MárioZambujal, Primeiro As Senhoras
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PRIMEIRO AS SENHORAS Mrio Zambujal RELATO DO LTIMO BOM MALANDRO 2.006, Mrio Zambujal e Oficina do Livro - Sociedade Editorial, Lda. Rua Bento de Jesus Caraa, 17 1495-686 Cruz Quebrada - Dafundo E-mail: [email protected] Ttulo: Primeiro as senhoras Relato do ltimo bom malandro Autoria: Mrio Zambujal Reviso: Oficina do Livro Composio: Oficina do Livro, em caracteres Sabon Capa: Antnio Belchior Fotografia: Augusto Brzio Impresso e acabamento: Guide - Artes Grficas, Lda. (Portugal) 3 edio: Maio 2006 ISBN 989-555-195-9 Depsito Legal n 243260/06
Quinta-feira, 5 - Manh O DECLARANTE E O INSPECTOR Aqui me tem, senhor Inspector. Vivo, inteiro e ansioso por colaborar. D-me tempo. Por agora como se um tufo me tivesse varrido a cabea. Indcios, pormenores, eventuais pistas, no sei onde param. Depreendo tratar-se de uma reaco do crebro s recordaes penosas, j aconteceu com a minha irm Rute: foi casada doze anos com o Dlio ceramista e no se lembra nem da cara dele. Comigo, a nuvem esvai-se em dias, talvez horas. Tudo quanto a memria captou retomar os seus lugares. Conte com depoimento decisivo para filar os energmenos. Para j, e objectivamente, o que posso descrever o seguinte. Pouco passava da meia-noite. Cinco, sete, v l, dez minutos. Sa de um velrio animadssimo e caminhei para o carro estacionado numa rua prxima. 7 Noite modorrenta, ar quente e parado. Despi o casaco e afrouxei o n da gravata. Vi um parzinho namorando a quatro mos. Ainda me ocorreu ligar para a Renata Emlia a sugerir-lhe que aparecesse no Bar Afunda. Desisti. Ela andava na fase do deitar cedo. E nessa altura, sou franco, quem ocupava os meus pensamentos era a Marilinha Misse. Estala a primeira contrariedade: quis acender um cigarro e nem fsforos nem isqueiro. Num primeiro impulso avancei para o rapaz de manga cava enganchado na morena que tinha uma sandlia calada e outra descala. Recuei. Nunca me permitiria o papel de empata. O chavalo ainda virou a cabea, sobressaltado: Queria alguma coisa? Disse-lhe o que ouvia do meu pai quando era garoto e nos juntvamos mesa: Come e cala-te. Aproximou-se um transeunte, alto, esgalgado. Obliquei para lhe sair ao caminho. Ele olha-me de soslaio e comea a dar passinhos para o lado. Insisto em acercar-me e o homem esgania-se aos gritos: Polcia! Polcia! Era noite de azar: apareceram dois polcias. Optei pelas gargalhadas, o riso seria convincente prova de inocncia. Quem se ri assim no pode ser larpio apanhado em flagrante. 8 Agitei o mao de cigarros em frente do cagarola: Lume! S queria lume! E para provar de vez a boa-f ecidi-me pelo espectculo: virei os forros dos bolsos )dos,
casaco e calas. Mas era mesmo noite de enguio: entre os meus pertences espalhados na calada, saltavam vista um isqueiro amarelo e carteira de fsforos com anncio do bar. Valeu-me a feliz coincidncia. De tempos a tempos ou protegido por felizes coincidncias. Quando tinha dezassete anos e o meu pai me cortou as sadas nocturnas, a feliz coincidncia foi que da janela do meu quarto sacada da Almira do Dancing era um pulinho. Naquela noite, deu-se o caso de surgir um grupo de pndegos que vinham igualmente do velrio. Entre eles uma alta patente militar. Afianaram que sou fumador e pessoa de bem e o caguinchas acabou a cravar-me um cigarro. Isto foi, digamos, o prlogo. Despedi-me do pessoal segui tranquilo. Quando estou quase, quase a entrar no irro, acontece o que o senhor Inspector sabe: saltam-me em cima trs sacanas encapuzados e atiram-me bruta para dentro de uma carrinha cor de tijolo. 9 A cor da carrinha foi a ltima imagem que captei antes de me vendarem os olhos. Alis, penltima. Notei ainda que a venda era uma meia preta de senhora. Deprimente. Acho bem senhoras com meias pretas mas abomino meias pretas de senhora sem senhora. No entendia o que se estava a passar. S me recordo de ter pensado: gaita, deixei a porta do carro aberta e tenho l as chaves do bar. Noite malvada. Agora o senhor Inspector manda. Se v interesse, eu aplico-me quantas horas achar necessrias a observar retratinhos de malfeitores conceituados. No maada nenhuma, sempre me seduziu a problemtica criminal. Um dia, com vagar, hei-de contar-lhe passagens da minha experincia como investigador particular e sigiloso. Considero at instrutivo analisar as carinhas dos fichados que, no seu superior entendimento, so artistas para se abalanarem a golpes desta envergadura. Mas repito, senhor Inspector: os gabirus usavam capuzes como mscaras. Mscaras, luvas, botifarras e, apesar da calorina, uns casaces invernosos que nem permitiam distinguir se eram magros ou gordos. Trabalho de profissionais, no? 10 Depende. Vivemos uma poca de informao a jorros. Qualquer cidado insuspeitvel, estilo funcionrio exemplar, dado famlia, frequentador de igreja, pontual pagador de impostos, tem mo a cartilha toda. Quem no domina, hoje
em dia, o a-b-c do marginal? Prudncia. Como diz o Falinhas, o sonho de todo o fregus sair sem pagar a conta. O Falinhas um filsofo que distribui copos pelas mesas do Bar Afunda, respeitvel estabelecimento de que este declarante co-proprietrio. Ser-me-ia grato ter o senhor Inspector como convidado para umas flutes de champanhe, do bom, quando desembrulhar este novelo todo. Conhecer ento a minha scia, Bruna, cento e catorze quilos e uns bceps que pem os vivaos em sentido. E o Falinhas. O sinal particular do Falinhas o tom de voz. Ele no fala, segreda. Como resultado, temos os clientes de mo em concha sobre o ouvido e a perguntar: O qu? Imperturbvel, o Luciano, dito o Falinhas, repete quantas vezes o solicitarem. Sem subir o volume. Profissional de mo-cheia a aviar bebidas, o Falinhas , mais que tudo, um mimo de gente. E ainda h semanas me espantou com um talento novo: toca piano. Admiravelmente. Tenho a Bruna e o Falinhas de olho nos frequentadores do bar. dos livros: sujeito que lhe d para exibir 11 enriquecimento repentino e sem explicao, pespega-se com ele na lista de suspeitos. O senhor Inspector homem para conhecer os lugares da noite. Entra de tudo. Nem o Bar Afunda, com clientela seleccionada, pode benzer-se de s l porem o eu cavalheiros como ns. Estou a pensar, concretamente, em trs melros que arrastam as noites a conspirar em surdina. Nem o Falinhas comunica to discretamente. Curioso que ningum os viu por l enquanto penei sequestrado e voltaram ontem mais expansivos. Bichanou-me o Falinhas, esta manh, que um deles perguntou com arzinho de troa: E o patro Edgar? Tem aparecido? Foi de frias, sacudiu o Falinhas. O qu?, perguntaram em coro, arrebitando as orelhas. Frias. O primeiro descaiu-se com graola suspeita: Frias pagas pelo velho Sertrio, se calhar. E dobraram-se a rir. Perante isto, o que pensar? Tudo. Que mesmo a trupe do rapto ou apenas uma trindade de palermas. A segunda hiptese no anula a primeira.
Descanse. Estarei atento ao que se passa volta, uma ideia insiste em martelar-me as meninges: o golpe tem dedo de quem me conhece de perto. Falo de amadores ainda 12. sem lugar no seu lbum de especialistas. L iro parar, o crime perfeito s existe quando a investigao imperfeita. Ora, na circunstncia, no h porta por onde se escapem. Nem por um instante, meio instante, duvido de que o senhor Inspector, olha quem, vai deslindar o enigma. Se prefere perguntar, pergunte. Mas, numa primeira fase, o que julgo til reconstituir os acontecimentos que antecederam o crime. Passei o sero no trio da Igreja dos Prazeres, levado por mais um dos acasos que me conduzem aos ziguezagues. Hoje fcil comentar que foi disparate pr os ps no velrio. Certo. Mas o que me faz matutar isto, senhor Inspector: quem tinha conhecimento de que eu me encontrava ali? Mais: quem conhecia o meu carro, paradinho a cem metros da igreja, para me fazer a espera nesse preciso ponto? Convenhamos que as aparncias apontam para algum que me viu no piedoso acto. No sou do gnero de lanar suspeitas doida mas sabe como, em certas circunstncias, um homem desconfia at dos amigos. Amigos, prudncia, o abrao pode ocultar a punhalada. A bem dizer, a minha ida ao velrio explica-se com dois nomes s: Marilinha Misse e Gaspar Olvio Ripas. 13 A Marilinha Misse tentao antiga e silenciosa. O perfeito enlace do fsico e do espiritual. Mas o superior encanto dela reside num simples gesto, acompanhado de uma palavra. Mais ningum, neste universo de cativantes mulheres, tem o mesmo jeitinho de subir a mo pela nossa face e perguntar com a rouquido no ponto de rebuado: Ento? Como outras interrogam ests bem?, como vais?, ela deixa deslizar os dedos at se envolverem nos cabelos e sai-lhe: Ento? Andei alucinado e faminto. Mas distra-me. Quando me dispus a participar-lhe a inclinao e algumas ideias acerca do que devamos fazer com urgncia, j o Ripas se desabotoava com ela. Custou-me, mas perdi com ferplei. Nunca saber que comprei a cama de trs metros por dois e meio para a estrearmos em colaborao. Da dorzita de corno s me lamentei ao velho Grafula, campeo de valsas e doutor
em provrbios. Que esperava eu ouvir? Lgico: guardado est o bocado para quem o h-de comer. Foi o que ele disse. Nesse famoso dia do rapto, logo pela manh, correu o boato: sem que ningum esperasse, o Gaspar Olvio Ripas tinha morrido, encontrando-se o corpo em cmara ardente na Igreja dos Prazeres. 14 Mais que boato, notcia de jornal. Por motivos passionais, escreveram, um alucinado enfiou duas balas no peito do nosso amigo. Foi um choque e uma estranheza. Motivos passionais? O Gaspar Ripas era um campeo de farras e femeeiro, mas parecia retirado de alvoroos de saias. A Marilinha Misse meteu-o na ordem. Comeou a chegar gente, gente, s tantas o velrio era um xito. Poucos se tero visto com tanta animao, sobretudo depois de jantar, quando se formaram grupos recordando as aventuras e faccias do morto. Algum levou um frasco de usqui que circulava de goela em goela e explicou: Noite com o Ripas nunca foi a seco. Cerca das onze, a reunio fnebre tomou ares de arraial. Misturou-se gente e uma ruiva de cales de caqui quis saber: Qu dos noivos? Que noivos? No casamento? Velrio, senhora. Mentira. E o morto? No lugar dele. Pode entrar, grtis. Nesse momento eu j tinha concludo, comigo mesmo, que o desgosto pelo falecimento do Ripas era bem superior vontade de rever Marilinha Misse. Chegou a colocar-se-me esse problema de conscincia. 15 Entrei na capela e acerquei-me para um sentido adeus. Da Marilinha nem sombra. Uma senhora de vu sobre a cabeleira branca ocupava-se em ajeitar a gravata do falecido, cuja face se ocultava sob um piedoso leno de seda com monograma: G. R. Fui apresentar-lhe condolncias. Desculpe. da famlia? Filha. Filha? Mas como filha? Filha, como? Bem, o meu pai e a minha me...
Nada fazia sentido. Mas evito perguntas acerca da idade a qualquer senhora acima dos dezasseis. Torneei o problema. Diga-me, ento, por favor: com quantos anos faleceu o meu querido e inesquecvel amigo? Noventa e quatro. No percebo. Noventa e quatro. Mil desculpas, enganei-me na capela. O nome do paizinho era... Gaspar Olvio Ripas. Disparate. O Gaspar Olvio Ripas era rapaz da minha gerao, vou a caminho dos quarenta e trs. Noventa e quatro tinha ele. O mximo, quarenta e seis. 16 Olha, olha, quarenta e seis gostava eu de ter e sou a filha mais nova. Noventa e quatro. Se no fossem o momento e o lugar, diria que a veterana brincava comigo. No fala a srio. Noventa e quatro, o Ripas? E cinco meses. Noventa e quatro anos e cinco meses. Veio-me a suspeita de que era meio maluca mas a situao no me permitia virar as costas. No estar a ler de trs para a frente? Vou at aos quarenta e nove. Noventa e quatro. Quer que lhe mostre o BI dele? Quero. No o trouxe. Mas est l que o meu pai, av das minhas trs filhas, bisav dos meus netos, Gaspar Olvio Castrogildo Ripas, contava noventa e quatro. Castrogildo? O Ripas no era Castrogildo. O meu pai era. Inesperadamente, ela levantou o leno que cobria o rosto do defunto. Vi um ancio, de aparncia fina como pea de porcelana, com uma expresso tranquila. No resisti a apontar o dedo ao saudoso: Ripas? Gaspar Ripas?
Castrogildo Ripas. O meu pai era Castrogildo. Castrogildo pelo lado da me, que era aristocrata e destinada a casamento com um baro mas fugiu com o 17 carvoeiro. O carvoeiro Ripas fornicava com numerosas clientes, mas quem ele levou ao altar foi a minha av. Voc conhece histria de amor mais bonita? Impossvel. Ento aquela notcia no jornal referia-se ao seu paizinho? Exactamente. No puseram l que ele era comendador. Mas puseram, os tontos, que ele foi baleado por motivos passionais. Exactamente. Mulheres. Brinca? Ele tinha namoros, e tal, aos noventa e quatro? Mas a culpa nunca foi dele. Elas no o largavam. Corri para o trio e berrei a grande notcia: No o nosso! O morto no o nosso Gaspar Olvio Ripas. Tarde. Nesse momento, j o Gaspar Olvio Ripas, o nosso, era passeado aos ombros do peloto de amigos. Tinha-lhe chegado a notcia do seu prprio falecimento e apresentou-se, acompanhado pela Marilinha Misse, para esclarecer que no era bem assim. Ali andava ele, transportado como um andor, quando a Marilinha Misse deu com os olhos em mim, sorriu, veio, veio, afagou-me a bochecha de baixo para cima at os dedos se enfiarem no cabelo e perguntou: Ento? 18 No de admirar que pensasse nela quando me dirigia para o carro e acabei estendido no desconforto de uma carrinha cor de tijolo. Agora, se o senhor Inspector concordar, fazemos intervalo. Preciso de espairecer. Daqui a uma hora, hora e meia, avanamos com o depoimento, quem sabe se enriquecido com novas recordaes. Quando menos se espera, a esto elas a saltar o muro. 19 Quinta feira, 5 - Tarde ENCONTROS DE ACASO
Soube-me bem o intervalo, senhor Inspector. Dei uma volta a p, passeando, revendo, notando as pequeninas coisas a que no hbito dar ateno. Parei a admirar as montras, at das padarias. Entretive-me a observar o atletismo de gente apressada e, naturalmente, digo naturalmente por ser da minha natureza, espraiei
a vista pelas transeuntes. Engraado, como cresceu o nmero de mulheres bonitas. Feia, que se diga feia, nem uma. Baralhao minha, o panorama no mudava tanto em nove dias. So os sentidos a fazer a festa depois da privao. Mas, fosse qual fosse a fase mental, teria parado a olhar a mulher espera de txi. Lembrou-me uma dessas chamativas dos placares de publicidade, um homem nem v o que elas anunciam. 21 Difcil era ficar de boca fechada perante tal personagem e saiu-me: Eu sabia que tinha de existir algum como voc. Fiz bem em no me ter casado. Uma inocncia destas s pode ser ouvida como cumprimento mas nunca se sabe como elas reagem. Umas encrespam-se e viram as costas, outras concedem um sorriso e o atiradio tende a embalar. Cautela, tem de perceber se o sorriso princpio ou acaba a. Uns segundos, permaneceu muda e queda. De repente, rodopia e enfrenta-me, toda ela surpresa: Edgar! A surpresa transferiu-se para o meu lado. E agora? Quem era? A cara no me pareceu absoluta novidade, problema era situ-la e dar-lhe um nome. Ol, por aqui?, balbuciei. Ela topou-me o embarao e foi cruelzinha: Tens o meu nome debaixo da lngua, no ? Nomes no passam de rtulos que nos colaram. Importante foi ter-te encontrado, disse, enquanto os pensamentos me esquadrinhavam o currculo procura de legenda para a imagem. O txi parou e ela foi-se chegando. J de mo na porta atirou a soluo: Sou a Zina, estpido! Mereci o adjectivo. Passou um comboio de anos sem ver a Zina e ela mudou. De treze para dezanove valores. Mas devia t-la reconhecido logo, at pelo que aconteceu. 22 Antes de arrancar ainda me chamou. Fui. O teu telefone. Era mais ordem que pedido. Dei-lhe o nmero com o corao apertado. Deus sabe e o senhor Inspector no tardar a saber como fraquezas destas me tm ensarilhado a vida.
Tens visto a Nolia? Havia malcia na pergunta e nos olhes dela. No, nunca mais vi a Nolia. Tivesse eu a presuno de ler nos pensamentos alheios e diria que agucei a curiosidade do meu caro Inspector. Calma, fica para outro dia, e se vier a propsito, o embate com as duas meninas. Devemos concentrar-nos no essencial. Do essencial retenho o prlogo e o eplogo. Falei dos acontecimentos na noite do rapto, ateno ao que se passou na madrugada em que me vi solta. solta forma de dizer. Atado de ps e mos, mordaa com pivete a lixvia, o rabo aoitado pela rebentao das ondas. L compareceu a feliz coincidncia. Veio na forma de casal a passear o caniche pela praia s trs e meia da madrugada. Gostaria de descrever o homem mas no Sei como. Nunca vi pessoa mais igual a toda a gente. 23 A mulher protegia-se do luar com culos de sol e turbante. Seguiriam o seu caminho sem se aperceberem do embrulho que eu era. Aflito, descobri genica que nunca tive e disparei a rolar pelo areal como parafuso na porca. Estacaram. Que aquilo?, intrigou-se a senhora. Talvez golfinho desnorteado. Ou foca. Em passos medrosos acercaram-se um pouco. Cus, homem!, descobriu ela. O sujeito riu-se. Vais ver, h cmaras de televiso escondidas atrs das dunas. Cheira-me a gracinha de Apanhados. O desespero deu-me foras para rebentar a mordaa, supliquei: Desamarrem-me, caraas! A mulher ia avanar mas ele deteve-a. Espera. Ou muito me engano, ou temos aqui ajuste de contas entre gangues. Tu achas? O meu curto passado de investigador particular deu-me a ideia: Sou polcia, tontos! Funcionou. Ele cortou-me as cordas com os dentes enquanto ela me tirava a areia dos olhos com a aba do robe. Zarparam to acelerados que a minha desgraada condio fsica no permitiu acompanh-los. 24
Caminhei ao deus-dar at encontrar uma cabina telefnica. Bela descoberta se tivesse moedas. Adormeci encostado cabina, at que chegou um mendigo. Ganda pifo, avaliou ele. Empresta-me uma moeda? No tenho trocado. Mas atirou a moeda com um piparote e achou por bem informar: A esta hora no h stio onde te vendam um copo. Liguei para o Falinhas. Depois de instalado na furgoneta do Bar Afunda, apeteceume assobiar. Ainda no inventaram nada melhor que a sensao de alvio, seja da cabea ou da barriga. Como v, no me falha um pormenor do antes e do depois. Quanto ao que se passou no meio, nada. A no ser que o Sertrio Egdio Miranda recebeu um bilhete a exigir resgate. Mas no me entra na cuca como se disps a avanar com um malo de notas para me salvar o canastro. O homem odeia-me, senhor Inspector. Desde a primeira hora. E essa raiva eu entendo, l na ideia dele sou o canalha que lhe desassossegou a filha. Engana-se, tarde ou cedo a bomba iria explodir. Era s questo de aproximar um fsforo. Eu, sem querer, fiz de fsforo. 25 Quem me conhece pode confirmar: se h defeito a que a natureza me poupou a hipocrisia. Nunca por nunca ocultei o apreo por mulheres, sobretudo as especiais, como o evidente caso da Renata Emlia. O senhor Inspector j a conhece. Igualzinha Julia Roberts, no? Todos dizem. Mas de corpo eu acho a Renata superior. Quase ao nvel da Marilinha Misse. Sem a pretenso de meter a colher na sua sopa, insisto no apelo para ir anotando a torrente de factos inexplicveis que conduziu ao penoso desfecho. Vem de trs: sempre andei aos baldes, empurrado por acasos. Se h as felizes coincidncias, tambm no faltam acasos que tramam a vida de uma pessoa. Eu sei, senhor Inspector, dessas teorias que negam o acaso: o acaso no existe, nada acontece por acaso. Mas veja como as coisas se passaram: conheci a Renata num sero acidental, coisa sem sentido foi estar ali; sem esse acaso eu jamais teria iniciado uma relao com a Renata; sem essa relao nunca me veria na condio de sequestrado. Comigo vem tudo de carambola. O primeiro culpado foi o Britinho Cardoso a quem chamamos o Maraj. Havia semanas que me seringava
26 com uma festa particular, eu ia resistindo. No conhecia os donos da casa nem os convidados. Argumentou que, indo ele, procederia s convenientes apresentaes. Vais encontrar gajos bacanos e um naipe de damas de tarar. Cedi por cansao e ateno persistncia dele. Surgiu, todavia, novo golpe do acaso: acabadinhos de entrar, o cabranote desatina com um telefonema. Seria chamamento de paixo-novidade, pulou, riu, beijou o telefone, gritou trs vezes lesse! e safou-se aos gritos: Tenho de ir, p, tenho de ir! Tentei segur-lo. Um tempinho mais e ter-me-ia relacionado com os tipos reinadios e mulheres efectivamente merecedoras de se lhes chegar fala. Se tal tivesse sucedido, o natural seria nem ter visto a Renata Emlia, oculta algures no meio do magote. Se, se, se, pouco adianta fantasiar os diferentes trilhos para que nos impelem acasos diferentes: no real, o Maraj pisgou-se e fiquei intruso na festa dos Marques Ambrsio. A pior solido quando estamos acompanhados e os outros nos ignoram. Encosteime a uma coluna, bebericando, fumando, no passava de espectador da animao alheia. Eles e elas eram ntimos e rejubilavam. Vi uma gara de meias prateadas a correr pela sala 27 aninhando-se no peito dos homens todos. Por mim passou sem um ol. O Maraj no mentiu. Abundavam sublimes mulheres, caprichando nos vestidos justos e ausentes de ombros, no sapatinho ngreme, nos penteados de quem se baldou a meio da obra do cabeleireiro. Todas assim menos uma. Conceda-me o senhor Inspector meio minuto, no mais, j vamos ao concreto lance em que o meu destino se enredou com o da Renata. Menina de seda e mel, devo dizer. Mas nem imagino as artimanhas que usou para convencer o pai a pagar-me por bom. Cinco minutos antes de eu saber que a Renata existia, aterrou o ministro. indispensvel referir este ponto, dado que a chegada do ministro desencadeou o movimento centrifugador que nos isolou aos dois: a Renata e eu.
Bem me tinha cheirado que aguardavam alguma celebridade, pensei em cantor, futebolista, vedeta de televiso. Ministro no me ocorreu e era. A importncia das criaturas nem sempre se mede pelo rebulio que provocam mas, gaita, tnhamos ali ministro. Fez-se roda em 28 torno do ilustre. Prossegui marginal, chupando o ltimo cigarro do mao e atacando o quarto usqui. Foi ento que a vi, senhor Inspector. Sozinha, do outro lado da sala. Avancei com sofreguido de nufrago por bia de salvao. Mtua salvao, atrevi-me a admitir. Talvez aquela gracinha se sentisse igualmente excluda e faminta de atenes. Eu sou o Edgar, disse-lhe. E preciso desesperadamente de si. A primeira reaco foi fria, quase hostil, mas logo escancarou aquele sorriso cinematogrfico que o senhor Inspector ter apreciado. Soube-me bem quando se esticou para cumprimentar de beijinho. Renata, sussurrou ao meu ouvido. A partir da deu-me para os piropos. Piropo tem mal? No tem. Vem dos antiqussimos madrigais, ou antes, antes, desde que existem mulheres e homens com olhos na cara. Peo desculpa, longe de mim a pretenso de ensinar missa a um cardeal. Por detrs dessa cara sisuda aposto que se esconde um galanteador dos bons. Acertei? No importa. Seja como for, reconhecer que os piropos so homenagens que se prestam, com ou sem objectivo. Objectivo, tanto pode ser namoro firme como encosto 29 avulso e descomprometido. Mas garanto: na ocasio, o que eu pretendia era precisamente nada. A no ser um fim de festa alegre com aquela Julinha Roberts. Conversmos. Ou antes, fui derramando elogios, graolas. Jurei que o nosso futuro seria comum e luminoso, devia preparar-se para um romance dos antigos. Ela riase, ria-se, duas meloas saltitando, meio dentro, meio fora da blusinha branca com bordados da Madeira. No senti raspas de contrariedade quando se aproximou um rapaz, todo de amarelo-torrado, que deduzi ser o namoradinho em exerccio. Por sinal desagradoume a pinta - Oscar Geraldo, fixei-lhe o nome - e achei que no seria tocador para aquela guitarra. Assunto deles.
Ainda me diverti com a preocupao da Renata em regressar a casa hora estipulada. Uma cinderela, comentei comigo mesmo. E l fui, tranquilo, a caminho do bar. Impossvel saber que tinha posto o p num carrossel desvairado. Pelo que leio na sua expresso, entende o senhor Inspector que continuo a desviarme do essencial. Acho que no. Procuro enquadrar os factos desde o incio e tudo comeou na noite, melhor dizendo, na hora em que 30 conheci a Renata Emlia da Assuno Miranda. Tivesse eu embicado noutra direco e no estaria aqui a conversar, gostosamente, alis, com uma alta figura da cincia policial. Onze meses passaram at noite da carrinha cor de tijolo. A partir da tudo vago, nebuloso. Terei de organizar as ideias para me sair relato com mincias e na devida sequncia. Preciso de dormir, senhor Inspector. Uma boa noite de sono ajuda a restabelecer a memria retentiva. Com sua licena, continuamos amanh. 31 Sexta Feira, 6 - Manh MAIGRET E POIROT Dormir, eu dormi, senhor Inspector, mas no posso falar em descanso. Sonhei exaustivamente. Julgo ter revivido todas as fases do assalto mas, pela manh, a nossa mente guarda apenas farripas dos sonhos. Com algumas traquinices do subconsciente. O subconsciente um apanha-bolas cata de perdidas. s vezes, devolve. Mas no sei aonde foi buscar aquela Renata brava a entrar pela clarabia da saleta onde me tinham fechado. Vinha na pele de uma dessas duronas do cinema que presenteiam os machos com tareias colossais. As mulheres adoram e compreende-se: alegoria da justa insurreio. Mas tambm se entusiasmam, note, espectadores de barba na cara. H malta que as prefere brutinhas. Eu detesto violncia, nunca vou ao cinema sem me certificar de que o filme limpo de cenas dessas. Uma vez 33 enganei-me. Era uma pelcula japonesa muito gabada e fui. s tantas, decidem degolar um desgraado, pem-lhe o pescoo no cepo e v-se o algoz levantar o
sabre para o golpe fatal. Aflito, tombei no colo da senhora sentada ao meu lado. At ao fim do filme, ela no me deixou tirar de l a cabea. Ao vivo, presenciei uma pesada derrota do alcunhado sexo forte. Aconteceu na noite em que a prima da Bruna, por sinal pessoa bem formada de esprito e corpo, apareceu no bar de visita parente. Enquanto a Bruna bulia para l do balco, a prima acomodou-se na mesa mais prxima, sozinha, boa perna traada, joelho redondo, a sorver o seu coqueteile pela palhinha. Tudo em paz e concrdia at ao momento de viragem. Quando se abre a porta de um bar como abrir uma carta sem remetente. No se sabe o que l vem. Na ocasio, vieram dois pintarolas com ar de quem se diverte a entornar o caldo. Sossegue, Inspector, vou resumir, volto j ao mistrio que temos de pr a nu. Pr a nu, a est. admirvel como o batuque das palavras nos leva a rememorar acontecimentos sem ligao aparente. Parecendo divagar, 34 o que fao soltar a memria por outras paragens, a ver se ela desperta da amnsia que embrulha nove dias. Fao-me entender? costume uma ideia dar a mo a outra que se tinha extraviado. Mutatis mutandis, o mesmo acontece com os objectos, um homem procura os culos e encontra o sacana do relgio que julgava perdido. Importante a gente mexer, seja as mos, seja a massa cinzenta. Retomando, entraram no Bar Afunda dois fasquiados e o que lhes apeteceu? Nada menos que sentar-se mesa ocupada pela estimvel prima da Bruna. Atento, calejado no ofcio, o Falinhas apressou-se a segredar que aquele bar no de alterne e a cliente dispensava companhia. Tudo isto educadamente, o Falinhas um gentlemane. A resposta deles que no foi respeitosa. Entornaram o coqueteile pelo colarinho do atencioso e l vai mo s coxas da senhora. Ela saltou para se pr em fuga mas, de longe, a Bruna falou grosso: No sais da! Quem se deslocou foi a prpria Bruna. Lenta, pesada, majestosa, chega-se ao lugar do crime e, zs!, fila Os reinadios, cada um por sua orelha. Berraram e espernearam at que a Bruna os lanou porta fora. 35 Regressou a tranquilidade mas foi um pr e tirar. Estrondo na porta, sobressalto geral, ei-los de volta e armados de cacetes. Desataram a escaqueirar tudo quanto era vidro e loua sobre o balco e ameaaram a Bruna de fazer o mesmo
cabeorra dela. Alternativa, o setripetise. Queriam a Bruna a descascar os cento e catorze quilos dela para se darem por vingados. O meu impulso foi avanar de peito feito, quando me irrito no meo as consequncias. Travou-me a Bruna: Quieto, Edgar, a bola minha. Dito isto, passa a fronteira do balco, abre um sorriso coquete e comea a desabotoar-se. Os olhos dos trastes faiscavam. De repente, com meia mama de fora, estica os braes e os punhos esbarram nas ventas do par. Caram redondos. Ento a Bruna recolheu os cacetes, um em cada mo, agitou-os diante dos narizes esmurrados e deu a ordem: Dispam-se! Dito e feito, os dois em plo e risota no Bar Afunda. Nessa altura entra a polcia: Que se passa aqui? Aquilo que os senhores podem observar, expliquei. Atentado ao pudor e ofensa moral pblica. L foram de cana. E olhe que j tenho pensado: o rapto no ter sido vingana retardada daqueles estupores? Deixo sua considerao. 36 Basta de conversa transversal. Se o senhor Inspector no v inconveniente, voltamos noite de ontem. Antes de cair na cama liguei para a minha ex-mulher, a dinmica Gilberta. Edgar! Libertaram-te, finalmente? Finalmente. Que alvio, e onde te meteram? Disse a verdade: No fao ideia. Quando eu souber, s a segunda pessoa a tomar conhecimento. A segunda? Compreendo, a primeira tem de ser a Renata. A primeira ser um famoso inspector a quem entregaram o caso. Sorte minha e azar dos criminosos. A maldade ser castigada. E quando te vejo? Almoo no sbado? Almoo no sbado. Eu bamboleava de sono mas picou-me uma dvida: como que ela sabe que fui raptado? Quis ligar-lhe outra vez mas adormeci terceira tecla do telefone. 37
No sonho, l andava a Renata de cabelo apanhado em rabo-de-cavalo, botas e saiote de couro, camiseta lils com o meu nome e fotografia a trs quartos. Devo ter-me divertido enquanto dormia. Sozinho. Desde que me soltaram mal vi a Renata. Contava com reencontro eufrico, incluindo, sejamos claros, desforra sexual. Baldou-se. Honestamente, senhor Inspector, eu no me sentia em condies para altos desempenhos. Cansado, exausto. Um sequestrado no recupera da tenso mal se apanha a salvo. Mas foi duro ouvir da Renata que pernoitaria fora. Seca. Sem um carinho, um desculpa l, um depois a gente conversa. O que fez foi gaguejar que o paizinho anda adoentado e precisa de companhia. Nesse momento dois pensamentos brigaram na minha cabea: primeiro, a Renata resolveu escovar-me da vida dela; segundo, o que pretende demonstrar ao pai quanto lhe est grata. Quero acreditar que a leitura correcta a da gratido. Afinal o Sertrio Egdio Miranda, esse somtico que me tem um p danado, esportulou uma exorbitncia para a filha me ter de volta. Esta manh, o despertar no me apagou a imagem da Renata pelos ares, de perna alada, at acertar com a 38 sola da bota no maxilar inferior do marau que procedia ronda. Coisa feia. Inexplicvel o depois da pancadaria. A Renata vem para me libertar mas eu resisto, oponho-me, daqui no saio. Tem nexo? Dizem que os sonhos revelam realidades escondidas mas no entendo esse desejo subliminar de me manter prisioneiro. Existiria no subconsciente alguma razo que o consciente ignora? Pergunta lixada. O que eu digo que ningum se conhece na totalidade e melhor assim. Chega de sonhos, voltamos ao rapto. Ao fim e ao resto, a minha presena aqui s tem um objectivo: fornecer-lhe informaes que ho-de conduzir captura da quadrilha. Avancemos ento. Uma vez estendido na carrinha, manietado, amordaado e a porra da meia preta a tapar-me as vistas, quais os sentidos que me restavam livres? Lgico: a audio e o olfacto. Por enquanto, o paladar no para aqui chamado. Quanto a odores, o que retenho permite-me afirmar: um dos sacripantas perfumase. Um s. Apercebi-me no mommento em que me caram em cima, depois o cheiro
39 desapareceu. Voltou a bater-me nas narinas quando a viatura se imobilizou e me sacaram de dentro. Diga-me se concorda com este raciocnio: o bem-cheiroso viajava na cabina, conduzindo ou ao lado do condutor. Bem pensado? Interpreto o seu silncio como concordncia. Pena que eu no possua perspiccia nasal para distinguir aromas. Perfume de categoria, era. Se cravo, jasmim, malva ou outra essncia, no me pergunte. Adivinho que quer perguntar, isso sim, se a viagem foi longa ou curta. Claro, interessa avaliar a distncia entre o ponto do rapto e o lugar de sequestro. Elementar, como diria o colega Sherlock. Pois, mas num depoimento fundamental como este, qualquer impreciso pode arrastar para pista falsa. No arrisco. Ficoume a sensao de que os vivaos andaram s voltas para me desorientarem. Conseguiram. Alto, acabo de me lembrar de um pormenor talvez precioso. A certa altura, e j andvamos naquilo haveria vinte minutos, meia hora, parmos junto a uma caixa multibanco. Veio um dos que seguiam frente, no o perfumado, o outro, e disse: Venha da o carto de crdito, o mangas tem de pagar a alimentao. Levaram o carto no sem antes me pedirem a delicadeza de cantar o cdigo. Numa situao assim, o que pode um homem dizer? O cdigo. 40 Como v, j entrmos no captulo do registo auditivo. O senhor Inspector desejar saber se deixaram escapar um nome, uma forma invulgar de tratamento entre eles, gaguez, catarro, nmeros de contribuinte, qualquer referncia ao lugar onde me arrecadaram ou localidade prxima. Infelizmente, nada. Naquele tempo todo, pouco conversaram comigo ou na minha presena. Mais comunicativo s o cabecilha do bando, pareceu-me ser ele o cabecilha. Foi quem falou do carto de crdito e quem, chegados ao destino, mostrou o jogo: Coitadinho de ti se o teu sogro no entrar como pilim. Sogro, repare. Logo, logo, pensei que se referia ao pai da Gilberta, a minha nica ex, oficialmente. Com cerimnia e papelada chegou a e parou. Mas o bandido pronunciou, concretamente, o nome de Sertrio Egdio Miranda e recordei-me da frmula usada pela Renata quando me apresenta a algum: Este o Edgar, meu marido.
Fora de expresso, claro, um modo de vincar que a nossa relao no das mais descartveis. Atente agora o senhor Inspector noutra contradio. Essa assaltou-me quando definiram o Sertrio como alvo. Temi pela vida, no imaginava o retorcido a liquidar a conta. Por outro lado, aliviou-me que no tivessem 41 optado pela famlia. Possumos alguns bens, coisa mediana, a mam e a maninha no hesitariam em desfazer-se de tudo para me salvar a pele. Somos unidos como os dedos de um p. Na cabecinha da Renata Emlia, a ideia de me apresentar como marido uma antecipao. Sou testemunha de que em trs ocasies ela planeou o casamento. Na primeira, com festa em grande, multido de convidados; outra, enlace discreto, sem igreja; a ltima, os dois e mais ningum, no Paraguai, ignoro onde bebeu a ideia. Em qualquer desses transes a minha reaco foi: L estarei. At hoje, senhor Inspector. Como at hoje aguardo que convide a me, dona Dulce Paula exMiranda, a jantar em nossa casa. Por que estranho motivo vive a Renata to afastada da mezinha, alis senhora finssima e culta musicalmente? Devido s presses do sinistro Sertrio. Uma pessoa como a Renata s se conhece, a srio, com tempo e convivncia franca. No me preocupei com questes de personalidade quando nos cruzmos no forrobod onde o Maraj me deixou ao abandono. E teramos ficado pelos piropos e risos se no fosse a imprudncia. 42 Calculo que o senhor Inspector se pela por imprudncias, sem elas no teria deitado a unha a uma coleco de patifes. O meu descuido, na altura, foi passar para as mozinhas da menina um carto com nome e contactos, depois de o actualizar com a caneta que ela acabou por descobrir no fundo do fundo da bolsa. Aquele carto era ainda da falecida agncia. De certo modo, e salvaguardando as devidas distncias, o senhor Inspector e eu fomos colegas. At ao dia em que desaparafusei da porta a placa dourada com letras de palmo: Edgar W. Lopes - Investigao Sigilosa. Um pouco piroso, aceito, mas preciso atender s exigncias do marquetingue. Investigao com sigilo seduz potenciais clientes e o W no meio era o cheirinho a estrangeiro. Subsiste a tendncia de dar maior crdito aos detectives americanos.
O meu nome completo, deve t-lo a, Edgar Jos Golinhas Lopes, sem W. Mas portugueses baptizados Edgar Lopes do pginas de lista telefnica e Golinhas no convence. Tudo profundamente pensado, o problema foi a falta de desafios altura. Eu sonhava com crimes envoltos em 43 denso mistrio e s me chegavam minhoquices, gnero cnjuges de p atrs. Sorte tem o senhor Inspector. Caem-lhe nos braos imbrglios apaixonantes, como este de me raptarem e aferrolharem durante nove dias. Chia, nove dias. Mereo esta ateno de entregarem o caso a um investigador de alto gabarito. Deixe-me dizer que olho para o senhor e vejo o Maigret: raciocnio fulminante e as vantagens da posio oficial. Ou seja, crach, batalho de subordinados, engrenagem afinada ao seu dispor. Modestamente, situei-me mais ao nvel de um Marlowe, de um Poirot. Vida difcil. Um gajo no tem apoios. Ainda assim, outro galo nos cantaria se os clientes fossem claros nas suas exposies. Sem entrar em detalhes, no vamos esquecer que o assunto o rapto, conto-lhe o estranhssimo episdio da desconfiada que me apareceu na agncia. Foi numa segunda-feira ao meio-dia e vinte. O senhor Lopes est?, quis saber, enquanto ajeitava os culos que lhe prendiam os cabelos pretos com madeixa dourada. 44 Sou esse, respondi, e j ela puxava de uma fotografia em formato de postal. O homem teria os seus sessenta, cinquenta e oito, ar lavado. Sorria. Atente na ironia da situao, senhor Inspector: quando efectivamente sorriu, para uma cmara fotogrfica, poderia o desgraado imaginar que a consequente imagem viria a ser uma arma apontada ao corao dele? So estas aparentes minudncias que me encantam no meti. E a senhora pretende o qu?, perguntei por perguntar. Saber aonde ele vai. Siga-lhe os passos durante uma semana. Tem a os elementos necessrios. Pago a dobrar se me apresentar provas. Deu meia volta e ala, nem boa tarde. Parei o carro diante da empresa do suspeito faltavam dez para as seis. Ia prevenido para espera longa, mas no passei da pgina dez do romance do Chandler. Pelas
seis e tal, eis o cavalheiro, ladeado por uma fininha com casaco de veludo cotel e um latago de fato escuro e gravata com ursinhos. Refiro isto s para que o senhor Inspector avalie a ateno que eu prestava s pequenas coisas. Despediram-se e fotografei o alvo a caminhar para o automvel. Continuei na cola dele. Um dia, outro e outro. Nem esperei que se esgotasse a semana de prazo. 45 Quatro dias aps a encomenda, liguei para a curiosa: J est. Tenho as fotos no escritrio. Chegou to rpido que mais parecia ter aguardado novidades encostada porta. possvel que no meu rosto se desenhasse meio sorriso, s meio, o triunfo no apagava toda a vergonha de bisbilhotar os pecadilhos do infeliz. Fui passando fotografias, uma a uma. De incio, as inocentes: sada do trabalho, conversas porta, o homem no carro. Guardei para o fim as provas irrefutveis. Uma das fotos mostrava-o enlaando uma balzaquiana de classe. Na outra topava-se o mesmo par jantando em restaurante cinco estrelas com vela acesa. Ela cravou os olhos no documento e estremeceu. Receei que desatasse num pranto, nada me toca mais fundo que lgrimas de mulher. Disse-lhe: pena mas a senhora tinha razo. Foi ento que levantou a cabea. Nunca vi tamanha fria no rosto de algum. Pobre homem, pensei, e nesse minuto arrependi-me sinceramente de ter aceitado misso to baixa. De sbito, ela avana para mim de dedo espetado e berra, gaguejando: Sua besta! Seu incompetente de merda! Essa, essa a mulher dele! Disparou porta fora, nem me pagou a gasolina. Percalos destes que me levaram a fechar a loja. 46 Sexta-feira,6-Tarde PANDILHA HETEROGNEA Ervilhas com ovos escalfados, senhor Inspector. Foi o meu almoo no castio restaurante da esquina. H ali dedo para a culinria tradicional e no falta por onde escolher. O apetite puxava-me para o bacalhau na brasa mas um impulso estranho obrigou-me a pedir ervilhas com ovos escalfados. Vem o prato. Olho, olho, e d-se o clique. Caramba, gramei ervilhas com ovos escalfados, no mnimo, cinco dos nove dias em que me retiraram da circulao. Temos pista? Cozinhar ervilhas com ovos
escalfados no para qualquer um e poucos as temperam com hortel. Nas de hoje, por exemplo, iria jurar que meteram coentros. Mesmo que as ervilhas com ovos escalfados no nos levem a resultados prticos, esta horinha de intervalo foi Proveitosa. Afinal, apenas segui a recomendao basilar 47 do meu pai, homem atento s elementaridades da vida alm de charadista e campeo de bilhar. Edgar, dizia ele, nada se consegue sem puxar pela cabea. Parece fcil. Mas puxar verbo que implica esforo. E cabea no se limita a esta espcie de abbora ssea que carregamos no pescoo. Puxar pela cabea pressionar a substncia nervosa que ocupa a quase totalidade da caixa craniana. Passei o almoo a pressionar a substncia. Pressionando-a para que ela se descosesse com o lugar do sequestro, a imagem da resposta, minuto a minuto mais ntida, foi fabriqueta desactivada, algures no campo. Digo no campo por causa dos grilos. A imagem chegou-me com o respectivo som e l estava: os grilos faziam um cagarim medonho, a noite toda. Do-lhes o nome de grilos-cantadores, no entendo. Cantar, no cantam, aquilo batuque com as asas, coisa mais na rea da msica de percusso. Que satisfao, caro Inspector, a memria funciona, recupera anotaes extraviadas. Ainda no todas, l iremos. Nada mau que o nevoeiro se levante, aos poucos, alargando o horizonte. Revejo, portanto, uma construo arruinada no aspecto exterior mas compostinha por dentro. Posso agora 48 afirmar que a saleta onde me depositaram dispunha de condies, enfim, modestssimas, mas com o essencial: div trs cadeiras, sof, a sua casita de banho privativa com gua quente. Impertinente, o calendrio de h seis anos com publicidade de pneus. A mensagem inclua uma calmeirona de mamas ao vento que levou os dias a meter-se comigo. Todas as mulheres so diferentes mas cada uma faz lembrar outras. Aquela recordou-me a Almira do Dancing, era eu um franganote e ela mocetona a pisar os quarenta. Nesse tempo, pouco se usavam as tatuagens e ela tinha duas. Uma em
cada ndega. Na esquerda uma guia, direita um leo. Lembranas de namorados antigos. Preciso de gua, senhor Inspector. Desatei para aqui a falar de jacto, talvez medo de que a memria se pire outra vez. Secou-se-me a boca. Copo cheio, pois. Obrigado. Fixe a data: sexta-feira, dia 6. Antevejo que, no balano final da sua investigao, o dia de hoje ficar como farol a marcar rumo. No aquela conversa da luz ao undo do tnel, qual tnel? Todo o meu depoimento, elusive as passagens a que chamei apartes, rico em 49 contributos para a resoluo do caso. Um rio tambm vive dos afluentes. Agora segure-se, senhor Inspector, o melhor vem a. Sinto-me em condies de informar que os estpidos cometeram um erro fatal. certo que nunca permitiram ver-lhes as fronhas, tivessem cado nessa e saltava j um retrato-rob. Ou me tinham de olhos tapados ou, mais frequente, quando apareciam, era de gorros enfiados at garganta, com buracos para recrearem a vista. Trivial. Qualquer dia vendem disso nos centros comerciais, j prontos para assaltantes. Quem mais me contactou foi o perfumadinho, era ele a servir-me as refeies. Natural que fosse o primeiro a quem surpreendi o descuido. A seguir, os outros. Acredite que me ri para dentro, animado por pensamento positivo: quando contar isto a um investigador de categoria, estes incompetentes vo logo de cana. Bela premonio. Aqui estamos ns a fechar o cerco. E o erro? Qual foi o erro deles?, sinto o latejar da sua impacincia. Ou j adivinhou, sei l, no em vo que se leva meia vida a lidar com maraus e a ca-los quando metem os ps pelas mos. 50 Justamente, as mos. Tantos cuidados a ocultarem os frontispcios e marimbaramse nas luvas. Significa isto que no dia em que chegarmos ao cenrio do sequestro, essa tal aparente fabriqueta, num descampado com orquestra de grilos, encontraremos um festim de impresses digitais. Tramaram-se. E nem s pelas impresses digitais. Eu vi-lhes as mos, senhor inspector. Ora, digo a quem sabe, as mos valem como segundos rostos e falam pelos cotovelos acerca de quem quem.
Nem sempre, convenhamos. O fracasso matrimonial da minha irm, a Rute, resultou de se ter enamorado pelas mos do Dlio ceramista. Viu, depois, que o habilidoso s se aproveitava entre os pulsos e as pontas dos dedos. Ela presumia algo mais. Qualquer regra tem desvios mas, no comum, as mos do mais informaes que o cento e dezoito. Eu fiquei informado, e posso informar o meu caro amigo e inspector de que temos pandilha heterognea. Aquele que tomo por chefe tem mos que indiciam Paz na meia-idade e esmerado na apresentao. Unhas limpas, bem cortadas. Pele fina. Se alguma vez trabalhou, foi sentado secretria. 51 Outro o oposto: manpulas escuras, grossas, tufos de cabelos nos dedos, a sugerir um sujeito rude, se bem que as mos se paream com as do Luciano, o Falinhas. E o Falinhas, alm de boa alma, aparece-me agora artista no piano. No fregus de perfumaria vi mozinhas a condizer: esguias, delicadas, femininas. Imprudncia das imprudncias, nem retirou do dedo um anel invulgar, com diamante lapidado em hexgono e que me pareceu verdadeiro. Reconhea, que diabo, observao de tanta qualidade revela costela de polcia. Essas mos, como se as tivesse fotografadas e o senhor Inspector cuide-se. Sou menino para me antecipar. Comeo esta noite a espiar as mos dos estimados clientes do Bar Afunda. A partir daqui, suponho, s voltaremos a encontrar-nos quando estourarem as novidades, Ou o senhor Inspector me convoca e vamos ao champanhe; ou contactao o seu admirador para acrescentar alguma pista fartura que lhe forneceu hoje. Ficamos assim. Foi um prazer divino discutir consigo, em ltima anlise devo o privilgio aos raptores. E calma. V-se que no descansa enquanto 52 no encontrar o boto de luz mas tire o fim de semana para desopilar. V ao teatro, embrenhe-se num bom livro, faa o seu exerccio fsico e divirta-se com a famlia, amanh, almoo com a Gilberta. Desculpe, estou de partida e reparo: o mais provvel esgotarem-se hoje as oportunidades de falar com um mestre acerca das minhas experincias como modesto investigador. Mesmo modesto, passei por situaes extraordinrias. Dois minutinhos, d-me? Agradecido.
Conto-lhe o caso da armadilha montada por sacanolas meus amigos. Mas o cmplice que encomendou o trabalho, esse eu no conhecia. De modo que o recebi de boaf. L salta a fotografia, nestas coisas nunca falha a fotografia, acompanhada da splica: Descubra-a. Nem olhe a despesas. Esta mulher para mim no tem preo. Compreendi melhor a generosidade quando observei o retrato. Aquela pessoa era um louvor espcie humana. Com uma excentricidade: prendia nos dentes um cachimbo vermelho, segurando o fornilho com o polegar e o indicador da mo esquerda. Sem uma pista, vagueei toa por lugares onde, na minha imaginao, poderia esvoaar uma ave daquelas. 53 s tantas no me movia o interesse do cliente: eu andava louco pela mulher do cachimbo vermelho. Avano um pouco no relato, senhor Inspector, para dizer que uma bela noite os malandrecos me acolheram com risadinhas. No meio deles, o tal sujeito que me passara a encomenda e o retrato da deusa do cachimbo vermelho. Revelaram-me, ento, que tal pessoa no existia. Ou, por outra, seria modelo fotogrfico na Bolvia, Venezuela, algo assim. Que desculpasse, queriam apenas divertir-se um pouco custa do meu brio profissional. Calei-me. Mas, de facto, eu tinha encontrado a mulher do cachimbo vermelho. Sem cachimbo. Dei com ela num fim de tarde a sair do metro. Fui na cola. Entrou numa leitaria, entrmos. Sentou-se e eu idem, a dois passos. Contemplava-a, embevecido e na esperana de a ver sacar do cachimbo vermelho. Decepo. Puxou um banal cigarro, arrependeu-se, voltou a enfi-lo no mao. Pareceu-me nervosa. Quando olhou em volta, os olhos dela encalharam nos meus. Dirigi-lhe uma vnia discreta, ignorou. Eu no poderia continuar feito paspalho, correndo o risco de se evaporar de novo. Finalmente apanhei-a, disse, desastrado. 54 Assustou-se. Era o que podia ler no esgar, no modo como se retraiu na cadeira, na rouquido: Como? Procurei emendar a abordagem: Perdoe-me mas preciso de falar consigo.
Comigo? Porqu? No o conheo, pois no? Uma rajada de perguntas. Ia contarlhe do servio encomendado mas calei-me a tempo. Queria-a para mim e no para a meter na cama do calhordas de quem andava fugida. Ela ainda no tinha esgotado os pontos de interrogao: Qual a sua ideia? Engatar-me? Mentir no minto: Gostava. Atirou-me a pergunta aparentemente final: E se tivesse a gentileza de me deixar em paz? Fiz meno de bater em retirada mas era truque. Puxei da foto que me trazia obcecado e imobilizei-a a dois palmos do narizinho da esquiva: No imagina h quanto tempo a trago no bolso. Arrancou-me o documento e examinou-o, primeiro tensa, depois risonha. Veio mais uma pergunta: Pensa que sou eu? Era a minha vez de pedir resposta: No ? No era. Com a unhita pintada de verde-esmeralda foi apontando quase imperceptveis diferenas. Venceue- Acabei por revelar o incio da histria e apresenteime: Edgar. 55 Passou um tempo at ela se descoser: Zaga. Zaga nome? Marca comercial? No Brasil, zaga a linha de defesa de equipa de futebol. Trata-me por Zaga. Encurtando, vivemos um Inverno maluco. No dia de S. Valentim ofereci-lhe um cachimbo vermelho e a ela atingiu a plenitude do meu enlevo. Duas notas dissonantes: a sombra do medo nos olhos e os peridicos encontros com dois fulanos mal encarados que no me chegou a apresentar. Vi-os de longe. Irmo e cunhado, dizia. E uma noite desapareceu. Encontrvamo-nos na discoteca, s tantas ouviu-se um rumor: A rusga, vem a a rusga. Ela levantou-se num pinote e antes da retirada definitiva proferiu a palavra de todo inesperada naquela boquinha: Foda-se! Odeio palavres, desgosta-me que a ltima recordao da Zaga seja uma obscenidade, tal como sofro diariamente com os palavres que invadem as conversas e no poupam a prpria escrita. a puta da vida, senhor Inspector. Pacincia. Cada qual gasta do que aprecia e ha mesmo os adoradores do palavro. S mais um aparte, curtinho, curtinho, e por vir a talho de foice.
56 Aconteceu, h meses, com um senhor que frequenta o Bar Afunda. Senhor, digo bem. Quase impecvel. O nome dele no interessa e, se o revelasse, sentia-me um traidor da confiana. Prefiro dar-lhe um pseudnimo. O problema : que pseudnimo? Existe sempre o risco de escolher um pseudnimo j adoptado por outra pessoa. E, nessa coincidncia, poderia julgar-se que o protagonista da pea a tal outra pessoa. Evitemos as confuses. Preciso de um pseudnimo que me parea virgem. Por exemplo, por exemplo, no sei. Talvez Pseudnimo. Isso. Vamos atribuir-lhe o pseudnimo de Pseudnimo. Do meu canto do bar vi o Pseudnimo sozinho, olhos em baixo. Sentei-me ao lado dele. H azar? Remexeu-se no sof e tentou driblar a questo. Nada. Nada de nada? S os nossos problemas. Nossos? Seus e da sua? Nunca me faz a vontade. Eu guardava opinio positiva da senhorinha, sempre atenciosa para o Pseudnimo. Amuos passageiros, chegam e vo-se, disse, na esperana de o animar. 57 No animei. aquele esprito de contradio, no lhe custava fazer-me a vontade. Homem, que vontade? Deixe, assunto particular. No me interessavam as particularidades do Pseudnimo, quanto mais insistir em que se abrisse comigo. Calei-me. Ele no. Encorajou-se com duas goladas de gim e no tom do Falinhas confidenciou: Adorava que ela dissesse malcriadices. Que malcriadices? Insultos, m-lngua, berros? Palavres. Sabia-me bem ouvir-lhe palavres. Chegados a, eu j queria saber: Palavres mesmo? Desses rascas, ordinrios? Desses. Embatuquei. Em certos momentos um tipo atilado no sabe o que dizer. Ele sabia. Voc que pode ajudar. Eu? O inesperado da situao fez-me entornar o usqui. E eu, como?
Fale com ela. Explique-lhe. Tem considerao por si, aposto que a convence. Este corao piegas levou-me na tarde seguinte a requerer senhora que acarinhasse o Pseudnimo com bojardas das maiores. Recebeu-me com ch e bolinhos de coco. Puxei a conversa para os diferentes fios de que se tecem os sentidos. 58
Ela, moita. Venci alguma timidez e concretizei: a felicidade do Pseudnimo dependia de algo quase infantil e se ganhamos o cu dando a quem precisa.
Acabei colocando todas as cartas na mesa. Ela, nem ai, nem ui, s um sorrisinho mole. Sa com o alvio de misso cumprida mas sem certezas quanto a resultados. Duas noites depois, entro no bar e dou com o Pseudnimo. A cara dele era uma festa. Temos novidades? E que novidades, bom amigo, que novidades! Ela satisfez aquela sua vontade esquisita? Logo! Mal cheguei a casa, a sem-vergonha abriu o livro. Um festival de palavres, nunca imaginei que soubesse tantos. Mas no fim veio a reclamao: tu tiveste o descaramento de falar da nossa vida ntima ao impotente do Edgar? Impotente, disse ela, senhor Inspector. Sabendo que mentia. 59 Sbado, 7 - Tarde MINHA QUERIDA
EX Surpreendido? Eu tambm. O combinado era voltar ao nosso mata-mata na segunda-feira, e caso surgisse novidade. Surgiu novidade. Bem podia esperar dois dias mas andava por perto e pensei: queres ver que aquele fantico do dever no pra nem num sbado tarde? Entrei mais por entrar e c o apanho a afiar a tesoura para cortar as asas aos passares. Acho mal, devia repousar. Mais dia, menos dia, que interessa?, vai juntar novo xito sua coleco. Enfim, j que estamos c, dou conta da novidade. Calma, no vai pensar que me abordaram na rua: Ol, Edgar, fomos ns que te sequestrmos at o miservel Sertrio Egdio Miranda entrar com o papel. Ou que reconheci algum deles pelas mos; s ontem noite 61
iniciei esse trabalho. Ou que a Renata, de repente, foi capaz de identificar o safado a quem entregou a mala, A novidade que trago, meu incansvel Inspector resumo-a numa palavra: jasmim. Atinge? Diria que no Mas d-se ao incmodo de rebobinar o meu depoimento e encontrar referncia ao requinte de um membro da quadrilha: perfuma-se. J se recorda, claro, como deve recordar que lamentei no ter nariz para distinguir aromas. Tanto podia ser essncia de cravo, como de rosa, jasmim, rosmaninho, fosse o que fosse desde que cheirasse bem. Pois agora garanto sem a menor hesitao: jasmim. Reconhea que o embaracei. Como possvel, de um momento para o outro, eu saber o que no sabia? Uma vez mais, a explicao vem da feliz coincidncia. Hoje encontrei-me com a Gilberta. Pelo menos uma vez por quinzena, almoamos, rimos, trocamos opinies e confidncias. Cheguei dez minutos antes da hora marcada, como costume; pontualmente cinco minutos depois da hora, como costuma, vem a Gilberta. Fez-se silncio no restaurante. L vi uma catrefa de gulosos a torcerem os pescocinhos passagem dela. Ao princpio, nos tempos do namoro, cenas dessas incomodavam-me. Depois, enquanto marido, nem ligava62 Ultimamente, e sem explicao, torno a chatear-me quando os topo a apalp-la com os olhos. No percebo. . Ela tem o seu porte, estilo manequim snior a puxar para o rolio. Um mulhero, mas sem a silhueta da Renata e muito menos o pisar da Marilinha Misse. Menos mal que desta vez chegou sozinha. No almoo anterior, h trs semanas, apareceu-me com o embirrante Slvio Pinalva a reboque. Desculpa, Edgar, calcula que me distra e combinei almoo com vocs os dois para o mesmo dia, explicou, muito solta, como algum que se ri de ter sado de guardachuva numa manh de sol. Incomodou-me aquele vocs os dois. Colocava-nos ao mesmo nvel. Ora eu no s detenho o estatuto de ex-marido como me agrada a iluso de que continuamos juntos. Sem sexo, devo esclarecer. A Gilberta, apesar da sua reconhecida inteligncia, entende que o essencial de uma separao fechar as pernas. um ponto em que divergimos.
Confesso que algumas vezes cochichei uma saudadinha das nossas noites. A resposta foi um raspanete, com aluses a minha ligao com a Renata e uma pergunta feroz: Com quantas te deitaste enquanto fomos casados? Apertado numa situao dessas, qualquer indivduo e rasca formao moral teria respondido: Nenhuma, 63 ora essa! Mas, quando eu disse nenhuma, era a mais pura das verdades. Nessa altura, s me levariam a prevaricar uma Jennifer Lopez, uma Zeta-Jones, uma Marilinha Misse. A Gilberta chama-me alguns nomes injustos mas continua a tratar-me por querido. E gosto. o meu direito consuetudinrio, como ela diria no seu pato de jurista. Principalmente, significa que ainda no pousou um melro a roubar-me o ttulo. Pretendentes no lhe faltam, cabea l est aquele sacana presunoso. J andava a arrastar-lhe a asa ainda eu no conhecia a Gilberta, e bem percebo que atrs das mesuras me distingue com um odiozinho palerma. No lhe pago na mesma moeda, o senhor Inspector j me vai conhecendo, sabe como sou superior a sentimentos mesquinhos. E, verdade se diga, o gajo tem tudo para que o ache um nojo: mais novo, mais alto e mais magro que eu, bonito, ginasticado, advogado meditico, brilhante conversador, tipo sabe-tudo, quer se converse sobre cincias, artes, poltica, histria, tecnologias, doenas, quer se trate de jogadores de bola. E fala nove lnguas, o filho da puta. Evidente: nada disto me levaria a embirrar com o sujeito se no me custasse passar a segundo plano aos olhos da Gilberta. 64 No dia em que apareceram juntos senti um baque. Mesmo depois de a Gilberta saltar com a patetice do erro da agenda, no me saa o medo de ela ter capitulado. Rebate falso mas continuava o cerco. S conheceu trguas nos catorze meses em que a Gilberta brilhou de aliana no dedinho. Mesmo nesse tempo, o que o mangas fez foi disfarar. Por louvvel educao, reconheo. Mas a educao como o aaime nos ces que gostariam de morder. No tira a vontade de ferrar o dente. Mal o casamento deu o estoiro, o buldogue voltou ao ataque e s iria amansar se a Gilberta e eu entendssemos reconstruir o nosso castelo de cartas. Pode acontecer mas mais difcil que ouvir notcia agradvel num jornal das oito na televiso.
Outra possibilidade desembarcar um terceiro pirata a assaltar a nau. No vejo quem. A Gilberta livre, independente, advogada de prestgio, mas afasta os candidatos como se eles fossem o que realmente so: melgas. No fundo, tudo se deve ao seu alto nvel de exigncia. Veja o senhor Inspector que at hoje s aceitou um homem e fuieu. 65 Esqueamos os meus prprios predicados. Aponto-lhe o Slvio Pinalva: o retrato acabado do sedutor que leva as mulheres a suspirar com o corpo todo. E, no entanto, anda o esfomeado h anos a mastigar em seco. Acho eu. Alguns amigos nossos ainda insistem em colar a jarra partida. acreditar no inverosmil. No se volta de rota batida apagando os passos que foram dados. Pela minha parte, eu regressaria sem problemas ao quilmetro zero. A Gilberta diferente. O que faz o retorno impossvel, ou quase, no ter-me afastado dela mas t-la levado a afastar-se de mim. Afastados, bem entendido, no captulo de marido, mulher, amantes. De resto, o nosso relacionamento cinco estrelas. Pena aquela teimosia em negar-me uma visita ao nosso glorioso quarto, onde, diz, conserva a foto dos noivos, ela rainha de branco, eu com cara de vencedor a cortar a meta. Dia extraordinrio, o do nosso casamento. Na primeira oportunidade hei-de contarlhe o sarilho que agitou a boda. V, meu caro Inspector? Quando falo da Gilberta ainda escorrego para o sentimental e quase esquecia o que me trouxe aqui. Descuido ainda mais tonto por se tratar de novidade quem sabe se decisiva para a investigao. 66 Explica-se porque vim para falar do almoo de hoje com a querida ex. Ter da recuado para o almoo anterior foi simples associao de ideias. No s. Um ouvinte como o senhor impele um depoente a falar at dos sobressaltos mais privados. Coitado de mim, se fosse um suspeito em interrogatrio. No conseguiria esconder-lhe nem a inocncia. Ficou agora a saber da afeio pela Gilberta, talvez suponha que bastaria um sinal dela para eu sacudir a Renata. Isso o caro Inspector a extrapolar. A Gilberta e eu pensamos que seria disparate se nos concedssemos segunda oportunidade. o que me apetece quando topo o Slvio Pinalva a fazer fosquinhas mas s para tirar o rebuado ao guloso.
Afinal, perguntaria o senhor se fosse pessoa para cortar um depoimento com perguntas desnecessrias, afinal Por que diabo deu o casamento em pantanas? Traio, Cimes, Compatibilidade de gnios? Ora, ora, tudo isso banalidades e nem a Gilberta nem eu somos pessoas banais- A nossa separao foi por birra. Ela embezerrou numa questo profissional, melhor dizendo, embezerrmos. Ainda hoje, a frio, entendo que 67 a minha posio era lgica e sensata. Queira o meu caro Inspector analisar os factos e dizer de sua justia. Um sujeito marido de advogada, admira a advogada mas quem ele adora a mulher. E um belo dia leva com esta: a mulher, enquanto advogada, decide defender em tribunal um refinadssimo traste que tinha sacaneado entre outros, o marido da doutora. Faz-se? Achei que no A Gilberta veio com aquelas merdas dos advogados todo o cidado, por mais facnora ou vgaro, tem direito defesa, gaita, at a de acordo, o inadmissvel repimpar-se no colo da mulher de um ofendido. Peo desculpa por me ter exaltado um pouco, so reminiscncias da fita que fiz na ocasio. Nem ela nem eu demos o brao a torcer e depois, fatal, largam-se palavras menos doces, entorna-se o caldo e no h retorno. O clmax da cena chegou no momento em que eu disse: Vou-me embora. Definitivamente?, miou a esposa j em final de mandato. O tom pareceu-me de surpresa, talvez pnico, mas no sou de voltar atrs: Definitivamente, pois. Ento ela correu para mim, abraou-me, aplicou-me um beijo em cada face e abriu a alma: Vs? Tu quando queres s um amor. Ajudou-me a fazer a mala. 68 Quando a Gilberta ou eu entramos nestas confidncias j contamos com a pergunta seguinte: concordam em que foi birra e no vos deu para se reconciliarem? No deu. Pouco tempo depois, to pouco que no chegou para esfriar, eu retomava a vocao de celibatrio errante. De par de mamas em par de mamas at a Renata me tomar de assalto.
Poupe-me, senhor Inspector, no me obrigue mais a olhar para trs. Vamos ao almoo de hoje e revelao que pode contribuir para o seu inevitvel xito nas averiguaes. Com a minha modesta mas esforada colaborao, lgico. Dizia ento que me encontrava no restaurante quando a Gilberta chegou, no seu saia-casaco chiqurrimo, a inevitvel pasta, no a larga nem numa tarde de sbado, e, graas a Deus, sem o Slvio na peugada. Quando se aproximou e sorriu, ca em xtase. No Pelo sorriso ou por qualquer outro dos atractivos dela. Simplesmente acabava de despertar em mim nada menos que a memria olfactiva. <(O teu perfume de qu?, pergunto num alvoroo. Jasmim, querido. 69 Jasmim, entende, caro Inspector? Caa, to inesperado como uma trupe de bandidos encapuzados, a definio que h tanto procurava e talvez venha a ser determinante No peo, bem entendido, que d instrues aos polcias para andarem de nariz em riste cata de quem cheire a jasmim. Mas pista que desafia o famoso faro policial. tudo por hoje. Ou antes, sem prejuzo do seu inestimvel tempo e dado o rumo da conversa, torna-se obrigatrio contar o que se passou no preciso dia em que a Gilberta e eu unimos os nossos destinos. Para sempre, jurmos ns em falso. Oua, pois no existe caso igual nos anais da polcia. Celebrado o matrimnio, com todos os efes e erres, rumou o cortejo moradia dos meus sogros de fresco. Optou-se por festa ntima, trinta e quatro participantes, incluindo os noivos. Tudo decorria conforme o planeado. Reinava a animao, faziam-se as devidas honras s iguarias e lcoois raros. Eis seno quando, o inimaginvel acontece: salta-nos pela janela um fulano de pistola apontada. Era moo dos seus vinte e poucos, arruivado, barbicha e culos redondos. Calado, fazia danar o cano da arma, em movimentos laterais, abarcando o grupo. 70 Cagao geral? bem entendido. A louraa que ajudava mesa deixou tombar uma bandeja com taas de caviar verrmelho do Cspio. Uma senhora madrinha superou-a: rombou ela prpria, na queda arrastou a toalha, um cagaal de porcelanas e cristais escaqueirando-se no cho de mrmore.
Do meu ponto de vista, o preocupante era o nervosismo do rapaz. A pistola tremelicava nas mos dele. Melhor que ningum, o senhor Inspector sabe como os salteadores assustados se tornam perigosos. Mantive o sangue-frio. Calma, amigo, disse-lhe. No preciso entrar em disparates. Acto contnuo, saquei da carteira e coloquei-a sobre o tampo da mesa: A tem. Pensando melhor, voltei atrs: Vou tirar os documentos. A si no interessam e poupa-me a chatice das burocracias. Assim, nas calmas. Todos me imitaram o gesto, inclusive na preocupao de subtrair os documentos. E lembro-me que a minha me, mulher decidida, sa a ela, arrancou do pescoo o faiscante colar mas teve a decncia de prevenir o sacaninha: pelsbeque, no vale o incmodo de o avaliar no prego. Finalmente, o bichano miou. Mantinha a arma em pose de disparo e disse: No levo nada dessas merdas. Prolongou-se o silncio de pasmo mas era como se se Perguntassem: ento, o qu? A resposta veio logo. 71 Indicou a alva figura de Gilberta e disse: Quero o vestido da noiva. Se a surpresa era grande, ainda cresceu. O vestido da noiva? Olha que assalto to disparatado! s boas, tentaram dissuadi-lo mas ele repetiu a exigncia, cada vez mais enervado. Pacincia, faa-se a vontade ao gajo. A noiva comunicou que iria mudar-se no quarto de solteira, situado no piso superior. o vais. O pilantra, desconfiado, trancou-nos no salo. Aqui, imps. Seguiu-se a cena da Gilberta a emergir do vestido. Por baixo, ela resguardava-se apenas com cuequinha e suti, resultando que exps toda a sua perfeio. Eu julguei que os cavalheiros desviariam os olhares, tanto mais tratando-se de recmcasada com um bom amigo. Ao contrrio, babavam-se na contemplao. Corri a entrepor-me enquanto a me arrancava um cortinado para que descesse o pano sobre o setripe. E s ela, a Gilberta, passou pelo aperto sem desarmar o sorriso. Grande noiva, direi sempre. Mal o patife arrancou, de motoreta, encontraram abandonada na relva do jardim a arma do crime: um irnico brinquedo de plstico. Mas a histria, senhor Inspector, s teve o eplogo quinze dias depois. 72 Quinze dias depois, manh cedo, aparece no port3
da moradia um pacote volumoso. Abre-se e o que sai? O vestido da noiva. Limpo, passado a ferro e acompanhado por um rectngulo de cartolina com uma palavra: Obrigado. Soubemos, desse modo, que o larpio se apressara a concretizar o seu plano matrimonial. Nunca mais o vi. Esse apresentou-se de cara descoberta, reconheo-o se passar por ele em qualquer esquina da cidade ou do mundo. Ento pergunto-lhe: A esposa como vai? E o vestido, serviu-lhe? Este foi o casamento que nasceu com caso de polcia e faleceu com questo de tribunal. E agora deixo-o, mergulhado nos seus dossis. Se o senhor Inspector veio bulir numa tarde de sbado, porque servio no falta. Espero que o prximo encontro sirva para comemorar o triunfo com champanhe mas, pelo menos amanh, descanse. Bem merece. 73 Domingo, 8 - Meio-dia REBATE o senhor Inspector? Daqui Edgar. Edgar Golinhas Lopes, o raptado. Mil desculpas se incomodo, creia que hesitei antes de telefonar. Mas pensei: afinal, o homem facultou-me o nmero de telemvel particular com a recomendao de ligar se fosse necessrio. Pois necessrio. O problema est em que uma pessoa com dignidade no consegue viver sem ela. Esta manh vou ao espelho para fazer a barba e passo-me com o gajo que vi na frente: seu miservel, intrujo, velhaco, no tem vergonha de abusar da simpatia do senhor inspector, escamoteando elementos preciosos para a investigao? E vai continuar nessa mentira nojenta? Nem mais um dia. Amanh apresento-me no seu gabinete e s de l saio com a alma lavada. Dispense-me de 75 entrar em pormenores, agora, pelo telefone. Com essa moda das escutas, nunca se sabe se temos algum polcia em linha. Era uma piada, desculpe. Calculo que o deixo a ferver de impacincia mas maior a minha em recuperar a paz de esprito. Ser que recupero? DE CONSCINCIA
Depois de lhe contar o que tenho omitido, receio chegar ao espelho, na hora da barba, e passar-me outra vez> seu denunciante de merda! No corou de vergonha ao crucificar quem s o tratou com mimos? Horrvel dilema. Os dilemas so cruzamentos sem sinais, uma pessoa no sabe onde deve virar. Na sexta-feira meti-me num. Quando terminmos a nossa conversa da tarde, andei por a, passeando, absorto; de repente, vejo-me a vinte metros da butique da Renata. Encalhei no dilema: ser prefervel avanar para saber novidades ou recuar para no saber novidades? Quem me desencalhou foi a prpria Renata. Vi-a a correr para a carrinha nova do pai. Cor de tijolo. Ouviu este tlintlim? a bateria do meu telemvel a dar o peido mestre. Nada de grave, o que havia a dizer hoje est dito, amanh desata-se o embrulho. Importante que me d mais uns segundos para tornar claro: 76 quando referi a cena do Sertrio espera da Renata numa carrinha nova cor de tijolo, no quis insinuar que foram o pai e barra ou filha quem montou essa pea. Primeiro, insinuar no liga com o meu carcter. A inao a valentia dos manhosos. Quem insinua no usa por falta de certezas ou de tomates, mas vai acuando. Pem um p no estribo e outro no cho em posio que d jeito para mudar de cavalo. Nossa Senhora, a que propsito estou para aqui a discursar? Na funo que o meu amigo desempenha, de certeza apanhou ene macacos a insinuar com o fito de o desviarem para pistas falsas. Conhece-os de ginjeira. Outra vez o tlintlim. Acho correcto que avisem antes de cortarem o pio. O mesmo deve fazer o senhor Inspector quando entender que falo de mais, coisa que, alis, nunca acontece. Mas, s vezes, necessrio falar do desnecessrio. Neste caso, do contra-senso que seria o Sertrio Egdio Miranda congeminar um rapto e depois entrar com o bolu do resgate. Golpe genial para fintar a polcia? Uma gginstica dessas no passaria pela mona do mais assacanado autor de tramas policiais. E o estupor no nenhum Maquiavel, podia l magicar artimanhas que nos pusessem a nora, um inspector e eu. Nem vale a pena gastar solas a pisar esse caminho.
77 Terceiro tlintlim, ouviu? Anncio do fim. Subtilmente, traz-me a sensao de que comigo anda tudo a pilhas. Por exemplo, a relao com a Renata exige se recargada. Mas que adianta, se ela se desligou? Passe um magnfico domingo e at amanh. 78 Segunda-feira, 9 - Manh REVELAO SURPREENDENTE Tenha a bondade, desfaa essa carantonha de zangado. De certeza, no sou o primeiro declarante, nem serei o ltimo, a fechar-se em copas acerca de acontecimento difcil de contar. H meia hora, quando apontei o destino ao motorista do txi, ele brincou: Polcia, ha? E o senhor vtima ou acusado? Deu para meditar o caminho todo. Se nos limitamos ao lance em que saltei por cima, sonegando o facto, no ha que iludir a questo: acusado. Mas, ateno, acusado Pela prpria conscincia, quem apitou para a falta fui eu. Ao mesmo tempo, vtima. Vtima das circunstncias. No vou ma-lo com teorias ou exemplos concretos, o senhor sabe como as circunstncias levam a mesma pessoa a proceder assim ou assado. 79 Assado ou assim, a minha auto-estima ficaria de rastos. Mal com o senhor Inspector por lealdade a uma pobre criatura, mal com a pobre criatura por respeito ao senhor Inspector. Optei pelo lado da ordem e da justia, onde est a admirao? Era de prever a vitria dos princpios. Aqui estou, voluntrio, apesar da garganta apertada, a confessar o pecado. Se no confessando que estou a pecar. Realmente: eu no revelei, e sabia, que um dos elementos do bando mulher. Ocultando esse ponto, escondia o seguinte: a mulher do bando no uma desconhecida. Quanto ao primeiro item, talvez o senhor oua mal mas avancei trs lamirs. Trs. O primeiro, quando relatei o sonho em que a Renata apareceu de salvadora e fiz finca-p. A sugerir que algo ou algum me agradava na toca do sequestro. Segundo, a insistncia em falar do perfume, por acaso jasmim, como o da Gilberta. Terceiro, quando descrevi as mos dos raptores claro: femininas, um deles.
Um, no, uma. 80 Que andava ali figura de mulher, percebi cedo. H gestos, curvas, traseiros, cotovelos, que sujeito macho no consegue ter. Em particular os cotovelos. Cotovelo no mente. Dama ou cavalheiro, distingue-se pelo cotovelo, nem precisa espreitar o meio das virilhas. Logo no primeiro dia fiquei informado, ela arregaou as mangas. Um instantinho mas arregaou. terceira jornada, vai levar-me o almoo e toca com os dedos na frigideira quente. Doeu. Doendo, sai palavro. E o que saiu foi justamente aquele que ouvi de quem no esperava numa noite de discoteca, dispense-me de repetir. No s o mesmo palavro como a mesma voz. Surpresa to violenta ningum aguenta sentado. Pulei na cadeira: Zaga! Ela levou as mos cabea, sacou o gorro-mscara e correu a tapar-me a boca com a mo espalmada. s parvo? Se eles percebem que me reconheceste, no sais daqui vivo. 81 Fazia sentido. Bico calado at prxima oportunidade. A oportunidade chegou na tarde em que os cmplices saram na carrinha cor de tijolo, deixando a Zaga de guarda. Pudemos ento conversar. Comeou ela: Desculpa no me ter despedido naquela noite mas tinha de apanhar o avio: Brasil, Mxico, Colmbia, meses e meses por a. Tanta calma enervou-me: E voltaste para praticar uma aco to vil? Na verso que me deu, senhor Inspector, provavelmente verdadeira, a Zaga regressou a Portugal por razo digna de respeito: saudades de mim. No contar dela, saiu disparada do aeroporto para me tocar porta. Faltou-lhe a respirao quando viu na frente uma mocetona com cara de Julia Roberts. Desanimou de todo quando me ouviu a gritar do quarto: Quem , Renata? de presumir que nesse momento deixou escapar a asneira habitual mas isso no contou. Contou que se refugiou num hotel e, doida de cimes, decidiu: vou raptlo! Claro, outro estilo de rapto, sentimental, romntico, sem resgate, coisa para
gasto da casa. O problema foi ter-se descado com os parceiros, os tais que apontava ao longe como irmo e cunhado. 82 Nem primos em segundo grau. So tipos do piorio, pegaram na ideia e no tardaram a descobrir que o pai da Renata Emlia tem mais dinheiro que escrpulos. Estavam na mesa dois planos de rapto. Em votao democrtica, a Zaga perdeu por dois a um. Esta a histria que ouvi, enquanto revivia como aquela doura comeou por ser confuso de cachimbo vermelho, depois realidade palpvel, que se sumiu com um descuido de linguagem, e passou a recordao envolta em mistrio. Achei-a um nadinha mais gorda na zona da papada. A dado momento aproximo-me dela e vejo um facalho meio escondido na manga do bluso. No tentes!, ameaou. Ficarei para sempre sem saber se temeu que a atacasse para me pr a salvo ou para a conduzir ao div e recordar velhos tempos. Mandou a prudncia manter-me distncia. De sbito, quase sem pensar, implorei: Deixa-me pirar daqui. Uma risadinha nervosa e disse: Edgar, tu imaginas o que eles me faziam? Foda-se! 83 Em mais duas ocasies tivemos possibilidade de conversar. boa menina, senhor Inspector, com outras companhias a vida dela seria diferente. Poderia ter chegado a estrela de televiso, administradora de empresa, quem sabe, inspectora de polcia. No tenho. Antecipo a resposta pergunta que o vejo em pulgas para fazer: E voc, que andou de namoro com essa prenda, no me apresenta uma fotografia? No tenho. Inclusivamente a da outra, a autntica do cachimbo vermelho, a Zaga gamou-a. Nada mais posso dizer. Desabafei, espero que avalie quanto me foi penoso. No dia em que o senhor Inspector caar o trio, a Zaga cuspir na minha cara e vai chamarme traidor e chibo. No interessa. L estarei a defend-la no tribunal. Vou testemunhar que o seu lugar na quadrilha era s de cozinheira. E fraca. Pouco mais sabe fazer que ervilhas com ovos escalfados.
Cozinheira de mo-cheia a senhora minha me Quando a casa se animava de convidados, 84 nenhum resistia a repetir a sopa. E alambazavam-se com o pargo no forno, o arroz de amijoas sem a chatice das cascas, lombo assado com molho de lamber o prato, s de falar cresce-me o apetite. E os prprios doces conventuais, nunca mozinha de freira os fez to divinamente. O senhor Inspector tem cara de bom garfo. No melhor que o meu pai. Solteiro teimoso, quando se rendeu ao casrio j pisava os cinquenta. Chalaceavam os amigos que no foi impulso do corao mas do estmago. Chalaa, mesmo. A minha me andava por metade da idade do noivo e era a belezona da regio. Hei-de mostrar-lhe fotografias. E dele tambm. Vai gostar do seu ar de pai-av bem-disposto. Morreu aos oitenta e sete e foi uma risota. Percebendo que chegava a hora, confirmada com franqueza pelo primo mdico, o meu pai despediu-se da famlia e mandou chamar os sobrevivos companheiros desde putos. Sobravam trs. Divertiram-se ento a recordar as velhas histrias que contavam sempre e sempre acabavam em gargalhadas. Tu lembras-te daquela vez em que...? E riam-se que nem uns perdidos. Apagou-se com o riso na cara; quando deram por ela os trs velhinhos romperam numa choradeira desesperada. A minha me repreendeu-os: No foi para isso que vieram c.> 85 Digo-lhe ainda, senhor inspector. Se o meu pai o visse atarantado com a investigao, no faltaria o conselho do costume: puxe pela cabea. Nada se consegue sem puxar pela cabea. Vou indo. 86 Tera-feira, 10 tarde De queixoso a suspeito Ainda bem que j me tinha sentado. Espantoso, senhor inspector, espantoso. No apanhava surpresa to grande desde o dia em que a Renata me apareceu em casa com bagagem de ficar. Passei ento a suspeito nmero um. Pelos vistos, nico. Suspeito de inventar o meu prprio rapto? Eu?
Nem levo a mal. Compreendo que um investigador zeloso esgravate em todas as hipteses, incluindo as inverosmeis. E onde descobriu caa agachada? Para comear, no famoso bilhete recebido pelo Sertrio. O senhor inspector, no seu direito, entendeu enviar para anlise da polcia cientfica. Fez s isso? No fez s isso. O que fez mais foi juntar amostra da minha caligrafia, precisamente o papel que lhe deixei com o endereo 87 do bar e uma nota de confiana: O champanhe espera por ns. Ora esta sua diligncia um relmpago no escuro quanto inteno. Tratou-se de comparar as duas caligrafias, a ver se teriam partido do mesmo calgrafo. Quer dizer: o senhor, com esse ar de proco velho saboreador da boa cavaqueira, desconfiava do declarante. Pacincia, faz parte do ofcio. Acelerado pelo seu pedido de urgncia, supe-se, o relatrio no se fez esperar. E disse o qu? Que sim, os dois documentos nasceram da mesma mo. Com diferenas de pormenor: no escrito a exigir resgate, o autor tentou disfarar a letra. Sem xito. Perante isto, vossa excelncia recebeu-me hoje com o olhar de pescador que v robalo no anzol. Apanhei-te. Com toda a simpatia, mas igual sinceridade, declaro que me desiludiu. De um Maigret a gente espera mais. Tivesse pensado duas vezes e escusava de incomodar os coca-bichinhos da polcia cientfica ou l quem foiPerguntava: Caro Edgar, quem acha voc que escreveu aquele bilhete ao Sertrio Egdio Miranda? Resposta imediata: Eu. Nesse instante, saltava-lhe o rabo da cadeira e havia de gritar, triunfante: Ai confessa? Confessa que o rapto no passou de uma farsa? 88 E eu explicava: Qual farsa, escrevi o que eles mandaram- Eles quem?, estou a v-lo de sorrisinho malicioso. Os raptores. Os trs. Na altura ainda no teria denunciado a Zaga como titular da equipa.
Se o prprio senhor Inspector, com o seu olho de lince, tivesse notado o que notaram os peritos de grafologia, ainda apertava: Sim? E voc deu-se ao esforo de disfarara letra? Serenamente, eu esclarecia: Esforo no, tremideira. Tinha um gajo retaguarda a fazer-me festas com a navalha na cova-do-ladro. Experimente, a ver se a letra sai direitinha. Se tanto cagufo faz sentido ou no, outra histria. Vendo a questo friamente, sobreviver resume-se a ganhar tempo. Grande coisa, ha? Mas na hora, com uma naifa encostada ao pescoo, tremi como um carro no empedrado. E foi quando me mandaram escrever a merda do bilhete. Satisfeito? Parece que no. Mas devia pensar: alto, quem descreve assim uma aflio, de certeza passou por ela. 89 Tem outra pedra no seu sapato. Ningum diria mas vejo agora que me colocou sob suspeita desde a primeira hora. Tanto assim que andaram a espiolhar a minha conta bancria. Que esperava encontrar, senhor Inspector? Uma entrada gorda, medida do resgate? Se eu fosse bandido mesmo em princpio de carreira, no cometeria erro to primrio. De qualquer modo, a devassa fez crescer as suspeitas. Eu declarei, pois declarei, que na noite do rapto travaram a carrinha cor de tijolo junto a uma caixa multibanco. Deduz-se, j que me sacaram o carto e o cdigo. Agora vem a polcia descobrir-me a careca: olha, olha, nessa data ningum mexeu na conta, nem para pr, nem para tirar. Logo, c est o malandro do Edgar apanhado na mentira. Mentira, como? Se eu tinha os olhos vendados com a porra da meia preta de senhora, bvio que no vi. Deram a entender. Possivelmente arrependeram-se, ou a Zaga interferiu para me poupar ao prejuzo. Qual o crime? Sejamos frontais: a partir daqui alterou-se o clima ameno das nossas entrevistas. Nada ser como dantes. 90 Quem pode, diga-me, quem pode estender-se em paleios, bendo que cada palavra ouvida de p atrs?
No pago na mesma moeda, mantenho confiana mxima no senhor Inspector. Vai chegar l. Apesar de perder tempo com bagatelas. Pela minha parte, ponto final nas divagaes, memrias, apartes, confidncias acerca da vida particular, designadamente a sentimental. De hoje em diante, se h perguntas, respondo. Nem mais um pio. Diante do inquisidor, o suspeito perde at o gosto pela conversa. Se a relao no tivesse mudado, estaria agora a pairar sobre o que se passou ontem, enquanto eu sacrificava a pobre Zaga para merecer a sua aparente confiana. Aparente. Assim, abstenho-me. De resto, a quem interessa que a Renata Emlia tenha voltado a casa? Incurso rpida. S o tempo de pegar no resto da tralha pessoal e dar de frosques. Mas tem significado. Eu preferia que fosse mais explcita, encontro de adeus, talvez com jantar atencioso e civilizado, ao menos telefonema, carta, at bilhetinho com a letra disfarada. 91 Nem seria indito, sempre lhe digo. Foi exactamente o que recomendei a um cliente da antiga agncia. As queixas que me levou nada tinham a ver com raptos, mistrios ou ameaas. O que ele sofria era o desprezo A mulher s lhe dirigia a palavra para vomitar ordens e reprimendas. No se coibia diante de estranhos e quando o infeliz tentava meter o bedelho nas conversas enxotava-o: Cale-se! Foi isto que ele me contou com a voz mais triste que uma garrafa vazia. Falei do assunto minha irm Rute e ela aconselhou-me a abandonar o caso. assim que os maridos devem ser tratados, disse, como se todos fossem iguais ao Dlio ceramista. E a histria do marido aporrinhado vem a propsito de qu?, vejo-o a perguntar com esse ar de fiscal desconfiado. Da caligrafia. O homem era um artista a desenhar letras de todos os estilos e feitios. A habilidade deu-me a ideia mas se fiz de arquitecto foi ele a tomar a empreitada. E ponto final, para qu fingir que as nossas relaes so o que foram? Entre polcia e suspeito o ambiente no d para conversa prazenteira. Alis, no teria o menor prazer em repisar um dos mais duros troos do meu trajecto de investigador, no entanto, a tctica foi bem pensada. Quer saber.
92 O lamentoso escreveria cartas dirigidas a ele prprio para a prpria casa e assinadas por Mafalda. Decidi-me por Mafalda como poderia ter optado por Teresa, Ana, Manuela ou Maria dos Remdios. Importantes eram o papel, rosa na cor e no perfume, e uma caligrafia feminssima com toque romntico. A primeira, tal como o instru, deixou-a aberta e esquecida sobre a mesa da sala de jantar. Pelo canto do olho, ele viu a mulher entretida a ler a carta. Sem reaco. Desprezou a novidade como desprezava o coitado. Vai segunda. Nessa, a Mafalda imaginria carregou nas tintas. O nosso amigo era o Brad Pitt dos sonhos dela, enlevo espiritual e provocador de sobressaltos como jamais sentira na confluncia das pernas. Pensa que estou a romancear? No leu aquelas cartas. Um misto de Soror Mariana com operadora de linha ertica. Ningum diria que eram obra de fulano, ainda mais namorando-se a ele mesmo. A mulher leu, desta vez releu, e manteve o silncio. Masele notou que o media com os olhos, dos ps cabea, como tentando perceber paixo to afogueada pelo insignificante. a terceira para a quarta missiva verificou-se a evoluo que eu tinha planeado. Ela ia baixando a grimpa. 93 O impensvel aconteceu quando a mexelhona foi meter o nariz na carta nmero quatro. Numa inflamao de doze pginas, a impetuosa Mafalda no s fervia de amor como relatava os preparativos para se rasparem os dois, signatria e destinatrio, para uma aldeia na costa das Honduras. E juntava um postal. Chocada com o plano, a mulher estendeu-se com uma macacoa. Levaram-na a mata-cavalos para os cuidados intensivos. O meu cliente no ambicionava tanto e telefonou a fuzilar-me com injrias. No me queixo, estou habituado ingratido. Continuei a acompanhar o caso. Soube que a enferma recuperava foras e atingiu a normalidade quando o inteligente choramingou que a Mafalda das cartas no existia. Levou um tabefe e uma gargalhada na cara: Julga que acreditei? Alguma mulher se embeiava por um merdas como voc? Na ideia dela, trat-lo por voc cava a distncia.
94 Inevitvel, o ambiente domstico regrediu primeira forma, s um pouco pior. Ento, o estimado cliente correu a sentar-se no outro lado da minha secretria. No chegou descorooado, como da primeira vez. Desta, vinha mesmo de rastos. Em tais circunstncias, aposto que o senhor Inspector bolava um lance semelhante ao que faiscou logo na minha cabea. As cartas tiveram efeito, era jogo ganho quando o farsante desmanchou o cenrio. Assim, o plano B exigia outra Mafalda, tivesse ela o nome que tivesse. Mesmo annima, mas de carne e osso. O estimado cliente deveria passear-se com ela, a bruxa desptica ia ver que j no era inveno. Dava-lhe outro chilique, mas pacincia. O homem feio como um saguim mal parido mas engatou em tempo recorde. Horas depois aparece-me Com uma fulana que em certas fases da vida tocara eu. Apresentou-a: a Paula. Edgar, correspondi aprovando a figurante. Nesse momento tocou o telemvel do estimado e e ele afastou-se para conversar. A ss, ouvi da Paula: s vezes tambm me chamo Mafalda. Mafalda s vezes? Que vezes? 95 Saracoteou-se meio atrapalhada, lanou uma olhadela ao parceiro ocupado com o telefonema e abriu-se Quando mando as cartas para ele. Demasiado confuso para se entender primeira Esperei e a pequena fulminou-me: Sou eu que dito as cartas e ele escreve com aquela letrinha mimosa. Embatuquei. O choninhas saa-me um trapaceiro de alto coturno. E no foi tudo. Sobrou tempo para a Paulinha me segredar que tinham romance e j ia em dois anos. Romance mas pouco: Estou farta, desatou ela. Nem imagina o desprezo com que este sacana me trata. Se me dirige a palavra, para ordens e raspanetes. Usei o tom duro de quando me sinto intrujado: Mentirinha sua. Quem ditou aquelas cartas estoira de paixo. Pregou os olhos no soalho. Quando ditei as cartas foi sempre a pensar noutra pessoa. Agora no me pergunte, senhor Inspector, quem era a outra pessoa. A modstia uma das minhas poucas virtudes. Depois de ter vivido um episdio destes, acha que teria estmago para brincar aos bilhetinhos com letra 96
disfarada? Enfim, um pequeno equvoco da sua parte, ao nvel do p na poa, do autogolo, cigarro aceso no filtro ou chamar a mulher por nome que no o dela. So percalos chatos mas tm emenda. No tardar a riscar Edgar Jos Golinhas Lopes da sua agenda de marginais a engavetar e, vendo bem, o meu caso no indito. Tambm Cristo foi crucificado entre ladres. Passe bem. Se precisar de mim, s apitar. Eu no fujo. 97 Quarta-feira II - tarde O vdeo acusador. J nada me surpreende, senhor Inspector Agradeo at a ateno de me comumicar as suas dvidas e suspeies. Calando-se, no me dava oportunidade Para demonstrar a limpidez do que parece turvo Por exemplo, na suposta mentira acerca do lugar onde me agasalharam durante nove imensos dias. Com efeito, fabriqueta rural abandonada. Desconfiado,o senhor inspector ps-se a rebobinar e, ol, no bate a bota com a perdigota. Compreendo o raciocnio. Pois se me levaram de olhos tapados com a gaita da meia preta de senhora, como e quando pude admirar o exterior da construo? Bem sacado. Simplesmente, no teve em conta a minha ltima revelao, por sinal, vergonhosa. 99 Refiro-me, em concreto, confisso de segunda-feira O reencontro com a Zaga. A simbiose de sentimentos alegria e desconsolo. Os dilogos que tivemos. A original relao entre raptora e raptado. Falha fatal, no fiz aluso ao curto passeio em frente da casa. Fim de tarde. J os grilos comeavam a ensaiar. Aquela sombra de medo nos olhos da Zaga quando sugeri: E se dssemos uma voltinha? Hesitou mas fomos. Coisa de minutos. O suficiente para ver a fachada, o panorama e o belo rosto da Zaga luz do pr-do-sol. No me importava de passar o resto da vida contigo neste osis de paz, disse eu, exagerando um pouco. Ela no a romntica de antigamente. S me respondeu com aquela palavra ordinria. descrevi o aspecto exterior: arruinado, ar de
Quanto ao segundo problema, efectivamente, no sei como explicar. Deixo-lho a si, polcia cientfica, tcnicos de imagem, realizadores de cinema, algum capaz de distinguir o autntico do semelhante. Diz o senhor Inspector que as cmaras de vdeo um bar de Cascais registaram a minha presena entre as vinte e duas de sbado, dia 31, e as duas e um quarto de domingo, 1. 100 Esquisito, a essas horas encontrava-se este seu desdio declarante a ouvir os grilos no cu-de-judas. Em concluso, ou mente o vdeo ou minto eu. Combate desigual, sente-se que o senhor desses devotos das tecnologias, mais depressa acreditam na estpida da mquina que na palavra de um homem. Se apareo no vdeo, apareci a tomar uns copos no bar de Cascais. E ponto final. Ponto final, vrgula. Os vdeos, como as prprias fotografias, e sem m-f, por vezes enganam a gente. Exemplos? No vamos mais longe, a tem o episdio da mulher do cachimbo vermelho. Nossa Senhora, como desvairei com a foto no bolso, nos olhos, na alma, at tarde em que a vejo a sair do metro e salto de contente: ei-la! Afinal toca-me a Zaga, tal qual a outra, como eu devo ser a cara chapada do cavalheiro apanhado no vdeo de Cascais. Senhor Inspector: gente parecida no falta por a. Um dia, vou com a Gilberta, parmos junto passadeira dos Pees para atravessar a Avenida da Repblica. 101 Recuo uns metros para recuperar o suplemento do jornal que me tinha escorregado. Quando me viro dou com a Gilberta de brao enfiado num matulo. Gilberta, que isso?, reclamei. Ela volta-se assarapantada, olha para mim, olha para o sujeito e desculpa-se: Que disparate, pareceu-me que eras tu! No menos sobressaltado, o caramelo fita-me, engasga-se, no fim l diz: Desculpa, Roque, no foi por mal. Roque? No me chamo Roque! Voc no o Roque? Caramba, exactamente a trombinha dele. E a mulher tambm parecida com a sua. Como se demonstra, um vdeo vale o que vale. Tem impresso digital? No tem. Tem ADN? No tem. No meu entender de leigo, curto para pr em causa a
honestidade de um depoimento. Mas vou perguntar Gilberta, conhece as leis, como conhece os truques de qualquer Sertrio para se baldar a elas. Hoje tentei cinco vezes, s quinta apanhei a doutora com o telefone ligado. Antes de me dar ouvidos chegou-me um fio de conversa com algum to juntinho que lhe perrcebi o sussurro: Agora deixa-me fumar um cigarro. e ela compreensiva: Se ests cansado, continuamos amanh. 102 Quem era? Esse mesmo, o Slvio Pinalva. O pegajoso. Passaram a tarde em reunio de trabalho, informou A Gilberta sem eu perguntar. Nem tenho de pedir explicaes, olha que gaita. Ela que no resiste, como se sentisse o dever de me dar conta de todos os passos. Reunio de trabalho, alguma dvida? Normal uma pausa para fumo e descanso e natural ela compreender o cansao do colega. Natural. Cansado estou eu e h quinze dias que no me toca nada. Se me permite, retiro-me. Vou rever um filme, em vdeo, o chefe do bando parece gmeo do senhor Inspector. Com duas diferenas: ser bandido e falar ingls. No resto, olho para si e vejo a personagem. Igualzinho. At no mau gosto da camisa, desculpe a sinceridade. Passe bem e Deus o ajude. 103 Quinta-feira, 12 - Manh AUTOMVEL IRREQUIETO Arrasa. O que posso dizer da pergunta do senhor Inspector apenas isso: arrasa. Com efeito, abandonei o meu carro a cem metros da Igreja dos Prazeres, aonde me desloquei para o velrio do Gaspar Olvio Ripas, que afinal era outro Gaspar Olvio Ripas, e consolar a Marilinha Misse, se fosse o caso. Ao dito carro no voltei porque me raptaram com sequestro de nove dias. Realmente, como se explica que a viatura fosse vista trs madrugadas depois, vazia e sossegada, Porta do Bar Afunda? Respondo: daquele carro tudo se pode esperar. Queira o meu atento Inspector darse ao incmodo de consultar os registos da polcia e encontrar igual ocorrncia, porm ao contrrio. Quando se evaporou do bar e s apareceu no ms seguinte em Alfarelos. 105
E tem manias. De quando em quando, o motor zune. O zunido anuncia que a qualquer momento temos a que e stop. Apanha-se na oficina e nem mecanismo de relgio caro funciona com tanta perfeio Desse carro, inesquecvel foi a birra que teve quando circulvamos numa estrada serrana. Devagarinho. Chovia desalmadamente, a visibilidade era quase nenhuma. S distncia de oito, dez metros, divisei algum a fazer acenos. O aceno pratica-se mais quando a voz no alcana mas tambm serve para poupar palavras. Com vantagens. Todos devamos falar menos e acenar mais. Dizem que uma imagem vale mil palavras e o aceno imagem. E ecolgico, o aceno, no contribui para a poluio sonora. Mas pergunto-me: como responder com um aceno s acusaes explcitas ou veladas do querido Inspector. S me ocorre o manguito, que um aceno em grande e portugus. Fora de questo. Podia traduzi-lo como resposta menos respeitosa e longe de mim tal ideia. Onde amos? Nas maldades do carro e no vulto a acenar debaixo de chuva. 106 Sou sincero: evito dar boleia desde que me entrou um rosco. Oitenta quilmetros a mandar cuspidelas para a estrada e nunca se lembrou de baixar o vidro. Na volta da serra, a questo foi de sensibilidade. S um casmurro se borrifaria para a criatura acenando na berma com o cu a despejar-se em cima dela. Que era ela, s percebi quando travei e meteu a cabea. Leva-me? Pergunta parva. E o facto de ser mulher e bonitona no teve influncia. Eu salvaria do dilvio o prprio Sertrio Egdio Miranda. Tem um cigarro? Cigarrilha, serve? Torceu a cara num trejeito cmico mas aspirou fundo cerrando os olhos. Msica? Encolheu os ombros. Carrego no boto e sai a voz em brasa da Diana Krall; Bsame, bsame mucho, como si fuera esta noche la ltima vez... Ia perguntar se apreciava a cantora mas vi-a a olhar para onde no se topava nada. Respeitei o recolhimento. Segundos depois, zzzzz, comea o zunido no motor. Fininho. Como um sopro entre os lbios sem chegar a assobio. 107
Tu no me desiludas. Desiludi-lo, como?, respingou a recm-entrada Agressiva. Expliquei que era conversa privada entre o carro e o dono. Desavenas antigas. Esperava um sorriso, mas no. Um minuto mais tarde pararam, o zunido e o carro. Que se passa? Pifou. Seguiu-se o inconcebvel, senhor Inspector. Hirta, atirou-me: Vocs so todos iguais. Msica romntica e depois, ou avaria ou acaba-se a gasolina. Julga-me estpida? Era. Mas s atingi quando ela desembrulhou: Agora tentar abraar-me, beijar-me, sei l, e eu neste descampado sem ningum que me defenda. Chateou-me. Eu seria incapaz de forar uma mulher a fazer amor. Pelo contrrio, se forcei algumas foi a no fazer. Sabe conduzir?, usei o tom mais bruto que consegui. Sabia. Convidei-a a saltar para o comando e convencer aquele carro de mau feitio. Sa batendo com a porta, dei a volta sob uma chuva que nem nos trpicos. Todo eu era uma sopa quando 108 entrei e a vi a transitar do lugar do morto para o volante. uxou pela ignio com a teimosia de um certo Inspector esgravatando indcios que me comprometam. A obstinao dela tambm no valeu a pena. Desculpe, e desistiu. Comigo, quando me tocam na dignidade, difcil amansar. Liguei para o Virgolino mecnico com o telefone em alta voz. Virgolino, outra vez empanado. Zuniu? Zuniu. Defeito de fabrico, s pode. E agora, Virgolino? O costume. H que esperar um bom bocado. Um bom bocado? Com a noite a fechar-se; a chuva a cntaros; por companhia uma retorcida tratando-me como a um tarado? Atitude certa seria no pronunciar palavra. Mas ela Pronunciou.
Li que perigoso uma pessoa ficar de roupa encharcada. Arrisca-se a constipao, gripe, pneumonia. Eu vou tirar. Foi a minha vez de virar a cara e olhar o nada. Calado. Ela no. 109 E voc? Parece um pinto que caiu no tanque. quer brincar com a sade? Da a nada, toda a roupa, dela e minha, jazia por terra. E os assentos? Reparou como esto alagados?, queixou-se. De imediato, uma ideia lhe iluminou o crebro: Ficaremos melhor no banco de trs. Um bom bocado depois, abanou o meu nariz com dois dedinhos e disse: Voc danado. Acabou por levar a sua avante. Vinha isto a propsito do carro. Mas contradigo-me. Jurei que no voltaria a escorregar para miudezas dispensveis e catrapus. Distraces desta natureza convidam o senhor Inspector a tirar uma de duas concluses erradas: que a passagem a suspeito no beliscou o prazer do convvio; ou que estou a encanar a perna r para fugir com o rabo seringa, permita-me usar expresses corriqueiras para que fique claro. Chegmos parte dois do filme em que vem como denunciante o maldito carro. Eu respondo por mim,senhor Inspector, no por um manhoso de lata que Pra quando no devia e anda quando o supomos parado. 110 Na mesma noite? Precisamente na noite do vdeo no bar de Cascais, chamaram a polcia para embirrar com o automvel, o meu, que dificultava a sada de uma garagem nas imediaes? No vamos iludir a realidade, a coincidncia d que pensar. Mas, pensando, temos um foguetrio de hipteses. Veja. Um gatuneco infiltra-se na viatura abandonada junto Igreja dos Prazeres. Leva-a. Quase apostava que o motor no enguiou. Alguma vez o meliante havia de parar, que diabo, e uma possibilidade ter estacionado em Cascais no longe do bar. Qual o espanto? Admitamos, inclusivamente, que o figuro do vdeo, esse que confundem comigo, foi quem fanou o automvel e, enfim, sbado noite, apeteceu-lhe um drinque naquele bar simptico. Que tem de extraordinrio? Grande a distncia entre indcios e provas, senhor Inspector. Em tudo. Devia ter visto como os modos e olhares da Marilinha Misse indiciavam que dentro daquele
peito chamativo um corao badalava por mim. Falso. A prova foi que se enrolou com o Ripas mal o sacana lhe fez um aceno. At breve. Pressinto que a hora da verdade est a chegar. 111 Sexta-feira, 13 - Fim de tarde TODA A VERDADE (PARTE I) Acabou? No acabou. Outro investigador, menos experiente e sagaz, seria tentado a dar o caso por esclarecido e fechar o dossi. Uma raposa como o senhor, eis a diferena, topa logo quando faltam cartas no baralho. Nem de propsito: cruzei-me com a Renata Emlia e O pai, vieram ento desatar as lnguas. Qual rapto, qual sequestro, que resgate, tudo inveno do infame Edgar Para se abotoar com uns carcanhis do sogro entre aspas. Mas saiu de mozinhas a abanar, disseram sem se rir ou, pior, rindo-se. Achei delicioso este encontro de entra-sai porta da polcia. a Renata balanceou-se para uma estalada grandiosa, esquivei-me, bateu com o fofo na calada. Levantei-a e disse, Sem mentir: Ainda s mais bonita quando ficas brava. 113 Brava e desbocada. Traidor, vigarista, ingrato, escroque, foram os cumprimentos que me atirou cara. No satisfeita, na fria, anunciou que tem andado s quecas com o merdoso do Oscar Geraldo. Se o alvo era o meu orgulho de macho, a seta passou ao lado. Mal empregada se pinocou com ele mas, a ter acontecido, s depois da nossa ligao se ter desligado. Ou nem. Para desaforo, bastou a lngua de trapos. Todos os passos do folhetim, a Renata ia meter no rabinho do vaidoso. Engraado, parece que ele saiu de cena na vspera da minha reentrada. Vigiei a loja, corri os stios que frequenta O Oscar Geraldo? No tem aparecido por c. -, ento pensei: anda a fugir-me, o cobardola. Julga-me rodo de cimes e disposto a sov-lo ou, sei l, afinfar-lhe um tiro no instrumento da afronta. Saiba o senhor Inspector que j passei por situao semelhante e no fugi. Um dia, sem saber, roubei a namorada de um fulano azarado. Chegou um fim-desemana para concluir que ela no era exactamente a mulher dos meus sonhos e bater as cartas na mesa: Querida, no d. Tu, com todas as 114 qualidades fsicas e intelectuais, a cinturinha,
o charme, a finesse, mereces algum melhor do que eu. A fria dela revelou que no era assim to meiga como parecia. Andei meses com o pescoo arranhado. Duas noites aps o bai-bai, telefonou: Ests no bar? Estou no bar. Ento prepara-te, ele foi para a com a pistola. Pistola? Pistola. Mas no entres em pnico nem saias do teu lugar. Duvidei: No seria conveniente? A resposta chegou embrulhada num risinho de veludo: Ele s quer assustar-te. Humilhar-te. Matar, no mata, tirou o carregador. Vai sem balas, entendes? Mais ou menos. Se a coisa meter polcia, ele mostra a arma descarregada, ningum pode acus-lo de tentativa de homicdio. Dir que era uma partida, uma palhaada. Entretanto, tez-te passar um pssimo bocado. Ou fazia, se eu no avisasse. Agradeci e desligmos quase em simultneo com entrada teatral do transtornado. Deu trs passos, parou, percorreu a clientela com os olhos, fixou-os na minha tranquila pessoa e anunciou num vozeiro que 115 fez calar as conversas todas: Vais morrer como um co. Os ces no costumam morrer baleados mas a frase perturbadora, sobretudo se acompanhada de pistola Um silncio de terror tombou na sala. Melhor se ouviu a minha voz serena com leve tom de admoestao proibido o porte de armas de fogo neste bar. Queira retirarse. O pasmo dele foi paralelo ao enlevo com que os clientes me olharam. Resolvi acrescentar: Antes que eu me chateie. Um pouco desconcertado, o vingador no era porm dos que desistem logo. distncia de trs metros, apontou o cano para um palmo abaixo da fivela do meu cinto. De joelhos, j!, berrou, e nem um s dos aterrados espectadores ter pensado em desobedincia. Tenho pena, senhor Inspector, sincera pena, de no dispor da gravao com a gargalhada que soltei na fronha do pistoleiro. Ouvi a voz sumida de uma senhora piedosa. Ai, Nossa Senhora lhe acuda! Como ouvi o comentrio do coronel de
Infantaria reformado que faz o favor de ser cliente assduo: O nosso Edgar tem-nos no stio! O homem no seria da mesma opinio, talvez desconfiasse que era farronca a esconder o cagao e eu no 116 tardaria a amochar suplicando misericrdia. Dou-te vinte segundos. Acabo contigo se no vieres aqui a rastejar para me lamber os sapatos. Lamber os sapatos, senhor Inspector, j imaginou humilhao to porca? Conheo um sujeito que lambe os sapatos da rapariga dele mas voluntrio e pede licena. No vem ao caso e cada um lambe o que lhe cai bem ao paladar. O que me assustou foi ver a Bruna a chegar-se de mansinho. Ainda lhe fiz um aceno - c est o aceno - para se manter sossegada. Qualquer interveno s poderia prejudicar a imagem do intrpido que todos fitavam de boca aberta. Mentalmente, tornei a agradecer repudiada a ternura de me avisar do ataque e das verdadeiras intenes. A Bruna no viu ou no soube ler o meu sinal. Assenta a manpula no cachao do tipo, ele desequilibra-se, gimga e, de sbito, o que isto?, pum, pum, catrapum, estoira uma saraivada de balas. Tiros autnticos, balas a srio Zuniam minha volta, uma roou-me a orelha, aimda tenho a marca. V? Na pontinha do lbulo? Foi o pandemnio no Bar Afunda, to gabado pela tranquilidade. Aos guinchos, os fregueses mergulhavam a 117 abrigar-se por baixo das mesas. Mas surpresa total tive eu, fiquei sem aco, imvel como as esttuas dos heris. Dominado pela Bruna e pelo nosso coronel de Infantaria reformado, o atirador era o outro retrato do assombro. Quando recuperou a fala, foi para garantir entre soluos: No pode ser! Eu tirei o carregador! Tirei a merda das balas! S queria pregar-lhe um susto! Evidente como mulata em lenol branco. O ciumento descarregou a pistola e a cabra, s escondidas, voltou a carreg-la. O plano era apanhar dois coelhos na mesma cajadada: vingar-se de mim e livrar-se do traste. As mulheres, quando lhes d para a maldade, tambm so seres superiores. Golpe deste requinte no passaria pela tola de malandro macho.
Onde amos, senhor Inspector? Na birra da Renata quando nos cruzmos e no jorro dos insultos, estilo mangueirada. No s ela. O velho bode seguira em frente e impacientou-se: Ainda ficas conversa com o salteador? Salteador, tome nota. Sem risco de erro ou omisso, eu poderia reproduzir a verso do rapto, alegado rapto, digamos, que o macaco e a cria vieram despejar nos ouvidos do senhor Inspector. 118 Primeiro: ou no verdade que se recusaram a apresentar queixa contra este seu declarante e amigo? Segundo: certo ou errado que pediram por todos os santos que no mexa mais na borbulha? Quanto aos argumentos, no preciso ser bruxo. Aposto, o Sertrio jurou a ps juntos que espetou o dedo do meio exigncia de desembolsar. Nem um cntimo, gabou-se. Ele ou ela, se no os dois, disseram, seguramente, num tom menos de perdo que de desprezo: Afinal de contas, no passou de uma diabrura do rapaz. Quis ver, o tolinho, se eu desatinava com medo de o perder, acrescentou a marota. Reparou como lhe pulam as mamocas quando se ri? Esquea, no a pergunta que se impe. A pergunta : que fizeram eles ao quarto de milho que levantaram do banco s duas da tarde de quarta-feira, 4? Fica no ar. Tudo se torna claro se recuarmos ao dia em que a polcia tomou conhecimento do rapto. Alegado rapto, digamos. Quem esteve aqui, nervosa, aflita e sentada nesta precisa cadeira? A Gilberta. E por que raio a minha ex119 -mulher? Na base, por eu ter faltado ao almoo combinado, falha sem precedentes. Telefonou e nada. Corre a tocar-me porta, ningum. Apresentou-se no Bar Afunda e nem em voz baixa o Falinhas se descoseu. Alarmada, a Gilberta engoliu um pequeno sapo e foi perguntar por mim Renata. Renata que a recebeu com duas pedras na mo: A senhora, quem ? A ex-mulher do Edgar. E d-lhe gozo andar enrolada com o ex-marido? Custa a crer mas foi o que disse antes de fechar a porta.
Por essa altura j tinham passado, deixe ver, a tera-feira, a quarta, a quinta, e a Gilberta veio participar a ocorrncia. Impulso desastroso. Cheirando-lhe a esturro, o senhor Inspector no perdeu tempo: destacou dois agentes, Silva e Sousa, para se deslocarem ao domiclio do Sertrio e pedir explicaes. Ao dito Sertrio e sonsa residente com o desaparecido. Meteram os ps pelas mos mas no havia como ocultar que j tinham voado trs dias sem eu dizer gua vai. Curiosidade dos polcias: e no puseram os calcantes numa esquadra a dar conta do sumio? De atrapalhao em atrapalhao, no tardaram a retirar da segunda gaveta da estante da sala, iria jurar que da segunda gaveta, o famoso bilhete a informar do rapto, alegado rapto, digamos, e qual o montante a liquidar. 120 Nesse dia o senhor chamou-os pedra e deve ter estranhado. O Sertrio grunhiu que no pagaria um chavo mas, ao mesmo tempo, queria a polcia afastada do assunto. Faz sentido? No faz, porm tinha explicao que o pilantra escondeu: horas antes recebera o primeiro telefonema. Que telefonema? At chegarmos a muito ar passar no trombone. Nesta altura indispensvel meter o flechebeque. Faz ideia, o senhor Inspector, de quem magicou um falso rapto seis meses antes? Repito, seis meses antes? Na terceira semana de Janeiro? A Renata. Exacto, a Renata. Se lhe perguntar, ela falar em calnia, brincadeira, ou que a nica inteno foi avaliar o calibre do interlocutor. Tretas, a verdade que ela fantasiou o seu prprio rapto. Atravessava uma daquelas fases de embirrar, embirrou com o apartamento, a rua, a vista para as traseiras do hospital. Passou-lhe ento pela tonta pedir dinheiro ao Pai> para comprar casa e mudarmos para l. Levou sopa e descasca, que esperava do sovina, mais a mais 121 furioso com o escapano dela para os lenis de um galincio velho? s tantas de uma noite, na cama de trs metros por dois e meio que, alis, comprei a contar com a Marilinha Misse, a Renata acordou-me excitada: J sei o que vamos fazer! A esta hora? Eu quando durmo com o corpo todo. Vais raptar-me!
Outra vez? De raptar a docinha j o Sertrio me tinha acusado. Sentou-se e estendeu o guardanapo. Ela pisgava-se pela calada e ia instalar-se num chal na serra da Estrela, propriedade de amiga de confiana, a Joja. Serra da Estrela? Paz e bons ares, talvez te apetea ficar por l. Sem te chateares com a casa manhosa, a rua de lojecas, o vizinho que noite sopra tangos na harmnica bucal, a vizinha que assa carapaus entre vasos de flores na sacada da janela. Vai. No me ouviu, ouvi eu. Escrevia-se ao pap, carta ou SMS de nmero incgnito, indicando a quantia, o stio e a hora para recolher o taco. E quem o valente que vai proceder cobrana? Tu, claro. Passou tempo at lembrar-se da precauo: Mascarado, claro. Em claro passmos ns a noite e tudo isso girou pela memria da Renata, estou certo, quando o Sertrio retirou da caixa do correio o bilhetinho que at subiu polcia cientfica. Ai o safado, que ps em prtica o meu plano!, parece que estou a ouvi-la. 122 Como vou historiar e provar cabalmente, foi diferente o encadear de circunstncias que explodiram no meu rapto. Alegado rapto, digamos. Lamento carregar na tecla do costume mas tenho a declarar que o primeiro acto foi escrito pelo acaso. Julgue por si, senhor Inspector. Um cliente espaado do Bar Afunda, de nome Marques e arquitecto, apareceu uma noite com a mulher. Casal engraado. Ele, gordo, baixote e de cabeleira a afogar o colarinho; ela, uma fuinha com o seu metro e oitenta, cabelo cortado militar. Cumprimentei de cabea e seguiria se a cliente no tivesse parado: Desculpe, no foi o senhor quem eu vi no sbado, com a Renata Emlia? Na Rua do Ouro? Provavelmente. A senhora amiga dela? 123 Tia. Tia? Nunca a Renata me falou em tias e nada me entusiasmava menos do que porme conversa com uma irm do Sertrio. Falso alarme. Tia, irm da me precisou. Assim sendo, aceitei o convite para me sentar e provar o uisqui da garrafa deles. Sou a tia Anabela.
A tia Anabela s h dois meses soube quando e porqu a sobrinha se escapuliu da autoridade paterna. Ento voc, imirou-se divertida. Sem que eu perguntasse, comeou a falar da irm e, no seguimento, vem o Sertrio. Peo a sua melhor ateno, senhor inspector, enrmos num troo fundamental. Todo e qualquer movimento provocado por foras e nada mais forte que a informao. Nessa noite fiquei informado. ningum, na famlia, entendeu a loucura da Dulce. Um dia chega a casa e larga a bomba: vou-me casar com o senhor Sertrio Egdio Miranda. Tentmos demov-la, o nosso pai tinha uns zunzuns acerca do marmelo. Nada feito. De passagem, a tia Anabela deixou cair a mana mais nova, logo aos vinte e dois anos, dispunha de respeitvel fortuna pessoal. Rica, pode dizer-se. 124 Estranhei: rica? Como rica? Contou-me ento a graa da madrinha do baptismo, mulher de altas posses e sem parentes prximos. Antes de fechar os olhinhos, cuidou habilitar a afilhada, que viria a ser me da Renata, com metade da fortuna. A outra metade, distribuiu por obras de assistncia, ideia de ltima hora, nunca de tal se tinha lembrado. Se calhar, o senhor inspector supe que isto tem tanto a ver com o rapto alegado rapto, digamos, como o Sertrio com um gajo srio. Quando chegar a hora, mudar de opinio. A nica vontade que fez ao pai foi casar-se com separao total de bens. Pior a emenda que o soneto: em poucos anos o marido tirou-lhe tudo, disse a tia Anabela, batendo com as costas da mo direita na palma da esquerda. Os nomes que me ocorreram, foram outros, foram os vomitados pela Renata, hoje, quando nos encontrmos ali porta. Mas no interrompi o relatrio: os bens da Dulce foram envolvidos em negcios confusos, no fim, despesas e prejuizos para o lado dela, lucros na conta dele. Assim, voou a herana da madrinha, rematou. Gostaria que o senhor inspector reparasse, com olhos de ver, ouvidos de ouvir, como o instinto me revelou 125 o estofo da personagem. Muito antes de conhecer o currculo, pela voz da transitria cunhada Anabela.
Prosseguimos em flechebeque. Depois de sugar a coitada, o Sertrio dispensou-se de um mnimo de atenes e tratava-a de harmonia com o seu carcter bronco e mau. Chegou a um ponto que ela se raspou porta fora sem discutir a posse da filha. Por causa dos estudos da menina e por ignorar onde a levaria a vida com o seu cortejo de acasos. Trs semanas mais tarde, ei-la ao piano de um bar de Hamburgo. At sexo ao vivo a pobre musicou. Depois, Franquefurte, Bona, Dusseldorfe. Certa noite, em Dusseldorfe, um admirador namorou-a para professora de uma escola de msica. Assim aconteceu. Dois anos passados, dona Dulce Paula, conforme relato da irm, achou melhor professorar em Lisboa. Com o amealhado e emprstimo do banco, adquiriu o apartamento onde mora, dispondo de mansarda que funciona como ateli musical. Reparou? Deu-se o acaso de a tia Anabela me ter visto com a Renata na Rua do Ouro e logo a casualidade de entrar com o marido no Bar Afunda. 126 Resultado, tomei conhecimento do endereo da dona Dulce paulaResultado deste resultado: apresentei-me l e esse foi o dia d. Mas veja as horas. E seja sincero, senhor Inspector. Acharia atrevimento da minha parte sugerir pausa curta, para mastigao, talvez ervilhas com ovos escalfados, no seneque em frente? Ento combinado, no demoro, aproveite tambm o senhor para se alimentar. Com calma. Ningum corre atrs de ns. 127 Sexta feira, 13 - Noite TODA A VERDADE (PARTE II) Demorei? Queira desculpar mas o honrado cidado que tem na frente anda num virote. Acontecimentos extraordinrios sucedem-se em catadupa. Que dia hoje? Sexta-feira, 13. Pois tome nota, nesta sexta-feira, 13, sou o sobrevivente mais sortudo do planeta. Olhe bem os meus olhos. Brilho de quem sacou a taluda da lotaria? Ar de nomeado para gestor de empresa Pblica? Regozijo de marcador de golo da vitria sem chutar baliza? Upa, upa, senhor Inspector, nada vale o que me aconteceu h uns trinta e cinco minutos.
E, no entanto, a jornada comeou meio fnebre. A fita da Renata foi o balde de cal sobre uma relao que conheceu dias bons. E noites esplendorosas. Carinho. Carinho o que sentirei sempre que me lembrar da 129 Renata Emlia. E ela, quando souber o que ignora, vai engolir os insultos que cuspiu. E a cantiga das quecas com esse cara de cu. No espao de doze horas, o vendaval cortou-me duas amarras. Ontem noite, por volta das dez, recebi um intrigante telefonema da Gilberta. Poucas palavras: Podes chegar aqui a casa? Aqui a casa. No lhe chamaria a nossa casa mas era natural dizer a minha. Aqui a casa, soou-me bem. Como se fosse a nica e comum. Nem cheguei campainha, o estrondo do carro a derrubar o contentor do lixo avisou-a da chegada. To rpido?, agradeceu. Como vai, Edgar? Sade, boa?, interessou-se o gabiru que surgiu nas costas dela. Escondi a decepo. Duas decepes. Trs. A primeira, porque a imaginava s. A segunda, tendo companhia, que fossem pai, me, roda de amigos, nunca um tipo solto. Terceira, o tipo era precisamente o Slvio Pinalva. Entrmos na sala de boa memria e a Gilberta disse Slvio, importa-se de nos deixar por uns minutos. 130 Uns minutos era o meu tempo. Percebi que nos tempos seguintes outro galo cantaria. O senhor Inspector compreenda, tenho de resumir para no atrasarmos o assunto principal. Enfim, a Gilberta descaiu-se em dar o sim ao pegadio mas considerou que eu era merecedor de uma palavra. Segurou as ninhas mos, vendeu o peixe dela e falou como moa antiga falaria ao pai: Edgar, eu no dispenso a tua bno. Comoveu-me. Nem quando era marido me senti tanto da famlia. Sa de l assobiando, veja como os sentimentos evoluem com o tempo e as convenincias. S duvido de que o Pinalva, num dado captulo, seja meu digno sucessor. Tomara que sim. Onde amos? Ateno, hoje no dia para nos afastarmos da rota. Alis, com a pressa, tenho empurrado os acompanhamentos para a borda do prato. Pormenores,
Propsitos, associaes de ideias, tudo o que cheire a suprfluo eu deixo de lado. Nem vou contar o episdio com a Zina e a Nolia h um ror de anos. Prometi, mas Hoje no. E nem era to suprfluo assim, tem ligaes 131 com raptos. Devo respeitar, porm, a sua impacincia Eu prprio, porque no confessar?, estou em pulgas para sair e festejar a minha jornada de sorte. Que dia sexta-feira, 13! Remetendo-me, pois, ao essencial, retomo a visita me da Renata. Premi o boto da campainha e saiu-me a prpria. Dona Dulce Paula? Sim. O meu nome Edgar Golinhas Lopes. No lhe diz nada? No. A sua filha Renata Emlia e eu temos andado a namorar. Engraado, pensei que o nome era Oscar. Mas no quer entrar? Com sua licena. A me supera a filha. uma daquelas mulheres que em todas as idades parecem ter a idade certa: entre os trinta e os cinquenta e oito. Torci um bocadinho a verdade: Tive um assunto aqui perto e lembrei-me de a visitar. 132 Fez bem. agradvel conhecer o futuro genro. Vo casar-se, no? A Renata tem ameaado. Conversmos na saleta da entrada e escorriam de cima acordes de piano. No rosto dela desenhou-se uma expresso de enlevo. Liszt, conhece? Ora, ora, genial. Honestamente, senhor Inspector, eu no distingo bem os clssicos. Pela msica. De resto, conheo-os a todos. O Liszt, justamente, era danadinho para as mulheres, enroscou-se com marquesas, condessas, uma princesa, fora as outras. O homem no foi um gnio s na msica. Fez-se silncio e a professora bateu palmas e falou alto na direco do tecto: Bravo, Lu. Agora venha aqui.
A cena seguinte provocou-me a maior surpresa de quantas me tm boquiaberto nos acasos da existncia. Desce o Lu, pianista, e quem era o Lu, pianista? Luciano, O Falinhas. O safado, que um ano antes mal distinguia as teclas brancas das pretas, meteu-se nas lies da professora Dulce Paula, calado que nem um rato, e aparecia agora feito artista. Edgar!, admirou-se o Falinhas. 133 Admirao da dona Dulce: este o Edgar de que voc falava, o do Bar Afunda? Achei por bem repetir: Vim aqui perto, lembrei-me de visitar a me da Renata, atendendo nossa relao O Falinhas para a professora: A sua filha, que nunca aparece por c, a Renata que namora com o Edgar? Eu at pensei que se chamava Oscar. Fizeram-se os ajustes quanto a saberes e desconhecimentos mas faltava ainda outra revelao de estrondo: o Falinhas e a dona Dulce esto de namoro. Note agora o senhor Inspector o que seria se eu me tivesse casado com a Renata Emlia: sogro, o Sertrio; meio sogro, o Falinhas. J com copos servidos pelo Lu pianista, com o -vontade de profissional de bar, resolvi contar senhora o dilogo com a irm. Para vincar que sabia tudo acerca da prenda com quem esteve casada. Pena que no tenha ficado com documentos, ao menos para recordao, lamentei. Pensou um pouco e disse: Por acaso tenho uma pasta com papis, creio que trouxe alguns por engano, os da segunda gaveta da estante da sala. Venham os papis. No sou perito mas notei logo certas disparidades 134 Posso levar? Tudo. um alvio. No dia seguinte descarrego os documentos na secretria da Gilberta. Ela viu, viu, ao fim da tarde tirou os culos e disse: Cadeia. Com vinte e quatro horas de atraso, para no faltar ao velrio do Gaspar Olvio Ripas, com a provvel participao da Marilinha Misse, nascia a operao rapto, alegado rapto, digamos. O passo seguinte seria o ataque ao trafulha do Sertrio. Plano perfeito. Mas o filme afastou-se do guio.
Compreender, eu compreendo, senhor Inspector, tambm tenho pressa e por boas razes. Mas custa no poder narrar os acontecimentos com outro vagar, maior preciso, sem esta galopada que me obriga a saltar etapas. Nem insisto no caso com a Zina e a Nolia, apesar dos pontos de contacto, enfim, histria antiga, j l vo vinte anos ou perto. Bons tempos, o que dizemos todos Quando recordamos a juventude. Mas eu era chanfrado, Caramba, como mudei. Nesse tempo tinha duas namoradas, cada uma em sua ponta de Lisboa, a Zina no 135 Lumiar, a Nolia em Brao de Prata, alguma vez pensei que se viriam a conhecer? Regressemos ordem do dia. Tomada a audaciosa deciso, saio do velrio do Ripas, outro Ripas, vou ao carro, tiro a mala, enfio-me num txi e ala para Pao de Arcos. Faltava um quarto para a uma quando chego a casa do Britinho Maraj, ele aplicado na hospitalidade a uma escandinava enorme. Desculpa, p, no quero estorvar. Ensaio a retirada mas o Britinho, de robe de seda azul-celeste, ope-se-me. Fui estender-me no div do escritrio e pensei que s dali sairia depois de o Sertrio entrar com o cacau. Repito, senhor Inspector: entre guio e filme cavou-se um abismo. O guio, confesso, era parente do plano desenhado pela Renata numa madrugada maluca. No posso jurar se ela se riu com desprezo ou espumou de raiva quando receberam o bilhete da letra disfarada. De certeza, pensou: sacana do Edgar, ha?, a querer bifar uma pipa ao sogro! Sogro, palavra dela. No contavam com os telefonemas. No dia seguinte comearam os telefonemas. Acredito que o Sertrio se mijou ao ouvir a voz do Maraj descrevendo as provas 136 da vigarice na posse dos raptores. Alegados raptores, digamos. Para matar possveis dvidas, l foi o Falinhas enfiar fotocpias na caixa de correio do velhaco. Abanou. A alternativa a entrar com a guita era uma temporada de choa. Compreende agora porque se fecharam em copas? Se a Renata adivinhou a autoria do golpe, enganou-se quanto s intenes. Nobres intenes, apresso-me a esclarecer.
A ideia, senhor Inspector, era depositar o malo de notas, at ao ltimo cntimo, nas mos da dona Dulce Paula ex-Miranda. Roubo? Por amor de Deus, apenas restituio parcial da fortuna que o bicho lhe subtraiu. Louvvel, no? Inesperadamente, no seria esse o final da histria. Tudo simples como o ovo de Colombo mas faltava cozer o ovo. Desabafe, Inspector, compreendo a tentao de me atirar cara que andei uma semana a impingir-lhe um chorrilho de mentiras. No exageremos. Exagerar desporto portugus, inclusive de alguns jornalistas 137 impetuosos. Ouvem que um gajo est de cama e noticiam que o gajo est em coma. Eu posso jurar: excepo do acto protagonizado por um trio de mascarados e do retiro num ermo ao som dos grilos, tudo quanto lhe comuniquei a mais cristalina das verdades. O velrio, a festa em que colidi com a Renata, o secreto prazer do Pseudnimo, a boleia sob o dilvio, os tiros no bar, o assalto ao vestido de noiva, os sucessos na agncia de investigao sigilosa, sei l, mesmo o caso da mulher de cachimbo vermelho, foram tal qual contei. Neste ltimo particular com uma pequena distoro. A Zaga, que na verdade se chama Maria Idalina, no desapareceu numa madrugada da discoteca soltando uma imprecao irrepetvel. A Zaga, alis Maria Idalina, trocou-me por um gajo belga, no sei o que viu naquele patareco, v l a gente compreender as mulheres. Mas hoje, enfim, esposa e me no seu duplquece a oitenta quilmetros de Anturpia, e no se entretm a atirar namorados antigos para dentro de carrinhas cor de tijolo. E quanto sua ideia de que nunca fui sequestrado, s o diz, ou pensa, porque me impediu de relatar o percalo com a Zina e a Nolia. Pergunto: passava pela cabea de algum que, morando uma no Lumiar e a outra em Brao de Prata, era arriscado namorar as duas? 138 Um dia diz-me a Nolia: Edgar, vamos passar uma semana num monte alentejano? Bora, onde nos encontramos? s nove da manh no Marqus? Perfeito.
Quando encosto para a recolher entram-me as duas no carro. Segui todo o caminho mudo de aflio e elas na conversa e na risota, sem me ligarem peva. Basta. Hoje, a nica preocupao projectar luz sobre todas as sombras que persistem no nosso misterioso caso. Onde amos? J sei, na confisso do meu arrojado plano. Entendo as suas dvidas. Por que carga de gua veio este caramelo com a histria do rapto? E por que razo quer agora tudo em pratos limpos, mesmo conhecedor de que o Sertrio Egdio Miranda se recusou a apresentar queixa? A culpa original, como sempre, foi do acaso. Sem a minha falta ao almoo combinado, a Gilberta no se teria afligido ao ponto de badalar o desaparecimento polcia, coisa que o Sertrio e a menina s confirmaram depois de apertados. 139 Quer isto dizer que, terminado o sequestro, alegado sequestro, digamos, o imbrglio se limitava ao tringulo: Renata, pai e eu. Sem polcia. Sem o Inspector. Tudo em famlia. Todavia, dado que a Gilberta me deu como desaparecido, fui obrigado a apresentar-me como reaparecido. Inevitvel, no? E que poderia eu dizer a um senhor que tinha na mo um bilhete escrito com a minha letra na qualidade de raptado sob ameaa de raptores? Lgico, tinha de confirmar inventando. Adivinho nova interrogao: mas, se o homem afirma que no pagou o resgate, como se compreende teimar voc no contrrio? Amor-prprio. Depois de tantas sesses a ganhar o respeito do senhor Inspector, era o que faltava dar a imagem de um falhado, sem competncia para forjar um rapto em condies. Fique claro: o artolas pagou e bico calado. Impensvel era a cambalhota que riscou o epiende. Permita-me um parntesis. Falei em bico calado e c vem a penosa viagem com a Zina e a Nolia a caminho de um monte alentejano. Sem vivalma l, mas a Nolia levou as chaves. Elas animadssimas, no trolar uma com 140 a outra, nem me dirigiam a palavra. At ao momento de me encostarem parede no duplo sentido da expresso. Disse a Zina: Com que ento, o menino banqueteando-se com duas namoradas. Fodelhozinho, ha? E disse a Nolia: Vais escolher uma e o casamento
logo que sairmos daqui. Casamento ou morte. No foi tanto a ameaa como o sentimento de culpa que me impeliu a concordar. Difcil era a escolha. De quem eu gostava mesmo era das duas. Concedam-me vinte e quatro horas para pensar. Tens a semana toda. O casamento um passo importante. Tiraram-me a chave do carro. O que isto seno rapto e sequestro? Onde amos? Exacto, o Sertrio pagou e calou, a complicao veio depois. Antes, cometi duas imprudncias: tirar o carro do lugar onde o deixara na noite do velrio e passear por a. Aquele tempo encafuado na casa do Maraj pesava como um sequestro, tinha de desopilar. E, noutras voltas, dei de caras com um faz-tudo do Sertrio que correu a bufar. Da o que disseram hoje, pai e filha, c dentro e porta. 141 Desencadeara-se, entretanto, a ofensiva arrasadora. Quando o Sertrio vetou a intromisso da polcia, acabara de receber o primeiro telefonema a informar dos documentos que o levariam de cana. Ao terceiro e ltimo ficou o negcio acertado. Seria a Renata Emlia a apresentar-se com a mala pesada num descampado para as bandas do aeroporto. Entre ns, nomeou-se o Falinhas para comparecer ao encontro e recolher a massa, rigorosamente mascarado. S recomendei: No fales. Tu, falares, o mesmo que mostrares o BI. To simples como morder a banana descascada. Mas nunca se conta com o imprevisto. Esse foi um imprevisto mau. Mas hoje, sexta-feira, 13, fiz as pazes com os imprevistos. H apenas, o qu?, uma hora, nem tanto, o inimaginvel aconteceu e como se o tempo tivesse recuado para me dar a chance de emendar a mo. Notou que voltei diferente do jantar? Renasci. Por amor verdade, devo dizer que nessa galga do sequestro nem tudo foi imaginao. Os grilos, a saleta 142 com div, mesa, cadeiras, casinha de banho privativa, calendrio de pneus com a bronzeada de mamas de fora correspondem a uma realidade. Mas de outra histria. Reporta-se ao monte alentejano onde me vi entalado entre a Zina e a Nolia.
As cnicas instalaram-se no quarto grande e, existindo outros, sacudiram-me para a saleta. Praticamente, votaram-me ao desprezo. Elas riam, passeavam pelo campo, foram a Espanha no meu carro e eu com o dilema s costas. Caso-me com a Nolia? Caso-me com a Zina? No era sacrifcio, com qualquer das criaturas. O sacrifcio era perder a outra. Perdi as duas. Ao quinto dia entregaram-me as chaves do carro e disse a Nolia: Podes ir, fofinho, ests dispensado. E acrescentou a Zina: Cuida de ti, v se arranjas uma namorada. A ltima imagem foi a reflectida no espelho retrovisor: risonhas, felizes, de mos dadas, a fazerem-me adeus com o brao livre. Ontem telefonaram-me, ainda bem que dei o nmero Zina. Vamos jantar uma noite destas e falar pelos cotovelos. Levarei comigo a prova de que cumpri a recomendao: V se arranjas uma namorada. 143 Onde amos? Precisamente, na nomeao do Falinhas para cobrador. Parecia o ltimo acto de uma representao que, estou certo, o caro Inspector no ver com os olhos severos da Gilberta. Conto com a sua benevolncia e simpatia. A Gilberta ps-se para a com disparates, falou de chantagem, extorso, falsas declaraes, as indecncias todas do catlogo. Pregou-me o sermo no almoo de sbado, quando, finalmente, me abri com ela. Foi aos arames e compreende-se. Se a tivesse informado do plano, no passava pelas aflies que passou, nem, muito menos, se teria sentado diante do senhor Inspector a participar a ocorrncia. Em segunda anlise, eu prprio nunca teria pisado o cho do seu gabinete. Ainda bem que a Gilberta se preocupou. Precipitao. Foi uma precipitao que escaqueirou o plano. O Falinhas,fala baixo mas por vezes fala de mais. 144 Na vspera de recolher o carcanhol do resgate, o bom do Luciano no resistiu a segredar professora-namorada o que iria passar-se e qual o objectivo. Normal? Admito, senhor Inspector, mas a reaco dela fulminou-nos, no com um mas com dois imprevistos.
Primeiro: gritou que no aceitaria um cntimo de tal provenincia. Segundo: despedia o Falinhas de aluno e namorado se ele avanasse para o encontro com a Renata. Porra, dona Dulce, pobre e mal-agradecida. Que fazer? Telefonar ao execrvel Sertrio a cancelar a cerimnia e pedir perdo pelo equvoco? Impossvel. O desfecho vista era a Renatinha esperar em vo e, menos contente que intrigada, voltar base com o dinheirame todo. O insucesso di. Tanto trabalho, tanta magicao, para o Sertrio ser o ltimo a rir? Era a cruel perspectiva por obra do imprevisto. Imprevistamente, testemunha. Tomado por um misto de curiosidade, revolta e, v l, uma ponta de ternura, deume para espreitar a figura da Renata espera no lugar combinado. Queria, ao menos, v-la vencida, obediente, carregando a mala com a alegria de quem vai s Finanas pagar um imposto em atraso. 145 Tal como data do velrio do Ripas, outro Ripas, noite modorrenta, ar quente e parado. Ocorreu-me, sem nexo, que a Renata ia aparecer de tnis e cales, os cales curtssimos que lhe descobrem as coxas exemplares. No me pea, senhor Inspector, que explique o inexplicvel. Possivelmente, algo em mim requisitava uma ltima viso das pernas dela. Como um adeus. Avancei cautelosamente, a coberto do negrume da noite. Parece frase de romance policial. Mas fugir da frase seria fugir verdade, foi exactamente como avancei. A coberto do negrume. Vi o vulto da Renata. Ver o vulto ver a Renata, ningum conhece aquele vulto como eu. Nem o badameco do Oscar Geraldo, conversa dela. Ocultei-me colado ao tronco de uma rvore. Antes da hora marcada, ali estava a Renata, esperando a p firme. A mala tinha-a no cho, protegida entre as pernas vestidas de jines. Acendia um pirilampo a cada chupadela do cigarro. Depois a luzinha do isqueiro para outro cigarro. Passou tempo. Demasiado tempo. No tardaria a desistir e voltar a penates com a arca do tesouro. Eplogo pfio para um filme que fugiu ao guio. 146 porm, veio um terceiro e alucinante imprevisto. Fui
Estranhei um motor a calar-se por perto. A pancada de porta a fechar-se. Que diabo? Noto uma sombra indistinta a aproximar-se da Renata e nesse instante soube que tinha chegado o definitivo imprevisto. Curvado, por vezes de ccoras, acerco-me para alm dos limites da prudncia. Queria presenciar de perto a cena intrusa no meu plano. Estiquei-me tanto que as calas rebentaram na costura da retaguarda. Imperturbvel, mergulhei distncia de primeira fila. Vi. Vi a misteriosa personagem, rigorosamente mascarada, chegar-se Renata, estender os braos e abarbatar-se com o fruto da minha sementeira. Pisgou-se velocidade de coelho assustado a caminho da toca, puta que o pariu. Mas no perdi tempo. Seprintei na direco do meu carro, rezando para que no me lixasse com as manias dele e pegasse primeira. Portou-se bem. quela hora e naquela ndega da cidade, o trnsito quase zero. Apostei nos farolins que chamavam ao longe enquanto pensamentos desavergonhados me circulavam na cabea. Seria possvel que o Falinhas e a sua amada musical decidissem agir por conta prpria, deixando-me de fora? Como compreender, se nem comisso eu cobrava? Deus me perdoe, o prprio Britinho Maraj no se livrou de uma infame suspeita. 147 J no trfego da cidade, fui-me colando ao escapadio. O carro pareceu-me conhecido mas existem multides de carros iguais. Volta por aqui, curva para ali, percebo o condutor na moleza hesitante de quem anda cata de stio para repousar a viatura. Estacionou. Parei com os olhos grudados porta do carro. Dois minutos depois, acarinhando a mala com as duas mos, salta quem? Quem? Chia, o cabrozinho do Oscar Geraldo! Exacto, o ex-namoradeco da Renata Emlia, que ela elevou a gerente da butique pensando que me chateava; o bonzinho a quem teve a imprudncia de confidenciar todas as etapas do rapto, alegado rapto, digamos. Deste desfecho humilhante, caro Inspector, s eu tenho conhecimento. Agora, sabemo-lo os dois. O seu problema que o problema seu. Como se resolve? Algum ousa queixar-se? Algum vai confessar que entregou uma orgia de notas nas mos de um mascarado? E quer explicar porqu?
Com a sua amvel permisso, mudo de canal. Os pensamentos j me danam noutro palco, sem confuses, 148 depoimentos, fintas, tramias, sacanices, imprevistos, at da Gilberta e da Renata j nem me lembro bem. Quanto a imprevistos, vrgula. Conforme. Nada to imprevisto como o que aconteceu, haver o qu? Duas horas? Hora e meia? Meu bom e inesquecvel Inspector: v-la, s v-la, seria uma belssima surpresa. Mas ela veio, veio, correu a mozinha pela minha cara at enfiar os dedos nos cabelos e perguntou no seu tom meio rouco e nico: Ento? Se me demorei no intervalinho do jantar, tenho justificao e a justificao tem nome: Marilinha Misse. Procurou-me ontem no bar e a Bruna informou-a da trapalhada. Hoje ela acompanhou a Bruna para me dar a notcia: faz uma semana, arquivou o caso com o Ripas. Decididamente, ele no era bombeiro para aquele incndio. Ajustmo-nos. Inclusive, falou-se em casamento. A dar-se o caso, no dispenso o senhor Inspector. Convidado especial. Pela alta considerao e por interesse prtico. Da outra vez, com a Gilberta, o clmax da celebrao foi o assalto e no havia l um nico polcia. 149 Entretanto, tem o nmero do meu telefone. Apreciaria saber como vai encaixar as peas que sobram do pzele do rapto, alegado rapto, digamos. Vejo difcil. Honestamente, l bem no fundo do meu lado cnico, remexe-se uma suspeitazinha. Coisa sem jeito. Faria algum sentido que a Renata e o patifrio actuassem combinados e os tansos da histria fossem o Sertrio e eu? Ideia absurda. Nem apresento queixa. Por mim, o que h a fazer soltar a rolha da nossa garrafa de champanhe. Mas no hoje. Hoje, a urgncia conversar com a Marilinha Misse num lugar com trs metros por dois e meio. O champanhe pode esperar. Primeiro as senhoras, no ? 150 Fim