulso. Com a pulso h um enlaamento linguagem. O aparelho psquico passa, ento, a ser entendido como aparelho de linguagem, melhor dizendo, como um artefato que possibilita uma operao de escrita corporal, uma espcie de dispositivo de linguagem que permite a interveno do significante no real do sintoma... e do corpo. O conceito de pulso basilar teoria freudiana. uma fora constante e irreprimvel, a medida de trabalho imposta ao aparelho psquico em razo de sua dependncia do corpo. A pulso como que o corte entre o aparelho psquico, que um aparelho de linguagem, e o organismo, produzindo-se a partir desse corte, e recorte, um corpo. A pulso a lmina que faz da natureza, mapa, a lmina que separa e enoda a natureza linguagem. A pulso uma fora que exige satisfao, satisfao paradoxal e parcial, satisfao que obriga um objeto, embora seja inteiramente indiferente que objeto esse, satisfao que uma tendncia descarga, que a transmisso de um suplemento de energia, a famosa "quantidade" formulada por Freud, no Projeto para uma psicologia cientfica,28 A pulso uma espcie de excitao endgena que se d como uma exigncia de trabalho. Assim que a pulso um estmulo que age como uma fora, uma quantidade de energia, cuja satisfao obriga sua descarga. Para que haja satisfao, isto , descarga, obrigatrio um trabalho. Por isso, uma exigncia de trabalho se confunde com a prpria pulso. Em 1924, provavelmente no outono,29 Freud escreve um curioso
28 LACAN, Jacques. Le Sminaire, livre 11: les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: editions du Seuil, 1973, p.149. 29 STRACHEY, James. Nota sobre la Pizarra Magica. In: FREUD, Sigmund. Obras Completas. Vol. XIX. Buenos Aires: Amorrortu, 1994, p.241 (traduo nossa).
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artigo. Examina um artefato, o "bloco mgico", descrevendo-o como uma ilustrao do aparelho psquico definido como um dispositivo de escrita. Trata-se de um artefato capaz de explicar, por analogia, a localizao dos sistemas da conscincia, do pr-consciente e da percepo-conscincia; assim como da memria inconsciente. Na mesma poca em que escrevia "O bloco mgico", Freud, em outro artigo, "O problema econmico do masoquismo", um dos textos mais importantes da obra freudiana, conclua a articulao do Princpio do Prazer, ao Princpio de Realidade, ao Princpio do Nirvana, pulso de morte e s pulses de vida, ou pulses sexuais. Argumenta que as pulses sexuais esto devidamente mescladas pulso de morte e uma no existe, no aparece, sem as outras. O que corrobora a argumentao em torno da tica da psicanlise como uma tica que se sustenta na falta. Freud reafirma o Princpio do Prazer como guardio de nossa vida, embora ele esteja marcado por um limite, nomeado como "mais alm do Princpio do Prazer" adstrito pulso de morte. Esse "mais alm" seria uma espcie de das Ding na medida em que persiste provocando a repetio como forma de forar a ligao (ser ligado) e, a partir da submisso ao Princpio do Prazer, ser descarregado, vale dizer, obter a satisfao. Nesse artigo, Freud vai chamar de "masoquismo originrio" a um resto de quantidade de energia no ligada que corresponde a das Ding, e que se d como repetio forando a ligao que se faz - quando se faz - como traduo ao significante, e que aparece na clnica como um gozo ao qual o sujeito no renuncia levando interrupo das anlises ou sua estagnao. Freud se deparava com situaes nas quais o analisante se agarrava a seu sofrimento sintomtico com unhas e dentes impedindo a anlise de avanar. E isso que ele precisa explicar. Chama a ateno o fato de Freud escrever os dois artigos praticamente no mesmo ano, 1924. "O problema econmico do masoquismo" foi publicado em abril, escrito em janeiro, enquanto
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o "Bloco mgico" aparece em janeiro de 1925, tendo sido escrito em fins de 1924.30 Ao mesmo tempo em que sintetizava e conclua sua articulao do psiquismo como uma dinmica econmica constituda pela produo e circulao de quantidades - cuja elaborao comeara h 30 anos reafirmava a inscrio dessa economia como uma escrita. O "Bloco mgico" um pequeno artigo no qual Freud descreve o funcionamento do "aparelho", formado por trs instncias diferenciadas conforme a possibilidade e a funo de guardar, ou de permitir que se apaguem, as marcas tidas como letras. Tanto o "bloco mgico" quanto o aparelho psquico so superfcies oferecidas como superfcie de inscrio. Freud produzia a escrita de uma economia. O bloco mgico composto de trs camadas. A mais interna uma superfcie de cera sobre a qual h uma folha de papel fino e transparente presa na parte de cima do artefato e solta em baixo. Sobre esta folha, cobrindo-a, h outra lmina transparente de celulose, um papel encerado e tambm transparente. Se um objeto pontiagudo incide sobre a camada mais externa, imprime seu traado sobre a camada de cera atravessando as duas folhas. A ponta, nos lugares em que toca, faz com que a superfcie interior do papel encerado pressione a camada de cera tornando visvel os sulcos, revelando uma escrita de tom escuro na superfcie clara e lisa do celulide. Se se quer apagar as marcas do escrito s puxar a folha de papel e separ-la da superfcie de cera. A folha estar pronta para receber novas inscries... enquanto a cera guarda todas as marcas, como letras, da escrita apagada. Freud faz deste artefato, o bloco mgico, uma ilustrao do aparelho psquico. Associa a camada de cera memria inconsciente (ou pr-consciente) na qual ficam gravadas todas as marcas sem
30 Cf. JONES, E. A vida e a obra de Sigmund Freud, vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 1989.
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que se possa, jamais, apag-las. A folha branca, ele a associa ao sistema percepo-conscincia (Pc), permitindo uma articulao entre o inconsciente e a conscincia atravs de uma espcie de apagamento que institui uma dinmica na qual algumas marcas podem ser lidas pela conscincia, associada camada de celulose; a primeira camada da percepo. Por a tem que passar tudo que atinge o sujeito... tudo atravessa mas nada permanece; sua superfcie jamais se esgota como superfcie de inscrio. H uma espcie de encadeamento dessas funes, dessa dinmica, sob a forma de sucessivas tradues. A diferena, entre o bloco mgico e o aparelho psquico, que, no atravessamento da folha de papel at a superfcie da cera, no h nenhuma distoro, enquanto que, entre os sistemas do pr-consciente, conscincia e memria inconsciente, em virtude da censura e da represso, h. Uma marca que no passa de uma instncia a outra sem sofrer uma distoro. O deslocamento entre elas, a possibilidade de atravessamento das instncias psquicas, articulada circulao de quantidades. Freud o pensa como uma economia, uma economia psquica. extenso: paisagem lunar e calcrea: corpo no caminho do tempo rota de sei no. A economia psquica um sistema de circulao de foras, quantidades de energia, que invadem a superfcie viva e lhe deixam, impresso, um rastro que pode ser lido como o mapa, a cartografia de cada um. Freud imagina, como exemplo, uma superfcie viva que invadida por estmulos, chamados por ele de "quantuns", quantidades de energia.31 Ele descreve esse processo em um texto, uma espcie de
31 Cf., Sigmund. Proyecto para una psicologia. In: Aires: Amorrortu, 1994. Obras Completas, vol. I. Buenos
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rascunho enviado a Fliess em sua correspondncia, no qual lana as grandes linhas para explicar o funcionamento do psiquismo. Trabalha com o princpio fsico da inrcia, segundo o qual todo sistema tende a retornar ao seu estado inicial, a se manter em um estado que tende ao mnimo de alterao possvel. Segundo este princpio qualquer sistema tenderia a retornar a um estado de equilbrio inicial quando atravessado por distrbios... no caso, o distrbio a vida. Essa "invaso" produz sulcos na superfcie, esses sulcos se tornam caminhos, facilitaes para futuras invases. A tendncia, segundo o princpio da fsica, se livrar do estmulo, isto , descarregar a quantidade que invadiu o sistema que estava em repouso. A descarga que permite se livrar da quantidade , em um primeiro momento, motora. Um espasmo muscular pode ser suficiente para a descarga. O importante que alguma resposta seja dada. Este primeiro acontecimento deixar uma marca. Essa marca ser, quando do prximo assalto de uma quantidade de energia, um foco de luz, por exemplo, ou uma sensao de frio que produza uma reao muscular imediata, uma via de facilitao de passagem. Isto , ser mais fcil passar por ali, ser mais rpida a descarga. Assim o organismo vai "aprendendo" a ser corpo. Vai se produzindo um caminho que Freud chamar de memria... um aparelho de captura pois a memria um trilhamento que pde ser capturado e que independe da conscincia. A partir da, o sistema dos caminhos vai ficando cada vez mais complexo. Na medida em que as quantidades circulam pelo pedao de carne recm chegado vida da espcie, vo criando caminhos, vias de circulao que se inscrevem como memria. So os famosos trilhamentos, efeito da circulao de quantidades, que produziro o mapeamento corporal das zonas ergenas. De certa forma, nos anos 20, Freud vai aproximar, o princpio de inrcia da pulso de morte, entendendo a pulso de morte como tendncia imanente de retorno ao inorgnico, retorno ao estado
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inicial perturbado pelo distrbio da vida. Uma temporalidade vai se estabelecendo e no caminho da descarga funes vitais vo se cumprindo e tornando o sistema cada vez mais complexo. A descarga das quantidades deve seguir um circuito no corpo, no pode mais ser imediatamente descarregada sob pena de no se cumprirem as funes vitais. Aparecem as ligaes e as "barreiras de contato" que retm as quantidades necessrias ao cumprimento das funes vitais. A particularidade dessas ligaes que elas podem ser tomadas como tradues: o enlace de uma quantidade a uma representao, a traduo de uma fora fsica... falar em traduo falar de uma operao de linguagem; chegamos ao significante e ao seu estatuto material. Nessa operao h um trabalho que efetiva a ligao, isto , a traduo de uma quantidade em representao. Este trabalho a pulso. A pulso uma exigncia de trabalho imperativa. Ela produz uma articulao entre as foras mudas da natureza e a linguagem. Dito de outro modo, produzem-se, no real, os efeitos de uma instncia simblica. este o trabalho do significante. E um gasto de energia necessrio operao de ligao, operao de traduo. E como gasto de energia em uma operao de produo que se define o que trabalho. Isso o mesmo que reafirmar o princpio de inrcia, ou a pulso de morte, como imperativo de descarga, ou seja, a pulso como exigncia de trabalho. O aparelho psquico produzido ou se produz como efeito da funo que lhe prpria: traduzir, quer dizer, produzir a metfora daquilo que permaneceria no terreno inorgnico dos domnios da fsica ou da qumica se no fosse capturado por um certo modo de ligao, em outras palavras, se no fosse capturado pela estrutura que, afinal, de linguagem. Freud opera com a linguagem. Seu percurso no deve ser entendido como uma evoluo. Ele no sai das descobertas e formulaes mais simples s mais complexas, como um bom
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cartesiano. H, sem sombra de dvida, um percurso, portanto h modificaes na teoria psicanaltica. Incessantes deslocamentos, tores, retorno de questes se produzem em funo dos impasses e dificuldades da clnica analtica. Freud no desenvolve um pensamento especulativo se no for absolutamente calcado na prtica clnica. Um trajeto que se deslocasse das afirmaes mais simples s mais complexas permitiria um estudo sistemtico e universitrio da psicanlise... mas ela no se presta a isso. O grau de complexidade o mesmo em qualquer momento de produo da psicanlise, o que muda so as tores, a preciso nas respostas aos impasses da clnica. O materialismo pelo qual Freud faz uma opo de extrema radicalidade, ele o inscreve na linguagem. Pode-se dizer que h um deslocamento da fsico-qumica para o significante. Esse deslocamento, no entanto, no deve ser entendido como "evoluo" de uma posio pr-analtica para analtica. E uma questo de se manter atado mesma lgica: o determinismo fsico-qumico deslocado ao significante, mantendo-se a o mesmo modo de determinao, ou o mesmo grau de determinao. Foi o caso, por exemplo, da formulao da pulso de morte que no elimina o primado do princpio do prazer, mas o redimensiona e torna mais precisa as operaes que obriga. No h jeito de "entrar" na psicanlise, no estudo e/ou na prtica psicanaltica, a no ser atravs de um salto... no h caminho mais fcil para supostos iniciantes. Assim que, as questes lanadas no Projeto, o primeiro rascunho da problemtica, ou do objeto, que absorveria Freud pelo resto da vida, o funcionamento psquico independente de qualquer patologia, perpassam toda a obra freudiana. O que se esboa ali continua valendo at os ltimos escritos de Freud. As questes fundamentais esto lanadas. O que se modifica a crescente preciso lgica das questes levantadas pela clnica, que leva elaborao
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de uma prtica que se faz pela palavra; o que nos leva a perguntar: como a palavra interfere no real? Retornamos questo do significante. Quais so os pressupostos que nos permitem testemunhar ao longo de uma anlise que, de fato, alguma coisa do real de um sintoma se modifica? por essa ingerncia no real que a palavra tem o estatuto de significante. O significante a oposio mais radical ao pensamento mgico... a prpria natureza efeito de discurso. Ou seria possvel negar que depois do advento da cincia moderna a natureza outra? A questo que se coloca como eixo de toda esta problemtica, a da ligao entre a quantidade e uma representao. Em outros termos, o que se coloca a questo do gozo; a questo da quantidade que se articula como significante em uma operao que no se totaliza pois h sempre um resto; uma quantidade que escapa metaforizao, representao significante. H um excesso que no se articula ao significante, h um resto que sobra, um excesso que no descarregado. Assim que Freud bem estabelecido no real, na materialidade das foras fsico-qumicas, afirma, maneira de um deslocamento, este materialismo no mbito da linguagem; mbito no qual a letra guarda o estatuto de real. A letra, diz Lacan, efeito do significante e ao mesmo tempo seu suporte material. Podemos pens-la como a nomeao de uma inscrio, justamente o rastro deixado pela passagem da quantidade... articulada ao significante. Freud ento transfere linguagem o mesmo estatuto da fsico-qumica, e Lacan indica o percurso lgico dessa transferncia. Funda-se um lugar eminentemente metodolgico do qual Freud pode inventar o inconsciente outorgando ao sintoma, ou reconhecendo no sintoma histrico, por exemplo, sua dimenso real. A psicanlise estabelece o real do sintoma. Cai por terra a idia de que a histeria seria uma espcie de truque usado para chamar a ateno alheia. Freud aponta, no sintoma, uma verdade cristalizada.
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A partir da se pode reconhecer o estatuto material da linguagem. Estatuto que permite deduzir a razo e a condio de possibilidade da clnica psicanaltica. possvel articular porque essa prtica, ou esse lugar, sustentado pelo analista, tem efeitos no real a ponto de desarticular certos sintomas sem apelar sugesto como explicao. Curiosamente, apesar de guardar a mesma objetividade das cincias ditas "da natureza", o inconsciente, em sua configurao sintomtica, no afetado por elas. Da a ineficcia de qualquer tratamento exclusivamente qumico para sintomas psquicos. Por a se pode precisar melhor como a tica da psicanlise est implicada no real. Escapamos do solipsismo que prende o indivduo conscincia. A tica da psicanlise aponta a constituio de uma subjetividade que se vincula e que est essencialmente determinada pelo inconsciente. H, aqui, uma outra noo de sujeito. Sujeito como o que um significante representa para outro significante, como diz Lacan ao longo de seu seminrio. O sujeito aparece como efeito de uma operao que articula a cadeia significante na medida em que produzido no modo como um significante se liga a outro, ligao que opera como um corte. A subjetividade que a partir da se produz de um outro tipo, diferente da subjetividade adscrita conscincia. E um sujeito assujeitado ao significante e no um sujeito da conscincia, a quem o significante estaria assujeitado. Fosse assim, o sujeito saberia o que diz... no teramos atos falhos, sonhos, sintomas. A via de acesso aos sintomas psquicos a escuta da fala de algum que procure um tratamento analtico. A via de cura dos sintomas psquicos a via da palavra. Via que permite articular o sintoma na linguagem, empreendendo as primeiras tradues que levaro ao seu esvaziamento. Pela linguagem se atinge o real das reaes fsico-qumicas, quando se tratar de um sintoma psicossomtico, por exemplo. E essa a aposta da psicanlise. Freud partira da fisiologia. Da retira os parmetros epistemolgicos que lhe permitirem conceber, em sentido estritamente
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materialista, o aparelho psquico como um aparelho de ciframento, um aparelho que cifra as marcas deixadas como rastros das quantidades em circulao. No ciframento se d um deslocamento da pura quantidade representao; por esse deslocamento que se funda o aparelho psquico como um aparelho de ciframento, portanto de linguagem. No comeo h uma operao de ciframento (a inscrio dos rastros deixados pelas quantidades) realizada pela leitura dos rastros que se tornam caminhos para futuras descargas. Esto abertos, no corpo, os caminhos da alma. estranhos sulcos na pele mucosas obscenas abrem noite, feridas tardias ancoradouro de estrelas caravelas ausentes o naufrgio iminente irrompem anjos descalos o corpo supura o tempo. Freud no queria ser mdico. Era a pesquisa em laboratrio que lhe interessava. O trabalho de pesquisa, no entanto, no lhe permitiria sustentar uma famlia, e Freud estava apaixonado por Martha, e Freud queria se casar. Mas Freud era pobre e Martha tinha um dote dado por um tio que lhe permitiria apenas comprar os mveis. Ento... Freud amava a pesquisa no mais do que amava Martha. O incio de sua formao se dera em um laboratrio, o laboratrio de fisiologia de Brcke. A, segundo Jones,32 ele se sentia tranqilo e feliz. Mas Freud amava Martha e ento... abandona o laboratrio para se dedicar a uma formao clnica, uma formao em clnica mdica. O perodo passado no laboratrio de Brcke, no entanto, marcaria definitivamente o modo como cumpriria seu destino.
32 Cf. JONES, E. A vida e a obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989
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Brck era um dos fundadores da chamada Escola de Medicina de Helmholtz. Esta escola representava, no mbito da medicina e da biologia, um movimento bem mais amplo, que atravessava a cultura e a poltica da poca. Era um movimento que afirmava os ideais laicos e liberais de uma sociedade que se queria regida, mais pelos princpios da Razo do que da religio. Darwin era um divisor de guas. Discusses apaixonadas transtornavam a conduta dos partidrios do progresso diante daqueles que se apegavam ao conservadorismo ainda fruto da Restaurao que se instala na Europa depois da derrota de Napoleo. Confundiam-se preceitos cientficos, polticos e religiosos. Uma afirmao cientfica era banida se fosse considerada politicamente perigosa para as bases do poder aristocrtico, do poder das igrejas Catlica e Protestante. A chamada "primavera dos povos", revolues que varreram a Europa em 1848, foram derrotadas... mas a Europa jamais foi a mesma depois delas. Desenvolvia-se um materialismo que perpassava toda a cultura europia do sculo XIX. Os ecos do Iluminismo afirmavam os ideais liberais e laicos na sociedade burguesa que, ento, se firmava. A Razo enfraquecia as prerrogativas religiosas no que dizia respeito ao pensamento e vida cotidiana. Discusses apaixonadas transbordavam os limites cordatos da boa educao e os partidrios do progresso e da cincia pareciam levar a melhor diante do conservadorismo dos herdeiros da Reao levada a cabo pelo Congresso de Viena contra as Revolues Liberais. Ao materialismo, se opunham, no mbito da medicina, correntes ligadas ao chamado "vitalismo". O vitalismo apelava Anima, espcie de princpio supremo, vital, responsvel pela presena da vida em um corpo qualquer. Enquanto habitasse, em uma criatura, o sopro vital, haveria vida na criatura. O vitalismo acabava retornando ao terreno da religio para explicar a biologia. O materialismo, ao contrrio, buscava a explicao para a vida nas
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referncias oferecidas pelo discurso da cincia, principalmente da Fsica, paradigma da cincia moderna. E a que entra o laboratrio de Brck; segundo Jones: Parte importante desse movimento cientfico de dimenses mais amplas, mais conhecido como Escola de Medicina de Helmholz. A surpreendente histria dessa escola cientfica comeou no incio da dcada de 1840 a 1850 (Marx escreve o Manifesto comunista em 1848) com a amizade de Emil du Bois Reymond (1818-1896) e Ernst Brcke (1819-1892) aos quais logo se juntaram Herman Helmhoz (1821-1892) e Carl Ludwig (1816-1895). Desde o incio este grupo foi impulsionado por um verdadeiro esprito de cruzada. Em 1842, Du Bois escreveu: 'Brcke e eu fizemos um juramento solene de levarmos a feito essa verdade: alm das foras fsico-qumicas comuns no h outras foras ativas dentro do organismo.33
Ah, os tempos em que a honra e a cincia estavam mescladas. Sinal de que o desejo comparecia de modo explcito. Um juramento para defender uma proposio cientfica! Pode-se ver pelas palavras escolhidas, "cruzada", "juramento solene", o quanto e em que termos a questo se fazia presente para esses cientistas e mdicos. Freud via se firmar o seu "bom rumo do Norte", como dizia Guimares Rosa. Prefigurava-se uma perspectiva tica na sustentao de um discurso o que acarreta, sempre, implicaes polticas. Afinal algum precisa sustentar, no mundo, as proposies transformadas em fora poltica...
33 JONES, E. A vida e a obra de Sigmund Freud. Rio dc Janeiro: Imago, 1989, p.53.
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A perspectiva tica sustentada por Freud se faz dobradia entre a fisiologia e a palavra. Assim comea a se delinear certa "garantia" materialista. a que se pode localizar o marco inicial de uma nova epistemologia, elemento fundador da escuta que Freud empreende como prtica clnica. Assim que no comeo h uma escolha. Uma escolha inaugural pelo materialismo. Essa escolha presidiu todas as outras, todas as configuraes posteriores pelas quais foi passando a psicanlise, inclusive o aporte lacaniano. Verifica-se um deslocamento essencial neste percurso: o estatuto material de um discurso transferido a outro. O discurso da cincia produzido no mbito da fisiologia, transferido tica de uma escuta que estabelece certa relao com a verdade. Transferido no sentido freudiano do termo, com seu carter metafrico e real, do campo da fsico-qumica para o mbito da linguagem. Da se conclui que o estatuto da linguagem na psicanlise o mesmo que o da fsica e da qumica no discurso da cincia. Instaura-se o estatuto real da palavra, isto , o significante. Por isso, os efeitos do significante se fazem sentir no mundo da fisiologia. O substrato que a linguagem oferece leva uma marca de origem: uma quantidade de energia que invade um pedao de carne que reage mecanicamente ao estmulo. O inconsciente freudiano se inventa em um ponto de interseo: do campo da qumica e fsica ao territrio da linguagem. Na primeira tentativa de estabelecer o funcionamento do psiquismo, Freud o concebe da seguinte maneira: imagine-se um organismo unicelular que recebesse uma carga, uma quantidade de energia. Essa quantidade teria que ser descarregada e nesse processo haveria a circulao que deixaria rastros na superfcie desse ser unicelular que serviriam de caminho para futuras descargas. Freud deriva da um modelo econmico de funcionamento e institui uma economia, a economia psquica como a Razo do inconsciente. Freud formula, ento, a questo da causalidade psquica, repetimos,
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calcado no mais estrito materialismo: da noo de mente chega ao aparelho psquico. Quando Freud estava perto de completar setenta anos, nos conta Ernest Jones, ele declarou em uma ocasio solene: "Minha vida virou um nico objetivo: inferir ou adivinhar como o aparelho mental construdo e que foras nele interagem e se contrapem".34 Trinta anos antes ele j estava inteiramente tomado por esse desejo. Em 1895, ano em que envia a Fliess o rascunho, o "Projeto para uma psicologia cientfica", escreve ao amigo uma carta em 25 de maio na qual descreve o estado em que se encontra. Tenho tido uma quantidade desumana de coisas por fazer e, aps perodos de 10 a 11 horas de trabalho com as neuroses, fico regularmente impossibilitado de tomar a pena para escrever-lhe um pouco, embora, na verdade, muito tivesse a dizer. A principal razo, porm, esta: um homem como eu no pode viver sem um cavalo de batalha, sem uma paixo devoradora, sem - nas palavras de Schiller - um tirano. Encontrei um. A servio dele, no conheo limites. Trata-se da psicologia que foi sempre minha meta distante a acenar-me, e que agora, desde que [me] deparei com o problema das neuroses, aproximou-se muito mais. Estou atormentado por dois objetivos: examinar que forma ir assumir a teoria do funcionamento mental, se introduzirmos consideraes quantitativas, uma espcie de economia das foras nervosas, e, em segundo lugar extrair da psicopatologia um lucro para a psicologia normal. Na verdade impossvel ter uma concepo geral satisfatria dos distrbios neuropsicticos se no vincul-la com os pressupostos claros sobre os processos mentais normais.35
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Uma economia de foras nervosas... Por que economia? ah paixo to delicada e triste arquitetura de estragos confins de ausncia
Tomar como referncia uma "economia" implica firmar como paradigma de argumentao a quantidade, ou a circulao de quantidades, seja l do que for... mercadorias ou energia... energia psquica, libido. Economia uma questo de produo e de circulao, de distribuio de quantidades e deslocamento da falta. So assim a economia do desejo, economia do gozo... economias que supem uma falta. Aristteles foi dos primeiros pensadores a falar de economia, de economia e de valor.; Marx chega a dizer que ele teria esboado uma teoria do valor. Ele situa a economia no mbito do cuidado dos bens e da riqueza circunscrita vida privada. Era uma atividade prpria ao escravo, o cuidado dos bens, a administrao da riqueza, a precauo de armazenar os gros em perodos de escassez e de fartura... cuidar de trocar e vender o excedente da produo, todas as preocupaes de natureza econmica eram atribuies do escravo. Aos senhores cabia a preocupao com a "coisa pblica", uma atividade que somente podia ser desempenhada por homens livres, por cidados. O domnio da vida privada era secundrio diante da paixo da distino outorgada pela ao que se exerce como ao poltica responsvel pelos destinos da plis, da cidade grega. Quanto aos escravos... a eles o ponto de vista econmico, a flutuao, produo e circulao de quantidades. Nesse tempo, a distino e o prestgio advinham da presena no espao pblico, por isso esse espao era vedado aos escravos e s mulheres. No era reconhecido nenhum prestgio a quem acumulava riquezas se no houvesse um endereamento ao espao pblico. Passar-se-iam ainda muitos sculos at que a lgica
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do espao privado (a lgica burguesa) se deslocasse e dominasse inteiramente o espao pblico imprimindo a, no espao pblico, o modo de operar prprio ao espao privado... temos hoje escravos de outro tipo, o capitalista. E, de certa forma, tambm o poltico, que no exerccio da poltica no tem como referncia o interesse pblico, mas a defesa de interesses setoriais, vale dizer, privados. Eles so o meio pelo qual o espao pblico se transforma numa arena para disputa dos interesses privados. A economia est voltada para a satisfao das necessidades bsicas do oikos, da comunidade familiar. Dentre os povos organizados em cls, povos que no delimitam um espao destinado deciso dos destinos da coletividade, o poder se estende em contigidade do pai ao chefe da tribo ou do cl. Verifica-se a um amlgama entre economia, o cuidado dos bens, a distribuio e a produo, e a religio... uma configurao que se torna cada dia mais familiar. O poder sobre a coletividade repousa nas mos de chefes guerreiros e o espao simblico tomado pela religio. A vida circula deslizando no crculo vicioso da magia religio, passando pela economia. Os cuidados esto voltados para a sobrevivncia e obteno de riquezas. Nesse intervalo viceja a existncia. O que interessa o modo de circulao dos vveres e o modo de apropriao do excedente da produo para alm da sobrevivncia imediata. A economia e a religio definem o destino de todos. No sculo XVIII, vem juntar-se economia, a palavra "poltica". Cria-se a "economia poltica". A ascenso da burguesia, a concluso da acumulao primitiva do capital na revoluo industrial, faz daquilo que era relativo ao domnio privado, a economia, o eixo do interesse do poder. O poder vai se colocar a servio da acumulao de capital. Paulatinamente, o Estado se volta, a partir do imperialismo na segunda metade do sculo XIX, o Estado e suas instituies se voltam para assegurar os investimentos do capital, altas taxas de lucro, aumento desmedido da riqueza na explorao
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das reas no capitalistas do planeta. O foco do poder poltico se volta para questes relativas ao aumento da produo de riquezas e de sua apropriao privada. O interesse pblico doravante ser pautado pela lgica do interesse privado. Cria-se o espao do "social".36 A questo que norteia a tomada de decises o aumento da riqueza, sua apropriao e as condies de circulao. Aqui, a cincia travestida em tecnologia tem um papel fundamental; ela que assegura a articulao de uma economia global atravs do desenvolvimento dos transportes, da comunicao e da indstria blica. A economia deixa de ser vista como uma atividade voltada para a sobrevivncia e o bem-estar do Oikos. A economia doravante ser objeto de polticas pblicas voltadas para a produo cada vez maior de riqueza. O Estado soberano se encarregar de garantir as condies para o enriquecimento, quer dizer, para a reproduo do capital. O Estado, ainda sob a forma da monarquia absolutista, garantira o comrcio e o pacto colonial. O mercantilismo era a poltica econmica da poca. Alis, foi no perodo do Absolutismo que se estabeleceu uma estreita vinculao entre a reproduo dos mecanismos de acumulao e as polticas econmicas sustentadas como polticas pblicas. Somente quando est assegurado o modo de produo capitalista como modo de produo hegemnico, que a burguesia passa a advogar a soberania do mercado e o enfraquecimento do Estado. Floresce o iderio liberal. Na perspectiva liberal, o Estado no deveria ter nenhum tipo de interveno no mercado, que funcionaria de modo autnomo segundo suas prprias leis capitaneadas pela "mo invisvel", a lei da oferta e da procura. A economia re-fundada como domnio autnomo pautado pelas leis da Razo, que deveriam ser descobertas em seus princpios de funcionamento. Entregue sua
36 Cf. ARENDT, Hannah. A condio humana. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1993.
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prpria dinmica, o mercado tenderia ao equilbrio... tendncia que se explicava, tautologicamente, como manifestao do carter racional do mercado. A dinmica do mercado era dada pela ao de uma "mo invisvel", como formulou Adam Smith, que tendia a instaurar o equilbrio atravs da obedincia lei da oferta e procura. Se h maior oferta do que demanda, os preos tendem a cair e o consumo ser maior, ento vai diminuindo a oferta, o preo vai subindo, vai diminuindo o consumo, aumenta o preo, diminui o consumo, aumenta a oferta, diminui o preo, e assim vai caminhando a economia conduzida pelo mercado. Pouco importam as crises de fome e morte, pois eram apenas expresso e testemunho da racionalidade econmica. A vai ecoar a crtica de Marx quando mostra que o sistema no tende ao equilbrio, mas produo de um excesso. As leis de funcionamento do mercado deveriam ser "descobertas" pelo pensamento em seus fundamentos racionais. Os fundamentos racionais estariam assentes em determinada construo da subjetividade que tambm teria suas leis. Leis que partem do pressuposto de que o homem se move segundo a busca da felicidade. Acreditava-se que o homem desejava acima de tudo ser feliz! E, por isso, pugnava pelo direito inquestionvel felicidade. A noo de felicidade est articulada ao interesse privado... articula-se, portanto, no mercado. A felicidade vem do lucro alado ao lugar de um Bem absoluto jogado na conta da "natureza humana". O pensamento liberal clssico, no que se refere ao mercado, o considera como um domnio no qual circulam quantidades embora se deva s qualidades o fato do mercado, pois seriam elas a despertar a vontade de t-las, de compr-las. No entanto, a circulao de quantidades, no importa de que, que assegura sua abrangncia, a abrangncia do mercado. A circulao de mercadorias, dinheiro, escravos, tenderia ao equilbrio se fosse deixado ao sabor de suas leis. Estamos em plena economia clssica, no apogeu do sculo
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XVIII, o sculo da Razo e das Luzes, o sculo do aparecimento da economia poltica. Na segunda metade do sculo XIX, comearo a aparecer as primeiras rachaduras nessa construo. Freud e Marx as apontaro e as ampliaro. Assim que o mercado, ou a economia - os dois se confundem - um domnio no qual circulam, sob a pele de qualidades, quantidades. a circulao que estabelece a abrangncia das fronteiras que definem uma economia. No importa a qualidade do que circula; pode ser prata, escravos ou panos. O que importa que, segundo a lei da oferta e da procura, o mercado atingir o equilbrio e os preos sero nivelados. Se houver uma crise no abastecimento do trigo, o preo subir porque haver uma procura maior do que a oferta. Se o preo sobe, muitos no podero compr-lo em sua forma mais prosaica, o po. Se no podem comprar o po, morrero de fome. Diminuir, ento, a procura... se considerarmos que mortos no demandam... A oferta relativa aumentar e o preo voltar ao patamar de equilbrio. Assim caminhar a humanidade rumo ao equilbrio. O pretenso equilbrio do mercado produz o espetculo da misria no qual a riqueza aparece como um desvario ilimitado. O que se apregoava em equilbrio, conforme demonstra Marx em sua teoria da mais-valia, excesso. Freud fala em economia psquica. Pensa a dinmica psquica como uma economia, o que significa dizer que pensa a economia psquica como um sistema de circulao de quantidades. Efetua um percurso na construo da psicanlise que lembra as formulaes das teorias clssicas. Parte do equilbrio como horizonte e determinao do princpio do prazer para chegar ao seu "mais alm", na formulao da pulso de morte no texto "Mais alm do princpio do prazer". Tambm Freud vai do equilbrio ao excesso. Vemos a o imperativo de uma necessidade lgica. Tambm Marx a ele sucumbiu. E como se Freud, lido por Lacan, partisse de Bentham
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e de Adam Smith para chegar a Marx. Atravs de uma formulao assente na circulao de quantidades, Freud explica o funcionamento do psiquismo humano independente de qualquer patologia. Ele escreve a estrutura do inconsciente, ou melhor, ele escreve o inconsciente como estrutura. Freud traduz, em seus prprios termos, o princpio fsico da inrcia como princpio de prazer. Entende prazer como o nvel mais baixo de tenso, portanto, o mais prximo da descarga do estmulo. Freud fala, inicialmente, de uma tendncia ao equilbrio, homeostase do princpio do prazer. Assim que o princpio de prazer supe o princpio fsico da inrcia, segundo o qual um sistema tende a voltar sua condio de repouso quando cessa a fora que o deslocou ou o transtornou. Ainda no texto, "Projeto para uma psicologia cientfica", alguma coisa escapa a essa amarrao do princpio do prazer. Freud fala em das Ding, a coisa. A "coisa" seria um resto de quantidade que no capturado pelas ligaes que permitem a descarga da quantidade e a vigncia do princpio de prazer. Insinua-se, na construo freudiana, um excesso, um valor a mais que fica como um limite ao princpio do prazer, um "mais alm do princpio do prazer" de onde sairo o conceito de pulso de morte e o conceito de gozo. Posteriormente, na virada dos anos 20, quando formula a pulso de morte, ele retorna a uma perspectiva econmica, reexaminando a questo das quantidades. A pulso de morte marca um divisor de guas no texto freudiano. Segundo Eduardo Vidal,37 a pulso de morte, a formulao de uma pulso chamada de "pulso de morte" , antes de mais nada, uma necessidade lgica da teoria dada em resposta a impasses verificados, por Freud, em sua prtica clnica. A psicanlise um discurso produzido a partir da clnica, a que ela se verifica e se inventa.
37 Psicanalista, responsvel pelo seminrio ministrado s quintas-feiras na Escola de Psicanlise Letra Freudiana, no Rio de Janeiro.
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Freud verifica que aparece, no decorrer do tratamento, um "excesso" que se recusa ao princpio do prazer, quer dizer, que se "recusa" homeostase, descarga e ao equilbrio. Ao contrrio, este excesso insiste em se manter como tal, no permitindo nenhum alvio que pudesse advir de sua diluio. Freud constata que as pessoas no tendem "naturalmente" ao apaziguamento e felicidade. Parece ser outra, a "natureza" humana. Depois da guerra de 1914, Freud comea a receber pacientes que no conseguem se livrar da memria e da vivncia dos horrores da guerra. Eles reproduzem em sonhos e sintomas as situaes que gostariam de esquecer. Ao contrrio, eles as repetem. Diante de uma fenomenologia inexplicvel por si mesma, Freud apela para uma explicao econmica. Quer dizer, busca a objetividade das quantidades. Retoma as formulaes do Projeto e deduz que o excesso no ligado, das Ding, perdura, por no estar ligado, permanecendo sem possibilidade de descarga, permanecendo sem permitir uma experincia de prazer. O equilbrio impossvel, assim como a diluio da tenso psquica que se instala no corpo. E mais, Freud se surpreende com rasgos de felicidade, rasgos de um estranho prazer na descrio feita por alguns pacientes das piores torturas. Do que se trata, afinal? Freud formulara a hiptese de que todo sonho tinha um sentido e este sentido era dado pela realizao de um desejo inconsciente. Seriam, esses sonhos ditos traumticos, um desejo de sofrimento? Ou seria, isso, a anulao de sua teoria a respeito dos sonhos, um dos pilares da psicanlise? Como explicar esses "achados" clnicos, mantendo os pressupostos j firmados da psicanlise? Freud responde com a "compulso repetio", efeito de uma pulso at ento no nomeada, a pulso de morte. A compulso repetio seria uma operao logicamente anterior instalao do princpio do prazer. Haveria uma quantidade de energia de tal monta que, para ser descarregada, segundo o que
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postula o princpio do prazer (traduo psquica do princpio de inrcia), precisaria ser, antes de tudo, ligada, encadeada de algum modo para que possa circular no aparelho psquico. Ligar, aqui, tem o sentido de capturar a quantidade pelo aparelho para fazla circular e, com isso, decair sua magnitude at a descarga. A grande magnitude da quantidade definiria o que podemos chamar de trauma. urgncia de esquecer So grandes quantidades de energia, quase insuportveis para o aparelho psquico, sem um caminho por onde circular, que insistem at provocar uma ligao na forma de um sintoma. A quantidade de energia que invadira o sistema poderia ser descarregada... mas no toda. Fica, da operao, um resto que escapa ligao e produz, como insistncia e defesa, a repetio da carga traumtica at que uma ligao possa se efetivar e se traduzir em linguagem. o que se pode chamar de economia do trauma. Pautando o excesso como "causa", Freud e Marx se aproximam. Marx formula sua teoria do valor tendo em vista explicar a mais-valia. Freud formula o Princpio do Prazer e o Mais alm do princpio do prazer. Lacan vai articular os dois, ao apontar o "excesso" que Freud teoriza no texto o "Mais alm do princpio do prazer" como gozo e afirma que o gozo tem a estrutura da maisvalia. Aqui se anuncia um primeiro enlace. Freud e Marx esto para alm da economia clssica e da psicologia quando propem uma forma de produo do inconsciente e do capital que oscila entre o excesso e a perda; ambos desconhecem a economia do equilbrio. Assim que Marx e Freud pautam a causa, a operao mesma da estrutura de produo do sintoma psicanaltico ou do modo de produo capitalista, em um excesso que escapa operao simblica, quer dizer, seja da ligao, em Freud, seja da forma do valor
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representado no equivalente, em Marx. A mais-valia tem alguma coisa da pulso de morte: sua funo com relao ao Princpio do Prazer ou forma do valor a mesma. V-se, aqui, uma temporalidade ao revs: tanto a mais-valia revela o valor quanto o Mais Alm do Princpio do Prazer revela o Princpio do Prazer em sua instaurao e vigncia. A formulao da pulso de morte vai permitir maior preciso no estabelecimento e apego ao sintoma por parte do sujeito... seu jeito de gozar. Freud concebe um aparelho que podemos chamar de estrutura ou de discurso, que deve dar conta de uma quantidade que chega ao sistema como a invaso de um excesso. Esse quantum de energia invade o organismo e obriga uma resposta. A resposta um modo de se livrar da quantidade que desequilibra o sistema (embora seja, justamente, o desequilbrio que o mantm vivo - e ele jamais tenha conhecido o estado de equilbrio a no ser como hiptese). O equilbrio uma deduo quase mtica produzida, j, a partir do desequilbrio. Por isso, Freud evoca o princpio de inrcia como ponto de partida. Segundo este princpio, o movimento inicial tende a perpetuar o estado anterior a toda perturbao, perturbao que deve ser eliminada o mais rapidamente possvel para que se recomponha o sistema em seu estado original. Na introduo ao Projeto, Freud define seu campo. A inteno desse rascunho chegar a uma psicologia que se apresente como cincia da natureza, quer dizer, figurando os processos psquicos como estados quantitativamente determinados de partculas materiais distinguveis a fim de evitar toda contradio. O rascunho contm duas idias principais; compreender o que distingue a atividade do repouso como uma quantidade (Q) submetida s leis gerais do movimento. Supor que os neurnios so partculas materiais. [...] Os neurnios tendem a se desfazer da quantidade. A estrutura e o desenvolvimento,
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assim como o trabalho dos neurnios, so compreensveis segundo este princpio.38 O desequilbrio causado pelo excesso que invade o sistema a causa da vida. O retorno ao repouso, em ltima (ou em primeira) instncia, retorno ao inorgnico, retorno morte. Da entra em cena a pulso de morte, esse impulso eternamente repetido de retorno ao estado de repouso absoluto. Assim, Freud instaura um campo que se define em uma perspectiva econmica. So quantidades que, no percurso at a descarga, deixam rastros que definem caminhos de circulao. Os rastros vo funcionar como uma diferenciao nos tecidos que facilitar a passagem de futuras quantidades; uma marca a inscrio de uma diferena: um caminho se formou, uma espcie de trilhamento. Nesse processo um corpo vai sendo produzido atravs de um mapeamento cujo efeito uma geografia que vai virando histria. Delimitam-se as instncias psquicas que no se confundem com os tecidos diferenciados. Livrar-se das quantidades produz um movimento cujo "efeito colateral" a produo da estrutura psquica. Da sero formuladas as perspectivas tpica e dinmica do psiquismo s quais se soma o enfoque econmico. Produz-se uma espacialidade na qual se instauram lugares, instncias que guardam certas funes: a memria, a percepo, a conscincia, o inconsciente. A quantidade de que fala Freud, um quantum de energia, pode se dar como um estmulo, um facho de luz cuja resposta motora seja a contrao da retina. Essa resposta provocaria a descarga da quantidade que incidira sobre o olho. Quando cessa a resposta, cessa o estmulo. Freud estabelece entre esses dois extremos, o estmulo, o quantum, e a resposta motora, uma relao de causalidade. A causa, uma vez que se encontra elaborada em um vis econmico, remete necessariamente a uma articulao quantidade. No entanto, h
38 FREUD, Sigmund. Proyeto para una psicologia. In: Amorrortu, 1994, p.14. Obras Completas. Buenos Aires:
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quantidades que, em virtude de sua magnitude, no so facilmente descarregadas. necessrio, ento, que uma outra operao preceda a descarga. uma operao de ligao atravs da repetio descrita por Freud no texto "Mais alm do princpio do prazer". Feita a ligao da quantidade, impera novamente o princpio do prazer. Assim, Freud vai estabelecer na repetio, a manifestao de uma tendncia que aparece na clnica, pelo apego ao sintoma, pelas resistncias ao trabalho de anlise, pelo gozo, enfim. Articula-se, ento, a pulso de morte ao princpio de inrcia, pois na morte no h tumulto nem excesso... a pulso de morte uma tendncia de retorno ao inorgnico, o retorno da vida ao seio da morte. A quantidade tida como um excesso. Nessa condio, de excesso, no pode ser descarregada, pois transborda e no pode trilhar os caminhos traados que definem o aparelho. preciso captur-la atravs de uma ligao que a faa circular no circuito pulsional para que se chegue experincia de satisfao, isto , descarga. A ligao se faz como inscrio que opera uma traduo do quantum marca, o que lhe confere a funo de letra, efeito e condio da linguagem. D-se, ento, a possibilidade de circulao da quantidade a essa altura no mais insuportvel para o aparelho psquico. Estabelece-se o circuito pulsional. A aparece uma espcie de satisfao na repetio. A repetio instaura uma temporalidade at a satisfao, a descarga. E o que Lacan vai chamar de gozo.; este resto que obriga a repetir a tentativa de ligao e que termina por produzir, como traduo, o sintoma e/ou outras formaes do inconsciente. Por isso, uma psicanlise, uma vez que um processo de tradues sucessivas, portanto de ligao, pode permitir re-ligaes ou re-tradues que reordenem, ao final, a economia de gozo do sujeito. V-se na clnica, a repetio da cena tida como traumtica, traumtica justamente porque se repete ( traumtica porque excessiva) e se repete porque um excesso que o aparelho, fun-
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cionando segundo o princpio do prazer, no pode dar conta. preciso que seja ligada a um circuito onde possa circular. As neuroses de guerra de que trata Freud obedecem inteiramente a este percurso e cumprem sua sina. Na clnica psicanaltica a repetio tematizada por Freud como resistncia cura, como apego ao sintoma, como a inquietante estranheza de reviver o horror de cenas de guerra atravs de sonhos. A cena traumtica se instala como repetio. Instala-se como um excesso insuportvel ao psiquismo, que se pe a trabalhar para traduzi-lo e assim livrar-se de tamanha intensidade. o trabalho da pulso para permitir que o princpio do prazer possa viger. E longa a argumentao de Freud na formulao da pulso de morte, mas sua base de sustentao o enfoque econmico para a explicao mais objetiva do funcionamento psquico. Em 1924, escreve "O problema econmico do masoquismo". E um texto avassalador. A partir da no h mais retorno possvel a qualquer acordo a respeito da "natureza humana" como tendncia ao equilbrio, felicidade, ao bem-estar que a burguesia prometia. A se enlaam vida e morte na experincia do erotismo, na afirmao de um masoquismo primrio. A pulso de morte levada s ltimas conseqncias clnicas. A circulao de quantidades tem como efeito a produo de uma rede que instaura um campo pulsional no jogo das foras no qual a vida se lana nos braos da pulso de morte. Repare-se que falamos em pulso de morte e no em morte. Da morte nada se sabe nem se pode pensar... j a pulso, outra histria. O que se pode saber da pulso de morte so seus efeitos... e eles se do no campo da vida, como experincia de um limite quase franqueado. O que Freud formula no "Problema econmico do masoquismo' que no existe vida sem esse componente "gozo" cuja expresso mais radiante o erotismo. Freud vai falar de um masoquismo original sobre o qual se estrutura a espcie humana. A morte, enquanto pulso, s comparece na vida e essa a dimenso
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econmica do masoquismo: o n entre essas duas foras, a pulso de vida, Eros, pulso sexual e a pulso de morte que se instala no que poderia se supor ser o mago da vida. No h vida sem pulso de morte pois se deve a ela as foras da criao. No h cultura sem que se presentifique a pulso de morte, no somente como feio dialtica de destruio mas como constitutiva do amor e da criao. E a pulso de morte que d a face humana de Eros. A se constitui a dialtica freudiana do psiquismo para alm de toda sntese. cadeia longnqua de montanhas mortas, cristais de era uma vez. areia e mar. largas extenses deixadas s estrelas, lagos como leitos, imensido sem mim. Eis a dimenso de gozo: no uma perspectiva moral ou religiosa da qual despontaria o pecado no horizonte e, conseqentemente, seu castigo, mas uma perspectiva econmica de articulao entre quantidades. Em termos clnicos fica a indicao de permitir uma articulao significante diferente daquela na qual o sintoma se produziu, como se se tratasse de uma espcie de entesouramento de quantidades. Assim que preciso, tornamos a insistir nesse ponto, ligar as quantidades que invadem o organismo para faz-las circular, quer dizer, para que se inscrevam como representao em uma economia. Dessa operao, que podemos considerar primria em virtude de efetivar-se a uma primeira ligao, dessa operao se produzem sucessivas tradues instaurando-se, assim, um processo de metaforizao: o sujeito se articula cadeia significante. A metfora vem substituir o significante enigmtico do trauma sexual,39 um dos exemplos de uma grande quantidade que invade o organismo, a sexualidade. Em termos clnicos, a articulao significante permite o deslocamento da quantidade "enquistada", fazendo com que circule. Faz-las circular implica
39 Cf. LACAN, Jacques. A Instncia da Letra e sua relao com o inconsciente ou a Razo desde Freud. In: . Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
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tom-las como significantes, faz-las se inscrever como representaes, como pensamentos inconscientes. A cadeia significante consiste em uma operao na qual um significante remete a outro significante. Quer dizer, a cadeia consiste de uma ligao feita de um certo modo, modo que define a estrutura do significante na qual o sujeito e o objeto so produzidos. Lacan define o sujeito como o que um significante representa para outro significante. E o significante o que um sujeito representa para outro significante. Nesse remeter ao outro, h uma perda; alguma coisa escapa ligao: Lacan o chama de objeto a. Poderamos chamar, com Freud das Ding. Esto presentes os quatro (SI, S2, a, S) termos necessrios formulao da estrutura como modo de ligao, ou, na expresso de Lacan, como discurso, considerando que a definio de discurso o que faz lao. Instaura-se a cadeia significante, um significante que remete a outro como sucessivas tradues. E a livre associao de que fala Freud na "Interpretao dos sonhos". Traduz-se a representao "carregada" (possuindo um valor) de quantidades, transferindo essa quantidade a outro significante, e nessa transferncia algo dessa quantidade se perde e se dissipa... comea a ser descarregada. A perda se d como uma articulao que diminui, justamente, o excesso permitindo a captura, pela linguagem, do que se apresentar, ento, como fora pulsional, como representante da representao. Traduz-se a representao "carregada" de quantidades, transferindo esta quantidade a outro significante, e nessa operao algo dessa quantidade se perde, se dissipa, comea a ser descarregado... se essa operao se d porque houve um trabalho, o trabalho de ligar, o trabalho do significante na produo da cadeia. Da se pode deduzir que no h palavra sem carga, sem quantidade, o que eqivale a dizer que no h linguagem sem corpo, sem uma economia, sem um sistema de circulao de quantidades do qual o corpo efeito. No h significante sem quantidade, donde provm seus efeitos. No
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h, a partir do discurso da psicanlise, filosofia ou metafsica na qual um corpo no esteja implicado ou que no esteja implicado, o objeto. Aquilo que, no incio da filosofia moderna, Descartes separou, Freud reuniu ao rearticular palavra e corpo. Essa costura que Freud empreende cria a dimenso do significante na terminologia lacaniana. A operao de ligar, quer dizer de traduzir o impulso, de captur-lo pela linguagem, corresponde captura da morte pela vida. Corresponde, de certa forma, instituio da morte, que nos chega pela via da linguagem, ou, em outros termos, pela via do significante. A morte a morte pelo significante. Da a experincia mortal que , por exemplo, escrever um poema. Isto porque a operao de ligar, de traduzir, de captura do inorgnico pelo orgnico corresponde inscrio da morte na vida pela via da linguagem, pela via do significante... o significante tem alguma coisa de mortal. H, por exemplo, alguma coisa de atravessamento da morte na experincia de escrita. E primeiro na carne que o poema se escreve e s depois se transfere folha em branco. A formulao do masoquismo como um enlaamento original de foras constitui a estrutura do que h de mais humano em cada um de ns. Assim se define a dimenso original da humanidade como dimenso de gozo. Dimenso que no preexiste linguagem, mas que seu efeito mais estrutural, seu defeito de origem; modo de enlaamento do orgnico ao inorgnico pela via do significante. No "Problema econmico do masoquismo", Freud leva s ltimas conseqncias a pulso de morte entendida como resposta lgica constatao de um problema clnico referente repetio. A maneira de Peer Gynt, o anti-heri de Ibsen, ele d uma volta e reencontra o mesmo problema em outra volta do caminho. Retoma a economia. Se h sofrimento e dor, h um excesso de quantidade retido que deve ser posto a circular... para isso necessrio que aja o princpio de inrcia neuronal traduzido em princpio do prazer. O que se deduz que esse pressuposto no se d espontaneamente
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ou naturalmente pela determinao de algum instinto original ou animal, mas precisa ser instalado por um trabalho, o trabalho que uma operao na qual se instaura a estrutura. A descarga da quantidade, retomamos o argumento de Freud, produz um caminho que constitui uma via de facilitao para o deslocamento de futuras quantidades, estabelecendo os circuitos pulsionais. As quantidades podem circular a partir de um trabalho que as liga formando uma cadeia que se organiza de certo modo, o modo de traduo, de traduo como produo de metforas. Por a talvez se possa compreender a pulso como corte entre o Real e o Simblico lacanianos, como a interface da ligao, como operao de transferncia de quantum de representao a representao como mostra Freud na "Interpretao dos sonhos". Essa operao de ligao estabelece uma superfcie de corte que nos permite localizar a pulso como corte entre o Real e o Simblico na medida em que enlaa a quantidade ao significante... o corpo alma. A questo da repetio adquire outra relevncia. A repetio o esforo, ou o trabalho para efetuar a primeira operao de ligar quantidade e representao inconsciente, no que estamos chamando de o trabalho do significante. Desde o ponto de vista econmico, a existncia da operao masoquista na vida pulsional dos seres humanos pode, com direito, qualificar-se de enigmtica. [...] Com efeito, incompreensvel se o princpio do prazer governa os nossos processos anmicos de modo tal que sua meta imediata seja evitar o desprazer e querer o prazer. Se dor e desprazer podem deixar de ser advertncia para se constituir, eles mesmos, em metas, o princpio de prazer fica paralisado, o guardio de nossa vida psquicafica,por assim dizer, paralisado.40
40 FREUD, Sigmund. El problema econmico dei masoquismo. In: . Obras completas.
Vol. XIX. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1994, p.165 (traduo nossa).
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E o que o princpio do prazer seno uma resposta econmica? Uma resposta dada em um segundo momento, uma resposta que se estabelece quando a dor e o desprazer que Freud interpreta como um excesso de quantidade esto "ligados" atravs da operao de repetio. A resposta que se organiza como princpio do prazer a resposta ao assalto da quantidade (inorgnica) sobre a matria orgnica. A construo freudiana, embora esteja inteiramente referida experincia clnica, no a descrio de uma trajetria emprica. uma construo no sentido freudiano mesmo do termo,41 uma construo cuja comprovao se d sempre aposteriori pelos efeitos de verdade que provoque, no sentido de um aprofundamento da anlise. A construo um modo de interpretao. E uma produo que se d no tempo retroativo de seus efeitos. No se trata nem de uma construo formal pura e simples nem de uma descoberta emprica. Em suma, uma construo efeito de um discurso. Discurso que se produz no ato mesmo em que opera, enquanto opera, pois no se d fora da operao mesma que o constitui. Opera a partir de uma prtica, uma prtica clnica. O discurso da psicanlise produz uma prtica na qual ele prprio vai se produzindo, uma prtica que promove e da qual causa. A construo freudiana efeito de um discurso que se produz na medida mesma em que se d a operar a partir de uma clnica na qual formula seus prprios pressupostos. E esse o discurso que inaugura o inconsciente em sua temporalidade lgica. Freud associa o trabalho do analista ao do arquelogo que reconstri uma memria a partir de vestgios. Vestgios que podem ser estabelecidos justamente pela repetio. No se trata de uma revelao mas de uma construo feita com a matria deixada como rastro. Essas construes so postas prova, se se mostram verdadeiras ou no, pelos efeitos que provocam quando so comunicadas pelo analista na
41 Cf. FREUD* Sigmund Construes em anlise. Vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
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forma de uma interpretao. Assim acontece com a pulso de morte ou com o masoquismo originrio, que so construes demonstrveis somente por seus efeitos na clnica psicanaltica. A verdade de uma interpretao se d como prtica e no como demonstrao terica. Sua comprovao se d em um tempo "depois", pelos efeitos de verdade que provoque no sujeito, por exemplo se ele continua a associar depois de ouvir a construo/interpretao que o analista lhe comunica ou se interrompe a cadeia associativa. Se continuar a falar, a se lembrar de eventos e palavras, ainda que negue o contedo da comunicao do analista, ela verdadeira. A construo, em psicanlise, se produz no tempo retroativo de seus efeitos. Por isso podemos dizer que no se trata nem de uma construo formal pura nem de uma descoberta emprica. cadeias de palavras mortas azulam Assim que na construo freudiana tudo comea com um assalto. O assalto de quantuns de energia que atingem a superfcie da matria orgnica. Da uma organizao espacial vai se delinear. O lugar de onde vm as quantidades das quais o aparelho pode fugir se define como exterioridade. Segundo Freud, os estmulos exteriores impem uma nica tarefa: a fuga que acontece por meio de movimentos musculares. Por outro lado, aquelas das quais no se pode fugir, as pulses, circunscrevem o que se pode vislumbrar como espao de interioridade. "O mundo interior o testemunho de necessidades pulsionais."42 Lacan nos diz, no Seminrio 11, que a pulso um conceito fronteirio entre o anmico e o somtico, que funciona como um representante psquico dos estmulos que provm do interior do corpo, e essa representao se faz como exigncia de trabalho, que
42 "A substncia perceptiva do ser vivo ter adquirido, assim, na eficcia de sua atividade muscular, um asidero para separar uma flor de um dentro". FREUD, Sigmund. Pulsiones y Destinos de Pulcin. In: . Obras completas, vol. XIV. Buenos Aires: Amorrortu, 1994, p.l 15.
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implica, na operao, o objeto. Objeto que no necessariamente alheio, mas que pode se constituir como uma parte do prprio corpo. Sua origem est localizada nas fontes somticas e no h qualidade presente no que se refere s pulses, mas sim uma dinmica pautada pela produo e circulao de quantidades. A constncia da tendncia descarga probe qualquer assimilao da pulso a uma funo biolgica, que tem sempre um ritmo. A pulso uma fora constante que no aumenta nem diminui, apenas se acumula. "As pulses, em sua estrutura, na tenso que estabelecem so ligadas a fatores econmicos. Esse fator econmico depende das condies nas quais se exerce a funo do princpio do prazer."43 No artigo "O inconsciente", Freud nos diz que "[...] uma agncia representante da pulso uma representao ou um grupo de representaes investidas desde a pulso com um determinado montante de energia psquica".44 A pulso representante na exigncia de trabalho. Entendo que a operao de representao, de se fazer representar, a exigncia de trabalho - a que se faz, a pulso, presente no psiquismo. assim que representa o somtico: como uma exigncia de trabalho psquico recortando os rgos para que o corpo possa funcionar.45
O corpo um lugar de alteridade. Aqui se inscreve o lugar do Outro como pura alteridade. Outro que, na obra de Lacan, assume diversas funes, desde a linguagem - chamado de tesouro do significante - at o mais ntimo do corpo, o ex-timo: o ntimo que
43 LACAN, Jacques. Le Sminaire, livre 77: les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: ditions du Seuil, 1973, p.160 (traduo nossa). 44 FREUD, Sigmund. El Inconsciente. In: Amorrortu, 1994, p.109 (traduo nossa). 45 VIDAL, Ediferdo. Exposio Oral. In: Seminrios de quinta-feira. Rio de Janeiro: Escola de Psicanlise Letra Freudiana, 2005. . Obras Completas, vol. XIV. Buenos Aires:
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pura exterioridade. Era relao ao aparelho psquico, o organismo pura exterioridade, to exterior quanto um raio de sol que atinja a retina. Cria-se um espao externo no ponto mais ntimo. Outra geografia se produz, geografia na qual o corpo se configura como exterioridade, como alteridade frente ao sujeito. Uma parte do corpo pode se tornar to estranha ao psiquismo como as distantes montanhas da lua. A unidade oferecida pela imagem corporal requer uma srie de operaes sustentadas a partir do olhar do Outro... mas essa j outra histria. H estmulos endgenos ao organismo e esses no cessam com um espasmo muscular. Diante do impulso endgeno o organismo ensaiaria uma espcie de fuga... que, alis, se revelar intil. impossvel evitar o mal-estar que este tipo de quantidade gerada pelo impulso endgeno produz. Aparece, aqui, a dimenso de produo da qual a circulao apenas um momento. O corpo, ento, pode ser definido como um espao de fronteira. Fronteira aberta pelas foras pulsionais que a definem campos, campos pulsionais. O relevo desses campos compe o corpo. Freud evoca o protoplasma como exemplo de superfcie cifrada por uma quantidade de energia. Os estmulos atingem o organismo indiferenciado, o protoplasma, produzindo, ou, deixando como resto um trilhamento. Supe-se que na prxima descarga a quantidade siga esse trilhamento como um espao diferenciado da superfcie que funcionaria como via de facilitao. As marcas que definem o trilhamento ficam cada vez mais fortes at se consolidarem como caminhos definitivos. Esto formados os circuitos pulsionais. A operao formulada por Freud est assegurada por um princpio fsico, o princpio de inrcia. No percurso que leva descarga, alguma coisa se perde e essa perda tem conseqncias: o sujeito do inconsciente e o objeto chamado por Lacan de "objeto a". H uma reteno de quantidade que permite que se realizem as funes secundrias. As funes secundrias so as funes dife-
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rentes daquelas que promovem a descarga imediata, chamadas, por Freud, de funes primrias. As funes secundrias supem que haja alguma reteno de quantidade justamente para efetiv-las. Desenvolve-se a funo secundria como uma funo temporal. Ela adia por um tempo a descarga para que outras funes se exeram e produzam maior diferenciao no aparelho psquico e no organismo. A diferenciao e as funes temporais vo se firmando como instncias psquicas. A conscincia, por exemplo, uma medida de tempo, uma durao chamada, por Freud, de perodo. O discernimento de qualidades, uma propriedade da conscincia, est determinado pelo tempo de permanncia do investimento de quantidades na percepo daquele objeto que aparece conscincia. Se no h descarga imediata porque o organismo pode suportar por mais tempo a presena de quantidades, a presena dos estmulos que o invadem. A durao diretamente proporcional capacidade de produzir ligaes pelo aparelho psquico. E o aumento da amplitude de suportar um quantum que permite a instaurao da funo secundria. E a funo secundria que, por sua vez, vai permitir descarregar, cumprir o princpio de inrcia, de diferentes modos e em diferentes tempos. Um desses modos, dos mais importantes, o pensamento. A uma quantidade se liga a uma representao... por isso o pensamento produz tantos efeitos no corpo. E por isso se pode dizer que o corpo efeito, uma produo, do significante, da representao investida de quantidade. Um monte de carne e de ossos se transforma em corpo pela linguagem. H, no que se poderia considerar como "o mago do ser", uma interpretao. Embora a linguagem no se restrinja a produzir sentidos - e essa talvez seja sua funo mais secundria, a produo de sentido - o corpo resultado de respostas. O corpo produto de respostas a demandas. H estmulos e respostas aos estmulos, estmulos que vm do exterior, por exemplo, do sol ou do prprio organismo que se constitui como exterioridade ao aparelho psquico. Os estmulos criam necessidades, logo a necessidade j
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uma espcie de resposta que se faz demanda. Alguns estmulos obrigam a reaes mais espetaculares, um grito, por exemplo, que desanda em choro, e a interpretao que se segue e que supe um trabalho chamando cena, a pulso. Freud vai nomear a pulso como representante da representao. Representante da ligao no psiquismo, a pulso instaura um circuito econmico que permite a sobrevivncia de cada sujeito. A pulso assume o lugar do escravo antigo do qual falava Aristteles, o escravo que cuidava da sobrevivncia do oikos. Freud inaugura sua construo tomando como referncia o sistema neuronal. O cerne do sistema se formaria a partir das marcas que deixa, na matria viva, a passagem de quantidades que estariam ligadas s vias sobre as quais quantidades de excitao endgenas circulam e se demoram. O corpo vai se formando ao ser mapeado pelos circuitos da pulso, uma vez que pulso igual a trabalho da pulso, estabelecendo, ou indicando, as veredas do gozo. Dessa economia depende o prprio estatuto da realidade, pois a durao e a concentrao de quantidades em uma marca mnmica que definem o que alucinao, realidade ou sonho. So as diferenas na concentrao e no investimento assim como no tempo da durao da quantidade Q(n) sobre os neurnios da percepo que asseguram a distino entre realidade, sonho ou delrio. E uma questo de quantidade, que define inclusive, a qualidade atribuda ao objeto do pensamento. No h diferena qualitativa entre delrio, sonho, alucinao ou o que chamamos de realidade. O investimento de quantidades em uma lembrana o que a atualiza. A alucinao que se confunde com a realidade um aglomerado de marcas da memria sobre investidas de quantidades. E da que advm a impresso de vivncia efetiva que temos quando sonhamos... ou quando brota um poema, permanecendo o tempo necessrio a se fazer trama num breve enlaamento ao mundo. Todas as funes psquicas obedecem a essa dinmica econmica da circulao de quantidades atravs de transferncias e deslocamentos.
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A capacidade de julgamento, a capacidade de discernimento a respeito do que ou no realidade, do que ou no uma alucinao, uma funo do pensamento que depende da distribuio e concentrao de quantidades em funo da permanncia em diferentes intervalos de tempo. H o que Freud chamou de "Juzo", que se encarrega de discernir os campos da realidade, do delrio e do sonho Aquilo que se subtrai ao pensamento, ao Juzo, quer dizer, ao investimento de quantidades em determinados intervalos de tempo, Freud vai chamar de coisas, restos que se subtraem ao pensamento, das Ding. Esses restos definem o Real que no se confunde com realidade; ao contrrio, que marca sua exterioridade, seu limite. Assim que Real o que escapa ao campo da realidade, ao Simblico e ao Imaginrio. Real o que se define como limite ao Simblico, risco de fronteira... em termos freudianos, resto que no cai sob a operao de julgar que instaura e produz o campo do pensar. Assim que o Real impensvel e da ordem do impossvel. E o que escapa operao do pensamento demarcando-lhe os limites. Esse resto causa a repetio porque no est ligado, articulado ao pensamento nem consciente nem inconsciente. Na repetio, as coisas, podem ser ligadas e se transferirem cadeia de pensamentos, cadeia das representaes... at certo ponto, pois o real permanece como obstculo simbolizao, da estrutura a produo de um resto. H uma estrutura de produo que jamais se resolve em zero. H sempre um resto que, de certa forma, causa do sistema. A produo de um resto opera obrigando a repetio na qual a operao metafrica, simblica, se d. Freud nos diz que na vida psquica h uma "compulso a associar" que estamos chamando de ligao. "Ao que parece dois investimentos presentes de maneira simultnea tm que ser postos em conexo."46 /
46 FREUD, Sigmund. Proyeto para una psicologia. In: Aires: Amorrortu, 1994, p.384 (traduo nossa). . Obras Completas. Vol I. Buenos
Assim Freud explica o "sem sentido" aparente do sonho, o modo como o desejo inconsciente pode driblar a censura onrica. Ligam-se duas representaes simultaneamente investidas... Investimentos [de quantidades] nos neurnios se nivelam, em parte, segundo suas facilitaes mais prximas e, em parte, seguindo investimentos vizinhos. Se a descarga do eu fosse completa, dormir-se-ia sem sonhos.47 Um quantum permanece, que no inteiramente capturvel em uma ligao, um quantum que pura resistncia ligao, que estimula e vivifica as marcas que constituem uma memria, assim como a percepo que permanece indiferenciado, quer dizer, sem marcas. Esses investimentos permitem a formao dos sonhos. Podemos deduzir que o "investimento' uma forma, um modo de ligao de uma quantidade a uma representao, ligao que supe uma dimenso temporal, uma durao, uma ligao mantida em determinado intervalo de tempo. O investimento de uma representao por uma quantidade permanece por um intervalo de tempo para que o "produto" se conclua e aparea, se apresente, conscincia... como no caso do grito. O primeiro modo atravs do qual a conscincia tem notcia da produo e circulao de quantidades, assim como das respostas dadas pelo aparelho psquico em sua prpria constituio, o grito. Voltamos a ele. O grito uma delimitao do objeto. Ele irrompe no Outro e obriga uma interpretao. O grito uma espcie de dobradia entre o inorgnico, a quantidade, a reao fsico-qumica, e a descarga motora, o efeito da quantidade no tecido orgnico, capturada pela linguagem atravs da interpretao. O grito se d como ato que enlaa a matria inorgnica orgnica e linguagem. A matria inorgnica que Freud chamar de
47 FREUD. loc. cit.
energia, definida como instncia prpria pulso de morte uma vez que a pulso de morte fora definida como tendncia ao inorgnico; a dimenso orgnica como a resposta motora que descarrega o estmulo provocado pela invaso da quantidade derivando para a funo do objeto como presentificao da falta, que tem funo homloga do resto, ou da sobra, que de causar a ligao da representao quantidade que, por sua vez, se apresenta sempre como resistncia captura pela linguagem que a interpretao efetiva. A dimenso inorgnica, orgnica, e da linguagem, se articulam na produo de um sujeito como instaurao do tempo. Assim se completa o aparelho psquico como um modo de produo, como estrutura. Estas dimenses preexistem ao sujeito embora obriguem que em cada um se cumpra, de algum modo, de cada modo, de modo particular, o enlaamento delas, sob pena de no se constituir o aparelho psquico. Na singularidade de cada comeo est o grito e a resposta que constitui, para cada um, o campo do Outro como destino e fronteira. O enlaamento se d como captura do orgnico pela linguagem. assim que se define a operao de traduo que se inaugura com a primeira inscrio. No uma palavra que se traduz por outra mas um estmulo provocado por uma quantidade que, ao ser interpretado traduzido e inscrito no campo da linguagem como significante. H o estmulo, a interpretao e o trabalho de traduzir, de produzir a metfora que inscreve a quantidade como o significante. O grito uma descarga de quantidade traduzida, quer dizer, metaforizada: eis a forma elementar da ligao. Na singularidade de cada comeo est o grito como primeiro ato que constitui, a partir de uma falta, o sujeito no campo do Outro, o campo da linguagem. Assim se estabelecem o destino e as fronteiras de cada um. O enlaamento produzido se define como traduo que se inaugura com a primeira inscrio deixada como marca das passagens da quantidade, letra que representa o trao da passagem da quantidade. E uma noo de representao que se faz
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como inscrio. No uma coisa que representa outra no sentido de que a substitui, mas como reapresentao de uma falta que se escreve como significante, metfora que ato inaugural de escrita, a escrita do inconsciente. O grito notifica a conscincia do deslocamento de quantidades e sobre-investimentos cuja magnitude causa mal-estar e dor. No h drama nem sentido porque no h qualidades na economia psquica freudiana. Sem o grito, diz Lacan, teramos do objeto desagradvel somente uma noo confusa que no o destacaria do contexto, no qual ele seria apenas "um ponto maldito" que arrastaria consigo todas as circunstncias que o cercam. A dor faz passar um grito ao sujeito, acrescenta Lacan no Seminrio 11.0 grito a instaurao de uma fronteira, a delimitao de uma borda, a margem do objeto. A existncia do objeto o grito do sujeito. O grito preenche uma funo de descarga no somente motora, mas j inscrita no campo da linguagem. Os rgos e bordas vo se fazendo fronteiras transtornadas, zonas erotizadas, caminhos de quantidades vinculadas a objetos pulsionais. Um pedao de carne sanguinolenta revestido por um tecido diferenciado se faz corpo pela interveno da instncia simblica, a linguagem. Nesse processo se diferenciam as bordas corporais. A conscincia chegam os efeitos de toda operao atravs do grito. At o instante do grito no se tem notcia da circulao de quantidades nem da existncia do aparelho psquico. o grito que cifra a operao, que a marca no simblico. At esse momento o que se passa obscuro. O grito apresenta o signo que a estrutura confere; a estrutura o aparelho. Estrutura definida por Lacan como a "operao que pe em cena o sujeito" na efetivao de uma traduo, na inscrio do corpo como operao metafrica. A se cruza uma fronteira, ponte que signo de que alguma coisa se passa do orgnico ao simblico, melhor dizendo, do simblico ao orgnico produzindo o corpo. E se passa no por contigidade, o
que daria operao um carter metonmico e no metafrico, mas como inscrio de abismo, de corte entre um e outro, o orgnico e o simblico. Corte que efeito do significante sobre o corpo. A metfora a inscrio do abismo. O grito delimita o objeto no com o fim de trag-lo, mas de lhe conferir existncia como o limite da palavra. Essa operao provoca uma descarga de quantidade da qual provm a sensao de alvio. Supe-se que a palavra, atravs desse efeito, efeito de alvio, intervenha na economia psquica e tenha a um efeito real. Por isso se pode afirmar que a psicanlise uma escuta cujos efeitos aparecem no real do sintoma. Guardemos a ligao entre quantidade e representao; ligao que um modo de se inscrever a vida no mbito da linguagem sob a forma da metfora ou metonmia. Passemos a Marx, forma do valor, e poderemos ver o quanto esse modo de ligao presente na forma do valor, obedece mesma lgica, produzindo-se a, nos dois modos de produo, um excedente no contabilizado que faz a cadeia significante andar e o mercado acontecer.
3. A economia do capital
A economia do capital comea com uma origem - a frase pode soar estranha, a construo sinttica dura e o uso da preposio, um tranco no ritmo da sentena. Acontece que "origem" diferente de "comeo" - e origem origem porque se repete... Origem um instante que retorna.48 A economia do capital tem origem, ou tem como origem, o que Marx chamou de acumulao primitiva do capital. A acumulao primitiva do capital o ponto zero dessa histria; a marca que retorna a cada vez que o capital se expande. A acumulao primitiva uma marca de repetio presente no modo como o capital administra e engendra sua reproduo ampliada. A reproduo ampliada do capital a condio de sua permanncia como modo de produo. O capital mundial ou no capital. As marcas presentes na acumulao primitiva retornam e se reinscrevem nos corpos das naes e das gentes, atingidas e ligadas rede do capital globalizado. ah tempos sonhados entre barricadas naufragadas eco de tambores assustados, sirenes desejado fim A acumulao primitiva do capital congrega as medidas polticas responsveis pela instaurao de um discurso, o discurso do
48 Cf. KIERKEGAARD, S. Le Concept de Vangoise. Paris: ed. Gallimard, 1990.
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capitalista.49 A acumulao primitiva no decorre do modo capitalista de produo, mas seu ponto de partida.50 Ponto de partida marcado pela violncia privada e de Estado perpretada atravs de medidas tomadas e legitimadas posteriormente por mudanas na legislao que protegia as cidades e os camponeses ligados propriedade comunal. H um reordenamento profundo e radical - a comear pela Inglaterra - do estatuto da propriedade dos meios de produo. Primeiro pela expropriao dos camponeses e artesos, depois pela criao de uma legislao extremamente rigorosa destinada queles que, expropriados dos meios de subsistncia, impedidos de usufruir, por exemplo, das terras comunais, as terras da aldeia, se recusassem a aceitar as terrveis condies de trabalho nas manufaturas. A paisagem se modificava nos campos, nas cidades e nas almas... Os que foram expulsos de suas terras com a dissoluo das vassalagens feudais e com a expropriao intermitente e violenta, esse proletariado sem direitos, no podiam ser absorvidos pela manufatura nascente com a mesma rapidez com que se tornavam disponveis. Bruscamente arrancados das suas condies habituais de existncia, no podiam enquadrar-se, da noite para o dia, na disciplina exigida pela nova situao. Muitos se transformaram em mendigos, ladres e vagabundos, em parte por inclinao, mas na maioria dos casos por fora das circunstncias. Da ter surgido em toda a Europa ocidental, no fim do sculo XV e no decurso do XVI uma legislao sanguinria contra a vadiagem. Os ancestrais da classe trabalhadora atual foram punidos inicialmente por se transformarem em vagabundos e indigentes, transformao que lhes era imposta. A legislao os tratava como pessoas que escolhem propositadamente o caminho do crime,
49 Utilizamos a noo lacaniana de discurso como estrutura, como "o que faz lao". Cf. LACAN, Jacques. O Seminrio, Livro 17: o avesso da psicanlise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 50 Cf. MARX, Karl. O capital: crtica da economia poltica. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1980.
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como se dependesse da vontade deles prosseguirem trabalhando nas velhas condies que no mais existiam. Essa legislao comeou na Inglaterra, no reinado de Henrique VII. Henrique VIII, lei de 1530 - Mendigos velhos e incapacitados para trabalhar tm direito a uma licena para pedir esmolas. Os vagabundos sadios seroflageladose encarcerados. Sero amarrados atrs de um carro e aoitados at que o sangue lhes corra pelo corpo, em seguida prestaro juramento de voltar sua terra natal ou ao lugar onde moraram nos ltimos trs anos, "para se porem a trabalhar". Que ironia cruel! Essa lei modificada, com acrscimos ainda mais inexorveis, no ano 27 do reinado de Henrique VIII. Na primeira reincidncia de vagabundagem, alm da pena deflagelao,metade da orelha ser cortada; na segunda, o culpado ser enforcado como criminoso irrecupervel e inimigo da comunidade.51 Some-se a essa legislao a rapina promovida na Amrica, a introduo do trabalho escravo em larga escala, a criao dos bancos e o favorecimento e garantia dada pelo Estado para o endividamento pblico, e esto nomeados os procedimentos da cumulao primitiva que instauram o modo de produo do capital: a transformao de toda riqueza em capital. A destinao de toda produo o aumento da riqueza pura e simplesmente. E isso que define o modo de operar do capital: produzir um valor a mais. E esta sua misso na Terra. Marx chega a esta sucinta definio de capital partindo da mercadoria tomada em seu duplo carter, valor de uso e valor de troca. O capital uma funo. Funo de agregar valor. Quando, ao final de uma operao de troca ou consumo ainda fica um resto porque houve a obteno de um valor a mais. At a acumulao
51 MARX, Karl. O capital: crtica da economia poltica. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1980, p.851-852.
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primitiva do capital essa operao se dava na esfera da circulao atravs do comrcio ou da rede de emprstimos sustentada por usurrios. A partir da transformao da fora de trabalho em mercadoria a criao desse valor a mais passou a se dar na produo, no consumo da fora de trabalho. Independente de se tratar de dinheiro ou de mercadoria, s podemos tomar como capital - o dinheiro ou a mercadoria - se ao final da operao de consumo no processo produtivo ou de troca tiver sido agregado um valor a mais, em outras palavras, se sobrar um resto. tempo contado, vergado nas costas a matriz liquefaz-se na manh, a noite uma lembrana vaga - entardece
A organizao do Estado monrquico absolutista assim como a Igreja medieval guardavam certa responsabilidade moral para com os pobres. O lugar que a pobreza ocupa na cultura crist no um lugar de desprezo. No imputada ao pobre, a vagabundagem. No se produzira ainda a identificao entre pobreza e vadiagem, misria e preguia, que o protestantismo vai enlaar definitivamente: uma das provas do dom da graa de Deus era a prosperidade com que eram abenoados aqueles que aderiam a uma certa tica do trabalho. Na cultura catlica persiste uma idia de pobreza advinda da Idade Mdia, segundo a qual a pobreza permitia ao cristo o exerccio de uma das maiores virtudes teolgicas: a caridade. A opo pela pobreza era uma das trilhas da salvao. A pobreza era uma trilha para o Esprito Santo. As reformas das ordens religiosas de padres e freiras reinventaram a opo pela pobreza como um modo de estar mais prximo de Jesus. Nesse sentido, a separao entre o cristianismo protestante e o catlico, pelo menos nessa poca, era abissal.
No sculo XVIII tudo comea a mudar sob as luzes da Razo e do Iluminismo. O mercado aparece como uma espcie de fonte da vida uma vez que as mercadorias parecem pulular em gerao espontnea... a vida deslocada do corpo do trabalhador para o produto de seu trabalho. O mercado ditar cada vez mais a nova ordem, a ordem "das mercadorias", como ordem universal, como a ordem natural das coisas. A vida troca de lugar... enquanto as mercadorias vivem, os homens morrem de fome, frio e solido. O sculo XIX gritar promessas de parasos na Terra mas o sculo XX revelar o real das fantasias utpicas. Marx parte de uma crtica moral ao capitalismo antes mesmo de concluir seu trabalho terico, trabalho no qual desvenda a estrutura do capital. Podemos dizer que ele parte, sobretudo, de um posicionamento tico. A escolha que define seu lugar na vida anterior prpria obra. No se trata da concluso de um saber acadmico mas de um pressuposto. Por isso o dizemos "tico"; porque oriundo de seu desejo, da experincia moral de se deparar com o mundo e querer transform-lo. Marx toma posio contra o sofrimento imposto aos trabalhadores, assim como Freud, a priori, resolve escutar o sofrimento das histricas. Se Marx se insurge contra a economia poltica burguesa e a filosofia romntica ou idealista de seu tempo, Freud se ope ao modo como os mdicos e padres escutavam as histricas. <Je uma posio tica que Marx recusa a organizao social proposta e implementada pela burguesia. desse lugar que disseca o carter brutal de uma civilizao que exige imensos sacrifcios da maioria da populao ao mesmo tempo em que impede o usufruo dos resultados desse sacrifcio. Os trabalhadores so relegados misria econmica, cultural e moral. No "Futuro de uma iluso", Freud escreve:
Quanto s restries que afetam a determinadas classes da sociedade, nos deparamos com umas constelaes, muito visveis, que no eram desconhecidas. Espera-se que essas classes relegadas invejem aos privilegiados suas prerrogativas e faam tudo para livrar-se de seu "plus" de privao. Onde isso no possvel, se consolidar certo grau permanente de descontentamento dentro dessa cultura que pode levar a perigosas rebelies. Mas se uma cultura no pode evitar que a satisfao de certo nmero de seus membros tenha por premissa a opresso de outros, no caso, da maioria ( o que acontece em todas as culturas do presente), compreensvel que os oprimidos desenvolvam uma intensa hostilidade a essa cultura que eles possibilitam mediante seu trabalho, mas de cujos bens participam de maneira escassa. [...] Cabe dizer que uma cultura que deixa to insatisfeitos a um nmero to grande de seus membros e os empurra revolta no tem perspectivas de conservar-se de maneira duradoura nem o merece.52 ah, tristeza que carcia suspiro que no ser A questo de Marx diz respeito produo da riqueza, ou melhor, espetacular produo de riqueza no capitalismo que tem como correlato o assombroso espetculo da misria, justamente dos produtores da riqueza, os trabalhadores. Marx, no entanto, no um "sentimental" que apregoa o amor ao prximo. Marx escreve muito explicitamente, j em 1844, que no quer que ningum confunda sua crtica da Economia poltica com a crtica romntica comercializao da terra. Ele no quer sentimentalismo nem nostalgia porque sabe que os que mandam
52 FREUD, Sigmund. El porvenir de una ilusin. In: Amorrortu, 1994, p.12 (traduo nossa). Obras Completas. Buenos Aires:
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no se comovem com sentimentalismo e nostalgia. [...] Marx chamou vrias vezes de 'cnica' esta anlise dos economistas que o precederam: cnica por causa da preciso e clareza diretas com que evidenciaram o tipo de intercmbio baseado na propriedade privada. Com efeito, o que torna cnico o realismo descritivo da economia poltica precisamente o fato de os cultores desta cincia em geral se limitarem anlise do que existe. E neste ponto comeam as censuras morais de Marx. Algumas delas so muito duras. A economia, segundo Marx, parte do fato da propriedade privada, mas no o explica. E no o explica porque aceita como fundamento ltimo o interesse do capitalista e adota os valores deste: o egosmo, a cobia, a guerra aberta entre cobiosos, a competio constante.53 A riqueza produzida no modo de produo capitalista toma a forma, para Marx, da mais-valia, um modo prprio ao capital de produzir a riqueza. Para chegar ao conceito de mais-valia, Marx parte do valor, e para chegar ao valor parte da definio de mercadoria. A mercadoria , antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estmago ou da fantasia. Cada coisa til, como ferro, papel etc., pode ser considerada sob duplo aspecto, segundo quantidade e qualidades.54 A quantidade ele vincula o valor de troca, e qualidade, o que chamou de valor de uso. Assim cada mercadoria possui um valor de troca e um valor de uso. O valor de troca no se confunde com preo e permite a Marx explicar a ocorrncia de um mercado no
53 BUEY, Francisco Fernndez. Marx (sem ismos). Rio de Janeiro: UFRJ, 2004, p.143. 54 MARX, Karl. O capital: Crtica da economia poltica. Livro I: O processo de produo do capital. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1980, p.42.
qual se possa trocar qualquer coisa por qualquer outra coisa. Com a distino entre uma dimenso quantitativa e outra qualitativa pode-se estabelecer uma base objetiva para as trocas, escapando da armadilha da intersubjetividade do interesse, da necessidade, do valor idealmente atribudo ao objeto/mercadoria. De imediato, Marx aponta para uma formulao que tem no horizonte a estrutura, quando estabelece que o valor de uma mercadoria somente pode ser expresso no corpo de outra mercadoria. Assim que o valor no se expressa em si mesmo. necessrio um outro, equivalente, para que o valor da mercadoria em questo aparea. E o equivalente equivalente a qu? Justamente, ao valor. E o que valor? Em ltima instncia, trabalho! A forma do valor se escreve x de A (determinada quantidade de uma mercadoria A) = y de B (determinada quantidade de uma mercadoria B); x de A = Y de B. O que era um ser - O VALOR - torna-se uma expresso que aponta para a questo da estrutura. "A" a mercadoria cujo valor o equivalente "B" vai apresentar (ou representar) no mercado. E o que permite essa operao de representao? Operao na qual uma equivalncia se manifesta sem que se apaguem as diferenas qualitativas entre as mercadorias. A equivalncia se realiza na medida em que se estabelea um ponto comum entre elas, as mercadorias. Esse ponto comum no pode ser procurado na dimenso qualitativa do valor de uso, pois a o que prima a diferena. H que procur-lo do lado do valor de troca. Demarcamos, ento, o territrio das quantidades como o lugar onde a equivalncia pode ser produzida. E a que Marx introduz o trabalho como uma fora desprovida de qualidades, uma vez que a esteira de produo do capital tratou de eliminar as particularidades dos trabalhos individuais. O trabalho virou puro dispndio de energia em determinadas condies de produo. Resta o fato de que qualquer mercadoria produto do trabalho... Ento ser a partir da que o equivalente poder ser formulado.
Se h trabalho, h valor, e h o tempo que permite apontar para uma medida relativa quantidade de fora de trabalho empregada. Claro que no se trata de uma questo pragmtica passvel de ser demonstrada estatisticamente, trata-se, isso sim, de uma construo lgica. Marx estabelece uma medida de tempo. Todas as mercadorias produzidas em um mesmo intervalo de tempo teriam o mesmo valor porque teriam incorporado a mesma quantidade de trabalho humano abstrato. Assim, o tempo de trabalho socialmente necessrio para produzir mercadorias asseguraria a equivalncia entre elas. A forma do valor, Marx a escreveu como causa. Causa no sentido de condio de possibilidade para a existncia e sustentao do mercado, um mercado mundial com base em uma formao social inteiramente voltada para a produo de mercadorias. A cultura do capital, seu modo de existir, transforma os objetos em mercadorias... e isso representa uma diferena brutal frente aos modos pelos quais a humanidade, ou os humanos, sobreviveram at os primrdios da acumulao primitiva do capital. Tudo que circula, em nossa sociedade, circula atravs da mediao do dinheiro. A estrutura que sustenta esta "condio de possibilidade", possibilidade que se torna efetiva na mediao universal do dinheiro, Marx a escreve na forma do valor. Capital, diz Marx, uma relao social. Relao social que podemos traduzir, em termos lacanianos, por "lao social".55 O que produz ou o que faz lao discurso. esta propriamente a definio que Lacan d de discurso: o que faz lao. O discurso o que faz lao e discurso o mesmo que estrutura, logo, a estrutura a operao do lao social. Falar em estrutura implica se situar no campo da linguagem.
55 Cf. LACAN, Jacques. Le Sminaire, livre 16: d'un Autre l'autre. (traduo nossa); LACAN, Jacques. O Seminrio, Livro 17: o avesso da psicanlise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
"S h estrutura do que de linguagem."56 Assim que, falar em estrutura supe a escolha de um campo: o da linguagem. Essa umas das grandes viradas epistemolgicas do sculo XX; a passagem do ser linguagem ou, dito em francs, o que a torna mais eloqente, a passagem de / 'tre a lettre. Nessa virada, Freud tem um papel inaugural. Freud e Marx. Tanto o inconsciente freudiano quanto o capital fundam uma prxis no lugar de uma ontologia. Da a bobagem de recentes "marxlogos" de fazer uma leitura de Marx retirando de sua obra seu aspecto poltico, fazendo do texto de Marx uma filosofia bem comportada. Freud, por sua vez, no instaura um "ser" e o nomeia como inconsciente; instaura e afirma os efeitos de uma operao. Tambm o capital, como Marx o define, no um "ser", no da ordem do Ser, mas de uma operao discursiva que se d na produo de um certo lao social, de uma determinada relao social. O inconsciente freudiano no tem qualidade e funciona como um modo de produo no qual circulam quantidades. O inconsciente freudiano no o territrio inabordvel das pulses, essas foras tanto mais poderosas quanto misteriosas. A pulso uma exigncia de trabalho, uma operao que enlaa o Real ao Simblico atravs da estrutura da linguagem, que permite a traduo do impulso em interpretao. O inconsciente freudiano no buraco negro de afetos transcendentais, o lugar das emoes, as profundezas que guardam dimenses arquetpicas e ancestrais, o amlgama de restos de naufrgios, o continente antpoda ao mundo das idias platnico. O inconsciente freudiano, no sendo da ordem do Ser, tampouco pode ser considerado como no-ser. O inconsciente freudiano, assim como o serto de Guimares, nem e nem num . Ele pulsa no ponto "entre" os dois.
56 Deleuze desenvolve a noo de estrutura no artigo "Como reconhecer o estruturalismo". Cf. DELEUZE, Gilles. Como reconhecer o estruturalismo. In: Histria da Filosofia: o sculo XX. Org: Franois Chatelet. Lisboa: D. Quixote, 1995, p.257-288.
Como abordar esse inconsciente se ele nem e nem num ? "D a volta", Peer, como diz a me de Peer Gynt na pea de Ibsen, "D a volta". E assim que Freud o aborda, justamente como borda. Faz uma volta, um contorno, uma borda que escapa ao ser. Essa borda vem de um trao que, por se articular como enlaamento linguagem, chamamos de letra. Freud, na leitura de Lacan, instaura a letra como suporte da operao do inconsciente, uma operao que estabelece a causalidade psquica como parmetro explicativo para muitas queixas sintomticas assim como para fenmenos msticos e exotricos. Com Freud, a magia sucumbiu Razo. Assim que Freud inventa o inconsciente e, nessa inveno, o que se v como inconsciente uma operao que instaura a causalidade psquica, que se estrutura ou se d como um modo de produo, a produo do sujeito. Lacan retoma e recoloca, no mundo, a radicalidade da inveno freudiana. Afirma o inconsciente estruturado como linguagem e firma, mais explicitamente, a questo da estrutura. Estrutura entendida como uma operao que produz um certo lao social. Lacan d estrutura a mesma definio de discurso: o que faz lao... e assim equipara um ao outro, discurso e estrutura. "As palavras so o nico material do inconsciente'",51 diz Lacan em uma conferncia em Baltimore. Eu nunca disse que o inconsciente fosse um ajuntamento de palavras, e sim que o inconsciente tem uma estrutura precisa [...] o inconsciente est estruturado como uma linguagem. Que quer dizer isto? [...] h, aqui uma redundncia, pois para mim 'estruturado' e 'como uma linguagem' significam exatamente a mesma coisa.58
57 LACAN, Jacques. Da estrutura como intromistura de um pr-requisito de alteridade e um sujeito qualquer. In: Macksey, Richard; Donato, Eugnio (orgs.). A controvrsia So Paulo: Cultrix, 1976, p.205. 58 LACAN, loc. cit. estruturalista.
A estrutura no a forma. [...] a estrutura definida como a articulao significante como tal. [...] [a estrutura] opera no como modelo terico mas como a mquina que pe em cena o sujeito.59 Conceber a estrutura como a "mquina que pe em cena o sujeito" defini-la como uma operao. Aparece, aqui, o terceiro componente da formulao. Mencionados a "linguagem" e a "estrutura" chega agora, o sujeito. A operao da estrutura no uma simples traduo de um termo no outro em uma relao dual. H um terceiro termo em jogo presente na articulao que produz o enlaamento de um termo a outro. H uma articulao entre estrutura, linguagem e sujeito. O termo "estrutura" no remete ausncia de sujeito mas, ao contrrio, o afirma como termo necessrio operao; operao da estrutura. O sujeito aparece, a, como efeito de linguagem. Ganha relevncia a afirmao de Lacan, segundo a qual o inconsciente est estruturado como uma linguagem, o que localiza o sujeito como sujeito do inconsciente e lhe permite afirmar a definio de sujeito como "o que um significante representa para outro significante", que, por sua vez, implica definir o lugar do sujeito como adscrito cadeia significante no havendo uma instncia outra a no ser a prpria linguagem como localizao do sujeito. Na operao da cadeia significante se pode, ento, definir o significante como "o que um sujeito representa para outro significante"'. Ento, o sujeito o que um significante representa para outro significante, e o significante o que um sujeito representa para outro significante. Aqui tomba a metafsica ou qualquer metalinguagem. Trata-se, ento, de uma operao de representao intrnseca prpria cadeia significante. O sujeito se produz nessa operao de representao de um significante a outro significante da qual
59 LACAN, Jacques. Remarque sur le rapport Daniel Lagache. In: de Seuil, 1966, p.649 (traduo nossa). . crits. Paris: ditions
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"sobra" um resto pois prprio estrutura da linguagem que o significante seguinte, na cadeia, no represente inteiramente o outro. Esse "resto" impulsiona a cadeia adiante... de um significante a outro significante produzindo, de modo descontnuo, o sujeito. Essa descontinuidade nos permite falar do sujeito como efeito de um corte na cadeia, como uma borda ao buraco que aparece como descontinuidade. Descontinuidade que permite a ligao metafrica ao abismo que se insinua na cadeia significante, irrupo da pulso de morte, irrupo chamada por Lacan, de "objeto pequeno a", ou, simplesmente, objeto a. E a este objeto que ele imputa a funo de "mais-de-gozar", funo homloga a da mais-valia formulada por Marx em O capital. O sujeito no inteiro e a operao de produzi-lo no se totaliza em zero. H um resto que permanece, alguma coisa que se perde na operao de produo do sujeito. Alguma coisa escapa e escapar quer dizer no cair sob um significante que a represente: impossvel dizer tudo, e por isso se continua a falar. H um ponto de resistncia na operao de representao. Resistncia linguagem, resistncia ao simblico, resistncia ligao significante. A se localiza o "objeto a" como esse resto que resiste ao significante, ligao significante, e que definido como gozo, como mais-de-gozar... como mais-valia derivada da forma do valor. Podemos tambm lanar mo de uma definio que Deleuze d de "estrutura", embora ela possa permitir a imaginarizao de hierarquias causais que apontaria para uma certa metafsica da estrutura. Deleuze diz que "a estrutura o subsolo de todos os solos do real e todos os cus da imaginao"/'" Ao utilizar a metfora do solo, subsolo e cu, Deleuze constitui um espao vertical que facilmente desanda em hierarquia causai
60 DELEUZE, Gilles. Como reconhecer o estruturalismo. In: Histria da Filosofia: o sculo XX. Org: Franois Chatelet. Lisboa: D. Quixote, 1995, p.266.
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na medida em que admite uma instncia mais profunda do que outra; e no seio da tradio epistemolgica ocidental, a verdade est, sempre, no lugar mais profundo ou nos montes mais altos. A estrutura seria uma espcie de essncia, de verdade subjacente, que sustentaria o solo do real e o cu da imaginao. Conceber a estrutura como uma operao, pura e simplesmente, desarticula as hierarquias que a imaginao filosfica produz. A estrutura no uma instncia mais ou menos profunda do que qualquer outra. A estrutura opera pela produo de um modo de ligao, de um lao ou, em termos freudianos, pela produo de uma traduo. isso a estrutura: ligar de um certo modo. esse modo que a define, e a define como discurso. A estrutura articula as variveis e lhes d uma ordem. Isso nos permite apresentar mais uma definio para ela: a estrutura uma regra de composio. Assim, cada uma dessas variveis se define, no pelo que so (o que nos remeteria para a ordem do Ser, para uma ontologia da qual queremos escapar) mas pelo lugar que ocupam na estrutura, na composio. Ocupar um lugar desempenhar uma funo. Assim que os elementos marcam (marcar um meio de estabelecer) lugares. So os lugares que se articulam pela operao da estrutura ao mesmo tempo em que a instauram. Por isso se pode afirmar que a estrutura uma regra de composio. E o lugar que ocupa, que define o elemento em questo, e o define porque ele desempenha uma funo. Tratase da preeminncia do lugar sobre o ser. O pensar se desloca do Olimpo das idias platnicas para o espao topolgico das matemticas. O elemento da estrutura se define, ento, pelo lugar que ocupa na composio. Este lugar no imaginrio, pois no se define como extenso mas como espao lgico. H uma determinao recproca
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na determinao completa dos pontos singulares que constituem um espao correspondente a esses elementos [...]. Qualquer estrutura apresenta os dois aspectos seguintes: um sistema de relaes diferenciais segundo as quais os elementos simblicos se determinam reciprocamente, um sistema de singularidades correspondendo a essas relaes e traando o espao da estrutura.61 Podemos dizer que se trata de um espao no ocupado mas demarcado. Por que essa distino importante? Porque nos permite manter, no espao, seus vazios... recortes em branco, instncia de silncio e esquecimento. Alguma coisa se produz na operao da estrutura: um sonho, um sintoma, o valor de uma mercadoria; qualquer um deles, produto de uma regra de composio. Nessa operao, o sujeito comparece implicado e suposto. E comparece porque o elemento de que se trata o significante. Portanto, a estrutura uma regra de composio do significante. na composio entre significantes, na regra de composio que constitui a cadeia significante, portanto na regra de composio que remete SI a S2 (significante 1 ao significante 2, postos sucessivamente na cadeia significante) que se define o que prprio linguagem, que se define o tipo de ligao que condio de possibilidade da linguagem. na operao dessa ligao, e como efeito dela, que o sujeito aparece. .. da a afirmao de que o sujeito efeito da linguagem. Na operao da cadeia o sujeito comparece e tambm o objeto. O objeto justamente o resto, o que de SI no se liga a S2... como na forma do valor de Marx, que veremos adiante, a mais-valia no representada no equivalente... O objeto, nomeado por Lacan como objeto a, marca a coisa perdida na operao do significante. O objeto serve para assinalar esta perda, serve para dar notcias
61 DELEUZE, Glles. Como reconhecer o estruturalismo. In: Histria da Filosofia: o sculo XX. Org: Franois Chatelet. Lisboa: D. Quixote, 1995, p.266.
dela... assim como o grito serve para dar notcia de um mal-estar, efeito de um excesso de quantidade. Podemos nos deter na definio de estrutura segundo a qual ela uma regra de composio. Isso quer dizer que, se os elementos em cena ou, quando os elementos em cena, no nosso caso, SI, S2, sujeito e objeto a, ocupam determinados espaos, ento alguma coisa se produz. Essa alguma coisa que se produz um efeito, justamente um efeito de estrutura. Esse efeito, o efeito de estrutura, funciona como causa, o que subverte a ordem de toda cronologia fazendo do tempo descontinuidade. A "causa" se d quando determinadas relaes espaciais se formam entre os elementos, ou seja, quando se estabelece certa composio segundo uma "regra de composio". O efeito de estrutura da decorrente supe uma operao metafrica, mas no se confunde com ela, com a operao de produzir a metfora. Assim que esse efeito aponta para alm da metfora. Por que "alm"? Porque incorpora, na operao de metaforizao, que no deixa de ser uma traduo, os silncios... os vazios... aquilo que resiste a ser traduzido, uma espcie de resto que escapa ao significante... uma letra despencada da palavra, um resto de fonema que no chega a se incorporar a nenhuma frase. Assim que s h estrutura do que de linguagem, e o que da ordem da linguagem da ordem do significante. Define-se, a partir daqui, o simblico. Definir o simblico implica demarcar o que lhe faz limite, o real. Demarcar o real e o simblico traz cena o imaginrio como o que d consistncia, o que aparece como extenso corporal, como face corprea da operao da estrutura. A estrutura um modo de articulao dessas trs dimenses, real, simblica e imaginria na produo do lao social, assim como o sintoma um modo de articulao do real, simblico e imaginrio na produo de um certo modo de enlace. O sintoma um modo de enlace. O sintoma um modo de lao social. Podemos, ento,
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estabelecer um enlace entre o modo de produo do sintoma com o modo de produo da mais-valia. Seria essa uma possibilidade de interpretao da frase de Lacan segundo a qual foi Marx, e no Freud, o inventor do sintoma. Podemos, j, insinuar que tanto a mercadoria quanto o sonho ou o sintoma, ou qualquer outra formao do inconsciente, obedecem mesma regra de composio escrita na forma do valor ou na forma do sonho.62 Tanto Freud, no mtodo que prope para a interpretao dos sonhos, quanto Marx, quando faz sua leitura da teoria do valor, apontam para a estrutura e no para o fascnio do contedo manifesto do sonho ou do fetichismo da mercadoria. H, em ambas as formulaes, alguma coisa da ordem de uma alienao constitutiva: a censura onrica inultrapassvel e o fetichismo inerente forma mercadoria. Em certo sentido, essa formulao, formulao segundo a qual o fetichismo inerente prpria forma mercadoria, contraria a tese to apregoada do fim da alienao pela revoluo comunista. O capital uma estrutura, logo, o capital uma estrutura que engendra (ou porque engendra) determinado lao social, porque engendra uma relao social. Relao social que estabelecida em um processo social de produo, em um modo de produo; produo de qu? Do prprio lao social. Este lao um modo de articular o sujeito ao gozo que, sob o modo de produo capitalista, produo de um lao social que assume a forma da mais-valia, ou, como o chamava Lacan, "mais-de-gozar", define a Modernidade como sintoma. A estrutura se escreve na forma do valor. A forma do valor estabelece a estrutura da Modernidade; a condio simblica da produo de mercadoria. Quando falo em "condio simblica", isso no tem nada a ver com qualquer "simbolismo"; condio sim62 Cf. ZIZEK, S. Como Marx inventou o sintoma? In: Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. (org). Um mapa da ideologia.
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blica a traduo, portanto, a instaurao, a inscrio, a captura, no campo da linguagem, de um trabalho real. A Modernidade no Ocidente, se que se pode dizer assim, pois Ocidente no um espao propriamente geogrfico mas histrico, e nesse sentido Ocidente e Modernidade se produzem reciprocamente; ento se pode dizer que a Modernidade ou o Ocidente se confundem com capital, com o modo de produo capitalista."0 capital mesmo seria idntico modernidade e a seu processo de formao, enquanto forma social comum das foras em conflito."63 A Modernidade se constitui como uma rede cujo liame o capital. O capital pressupe a forma do valor que Marx toma da economia poltica clssica e da extrai a forma da mais-valia, essa sim, sua contribuio original. Assim, que o capital pressupe a forma do valor, condio de possibilidade do mercado mundial e da transformao da produo de mercadoria em paradigma universal da existncia humana. Marx formula sua teoria do valor levando s ltimas conseqncias as formulaes de Adam Smith e Ricardo, economistas fundadores da economia poltica clssica. Ricardo estabelece uma relao entre valor e trabalho. Vale lembrar que a economia clssica procurava uma "constante" que lhe permitisse formular o valor como um princpio natural explicativo para a produo da riqueza. Marx escreve em sua teoria do valor, no lugar de uma constante, uma estrutura. Foi essa a virada genial que ele props. De fato, toda a indagao clssica persegue o valor como uma essncia do fenmeno contingente da troca. A 'ordem natural' dos fisiocratas reaparece na anlise de Smith e Ricardo metamorfoseada em 'valor' enquanto essncia da naturalidade da sociedade. O valor se transforma em intelquia, 'como qualquer coisa absolutamente indiferente e exterior prpria mercadoria',
63 KURZ, Robert. Os ltimos combates. Petrpolis: Vozes, 1998, p.22.
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o trabalho aparece como determinao concreta dessa abstrao, ficando reduzido sua dimenso emprica mais imediata de unidades fsicas de trabalho. No foi por acaso que Ricardo, no fim de sua vida buscou de todas as maneiras um padro absoluto de medida do valor: 'uma perfeita unidade de medida'. Com isso no queremos dizer que o problema do 'valor absoluto' no decorresse logicamente da argumentao ricardiana, como seu coroamento (ou impasse?) necessrio, mas sim, que a dificuldade est a, seno no fato de Ricardo ter partido do valor como conceito abstrato. Contrariamente, a investigao marxista parte de uma pergunta muito diferente, e surpreendente que a maioria dos autores no tenha captado sua especificidade. Enquanto - reiteramos o argumento- a indagao clssica parte do conceito abstrato de valor, Marx simplesmente se pergunta em que condies os produtos do trabalho humano assumem a forma do valor. [...] O objeto da investigao no , pois, o valor tal como o imaginavam os espritos chegados metafsica, seno a mercadoria, forma elementar que assumem os produtos do trabalho humano nas sociedades mercantis.64 Desde logo mister lembrar que "elementar" no quer dizer a forma mais simples para seguir mais complexa, o que faria de Marx um pensador cartesiano, coisa que ele absolutamente no . "Elementar", neste caso, quer dizer, o loccus no qual a estrutura se revela. A questo que Marx se prope a elucidar a mesma questo que se colocara a economia clssica ainda no sculo XVII. No sculo das Luzes, o sculo XVIII,65 a Razo buscada como princpio de entendimento em cada domnio do saber, princpio que se traduzia
64 BELLUZO. Valor e capitalismo. So Paulo: Brasiliense, 1980, p.76-77. 65 Cf. Cassirer, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Campinas: Unicamp, 1997.
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sob a forma de leis... A economia buscava desvendar suas leis para tomar assento no teatro das novas cincias. A pergunta pela riqueza, ou melhor, a pergunta pelo lugar de produo da riqueza, era respondida (como, alis, continua sendo at hoje) apontando ao mercado. Adam Smith e Ricardo procuravam formular as leis econmicas que deveriam estar subjacentes selvageria e ao caos aparentes. Que leis regulavam a riqueza que aumentava a olhos vistos, na mesma medida em que aumentava o espetculo da misria, acompanhando a monetarizao da vida e fazendo do dinheiro a medida de todas as coisas? Doravante ser atravs do dinheiro - ou de sua falta - que os homens tidos como "coisas" tero, ou no, valor... o valor se representa no dinheiro. O valor, at ento associado ao prestgio e riqueza entesourvel, passa a ser inteiramente contbilizvel em dinheiro. Marx desloca o valor para outro lugar e altera-lhe o estatuto. Os valores burgueses sero impostos aristocracia e aos trabalhadores que, servos, tornar-se-o livres... livres para vender sua fora de trabalho. No estaro mais presos a juramentos de honra mas s leis do mercado. .. a devem alienar a nica propriedade que lhes cabe, a fora de seus corpos transformada na mercadoria, fora de trabalho. Nesse momento ecoam as palavras de Thomas More, ironicamente atribuindo s ovelhas criadas nos campos expropriados a selvageria dos homens. "Esses animais [as ovelhas] to dceis e to sbrios em qualquer outra parte, so entre vs de tal sorte vorazes e ferozes que devoram mesmo os homens e despovoam os campos, as casas, as aldeias."66 O espetculo da misria dos trabalhadores contrastava e, de certa forma, complementava a abundncia mercantil. Apresentava-se, aos sbios, a necessidade de formular as leis, as constantes repetidas em "ciclos", que pudessem explicar as variaes na riqueza e, se
66 MORE, Thomas. A utopia. In: MORE, Thomas; ROTTERDAM, Erasmo de. A utopia. Elogio da loucura. So Paulo: Nova Cultural, 1988, p.178. (Coleo Os Pensadores).
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possvel, assegurar um saber relativo ao enriquecimento e ao lucro. Tudo parecia se dar no movimento ferico da circulao de quantidades - afinal se trata de economia - constituindo um mercado cada vez mais mundial. Que leis explicariam e justificariam (buscava-se definir uma "natureza" humana) a monetarizao da vida que fazia do dinheiro a mediao, por excelncia, da existncia humana? Um ideal de felicidade se formula a partir da... ideal que devemos ao utilitarismo, cuja articulao mais interessante talvez seja a de Jeremy Bentham. O utilitarismo prope uma tica da felicidade. O critrio da utilidade deve ser medido em funo de proporcionar maior ou menor felicidade. O interesse deve aumentar a soma total dos prazeres e diminuir a dor. A comunidade composta de indivduos que se consideram seus membros; a soma dos interesses individuais se identifica inteiramente com o interesse da coletividade. "Todos os homens esto dispostos a odiar aquilo que constitui a razo de seu sofrimento."67 Marx e Freud esto para alm da felicidade... alguns homens, ao contrrio do que apregoa a burguesia feliz, se apegam razo de seu sofrimento. o que Freud descobre em sua clnica e, por isso, como resposta a isso, inventa a pulso de morte. Marx chega mais-valia para alm do valor. Segue os passos de Ricardo, restabelece o valor como valor-trabalho chegando formulao da mais-valia... trazendo a dimenso do gozo para alm da satisfao e da necessidade. A satisfao sempre parcial e provisria. A pulso no cessa de buscar satisfao. O capitalista jamais est satisfeito, o trabalhador tampouco. Apesar do empenho do capital, o trabalhador no se deixa reduzir ao imprio da "Necessidade". E pela ao poltica que ele recusa este lugar. E toda ao humana uma
67 BENTHAM. Jeremy. Uma introduo aos princpios da moral e da legislao In: BENTHAM. Jeremy; MILL, Jonh Stuart. Uma introduo Pensadores). aos princpios da moral e da legislao. Sistema de lgica dedutiva e indutiva. So Paulo: Nova Cultural, 1989, p.10. (Coleo Os
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ao moral... discutimos isso no primeiro captulo. Por isso no se pode excluir do pensamento de Marx sua dimenso poltica. Para chegar formulao da mais-valia, Marx toma como ponto de partida o valor representado no equivalente e estabelece que o valor se produz no na circulao (embora a se realize) mas na produo. O valor no uma necessidade do mercado mas sua condio de possibilidade. Criava-se uma nova subdiviso nos saberes adscritos Razo: a economia poltica. Procurava-se a determinao da riqueza e os mecanismos capazes de produzi-la. O foco dessa busca era o mercado. Que leis o regiam? Seria a renda da terra o lugar, por excelncia, de produo da riqueza? Seria nas trocas que a encontrariam? Marx faz a virada radical; se o valor valor-trabalho, na esfera da produo que ele criado... como trabalho. "A Mercadoria [nos diz Marx] tem um duplo carter; valor de uso e valor de troca. Quando considerarmos a fora de trabalho como uma mercadoria, esse duplo carter aparecer pleno de conseqncias."68 A troca das mercadorias que se realiza no momento da circulao no deve circulao a efetividade da troca. No se encontra na circulao da mercadoria a possibilidade da troca. Ao contrrio, um trao prprio produo, e no circulao, o responsvel pela troca, pela compra e venda das mercadorias. A troca se torna possvel em virtude da estrutura montada na produo, da qual a circulao apenas um momento. A realizao da troca, o consumo, traz vida o suspirar da morte. o tempo de vida do trabalhador, o gasto de seu corpo, corpo de onde se origina a fora de trabalho, que se transfere s veias das mercadorias sob a forma de capital. Quando a fora de trabalho consumida, enquanto consumida, se est diante do
71 MARX, Karl. O capital, crtica da economia poltica. Livro I: O processo de produo do capital. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1980, p . 1 0 0 1 0 4 .
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instante que durao da morte no consumo da vida... no corpo do trabalhador. Marx deduz, em sua exposio, a forma do valor do fato da mercadoria. Por sua vez, atravs da forma do valor que estabelece a possibilidade de um modo de produo voltado unicamente para a produo de mercadorias. A forma do valor tem uma anterioridade lgica mercadoria, mas ela s "pde" ser deduzida da mercadoria porque esta tinha se tornado universal. Essa anterioridade lgica e no cronolgica nos permite afirmar que, na forma do valor, est escrita a estrutura da Modernidade porque ela demonstra a possibilidade da mercadoria ter um estatuto de universalidade. Na formulao da forma do valor, Marx explica como o mercado mundial possvel. Marx compreende o valor como valor-trabalho. O trabalho a operao de uma fora que incide sobre uma matria qualquer produzindo uma alterao nesta matria. Essa incidncia se constitui como temporalidade. O tempo est implicado no valor-trabalho. E como um efeito temporal que aparece, que se presentifica, a ao da fora de trabalho. A alterao que promove na matria um valor agregado. Podemos dizer, ento, que o trabalho uma operao de transformao sobre uma outra materialidade qualquer que lhe agrega um valor, um quantum de trabalho. O trabalho assume, ento, a funo de capital em virtude dessa propriedade de agregar valor matria sobre a qual incide. Quando Marx fala do tempo de trabalho socialmente necessrio para a produo de uma mercadoria no est simplesmente contando as horas, os dias, os minutos e os segundos... fraes de um tempo cronolgico. Ele est falando de uma abstrao, do trabalhador coletivo, e inscrevendo na operao da forma do valor uma temporalidade que se materializa como trabalho vivo que se transforma em trabalho morto. Assim se define uma estrutura, e h um tempo implicado na operao da estrutura.
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Alm ou para alm do valor, valor articulado ao trabalho e justamente em virtude da propriedade de se escrever como funo temporal, Marx formula o conceito de mais-valia. O valor uma determinao da estrutura de produo e no uma "criao" originada na circulao, na operao de troca. este deslocamento, da circulao produo, que permite a Marx formular o conceito de mais-valia uma vez que a fora de trabalho tenha sido reduzida ao estatuto de mercadoria. O valor no nenhuma coisa econmica crua mas ao contrrio, a forma social total, ou seja, a forma-sujeito e forma de pensamento. Mesmo que se empregue continuamente o prefixo ps nos discursos sobre a ps - modernidade, seja para falar em ps-fordismo, em ps-estruturalismo, ou em termos afins, inconscientemente ainda se pensa nos moldes da forma mercadoria.69 Podemos dizer que a forma do valor, que sustenta a forma mercadoria, se escreve como a estrutura da linguagem na qual um significante remete a outro significante no mesmo modo de articulao entre o valor e o equivalente. Um significante que remete a outro e assim por diante estabelece em diacronia a sincronia da forma. A forma do valor, melhor dizendo, a forma da mais-valia derivada da forma do valor, escrita por Marx, opera do mesmo modo que a operao que remete SI - S2. Seno vejamos. A questo que Marx postula a respeito da produo de riqueza no modo de produo capitalista, ou seja, no capitalismo. A riqueza no capitalismo, podemos adiantar, o resto da operao de representao do valor na figura do equivalente geral, no dinheiro. O ponto de partida para chegar a esta concluso a mercadoria. Marx parte da, do que ele chama "a forma elementar da riqueza", para chegar operao de sua produo.
69 KURZ, Robert. Os ltimos combates. Petrpolis, Vozes, 1998, p.27.
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A riqueza das sociedades onde rege a produo capitalista configura-se em imensa produo de mercadorias, e a mercadoria, isoladamente considerada, a forma elementar dessa riqueza. Por isso, nossa investigao comea com a anlise da mercadoria. A mercadoria antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estmago ou da fantasia.70 Um objeto que satisfaz necessidades do estmago ou da fantasia. .. somente esta afirmao podia absolver o velho filsofo de toda acusao de "economicismo". Nada se poderia acrescentar se falssemos do objeto a que Freud se refere em "Projeto para uma psicologia cientfica". De certa forma, Freud faz a sntese dessa associao entre estmago e fantasia quando aponta o carter alucinatrio da experincia de satisfao proporcionada pelo objeto na instaurao do circuito pulsional. Mas sigamos com Marx, para quem - surpreendentemente, para alguns - o homem no se move apenas pelo estmago. Retomemos a mercadoria... A mercadoria, nos diz Marx, tem um duplo carter, que ele chama de valor. Um carter de utilidade que permite seu consumo, seu valor de uso, e um valor de troca, aquele que aparece no mercado quando a mercadoria pode ser trocada... por dinheiro, quer dizer, pode ser vendida ou comprada. Esse duplo carter chamado de valor de uso e valor de troca tambm aplicar-se- ao capital... o que no espanta, pois uma parte do capital, aquela sob a forma de capital constante, as mquinas e construes fabris, est disponvel no mercado, assim como a fora de trabalho, justamente, como mercadoria. Marx formula a questo que subjaz ao estabelecimento do mercado como lugar de produo de riquezas. Estabelecer o
74 MARX, Karl. O capital: crtica da economia poltica. Livro I: O processo de produo do capital. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1980, p.109.
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mercado como lugar de produo da riqueza implica reconhecer que a riqueza se produz atravs das trocas pelo mecanismo do lucro. A pergunta que Marx faz a seguinte: qual a condio de possibilidade do mercado, quer dizer, por que possvel, ou, como possvel que se possa trocar qualquer coisa por qualquer outra coisa atravs da mediao do dinheiro? Por que possvel vender qualquer coisa ou comprar qualquer coisa desde que se tenha dinheiro? Marx faz uma pergunta a respeito da estrutura: em que bases objetivas, materiais, a troca possvel? A troca de objetos por dinheiro. A troca de uma mercadoria por outra. Marx procura estabelecer uma base material objetiva que no se sustenta nas variaes subjetivas do querer. Assim que a troca supe uma equivalncia entre diferenas, diferenas que no podem ser apagadas sob pena de reduzir os objetos a uma igualdade que inviabiliza a operao das trocas. Quais so as condies das trocas? Em primeiro lugar, diz Marx, a troca supe a existncia de dois objetos diferentes. No se trocam igualdades. A troca supe uma operao na qual a diferena est em jogo. No se trocam 20 m de linho por 20 m de linho; no se trocam 100 reais por 100 reais; mas se pode trocar 100 reais por 20 m de linho. Por qu? Cem reais e 20 m de linho so qualidades completamente diferentes e, no entanto, se podem ser trocadas, porque alguma ordem de equivalncia se estabeleceu entre elas. Troca supe equivalncia entre diferenas, entre qualidades. No caso das mercadorias, a diferena entre qualidades vai supor uma igualdade entre quantidades, e, como interseo entre qualidade e quantidade, no corte entre um e outro, se estabelece a equivalncia. ...quase tormenta... Marx formula uma questo a respeito do fundamento do mercado: em que bases objetivas, materiais, a troca possvel? E
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preciso estabelecer uma base material para que a troca se faa um fenmeno universal. Ele pretende explicar o mecanismo das trocas no como um mecanismo de satisfao das demandas e necessidades humanas. Isso seria explicar a troca pela troca. O mecanismo das trocas, Marx o concebe no como circulao pura e simples mas como um momento da produo. A circulao um momento da produo. A possibilidade da troca atravs da mediao do dinheiro dada por um fator presente na produo, um fator que a se localiza: o tempo de trabalho socialmente necessrio produo das mercadorias. Depende portanto do modo como a produo se organiza, do modo como a fora de trabalho utilizada, ou, pelo menos, do fato da fora de trabalho ser utilizada como mercadoria a ser consumida no processo de trabalho. Para responder a esta pergunta preciso equacionar a funo do dinheiro. Marx parte da troca mais simples: uma mercadoria se troca por outra mercadoria. So diferentes (seno no haveria troca) mas h uma equivalncia que permite estabelecer que 20 m de linho possam ser trocados por um casaco. Deve haver alguma coisa comum a 20 m de linho e um casaco que permita a troca de um pelo outro sem que os proprietrios do linho e do casaco se sintam lesados. Essa "coisa em comum" requer uma objetividade para alm da vontade ou do desejo de um proprietrio ter um casaco ou 20 m de linho. O que pode haver de comum entre 20 m de linho e um casaco que permita igual-los, troc-los? O que h de comum entre eles? Marx responde: ambos so produto de trabalho humano. Marx parte da mercadoria, do objeto que se pode adquirir no mercado mediante troca ou pagamento - que uma espcie de troca. Troca-se A por B . A uma qualidade e B outra. Falar em qualidade nos coloca no plano do valor de uso das mercadorias. Lembremos que Marx aponta o duplo carter da mercadoria: seu valor de uso e seu valor de troca. O valor de uso se realiza no consumo e seu valor de troca, no mercado. O valor de uso se refere materialidade
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intrnseca ao objeto, quer dizer, sua qualidade. Conta a, na sua produo, o trabalho til para produzi-lo. Assim que o trabalho de um tecelo diferente do trabalho de um ferreiro, e essa diferena estabelecida pela diferena dos materiais trabalhados na produo do tecido ou de uma pea de ferro. Estamos no terreno da qualidade portanto no terreno da pura diferena. No entanto, o mercado assegura que se pode trocar qualquer coisa por qualquer outra coisa. A nfase recai sobre "outra". H que se estabelecer uma igualdade que assegure a diferena. Retornamos ao terreno da equivalncia. Ora, se os trabalhos diferem na execuo de objetos que se tornam mercadorias, resta, em comum, aos diferentes trabalhos, justamente o fato de serem trabalho. Em qualquer caso que haja trabalho h uma fora que incide sobre a matria e lhe provoca uma alterao, no importa qual. Os instrumentos utilizados por essa fora, a fora de trabalho, variam conforme o desenvolvimento das foras produtivas, as tcnicas utilizadas e os instrumentos de trabalho. Marx deixa tudo isso de lado e toma o aspecto que se define como pura quantidade da qual se abstrai toda qualidade, portanto toda especificidade do trabalho til. E o que Marx chamou de "trabalho humano abstrato". E o trabalho humano abstrato que permanece como elemento comum a todas as mercadorias, logo, o trabalho humano abstrato que permite a equivalncia quando instaura, no seio da qualidade, a quantidade traduzida em medida temporal. E o tempo de trabalho socialmente necessrio produo das mercadorias que permitir sua troca. Todas as mercadorias produzidas em determinado intervalo de tempo, por exemplo, uma hora, so equivalentes, isto , tm o mesmo valor. Essa a base sobre a qual se estabelece o preo. Troca-se A por B. A uma qualidade e B outra qualidade. Estamos no plano do valor de uso de A e do valor de uso de B. Trata-se de uma operao entre qualidades que, por serem diferentes, podem ser trocadas, e, se podem ser trocadas, porque
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algum tipo de equivalncia, de trao comum h entre elas. Ento, entre diferenas pode-se estabelecer algum tipo de igualdade, ou, em uma igualdade de um certo tipo: uma equivalncia. Essa equivalncia deriva no da possibilidade de igualar diferenas mas de reconhecer a diferena por meio de uma igualdade, a equivalncia. Essa operao vai obrigar a que se derive, seno da qualidade, quer dizer, do valor de uso da mercadoria, da quantidade, a equivalncia. Quando define a mercadoria a partir da atribuio de um duplo carter, valor de uso e valor de troca, Marx estabelece uma articulao entre quantidade e qualidade. Assim, se o valor de uso a marca da diferena, uma equivalncia s pode derivar do valor de troca. A equivalncia a condio de possibilidade da troca, o suporte da diferena e a garantia de sua permanncia; a garantia de que o objeto no se apague como diferena. A equivalncia a condio da diferena que d sentido troca, circulao de objetos, objetos materiais que satisfazem necessidades do estmago ou da fantasia. Graas equivalncia, objetos diferentes entre si podem ser intercambiveis. A pergunta de fundo : como o mercado tornou-se universal? Como isso foi () possvel? O mercado tornou-se o esteio da organizao social moderna. suspiro que receio e tentao anseio... quero no O mercado - arena onde se encontram os interesses privados... o mercado substituindo a Agora - arena onde se discutia o interesse pblico na conduo da plis grega. O mercado como lcus privilegiado de satisfao, universo no qual as escolhas tomam forma... mas escolha de qu? Do que comprar ou de a quem vender. .. esse seu horizonte. Todos so proprietrios pois no mundo tudo se torna propriedade... tudo se torna mercadoria. Mesmo aos que nada tm resta o prprio corpo de onde podem extrair energia
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e vend-la como fora de trabalho, uma mercadoria cujo valor de uso se consome na produo de mais valor. O trabalhador precisa de dinheiro para comprar os gneros de primeira necessidade que o mantm vivo. no mercado que ele pode encontrar o dinheiro necessrio a suas compras, mas para isso precisa vender alguma coisa... o que lhe resta? A vida que o corpo carrega. Assim que o mercado se tornou a condio universal da existncia humana. O mercado, no entanto, no floresce por gerao espontnea. Ainda que haja certa tendncia a consider-lo como Deus, o mercado no causa de si mesmo. So as transformaes da estrutura produtiva que o colocam no lugar que ocupa. O trabalhador no tem como sobreviver se no adquirir o necessrio sua subsistncia atravs da mediao do dinheiro. O dinheiro, a funo que exerce o que permite o carter universal do mercado. Mas como se chegou a isso? essa funo que Marx desmistifica inteiramente. O dinheiro torna-se o equivalente geral do valor de qualquer mercadoria. O dinheiro faz a mediao entre as trocas. Como conseguir o dinheiro necessrio troca? Somente atravs de outra troca, pois o dinheiro no produzido enquanto tal, ele apenas o suporte material de uma funo. O dinheiro oferece seu corpo para materializar o valor. Assim que preciso vender alguma coisa para conseguir dinheiro para comprar outra. Cumpre-se, assim, a mais simples frmula da circulao de mercadorias: mercadoria-dinheiro-mercadoria; como escreve Marx, M-D-M. Eis-nos de volta origem, acumulao primitiva do capital, como o tempo no qual se produziu a expropriao do trabalhador, condio sine qua non para o mercado se tornar universal. Aqui os homens se dividem; de um lado, os detentores do capital, de outro, os expropriados detentores da fora de trabalho. So esses que oferecem (ou vendem) o sangue e a carne ao capital. Ao traba-
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lhador restava o prprio corpo, que ele alugava por um perodo de tempo determinado ao capital. O trabalhador fazia da energia do seu corpo uma mercadoria. no peito uma espcie de nada bate no ritmo certo do relgio do ponto - nada mecanicamente anunciando o repique do tempo... morte Por ser uma mercadoria, segundo a definio do prprio Marx, a fora de trabalho deve ter um valor de uso e um valor de troca. Marx resolve essa questo, do gasto do corpo por um certo perodo de tempo alienado ao capitalista, chamando esse gasto de fora de trabalho. Assim que a fora de trabalho a nica mercadoria de que dispe o trabalhador para trocar no mercado. Essa mercadoria, a fora de trabalho, uma novidade do capital; uma inveno inteiramente sua. E a vida contabilizada em valor... o custo da morte prestao. "la vida no vale nada" Marx chama de "fora de trabalho" a mercadoria que resta ao trabalhador para vender e assim sobreviver. Essa mercadoria, repetimos, se produz somente no capitalismo. At que fosse necessrio sobreviver atravs do mercado nenhuma parte do corpo do trabalhador era, desse modo, alienada. O trabalho servil ou escravo alienava o corpo ou o produto do trabalho sob a forma de parte da produo. A escravido da Antigidade no guarda nenhuma relao com aquela ressuscitada na Modernidade, na qual o prprio escravo era uma mercadoria. At que fosse um imperativo sobreviver atravs do mercado, no se alienava o tempo da vida em mercadoria. Marx escreve a estrutura que sustenta e possibilita o carter (ou realidade) universal do mercado. O trabalho opera a uma funo essencial. Prestemos ateno estrutura e no nos deixemos fascinar
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pela fenomenologia das "aparncias". Escapemos ao fetiche que o dinheiro parece promover... o fetichismo da mercadoria que se d em um enredamento imaginrio que vela a articulao simblica e desconsidera o real da produo sustentada como um trabalho, o trabalho do significante, o trabalho como valor. Essa construo, em termos marxistas, posta como articulao entre o valor e o preo, valor que trabalho materializado em um valor de uso... lembremos que a mercadoria tem um duplo carter, que Marx chama de valor de uso e de valor de troca, sendo o valor de uso a qualidade do objeto que se realiza no consumo e no na troca. Escapemos da rede imaginria do preo articulado lei da oferta e da procura que, para viger, supe que o mercado j esteja constitudo. Mas o que que o permite? Qual sua condio estrutural? Marx comea por distinguir valor e preo, o que nos permite apontar para a distino entre a instncia simblica da estrutura (a forma do valor) e sua dimenso imaginria (o preo). [...] a forma dinheiro apenas o reflexo que adere a uma nica mercadoria [reflexo] das relaes existentes entre todas as mercadorias. [...] a forma dinheiro de uma coisa exterior prpria coisa, sendo pura forma de se manifestar relaes humanas atrs dela ocultas. [...] O dinheiro no uma funo arbitrria. [...] o enigma do fetiche dinheiro , assim, nada mais do que o enigma do fetiche da mercadoria em forma patente e deslumbrante.71 E finalmente,
71 MARX, Karl. O capital, crtica da economia poltica. Livro I: O processo de produo do capital. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1980, p.100-104.
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Como forma do valor, o preo ou a forma dinheiro das mercadorias se distingue da sua forma corprea, real e tangvel. O preo uma forma puramente ideal ou mental. O valor do ferro, do linho, do trigo,72 etc. existe nessas coisas, embora invisvel; representado por meio de equiparao delas ao ouro, da relao delas com o ouro, relao que s existe, por assim dizer, nas suas cabeas. O responsvel pela mercadoria tem, por isso, de lhe emprestar a lngua ou de pr-lhe uma etiqueta, anunciando seu preo ao mundo exterior.73 Embora apenas o dinheiro idealizado sirva para medir o valor, depende o preo inteiramente da substncia real do dinheiro. O valor, ou seja, a quantidade de trabalho humano contido, por exemplo, numa tonelada de ferro, expresso numa quantidade imaginria da mercadoria ouro, que encerra quantidade igual de trabalho. Conforme seja a medida do valor o ouro, a prata ou o cobre, o valor da tonelada de ferro expresso por preos totalmente diversos, ou representado por quantidades inteiramente diversas de ouro, prata ou cobre. "Os valores das mercadorias transformaram-se, assim, em diferentes quantidades imaginrias de ouro, portanto, em magnitudes de ouro, em grandezas homogneas, apesar da imensa variedade de suas formas corpreas."74 O dinheiro entra na forma do valor no lugar de equivalente geral. O que isso? Voltemos forma do valor entendida como estrutura simblica. Digamos simplesmente, a forma do valor se escreve: x de A = y de B. O valor da mercadoria A representado pelo equivalente (uma mercadoria qualquer) B, que oferece seu corpo para representar o valor de um outro. Trata-se de uma relao assimtrica na qual apenas o valor de A se expressa em B. No
72 Esses so exemplos recorrentes nos primeiros captulos de O capital. 73 Ibid., p.107. 74 MARX, Karl. O capital: crtica da economia poltica. Livro I: O processo de produo do capital. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1980, p.109.
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importa a qualidade (o valor de uso) de A ou de B, mas a equivalncia entre quantidades. O que permite a equivalncia? x de A = y de B se traduz por: x o tempo levado para produzir A, que igual a y, ou seja, o tempo necessrio para produzir B. Ento h uma equivalncia de tempos, tempo que se faz, que opera, como trabalho. O trabalho uma funo temporal. cuerpo sucumbido ajeno puesto al tiempo pele : superfcie do querer Na frmula de Marx, qualquer mercadoria, porque produto do trabalho humano, pode entrar no lugar de B, isto , pode oferecer-se para representar o valor de A em seu corpo, corpo que, por suportar esta funo, funo de representao, um corpo simblico. Historicamente alguns metais preciosos foram adquirindo o monoplio dessa funo, a funo de equivalente, at chegar ao dinheiro. a forma do valor que se institui como fundamento do mercado, ou seja, da possibilidade de se comprar ou se vender qualquer coisa. O regime de trocas repousa sobre essa equivalncia dos trabalhos que o dinheiro expressa. As diferenas no sero mais irredutveis umas s outras pois repousam sobre uma base de equivalncia quantitativa. Assim, se uma diferena, por ser diferena, era irredutvel a outra, Marx introduz a um terceiro, o trabalho, que, se no elimina a diferena, instaura ou permite que se instaure uma equivalncia. Assim que Marx introduz o terceiro termo da estrutura, o operador responsvel pela troca, o termo que sustenta a condio de possibilidade da troca, o trabalho. Tem-se, ento, o valor, o equivalente e o trabalho na forma do valor x de A = y de B. O trabalho marcado na frmula pelo sinal =. Na troca se intercambiam qualidades sobre uma relao estabelecida entre quantidades, o que significa apontar o valor de troca
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como uma dimenso da quantidade. Agora, seguindo ainda com Marx, apontamos um terceiro termo como operador da equivalncia entre qualidades distintas. Supomos, ento, uma articulao entre quantidade, qualidade e trabalho. Essa articulao uma inscrio da estrutura. Pode-se trocar uma mercadoria por outra atravs da mediao do dinheiro porque para alm ou aqum de toda diferena qualitativa h um substrato comum ao mercado: o simples e prosaico fato de que toda e qualquer mercadoria produto do trabalho humano. Eis a o segredo do valor de troca: um quantum, uma quantidade de trabalho humano presente, objetivado (a modificao efetivada pela incidncia da fora de trabalho sobre o material), materializado como valor no objeto que, por isso, por essa incidncia, se torna mercadoria. Assim, o estatuto da mercadoria no est no fato fenomenolgico de que vendida e comprada, mas no fato de ter valor incorporado, ou seja, no fato de ser produto do trabalho humano abstrato. A equivalncia no se d entre coisas, entre valores de uso, pois seria uma equivalncia entre qualidades, o que implicaria na reduo de uma qualidade a outra. A equivalncia se d entre valores, entre quantidades de trabalho humano abstrato incorporadas, medidas como tempo, aos objetos que assim se tornam mercadorias. Abstrai-se o trabalho especfico, quer dizer, seu carter til, qualitativo, que produz cada mercadoria em sua consistncia de valor de uso, e se considera o trabalho como resduo, como resto de todos os trabalhos particulares, denominados por Marx de "trabalhos teis", trabalhos que so reconhecidos como qualidades, como trabalhos particulares na produo de valores de uso. O trabalho til de um tecelo diferente do trabalho til, especfico, de um carpinteiro. No entanto, ambos tm um trao comum; subjacente especificidade de cada um, resta (trata-se mesmo de um resto) o fato de que h um dispndio de energia no
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emprego da fora de trabalho seja l de que modo esse emprego se d. este resto que nos interessa tomar como causa, como condio de possibilidade das trocas. este resto que Marx toma como "trabalho humano abstrato" ou "trabalho socialmente necessrio". Assim que o trabalho um resto, o resto de uma operao do qual foi retirada toda qualidade... Se dissemos que o trabalho trabalho do significante, o trabalho simblico. Mas h a alguma "coisa" que escapa operao de equivalncia que da ordem do real lacaniano. Ele est a como o resto, o puro gasto que corri o corpo do trabalhador, gasto que no encontra equivalncia no dinheiro, no pagamento dado vida como parcela da morte. Por isso dizemos que, no trabalho, h alguma coisa da ordem do real lacaniano que opera, que permite a representao do valor no equivalente, mas no representvel. O trabalho a condio da operao de representao. Marx apresenta o trabalho como pura operao de uma quantidade, como quantum, como gasto, assim como Freud. O trabalho do sonho a prpria operao do sonho, a articulao entre representaes que permitem ao desejo inconsciente se realizar atravessando a censura onrica. O quantum desprendido por um trabalho que um puro dispndio de energia; sabe-se de sua existncia pela operao que possibilita, qual seja, o sonho, o sintoma ou o capital. Assim que o trabalho que opera na produo do valor o resduo de todos os trabalhos teis, a funo mesma da estrutura. murmrio... o que resta A formulao do trabalho articulado ao valor, no apenas uma abstrao terica, uma necessidade lgica da construo filosfica proposta por Marx, mas uma tendncia histrica da organizao da produo no capitalismo. Na forma da produo, na instncia da produo mesma, os trabalhos particulares, com o desenvolvimento
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da tecnologia e da crescente mecanizao da produo, tendem a se homogeneizar. O capital conduz ao nivelamento dos trabalhos teis apagando suas diferenas e especificidades, o capital o conduz da qualidade quantidade... existncia como puro quantum, pura operao de despender energia. Da se estabelece uma relao entre quantidades que suporte da equivalncia entre a qualidade A e a qualidade B. O que se escreve na forma do valor de Marx que uma determinada quantidade de A, x de A, eqivale a certa quantidade de B, y de B. Isto quer dizer que h uma medida de tempo implicada no trabalho, ou que o trabalho uma funo temporal, que o trabalho sustenta a temporalidade da estrutura. E essencial que a estrutura seja compreendida como uma operao temporal, portanto como sincronia e diacronia. No nos esqueamos de que uma quantidade de tempo, quer dizer, uma medida temporal, o que o trabalhador aliena de si quando vende, ou aluga, sua fora de trabalho ao capital. Pois bem, h uma varivel temporal, essencial, implicada nesse modo de alienao. Um tempo que no contado, ou contvel, empiricamente, mas que tem uma funo constitutiva na forma do valor e posteriormente na conceituao da mais-valia. que espcie de sinal se espera, do farol na madrugada... quando naufraga a aurora calcinada...? Assim, dizer que x de A eqivale a y de B, quer dizer que uma quantidade de trabalho "x" presente na produo de "A" est presente na produo de "B". Em uma certa medida de tempo, portanto em um tempo finito, cortado, se produz certa quantidade de "A" e, no mesmo perodo de tempo, produziu-se certa quantidade de "B"; essas quantidades produzidas no mesmo intervalo de tempo so
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equivalentes. Assim, a equivalncia se estabelece entre puras quantidades de trabalho, de tempo de trabalho, entendido como resduo de todos os trabalhos concretos, particulares. Se x de A vale y de B, isso quer dizer que "B" representa o valor de "A" e no que h uma relao biunvoca entre os dois. "A" no representa o valor de "B" enquanto "B" representa o valor de "A" porque "A" e "B" no esto a, na forma do valor, como objetos, mas como inscrio de lugares. "A" marca o lugar do valor que vai ser representado em outro lugar, o lugar de equivalente que se inscreve em "B". Aqui se escreve a estrutura. A estrutura se estabelece quando se indica o valor de "A" representado em "B", que, por ocupar a funo de representar o valor de outra mercadoria que no ele prprio, institudo como equivalente, isto , ocupa na expresso do valor o lugar do equivalente. A equivalncia que o dinheiro presentifica se instaura como uma operao de representao, quer dizer, de traduo; a traduo do valor da mercadoria que se quer comprar ou vender. A traduo do trabalho em objeto - objeto monumento. A representao entendida como traduo no se produz a partir das referncias da representao clssica. Na expresso, x de A = y de B, s h um valor representado, s h um valor em questo, o valor de "A". "B" se oferece como materialidade, como corpo material para suportar, servir de suporte ao valor de "A". essa a relao simblica, "B" sustenta, ou se oferece como o lugar de inscrio de "A". Sem o lugar de "B", "A" no se inscreve. O que isto quer dizer? Quer dizer que o valor de uma mercadoria, de "A", no pode se representar ou se inscrever em si mesmo; por isso podemos dizer que a forma do valor uma estrutura, um modo de enlaar "A" e "B". Esse modo de enlace no qual o valor de um termo se representa em outro termo, chamado por Marx de equivalente, define uma estrutura, ou, como dir Lacan, se constitui como um discurso. Discurso, na definio de Lacan, o que faz
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lao, o que instaura lugares ocupados por termos de uma , cj que se estabelece como ligao. O valor no uma consistncia corporal, precisa do corpo de um outro, para se inscrever, portanto para se realizar. O valor, ou, para ser mais precisa, a forma do valor estabelece, necessariamente, uma relao que define a relao social no capitalismo. O valor estabelece a relao simblica, o corte na unidade homognea imaginria do preo. O preo se estabelece ocultando a estrutura do valor, como se ele, o preo, se formasse por si; o que Marx vai chamar de fetichismo da mercadoria. No fetichismo da mercadoria o trabalho fica apagado no objeto do trabalho, na mercadoria, que parece ter a caracterstica inerente vida, em uma espcie de gerao espontnea. A relao simblica supe um outro e um corte. O valor no pode se inscrever em si mesmo. No faz nenhum sentido dizer que o valor de "A" "A" ou que x de A eqivale a x de A. Se o valor no se inscreve em si mesmo, supe um outro, um outro lugar, onde possa se inscrever, supe um equivalente no porque esse equivalente possusse uma qualidade intrnseca, ouro, por exemplo, mas porque ele ocupa um lugar, o lugar no qual se inscreve o valor de um outro, o valor de "A". O valor no se representa a si mesmo, ele implica e supe outra materialidade, materialidade no da letra mas do significante, isso porque da estrutura do significante remeter sempre a um outro. Assim que quando se fala em significante se est falando de cadeia significante. E uma determinao estrutural que o significante remeta sempre a outro significante ao qual transfere valor. Valor que Marx vai definir como trabalho incorporado, ou melhor, como uma quantidade de valor incorporado; e Freud como transferncia, ou deslocamento de quantidade de uma representao inconsciente para outra. Aquele que suporta a inscrio do valor o equivalente, ou melhor, o elemento que ocupa o lugar de equivalente. Este o elemento que apresenta e revela a operao de equivalncia. Assim
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que o equivalente no um ser, mas um lugar, um lugar na estrutura, lugar de inscrio do valor de outra mercadoria. A mercadoria que "encarna" o lugar do equivalente, encarna porque oferece seu corpo para expressar o valor de outra mercadoria, por isso, por "encarnar" o valor de um outro, o equivalente, o dinheiro, no "tem" valor. O valor est do outro lado da expresso. Est l... mas se inscreve c. Ento, a rigor, no est nem l nem c, mas na operao mesma de sua inscrio. Descrevemos, na forma do valor, a operao do significante, a operao do simblico. Nessa operao, um elemento, digamos, uma mercadoria qualquer representa o valor de outra, at que, historicamente, uma mercadoria especfica tenha como valor de uso suportar o valor de qualquer uma, quer dizer, oferecer sua materialidade como suporte ao trabalho que puro resduo dos trabalhos teis, puro dispndio de energia. Esta mercadoria que sustenta o monoplio da representao do valor, da representao do trabalho como puro dispndio de energia, o chamado equivalente geral, o dinheiro. Ele est marcado como testemunho do valor, que, em outros termos, significa testemunho do carter social do processo de trabalho. Isso porque, no demais repetir, no se pode definir o valor em si, mas somente atravs do corpo de um outro, o equivalente. Assim que o valor uma relao social. No h valor absoluto nem inerente ao objeto a menos que se trate de valor de uso, e assim mesmo o valor de uso, a materialidade do objeto, da mercadoria, somente se realiza no consumo. O valor trabalho humano abstrato e se realiza na circulao das trocas; a sua existncia se patenteia, embora no seja a, na circulao, que se produza. H o trabalho, a operao que puro dispndio de energia, resduo dos trabalhos teis, que permite a lei de circulao das mercadorias, ou seja, sua representao no equivalente. Assim que o valor de uma mercadoria se realiza no valor de uso de outra. "Por meio da relao de valor, forma natural da mercadoria B torna-se
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a forma do valor da mercadoria A, ou o corpo da mercadoria B transforma-se no espelho do valor da mercadoria A".75 Marx acrescenta em nota uma observao que antecipa em cem anos as formulaes lacanianas relativas alienao estrutural na qual se constitui o eu.76 Diz Marx: O que sucede mercadoria ocorre de certo modo com o ser humano. O homem se v e se reconhece primeiro em seu semelhante a no ser que j venha ao mundo com um espelho na mo ou como ofilsofofichtianopara quem basta o 'eu sou eu'. Atravs da relao com o homem Paulo, na condio de seu semelhante, toma o homem Pedro conscincia de si mesmo como homem. Passa ento a considerar Paulo - com pele, cabelos, em sua materialidade paulina - a forma em que se manifesta o gnero homem.77 Marx formula a como se d o lao com o outro, com o semelhante, derivando em uma relao de equivalncia homloga forma do valor. Define-se, assim, uma estrutura, um modo de articulao, de ligao, que supe o campo da linguagem. como um relmpago a silhueta escura da montanha frao de azul no peito a chamuscar Uma estrutura um modo de ligao. A estrutura que suporta a Modernidade e que aponta os limites nos quais se d a experincia de alteridade, est assente na identificao. A identificao o
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75 MARX, Karl. O capital: crtica da economia poltica. Livro I: O processo de produo do capital. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1980, p.60. 76 Cf. LACAN, Jacques. Le Stade du Miroir comme formateur de la fonction de Je. In: crits. Paris: ditions de Seuil, 1966, p.93 (traduo nossa). 77 MARX, op.cit. p.61. .
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primeiro tempo da operao de constituio do lao social.78 A se definem os marcos dentro dos quais pode se delimitar o lugar do outro. O capital define na forma do valor os limites e a funo do outro como equivalente. este o lugar do outro nas relaes sociais pautadas no capitalismo. O lugar do outro o lugar do equivalente, daquele em cujo corpo se inscreve o valor de um outro, valor que requer outra superfcie de inscrio que no a da prpria mercadoria cujo valor est em questo. Assim se estabelece a estrutura do lao social na Modernidade. A estrutura (que nesse sentido se confunde com o modo como o trabalho se faz) amarra os termos dessa ligao, o valor e o equivalente, articulados pelo trabalho, que permanece como o significante recalcado da estrutura.79 A construo toda est baseada na impossibilidade do valor ' representar a si mesmo, o que eqivale a dizer que a construo, a estrutura, repousa na impossibilidade do significante de representar a si mesmo; por isso se afirma que falar em estrutura , necessariamente, se remeter linguagem. Se o valor representasse a si mesmo (conforme acredita o capital quando alardeia um valor intrnseco mercadoria baseado em razes subjetivas ou naturais articuladas pela famosa lei da oferta e da procura), estaria impedida a circulao, a experincia do mercado mundial, a constituio da dimenso simblica nos moldes que experimentamos, estaria impedido o mercado das trocas simblicas. Se o valor pudesse representar a si mesmo, isso seria equivalente suspenso da interdio do incesto. A rede de demandas que, justamente, essa interdio produz, no se produziria. O valor no uma qualidade, um trao imanente ao objeto, mas uma quantidade de trabalho transferido do corpo do trabalhador
78 Cf. FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e anlise do Eu. Rio de Janeiro: Imago, 1993. 79 Cf. LACAN, Jacques. Le Sminaire, livre 5: Ias formations du inconscient. Paris: ditions de Seuil, 1977.
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materialidade do objeto. Assim que o valor uma relao social. Quer dizer que, na forma do valor, se escreve um modo pelo qual os homens esto vinculados uns aos outros, o modo como um se liga a outro ou, at, como se liga a si mesmo dado que o surgimento do sujeito supe o campo do outro. Articula-se, no campo do Outro (agora com letra maiscula pois se trata do Outro entendido como linguagem), a operao estrutural da alienao de si na qual "si" outro. Estamos falando da estrutura da identificao tal como Freud a formula em "Psicologia das massas e anlise do eu". Freud diz que o primeiro lao formado pela criatura humana uma identificao ao pai. Desse pai, toma a criatura um trao que posto no lugar de ideal do eu. Em torno dessa operao se constitui o que h de "si" na criatura humana. O "em si" vem do Outro. O lugar do outro o lugar do equivalente. A alteridade se produz como efeito de separao entre o corpo e a representao. O valor, ou melhor, a representao do valor, aparece em outro corpo, o corpo do equivalente; por isso esse corpo chamado de equivalente. Assim que o valor "" em outro. E essa a operao da metfora, o que nos permite dizer que o dinheiro, por ser o equivalente geral, a metfora do trabalho, e seu corpo a consistncia imaginaria do valor. A relao de alteridade se sustenta em um corpo no qual se patenteia a operao de representao do valor de um outro. A representao, aqui, a empregamos no no sentido clssico de signo da coisa, que supe um estatuto de transparncia linguagem, mas sim da representao que se faz na forma de metaforizao. Representao absolutamente determinada no pela qualidade do objeto a ser representado mas pela relao entre quantidades que permite a troca, quer dizer, que permite que se estabelea a equivalncia entre diferenas. A equivalncia o que permite a diferena, a troca entre qualidades diferentes. Esta uma operao homloga operao de metaforizao presidida pelo significante
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no que Lacan chamou, de "economia do significante."80 Quer dizer, a configurao de suas funes essenciais para engendrar o significado: a funo da metfora e da metonmia. A relao de um significante a outro significante engendra, como efeito, uma produo de significante a significado. Lacan costuma escrever esta relao utilizando a barra do algortimo de Saussure. Sobre a barra escreve a relao de um significante a outro significante, S - S; sob a barra escreve a relao de significante a significado, S - s.81 O que ele diz que o significado se produz como efeito da articulao de significante a significante, articulao que se d segundo o modo de produo da metonmia ou da metfora, ou seja, segundo a substituio ou combinao entre significantes. A substituio a articulao, o meio significante, no qual se instaura o ato da metfora. Isso no quer dizer que a substituio seja a metfora. Dizer que a metfora se produz no nvel da substituio, quer dizer que a substituio uma possibilidade de articulao do significante, que a metfora exerce sua funo de criao de significado no lugar onde a substituio pode se produzir, mas so duas coisas diferentes. Assim como a metonmia e a combinao so duas coisas diferentes.82 O meio significante, a articulao que efetiva a metfora e que supe a circulao, portanto, a cadeia significante faz do significante valor - no sentido de que tm o mesmo modo de apario: em cadeia. O equivalente representa o valor da mercadoria que se quer comprar ou vender. A compra e a venda sancionam a forma do
80 LACAN, Jacques. Le Sminaire, livre 5: Ias formations du inconscient. Paris: ditions de Seuil, 1977, p. 30 (traduo nossa). 81 Ibid. p.33. 82 Ibid. p.39.
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valor. A operao possvel graas ao trabalho humano abstrato que o equivalente geral, o dinheiro, encarna como representao. O dinheiro representa o valor, quer dizer, o trabalho humano abstrato enquanto expresso da produo do valor. Representao do trabalho humano abstrato o mesmo que representao do resto de todos os trabalhos teis - aquilo que se pode reter para alm de qualquer qualidade, de qualquer trao particular de trabalho. Quer dizer, o trabalho reduzido ao puro dispndio de energia na produo de uma mercadoria. Porque sobra, puro resto, esse trao de trabalho permite a equivalncia entre todas as mercadorias. sobre a circulao de um resto que repousa a construo psquica e seu efeito: o corpo. Essa homologia sustentaria a afirmao de Lacan segundo a qual Marx, e no Freud, foi o inventor do sintoma. O dinheiro representa o resto de trabalho humano abstrados os trabalhos teis particulares, uma vez que em seu corpo que se inscreve o valor de qualquer outra mercadoria. Por isso dizemos que a condio da troca universal de qualquer coisa por outra o trabalho humano abstrato que o dinheiro representa. O dinheiro se oferece, oferece seu valor de uso, sua qualidade de papel ou de metal, para que a se inscreva o valor, resduo do trabalho substancializado no valor de uso das mercadorias. Assim que na forma do valor Marx escreve uma estrutura, um discurso, um modo de ligao, quando estabelece o lugar do valor e o lugar do equivalente sem importar que corpos ocupam esses lugares: x de A = y de B. A estrutura uma espcie de articulao que enlaa elementos de um certo modo, um discurso uma vez que discurso o que faz lao, ou seja, o que faz uma ligao de um certo tipo. Enfin de compte, il n'y a que a, le lien social. Je le designe du terme de discoursparce quil n'y apas d'autre moyen de le designer ds qu'on sest aperu que le lien social ne s' instaure que
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de sancrer dans la faon dorit le langage se situe et s'imprime, se situe sur ce qui grouille, savoir Vtre parlant. (No final das contas s h isso, o lao social. Eu o designo com o termo de discurso porque no h outro meio de distingui-lo desde que se percebeu que o lao social somente se instaura ao se ancorar no modo pelo qual a linguagem se situa e se imprime, se situa sobre o que murmura indistintamente, a saber, o ser falante).83 Na forma do valor, Marx escreve o discurso da Modernidade, derivando da a estrutura do capital na forma da mais-valia. A maisvalia supe a escrita da forma do valor na qual duas coisas devem ser, "iguais a uma terceira que, por sua vez, delas difere. Cada uma das duas, como valor de troca, redutvel, necessariamente, a essa terceira".84 Aparece a o terceiro termo da estrutura: o trabalho. O trabalho o operador que produz, ou sustenta a possibilidade da ligao, na medida em que permite a equivalncia entre x de A e y de B, uma vez que a substncia-trabalho que as identifica... substncia tem, aqui, uma outra conotao, diferente da filosfica, pois se encontra inteiramente esvaziada de qualquer consistncia. Marx fala em "valor" como trabalho substantivado; ou do trabalho como substncia do valor. Se substncia trabalho, trata-se de um puro operador. A forma do lao social segue a forma do valor. Um homem se liga a outro na medida em que reconhecido por ele. Esse reconhecimento o reconhecimento de um trao seu no outro, de uma marca, uma inscrio de existncia. A forma do lao segue os
83 LACAN, Jacques. Le Sminaire, (traduo nossa). 84 MARX, Karl. O capital: crtica da economia poltica. Livro I: O processo de produo do capital. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1980, p.105. livre 20: Encore. Paris: ditions de Seuil, 1977, p.51
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ditames do fetichismo da mercadoria, forma pela qual o trabalho que produz a equivalncia fica oculto sob a aparncia da mercadoria, do objeto que aparece como autnomo. Trata-se de um mecanismo de alienao parecido com aquele, descrito por Lacan, presente no "Estgio do Espelho". A se define e descreve a operao de constituio do eu a partir de uma imagem que tomada como unificada no espelho. "[...] O estgio do espelho um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficincia para a antecipao."85 Lacan se refere ao beb que se reconhece na imagem do espelho e, partindo da unidade da imagem, a projeta no corpo, um corpo que at ento no se dera a perceber como unificado. Assim se constitui a imagem corporal constitutiva do eu como unidade na imagem. [...] o estgio do espelho um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficincia para a antecipao - e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificao espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaada do corpo at uma forma de sua totalidade que chamaremos ortopdica - e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcar com sua estrutura rgida todo seu desenvolvimento mental.86 Lacan descreve uma operao de fundao atravs de um mecanismo de alienao constitutivo da prpria operao. Qualquer identidade construda supe essa operao constitutivamente alienante. O eu produzido como unidade imaginria o primeiro efeito da produo de um corpo.
85 LACAN, Jacques. "O Estgio do Espelho como formador da funo do eu". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.96-103. 86 Ibid., p.100.
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Basta compreender o estgio do espelho como uma identificao no sentido pleno que a anlise atribui a esse termo, ou seja, a transformao produzida no sujeito quando ele assume uma imagem.87 E continua: A assuno jubilatria de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotncia motora e na dependncia da amamentao que ofilhotedo homem nesse estgio de infans parecer-nos- pois manifestar uma situao exemplar, a matriz simblica em que o eu se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialtica da identificao com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, uma funo de sujeito.88 Por que trazer a esta discusso "o estgio do espelho"? Para dar mais um ponto nesse bordado originado da atribuio, por Lacan a Marx, de inventor do sintoma. Costuramos, agora, pelo vis da alienao. O que Marx chamou de fetichismo da mercadoria, que se pode traduzir como "feitio" da mercadoria, feitio que Marx formula no como um engano mas como uma formao estrutural da prpria forma mercadoria, na qual o trabalho est oculto, recalcado, como se o dinheiro, o equivalente, fosse o valor da mercadoria e no uma inscrio simblica a partir da qual o corpo pode circular. Assim podemos evocar a imagem como exercendo a funo de preo na forma do valor. O efeito do dinheiro retroage sobre o valor como se o lugar de apresentao, ou de inscrio, do valor fosse o suporte material que o carrega, como se o valor se expressasse em si mesmo recompondo de algum modo a ordem do ser, recriando, em uma espcie de ontologia, o Mercado. Fica quase suprimida a
87 Ibid., p.97. 88 Ibid.
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segunda parte da expresso, no s valor mas valor de troca... e troca implica circulao para se realizar. Retornamos, assim, ao significante. Voltemos ao exemplo do espelho. A imagem retroage sobre o corpo "unificando-o", produzindo, como efeito, o eu e o corpo entendido como extenso de um espao homogneo. At a temos uma produo imaginria... todavia h uma instncia simblica que sustenta o recobrimento pela imagem ou, no caso da mercadoria, pelo dinheiro, o recobrimento do valor pelo preo. essa operao que desaparece no corpo imaginrio do dinheiro que responde pelo preo da mercadoria assim como a imagem parece responder pelo corpo. Da chegamos, via Lacan, a Marx, quando este afirma que o preo uma construo imaginria sustentada por um ideal. Atravs da forma do valor, Marx estabelece o trabalho, ou melhor, estabelece um certo modo de organizao do trabalho, como a operao que permite estabelecer o mercado como lugar de encontro e de circulao, no de trabalhos, mas de trabalho, o trabalho humano abstrato, enquanto valor de troca da mercadoria. Os homens se encontram sob a forma de um encontro de mercadorias, incluindo-se a o dinheiro, uma mercadoria que sustenta a funo do equivalente de todas as outras mercadorias como inscrio simblica, em seu corpo, do trabalho humano abstrato. O fetichismo da mercadoria, diz Marx, inerente forma mercadoria e no depende de nenhuma tomada de conscincia para ser abolido... podemos dizer, ento, que da ordem da estrutura. Os homens no esto enfeitiados pelo mercado espera das mars da conscientizao. No por ignorncia que se substitui o sujeito pela mercadoria. Essa forma de alienao constitutiva da prpria operao do modo de produo capitalista. Nesses domnios no vingam as luzes da conscincia fruto de qualquer pedagogia.
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As tentativas - e elas so inmeras - de retomar o marxismo pelo vis da conscincia e de seu correlato, a totalidade, esbarram na prpria forma mercadoria, ou seja, na estrutura... e estrutura no se altera por uma ao voluntria imputada conscincia. O texto de Marx em O capital est para alm da conscincia. Marx constitui um descentramento que no corresponde, inteiramente, ao territrio da conscincia. No entanto, no se pode negar que Marx deduza de sua descoberta, a mais-valia, a possibilidade da grande revoluo, que, segundo Lacan, leva apenas ao que em psicanlise se chama "regresso".89 A mediao do valor ao equivalente. este o tipo de enlace que, por seu lado, enlaa os homens entre si: por isso se pode falar em discurso, o discurso do capitalista, que supe como causa, apagada, a mais-valia. Essa afirmao plena de conseqncias. Assim que no pela pedagogia que se pode subverter o capital, ou o discurso do capitalista. ah deriva que perder-se vontade que deserto mania de no-ser O fetichismo uma determinao estrutural e constitutiva da mercadoria. E porque da ordem da estrutura que Marx diz que o fetichismo inerente forma mercadoria; a sua dimenso imaginria. No h predomnio da produo de mercadorias em uma formao social sem que aparea o fetichismo da mercadoria. O fetichismo da mercadoria se deve produo de mercadoria considerando o trabalho como resto no identificvel no produto final. Os homens sabem que a mercadoria produto do trabalho; sabem... mas ainda assim como se no soubessem.
89 LACAN, Jacques. Radiophonie. In: Scilicet2/3. Paris: ditions de Seuil, s/d, p.76 (traduo nossa).
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O fetichismo da mercadoria, assim como o fetichismo de' que fala Freud, uma espcie de perverso. A perverso um determinado modo de lidar com a castrao, que situa o sujeito como perverso; quer dizer, um sujeito que, ao mesmo tempo, nega e reconhece a castrao. O sujeito que se move nos limites de uma estrutura perversa tem notcias da castrao; sabe que o corpo da me lhe interditado, que no h um ser completo, homem e mulher, ou, nem homem nem mulher, um ser que ele persegue e que o localiza em uma espcie flutuao que o proteja da escolha responsvel pela diferena entre os sexos, que no biolgica mas simblica. O perverso vaga na indeterminao de uma lei que ele, de um s golpe, nega e reconhece. No fetichismo da mercadoria vige este modo de articulao de um limite estrutural, limite de um saber que afirmado como negao. Sabe-se que a mercadoria produto do trabalho; esse trabalho, no entanto, no identificvel em sua qualidade de trabalho til, pois est presente como um puro resto de todos os trabalhos responsveis pela produo do aspecto do valor chamado, no de troca, mas de uso. O trabalho til, identificado na especificidade da produo do valor de uso de cada mercadoria, dimenso na qual se discerne a qualidade do objeto intercambivel, desaparece na efetividade do mercado. O que permanece o trabalho como resduo desses trabalhos teis, o que permanece dando suporte ao mercado o trabalho humano abstrato. O trabalho humano abstrato no visvel pois no se apresenta reconhecvel no objeto/mercadoria; dizemos, ento, que aquilo que dele se sabe so seus efeitos, ou seja, a possibilidade simblica do mercado mundial. Simblica no no sentido imaginrio dos smbolos tomados como signos, mas como estrutura de linguagem, a linguagem das trocas simblicas. O que Marx chama de fetichismo da mercadoria esta ocultao do trabalho. como se a mercadoria tivesse um valor prprio inerente sua materialidade qualitativa e que fosse determinado
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por questes pautadas na lei da oferta e da procura sustentada, ou pelos fatores naturais ou especulativos do m ercado, ou pela necessidade que se expressa tambm no mercado, ou, ainda, por razes subjetivas para comprar este ou aquele produto. Assim, no mercado, aparecem os interesses, e a vida se d no livre jogo das mercadorias, conferindo a soberania absoluta desta entidade que se sustenta no fetichismo. Sabe-se que a mercadoria produto do trabalho mas isso inteiramente esquecido nas anlises sociolgicas e econmicas. como se o valor fosse um a propriedade fsico-qumica do objeto cujo estatuto histrico o de m ercadoria, como se o valor no fosse trabalho substantivado. Seja um anel de diamantes ou um pedao de borracha, o que permite a operao de troca, ou seja, o que efetiva a mercadoria como tal, o que permite que um a velha dama venda as jias da famlia para comer, no o valor intrn seco ao diamante, o seu valor de uso, mas sim o fato de serem as jias, assim como o po, produtos do trabalho. Algum deu, ou melhor, vendeu um a parte de sua vida para produzir o po e o anel de diamantes que permite velha senhora encher a pana, no de diamantes, mas de po. Pode-se estabelecer um a equivalncia entre objetos, podese troc-los, porque so todos objetos produzidos por trabalho humano, o que perm itiu a M arx propor, em sua teoria, um a vari vel nica, um a m edida tem poral para estabelecer o valor, valor entendido como trabalho substancializado, representado por um equivalente. H istoricam ente, o dinheiro assum iu o m onoplio dessa representao; quer dizer, o dinheiro representa o trabalho humano abstrato. O que est presente no fetichismo da mercadoria, presente e velado, a forma do valor. O que a se torna patente no modo da negao o carter do trabalho humano abstrato representado, ou traduzido, metaforizado, em dinheiro. O dinheiro a mercadoria
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que m elhor encarna essa determ inao estrutural: o fetichismo da mercadoria. Abstrai-se, retiram-se, da equao, os valores de uso das mercadorias e se estabelece uma relao de representao possvel em virtude desta propriedade comum a todas elas: o fato de ser produto do trabalho humano. A determinao dada pelo trabalho. A est o terceiro termo da forma do valor, valor de A representado em B , o equivalente. Aparentemente se trata de dois termos, valor e equivalente. Na operao aparece o terceiro termo da estrutura: o trabalho desprovido de qualquer qualidade, o trabalho como quantum. Algo aqui retorna a Freud. O terceiro termo no se escreve como os outros dois, o valor e o equivalente. Essa diferena o que permite a inscrio do valor no equivalente. Dito de outro modo, o trabalho o operador que perm ite a representao do valor no equivalente; o trabalho o operador que instaura a estrutura como operao temporal entre dois lugares, o lugar do valor e o lugar do equivalente; o lugar de SI e o lugar de S2 na formao da cadeia significante. Definir o trabalho como um puro operador implica conceblo como um puro gasto, um diferencial entre quantidades; uma quantidade no incio de um a operao diferente daquela que se encontra quando termina a operao. Essa diferena a quantidade substancializada no objeto como valor. A um lao se produz, o que equivale a dizer que um discurso (ou uma estrutura) se produziu. Um discurso cuja vigncia a durao mesma de um modo de ligao, modo de ligao que se escreve na forma do valor como condio prvia da forma da mais-valia. O lao social se d no modo de re presentao do valor no equivalente - do qual alguma coisa escapa - inscrio de si no outro, o que faz desse si um a espcie de exterioridade lida em outro corpo. O valor lido no corpo de um outro posto no lugar de equivalente. Um objeto ou, se quisermos, um ser, mercadoria A, aparece como representao no corpo de outro, mercadoria B, posta no lugar de equivalente do valor
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de A. No corpo de B se l a inscrio simblica do valor de A. Est em jogo uma operao de representao na qual o outro, um outro corpo, est implicado, oferecendo-se como superficie de inscrio de outro, no de outro corpo, mas de valor. H apenas um corpo que encarna a representao do trabalho transferido em valor, o corpo do equivalente. A inscrio no um a m arca prpria que carrega a si e se reconhece em si mesma. Ela se produz na estrutura, como efeito de e stru tu ra , portanto com o lao. O que se reconhece no equivalente o valor que, por isso, no pode ser tido como atributo qualitativam ente inerente ao objeto/mercadoria. O equi valente se apresenta como espelho do valor. O prprio M arx o disse explicitam ente, a form a do valor escreve uma operao homloga quela na qual se d o reconhecim ento de um eu a partir da im agem especular. A imagem retorna incidindo sobre um corpo partido unificando-o im aginariam ente. a imagem que atua sobre o corpo, que da se reconhece na continuidade que estabelece o plano im aginrio. O im aginrio sempre tota lizante. Enquanto o simblico supe o corte da descontinuidade, o im aginrio estabelece a extenso. A estrutura, o lao social, a forma segundo a qual o sujeito se articula ao campo do Outro. O campo do Outro a dimenso da linguagem, o lugar do significante, a instncia simblica por definio. Na formulao da forma do valor, M arx escreve a for ma do lao social, o que significa dizer que escreve a estrutura. A estrutura se define como articulao do valor representado no equivalente. Por isso M arx diz que o fetichismo da mercadoria inerente forma mercadoria, porque supe a alienao do tra balho, seu ocultamento, no equivalente geral, o dinheiro. Seria essa a via de alienao do sujeito ao significante? A operao de representao do valor no equivalente seria da mesma forma que a operao significante na qual o sujeito produzido como
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aquilo que um significante representa para outro significante? Inaugura-se a um a forma de conceber a representao diferente da representao clssica, que supe a linguagem como trans parncia que articularia ao pensam ento o objeto. Lacan afirma o significante com um a boa dose de opacidade. A representao clssica, produzida ao longo dos sculos XV II e XVIII, supunha um estatuto da linguagem tida como transparncia, transparncia que perm itiria ao pensam ento conhecer o objeto da cincia e da filosofia. Supomos que a operao de representao que se produz na forma do valor, representao do valor no equivalente, se articula da mesma maneira que a ligao de um significante a outro signi ficante na produo da cadeia significante, da cadeia da linguagem. Significante entendido, no como a materialidade sonora do signo, mas como representao inconsciente, no dizer de Freud. A mate rialidade do inconsciente a m aterialidade do significante. Assim que a form a do valor, a estrutura do significante, as formaes do inconsciente, o sonho, o sintoma, por exemplo, se produzem segundo a mesma estrutura, vale dizer, segundo o mesmo modo de produzir um lao, isto , segundo o mesmo modo de produo. O que Marx define a estrutura como operao, como modo de produo. No caso do sonho e do sintoma, h que derivar a forma do valor para a forma do mais valor, a mais-valia. fronteira que s risco No modo de produo capitalista o limite da estrutura aparece em sua crueza, suas fronteiras so dem arcadas como substrato das construes simblicas da M odernidade no que se refere produo das instituies polticas, assim como das formaes econmicas. No im porta o que se esteja produzindo, o modo de produzir o lao social que sustenta a produo, seja da eco-
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nomia seja das instituies polticas, o modo de fazer poltica o mesmo; e este modo aquele da forma do valor, da relao de representao entre o valor e o equivalente. Marx est dizendo isso quando escreve: " curioso o que se sucede com essas conceituaes reflexas. Um homem, por exemplo, rei porque outros com ele se comportam como sditos. Esses outros acreditam que so sditos porque ele rei".90 Assim que a realeza no uma qualidade do rei, como se acreditava nas monarquias medievais ou mesmo no Absolutismo, mas no corpo do sdito que ela se realiza, a realeza do rei. Eis a a formao de um pacto simblico que escapa ao subjetivismo da inteno ou da conscincia. O sdito o equivalente no qual a realeza toma o lugar do valor do rei. A opera a mesma dialtica da forma do valor. So os lugares que produzem as funes que os corpos carregam como se fossem um destino. Os lugares so marcados, so marcas que se definem na produo recproca da estrutura e das marcas, dos lugares do valor e do equivalente. Mas nem tudo capturado na articulao do valor ao equivalente. .. assim com nem tudo capturado pela articulao de um significante a outro significante. Vale dizer que nem tudo circula na esfera simblica da representao significante. Isso nos leva definio de Real e da mais-valia, do objeto a. Lacan nomeia Real como a instncia que se inscreve como limite ao simblico. O Real definido como aquilo que de alguma forma escapa cadeia, inscrio, embora continue provocando e produzindo a inscrio de uma parte... a parte do valor; no a do sobrevalor... a mais-valia. Assim que o valor simblico e a mais-valia real. A mais-valia pode ser definida ou circunscrita dimenso do Real, Real que se enlaa ao Simblico atravs do trabalho que
71 MARX, Karl. O capital, crtica da economia poltica. Livro I: O processo de produo do capital. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1980, p . 1 0 0 1 0 4 .
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assegura a produo do valor, a operao da estrutura. O trabalho opera estabelecendo a ligao simblica entre um significante e outro, ou seja, o trabalho trabalho do significante. Desse trabalho fica um resto, alguma coisa que escapa ao significante e que Lacan, em certo momento de sua obra, vai chamar de objeto a. O objeto opera no Real e dele no se tem qualquer idia, pois s pode representar um buraco em qualquer teoria. Podemos dizer que esse resto escapa representao do valor no equivalente. Esse resto, o Real, o objeto a, ou a mais-valia, fruto da operao do trabalho do significante, que retroage sobre sua causa, chamada, por Lacan, em referncia mais-valia, de mais-de-gozar. pulsa o sexo manh na veia -fogaru A dimenso de resto, no sentido do que no serve para nada, a dimenso de gozo, diz Lacan;91 o excesso freudiano que jamais inteiramente ligado, a mais-valia de Marx que a fora de trabalho produz. O gozo o excesso que marca o limite simbolizao ou, dito de modo mais prosaico, a experincia de todos ns de que impossvel dizer tudo e por isso continuamos a falar... por isso o Real tem o estatuto de causa. Assim que a estrutura amarra o Real ao Simblico faltando agora articular ao Imaginrio lacaniano. Temos o Real, a mais-valia, o Simblico, a forma do valor, e o Imaginrio como dimenso do preo. E tambm a articulao do Real ao Simblico que produz o sintoma. Ora, justamente a partir de uma articulao assim que Marx produz, derivada da forma do valor, a mais-valia.
91 Cf. LACAN, Jacques. Le Sminaire, livre 20: Encore. Paris: ditions de Seuil, 1977 (traduo nossa).
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O dinheiro, que permite o deslocamento do valor ao preo, o dinheiro que atesta a marca do valor no preo, tem o monoplio da representao do valor, do trabalho humano abstrato, o trabalho tido como resduo, o trabalho tido como resto dos trabalhos individuais ou trabalhos teis. Marx reafirma o equivalente como a materialidade que d corpo ao valor. Assim, no equivalente, o valor de uso de uma mercadoria posta no lugar de equivalente torna-se a forma manifesta de seu contrrio, o valor de troca.92 O dinheiro o corpo do trabalho humano abstrato, o dinheiro o corpo do valor. No corpo - valor de uso - do dinheiro, um valor traduzido e recebe a sua marca mundana, com a qual pode circular. Efetiva-se, desse modo, o Simblico como circulao, quando a, na circulao, o valor se realiza. Nessa operao se produz o lao social atravs do qual tecida a Modernidade. Discurso, repetimos Lacan mais uma vez, o que faz lao, lao social; quer dizer, a ligao se faz de um certo modo e o modo a estrutura - o que faz com que discurso e estrutura sejam a mesma coisa; pois bem, se o lao social a estrutura e a estrutura opera segundo a forma do valor e foi Marx quem a escreveu; e se esse tambm o modo como o sintoma se forma instaurando o inconsciente, ento Marx inventou o sintoma... o que nos permite pensar o lao social como sintoma, pois a formao do sintoma psquico segue a mesma lgica da forma do valor: assim que uma representao psquica se liga a outra... com uma diferena essencial uma perda se d entre o valor e o equivalente, o resto que escapa representao, ligao. Ento, para ser mais precisa, o sintoma no se escreve segundo a forma do valor mas segundo a forma da mais-valia. O que permanece da forma do valor o modo de inscrio, inscrio do valor que se faz no corpo de um outro. esse o lao social da Modernidade.
71 MARX, Karl. O capital, crtica da economia poltica. Livro I: O processo de produo capital. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,1980,p.100-104.
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A forma relativa do valor de uma mercadoria expressa seu valor em algo totalmente diverso do seu corpo e de suas propriedades; essa expresso est assim indicando que oculta uma relao social.93 O valor de uma mercadoria s adquire expresso geral, porque todas as outras mercadorias exprimem seu valor atravs do mesmo equivalente.94 a estrutura simblica, seu modo de operar, que a se desnuda. Evidencia-se que a realidade do valor das mercadorias s pode ser expressa pela rede de equivalncias, que, por sua vez, se sustenta como efeito do trabalho humano abstrato, do trabalho entendido como resduo dos trabalhos teis. A srie das mercadorias postas em situao de equivalncia, na qual se considera o carter quantitativo do trabalho socialmente despendido, o valor de troca, permanece aberta, remetendo uma mercadoria a outra, sem que se estabelea um espao indeterminado ou um fechamento do mercado. Podemos pensar o mercado como o intervalo entre 0 e 1, na srie dos nmeros inteiros, e no paradoxo de Zeno, segundo o qual se dividirmos sempre o intervalo pela metade jamais a distncia entre 0 e 1 ser percorrida. Assim que se define um espao infinito mas limitado. H uma incompletude presente na forma do valor. Isso porque o dinheiro, para que represente o valor de qualquer mercadoria travestindo-o em preo, precisa ser limitado mas infinito. Na rede geral das equivalncias entre as mercadorias, expressa no preo, responsvel pelo fato de que, no mercado, se pode comprar qualquer coisa, ele no sucumbe na indeterminao porque Marx estabelece o valor como estrutura simblica. H uma abertura estrutural, uma incompletude que o
93 Ibid., p.65. 94 MARX, Karl. O capital: crtica da economia poltica. Livro I: O processo de produo do capital. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1980., p.75.
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dinheiro pode representar, uma vez que em sua materialidade de valor de uso no h um limite em si. O limite vem da estrutura, vem da inscrio simblica. O dinheiro empresta sua materialidade para se fazer corpo do valor, o corpo como efeito de uma inscrio simblica. Considera-se sua [do equivalente geral] forma eorprea a encarnao visvel, a imagem comum, social, de todo trabalho humano.95 Marx toma o linho como exemplo para explicar a funo de representao que o dinheiro encarna do que ele chama de trabalho humano abstrato. Na expresso do valor do linho a utilidade do trabalho do alfaiate no consiste em que ele faa um casaco, hbitos ou at monges, mas em que produza um corpo que denote valor.96 O corpo que denota valor um corpo produzido na rede do Simblico. um corpo que se faz suporte das relaes sociais, um corpo que sustenta a funo de mediao, portanto de produo do lao social. Massa de trabalho, portanto, que absolutamente no se distingue do trabalho objetivado no valor do linho.97 O equivalente apontado como o espelho do valor porque reflete o trabalho como resto dos trabalhos teis. Para ser este espelho do valor, o trabalho do alfaiate tem que refletir apenas a propriedade de ser trabalho humano.98
95.MARX, loc. cit. 96 Ibid., p.66. 97 MARX, Karl. O capital: Crtica da economia poltica. Livro I: O processo de produo do capital. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1980, p.66. 98 MARX, loc. cit.
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A operao do valor uma operao que supe, na medida mesma em que a produz, uma encarnao. A representao do valor no equivalente se faz sob a forma de uma encarnao. Por que "encarnao"? Porque se trata da produo de um corpo atravs da inscrio de marcas que devero ser lidas, ou melhor, traduzidas. Produz-se uma traduo do valor em um corpo cuja funo simblica se oferecer justamente como o corpo do valor de um outro. O valor no se d em si mesmo como valor intrnseco. Ele s se manifesta no corpo de um outro que, por carregar essa "manifestao", chamado de equivalente. O equivalente a materializao do valor. Essa operao de traduo que apresenta a materialidade do valor possvel como trabalho. Alis, isso o trabalho: produzir - ou permitir - essa articulao, este lao entre o valor e o equivalente. A quantidade um quantum (como diria Freud) de trabalho inteiramente dessubjetivado, desprovido de toda qualidade, que sustenta a operao da estrutura, da forma do valor. Escapamos do terreno das qualidades, que por serem qualidades so diferenas irredutveis, que, enquanto qualidades, no circulam, no fazem troca; ao mesmo tempo em que somente so trocadas porque so qualidades diferentes. A troca supe uma base de equivalncia que mantm a diferena, mas inclui uma terceira varivel que, justamente, permite a troca. O terceiro o operador que permite a troca, o trabalho. O trabalho indistinguvel, quer dizer, um puro operador, o operador da estrutura. O trabalho aqui considerado, um resto desprovido de qualquer qualidade prpria, ou utilidade, no sentido de um particular. O trabalho um resto sem significado... poderamos dizer... um significante, ou melhor, a operao do significante. Justamente, o trabalho entendido como trabalho do significante. Freud, na "Interpretao dos sonhos", trata o trabalho como puro dispndio de energia quando estabelece uma equivalncia entre desejo inconsciente e trabalho, o trabalho do sonho.
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O trabalho que opera no inconsciente, ou melhor, o trabalho que opera o inconsciente, ou ainda o trabalho que produz o inconsciente, o desejo inconsciente apontado como causa do sonho e do sintoma. O trabalho que a opera, em termos lacanianos, o trabalho do significante na produo do sintoma a partir do maisde-gozar.
4. A economia do gozo
O gozo a experincia, no corpo, de das Ding. a experincia, no corpo, de um buraco - limite da linguagem, limite da possibilidade de articulao simblica. A experincia de das Ding como o que escapa e patrocina a repetio. Experincia da falta apresentada como excesso, uma vez que faz buraco (falta) pelo excesso que transborda cadeia significante. O gozo um excesso subjetivado como falta a ser. O buraco no discurso que Lacan chamou, primeiro, de objeto a, e depois lhe atribuiu a funo do mais-gozar, assim chamado para estabelecer, explicitamente, uma vinculao mais-valia tal qual Marx a formulou. Ento, se o modo de produo capitalista repousa sobre a produo de mais-valia e se o inconsciente se estrutura como ciframento, como inscrio, rastro que se faz trao mnmico, passagem de um excesso, de um "a mais" que Lacan chama de mais-gozar; se se pode estabelecer uma homologia entre os dois modos de produo, pode-se dizer que o modo de produo capitalista se estrutura como uma economia de gozo. No h uma racionalidade no capital no sentido de uma aposta na felicidade e no progresso. H uma forma de gozar, de redistribuir o gozo socialmente, vale dizer, a redistribuio da falta, por um lado, e, por outro, do excesso. No h nenhuma possibilidade de equilbrio. O campo do gozo o campo lacaniano por excelncia,
99 KAUFMANN, Pierre. Dicionrio Zahar, 1996, p.222. enciclopdico de Psicanlise. Rio de Janeiro: Jorge
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aquele que se formula em torno do objeto a, nica inveno que Lacan atribui a si mesmo.100 Falar em gozo, coloca-nos no centro da psicanlise, se que ela tem um centro, que nos remete necessariamente ao inconsciente freudiano. Esse caminho nos lana em uma estranha posio: articular histria, a um modo de produo histrico, o inconsciente freudiano, onde no h nem tempo, nem vigncia do princpio de no contradio (no inconsciente, duas afirmaes contrrias e excludentes podem conviver lado a lado, sendo ambas verdadeiras). Assim, duas modalidades extremamente caras histria, o tempo e a verdade histrica, so subvertidas na inveno do inconsciente. Questes metodolgicas podem ser apresentadas historiografia e novas possibilidades de construo do saber histrico podem surgir a partir da articulao histria/psicanlise. No entanto, no este o objetivo deste ensaio. O gozo aponta para um mais alm do princpio do prazer, o que o coloca tributrio da pulso de morte ou talvez mais do que isso, seu correlato, sua expresso sintomtica. Lacan, no Livro XX de seu Seminrio, define-o como uma instncia negativa: "o gozo o que no serve para nada".101 Abordar o capitalismo pela via do gozo, como uma economia de gozo, ressalta o carter absurdo e intil de sua selvageria desenfreada. Abordar o modo de produo capitalista como um modo de produo voltado inteiramente para a produo de maisvalia - como Marx o define o mesmo que dizer que o modo de produo capitalista est inteiramente voltado para a produo de mais-gozar. Esta articulao nos remete ao real lacaniano; real cuja formulao foi se desenhando desde os quantuns freudianos, aqueles que resistem ligao justamente por seu excesso, que resistem captura pelo aparelho psquico e respondem a essa im100 Lacan sempre se disse um leitor de Freud. 101 LACAN, Jacques. Le Sminaire, livre 20: encore. Paris: ditions de Seuil, 1975, p.10.
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possibilidade com a repetio; real que passa por das Ding, objeto a, e, finalmente, mais-de-gozar. Essa ligao que Lacan faz, essa apropriao do conceito marxista, chave para o entendimento do capitalismo, nos permite pensar o capital como sintoma. Seno vejamos. O modo de produo capitalista uma economia, uma organizao econmica, inteiramente voltada para a produo de um valor a mais. Est voltada, em seu modo de reproduzir a vida, apenas para agregar valor riqueza j existente, ao capital j existente. essa a finalidade, o objetivo da produo. Para nada importa o valor de uso do que feito, importa o valor agregado ao capital durante o processo produtivo. Esse modo de ser - do capital - retira da cena do mundo qualquer questo referente qualidade das coisas. Praticamente elimina da prxis toda criao ou discusso a respeito do valor de uso do produto. Qual o terreno, hoje, que se tem para colocar em questo a utilidade, o valor-de-uso, das armas produzidas pela indstria blica? Que desdobramento prtico, poltico, tem um questionamento dessa natureza? Nenhum! Isso, absolutamente no importa. Importa o valor agregado na produo dos mais novos modelos. No se discute o valor de uso. E dado como natural que prevalea o valor de troca como realizao do valor. As referncias simblicas, ticas, morais, so permanentemente "desconstrudas", no por alguma crise epistemolgica mas pela prtica discursiva do capital, pelo discurso do capitalista, que tem como objetivo da produo apenas um valor a mais. A funo verdadeira, especfica do capital , como se ver mais adiante, no outra coisa que a produo de trabalho excedente, apropriao - no caso do processo de produo real - de trabalho no pago, que se objetiva como mais-valia.102
102 MARX, Karl. O capital: crtica da economia poltica. Captulo VI. So Paulo: Cincias Humanas, 1978, p.9.
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A produo na ordem capitalista est montada, no para produzir o maior nmero possvel de mercadorias como o mercado faz parecer. Quanto mais vendesse, mais rico o capitalista ficaria. No est a a fonte da riqueza. O mercado faz parecer que sim... Fosse assim, com a tecnologia de que se dispe atualmente, a fome da frica e da Amrica Latina estaria sanada em pouco tempo. Mas a tecnologia, a cincia aplicada pelo capital, est vinculada a que tipo de bem-estar? A produo capitalista tem como finalidade e objetivo no a produo de objetos, mas a produo de valor, um valor a mais, um valor agregado, a mais-valia. /silncio/ Ora, se considerarmos o valor, como Marx o faz, como trabalho objetivado, incorporado a uma matria qualquer na produo de um objeto, veremos que, na verdade, a produo capitalista est montada para extorquir um trabalho a mais, um sobretrabalho que, por no ser pago, Marx o chama de maisvalia. Em outros termos, a produo capitalista est montada para fazer gozar... E como gozo que, na economia psquica, se fala de um "a mais". Para qu? Para nada, pois o gozo aquilo que no serve para nada. Um quantum a mais, que resiste ligao, captura pela cadeia significante, que se escreve como perda, como buraco (em qualquer teoria), Lacan o chama de objeto a e articula-o ao maisde-gozar, termo que retira da mais-valia de Marx. Na lio de 13 de novembro de 1968, no Seminrio "De um Outro ao outro", Lacan localiza muito claramente a questo: Em torno do mais-de-gozar se joga a produo de um objeto essencial do qual se trata, agora, de definir a funo, o objeto a. [...] Esse mais-de-gozar apareceu em minhas ltimas explana-
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es em funo da homologia em relao mais-valia marxista. Homologia, bom dizer - e eu o sublinhei - que sua relao no de analogia. Trata-se da mesma coisa.103 A mais-valia articula-se ao objeto a, o que permite a Lacan formular o gozo em termos de mais-de-gozar. Esse enodamento entre uma forma de produo da subjetividade e a produo material da vida como produo de mercadorias cria um plano de cruzamento cujos efeitos epistemolgicos esto, ainda, espera de serem escritos. Inicialmente, podemos indicar que a partir daqui se rompe um certo tipo de excluso recproca entre o que de ordem subjetiva, entendida como "interioridade" do homem ou do indivduo, e a ordem da objetividade econmica e social. Marx e Freud, lidos por Lacan, trazem a economia para a produo, tanto da subjetividade quanto da produo material do mundo. Esse cruzamento, que permite pensar o psiquismo como economia, tambm permite que se trate o capital como um sintoma, pois o sintoma , justamente, uma forma de gozar e de produzir, como resposta a esse gozo, o lao social. "O sintoma, na sua natureza, gozo", nos diz Eduardo Vidal em seu Seminrio do dia 25 de maro de 1993.104 E acrescenta no dia 6 de maio: isso caracterstico do sintoma, caracterstico do processo metafrico,105 um certo "a mais", um certo "plus" que no est compreendido apenas no significante que substitui ao outro. H um "a mais" a que o que caracteriza toda dimenso do sintoma para o sujeito.106
103 LACAN, Jacques. Le Sminaire, livre 16: De 1'tre a lettre. (Trabalho no publicado e traduo nossa). 104 VIDAL, Eduardo. Exposio Oral. In: Seminrio "Do sintoma ao sinthoma" Rio de Janeiro: Escola de Psicanlise Letra Freudiana, 1993 (mimeo.). 105 Era examinado, neste momento, o sintoma como metfora. 106 VIDAL, loc. cit.
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O "a mais" que "no est compreendido apenas no significante que substitui ao outro", portanto, que est "a mais"; que no entra na cadeia, o que "caracteriza o sintoma para o sujeito" - na medida mesmo em que o sintoma se apresenta como repetio: essa, exatamente, a definio da mais-valia, um trabalho a mais que no pago; que, por isso mesmo, no se pode dizer que entre na cadeia das equivalncias e que tambm se sustenta na repetio. Na produo desse "a mais" que o simblico e o real se enlaam: a cadeia significante ou a forma do valor atravessada pela mais-valia ou pelo mais-gozar. O simblico no d conta desse "a mais", justamente como o que no contbil, aquilo que foge conta, ao real definido como "o que no cessa de no se escrever". A operao de produo requer uma superfcie de escrita, formando-se corpo, o que remete dimenso imaginria do enlaamento que se d como sintoma. Desse enlace, que escrita - do simblico no real - , um corpo se produz como superfcie e extenso, um corpo que goza. O sintoma o que constitui, enquanto se constitui a si mesmo, o modo de produo do organismo humano pela linguagem. Vimos essa construo quando tratamos da economia psquica, com os trilhamentos deixados pela passagem das quantidades freudianas, traos marcados como letras da escrita do inconsciente. O modo de produo capitalista uma economia de gozo que se estrutura como um sintoma de cujas condies de produo no quer saber nada. Um sintoma cuja interpretao a formulao do conceito de mais-valia, uma vez que pela mais-valia que se constri a verdade do capital. A mais-valia a interpretao do capital e o trabalho seu valor-de-uso. V-se que Marx considera o capital tambm como uma mercadoria... assim como fora de trabalho.
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Enquanto na mercadoria o valor de uso um objeto determinado com propriedades determinadas, agora [refere-se fora de trabalho] se torna transformao de coisas - de valores de uso - que operam como matria prima e meios de trabalho, em valor de uso de figura modificada: no produto; tal transformao se faz no meio do trabalho vivo, ativo, que precisamente a capacidade de trabalho em ao (actu). Assim, a figura de que se reveste o capital no processo de trabalho, enquanto valor de uso, decompe-se: primeiro em meios de produo, conceitualmente diferenciados, mas independentes; segundo, em diferenciao conceituai, derivada da natureza do processo de trabalho, entre as condies objetivas de trabalho (os meios de produo) e as condies subjetivas de trabalho, a capacidade - ativa e orientada para uma finalidade - de trabalho, isto , o prprio trabalho. Terceiro, no obstante, vendose o conjunto do processo, o valor de uso do capital apresenta-se aqui como processo produtor de valor de uso, processo no qual os meios de produo, com vistas a esta determinao especfica, operam como meios de produo da capacidade de trabalho especfica que atua em conformidade a umfime corresponde a sua natureza determinada. Em outras palavras: o processo completo de trabalho, como tal, na interao viva de seus momentos objetivos e subjetivos, apresenta-se como afiguratotal do valor de uso, isto , como afigurareal do capital.107 O capital, enquanto sintoma, pulsa nos restos e sobras de seu gozo apodrecido. o excesso - uma quantidade - que no est ligada cadeia das representaes; que no contabilizado na forma do valor nem inscrito na cadeia significante, pois a mais-valia tem o mesmo estatuto do objeto a: enquanto a mais-valia fura a equivalncia que se escreve na forma do valor, o objeto a fura a cadeia significante. Ambos marcam o limite do simblico, o real.
107 MARX, Karl. O capital: Crtica da economia poltica. Captulo VI. So Paulo: Cincias Humanas, 1978, p.11-12.
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Lembremo-nos de que na forma do valor x de A = y de B, o valor de A representado em B, o valor de A se escreve em B, que ocupa o lugar do equivalente. O sinal =, que assegura a equivalncia, expresso do trabalho humano abstrato, do trabalho socialmente necessrio para produzir A e B o que estabelece uma equivalncia entre eles. As mercadorias encarnam uma equivalncia que, na verdade, equivalncia de trabalho e o que permite troc-las. Assim que o trabalho humano abstrato que assegura a existncia do mercado. No nos esqueamos, tambm, que, quando Marx define o que mercadoria, lhe imputa um duplo carter: um valor de uso e um valor de troca. O valor de uso diz respeito qualidade do objeto, como j vimos, sua materialidade e ao seu consumo. O valor de troca o trabalho necessrio, socialmente necessrio, para produzir o objeto mercadoria. Valor de troca porque em funo dessa varivel temporal que o objeto tem um valor de troca e pode ser trocado: vendido e comprado. Dessa diviso, desse duplo carter da mercadoria, Marx deriva um duplo carter tambm para o trabalho, na medida mesmo em que o trabalho, no capitalismo, uma mercadoria. Ao valor de uso corresponde o trabalho til, ao valor de troca, o trabalho humano abstrato. Cada mercadoria, ento, tem o seu valor representado, inscrito em um equivalente, o dinheiro, que assumiu o monoplio desse lugar social. E a mais-valia? Pois ... e a mais-valia? No sei se ela um ponto de partida, e todo O capital feito para extrair, at as ltimas conseqncias, as implicaes do fato de sua existncia como modo e objetivo do capital, ou se ela vai tomando forma, para Marx, ao longo da pesquisa e da escrita do livro. O certo que o conceito de maisvalia vai coroar e concluir a lgica do Capital. Lgica que Lacan vai transpor ao objeto a como mais-de-gozar, e definir o modo de gozo na produo do sintoma.
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Rclornemos s mercadorias. J vimos que todas as mercadorias tm valor de uso, valor de troca e o valor de troca representado no equivalente, o que fornece a base, o suporte para a formao dos preos, segundo a teoria marxista, e do salrio, considerandose que o salrio o preo de uma dessas mercadorias, a fora de trabalho. a partir desse pressuposto, de que a fora de trabalho uma mercadoria como outra qualquer, que Marx pde introduzir a questo da mais-valia. A fora de trabalho negociada no mercado como qualquer mercadoria. Assim que ela tem valor de uso, valor de troca, e este valor expresso em ura equivalente que norteia a formao do preo dessa mercadoria, o salrio. A fora de trabalho , diariamente, vendida e comprada, e seu consumo supe uma temporalidade; ento, ela negociada por um certo perodo de tempo. O que vendido e comprado seu gasto por um certo tempo. O capitalista vai ao mercado comprar fora de trabalho e se depara com o valor da fora de trabalho, quer dizer, com o tempo de trabalho socialmente necessrio para produzi-la, quer dizer, para mant-la viva, para que se reproduza no dia seguinte. O capitalista vai ao mercado comprar fora de trabalho e o trabalhador vai vender a propriedade que lhe coube no mundo do capital, a si mesmo; uma parte de si, de seu corpo, crebro, braos e energia vital. Com o dinheiro resultante da venda de uma parte de seu prprio ser, ele compra as mercadorias necessrias sua sobrevivncia e de sua famlia. Ento essa mercadoria tem um valor que determinado socialmente pelo tempo de trabalho consumido para produzi-la; e esse valor se traduz em dinheiro recebido sob a forma de salrio. Mas essa mercadoria, a fora de trabalho, tem uma peculiaridade, seu valor de uso, sua materialidade prpria, seu consumo se d como produo de valor (por isso podemos dizer que o trabalho o valor de uso do capital). O consumo da fora de trabalho, quer dizer, a
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realizao de seu valor de uso, produo de valor. Vale lembrar que "valor" trabalho materializado, incorporado ao objeto-mercadoria. Seu consumo como valor de uso comprado pelo capitalista se d como transferncia da energia vital do trabalhador, do corpo do trabalhador para a matria sobre a qual incide na produo da mercadoria. O trabalho vivo transformado em trabalho morto. A forma do valor funciona perfeitamente. A estrutura do lao social est mantida. A mercadoria "fora de trabalho" tem um valor determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessrio para produzi-la, para que ela no se extinga, depois de um dia de trabalho, por morte do trabalhador. preciso que a fora de trabalho se reproduza repondo a energia vendida e consumida. Seu valor expresso no equivalente, o dinheiro, que entregue ao trabalhador sob a forma de salrio. Dito isso, podemos avanar. O trabalhador que vende sua fora de trabalho por um tempo determinado recebe seu salrio e deve trabalhar o tempo combinado no contrato estabelecido com o capitalista ou seus representantes. A se d o milagre do capital: se o consumo do valor de uso da fora de trabalho produo de valor, ela prpria produz o valor que lhe pago sob a forma de salrio. E o faz em um perodo de tempo determinado, digamos em quatro horas. Em quatro horas, o operrio produz valor, que se traduz em equivalente e paga seu salrio, d de volta ao capitalista o salrio pago ao trabalhador. Mas, at a, ficariam elas por elas... Acontece que o capitalista comprou o direito de usar a fora de trabalho do trabalhador por, digamos, oito horas. Ele deve trabalhar oito horas. Em quatro horas, produziu o valor relativo sua reproduo; e as quatro horas restantes? Ele continua produzindo valor, agregando trabalho matria sobre a qual incide. Esse trabalho no pago porque ele est para alm da forma do valor... o que est para alm do valor um "mais valor", um valor a mais, a mais-valia.
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A mais-valia um trabalho no pago que pode ser tomado como uma perda... mas uma perda que excesso. No excesso de perda, mas a perda que comparece ou que produzida como "a mais". Esse um dos paradoxos do gozo. Aqui, a falta no se d a conhecer como o que no h, mas como o que h, com tal intensidade, com tamanha "quantidade", que no se representa na articulao significante. Aparece com imensa freqncia na prtica clnica um tipo de queixa, produto dessa formao de gozo: um buraco incontornvel, um choro sem fim e desmedido, um lamento sem consolo, um excesso incomensurvel que se traduz como falta e que lana o sujeito na falha qual nenhum significante vem contornar ou traduzir em metfora. O gozo localiza-se no cruzamento das pulses sexuais pela pulso de morte. O corpo suporta esse gozo, o corpo do trabalhador. Marx o descreve como transferncia da vida morte, como incorporao do valor na criao da riqueza. Na medida em que o processo de produo no passa de processo de trabalho, o operrio, neste processo, consome os meios de produo como simples meios de subsistncia do trabalho. No obstante, sendo o processo de produo, ao mesmo tempo, processo de valorizao, o capitalista consome em seu transcurso a capacidade de trabalho do operrio ou se apropria do trabalho vivo como alma e nervo do capital. A matria prima, o objeto de trabalho, em suma, serve apenas para sugar trabalho alheio, e o instrumento de trabalho serve apenas de condutor, de transmissor desse processo de suco. Ao incorporar-se a capacidade viva de trabalho aos componentes objetivos do capital, este se transforma em monstro animado, e se pe em ao como se tivesse o amor dentro do corpo.108
108 MARX, Karl. O capital: crtica da economia poltica. Captulo VI. So Paulo: Cincias Humanas, 1978, p.38.
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Pe-se em ao, quer dizer, goza! Como se tivesse o amor dentro do corpo. Assim que a mais-valia no contabilizada na forma do valor. Ela est para alm do valor. Assim como a pulso de morte est para alm do princpio do prazer, e o gozo para alm do significante. Esse "alm" no superao, mas limite que retorna como repetio, aquilo que Freud chamou de das Ding, no Projeto, e Lacan chamou de Real. Suponho, ento, que esse modo de no inscrio da mais-valia na forma do valor, o mesmo modo do objeto a, da Lacan poder falar em "mais-de-gozar". O objeto a efeito da operao do significante. a perda que se d na operao de produo do sujeito na representao de um significante SI a outro significante, S2, na formao da cadeia da linguagem. E assim que se pode entender a definio de sujeito dada por Lacan, "o sujeito o que um significante representa para outro significante", e o significante, o que um sujeito representa para outro significante. Em funo da perda que esse modo de produo do sujeito provoca (o objeto a), o sujeito um sujeito dividido, ou, como diz Lacan, um sujeito barrado. Se definirmos a forma do valor, assim como a cadeia significante, como instncias simblicas, quer dizer, como estrutura, como modo de produo de um lao social, diremos que a mais-valia da ordem do real, justamente, por demarcar o limite da forma do valor, o limite do simblico, como repetio, como o que no cessa de no se escrever, como objeto a. Em toda repetio h uma perda de gozo que podemos nomear objeto a.'09
109 VIDAL, Eduardo. Exposio Oral. In: Seminrio "Do sintoma ao sinthoma". Rio de Janeiro: Escola de Psicanlise Letra Freudiana, 1993, p.153 (mimeo).
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Agora podemos articular o objeto a e a funo mais-de-gozar, homloga mais-valia. A funo mais-de-gozar est no cerne do sintoma; a isso que o sintoma se destina, produo de um gozo a mais. Sintoma que pode ser tomado como metfora erguida diante do gozo ou como enodamento do real ao simblico. O sintoma, queira ou no, fala do inconsciente mas, em ltima instncia, ele inscreve o limite do real no simblico. [...] uma forma de poder se escrever, com o sintoma, o real do simblico. 110 Seguindo nossa rede de analogias e homologias nessa articulao entre mais-valia, mais-de-gozar e objeto a, chegamos ao sintoma e definio de capitalismo como sintoma. Ou seja, como enlace do real ao simblico na produo de uma estrutura, no corpo imaginrio da Histria, ou do mercado. O modo de produo capitalista um sintoma cuja interpretao a mais valia. a que irrompe a verdade do sintoma, ou, o sintoma como verdade do sujeito. De que sujeito? Do sujeito da Modernidade. Irrompe em um saber, o saber que da ordem do significante, por exemplo, na forma do valor, irrompe a mais-valia como verdade na falha desse saber... a mais-valia que mais-de-gozar. Retornamos ao gozo partindo, agora, do sintoma, e incorporando a dimenso imaginria da histria e do mercado demarcada pelo fetichismo da mercadoria de que fala Marx no primeiro captulo de O capital. O mercado e a histria oferecem a consistncia do capital e lhe do um sentido... estamos no territrio das ideologias. Assim que, falar em gozo, na Modernidade, falar de uma economia psquica articulada a uma economia do capital na produo de um lao social de certo tipo: na produo de um discurso. Nesse caminho se pode trabalhar com histria e psicanlise, embora uma
110 VIDAL, loc. cit.
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se paute por referncias aparentemente antagnicas. Enquanto a histria se define, no dizer de Marc Bloch,111 como a cincia dos homens no tempo, o inconsciente freudiano no tem tempo; enquanto a pesquisa histrica procura estabelecer a verdade de seus objetos, no inconsciente no vale o princpio de no-contradio, e duas ou mais afirmaes, excludentes e contrrias, convivem lado a lado, aceitas como verdadeiras. Ento, pelo vis da estrutura tal como Lacan a concebe que esse cruzamento entre histria e psicanlise pode ser feito. E a partir de uma rede que Lacan vai estabelecendo, na qual aparece a homologia entre mais-valia e mais-de-gozar, que permite precisar o lugar do gozo, no somente como uma questo entre o sujeito e seu sintoma, mas como formao social. O modo de produo capitalista uma economia de gozo. Talvez toda economia o seja, uma vez que se trata de produzir e distribuir um excedente. Acontece que no capitalismo isto posto cruamente atravs da mais-valia. No passado, eram outras as formas de gozar. O gozo no estava atrelado ao comrcio dos bens,112 mas, em larga medida, na promoo de reconhecimento e prestgio. O excedente era ofertado a deuses que delegavam o usufruto a seus representantes, pobres, sacerdotes, prncipes. No capitalismo, o gozo posto a servio de si mesmo, em uma espcie de autofagia incessante. Em outras sociedades, sociedades organizadas de outro jeito, h a presena de rituais, ou festas e comemoraes, cujo objetivo era destruir o excedente acumulado; o potlach, por exemplo. A pesquisa cientfica, exereendo-se no terreno daquilo que chamam problematicamente de humano, descobriu para ns que h muito tempo, e fora do campo da histria clssica, o homem de sociedades no histricas, pelo que se acredita, deu luz uma
111 Historiador, fundador da escola dos Annales, morto em um campo de concentrao em 1944. 112 Cf. LACAN, Jacques. O Seminrio, livro 7: a tica da psicanlise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
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prtica concebida como tendo a funo salutar na manuteno da relao intersubjetiva. A nosso ver isso como o pedregulho feito miraculosamente para nos indicar que nem tudo est preso na dialtica necessria da luta pelos bens, do conflito entre os bens, e da catstrofe necessria que ela engendra, e que existiram rastros do mundo que estamos pesquisando, que mostram positivamente que foi concebido que a destruio dos bens como tal poderia ser uma funo de valor.113 [...] o potlach. Indico, brevemente, que se trata de cerimnias rituais que comportam a destruio externa de bens diversos, bens de consumo ou bens de representao e de luxo, prtica de sociedades que no so mais do que restos, vestgios de existncia social de um modo humano que nossa expanso tende a abolir. O potlach testemunha do recuo do homem com respeito aos bens que pode t-lo feito vincular a manuteno e a disciplina, digamos, de seu desejo, dado que aquilo com o qual ele lida em seu destino, com a destruio reconhecida dos bens, tratando-se de propriedade coletiva ou individual.114 Assim que o respeito aos bens, a relao que se estabelece com a riqueza nem eterna nem universal; ela , tal como a praticamos, uma construo do capital. Na sociedade e na cultura burguesas, no lugar da conscincia moral, posto o ideal, "ser rico". Ser rico transformou-se no Soberano Bem. A partir da, uma moral se produz, moral que legitima a ao que se encaminhe para o seu ideal e reprova aquela que, dele, se afaste. Essa relao com a riqueza, objetivao da mais-valia, culmina com a deteriorao dos vnculos que estabeleciam as referncias simblicas da coeso social e seus limites. De certa forma, esse apelo desmedido ao gozo se ope ao desejo como limite. H uma outra experincia histrica, alm do "potlach", qual Lacan tambm se refere.
113 No confundir com "valor" como temos usado ao falar de Marx. 114 LACAN, op. cit., p.285-286.
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[...] No sculo XII, que, com o amor corts marca a emergncia de uma problemtica do desejo como tal na superfcie da cultura europia, vemos aparecer em tal rito feudal uma manifestao totalmente anloga - trata-se de uma festa, de uma reunio de bares em alguma parte para os lados de Narbonne - comportando enorme destruio, no apenas dos bens imediatamente consumidos sob a forma de festim, mas de animais e arreios destrudos. Tudo se passa como se a colocao da problemtica do desejo no primeiro plano atrasse, como seu correlato necessrio, a necessidade dessas destruies que chamam de prestgio, uma vez que elas se manifestam como tal, gratuitas.
[...]
Tal o nico exemplo que temos, no outro plo, dessa ordem de destruio efetuada de maneira controlada, ou seja, de maneira bem diferente dessas imensas destruies s quais todos ns tivemos oportunidade de assistir. Elas aparecem a ns como inexplicveis acidentes, retorno de selvageria, embora sejam, antes de mais nada, necessariamente vinculada progresso do nosso discurso.115 O potlach funciona como um limite controlado ao gozo. O que dizer de um mundo que no somente no edifica nenhum limite ao gozo, mas o promove at a morte, em escala planetria atravs de um discurso que o glorifica " per se", sob a forma da mais-valia nos cnones do servio dos bens. Lacan articula esse movimento, ou essa construo, no somente ao gozo mas ao desejo, estabelecendo um movimento dialtico entre os dois.
115 LACAN, Jacques. O Seminrio, livro 7: a tica da psicanlise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.286.
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E porque o movimento do desejo est transpondo a linha de uma espcie de desvelamento que o advento da noo freudiana da pulso de morte tem seu sentido para ns. A questo se coloca no nvel da relao do ser humano com o significante como tal, dado que no nvel do significante todo o ciclo do ente (tant) pode ser recolocado em questo, inclusive a vida em seu movimento de perda e de retorno. 116 A dialtica entre o desejo e o gozo se traduz na operao onde esto implicados o significante e o objeto a na produo do sintoma. Lacan atribui a Marx a inveno do sintoma. No seminrio de 1974/75, chamado RSI (Real, Simblico e Imaginrio), indito, na abertura, diz o seguinte: Enfim, para definir o terceiro termo [o Real], no sintoma que identificamos o que se produz no campo do real. Se o real se manifesta na anlise, e no somente na anlise, se a noo de sintoma foi introduzida bem antes de Freud, por Marx, de forma a torn-lo signo de que alguma coisa no vai bem no real, se, em outros termos, somos capazes dc operar sobre o sintoma, enquanto o sintoma efeito do simblico no real. 117 Isso diz alguma coisa tanto no que se refere ao capital quanto ao psiquismo, economia psquica. O que podemos deduzir da? Que ilaes essa homologia entre a mais-valia e o mais-de-gozar nos permite arriscar? Lacan, em conferncias feitas em Roma, publicadas sob o ttulo de "A terceira",118 diz do objeto a que ele opera no real; que um objeto do qual no se tem idia; que um buraco em qualquer
116 Ibid., p.288. 117 LACAN, Jacques. Le Sminaire, livre 22: R.S.I.. (Trabalho no publicado e traduo nossa). 118 LACAN, Jacques. A terceira. In: Lettres de 1'cole Freudienne, n. 16, 1975, p. 177-203 (traduo nossa).
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teoria. O objeto a da ordem do no representvel; o resto no capturvel pela cadeia significante, o quantum no capturado pelo aparelho psquico freudiano. O objeto a d ao sintoma ou marca no sintoma o estatuto de real ao qual o simblico se enlaa. A se produz a verdade do sujeito. O sintoma a verdade de cada um, o po nosso de cada dia... no toa que essa orao se dirige ao Pai.. .Pai nosso que ests no cu, nos dai o po nosso de cada dia... o sintoma nosso de cada dia. Mas ento... o objeto a marca, no sintoma, seu estatuto de real, e se a funo do objeto a o mais-de-gozar, ento o mais-degozar tambm se articula ao sintoma como seu ncleo de resistncia ao significante... assim como a mais-valia forma do valor. Essa estrutura o que nos permite nomear o capital como sintoma. Podemos dizer que a mais-valia, se a verdade do capital, tambm sua interpretao. Essa interpretao deveria implicar uma perda de gozo... Na formulao da mais-valia, em sua localizao, Marx desvela a verdade da explorao subjacente ao contrato entre homens livres, proprietrios que trocam suas mercadorias no mercado. "O sintoma se articula do que representa o retorno da verdade na falha de um saber", diz Lacan, no Seminrio da tica da Psicanlise, Livro VII. No discurso do capitalista, em sua face liberal, ou neoliberal, a mais-valia irrompe como verdade na "falha de um saber". Pensamos que, na forma do valor, se articula um saber no qual irrompe, como real, a mais-valia. Assim que o modo de produo capitalista uma economia de gozo porque tem como eixo de reproduo ampliada a mais-valia; um acrscimo de valor, de trabalho no pago, no contabilizvel na forma do valor, que no faz srie na cadeia significante.
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O capital promove uma economia de gozo quando tem como reproduo ampliada a produo de mais-valia; puro acrscimo de valor no pago, o que significa, um valor a mais, no contabilizado, mais-de-gozar que no se inscreve na cadeia significante. em torno do mais-de-gozar que se define a funo do objeto a. Trata-se da mesma coisa: mais-de-gozar e mais-valia.119 Passa por aqui a agulha que d o ponto da costura da psicanlise histria, da estrutura psquica estrutura social; da clnica cultura. A linha da costura a cadeia significante; a estrutura da linguagem. A mais-valia, que no contabilizvel, tem como limite a morte - e o sintoma que no se escreve na forma do valor, mas da mais-valia o jeito que cada um tem de morrer. A presena do objeto a indica o gozo cuja primeira formulao se vincula pulso de morte. Estamos diante de um modo de produo cujo objetivo produzir a morte em larga escala. No a morte trgica suportada por Antgona na sustentao de seu desejo, daquilo que ela considerava seu destino e sua obrigao: enterrar o corpo do irmo morto. A morte de que se trata na produo incessante do mais-degozar aquela consumida a prestao, em meio ao lixo, aquela que irrompe nos mercados e mesquitas entre pedaos de gente - incompreensvel e gratuita, a morte dos "inocentes" feitos bens, objetos de consumos no durveis - espalhados nas ruas de Bagd ou Londres, Jacarepagu ou Nova York. oh, imensa solido aqutica / quase verde virginal
119 Cf. LACAN, Jacques. Le Sminaire, livre 16: de l'tre a lettre (trabalho no publicado e traduo nossa). Lies dos dias 13 e 27 de novembro de 1968.
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Que limite se pode opor ao gozo? A tica da psicanlise, aquela formulada por Lacan na frmula "no ceder sobre seu desejo". E o desejo supe a falta como constitutiva, o desejo da ordem do impossvel, pois se articula a partir de das Ding, interditado desde sempre, e que, por isso mesmo indestrutvel e no eliminvel, da sua realizao atravs das formaes do inconsciente, o sintoma e o sonho. Da tica da psicanlise, Lacan d indcios da formulao de uma poltica que Zizek explicita. [Lacan afirma] a politizao radical da tica, no no sentido de que ela deva ser subordinada s lutas pelo poder, mas em termos de aceitar a contingncia radical. A postura poltica elementar aquela que afirma essa contingncia, e isso significa que no tem nenhuma garantia em nenhum tipo de norma. E preciso arriscar e decidir. E essa a lio de Lacan. No ceda em seu desejo. No busque apoio em nenhuma forma de Outro maisculo. [...] E preciso arriscar o ato sem garantias.120 A poltica uma ao de sustentar, na ordem do mundo, um discurso. Lacan aponta para uma dimenso poltica inusitada. Uma ao que instaure e sustente um discurso sem a perspectiva do poder ou dos bens no sentido de prometer a felicidade e o fim de um mal-estar constitutivo da existncia humana. Lacan, em um certo momento eminentemente poltico da escola que fundara, escreve "no me interessa governar". A tica da psicanlise se faz na poltica, na sustentao de um discurso que no promete a felicidade, ou oferece garantias de um grande Outro que, como o Deus cartesiano, sustente o lugar da verdade. No alardeia um discurso que produza uma lgica de grupo, de formao de massas, o que pressupe sempre a presena de um lder e a alienao do sujeito a ele, estabelecendo relaes
120 ZIZEK DALY, Glyn. Arriscar o impossvel: Conversas com Zizek. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p.201
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de subordinao. Em suma, a psicanlise no prope a criao de laos baseados na identificao. O que se pode aproveitar da para a criao de novos, ou de outros pressupostos para a ao poltica, o que est para ser formulado. Trata-se de uma aposta na sustentao de um discurso constitudo a partir da falta, do no saber, da falha - e, principalmente, da ausncia de garantias. Afirma-se a radicalidade da contingncia e do desejo. O sujeito responsvel pelo ato, sem Deus e sem demnio. Essa responsabilidade no se ancora na conscincia ou no livre-arbtrio. O ato atravessa o sujeito e o surpreende tanto quanto se fosse com outro. No h como escapar, o que testemunha Edipo. Esse pressuposto tico coloca novos desafios moral e poltica. Estariam lanadas as bases para se pensar a poltica de um outro lugar, de uma perspectiva diferente daquela inscrita por Maquiavel na Modernidade? ah, acalanto de ningum estrelas longnquas e frias serenas madrugadas sem aurora-fim.
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