Gustavo César - Interpretação em Santo Agostinho
Gustavo César - Interpretação em Santo Agostinho
Gustavo César - Interpretação em Santo Agostinho
Abstract: The main objectives of this paper are to discuss Saint Augustine’s thought
about interpretation and hermeneutics and the relations between these ideas and
Contemporary Hermeneutics. The mainly object to be interpreted, according to the
Bishop of Hipona, was the Holy Bible, what implies the strong influence of religion in
his interpretative theories. To him, words would be only signals, and this would be less
important than the real meaning represented through them. Therefore, the most
important thing in interpretation would be finding the correct sense of a text, and this
sense would be the Truth, God’s will or even God Itself. In this way, it would be
admitted a pluralism of interpretation, only if it would be based on the Truth. It is
possible to conclude that the Augustine’s importance to Contemporary Hermeneutics
was huge, because, among other respects, he was the first to admit the plurality of
meanings, but even considering the limits imposed on it by his concept of Trutht.
1. Introdução e Objetivos
*
Aluno da Graduação em Direito na Universidade Federal do Ceará (UFC).
46
Revista dos Estudantes da Faculdade de Direito da UFC (on-line). a. 1, v. 2, mai./jul. 2007.
quais aquela se dá (idem, ibidem). Assim, percebemos que o homem sempre interpretou
os fenômenos ao seu redor, enfatizando, inicialmente, os naturais, para passar, à medida
que correram os séculos, à tentativa de se compreender os fatos gerados pelo seu
intelecto.
A palavra hermenêutica teve sua origem nesse período inicial, quando os antigos
se preocupavam imensamente com a interpretação dos fenômenos naturais, pois
acreditavam que, a partir deles, conseguiriam antever a vontade dos deuses. Como a
interpretação era posta em prática sempre que um véu impedia o entendimento da
mensagem (cf. FERRARIS, 1996:2), caberia ao intérprete fazer esta ligação entre o
signo sob o qual se apresenta a mensagem e seu conteúdo.
Um estudo da hermenêutica como matéria independente só surgiu a partir do
século XIX, com Schleirmacher e Dilthey; no entanto, desde a Antigüidade a
interpretação vem merecendo a atenção de alguns pensadores, especialmente a partir de
Platão. No pensamento de Aristóteles, encontram-se reflexões sobre o tema que até hoje
exercem real influência nas idéias daqueles que se dedicam à interpretação.
Com a difusão da Bíblia enquanto livro fundamental do cristianismo, a discussão
sobre qual a maneira correta de se interpretá-la fez surgir pensamentos diversos sobre o
assunto, concentrando-se essa dicotomia nas escolas de Alexandria e de Antioquia, que
defendiam, respectivamente, as interpretações alegórica e literal. A discussão sobre qual
dessas duas espécies seria a mais correta para se chegar ao verdadeiro sentido do texto
dividiu exegetas nos primeiros séculos desta Era.
É em Santo Agostinho, entretanto, que podemos encontrar teses
interessantíssimas sobre a questão da interpretação, tornando-se o objetivo principal
deste artigo a discussão sobre os principais pontos, na obra do Bispo de Hipona,
referentes à interpretação.
Autor de umas das obras mais vastas dos primeiros séculos do cristianismo,
Aurélio Agostinho, cartaginês, não nasceu cristão. Estudioso desde muito jovem,
lecionou retórica em Tagaste, sua cidade natal, transferindo-se, posteriormente, para a
Itália, precisamente Milão.
47
Revista dos Estudantes da Faculdade de Direito da UFC (on-line). a. 1, v. 2, mai./jul. 2007.
3. As Palavras
1
Interessante é o comentário que Agostinho faz de sua mãe: “mulher no aspecto, mas viril na fé, com a
calma própria duma idade avançada, ternura de mãe e piedade cristã” (Confissões, IX, 4).
2
Agostinho viveu durante alguns anos com uma mulher, antes de se converter, e desse relacionamento
nasceu Adeodato, morto precocemente aos dezesseis anos. Nas Confissões, tratando de sua viagem à
Itália, faz o seguinte comentário sobre o filho: “Juntamos também a nós Adeodato, o filho carnal do meu
pecado, a quem tínheis dotado de grandes qualidades. Com quinze anos incompletos ultrapassava já em
talento a muitos homens idosos e doutos. Confesso estes vossos dons, Senhor meu Deus, Criador de todas
as coisas e tão poderoso para corrigir as nossas deformidades, porque nada de meu havia nesse jovem,
além do pecado. Se por mim fora criado na vossa lei, fostes Vós e mais ninguém quem no-lo inspirou.
Confesso-Vos, pois, estes vossos dons.
Há um livro meu que se intitula De Magistro, onde ele dialoga comigo. Sabeis que todas as opiniões que
aí se inserem, atribuídas ao meu interlocutor, eram as dele quando tinha dezesseis anos. Notei nele coisas
ainda mais prodigiosas. Aquele talento causava-me calafrios de admiração, pois quem, senão Vós,
poderia ser o artista de tais maravilhas?”(IX, 6).
48
Revista dos Estudantes da Faculdade de Direito da UFC (on-line). a. 1, v. 2, mai./jul. 2007.
Da mesma forma, se alguém nos pergunta como anda a nossa vida, e nós
respondemos com um sorriso, é possível inferir que tudo está bem. Poderíamos
responder à mesma pergunta com o polegar levantado, e aquele que demanda
compreenderá o que queremos dizer.
Portanto, vemos que o conceito de “tudo bem” pode ser representado através de
mais de uma forma, tanto pelo polegar para cima quanto pelo sorriso. Estão são apenas
símbolos que representam uma idéia.
Agostinho, nas Confissões e no De Magistro, trata dos signos, colocando as
palavras entre eles. Elas não passariam de símbolos das idéias, tais como os dois
exemplos que demos acima, e, enquanto tais, não deveriam receber grande importância.
O importante, assim, era o que elas representavam, as idéias contidas nas letras que
compõem os nomes.
As idéias poderiam ser encontradas no pensamento, e é nele onde elas se
revestiriam de sua forma mais perfeita, sem a possibilidade de serem falseadas pelos
sentidos. Era no pensamento que residia o verdadeiro conhecimento. Nota-se,
claramente, a influência do pensamento de Platão no que diz respeito à dualidade de
mundos 3, o que é plenamente explicável se nos lembrarmos da grande admiração que
Agostinho tinha pelo fundador da Academia4.
Como o mais importante seria o sentido e não a própria palavra, Agostinho,
sempre que toca nesse assunto, refere-se ao fato de que uma idéia pode ser representada
por várias palavras não só dentro da mesma língua, mas, principalmente, variando de
uma língua para outra. Há uma passagem que pode ilustrar o que afirmamos através da
beleza que era peculiar aos seus textos:
3
O mundo ideal seria o das coisas em essência, onde elas poderiam ser encontradas em suas formas puras
e verdadeiras; já o mundo sensível seria aquele em que vivemos, onde não encontraríamos mais do que a
mera representação das coisas, falseadas pelos nossos sentidos. Para maiores esclarecimentos, veja A
República.
4
Em várias passagens da Cidade de Deus e das Confissões, Agostinho trata dos neoplatônicos e do
próprio Platão, não escondendo a admiração que tinha pelas suas idéias.
49
Revista dos Estudantes da Faculdade de Direito da UFC (on-line). a. 1, v. 2, mai./jul. 2007.
4. As interpretações
5
Sobre esse assunto trataremos na secção seguinte.
50
Revista dos Estudantes da Faculdade de Direito da UFC (on-line). a. 1, v. 2, mai./jul. 2007.
Que no sétimo dia Deus tenha descansado de todas as suas obrs e o tenha
santificado, não deve de modo algum ser entendido puerilmente, como se
Deus se houvesse fatigado, trabalhando, Ele, que disse e foram feitas, com
palavra inteligível e eterna, não sonora e temporal. O descanso de Deus
significa o descanso do que descansam em Deus, como a alegria da casa
significa a alegria dos que se alegram em casa, embora os faça estar alegres
não a casa, mas outra coisa qualquer. (A Cidade de Deus, XI, 8).
51
Revista dos Estudantes da Faculdade de Direito da UFC (on-line). a. 1, v. 2, mai./jul. 2007.
Buscar o sentido presente na alegoria faz com que o intérprete, nesse caso,
Agostinho, encontre um mesmo significado em alegorias distintas, que acontece quando
este tem suma importância dentro do contexto bíblico, devendo ficar fixado na mente de
quem lê as Escrituras. É o caso encontrado em dois pontos distintos: primeiro é a
transformação da vara de Moisés em serpente, e o outro é o da pedra de Jacó, onde
adormeceu:
A unção de pedra representa a Cristo na carne mortal, na qual foi ungido com
o óleo da alegria de preferência a seus companheiros. A vara convertida em
serpente por Moisés prefigurava o mesmo Cristo, mas feito obediente até a
morte de cruz. (…) A serpente simboliza a morte, introduzida no mundo pela
serpente do paraíso. (…) a vara transformada em serpente é Cristo destinado
à morte. Quando a serpente volta a ser vara, representa Cristo ressuscitado
com seu corpo, que é a Igreja. (A Trindade, III, 10, 20).
Outra alegoria trazida por Agostinho pode ser encontrada na conclusão de uma
de suas obras mais conhecidas, O Livre Arbítrio. A passagem “um só dia em teu
santuário vale mais do que mil anos longe de ti” (Salmos, 83, 11) é interpretada da
seguinte forma: “ainda que se possam interpretar essas palavras em outro sentido,
compreendendo por mil dias a mutabilidade dos tempos e designando por um só dia a
imutabilidade da eternidade” (O Livre Arbítrio, III, 25, 77).
Além dessas duas possibilidades de interpretação – a literal e a alegórica -, não
poderíamos deixar de citar que foi Agostinho um defensor, e talvez o primeiro para a
Bíblia, da interpretação sistemática. Esta consiste em analisar todo o contexto para que,
a partir dele, especificamente das partes bem compreendidas, se torne possível entender
o que não ficou muito claro.
Segundo Márcio Diniz, quando o intérprete não deparar com uma parte obscura,
deve recorrer àquelas passagens bem compreendidas, ou seja, aquelas cujo sentido foi
bem compreendido. O mesmo autor afirma que isso deve ser fruto da intuição de que se
vale o filósofo de que a boa compreensão do todo leva ao bom entendimento da pare.
Quanto a isso, esclarecedora é a passagem: “toda parte é parte de algum todo e o todo só
o é com todas as suas partes. Todavia, como a parte e o todo são corpos, possuem não
somente um valor relativo, mas também substancial” (A Trindade, IX, 4, 7).
5. A Verdade
52
Revista dos Estudantes da Faculdade de Direito da UFC (on-line). a. 1, v. 2, mai./jul. 2007.
53
Revista dos Estudantes da Faculdade de Direito da UFC (on-line). a. 1, v. 2, mai./jul. 2007.
por ele interpretadas poderiam sê-lo novamente e de modo diferente por outros
(OLIVEIRA, 2005:590).
Assim, o limite do sistema interpretativo agostiniano seria o seu conceito de
Verdade, oriundo da Revelação. Até porque tudo o que existe no mundo, “a física, a
lógica e a ética, como o próprio homem, são reflexo e imagem do Criador” (RAMOS,
1984:312), fazendo parte desse sistema baseado em uma origem comum, o que acarreta,
nesse caso, uma essência comum.
6. Conclusões
A partir do que foi exposto nas páginas anteriores, podemos concluir que
Agostinho contribuiu imensamente na formação da hermenêutica hoje existente.
Além de estabelecer um verdadeiro método para a boa interpretação, que deveria
começar com a interpretação literal, passando à alegórica, caso aquela não fosse
suficiente, e à sistemática, se as outras não bastassem, ele desenvolveu conceitos que
serviram de base para o nascimento da lingüística. Enquanto Aristóteles transferiu para
o homem o objeto da hermenêutica, Agostinho consolidou como objeto principal desta
os textos.
Foi Agostinho, também, o primeiro a admitir uma pluralidade significativa, uma
vez que a solução para a hermenêutica seria encontrada em uma teoria do conhecimento
baseada na semiótica (FERRARIS, 1996:14). Fazendo nossas as palavras do grande
historiador da hermenêutica Maurizio Ferraris, sintetizamos a importância do
pensamento de Agostinho para a hermenêutica contemporânea, e com ela concluímos
definitivamente o nosso texto:
7. Referências
54
Revista dos Estudantes da Faculdade de Direito da UFC (on-line). a. 1, v. 2, mai./jul. 2007.
______. A Trindade. Trad. Frei Agustino Belmonte. 3 ed. São Paulo: Paulus, 2005.
______. De Magistro. Trad. Ângelo Ricci. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
______. A Cidade de Deus. Trad. Oscar Paes Leme. 2 v. 7 ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2006.
______. O Livre Arbítrio. Trad. Nair de Araújo de Oliveira. 4 ed. São Paulo: Paulus,
2004.
55