A Psicologia de 1850 A 1950
A Psicologia de 1850 A 1950
A Psicologia de 1850 A 1950
Artigo de 1957- Michel Foucault Introduo O artigo uma proposta de cobrir a psicologia cientfica em um perodo de 100 anos, de 1850 a 1950. Quanto abordagem histricoa, Foucault est mais preocupado em situar uma dinmica do desenvolvimento da psicologia do que definir suas linhas e objetos de estudos. Esses vo sendo apresentados levando em conta uma dinmica que conduz o desenrolar da psicologia cientfica. O argumento central de Foucault afirma que o motivo implcito e poderoso da psicologia cientfica, o que a fez mudar de mtodos e agregar novas temticas de estudo, uma contradio entre seu projeto cientfico e dois postulados filosficos. O projeto corresponde a uma herana do Iluminismo de tentar encontrar no homem a extenso das leis naturais e os dois postulados filosficos so: que a verdade do homem est exaurida em seu ser natural, e que todo conhecimento cientfico deve passar pela determinao de relaes quantitativas, pela construo de hipteses e pela verificao experimental. Essa tenso dinmica de modo a provocar um deslocamento no projeto de alinhamento da psicologia com as cincias naturais. Na busca desse alinhamento, a psicologia se viu obrigada a recusar seus postulados de base. Assim, ao invs de equiparar o homem ao todo ser vivente, a psicologia deparou-se com especificidades humanas irredutveis ao mundo natural. O mesmo ocorreu em relao metodologia experimental: a psicologia teve que recusar a ideia tradicional de conhecimento cientfico e incorporar novas abordagens. No entanto, esses desdobramentos no se deram sem retenes dos postulados de base, mantendo-se contradies que os psiclogos desconhecem. Assim, muitas temticas psicolgicas se mantiveram com o advento de novas abordagens e o valor supremo conferido ao mtodo experimental se manteve apesar da renovao de temticas. Portanto, mais do que fazer uma histria do saber, Foucault se preocupa em mostrar a singularidade das cincias humanas. Esta residiria em ser
feita por um ser que no est na natureza, mas na Histria e que se movimenta a partir de contradies. Nesse sentido, as contradies logo encontradas na psicologia nada mais fazem expressar que a prpria realidade histrica desse ser que no somente conhece ou sabe, mas deseja conhecer os processos do pensamento, da percepo e da memria. O intuito implcito do artigo parece ser uma crtica ao projeto de psicologia cientfica. Esse projeto renovado com novas temticas e metodologias, mas da perspectiva de Foucault, apresenta dificuldades em incorporar a historicidade do seu objeto, que se expressa sob a forma de contradies. Ento, a questo mais importante para a psicologia cientfica seria o que fazer com tais contradies, que a medida que o texto avana so desdobradas em vrios nveis. Primeiramente, entre o mtodo e as temticas, para na sequncia culminar sob a forma de oscilaes entre mtodos e objetos que a psicologia em sua ltima etapa (estudo das significaes objetivas) expande e multiplica. Foucault tambm relaciona a inerente contradio da psicologia com a unidade do seu objeto. Dada a ciso e tenso de base existente no objeto (o homem) sobre o qual a psicologia deseja falar, haveria possibilidade de definir uma nica temtica, uma nica linha investigativa, uma nica linha de abordagem psicolgica? Essa discusso fica bastante clara na ltima seo, onde Foucault se dedica ltima etapa da psicologia cientfica (o estudo das significaes objetivas): Todas essas anlises de significaes objetivas situam-se entre os dois tempos de uma oposio: totalidade ou elemento; gnese inteligvel ou evoluo biolgica; performance atual ou aptido permanente e implcita; manifestaes expressivas momentneas ou constncia de um carter latente; instituio social ou condutas individuais: temas contraditrios cuja distncia constitui a dimenso prpria da psicologia. Mas cabe psicologia ultrapass-los, ou deve ela se contentar de descrev-los como formas empricas, concretas, objetivas, de uma ambiguidade que a marca do destino do homem? (p. 150) Mostrar os impasses da psicologia implica em mostr-los em separado dos das cincias naturais. Haveria uma aliana teoria-prtica que aparece nas cincias naturais e uma aliana teoria-prtica que aparece nas cincias
humanas. As primeiras cincias se colocam questes a partir das dificuldades em dominar seu objeto, nos obstculos e resistncias que a natureza impe ao homem. A grande diferena que enquanto as cincias da natureza incorporam essas temticas a partir de impasses provisrios, as cincias humanas trazem na sua constituio a marca do conflito, da contradio do sujeito consigo mesmo. sem forar uma exatido, podese dizer que a psicologia contempornea , em sua origem, uma anlise do anormal, do patolgico, do conflituoso, uma reflexo sobre as contradies do homem consigo mesmo (p. 135). Em seguida, Foucault formula sua hiptese mais central sobre a psicologia cientfica, o problema que considera essencial sobre a relao entre um saber sobre o homem e a condio histrica humana, habitada pela contradio consigo mesma. Em sntese, a psicologia ao se liberar dos dois postulados filosficos que presidiram sua gnese se deparou com a historicidade humana e a contradio do sujeito com ele mesmo. A questo como ela vai lidar com essa contradio: tentando unificar as temticas ou reconhecendo que a contradio o cerne do homem e que no h como dissolv-la. Talvez, o que ele esteja dizendo seja idntico tenso entre unidade e mulitiplicidade. O campo psicolgico se dispersa entre vrias temticas e mtodos na medida em que o fala de um ser em contradio fundamental consigo mesmo. O problema da psicologia contempornea... saber em que medida ela consegue efetivamente dominar as contradies que a fizeram nascer, atravs desse abandono da objetividade naturalista, que parece ser sua outra caracterstica maior (p. 135) Em seguida, o texto apresenta trs etapas que podem ser escalonadas como uma passagem do projeto naturalista at seu abandono, mas que no deixa de guardar relaes com esse projeto em uma terceira fase. As fases so as seguintes: a) o preconceito de natureza; b) a descoberta do sentido; c) o estudo das significaes objetivas.
1- O Preconceito de natureza.
Trata-se, ao mesmo tempo, de uma etapa histrica presa a um perodo especfico, o final do sculo XIX, como de um modelo de compreenso do homem ligado aos dois postulados filosficos citados. Foucault reconhece a diversidade de psicologias, mas frisa o trao comum do seu empreendimento: tomar emprestado das cincias da natureza seu estilo de objetividade e de buscar, em seus mtodos, seu esquema de anlise. (p. 135). Reconhece nessa etapa trs modelos: a) O modelo fsico-qumico, que se encontraria em todas as psicologias da associao e da anlise elementar. Foucault curiosamente no elege Wundt como maior representante, mas John Stuart Mill. O modelo se define a partir de uma bifurcao metodolgica (duas formas de pesquisa), que segundo Mill existiria entre as cincias, como a fsica newtoniana, que partem dos fatos gerais para universalizar leis e outras que partem de fenmenos complexos para em seguida reduzi-las a elementos simples. A tarefa da psicologia nesse modelo seria detectar os segmentos elementares dos processos mentais, tal como a anlise qumica; como princpio da percepo, encontrar-se-ia a sensao como elemento base e como princpio do conhecimento que o esprito tem de si mesmo, a anlise delimita o sentimento como elemento bsico. Tanto sensao quanto sentimento, no entanto, seriam regidos pelo mesmo princpio de funcionamento e de constituio dos fenmenos mentais, ou seja, a lei da associao. b) O modelo orgnico. Aqui Foucault situa autores como Bain, Fechner e Wundt e Ribot. Tais autores do um passo frente no processo de destacar o homem do mundo natural, mas no sentido de destacar o homem do mundo fsico, inserindo-o vigorosamente no campo do orgnico, na vida animal. Entendem a vida no tanto como resposta s estimulaes exteriores, mas dotada de espontaneidade, tal como definem as pesquisas sobre o orgnico feitas a ps a fisiologia de Bichat, Magendie e Claude Bernard. Deste modo, o psiquismo, tal como o organismo, caracterizado por sua espontaneidade, sua
capacidade de adaptao e seus processos de regulaes internas (p. 136). As pesquisas de Bain sobre o instinto, as de Fechner sobre as relaes entre estimulao e efeito sensorial e as de Wundt que retomaram a teoria das energias especficas dos nervos tem por trao comum frisar que o organismo no reage mecanicamente aos estmulos, mas os apreende de acordo com sua constituio. Neste sentido Wundt diz que preciso substituir o princpio da energia material pelo princpio do acrscimo da energia espiritual (p. 136) c) O modelo evolucionista. Aqui se incluem autores como Spencer, Jackson e Ribot (que havia sido includo na corrente anterior), autores reunidos em torno da substituio do mito newtoniano por um outro mito: o darwinista. Aqui o tempo se instaura como elemento a partir do qual os fenmenos psicolgicos devem ser entendidos, como frisam as pesquisas de Ribot em relao personalidade e memria. Diante dos fenmenos patolgicos, amnsias, desintegrao da personalidade, so exibidos a camada passada sobre a qual o funcionamento normal foi sendo construdo. Permanncia das lembranas arcaicas, liberao dos automatismos e dos sentimentos egostas, quando a vontade desmorona, etc. Segundo Foucault, a importncia dessa corrente foi ter apontado que todo fato psicolgico tem uma orientao, se desprende um funcionamento e tende a outro, se acumula, se desenvolve, enfim deve ser sempre relacionado ao passado e ao futuro. Foucault conclui assim anlise dessa etapa: para que a psicologia se desligasse do preconceito da natureza foi preciso que o direcionamento do psquico no fosse apenas entendido como fora, mas como advento da significao. Essa nova etapa centrada no conceito de Janet de conduta.
-A descoberta do sentido Nessa etapa da histria da psicologia, Foucault discorre sobre uma primeira separao do preconceito da natureza. Os autores implicados nessa etapa so Janet, Dilthey, Jaspers e, sobretudo, Freud. Freud uma
espcie de limiar: embora pertena dimenso das pesquisas orientadas para o subjetivo, o esprito em sua singularidade, ele j ultrapassa algumas oposies a estabelecidas, especialmente, entre mundo subjetivo e objetivo. Assim Freud se inscreve como devir, abrindo o campo posterior de estudo, o que concerne ao estudo das significaes objetivas. O tema que parece unificar toda essa etapa da conduta, objeto que j no pertence ao mundo natural. Janet quem explicitamente aborda a conduta (criando o termo), designando com o termo uma espcie de comportamento guiado todo o tempo pela constatao de seu resultado. Em outros termos, a conduta sempre regulada pelo seu efeito. Haveria uma espcie de circuito, onde o ato comparado com seus resultados e modificado ou reiterado. sobre esse desenrolar, onde a causa do comportamento talvez seja menos importante do que sua regulao, que se desenvolvem os estudos de Janet. Por conduta, Janet no entende este comportamento externo de que se esgota o sentido e a realidade, confrontando-o com a situao que o provocou: reflexo ou reao, no conduta. H conduta quando se trata de uma reao submetida a uma regulao, quer dizer, cujo desenrolar depende sem cessar do resultado que ela acaba de obter (p. 139). Na sequncia, o texto se volta para Dilthey, autor que partindo de uma grande importncia concedida Histria, introduz a clssica diferena entre mtodos explicativos das cincias naturais e mtodos compreensivos das cincias humanas. Portanto, no se trata de explicar o esprito por outra coisa do que por ele prprio do esprito por outra coisa do que por ele prprio; mas, ao se colocar no interior de sua atividade, ao tentar coincidir com esse movimento no qual ele se cria, preciso, antes de mais nada, compreend-lo (p. 140). Aps, um pequeno comentrio sobre Jaspers e a fenomenologia, Foucault se volta para a psicanlise. Para esta dedicada uma ateno particular, na medida em que nenhuma forma de psicologia deu mais importncia significao (p. 141). Encontrando-se cercado de temticas estudadas na etapa do preconceito da natureza, como os instintos de vida e de morte, Freud os incorpora em seu sistema para alter-los, introduzindo-os numa perspectiva onde a significao absolutamente
central. A importncia histrica de Freud vem, sem dvida, da impureza mesma de seus conceitos: foi no interior do sistema freudiano que se produziu essa reviravolta da psicologia; foi no decorrer da reflexo freudiana que anlise causal transformou-se em gnese das significaes, que a evoluo cede seu lugar histria, e que o apelo natureza substituto pela exigncia de analisar o meio cultural (p. 142). Foucault destaca quatro pontos onde o sentido explorado pela psicanlise. A) Em primeiro lugar, na recusa de separar comportamentos automticos e voluntrios. Toda conduta, ainda que uma paralisia histrica possui um sentido, cuja astcia de se simbolizar exige do analista um trabalho interpretativo. Mesmo quando o sentido no aparece, mesmo quando a conduta ou o fenmeno mental se revela absurdo, o sentido termina por se introduzir: nos mitos, nos sonhos, no lapso de linguagem. b) em segundo, a ligao do sentido com o passado, ou em outros termos, a inatualidade do sentido que expressando-se no presente revela o peso das significaes passadas. C) O passado no se apresenta tal como qual, mas transformado pelo presente; o sintoma no mera reapario do passado, mas uma transfigurao do passado; D) A simbolizao do passado como sintoma faz ver que o presente tem um valor especfico de instncia social que impede que o passado se repita identicamente, mas sempre diferencialmente. O peso do presente portanto a prpria dinmica do conflito entre desejo individual e limite social que integra a condio humana, n que jamais poder ser desfeito. Ele no tem o projeto mtico de suprimir o conflito, mas de transformar sua contradio neurtica em uma tenso normal (p. 143). Quanto ao ltimo aspecto, Foucault salienta a inovao de Freud: ele j se eleva do campo do nascimento do sentido e vai um pouco alm, certamente alm de Dilthey, Jaspers e Janet. Suas pesquisas partiram da singularidade humana, enfim de uma recusa do postulado filosfico de que a verdade do homem se esgota em ser natural. Descreveram atravs dessa separao, o campo do sentido, entendido, fundamentalmente por Dilthey como um produto do esprito. Em outros termos, reconheceram no advento do sentido, a primazia do sujeito humano, nada mais nada menos do que a fonte do significado. Freud, no entanto, faz do sentido
algo mais complicado cuja explorao deve percorrer o subjetivo e objetivo. Em outros termos, Freud atravs do conflito que inerente existncia humana, apresenta o conflito e o smbolo como instncia do sentido articulada simultaneamente ao objetivo e ao subjetivo. Da imperiosidade das pulses sua moderao pela incorporao das regras da cultura, um domnio entre o subjetivo e o objetivo, entre o indivduo e a sociedade percorrido de uma s vez, delineando o campo de investigao psicanaltico. Assim Freud ainda no pertena terceira etapa da histria da psicologia, comparece em posio proeminente de dar chance para seu aparecimento.
O estudo das significaes objetivas Foucault fala de 5 espcies estudos, relativamente recentes, incertos em seu futuro, dos quais cabe apenas tangenciar e definir seus contornos mais gerais. Ele inclui aqui correntes psicolgicas que surgem no sculo XX, como behaviorismo, gestaltismo, a epsitemologia gentica de Piaget, Wallon at autores ligados medio da inteligncia atravs dos testes como Catell e Binet. a) Elementos e conjuntos Curiosamente, Foucault considera behaviorismo uma corrente da psicologia ligada ao estudo das significaes objetivas. O tema no desenvolvido. Foucault apenas indica que Watson toma como objeto o sentido objetivo das condutas a partir das manifestaes objetivas do comportamento. No fica claro como as relaes entre estmulos e respostas podem ter relao com o sentido. E sentido adaptativo no estaria j includo na corrente evolucionista da primeira etapa da psicologia? A seguir, Foucault aborda o Gestaltismo. Faz sentido incluir o Gestaltismo nessa fase, pois se trata de um modo de pensar a atribuio do sentido, seja no campo da percepo, quanto no do pensamento e memria com o apelo a um tipo de causalidade dinmica, ou melhor, por toda uma interao de foras entre o sujeito e o objeto (p. 145)
b) Evoluo e gnese. Trata-se de autores como Piaget e Wallon que pensam como as estruturas cognitivas estudadas pelos gestaltistas se desenvolvem. Faz um contraponto entre Piaget e Wallon. Enquanto o primeiro, aborda o tema frisando os processos de maturao do sujeito do conehcimento, Wallon frisa o meio. Para ele, o devir psicolgico no o desenvolvimento de estruturas inteiramente preparadas, ele a preparao efetiva de estruturas adultas; no se trata mais de evoluo espontnea, mas de gnese ativa (p. 146). c) Performances e aptides. Trata-se de estudos que incluem a mensurao da inteligncia atravs de testes. Foucault esclarece que esses testes trabalham com o afloramento das significaes objetivas no domnio do observvel. As argumentaes aqui so bastante complicadas: Em todo esse movimento fatorial, a objetividade das significaes s mantida e garantida pela fragilidade das relaes estatsticas que alteram sua necessidade e a despojam de todo contedo efetivo. d) A expresso e o carter. Foucault fala de psicologias da expresso e do carter, mas aborda explicitamente autores ligados aos testes projetivos e expressivos. Nesse campo mais bvia a articulao com a temtica do sentido, pois esse contedo individual aflora, em primeiro lugar, em todos os fenmenos da projeo e sobretudo da projeo sobre um estmulo pouco diferenciado, de interpretaes que lhe emprestam um sentido imaginrio: o princpio das provas de Rorschach e Muway. e) Conduta e instituies Aqui trata dos trs grandes setores da psicologia social: o grupo, a opinio e atitude. Nesses trs temas estudados por Moreno, Kardiner e os pesquisadores das opinies e atitudes. Essa explorao deriva do elo entre a conduta individual e coletiva, elo j explorado Janet, Freud e Blondel. Por exemplo, a anlise das opinies e das atitudes busca determinar os fenmenos coletivos que servem de contexto s
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condutas afetivas do indivduo, assim como s suas operaes intelectuais de percepo, de julgamento e de memria (p. 149)
O fundamento das significaes objetivas Foucault termina o texto mostrando como cada pesquisa, cada temtica explorada na terceira etapa da psicologia envolve uma tenso ou oposio: totalidade ou elemento; gnese inteligvel ou evoluo biolgica; performance atual ou aptido permanente e implcita; manisfestaoes expressivas momentneas ou constncia de um carter latente; instituio social ou condutas individuais: temas contraditrios cuja distncia constitui a dimenso prpria da psicologia. (p. 150). O texto ainda menciona dois campos de estudo contemporneos, duas tendncias que se situam frente s ambiguidades do humano, no entanto, sem optar por dissolv-las: a ciberntica e antropologia de cunho existencial de Binswanger.