Ponciá Vicêncio
Ponciá Vicêncio
Ponciá Vicêncio
Logo depois, a jovem se transfere para o Rio de Janeiro, vence concurso público
para o magistério, e conquista uma vaga na Universidade Federal. A escolha do curso
de Letras decorre da paixão que, desde cedo, dedica à literatura: na adolescência,
Jorge Amado, José Lins, Carolina Maria de Jesus e tantos outros; mais tarde,
Graciliano, Rosa, Drummond, Bandeira e, também, Solano Trindade, Abdias do
Nascimento, Adão Ventura.
Nos anos 1980, a autora toma conhecimento das atividades do Grupo
Quilombhoje e da publicação, em São Paulo, da série Cadernos Negros. Esse é um
momento de efervescência dos movimentos pela igualdade racial, com mobilizações
nas principais capitais brasileiras. É também tempo de descoberta da escrita literária
como trabalho de processamento e depuração, com rascunhos e mais rascunhos
recheando suas gavetas.
Em 1990, o número 13 de Cadernos Negros traz impressos os primeiros poemas
de Conceição Evaristo, entre eles, o conhecido "Vozes-mulheres", que figura até hoje
como espécie de manifesto-síntese de sua poética:
A voz de minha bisavó ecoou
criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
e
fome.
CONCEIÇÃO EVARISTO
Exemplo de romance afro-brasileiro, falando da identidade negra, Ponciá Vicêncio,
de Conceição Evaristo, vai de encontro à tese segundo a qual a escrita dos descendentes
de escravos estaria restrita ao conto e à poesia. Além de estabelecer um saudável
contraponto com o abolicionismo branco do século XIX e com o negrismo modernista de
um Jorge Amado, um José Lins do Rego ou Josué Montello, Ponciá Vicêncio remete ao
Isaías Caminha, de Lima Barreto; em menor escala, ao Brás Cubas, de Machado de
Assis; e, com certeza, ao memorialismo de Carolina Maria de Jesus e ao Ai de vós, de
Francisca Souza da Silva, entre outros.
Em todo o romance percebe-se a prosa recheada de linguagem poética. A obra nos
narra pequenos acontecimentos do cotidiano, mas o seu olhar transcende o automatismo
viciado com que se observam as coisas do dia-a-dia para olhar com essência a poesia da
vida.
O texto de Ponciá Vicêncio destaca-se também pelo território feminino de onde
emana um olhar outro e uma discursividade específica. É desse lugar marcado pela
etnicidade que provém a voz e as vozes-ecos das correntes arrastadas. Vê-se que no
romance fala um sujeito étnico, com as marcas da exclusão inscritas na pele, a percorrer
nosso passado em contraponto com a história dos vencedores e seus mitos de
cordialidade e democracia racial. Mas, também, fala um sujeito gendrado, tocado pela
condição de ser mulher e negra num país que faz dela vítima de olhares e ofensas
nascidas do preconceito. Esse ser construído pelas relações de gênero se inscreve de
forma indelével no romance de Conceição Evaristo, que, sem descartar a necessidade
histórica do testemunho, supera-o para torná-lo perene na ficção.
A história de Ponciá Vicêncio, contada no romance, descreve os caminhos, as
andanças, as marcas, os sonhos e os desencantos da protagonista. A autora traça a
trajetória da personagem da infância à idade adulta, analisando seus afetos e desafetos e
seu envolvimento com a família e os amigos. Discute a questão da identidade de Ponciá,
centrada na herança identitária do avô e estabelece um diálogo entre o passado e o
presente, entre a lembrança e a vivência, entre o real e o imaginado.
Descendente de escravos africanos, Ponciá surge já de início despojada do nome
de família, pois o "Vicêncio", que todos os seus usam como sobrenome, provém do antigo
dono da terra e era como lâmina afiada a torturar-lhe o corpo. Essa marca de
subalternidade, que denuncia a ausência entre os remanescentes de escravos dos
mínimos requisitos de cidadania, estende-se pelo penoso circuito de vazios e derrotas, no
qual tanto a menina quanto a mulher vão sendo alijadas dos entes queridos e de tudo o
que possa significar enraizamento identitário. E depois de perder também os sete filhos
que gerou, Ponciá cai na letargia que a faz perder-se de si mesma.
Ponciá vai em busca de dias melhores na cidade, mas acaba desterritorializada
numa favela, vegetando ao lado de um marido que não a compreende. Sua descendência
escrava vai se confirmando na vida difícil que leva, nos sonhos apagados pela
discriminação e pela marginalização que tanto ela, quanto os outros de sua família
sofrem. Sua condição social e cultural continua, portanto, sendo regida pelo passado
africano. Sua trajetória do espaço rural para o urbano representa sua condição diaspórica.
A passagem em que a menina faz a viagem de trem para a cidade confirma isso:
O inspirado coração de Ponciá ditava futuros sucessos para a vida da moça. A
crença era o único bem que ela havia trazido para enfrentar uma viagem que durou três
dias e três noites. Apesar do desconforto, da fome, da broa de fubá que acabara ainda no
primeiro dia, do café ralo guardado na garrafinha, dos pedaços de rapadura que apenas
lambia, sem ao menos chupar, para que eles durassem até ao final do trajeto, ela trazia a
esperança como bilhete de passagem. Haveria, sim, de traçar o seu destino.
Também o irmão de Ponciá, Luandi, vai para a cidade em busca de sonhos como
achar a irmã que há muito havia partido e juntar dinheiro. Sua viagem também marca a
diáspora daqueles que, desterritorializados, perpetuam as histórias do navio negreiro.
Luandi chega à cidade sem eira nem beira. Tinha perdido pelo caminho o endereço da
irmã. Chegou num dia de chuva e frio. Trazia muita fome também.
Outra personagem que embarca no trem negreiro em busca dos filhos é a mãe de
Ponciá e de Luandi: Maria Vicêncio. Em um dos capítulos do livro, o narrador nos diz que
ela sabia que, por mais que relutasse, um dia a cidade também faria parte de sua
travessia. Não sentia desejo algum pela aventura da viagem. Se a sua vida era a da terra,
em que ela vivia, o que faria longe de lá?
E a viagem de Maria Vicêncio ocorre semelhante a dos filhos: Quando o trem,
depois de intermináveis dias e noites, parou na estação, Maria Vicêncio esticou as pernas
com dificuldade. Ficara todo tempo da viagem encolhida com a trouxa no colo, rezando
suas orações. Sentiu a bexiga pesada, estava com vontade de urinar, mas o medo não
permitira que ela se levantasse e fosse ao banheirinho do trem ou mesmo dos lugarejos
em que máquina parava.
Em Ponciá Vicêncio, a autora retoma o procedimento que arriscaria chamar de
brutalismo poético ao narrar, numa linguagem concisa e densa de sentido, a vida de uma
mulher oriunda do mundo rural, desde a infância até a "maturidade" desterritorializada na
favela em que vegeta junto ao companheiro. A narrativa configura-se como um
Bildusgsroman feminino e negro ao dramatizar a busca quase intemporal da protagonista,
a fim de recuperar e reconstituir família, memória, identidade. No entanto, o ímpeto
antropofágico se faz presente na postura de rasurar o modelo europeu para conformá-lo
às peculiaridades da matéria representada. Assim, a apropriação feita por Conceição
Evaristo ganha contornos paródicos, pois em lugar da trajetória ascendente do
personagem em formação, oriunda de Goethe e tantos mais, o que se tem é um percurso
de perdas materiais, familiares e culturais. E, em lugar da linearidade triunfante do herói
romanesco, temos uma narrativa complexa e entrecortada, a mesclar de forma tensa
passado e presente, recordação e devaneio.
O interesse da narrativa cresce justamente nos gestos de resistência a esse
processo de espoliação. Nele, vão surgindo as histórias dolorosas como a do pai, que,
quando criança e já no período posterior à Lei Áurea, tinha que ser o pajem do filho do
patrão, o cavalo no qual este montava, e até aparar com a boca o mijo do sinhô-moço... A
passagem retoma de forma ampliada e crua a cena do menino Brás Cubas, de Machado
de Assis, reposicionando-a num nível inédito de violência. Já o avô, suicida frustrado,
decepara parte do braço e matara a própria esposa depois de ver quatro de seus filhos
serem vendidos em plena vigência da Lei do Ventre Livre... Essas histórias surgem
desgarradas umas das outras, e vão sendo evocadas em meio aos hiatos de
racionalidade da protagonista. Formam, todavia, uma rede discursiva pela qual se
recupera a memória de uma dor que é física e moral, individual e coletiva. E o corpo feito
de ausências de Ponciá se recupera na arte da cerâmica, reatando no barro moldado o fio
da existência. A terra, antes paliativo para a fome da menina, passa a matéria-prima para
a afirmação da mulher. Ao final, o desterro na cidade grande se ameniza no reencontro
com a mãe e o irmão, que parece pôr fim à errância sofrida da personagem.
Herdeira da memória familiar, Ponciá Vicêncio segue os passos de Conceição
Evaristo, também esta herdeira de uma forte linhagem memorialística existente na
literatura afro-brasileira. Como Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus,
Conceição traz a narrativa dos despojados da liberdade, mas não da consciência. E a
repetição insistente dessa presença desvalida nos incomoda e nos diz de uma aurora
ainda à espera do sol... A fala diaspórica desses condenados da terra se articula de forma
sincrônica e a posteriori, desconhecendo a encarnação do espírito de nacionali-dade que
marca boa parte da literatura canônica.
A força e o poder das mulheres ficam também evidenciados no romance, mesmo
quando há uma aparente fraqueza ou mesmo quando as mulheres sofrem até um visível
domínio, como no caso de Biliza, nas mãos do cafetão. Só a eliminação física de Biliza
acaba com os sonhos e a determinação da moça. O pai de Ponciá, mesmo resmungando,
tinha suas ações orientadas pela mãe de Ponciá. Nêngua Kainda, uma velha mulher, era
a consciência do grupo. O romance destaca as dores, as angústias, as violências que as
mulheres sofrem, a solidão que elas enfrentam, mas ao mesmo tempo mostra essas
mulheres em busca da vida, exibe o eterno ato de se reconstruir que elas executam no
dia-a-dia.
Fonte: www.passeiweb.com