CP 149181
CP 149181
CP 149181
INTRODUO A misoginia medieval como resduo na literatura de cordel surgiu de uma curiosidade, de uma inquietao sobre o modo de tratar a mulher na escrita do poeta popular. Ainda na feitura do relatrio de pesquisa O que se diz e como se pensa o sexo, a mulher e a traio na literatura de cordel, vinculado ao projeto de pesquisa Para alm do mal em si: das fontes aos resduos contemporneos, orientada pela Prof Dr Elizabeth Dias Martins, a leitura de vrios cordis chamou nossa ateno para o estigma que girava em torno da personagem feminina: origem de todo o mal. Ela considerada culpada por todos os danos, a falha matrimonial, o desvio de conduta do marido, a promoo da prostituio e a agresso aos preceitos sociais e religiosos. Ao partir para a pesquisa da origem desse comportamento, fui orientada a buscla na Idade Mdia, perodo do qual se herdou matrizes sociais, morais e principalmente religiosas. Comecei minha pesquisa pela Bblia. Pesquisei sobre a histria do matrimnio, do adultrio e da mulher. Tudo convergia para a mesma resposta: a mulher era responsvel pelos males humanidade e deveria ser submissa e vigiada. Ainda nas fontes primrias, tive acesso ao Malleus Malleficarum, um manual para inquisidores, cujas consideraes sobre a mulher convergem para culp-la e inferioriz-la. Esse pensamento pode ser identificado, com frequncia, nos cordis cujo tema era a traio ou o adultrio. Neles, impreterivelmente, o adltero era cometido pela mulher. A Literatura de cordel tem a sua origem no romanceiro popular portugus. Aqui no Brasil, ela comeou a ser divulgada nos sculos XVI e XVII, trazida pelos colonos portugueses. A partir do sculo XIX, o romanceiro nordestino, num processo de absoro hbrida, torna-se uma expresso literria cristalizada, ou seja, adaptada ao novo ambiente, porm conservando traos do romanceiro portugus. A herana crist na tradio ocidental apresenta a mulher como portadora do mal, portanto lhe so conferidos: o medo e a culpa. A cultura ocidental patriarcal que, durante sculos, tem dado ao homem o poder sobre as suas propriedades e, entre elas, a da mulher, considera natural a inferioridade e a fraqueza feminina. Entretanto, a mulher tem a sua imagem ligada ao mal antes do medievo, havendo elementos deste fenmeno j na Antiguidade Clssica. Tal concepo atingiu o seu pice na Idade Mdia, quando a Igreja Catlica controlava, com severidade, a vida
social e religiosa dos cristos em especial da mulher respaldada no poder da Inquisio, principal rgo utilizado pela Igreja para perseguir e punir aqueles que iam de encontro s suas ideias e aos seus dogmas. Essa mentalidade misgina ganhou fora e adeptos perdurando pelos sculos subsequentes, sendo residual na literatura de cordel contempornea e perceptvel atravs do vocabulrio e das expresses usadas pelos cordelistas para descrever e retratar a mulher. Pode-se perceber que esse discurso literrio de carter popular denota uma relao de poder velada, na qual a mulher rebaixada, vitima da repugnncia. A misoginia ou a recusa ao feminino e a tudo que venha dele no foi uma inveno da Igreja Medieval, mas uma apropriao de ideias e modos de ser que j circulavam no mundo antigo. Ela incorporada ao pensamento cristo e percorrer sculos na histria humana, constituindo-se como elemento formador da suposta inferioridade feminina. Por isso, a partir da Teoria da Residualidade1, ser objetivo desse trabalho identificar, a partir da verificao de resduos, elementos da mentalidade medieval na cultura e na literatura do Nordeste brasileiro contemporneo. Essa teoria diz respeito, essencialmente, remanescncia de elementos culturais e, especificamente nesse caso, sociais e religiosos, de uma determinada poca em outra, transmitida atravs dos tempos e identificada no modo de agir, de pensar e de viver de um povo. Nas palavras do sistematizador da teoria:
O conceito Cultura Residual ou Residualidade Cultural novo no que tange aos estudos literrios (histria, teoria, crtica e ensastica). Refere-se remanescncia em culturas novas de expresses, costumes e padres de uma cultura mais velha que a esta venha ligar-se seja atravs do processo civilizatrio, seja atravs de relaes de dominncias econmicas, sociais e / ou culturais.2
A referida teoria trabalha em terreno prprio, como afirma Roberto Pontes 3, mas encontra respaldo em vrios lindes, como a Histria, a Sociologia, a Antropologia a Sociologia, a Geologia e ainda a Esttica e a Fenomenologia. Conta tambm com o
1
A referida teoria ainda no est completamente sistematizada. Por enquanto, o corpus que fundamenta a Residualidade so estudos artigos, ensaios, entrevistas e dissertaes- do professor Dr. Roberto Pontes e de seus pesquisadores. 2 PONTES, Roberto. Residualidade e mentalidade trovadorescas no romance de Clara Menina. In: III Encontro Internacional de Estudos Medievais da Associao Brasileira de Estudos Medievais ABREM, 2001, Rio de Janeiro. Atas do III Encontro Internacional de Estudos Medievais. Rio de Janeiro : gora da Ilha, 1999. p. 513-516. 3 PONTES, Roberto. Lindes disciplinares da teoria da residualidade.
embasamento de autores europeus como Fustel de Coulanges e Ernst Robert Curtius, alm de Segismundo Spina, Ariano Suassuna e Darcy Ribeiro. No cerne da Residualidade est o conceito de mentalidade. Para uma melhor compreenso da teoria, faz-se necessrio entender tambm a gnese do estudo das mentalidades, que tiveram incio a partir dos estudos de Lucien Febvre e Marc Bloch, juntamente com Jacques Le Goff e Georges Duby com a cole des Annales, a qual foi de suma relevncia para o estabelecimento da Nouvelle Histoire francesa. O que prope a cole des Annales um olhar mais atento e profundo acerca de certos aspectos, at ento desconsiderados por muitos estudiosos, como os hbitos, os costumes, a religio e as crenas populares que compem as mentalidades, como confirma Duby:
De maneira mais insistente, Febvre exortava-nos a escrever a histria das sensibilidades, a dos odores, dos medos, dos sistemas de valor, e seu Rabelais demonstrava magistralmente que cada poca tem sua prpria viso do mundo, que as maneiras de sentir e pensar variam com o tempo e que, consequentemente, o historiador deve procurar defender-se tanto quanto possvel das suas, sob pena de nada compreender. Febvre propunha-nos um novo objeto de estudo, as mentalidades. Era o termo que ele empreg ava. Ns o retomamos4.
O que Lucien Febvre queria era conclamar uma nova mentalidade no exerccio de explicar a histria; advertia para que os historiadores, alm dos fatores econmicos, levassem tambm em conta questes de ordem da natureza e da cultura. A histria das mentalidades, segundo Michel Vovelle, em seus primrdios, situava-se essencialmente no nvel da cultura e do pensamento claro, mas houve uma ampliao do olhar dos historiadores para uma histria das atitudes, dos comportamentos e das representaes coletivas inconscientes. Segundo ele, a mentalidade remete, portanto, de modo privilegiado lembrana, memria, s formas de resistncias. Em resumo, aponta aquilo que se tornou corrente definir como a fora da inrcia das estruturas mentais5, ou seja, a mentalidade depositria do que se convencionou chamar resduo.
DUBY, Georges. A histria continua. Traduo de Clvis Marques. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 87-88. 5 VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. Traduo Maria Julia Goldwasser. So Paulo: Ed. Brasiliense, 1987, p. 19.
Ento, a conjuntura ideolgica de determinado perodo histrico identificado pelo modo de viver e de pensar de um povo o que se entende por mentalidade, a qual parte do individual para o coletivo, como pontuou Le Goff: Situa -se no ponto de juno do individual e do coletivo, ao longo do tempo e do cotidiano, do inconsciente e do intelectual, do estrutural e do conjuntural, do marginal e do geral6. Roberto Pontes esclarece e explica o conceito de mentalidade que para ele,
tem a ver no s com aquilo que a pessoa de um determinado momento pensa. Mas um indivduo e mais outro indivduo e mais outro indivduo, a soma de vrias individualidades, redunda numa mentalidade coletiva. E essa mentalidade coletiva transmitida atravs da Histria. Por meio da mentalidade dos indivduos, a mentalidade coletiva se constri. E esta ltima transmitida desde pocas remotas, e mesmo remotssimas a pocas recentes. [...] Atravs do que podemos considerar vestgios, remanescncias, resduos encontrveis nas obras da cultura espiritual e material dos povos. Porque atravs da cultura material que chegamos a compor um painel da cultura espiritual dos povos. Cultura espiritual aqui no sentido de conjunto de ideias, conjunto ideolgico de um momento. este o conceito que fazemos de mentalidade7.
Para apreender o conceito de mentalidade, preciso conhecer tambm a definio de memria coletiva, que diz respeito ao mesmo pensamento compartilhado por vrias pessoas acerca de um mesmo assunto, independente de tempo e de distncia, ou seja, a perpetuao do senso comum. Segundo Maurice Halbwachs,
memria coletiva o processo social de reconstruo do passado vivido e experimentado por um determinado grupo, comunidade ou sociedade. Este passado vivido distinto da histria, a qual se refere mais a fatos e eventos registrados, como dados e feitos, independentemente destes terem sido sentidos e experimentados por algum8.
A compreenso da teoria exige uma explanao acerca dos conceitos operativos que a compem. Resduo aquilo que permaneceu de uma poca em outra, forte o suficiente para se cristalizar em um novo momento, numa nova obra, em uma nova cultura. Ele dotado de extremo vigor. No se confunde com o antigo, o arcaico na explicao de Raymond Williams:
6 7
LE GOFF, Jacques. A civilizao do ocidente medieval. Lisboa: Estampa, 1983. Pg. 71. MOREIRA, Rubenita Alves. Reflexes sobre a residualidade. Entrevista com Roberto Pontes. Comunicao apresentada na jornada literria A residualidade ao alcance de todos. Departamento de Literatura da Universidade Federal do Cear. Fortaleza, julho de 2006. 8 HALBWACHS, Maurice. Fragmentos da la Memoria Coletctiva. Seleo e traduo de Miguel Angel Aguilar. (texto em espanhol). Universidad Autnoma Meropolitana-Iztapalapa. Licenciatura em Psicologia Social. Publicado originalmente em Revista de Cultura Psicolgica, Ao 1, Nmero 1, Mxico: UNAM- Faculdad de psicologia, 1991.
Por residual quero dizer alguma coisa diferente ao arcaico, embora na prtica seja difcil, com frequncia, distingui-los. [...] Eu chamaria de arcaico aquilo que totalmente reconhecido como um elemento do passado, a ser observado, examinado, ou mesmo, ocasionalmente, a ser revivido de maneira consciente, de uma forma deliberadamente especializante. O que entendo pelo residual muito diferente. O residual, por definio, foi efetivamente formado no passado, mas como um elemento vivo do presente9.
Como o resduo est em constante transformao, ele nos remete a outro conceito: a cristalizao, procedimento pelo qual o remanescente passa, para que seja modificado e recriado. Nas palavras de Roberto Pontes, um processo de refinamento (como acontece
com o mel da cana ao se transformar em acar) de uma determinada cultura, que vai se afastando daquilo que entendemos por popular e se aproximando do que pensamos ser erudito10. [...] O nvel da cristalizao apropria o material gerado pelas camadas
dominantes do povo e a obra da surgida j de nvel culto, semi-clssica ou clssica, processo pelo qual se constri um repertrio de razes na memria coletiva nacional [...]11. Embora este termo pertena a outras reas de estudo, na Residualidade, ela reconfigurada. A ocorrncia da Residualidade s possvel a partir do processo de cristalizao, cuja realizao se d com base nos resduos, naquilo que fica de mais relevante, mas estes so atualizados e modificados. O resultado o surgimento de uma obra que apresenta elementos recriados de outra poca em outra. Sobre este processo Duby esclarece que:
Com efeito, ns comevamos convencidos de que no interior de uma mesma sociedade no existia apenas um resduo. Ou pelo menos que este resduo no apresenta a mesma consistncia nos diversos meios ou estratos de que se compe uma formao social. E, sobretudo, recusvamos- nos a aceitar como estvel este resduo, ou antes estes resduos (fazamos questo do plural). Eles se modificam ao longo das eras12.
Dessa forma, os resduos, de acordo com Halbwachs, so como as lembranas, que persistem na memria coletiva a partir do processo de cristalizao, uma vez que se
9
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Traduo de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar editora, 1979, p. 125. 10 PONTES, Roberto. Poesia Insubmissa Afrobrasilusa. Rio de Janeiro / Fortaleza: Oficina do Autor / Edies UFC, 1999. 11 PONTES, Roberto. Trs modos de tratar a memria coletiva nacional. In: Literatura e Memria Cultural ANAIS do 2 Congresso da Associao Brasileira de Literatura Comparada vol. II. Belo Horizonte, 1991. 12 DUBY, Georges. A histria continua. Traduo de Clvis Marques. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 87-88.
adaptam ao espao e ao tempo em que so trazidas tona. Como se v nas palavras do estudioso:
Se o que vemos hoje tivesse que tomar lugar dentro do quadro de nossas lembranas antigas, inversamente essas lembranas se adaptariam ao conjunto de nossas percepes atuais. Tudo se passa como se confrontssemos vrios depoimentos. 13
A miscelnea de vrias mentalidades redunda na definio de hibridismo cultural, outro elemento importante para a teoria. Segundo Peter Burke, ele se faz presente no
apenas em todo o globo como na maioria dos domnios da cultura religies, [...] na arquitetura, na literatura ou na msica 14. afirmar que
hibridao cultural uma expresso usada para explicar que as culturas no andam cada qual por um caminho, sem contato com as outras. Ou seja, no percorrem veredas numa nica direo. So rumos convergentes. So caminhos que se encontram, se fecundam, se multiplicam, proliferam15.
Quando se analisa uma obra de arte literria, possvel identificar elementos remanescentes de uma poca anterior ou posterior a essa produo, bem como os substratos mentais perceptveis nos cordis. Os resqucios mentais do medievo esto cristalizados nos livrinhos analisados, sendo possvel perceber a misoginia atravs do discurso e do vocabulrio empregados pelo cordelista, bem como as relaes de poder que fundamentam, de acordo com o pensamento cristo medieval, a inferiorizao e a demonizao da mulher.
13 14
HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. So Paulo: Vrtice, 1990. p.25. BURKE, Peter. Hibridismo cultural. Traduo de Leila Souza Mendes. So Leopoldo: Editora UNISINOS, 2006, p. 23. 15 MOREIRA, Rubenita Alves. Op. cit. 16 MARTINS, Elizabeth Dias. O carter afrobrasiluso, residual e medieval no Auto da Compadecida . In: IV Encontro Internacional de Estudos Medievais, 2003, Belo Horizonte. Anais do IV Encontro Internacional de Estudos Medievais. Belo Horizonte: PUC-Minas, 2001. p. 517-522.
O texto literrio configura-se como fonte no s relevante, mas indispensvel para o estudo das mentalidades. O que fica claro nas palavras de Vovelle:
O primeiro meio tom-los [os textos literrios] bem ingenuamente como testemunhos elementares de uma realidade social vivida, de uma prtica a respeito da qual eles nos trazem, inocentemente ou no, dados que seria difcil obter de outras fontes. [...] A longo prazo, que muitos concordam em reconhecer como o tempo prprio da histria das mentalidades, a literatura veicula as imagens, os clichs, as lembranas e as heranas, as produes sem cessar distorcidas e reutilizadas do imaginrio coletivo. No chegamos a falar nem do conto nem da lenda, mas evidente que toda mitologia passa por uma expresso literria17.
Dessa forma, a literatura de cordel, tratada por Vovelle como testemunho, funciona tambm como fonte de investigao e de preservao da cultura popular, uma vez que registra a vivncia, os usos, os costumes e as crenas de uma dada comunidade aqui, a sociedade nordestina. Isso possvel devido riqueza de detalhes, de informaes que as fontes literrias permitem vislumbrar, visto a importncia do registro literrio. importante esclarecer que Residualidade diferente de Intertextualidade18. Esta acontece no plano do texto, pautada na escrita, o dialogismo, como definiu Mikhail Bakhtin19. J a Residualidade acontece no plano da mentalidade, que se vale do senso comum e pode acontecer inconscientemente ou no: a assimilao, gratuita e despretensiosa, de algo que remanesce de uma poca para a outra, forte o suficiente para dar origem a uma nova obra; a uma nova cultura. A misoginia no uma inveno, mas um fato histrico. Toda a simbologia que nos fala da expulso do homem e da mulher do paraso traz para a humanidade a perda da condio divina, essencialmente ligada mulher, a ndoa do pecado, porque foi ela que se entregou ao demnio. Pecadora, ela ter de se redimir na submisso e resignao. Submisso e situaes diablicas nortearo a vida da mulher, construindo a sua satanizao na histria, prolongando-se at os dias atuais. Ser a Porta do Diabo porque foi ela que tocou a rvore de Sat e quem primeiro violou a Lei Divina.
17 18
VOVELLE, Michel. Op. cit., p. 55-63. Essa terminologia foi proposta por Julia Kristeva, em 1969, sob influncia do dialogismo de Bakhtin. Sobre este assunto ler: KRISTEVA, Julia. Introduo semanlise. Traduo de Lcia Helena Frana Ferraz. So Paulo: Perspectiva, 1974. 19 BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, Jos Luiz (Orgs). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: Em torno de Bakhtin. So Paulo: Edusp, 1994. (Coleo Ensaios de Cultura).
Desse modo, as mulheres praticamente ficaram margem da sociedade, marginalizadas. Para o sistema patriarcal, que tinha como uma de suas aes a desvalorizao prtica e simblica da mulher, o prestgio masculino e sua identidade eram reconhecidos e cada vez mais valorizados. a lei da natureza que a mulher deva ser mantida sob o domnio do homem (...) tal a imbecilidade da mulher que seu dever, em todos os aspectos, desconfiar de si prpria e obedecer ao marido, afirmava Confcio (551 479 a. C). A Bblia constitui-se como uma fonte literria e histrica, onde possvel ter acesso ao pensamento e a aspectos das pocas nas quais foi escrita e reescrita. Tambm documento oficial da Igreja, atravs do qual a doutrina da Instituio veiculada. Deste modo, dar relevncia a elementos bblicos significa evidenciar a misoginia, pois h, grosso modo, elementos essenciais que prescrevem a forma de pensar crist sobre o gnero feminino: o modo como o deus cristo criou a mulher e as figuras de Eva e de Maria. A mulher conviver no desenvolvimento do cristianismo com a aurola do mal, o retrato do negativo, o Porto do Diabo . Entretanto, ela candidata salvao: Maria torna-se exemplo. Virgem e me, pura e protetora. A mulher s supera sua natureza maligna, esforando-se para o perdo, com dedicao e submisso. Cipriano (208-258) louva uma mulher chamada Bona que foi arrastada por seu marido ao sacrifcio e que no poluiu sua conscincia; mas mostrou determinao heroica at o fim20. A redeno pode vir pelo sacrifcio. Na cultura judaico-crist a mulher , geralmente, apresentada como smbolo de carne, sexo e nudez. Tais elementos condenveis so remetidos ao pecado original. Alguns Santos da Igreja Catlica condenam a mulher como se ela representasse um poderoso instrumento do diabo. Segundo So Toms de Aquino (1225 1274): O homem est acima da mulher, como Cristo est acima do homem. um estado de coisas imutveis que a mulher esteja destinada a viver sob a influncia do homem21. Ao longo da Idade Mdia, houve uma metamorfose na concepo da mulher. So Paulo (5-6), na primeira Carta aos Corntios, diz que, "as mulheres devem calar na
20
Me Namara apud BLOCH, Howard R. Misoginia Medieval: e a inveno do amor romntico ocidental. Traduo de Cludia Moraes. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995, p. 91. 21 Santo Toms de Aquino. Suma Teolgica. VOL II. So Paulo: Edies Loiola Edio bilngue, 2002, 1.92.1 p 611.
assembleia, pois no lhes permitido falar..."22. Na primeira Carta a Timteo, ele repete e amplia o seu pensamento discriminador: A mulher deve aprender em silncio e ser submissa - No admitido que a mulher d lies ou ordens ao homem. Esteja calada, pois, Ado foi criado primeiro e Eva depois. Ado no foi seduzido pela serpente ; a mulher foi e cometeu a transgresso23. Por isso, essa afirmao, nos sculos X e XI, repetida pela maioria dos religiosos. Marbode (sec. XI), bispo de Rennes, considerava a mulher como "a pior das armadilhas preparadas pelo inimigo", "A raiz do mal, fruto de todos os vcios24. J Godofredo (+ 1123), Bispo de Vandoma dizia que:
Este sexo envenenou o nosso primeiro pai, que era tambm o seu marido e pai, estrangulou Joo Batista, entregou o corajoso Sanso morte. De certa maneira, tambm, matou o Salvador, por que, se a sua falta o no tivesse exigido, o nosso Salvador no teria tido necessidade de morrer. Desgraado sexo em que no h nem temor, nem bondade, nem amizade e que mais de temer quando amado do que quando odiado25.
Desde a Idade Mdia ao inicio da Idade Moderna, Jean Delumeau, ao trabalhar o medo masculino da mulher, argumenta que ela, vista como agente de Sat, leva do medo espontneo ao medo refletido, julgada por homens de Igreja e juzes leigos. O medo do poder feminino exaltado na histria humana e justifica a averso para com a mulher. O medo da mulher, afirma o terico:
no uma inveno dos ascetas cristos. Mas, verdade que o cristianismo muito cedo o integrou e em seguida agitou esse espantalho at o limiar do sculo XX [...] na histria a mulher se apresenta com uma ambiguidade fundamental, especialmente expressa pelo culto das deusas mes. A terra me o ventre nutridor, mas tambm o reino dos mortos sob o solo ou na gua profunda... como essas urnas cretenses que continham as cinzas dos defuntos [...] So da, as mltiplas lendas e representaes de monstros fmeas [...] a me ogra (Media uma delas) um personagem to universal e to antigo quanto o prprio canibalismo, to antigo quanto a humanidade [...] a deusa hindu, Kali me do mundo (...) a destruidora e criadora (...) a deusa perigosa quem preciso sacrificar todos os anos milhares de animais [...] espalha cegamente as pestes, a fome, as guerras, a poeira e o calor opressivo.26
22 23
Corntios 14: 34-35. Timteo 2: 11-14. 24 DALARUM, Jacques. Olhares de clrigos. In: KLAPISCH-LUBER, Christiane. Histria das mulheres no ocidente: a Idade Mdia. Porto: Afrontamento, 1993,2v. p. 34-38. 25 Ibidem. p. 34-38. 26 DELUMEAU, Jean. Histria do medo no Ocidente - 1300-1800. So Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.314.
10
difcil determinar quando o cristianismo tornou-se dividido entre as possibilidades da salvao e do prazer e, ao mesmo tempo, entre atitudes de igualdade sexual versus a subordinao da mulher ao homem. Com efeito, praticamente impossvel dizer o momento preciso em que o sexo foi identificado como algo intrinsecamente mau e como o elemento controlador da moralidade 27 . O ascetismo cristo no se dissocia da tradio pag, oriental, hebraica, helnica e romana. O Livro de Henoch, o Livro de Jubileus e o Testamento de Rubem, entre os Testamentos dos Doze Patriarcas, associam a mulher ao adorno, luxria, seduo, fornicao e prostituio 28. H diversos tipos de discurso de legitimao da desigualdade de gnero. A mitologia talvez o mais antigo. Por exemplo, na Grcia, os mitos contavam que, devido curiosidade prpria de seu sexo, Pandora tinha aberto a caixa de todos os males do mundo e, em consequncia, as mulheres eram responsveis por haver desencadeado todo tipo de desgraa. A religio outro dos discursos de legitimao mais importantes. As grandes religies tm justificado, ao longo dos tempos, os mbitos e condutas prprios de cada sexo. Na tradio judaico-crist, o relato da expulso do Paraso tem essa funo. Eva a Pandora judaico-crist porque, devido ao seu pecado, a humanidade foi desterrada do Paraso. Embora, muitas vezes, a mulher tenha sido desprezada na histria da filosofia, o tema mulher foi abordado por muitos pensadores. Textos de importantes filsofos, como Plato (428 347 a. C), Aristteles (348 322 a. C) e Kant (1724 1804), retratam a diferenciao entre os sexos, tentando demonstrar uma suposta inferioridade natural da mulher. Todavia, preciso ter presente que as abordagens sobre a mulher encontram-se numa histria da filosofia que foi escrita por homens. Esses discursos misginos legitimam a ordem estabelecida, justificam a hierarquizao dos homens e do masculino e das mulheres e do feminino em cada sociedade determinada. So sistemas de crenas que especificam o que caracterstico de um e outro sexo e, a partir da, determinam os direitos, os espaos, as atividades e as condutas prprias de cada sexo.
27 28
11
Prope-se, portanto, uma reflexo volta da forma como estes dois modelos cristos da mulher tm contribudo para a difuso de imagens tipificadas do gnero feminino - atravs da acentuao da ligao de Eva ao pecado e de Maria ao divino -, explorando a vertente dicotmica nestes paradigmas do feminino que tm origens no Cristianismo. Tendo em vista essa consciente apropriao da misoginia pela Igreja no mundo medieval e o acmulo cultural e ideolgico que esse procedimento aporta atualidade, torna-se relevante refletir, com base em textos da literatura de ento, sobre o elemento misgino na literatura popular em verso. A proposta deste trabalho identificar, a partir da leitura e da anlise de cordis, a misoginia, a partir de resduos dessa mentalidade herdada do medievo, presentes nessas narrativas populares. Tal associao foi possvel a partir da percepo de semelhanas entre o comportamento das personagens dos livrinhos e a representao da mulher medieval. A distncia cronolgica foi outro fator que chamou a ateno e estimulou o estudo que se segue. O Trabalho est dividido em trs captulo s. O primeiro A presena da mulher na historiografia: da Antiguidade Idade Mdia mostra como se deu a formao da mentalidade antifeminina, baseada, sobretudo, no discurso e em obras de escritores gregos, os quais influenciaram diretamente os pais da Igreja no construto e na disseminao da imagem da mulher como gnese do mal. Registra-se ainda a chegada dessa mentalidade ao Brasil colnia e como isso afetou a mulher nativa e como se reconfigurou na estrangeira estigmatizada que chegou para ajudar na colonizao. Entrando no universo da literatura popular, observa-se como o imaginrio masculino acerca da dualidade entre Ave e Eva est presente nos versos do cordel como resduo. A mulher como princpio do mal, bem como a sua diabolizao so discutidos no segundo captulo. Nesses pontos ser trabalhada a hibridao da mitologia grega, do fabulrio medieval e da etnografia brasileira, convergendo para a mulher que aparece como devoradora e encarnando os demnios do sexo. Todos esses pontos so exemplificados com cordis que versam sobre as categorias menores medievais, a saber: os homossexuais masculinos e femininos , a prostituta, os judeus, os leprosos e os
12
hereges, todas elas tendo o sexo como elemento comum. As anlises dos cordis comprovam a cristalizao dessa mentalidade, atualizada pelo cordelista. O terceiro captulo A filosofia do pensamento misgino cristo: Santo Agostinho (354 430) e So Toms de Aquino rene a essncia da mentalidade eclesistica acerca da mulher e sua inferioridade atravs de seus discursos, os quais justificam a misoginia retomando, refazendo e ampliando o discurso de Plato e Aristteles. De volta ao universo do cordel, a misoginia encontra-se presente atravs do vocabulrio, das associaes e da maneira como a mulher descrita pelo poeta popular. E, centrando-se especificamente nas personagens dessas histrias, percebe-se como a misoginia est arraigada ao pensamento do cordelista como resduos da mentalidade crist medieval, os quais se cristalizaram ao longo dos tempos, sendo passados de gerao a gerao. Ele, ao produzir seu texto, sempre, direta ou indiretamente, inferioriza e desqualifica a mulher, fazendo uso de palavras, expresses e associaes pornogrficas, pejorativas e ambguas, mostrando que a literatura de cordel um veculo de transmisso de valores. A Idade Mdia serviu como principal transmissor de arqutipos para o imaginrio do Nordeste brasileiro. A literatura de cordel nordestina um exemplo da presena desse conjunto que constitui a Residualidade. Gilmar de Carvalho diz que essa literatura vem daquele fundo de estrias que foram sendo criadas e transmitidas de gerao a gerao, num processo de circularidade da cultura29. Essas histrias, no entanto, vo adquirindo novas roupagens ao entrar em contato com a cultura do Nordeste, tendo em vista seu carter hibrido e o processo de cristalizao.
29
CARVALHO, Gilmar de. Vozes e letras in: Revista Cult, janeiro de 2002.
13
1.
PRESENA
DO
FEMININO
NA
HISTORIOGRAFIA:
DA
ANTIGUIDADE IDADE MDIA Est na natureza do sexo feminino tentar corromper os homens na terra e por esta razo os sbios jamais se abandonam em sedues das mulheres.30 Os homens descobriram remdios contra a mordida das serpentes; mas ningum descobriu o remdio contra a mulher m que pior que uma vbora (...). No h nada no mundo pior que uma mulher, exceto outra.31 No se legou ao homem calamidade alguma maior do que a mulher.32 A representao do feminino, sob a perspectiva masculina, dependente do perodo histrico, quase sempre esteve marcada por relaes antagnicas: frgil e forte, vtima e culpada, santa e pecadora, sendo Eva e Maria os principais referenciais simblicos dessa oposio nas sociedades ocidentais crist. Em vrias culturas e sociedades, a mulher responsvel pela introduo do princpio do mal no mundo 33. Mas nem sempre a mulher ocupou uma posio inferior e submissa. H registros do culto Grande Deusa ou Grande Me em pinturas e esttuas datadas do Paleoltico. O exemplar mais conhecido o da famosa Vnus de Willendorf, escultura de pedra calcria que data do ano de 26.000 a. C. Tais cultos tambm eram frequentes em comunidades agrcolas do Neoltico. Nas culturas do Mdio Oriente e do Egito, a Deusa Me tambm era cultuada. sis, no Egito; Ninli, na Mesopotmia; Ishtar, na Babilnia; Anat, em Canoa; Astarte, na Fencia; e Nidala, na Sumria. Na Hlade, antes da invaso dos jnios os primeiros indoeuropeus gregos a economia era agrcola e a religio centrada no culto da Grande Me 34. No panteo minoano existiam deuses, mas estes eram meras divindades que acompanhavam Grande Me, sem significar ameaa. Nas sociedades matriarcais, ela era venerada pela sua capacidade de dar a luz e s teria perdido o lugar de prestgio em
30 31
Leis de Manu, Livro II regra 213 1280 a. C. Eurpides 406 a.C. 32 Alcoro Cap XXIV v. 59. 33 ABREU, Maria Zina Gonalves de. O Sagrado Feminino: da pr-histria Idade Mdia. Lisboa. Edies Colibri: 2007. 34 BRANDO, Junito de Sousa. Mitologia Grega. Vol. I. Rio de Janeiro. Editora Vozes, 1998. P. 103 341.
14
virtude das disputas de terras que evidenciavam a fora fsica. Mas no sculo XII a. C, com a invaso dos drios cujo patriarcalismo era culturalmente mais arraigado e a supremacia blica exigia o homem como guerreiro que esse quadro comeou a mudar e a mulher perdeu o seu lugar. As sociedades passaram a sobrevalorizar a fora fsica e a subvalorizar a mulher. As culturas hebraica, Greco-romana, e celto-germnica constituram a matriz da cultura europeia com sentimentos e atitudes contrrias mulher, as quais serviram de base para as sociedades ocidentais 35. Na Antiguidade Clssica, precisamente em Atenas, no sculo V, tambm era possvel perceber matizes dessa postura antifeminina36, como fica claro na organizao da sociedade. As mulheres, independente da classe social a que pertenciam, equiparavam-se aos escravos, pois ambas as categorias no tinham qualquer tipo de direito poltico. Muitos filsofos gregos a exemplo de Demstenes (384 - 322 a. C), Scrates(469 399 a. C) e Xenofonte (430 355 a. C)37 (sculo V a. C), corroboravam esse pensamento ao verem a mulher de forma negativa e inferior.. Na cultura helnica, so muitas as obras que tratam da averso mulher. Temos como exemplo, Hiplito, de Eurpedes (485 406 a. C), que declarou abertamente repdio s mulheres:
Ah! Zeus! Por que impes ao homem o flagelo de mau carter chamado mulher e o mostras luz do sol? Se desejavas propagar a raa dos mortais no seria s mulheres que deverias dar os meios para isso! Em troca de ouro ou ferro ou do pesado bronze depositado em teus altares, deverias ter concedido aos homens meios de comprar, segundo as tuas oferendas, o direito de ter os prprios filhos e poder viver livres da raa feminina em suas casas. 38
Exemplos de atitudes antifemininas podem ser encontrados tambm no islamismo, no hindusmo, no zoroastrismo ou mazdesmo e no budismo 39. No Alcoro,
35 36
BRANDO, Junito de Sousa. Op. cit. Esse termo significa contrrio ao feminino, averso mulher, e, embora tenha sido desenvolvido no sculo XX, ser utilizado em todo o primeiro captulo, pois, nesse contexto, substitui semanticamente misoginia que s ser explicada posteriormente. 37 PLATO. Apologia de Scrates. Traduo de Maria Lacerda de Souza. Obra de domnio pblico. Disponvel em < http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000065.pdf> . Acesso em: 13 de Janeiro de 2010. 38 EURPEDES. Teatro de Eurpedes: Hiplito, Media, As troianas. Traduo direta do grego. Introduo e notas de Mrio da Gama Kury. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira; Braslia: INL, 1997. Pg. 54. 39 BELLO, Jos Luiz de Paiva. O poder da religio na educao da mulher. Pedagogia em Foco. Rio de Janeiro, 2001. Disponvel em: <http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/mulher02.htm>. Acesso em: 13 de janeiro de 2010.
15
o livro sagrado dos mulumanos, escrito por Maom e, de acordo com este povo, atribudo ao profeta pelo prprio Deus, h vrias referncias inferiorizao da mulher e consequente valorizao do homem: No se legou ao homem calamidade alguma maior do que a mulher40. Nas Leis de Manu, livro sagrado da ndia para instituies civis e religiosas, datado de 1280 a.C., tambm h muitas regras que fazem meno inferioridade feminina, como a que se l a seguir, relacionada natureza maligna e sedutora da mulher: Est na natureza do sexo feminino tentar corromper os homens na Terra, e por esta razo os sbios jamais se abandonam s sedues das mulheres
41
Zaratustra (sc. VII a. C) deixou registrado que A mulher deve adorar ao homem como divindade. Nove vezes pela manh, de p diante do marido, com os braos cruzados, deve perguntar-lhe: Que desejais, meu senhor, que faa? pecar 43. No judasmo e no cristianismo, a mulher responsabilizada pela queda da humanidade, em virtude do pecado original transformado pelo cristianismo em pecado sexual cometido por Eva44. Essa passagem foi usada pelos doutores da Igreja como um dos principais argumentos para justificar e fomentar a condio de inferioridade a que a mulher submetida. A participao e o lugar das mulheres na histria foram negligenciados pelos historiadores por muito tempo. Elas ficaram sombra de um mundo dominado pelo gnero masculino 45. Ao pensarmos no papel da mulher no medievo, esse quadro de excluso se agrava ainda mais, pois alm do silncio que encontramos nas fontes, os textos que deixam transparecer o mundo feminino esto impregnados de uma forte carga antifeminina, a chamada averso clerical46. A Igreja Catlica firmou-se como a mais rica e poderosa instituio do mundo medieval na Europa Ocidental e suas doutrinas estavam impregnadas na sociedade. Nesse
40 41
42
afirmou que A mulher m. Cada vez que se lhe apresente oportunidade, toda mulher
Alcoro, Cap. XXIV, v 59. Leis de Manu, apud LOI, Isidoro. A mulher. Traduo Julio E. Emd. So Paulo. Editora Jabuti: 1988, p. 3-4. 42 Zaratustra apud. LOI . ibidem, p. 9. 43 Buda apud LOI idem p. 9. 44 A BBLIA SAGRADA. So Paulo:Edies Paulinas, 2005, p. 5 45 BURKE, Peter. Histria e teoria social. So Paulo: editora UNESP, 2002. P. 75-79. 46 DUBY, Georges e PERROT, Michelle. Escrever a Histria das Mulheres. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle (dir.). Histria das Mulheres no Ocidente. Volume 2 A Idade Mdia. Porto: Edies Afrontamento/So Paulo: Ebradil,1995, p. 7-8.
16
perodo, o pecado original foi transformado pelo cristianismo em pecado sexual e a abominao do corpo e do sexo atingia o pice no corpo feminino. De Eva feiticeira do final da Idade Mdia, o corpo da mulher era tido como o lugar de eleio do Diabo. De acordo com Rivair Macedo,
A inferioridade feminina provinha da fragilidade do sexo, da sua fraqueza ante os perigos da carne. No centro da moral crist existia uma aguda desconfiana em relao ao prazer. Ele, segundo os moralistas, mantinha o esprito prisioneiro do corpo, impedindo-o de se elevar em relao a Deus. 47
Desta forma, diante da fragilidade da mulher, elas seriam essencialmente impulsionadas para o pecado. A fornicao deveria ser refreada e, nesse sentido, a Igreja via no casamento um modo de controlar e de disciplinar a sexualidade. Transformada em sacramento, a unio conjugal tornou-se veculo de controle do comportamento social. A Igreja Catlica pregava o ascetismo para os homens e a virgindade para as mulheres e tentava limitar o prazer at dentro do casamento 48. Nesse perodo, as mulheres estavam subordinadas legalmente aos homens: ao marido, ao pai ou ao irmo. As mulheres camponesas estavam subordinadas ainda ao senhor feudal, no podendo casar sem a permisso do mesmo. Sobre a questo da valorizao da virgindade (presente ainda hoje na sociedade brasileira, embora com menores propores) durante o perodo medieval na Europa, Pilosu diz que as mulheres eram "convidadas" (leia-se coagidas) a desistir do pecado carnal atravs de histrias nas quais a perda da virgindade ou os pensamentos nocivos (sexuais) eram imediatamente punidos por Deus49. As mulheres deveriam defender a todo custo a sua virgindade. Esperava -se que fossem difceis de se render, capazes de resistir ao assedio executado contra um bem cultural, baluarte que garantia a identificao da mulher direita, isto , daquela integrada aos valores sociais50. Nessa lgica de pensamento da mulher associada tentao, faz sentido a perseguio das mulheres durante o perodo inquisitorial. O escrito Malleus Maleficarum,
47
MACEDO, Jos Rivair. A mulher na idade Mdia. So Paulo: Contexto, 2002. p. 23. Vale ressaltar que, num primeiro momento, a Igreja no era favorvel unio conjugal entre o homem e a mulher. Denegria a imagem desta para que os homens no gastassem seus rendimentos com ela e para que, ao morrer, deixassem seus bens para a Igreja. Ma o casamento foi institucionalizado no sculo XII. 49 PILOSU, Mrio. A mulher, a luxria e a Igreja na Idade Mdia . Traduo de Maria Dolores Figueira. Portugal: Editorial Estampa, 1995, p. 97. 50 CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. Casamento e famlia em So Paulo Colonial . So Paulo: Paz e Terra 2003, p. 346.
48
17
do perodo em questo, afirmava que "se hoje queimamos as mulheres por causa de seu sexo pois existe um defeito na formao da primeira mulher [...] ela assim um ser imperfeito, sempre enganador" 51. Foi ao longo do sculo XIII, perodo compreendido como Idade Mdia, que a Igreja Catlica, atravs da Inquisio 52, passou a exercer um forte controle sobre a conduta da sociedade, incluindo a homens e mulheres que transgrediam suas leis e recebiam, por isso, pesados castigos sobre o seu corpo: que eram, muitas vezes, queimados, apedrejados ou mesmo enforcados em praa pblica. As mulheres encontravam-se em uma situao mais depreciada, pois foram as principais vtimas de um discurso preconceituoso contra elas, produzido por homens letrados que, afastados do que fosse acidental ou singular nas vidas femininas, investiam em engordar uma mentalidade coletiva que exprimisse um profundo antifeminismo e um enorme desejo de normatizar a mulher 53. Para Howard Bloch, essa campanha contra o feminino, desde a passagem da criao da espcie humana no Gnesis bblico, tem uma explicao lgica,
[...] a causa e a justificao do antifeminismo medieval uma mera consumao ou concluso lgica do que est implcito na criao de Ado e depois de Eva. Pois a mulher na criao jeovista, concebida desde o comeo como secundria, derivada, subsequente e complementar, assume o fardo de tudo aquilo que inferior, depreciado, escandaloso e perverso, durante a articulao fundadora dos sexos nos primeiros sculos do cristianismo54.
Este discurso acabava por disseminar conceitos sobre o gnero feminino e apontava alguns traos como caractersticos das mulheres os quais, em sua maioria, denegriam a sua imagem. A mulher era considerada origem do mal e da infelicidade,
51
KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras Malleus Maleficarum. Traduo de Paulo Fres. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Ventos, 1991. p. 116. 52 A Inquisio tem inicio em 1184 com o decreto Ad Aboledem do Papa Lcio III. Em 1198, Inocncio III criou uma comisso de monges para investigar e dar continuidade as perseguies aos hereges. Com Gregrio IX, houve a ampliao do combate s heresias e a consagrao da Inquisio como instrumento do papado, quando os dominicanos passaram a ter a funo de faz-la funcionar. Em 1252, a bula Ad Extirpanda, emitida por Alexandre IV, recomendava o uso da tortura contra os hereges. Na primeira metade do sculo XV, a Inquisio comea a funcionar mal e se revigora com o Papa Sisto IV em 1478, na Espanha. A perseguio aos herticos em Portugal foi instituda, em 1536, pelo rei Joo III e os primeiros autos de f aconteceram a partir de 1540. LOPEZ, Luis Roberto. Histria da Inquisio. Porto Alegre: Mercado Aberto 1993. 53 DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condio feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colnia. In: Histria das mulheres no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1995, p. 17. 54 BLOCH, Howard. Op. cit., p. 34.
18
potncia noturna, foras das sombras, rainha da noite, oposta ao homem diurno da ordem e da razo lcida. 55 Os autores do Malleus Maleficarum no deixaram dvida quanto sua opinio sobre as mulheres, convm observar que houve uma falha na formao da primeira mulher [...] E como, em virtude desta falha, a mulher animal imperfeito, sempre decepciona e mente. 56 George Duby, atravs de um estudo sobre as damas do sculo XII, diz que os homens da Igreja descobrem na natureza feminina trs vcios maiores, entre outros pecados: elas desviam o curso das coisas (atravs da vaidade), so hostis tutela masculina e possuem os maiores dos vcios em sua natureza: a luxria, desejo que as queima por dentro, e as faz correr atrs dos amantes 57. A mulher, ao mesmo tempo em que despertava desejo nos homens, tambm despertava medo, isto porque o corpo feminino era visto, tanto por pregadores da Igreja Catlica, quanto por mdicos, como um palco nebuloso e obscuro no qual Deus e o diabo se digladiavam
58
acordo com os preceitos da Igreja Catlica. O sexo era sinnimo de mal, de sujo, de perverso. A mulher s deveria pratic-lo com fins de procriao. Por ser considerada princpio do mal, ela era classificada como minoria, fazendo-se presente em todas as categorias menores da Idade Mdia, segundo a concepo crist. A ideia do feminino ligado ao mal est presente no cristianismo desde o sculo IV, quando se fortaleceu como religio59. Durante este perodo, aproximadamente trs sculos, o cristianismo passou por um processo de assimilao de vrias doutrinas. A especulao sobre a carne, diretamente relacionada mulher, e consequentemente sobre o prazer sexual j era discutida desde Plato que em algumas de suas obras A Repblica, Timeu e As leis pontuou a inferioridade da mulher diante dos homens e a
55
PERROT, Michelle. Os excludos da histria: operrios, mulheres e prisioneiros. 3 ed. Rio de Janeiro:Editora Rosa dos Tempos, 1998, p. 168. 56 KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Op. cit. p. 116. 57 DUBY, George. Damas do sculo XII. So Paulo: Companhia das letras, 2001. Sobre este assunto consultar o captulo I: Os pecados das mulheres, p. 11. 58 KLAPISCH-ZUBER, Christiane. As normas do controle. In: Georges Duby e Michelle Perrot. Histria das mulheres: Idade Mdia. Porto: Edies Afrontamento, 1990, p. 78. 59 Em 313, atravs do Edito de Milo, o imperador Constantino d liberdade de culto aos cristos, colocando o cristianismo em p de igualdade com o culto pago. E somente no final do sculo V, com o imperador Teodsio, atravs do Edito de Tessalnica, que o cristianismo passou a ser a religio oficial do imprio romano. De perseguidos passaram a perseguidores. HILL, Jonathan. Histria do Cristianismo. Traduo de Rachel Kopit Cunha, Juliana A. Saad e Marcos Capano. So Paulo: Edies Rosari, 2008.
19
incapacidade desta de controlar sentimentos e emoes e por isso precisar ser controlada. Em sua obra A Repblica, no livro IV, ele retrata as mulheres como principalmente governadas pelos desejos, apresentando-as na classe dos indivduos em que a pior parte governa a melhor, ou seja, declara que: a multido de variados apetites, prazeres e sofrimentos se encontram principalmente nas mulheres e escravos 60. No Timeu, por exemplo, Plato apresenta uma verso da histria da criao que postula a superioridade masculina sobre a natureza feminina em virtude da capacidade dos homens de controlar sensaes e sentimentos. No primeiro ato da criao, na qual todas as almas nasceram sem desvantagem, a natureza humana surgia na forma da raa superior que devia ser chamada homem. Neste sentido, Plato relata a criao das mulheres da seguinte maneira:
He who lived well during his appointed time was to return and dwell in his native star, and there he would have a blessed and congenial existence. But if he 61 failed in attaining this, at the second birth he would pass into a woman
De acordo com esse relato, Plato caracteriza as mulheres como perigosamente influenciadas pelas sensaes, sentimentos e apetites e reafirma que a natureza primordial humana masculina, e todas as almas que dominaram as paixes corporais mantm os privilgios dessa estirpe superior. Portanto, as mulheres so, por definio, a corporificao daquelas almas que sucumbiram tentao e vivem na iniquidade. Para ele, as mulheres em geral exibem um desvalimento emocional que os homens devem evitar se quiserem tornar-se apropriados para a liberdade cvica. Assim, as mulheres so identificadas com as qualidades dos piores homens. J em Leis, Plato argumenta em favor da incluso das mulheres na instituio da mesa pblica, no porque meream ou sejam iguais aos homens, mas porque sua fragilidade exige controle legislativo. Comenta-o:
And, in consequence of this neglect, many things have grown lax among you, which might have been far better, if they had been only regulated by law; for the neglect of regulations about women may not only be regarded as a neglect
60 61
PLATO. A Repblica. Traduo de Eleazar Magalhes. Fortaleza: Edies UFC, 1986. PLATO. Timaeus Traduo de B. Jowett. Disponvel em < http://classics.mit.edu/Plato/timaeus.html> acesso em 15 de Janeiro de 2010. (Ele que viveu bem durante seu tempo foi nomeado para voltar e habitar em sua estrela natal, e l ele teria uma existncia abenoada e agradvel. Mas se ele falha em alcanar isso, no segundo nascimento, ele se tornaria mulher).
20
of half the entire matter (Arist. Pol.), but in proportion as woman's nature is inferior to that of men in capacity for virtue, in that degree the consequence of 62 such neglect is more than twice as important .
Esses pensamentos serviram de base e foram amplamente utilizados pelos pais da Igreja para fundamentar filosoficamente a doutrina crist que vigorou durante toda a Idade Mdia. A ideia de que as mulheres eram inferiores aos homens no mudou e elas continuaram sendo vistas pelo clero como criaturas perigosas e mais suscetveis s tentaes do diabo e, por isso, deveriam estar sempre sob os cuidados do homem, uma vez que era sob o jugo deste que residia a razo. Os clrigos medievais basearam-se, sobretudo, no Gnesis bblico 63 para disseminar suas ideias antifemininas. Segundo Bloch, essas ideias eram apenas uma concluso lgica daquilo apresentado pelas escrituras sagradas, pois expe a figura feminina com carter secundrio, derivado, subsequente, complementar, assumindo o fardo de tudo aquilo que inferior, depreciado, escandaloso e perverso64. De acordo com Maria Zina Gonalves de Abreu, particularmente importante sublinhar a interpretao do acto da criao (Gnesis) que veicula a ideia, que atravessa todo o tecido da cultura ocidental, de que o homem foi criado imagem de Deus e de que a mulher uma verso imperfeita dessa imagem65. Assim, a autora defende que Atravs dos sculos, facto e fico frequentemente se misturaram na interpretao da Bblia, nomeadamente na do Antigo Testamento e das Epstolas de So Paulo, cujas leituras tiveram por objectivo atestar de forma sobranceira a supremacia e o domnio masculinos, enquanto veiculavam uma injuriosa viso da mulher . E seguindo o mesmo raciocnio, o historiador Georges Duby diz que
Incontestavelmente, ela inferior a Ado. Deus assim decidiu. Criou o
62
PLATO. Leis. Traduo de B. Jowett. Disponvel em <http://www.gutenberg.org/files/1750/1750.txt> Acesso em 19 de Janeiro de 2010. (E, em consequncia desta negligncia, muitas coisas tornaram se ambguas em voc, o que poderia ter sido muito melhor, se tivessem sido apenas regulamentadas por lei, para a negligncia dos regulamentos das mulheres deve apenas ser considerada como um abandono de metade do caso inteiro (Pol Arist..), mas na proporo em que a natureza da mulher inferior a dos homens em termos de capacidade e virtude, em consequncia de que o grau de negligncia duas vezes mais notvel.). 63 Mandou, pois, o senhor Deus um profundo sono a Ado, e, enquanto ele estava dormindo, tirou uma de suas costelas, e ps carne no lugar dela. E da costela, que tinha tirado de Ado, formou o Senhor Deus uma mulher; e a levou a Ado e Ado disse; eis aqui agora o osso de meus ossos e a carne da minha carne. Ela se chamar virago porque do varo foi tomada. (Gnesis 2-18:24). 64 BLOCH, R Howard. Op. cit. p. 35. 65 ABREU, Maria Zina Gonalves de. O Sagrado Feminino - da Pr-histria Idade Mdia. Lisboa: Edies Colibri, 2007, p.75.
21
homem sua imagem, a mulher, de uma parte mnima do corpo do homem, como sua marca, ou melhor, seu reflexo. A mulher nunca mais do que um reflexo de uma imagem de Deus. Um reflexo, sabido, no age por si. S o homem est em posio de agir. Os movimentos da mulher, passiva, so comandados pelos do seu companheiro. essa a ordem primordial. Eva abalou-a ao vergar Ado ao seu poder. Mas Deus interveio, p-la de novo no seu lugar e agravou a sua submisso ao homem para castigo do seu pecado. 66
Heinrich Kramer (1430 1505) e James Sprenger (1435 1495), inquisidores dominicanos, autores do livro Malleus Maleficarum67 (O martelo das feiticeiras), justificam a inclinao natural da mulher para a maldade, uma vez que tem sua gnese ligada costela, que curva e vai contra a retido do homem68. Este, criado diretamente por Deus a sua imagem e semelhana, estaria mais prximo do Criador, bem como de tudo o que espiritual. Ainda sobre a mulher, quando de sua criao, Deus criou os cus e a terra, a flora e a fauna, o homem e, por ltimo, a mulher criada, apenas, para ser adjutrio do homem, o que a deixa em condio inferior a este, transformando-a em sua servidora, com a obrigao de obedec-lo, como afirma Graciano (359 383):
No foi por nada que a mulher foi criada, nem da mesma matria da qual foi criado Ado, mas da costela de Ado (...). Porque Deus no criou no comeo um homem e uma mulher, nem dois homens, nem duas mulheres; mas o primeiro homem, e ento a mulher a partir dele (...). natural que as mulheres sirvam os homens, como os filhos os pais, por que justo que o ser inferior sirva o superior69.
Para evidenciar essa ideia de inferioridade, tem-se a narrativa do Pecado Original. Deus proibiu Ado e Eva de comerem o fruto da rvore do conhecimento do Bem e do Mal, porm Eva persuadida pela serpente provou-a e convenceu Ado a prov-la70. Todos foram castigados por essa desobedincia: a serpente foi condenada a rastejar, e o primeiro casal humano foi expulso do Jardim do den. Ado foi condenado a cultivar o solo e retirar dele seu sustento. J Eva ficou com a carga mais pesada da culpa, foi condenada a sentir dores na gravidez e a ser dominada pelo marido 71. Essa
66 67
DUBY, Georges. Eva e os Padres. Lisboa: Editorial Teorema, 1996, p.70. Escrito no sculo XV a pedido do papa Inocncio VIII, o Malleus Maleficarum foi considerado o mais cruel e demonaco guia utilizado pela Inquisio, durante quatro sculos, para aplicar castigos e punir os hereges em nome de Deus. 68 KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Op. cit. p. 116. 69 BLOCH apud GRACIANO. Op. cit. 1995. p. 33. 70 Gnesis: 3: 1-7. 71 Gnesis: 3: 14-24.
22
condenao feminina tambm serviu como um dos argumentos usados pelos clrigos medievais para institucionalizarem o casamento e a moral crist 72. Do sculo III ao XIII, os registros mais notveis sobre as mulheres saram das mos de homens da Igreja. Muitos clrigos as consideravam misteriosas, no compreendiam, por exemplo, como elas geravam a vida e curavam doenas utilizando ervas73. Dessa forma, a maior parte das autoridades eclesisticas desse perodo via a mulher como um ser demonaco, portadora e disseminadora do mal. Isso a tornava m por natureza e atrada pelo vcio 74. Esse desconhecimento da natureza feminina causava medo aos homens. Os clrigos se apoiaram no Pecado Original de Eva para lig-la corporeidade e inferioriz-la. Isso porque, conforme o texto bblico. De acordo com Silvia Nunes75, a concepo de mulher que predominou da Idade Mdia at o Renascimento oriunda do Cristianismo primitivo e associa a mulher ao carnal, ao mal e ao desregramento sexual. Essa associao da mulher com o carnal tambm abordada por H. Bloch que, a partir dos escritos dos primeiros padres da Igreja afirma ter ocorrido uma feminizao da carne ou seja, de acordo com a metfora da mente e do corpo, a associao do homem com mens ou ratio e da mulher com o corporal76. At aqui, pode-se observar uma mentalidade disseminada, principalmente pelos homens, acerca da inferiorizao da mulher. Afim de uma contextualizao mais especfica, para ento chegar ao objeto de estudo do trabalho, faz-se necessrio analisar como essa imagem feminina chegou s terras brasileiras recm-descobertas e como ela se fundiu s culturas j existentes. Para tanto, a pesquisa ir se deter, nesse momento, s mulheres da colnia uma autctone e uma estrangeira aquela cuja cultura foi imposta e esta experienciadora de uma cultura antifeminina.
72 73
BLOCH, Howard. Op.cit. 1995. p. 25. DALARUN, Jacques. Olhares de clrigos. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle (dir.). Histria das Mulheres no Ocidente. Volume 2 A Idade Mdia. Porto: Edies Afrontamento/So Paulo: Ebradil, s/d, p. 29-63. 74 PILOSU, Mrio. Op. cit. P.29-43. 75 NUNES, Silvia Alexim, O corpo do diabo entre a cruz e a caldeirinha. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000, p.255. 76 BLOCH, Howard. Op.cit. 1995. p. 17.
23
1.1. A mulher no Brasil colnia Branca para casar, mulata para foder, negra para trabalhar.77
Em um primeiro olhar sobre as terras recm-descobertas, no se pode utilizar levianamente o vocbulo misoginia, no sentido eurocntrico, pois pelos vrios relatos, registrados em documentos oficiais, as atitudes dos povos autctones em relao ao corpo, mulher e sexualidade no correspondiam s ideias disseminadas na Europa. Os relatos dos colonos redundam em apresentar uma figura feminina diferente daquela conhecida por eles.
(...) E uma daquelas moas era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era to bem feita e to redonda, e sua vergonha to graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feies envergonhara, por no terem as suas como ela. Nenhum deles era fanado, mas todos assim como ns. (...) Tambm andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, no pareciam mal. Entre elas andava uma, com uma coxa, do joelho at o quadril e a ndega, toda tingida daquela tintura preta; e todo o resto da sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e tambm os colos dos ps; e suas vergonhas to nuas, e com tanta inocncia assim descobertas, que no havia nisso desvergonha nenhuma78
No passa despercebido que alm de informar o Senhor El rei, Caminha faz observaes sobre os povos que havia encontrado e sobre seus costumes. A figura feminina apresentada , de imediato, comparada com aquela europeia, evidenciando que para os povos da nova terra a nudez e o corpo no tinham relao nenhuma com o mal num primeiro momento. Mas, Logo ao final do documento, h informaes que demonstram o incio da imposio cultural e da moral do colonizador que os aborgenes suportariam posteriormente
Entre todos estes que hoje vieram no veio mais que uma mulher, moa, a qual esteve sempre missa, qual deram um pano com que se cobrisse; e puseram-lho em volta dela. Todavia, ao sentar-se, no se lembrava de o estender muito para se cobrir. Assim, Senhor, a inocncia desta gente tal que a de Ado no seria maior -- com respeito ao pudor79.
O pano oferecido para a habitante daquelas terras pode ser entendido tambm como um elemento simblico, que traria s comunidades autctones os preceitos e
77 78
Este Adgio vem registrado por H. Handelmann na sua Histria do Brasil, datado de 1931. CAMINHA, Pero Vaz de. Carta de Pero Vaz de Caminha a El rei D. Manuel I sobre o achamento do Brasil. Coleo A obra prima de cada autor. So Paulo: Martin Claret, 2002. 79 CAMINHA, Pero Vaz de. Op. cit.
24
ideias de corpo, pecado e demonizao do povo colonizador. A nudez indgena apresentada na carta de Caminha como inocente, posteriormente, logo cede espao s ideias de luxria, fazendo com que o corpo fosse o melhor meio de incit-la.
As ndias resistiam em vestir roupas alegando o incomodo em retir-la na hora dos banhos prtica arraigada entre as mulheres que chegavam a tomar doze banhos em um nico dia e durante a faina diria elas preferiam enfrentar o calor do sol, esfolar a pele na terra e nas pedras a suportar um tecido sobre o corpo. As ndias se deleitavam em andar nuas80.
At o ano de 1530 pouca movimentao cultural foi evidenciada em territrio brasileiro, pois at ento a terra no despertava interesse no povo lusitano e os portugueses que chegavam ao Brasil tinham o interesse apenas de resguardar a terra para a coroa portuguesa. Nos anos subsequentes, com o repentino interesse dos colonos pela nova terra, muitos homens e mulheres lusitanas chegariam ao novo continente, trazendo em seus navios no s mantimentos, roupas e materiais portugueses, mas tambm uma bagagem cultural europeia, produto da Idade Mdia. A respeito dos colonos que aqui chegaram, sabemos que muitos vieram acompanhados por mulheres, mas quanto a sua exatido numrica, no h certezas. Os documentos encontrados so as cartas de clrigos, como Nbrega, que escrever a D. Joo III solicitando o envio de mulheres brancas, pois sua presena era to nfima que os luso-brasileiros recorriam s mulheres da terra, e com elas viviam em pecado (nem todos contraram matrimnio com elas). Mesmo com essa e outras peties, vieram um nmero resumido de rfos e degredados (l-se prostitutas e penitenciadas pela justia eclesistica e civil), muitas das quais retornaram mais tarde para a metrpole, pouco contribuindo para o povoamento da terra.
No vieram mulheres solteiras, exceto, ao que se sabe, uma escrava provavelmente moura, que foi objeto de viva disputa. Consequentemente, os recm-chegados acasalaram-se com as ndias, tomando, como era uso na terra, tantas quantas pudessem, entrando a produzir mais mamelucos. Os jesutas, preocupados com tamanha pouca-vergonha, deram para pedir socorro do reino. Queriam mulheres de toda a qualidade, at meretrizes, porque "h aqui vrias qualidades de homens [...] e deste modo se evitaro pecados e aumentar a populao no servio de Deus" (carta de 1550 in
80
RONALD, Raminelli. Eva Tupinamb In: DEL PRIORE, Mary. Histria das Mulheres no Brasil. 8 Edio. So Paulo: Contexto, 2006, p. 26.
25
Nbrega 1955:79-80). Queriam, sobretudo, as rfs Del rei, que se casariam, aqui, com os bons e os ricos 81.
Por volta de 1552 essas jovens comearam a ser enviadas para o Brasil para preencher a funo matrimonial, desposando os senhores de bem e, a partir da, vieram vrias cargas de mulheres. Elas serviram para a colonizao como complemento e preenchimento demogrfico do novo territrio e como defesa do catolicismo contra a propagao da Reforma Religiosa.
[...] A condio feminina na Colnia exigia medidas que integrassem ao processo de civilizao de mores que ocorriam no Velho Mundo. Da a necessidade de um processo normativo s mulheres coloniais. Elas deviam tornar-se esposas e mes, complemento do homem, ventre fecundo que assegurasse perenidade dentro do quadro do sagrado matrimnio. Como mes, tinham que se erguer como paladinas da difuso do catolicismo e do povoamento ordenado da Colnia. Ao contrrio de gerar desclassificados fora das normas institucionais, que se concentrassem em parir sditos fiis aos bandos dos governadores e s pastorais diocesanas.82
Como a inteno colonizatria portuguesa em territrio brasileiro era importante para alicerar as bases da coroa no territrio, no havia outra opo para os europeus a no ser de se flexibilizarem quanto ao sexo e mulher. A preocupao com a liberdade sexual no inicio da histria colonial pode ser encontrada nos textos de religiosos portugueses. Essa liberdade transformou o territrio em um ambiente de conflitos e contrastes, a mulher nativa, a presente antes da colonizao, gozava de uma maior liberdade, pois, como ainda no era crist, no era considerada pecadora, mas aquela que chegou atravs das embarcaes, branca e minoria, sofreu sanes e estava envolta em submisso ao senhor, a famlia, ou ao esposo.
O isolamento rabe em que viviam as antigas sinhs-donas, principalmente nas casas grandes de engenho, tendo por companhia quase que exclusivamente escravas passivas; sua submisso muulmana diante dos maridos, a quem se dirigiam sempre com medo, tratando-os de senhor.83
A partir de ento, durante o processo colonizatrio do Brasil, o papel da mulher brasileira perpassa por funes s vezes exticas, ora degradantes e at desumanas. A
81
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A formao e o sentido do Brasil. So Paulo, Companhia das Letras, 1995. p. 89. 82 DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: Condio feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colnia. Rio de Janeiro, RJ: Jos Olmpio; Braslia, DF: Edunb, 199,. p. 334. 83 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: Formao da famlia brasileira sobre sob o regime da economia patriarcal. 34 Edio, Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 338.
26
mulher nativa, a escrava e a europeia tinham funes e representaes distintas para a sociedade que se tornam evidentes no que tange s relaes sejam sexuais, para satisfazer os prazeres da carne, sejam econmicas e religiosas atravs do matrimnio. Segundo Mary Del Priore,
As relaes de gnero serviram para a construo de esteretipos que estiveram presentes no cotidiano colonial e que mais tarde estariam presentes na historiografia determinando uma maneira de ser mulher brasileira. A diferenciao tnica da mulher determinava sua respectiva funo social no Brasil colonial. Enquanto a nativa e, mais tarde, a negra contribua com o corpo e o trabalho a mulher branca trazia da metrpole o modo de viver e a maternidade que garantia o alvor da pele.84
O casamento, num primeiro momento, fugiu a tantas regras e mandamentos da Igreja e os concubinatos eram visveis. O matrimnio, ento tornou a alternativa imposta s mulheres da colnia que conviviam com a traio e submisso. Elas casavam muito cedo era comum encontrar mes de treze anos 85. Os casamentos consanguneos, principalmente entre tio e sobrinho e primos e primas, era muito comum no perodo em questo. Essas relaes tinham como principal objetivo a permanncia do patrimnio na famlia e a pureza do sangue de origem nobre ou ilustre 86. O casamento consanguneo chegou ao fim e trouxe outra modalidade de casamento tambm pautada no fator econmico. Nesse novo modelo, os maridos, que deviam ser de boa famlia, eram escolhidos pelo pai, entenda-se boa famlia de nome ou abastada.
Abafadas sob as caricias de maridos dez, quinze, vinte anos mais velhos; e muitas vezes inteiramente desconhecido das noivas. Maridos da escolha ou da convenincia exclusiva dos pais. Bacharis de bigodes lustrosos de brilhantina, rubi no dedo, possibilidades polticas. Negociantes portugueses, redondos e grossos; suos enormes; grandes brilhantes no peitilho da camisa, nos punhos e nos dedos, oficiais. Mdicos. Oficiais. Senhores de Engenho.87
Mesmo assim, distantes da metrpole, as mulheres da colnia gozavam de maior liberdade at a chegada do Tribunal do Santo Ofcio, pois como se percebe no h registros de fogueiras no Brasil. Verdadeiramente, os relatos de bruxaria ligados mulher na colnia, deixaram de ser estritamente femininos e passaram a compor o imaginrio sobre os povos indgenas. Entretanto, as mulheres no deixavam serem
84 85
DEL PRIORE, Mary. Op. cit., p. 78. FREYRE, Gilberto. Op. cit. p. 349. 86 FREYRE, Gilberto. Op. cit. p. 342. 87 Ibidem. p. 340.
27
acusadas de malefcios, principalmente referentes sua sexualidade. Abundam casos de mulheres em que, antes ou durante o casamento, relacionavam-se com outras, amigas ou parentas. Essas mulheres levadas aos julgamentos dos inquisidores, que estavam nessas terras, geralmente no sofriam penalizaes severas, como tortura ou morte, pois o relacionamento de mulher com mulher, como se ver, no entendido pela Igreja como ato de extremo pecado, pois como poderia haver fornicao sem um varo, smbolo da fertilidade e potncia sexual? Segundo o estudioso Emanuel Arajo, no Brasil colonial, abafar a sexualidade feminina seria o objetivo de Leis do Estado, da Igreja, e o desejo dos pais, visto que ao arrebentar as amarras (...) a sexualidade feminina (...) ameaava o equilbrio domstico, a segurana social e a prpria ordem das instituies civis e eclesisticas 88. Para isso, usavam como argumento a ideia do homem superior a qual cabia o exerccio da autoridade. Todas as mulheres carregavam o peso do pecado original cometido por Eva, e, desta forma, deveriam ser vigiadas de perto e por toda a vida. A ideia da inferiorizao da mulher era to vigente que, na segunda visita do Santo Ofcio ao Brasil, em meados de 1617, um padre recontou o mito do den, menosprezando mais ainda a criao da mulher, colocando-a como excremento. Quando Deus tirara a costa do homem para criar Eva, v iera um co e a comera, e que do que sara pela parte traseira do co fizera Deus a mulher, e que assim ficara Deus fazendo a mulher da traseira do co e no da costa do homem89. A mulher desse perodo independente da cor, nao ou classe social era vista tambm como a origem de todos os males, as portas do inferno. Elas eram to discriminadas pela sociedade masculina que a prpria medicina desconhecia o corpo feminino e tudo era atribudo a demnios que viviam em seus corpos fazendo-as padecer clicas, dores do parto, menstruao etc. E esse desconhecimento culminou na associao do feminino com prticas demonacas, pois acreditavam que o diabo se manifestava nas mulheres atravs de doenas. Qualquer problema fsico, por mais simples e natural que fosse, de acordo com
88
ARAJO, Emanuel. A arte da seduo: sexualidade feminina na colnia In: DEL PRIORE, Mary. Histria das Mulheres no Brasil. 8 Edio. So Paulo: Contexto, 2006. p. 45. 89 Segunda Visitao do Santo Ofcio s partes do Brasil Denunciaes da Bahia (1618 Marcos Teixeira), Introduo Rodolfo Garcia. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. 49, 1927. apud SOUZA. Laura de Mello. O diabo e a Terra de Santa de Santa Cruz Feitiaria e religiosidade popular no Brasil colonial. So Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 106.
28
os clnicos coloniais, tinha explicao na feitiaria. O tero, por exemplo, era alvo dessas associaes. Ele era tido como possvel espao para vinganas mgicas. Alberto Magno afirmava que a mulher menstruada carregava consigo um veneno cap az de matar uma criana no bero 90. Na literatura mdica da poca possvel encontra referncias sobre o assunto:
O sangue mensal o que mais das vezes costumam usar as mulheres depravadas para o benefcio amatrio e conciliar amor e afeio; sucede que to longe est assim de ser, antes gera gravssimos acidentes, como de veneno e faz as pessoas doidas e furiosas, como tem demonstrado a experincia91.
A misoginia estava arraigada ao costume dos colonos, mas enquanto a mulher foi aprisionada famlia e ao convento, as prticas religiosas relacionadas ao demnio volveram-se em grande parte para os aborgenes. Naquela poca, os costumes heterodoxos eram vistos como indcios de barbarismo e da presena demonaca. Do nascimento velhice, as mulheres tupinambs recebiam tratamentos e tarefas baseadas na selvageria e com marcas de barbarismo. Esta pode ser uma viso estrangeira das mulheres tupinambs, mas para aquele povo, tudo era feito seguindo as determinaes de sua concepo da natureza humana. Motivados pelo desconhecimento do povo nativo, no tardou para que colonizadores associassem as suas prticas religiosas quelas conhecidas na Europa, que subvertiam a verdade disseminada de Cristo e do catolicismo. O canibalismo, a cor escura, a nudez e os erros demonacos representavam a segunda degenerao, a segunda queda92, fazendo com que a vida religiosa dos ndios passasse a ser alvo de perseguies. E por essa razo os jesutas tentavam persuadir os ndios converso, pois a viam como nica alternativa capaz de redimi-los do pecado. Envoltos numa atmosfera mstica, os rituais amerndios passaram a configurar, para os portugueses, os sabs, que de acordo com Laura de Mello Sousa, se constituiu a partir de trocas intensas entre universos culturais diversos e socialmente distintos93. Ela ainda cita no seu trabalho alguns depoimentos de padres sobre os rituais indgenas,
90
DEL PRIORE, Mary. Magia e medicina na colnia: o corpo feminino. In: DEL PRIORE, Mary. Histria das Mulheres no Brasil. 8 Edio. So Paulo: Contexto, 2006. p. 102. 91 PEREIRA, Bernardo. Anacefaleose mdico, teolgica, mgica, jurdica, moral e poltica. Lisboa: Miguel Menescal da Costa, 1752. p. 9. apud DEL PRIORE, Mary. Histria das Mulheres no Brasil. 8 Edio. So Paulo: Contexto, 2006. p. 102. 92 RONALD, Raminelli. Op. cit. p. 41. 93 SOUZA. Laura de Mello. Em torno de um mito: a elipse do sab. Racional ou sobrenatural? Um caso de bruxaria. Revista Humanidades. Vol. 9 N 1. Braslia: Editora UNB. p. 6. 1994.
29
que, muitas vezes, sem fazer aluso direta, se referiam aos sabs europeus que em muito se assemelhavam aos rituais amerndios. Como durante a Idade Mdia, no tardou para que se associassem as religies afrodescendentes a rituais pagos. Mesmo no medievo, registros do sab so quase inexistentes e de questionvel veracidade, evidenciando que sua existncia pode estar ligada ao imaginrio da Inquisio e no dos colonos. Por isso, a associao do sab aos rituais existentes no Brasil,
Na realidade, tratava-se de algo bem diferente, localizado na raiz da umbanda e dos candombls atuais: os calundus e catimbs. Se fosse de fato vlida a diferenciao entre feitiaria e bruxaria com base no carter individual da primeira e coletivo da segunda, poder-se-ia dizer que a bruxaria colonial residiu basicamente nos calundus e catimbs 94.
Como sempre associavam as prticas demonacas aos segmentos da sociedade perseguidos e vitimas de discriminao, no tardou que no Brasil, de regime escravagista, as religies indgenas e, principalmente, as afro-brasileiras fossem to logo ligadas a elas.
Outre les eaux de lustrations & diabolique ablutions pratiquees par ces Barbiers ils usent dune faon particuliere comuniquer leur esprit aux autres: & cest par Le moye de lherbe de Petun, laquelle estant mise dans une cane de Roseau, ces Sorciers em atirant la fumee, laquelles ils dgorgent sur les assistans, ou la soufflent de la canne sur iceux, les exhortant de receuoir leur Esprit & la vertu dicelui. Ne diriez vopas que ce cauteleux Drago vueille en ceste fausse ceremonie imiter Iesus-Christ quand Il donna son Esprit ss Apostres(..).95
O francs Yves dvreux (1577-1632), nos dois anos que passou nas terras brasileiras, mostra em sua obra as associaes entre os rituais indgenas e os rituais judaico-cristos. A aglutinao entre as religies africanas, indgenas e a europeia tornou o territrio brasileiro uma regio multifacetada de crenas e costumes que, muitas vezes, eram discrepantes, e em outras se coadunavam, transformando os elementos das religies no que se conhece por sincretismo religioso. Esse amlgama de
94
SOUZA. Laura de Mello. O diabo e a Terra de Santa de Santa Cruz Feitiaria e religiosidade popular no Brasil colonial. So Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 261. 95 YVES, dvreux. Voyage dans le Nord Du Brsil. Librarie A. Frank. 1864. Traduo de Kall Lyws Sales. Alm das guas de lustrao e das diablicas ablues praticadas por esses brbaros, eles tm uma forma particular de se comunicar com os Espritos. Pela erva Petun, colocada em um pedao de cana, esses feiticeiros, lanando a fumaa sobre seus ajudantes, soprando-a neles, animam-nos para dele receberem o Esprito e a Virtude. No direis que esse cauteloso Drago, nesta falaciosa cerimnia, queria imitar Jesus Cristo quando este oferecia seu Esprito aos Apstolos (...).
30
religies pode ser percebido at na contemporaneidade, pois parte das divindades oriundas dos cultos afros so associadas ao demnio, ao mal; e grande parte dos santos do territrio nacional surgiu delas.
No cotidiano da colnia, Cu e Inferno, Sagrado e Profano, prticas mgicas primitivas e europeias, ora se aproximavam, ora se apartavam violentamente, na realidade fluida e fugidia da vida colonial a indistino era, entretanto, mais caracterstica do que a dicotomia. Esta quando se mostrava era quase sempre devida ao estimulo da ideologia missionria e da ao dos nascentes aparelhos de poder, empenhados em decantar as partes para melhor captar as heresias. O que quase sempre sobrenadou foi o sincretismo religioso. 96
A magia na colnia girava em torno, principalmente, de mandingas e feitios para curar o amor e as enfermidades do corpo. Segundo Gilberto Freyre, a festa de So Joo, uma das primeiras a ser comemoradas no Brasil, j no formato que se conhece hoje com fogueiras e danas, era palco para muitas simpatias.
Pois as funes desse popularssimo santo so afrodisacas; e ao seu culto se ligam at prticas e cantigas sensuais. o santo casamenteiro por excelncia. (...) As sortes que se fazem na noite ou na madrugada de So Joo visam a unio dos sexos, o casamento, o amor que se deseja e no se encontrou ainda. (...) Outros interesses de amor encontram proteo em Santo Antonio. Por exemplo: as afeies perdidas. Os noivos, maridos ou amantes desaparecidos. Os amores frios ou mortos. um dos santos que mais encontramos associados s prticas de feitiaria afrodisaca no Brasil97.
Uma atividade muito perseguida e sua prtica atribuda principalmente s mulheres foi feitiaria. A elas era creditado o elo, a ligao com Satans e a prtica de feitios para todos os fins, em especial para resolver problemas de sade e de relacionamento.
Apesar de malvistas como agentes do Demnio, emblemas vivos e atuantes da desordem, do perigo e da impureza, as feiticeiras agiram com desenvoltura no Brasil durante o perodo colonial, praticando toda espcie de benzeduras, adivinhaes e curas, acusadas de infanticdio, mas no raro tentando aproximar casais por meio de oraes fortes, cartas de tocar e sortilgios, alm, est visto, de comunicar-se com o sobrenatural em sonhos, em pactos, 98 metamorfoses e possesses .
96 97
SOUZA. Laura de Mello. Op. cit. p. 149. FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: Formao da famlia brasileira sobre sob o regime da economia patriarcal. 34 Edio, Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 246-247. 98 ARAJO, Emanuel. O Teatro dos Vcios. Rio de Janeiro: Jos Olmpio, 1997, p. 208.
31
Os nativos j colonizados, de acordo com Mary Del Priori, viam as doenas como castigos divinos, e clrigos e mdicos no s defendiam como difundiam a ideia de que a doena salutar para os desregrantes do esprito. Em virtude do atraso mdico de Portugal, se comparado a outros pases europeus, alm da falta de estrutura, medicamentos e especialistas, o discurso religioso era a base para o discurso mdico, o qual associava as doenas aos pecados e relacionava a cura s infraes cometidas pelo en fermo. A literatura mdica da poca apoiava-se na alquimia medieval, na astrologia e no empirismo 99 e sobre tudo na escolstica cuja crena na ao diablica era a base dos remdios que combatiam as mazelas que se assemelhavam mais a tratados de feitiaria. Lado a lado com os mdicos estavam as curandeiras e as benzedeiras que, com seus conhecimentos sobre as erva, substituam, muitas vezes, os mdicos. Por esse conhecimento, passado de me para filha e necessrio para manter a sobrevivncia dos costumes e das tradies, essas mulheres passaram a ser perseguidas pela Igreja que as via como feiticeiras. A Igreja, numa tentativa de combater o curandeirismo, passou a associar as curas das enfermidades aos poderes miraculosos dos santos. Para cicatrizar feridas, devia-se invocar Santo Amaro; dores de cabea seriam resolvidas com oraes a Santa Brgida; e partos difceis, com preces a Santa Margarida ou a Santo Adrido 100. Atravs da imposio cultural, por meio da lngua e dos costumes, os povos europeus nas terras brasileiras elevaram o cristianismo supremacia, relegando marginalizao e ao demnio qualquer manifestao religiosa que se afastasse dos preceitos bblicos. Desde ento, o dilogo entre as religies frequente, mas predominar aquele europeu tido, agora, como verdade absoluta. A pr-histria nacional101 se caracterizou como um perodo de grandes desafios e novas experincias para todos que vinham para as terras recm-descobertas, principalmente para as mulheres que chegaram pr-destinadas a constituir famlia de acordo com as exigncias da Igreja Por meio desses primeiros contatos entre os povos colonos e os nativos, a disperso dos ideais europeus chegava terra brasileira e fincava aqui os preceitos e as
99
Ibidem.. p. 81. DEL PRIORE, Mary. Op. cit. p. 92. 101 Expresso criada por Azevedo Amaral. Apud FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: Formao da famlia brasileira sobre sob o regime da economia patriarcal . 34 Edio, Rio de Janeiro: Record, 1998.
100
32
concepes da mulher. No tardou que o feminino, tal qual era conhecido na Europa, chegasse ao Brasil, disseminando aqui modelos e representaes da mulher destinada ao casamento: submissa, silenciada, branca; e da mulher destinada a fornicao: a pobre, a de rua, a mulata.
Da m mulher te guarde Deus, e da boa, desconfia.102 A partir do sculo XII, com o culto mariano 103, calcado na maternidade divina, na virgindade, na imaculada concepo e na assuno104, houve um redirecionamento da viso que se tinha da mulher. No sculo XIII, houve uma grande valorizao da maternidade, Maria triunfou como me 105. Com base nesses dois dogmas ligados ao culto mariano, a castidade e a maternidade divina, construiu-se o ideal de santificao de Maria, a Imaculada Conceio, que concebeu sem pecado. Por esse estado de santidade, aps sua morte ocorreu sua Assuno corporal ao Cu, afastando-a de toda corrupo, e, por conseguinte, da condio humana106. Na iconografia ela est mais prxima da humanidade por suas vestes e seu luto pela morte do filho, representa a virgindade, pois as virgens so consideradas mulheres perfeitas, tendo lugar ao lado dos santos no Paraso, exaltando a superioridade da condio religiosa. Na terra so representadas pelas religiosas que fazem voto de
102 103
Refro popular. O culto mariano, ttulo de me de Deus, foi institudo no conclio de feso em 431 pela bula Inefabilis Deus de Pio IX. 104 DALARUN, Jacques. Op. cit. 41. 105 LEO, ngela Vaz. Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o sbio aspectos culturais e literrios. So Paulo: Linear B; Belo Horizonte: Veredas e Cenrios, 2007. Sabemos todos que o culto a virgem, surgido na Europa ocidental, nos sculos XI e XII,sob a influencia do oriente prximo e mdio, conheceu uma verdadeira exploso no sculo XIII, dando origem a um numero considervel de catedrais e santurios, de ladainhas cantadas, de milagres representados, de colees de milagres e mistrios narrados, todos destinados a celebrar a me de Deus. Essas narrativas e representaes, misturavam fatos histricos com lendas antigas, enraizadas as vezes no folclore pago, incluindo ainda criaes pessoais, alimentadas pelo imaginrio coletivo da poca. P 83 106 DALARUN, Jacques. Op. cit. p. 41.
33
castidade107. Mas como Maria era um ideal a ser seguido, inatingvel pelas mulheres comuns, surge a figura de Maria Madalena, a pecadora arrependida, demonstrando que a salvao possvel para todos que abandonam uma vida pregressa.
Os escribas e fariseus trouxeram sua presena uma mulher surpreendida em adultrio, fazendo-a ficar de p no meio de todos e disseram a Jesus: Mestre, esta mulher foi apanhada em flagrante adultrio. E na lei nos mandou Moiss que tais mulheres sejam apedrejadas; tu, pois, que dizes? Mas Jesus, inclinando-se escrevia na terra com o dedo. Como insistissem na pergunta, Jesus se levantou e lhes disse: aquele que dentre vs estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra. E tornando a inclinar-se, continuou a escrever no cho. Mas, ouvindo eles esta resposta e acusados pela prpria conscincia, foram se retirando um por um, a comear pelos mais velhos at os ltimos, ficando s Jesus e a mulher no meio onde estava. Erguendo-se Jesus e no vendo ningum mais alm da mulher, perguntou-lhe: mulher, onde esto teus acusadores? Ningum te condenou? Respondeu ela, ningum, Senhor! Ento, lhe disse Jesus, nem Eu tampouco te condeno; v e no peques mais108.
A partir da, surge a teoria da pecadora arrependida, demonstrando qu e a salvao possvel para todos os que abandonam uma vida cheia de pecados. Com essa imagem de mulher pecadora, que se arrepende e que segue o mestre at o Calvrio, Maria Madalena veio mostrar que todos os pecantes so capazes de chegar a Deus. O episdio protagonizado por Madalena garantiu mulher o direito ao arrependimento, demonstrado pela prostrao, pela humilhao e pelas lgrimas, em oposio ao possvel poder de persuaso de Eva, que levou toda a humanidade ao pecado e, por isso, passou a ser considerada enganadora. Como consequncia disso, a pregao feminina deveria ser sem palavras, feita apenas pela mortificao do corpo. No Ocidente, o culto a Maria Madalena surgiu na igreja de Vzelay, onde estariam enterrados os restos mortais da Santa109. O abade do santurio, Geoffroi (10371051), foi o difusor dessa ideia, no sculo XI. Em 1050 ele obteve a autorizao para o culto Madalena no mosteiro, e uma bula papal confirmou a existncia dos restos mortais da santa naquela igreja em 1058 110.
107
CASAGRANDE, Carla. A mulher sob custdia. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle (dir.). Histria das Mulheres no Ocidente. Volume 2 A Idade Mdia. Porto: Edies Afrontamento/So Paulo: Ebradil, 1995. p. 99-141. 108 Joo - 8: 3-11. 109 PILOSU, Mario. Op. cit, 1995. 110 DUBY, Georges. Helosa, Isolda e outras damas do sculo XII. So Paulo: Companhia das Letras, 1995;
34
Muitas passagens bblicas fazem meno ao adultrio, proibindo-o e condenando-o. O stimo mandamento diz: No adulterars111, entretanto, quando se fala nesse assunto, o que se sobressai mesmo o adultrio feminino, que valida a ideia, defendida pelos representantes da Igreja, de que as mulheres so mais suscetveis ao pecado da luxria, pecado feminino por excelncia. Outra histria bblica que versa sobre a traio a de Davi e Bete-Seba que adulteraram e que no foram punidos, porque ele era rei. Porm Deus tirou a vida do filho deles. Vale salientar que pela lei dos homens e da Igreja isso no era prescrito como castigo para o adultrio. A punio de Davi no atingiu diretamente o seu corpo, mas foi de outra natureza: foi mais cruel, se levarmos em conta a relao pai e filho (varo), que simbolizava a descendncia, importante para a poca. Essas narrativas ajudam-nos a compreender o carter econmico que havia por trs do adultrio. A diferena entre crime e pecado mostra-se, nos episdios citados, diretamente ligada condio social dos adlteros. Maria Madalena seria apedrejada at a morte, muito provavelmente por ser mulher e pobre; j o rei Davi no foi punido de acordo com a lei da Igreja. A traio feminina consistia na violao do contrato matrimonial; no roubo da honra. A mulher era punida com a morte, a no ser que o amante fosse de uma classe social superior do marido. Quando isso acontecia, ela era perdoada em favor do matrimnio e o amante, apenas degredado. Quando o homem traa a esposa, mesmo que publicamente, estava-se diante de uma desordem que, no entanto, no atingia a integridade do matrimnio, visto que o adultrio era um elemento de alto poder desorganizador na circulao dos patrimnios, uma vez que as mulheres eram tidas como mercadorias, usadas para obter vantagens, e o casamento, geralmente, visava o aumento de terras. A esse tipo de traio dava-se o nome de mancebia, que era visto como um mal menor, o que permite perceber que a desigualdade entre os sexos, na sociedade patriarcal, envolvia, principalmente, questes ligadas ao poder econmico. Desde os primrdios, o adultrio constitui-se num assunto polmico, principalmente, no que diz respeito imagem da mulher; da esposa. Esse tema foi tratado, com muita rigidez, por algumas civilizaes. Na antiga Babilnia, as mulheres
111
xodo 20:14.
35
eram privadas de um dos olhos para que s pudessem ver o seu amo e senhor. No Egito, a mulher que traa tinha o seu nariz mutilado e a morte era reservada para o seu amante. J na ndia, a adltera era devorada por cachorros em praa pblica. Porm, na cidade de Esparta, a traio conjugal era vista com naturalidade e praticada de forma legal, por homens e por mulheres112. A literatura medieval, geralmente, no revela com preciso a vida ou as aspiraes femininas pela intensa preocupao em fornecer um retrato de como elas deveriam ser, visto a sociedade laica ter absorvido o discurso clerical e, principalmente, pelo fato de muitos escritores serem religiosos ou a eles estarem estreitamente ligados por laos de parentesco. Nesse sentido, tais aspectos pesaram imensamente na elaborao da imagem feminina, principalmente baseados na Bblia.
A mulher virtuosa a coroa do seu marido, mas a que procede vergonhosamente como apodrecimento nos seus ossos. 113 Melhor morar num canto de umas guas-furtadas do que com a mulher rixosa numa casa ampla. 114
Analisando a literatura medieval sob um olhar destitudo dos valores e juzos que as espelham, verificam-se, atravs da anlise scio-histrica-religiosa e literria, os modelos idealizados para a figura feminina. Segundo Georges Duby, muitos clrigos preocupavam-se em redigir normas de comportamento para as mulheres medievais. Alo de Lille (1128 1203), um intelectual do sculo XIII, frequentemente dirigia seus sermes para as virgens, as vivas e as mulheres casadas. Alm dessas, freiras e serventes tambm constituem o pblico dos pregadores Tiago de Vitry (+1221) e Gilberto de Tournai (1207 1284). Vicente de Beauvais (1190 1264) e Guilherme Peraldo (+1270) preocupam-se em orientar as meninas da corte para os futuros papis de mulheres, vivas ou virgens consagradas. Joo de Gales, um padre franciscano, redige um compndio moral onde se dirige s mulheres casadas, s vivas e s virgens. Tiago de Varazze, um dominicano, volta-se s mulheres e s mes em seus sermes e em suas crnicas de Gnova. O leigo Felipe de Novara (1605 -1665) redige
112 113
As grandes civilizaes desaparecidas. Portugal: Edio de Seleces do Readers Digest, 1981. Provrbios 12:4 114 Provrbios 25:24
36
uma srie de normas e condutas para as meninas, mulheres jovens, mulheres de meia idade e para as velhas.115 Aps tantas normas, conselhos e advertncias, o dominicano Humberto de Romans (1194 -1277) afirma ser necessrio dirigir-se de maneira diferente aos diversos tipos de mulheres. Ele separava as mulheres em diversas categorias: as religiosas, distintas entre beneditinas, cistercienses, dominicanas, franciscanas, humilhadas, agostinianas, meninas que vm a ser educadas nos conventos e beguinas, e as leigas, diferenciadas em nobres, burguesas ricas, meninas, servas em casa de famlias ricas, mulheres pobres que habitam em pequenas aldeias do campo e meretrizes. A Igreja instituiu o sacramento do matrimnio para saciar e controlar as pulses femininas. No casamento a mulher estaria restrita a um s parceiro, que tinha a funo de domin-la, de educ-la e de fazer com que tivesse uma vida pura e casta. Somente assim as mulheres poderiam alcanar a salvao, pois mesmo que homens e mulheres estivessem inscritos nas fileiras dos agraciados com a vida eterna, s alcanariam a graa se vivessem dentro das regras crists. Fica claro assim que no possvel analisar o que as mulheres pensam de si prprias: o que nos foi transmitido pelas fontes so modelos ideais e regras de comportamento que nem sempre so positivos 116. Essa dualidade entre a mulher casta e a mulher adltera perpassa os sculos e ainda reverbera nas expresses artsticas de cunho popular. No cordel, a grande maioria das obras apresenta a mulher de forma depreciativa, mas contrape esta a castidade, nico elemento que, se ligado mulher, transforma-a de pecadora em santa. Esse pensamento de boa esposa foi sendo disseminado ao longo dos tempos, atravs da mentalidade coletiva, fruto da hibridao de vrios substratos mentais, e o poeta popular assimilando esse modelo, dissemina-o atravs de sua arte. No cordel A mulher de antigamente e a mulher de hoje em dia117, o autor traa um panorama entre as respectivas imagens construdas, desde o medievo contemporaneidade, apresentando as caractersticas e as qualidades e defeitos desta e daquela. O exame da mulher de
115
DUBY, Georges. Helosa, Isolda e outras damas do sculo XII. So Paulo: Companhia das Letras, 1995. 116 KLAPISCH-ZUBER, Christiane. Masculino/feminine. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean Claude. Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval II. Traduo de Eliane Magnani. So Paulo: EDUSC/ Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 137-150. 117 MONTEIRO, Manoel. A mulher de antigamente e a mulher de hoje em dia. Campina Grande: Grfica Martins, 2006.
37
antigamente como modelo ideal, em contraste com o comportamento da mulher de hoje em dia, mais ativa e, por isso, ameaadora da ordem e da moral, tem como fim exibir uma perspectiva de valorao, do ponto de vista patriarcal e conservador.
Deus aps formar o mundo Achou que era preciso Povo-lo, fez Ado, Mas fez Eva sem juzo E deixou os dois flertando No pomar do paraso... (...) No comecinho do mundo Tudo era bem diferente, Trabalhar no precisava Ado vivia contente, S arruinou ao juntar-se Eva, a ma e a serpente. Por que Deus disse a Ado: - Coma de tudo, porm, No coma a ma de Eva Ado responde: T bem! Mas veio a peste da cobra Pra estragar o xerm. (...) O homem foi enganado Por Eva e por Lcifer Mas ele em sua bondade D tanta corda a mulher Que ela pensa que pode Fazer o que bem quiser.
O cordelista retrata a criao do mundo da mesma forma que o Gnesis bblico, apresentando uma figura feminina desajuizada, propensa maldade. Percebe-se nas estrofes citadas a ideia da mulher ligada ao mal, pondo o homem a perder, bem como a participao do demnio no episdio do pecado original. Os vocbulos ma, mulher e serpente, na estrofe citada, so construes metafricas que simbolizam o
38
desequilbrio, a instabilidade e o declnio do homem. Os trs elementos denotam a maldio lanada por Deus, em consequncia do pecado feminino. Contrapondo a mulher do paraso, o poeta apresenta algumas caractersticas que, de acordo com a moral crist, condizem com o exemplo de boa esposa que deve ser seguido. Quando a mulher honesta Leva vida recatada, No anda de porta em porta, Nem gosta de cachorrada Ao passar na rua, as outras Dizem: - l vai a pirada. (...) Naquele tempo a mulher Era um ser quase divino Vivia para o marido E pra fazer menino, Mulher no falava grosso Homem no falava fino.
A mulher honesta referida pelo poeta, hoje em dia, tem uma postura to diferente das outras mulheres que passa a ser anormal. Ele aproxima a mulher do divino, retratando o que a Igreja orientava para as mulheres de bem, regis tra a submisso feminina e evidencia a principal funo da mulher: a maternidade. Atravs dessas estrofes, percebe-se o imaginrio cristo acerca da boa mulher arraigada ao imaginrio popular. Com a instituio do casamento pela Igreja, a partir do sculo XI, a maternidade e o papel da boa esposa ganharam relevncia. E mais tarde, em 1943, o papa Pio XII refora esses preceitos.
Ora, o ofcio da mulher, sua maneira, sua inclinao inata, a maternidade. Toda mulher destinada para ser me [...]. A este fim o Criador ordenou todo o ser prprio da mulher, seu organismo, mas tambm seu esprito e, sobretudo, sua especial sensibilidade, de modo que a mulher, verdadeiramente tal, no pode de outro modo ver nem compreender a fundo todos os problemas da vida humana, seno com relao famlia118.
118
http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_I-xiii_enc_15051891_rerumnovarum_po.html
39
Como se percebeu at aqui, as representaes da mulher e do feminino em solo brasileiro, apesar da origem partilhada entre as culturas indgenas, africanas e europeias, no escondem a supremacia dos ideais cristos sobre a boa mulher: a me, a rainha do lar, a esposa calada; e sobre a mulher m: a que tenta, a que rebola, a que fala, cristalizada, pois o cordelista, quando descreve a mulher de hoje, ele apresenta os problemas sociais e econmicos provocados por ela, vigentes na sociedade moderna, atualizando os substratos mentais, oriundos do medievo. Em toda repartio Tem uma mulher mandando, Elas esto assumindo Todos os postos de mando E enquanto isso no lar Tem uma mulher faltando. [...] Hoje, a coisa diferente A mulher tem liberdade At j trabalha fora! uma temeridade A continuar assim Vai-se a nossa autoridade
Dessa forma, apenas falar do contato do povo europeu com os povos da prhistria brasileira como formadores da imagem feminina hodierna, remanescente no cordel, ilusrio, pois tais representaes vo ter seu apogeu na Idade Mdia. Essa imagem estigmatizada das personagens femininas do cordel em questo nos foi legada pelo processo de longa durao 119 da mentalidade misgina medieval de forma cristalizada, ratificando a circularidade cultural.
119
O conceito de longa durao utilizado nos estudos da Histria das Mentalidades e foi mais bem disseminado a partir da fundao da Revista dos Annales por Marc Bloch e Lucien Febrve em 1929. Segundo Jacques Le Goff, A histria seria feita segundo ritmos diferentes e a tarefa do historiador seria, primordialmente, reconhecer tais ritmos. Em vez do estrato superficial, o tempo rpido dos eventos, mais importante seria o nvel mais profundo das realidades que mudam devagar [...] - trata-se do nvel das longas duraes (Braudel). LE GOFF, Jacques. Histria e Memria. Traduo de Bernardo Leito [et al.]. 5 ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2003, p. 15.
40
Sabendo, como sabemos, que Deus no se engana nunca, fcil advinhar quem criou a mulher.120 O tema mulher evoca inmeros papis, status, modelos de comportamento, mitos, preconceitos e tabus. Todos esses aspectos relacionados mulher so decorrentes de processos sociais, histricos e culturais. Durante a Idade Mdia, sculos, a Igreja Catlica defendeu e propagou a ideia de que a mulher era um ser, por natureza, inferior ao homem e essa inferioridade se refletia nos aspectos religioso e social. Este discurso foi defendido no s pela Igreja como tambm pela Medicina e pela Filosofia121. Grande parte das divindades femininas das sociedades ancestrais, bem como a imagem da mulher no medievo, converge para um ponto em comum: ambas as representaes eram responsveis por tragar a fora vital do homem. Aquelas, representadas por formas monstruosas e fabulosas, consumiam suas vtimas, sejam como as sereias das diversas mitologias122 ou como Estriges da etnografia grega. Da mesma forma, mulher malvola representada e difundida durante a Idade Mdia, sobretudo o perodo que compreende os sculos XI ao XIV, pelos clrigos medievais, de modo semelhante, era responsvel por consumir as almas dos homens considerados puros123. Tal afirmativa pode ser comprovada na passagem: Fuja o Cavaleiro de Cristo dos afagos da mulher que pem o homem no ltimo risco; para que com pura vida, e segura conscincia chegue a gozar de Deus para sempre. Amen124. A teologia medieval, comumente, associava a mulher ao diabo, acreditando que ela era sua companheira, sua serva e fiel seguidora. Em seu livro A Idade Mdia a cavalaria e as cruzadas, Ivan Lins explica que o medo provocado pela mulher no
120
Annimo Francs. 121 RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danao: as minorias da Idade Mdia. Traduo: Marco Antnio Esteves da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1993. Pg. 36. 122 BRANDO, Junito de Sousa. Op. cit. 123 RICHARDS, Jeffrey. Op. cit. Pg. 124 LINS, Ivan. A Idade Mdia A cavalaria e as cruzadas. Rio de Janeiro: Coeditora Braslica (cooperativa), 1993. Pg. 163.
41
excetuava nem mes nem irms dos clrigos, pois o diabo era sempre mais temvel quando revestia a forma feminina 125. Essas ideias ajudaram a compor o fabulrio negativo referente figura feminina e, dessa forma, a virago era considerada pelos telogos da poca o princpio do mal, presente em todas as categorias menores de pecadores, segundo a concepo crist medieval.
Foi s o argumento de ela haver cometido o pecado original que os levou a considerarem-na dotada de alma, porquanto, si o no fosse, no poderia ter responsabilidade tremenda transgresso de que decorreram os imensos sofrimentos que, h milnios, torturam a humanidade126.
Os clrigos medievais definiram as categorias que deveriam ser perseguidas pela Santa Inquisio por irem contra os dogmas catlicos: os hereges sexuais homossexuais, prostitutas, leprosos; e os hereges religiosos judeus, bruxos e hereges127. Embora distintas num primeiro momento, todas essas minorias estavam ligadas pelo sexo. Nos discursos cristos havia uma associao entre a luxria e o demnio, responsvel por demonizar os desviantes da f. O sexo era a via mais comum para aproximar os homens do demnio
Existe um mal, acima de todos os males, que tenho conscincia de que est sempre comigo, que dolorosa e penosa dilacera e aflige minha alma. (...) Este mal o desejo sexual, o deleite carnal, a tempestade de luxria que esmagou e demoliu minha alma infeliz, sugando dela toda a sua fora e deixando-a fraca e vazia128.
Este procurava dominar as mentes humanas, escravizando-as e usando-as para subverter a ordem natural de Deus e espalhar o pecado pelo mundo. A etimologia da palavra para designar o feminino deixa a mentalidade sobre a mulher em evidncia. Isidoro de Sevilha (560 636)129 afirma que
a palavra para homem, vir, funo da fora superior deste, enquanto a palavra para esposa, mulier, deriva da maior suavidade desta. Tais jogos de
125 126
LINS, Ivan. Ibidem. P. 162. LINS, Ivan. Op. cit. P. 162. 127 RICHARDS, Jeffrey. Op. cit. p. 32. 128 Santo Anselmo apud RICHARDS, Jeffrey. Ibidem. p. 34. 129 Doutor da Igreja, alm dex e arcebispo de Sevilha. Considerado um dos grandes eruditos e o primeiro dos grandes compiladores medievais. A sua obra influenciou largamente toda a produo intelectual na Espanha medieval.
42
palavras tremendamente srios continuam aps e so mesmo usados para substanciar a Queda130.
De acordo com Howard Bloch131, essas associaes tremendamente srias so usadas para ratificar a queda da humanidade provocada pela mulher. O Papa Inocncio III (1160 1216)132 tambm discorreu acerca da terminologia do feminino. Escreveu:
Assim tambm, nascemos todos chorando para expressar a natureza da nossa misria. Observa-se que o menino grita Ah logo aps o nascimento, e a menina grita E. Da o verso comum: Esto gritando E ou Ah, /Todos eles nascidos de E-va. Pois o que o nome Eva, quando examinado cuidadosamente, seno Eu! mais Ah! sendo estas palavras interjeies de pesar ou de grande dor. Por esta razo, antes da queda a mulher era chamada vir-ago (feita do homem [vir]), mas depois da Queda, ela mereceu ser chamada de E-va (...). 133
Para os doutores da Igreja, a bruxaria e a luxria faziam parte da atmosfera que envolvia a mulher. Kramer e Sprenger defendiam que toda bruxaria advm do desejo carnal, que insacivel nas mulheres 134 e creditavam tal comportamento maior inclinao da mulher para a prtica do mal e da bruxaria, uma vez que eram mais crdulas, volveis e influenciveis do que os homens. No sculo VI, por exemplo, era proibido aos bispos receber qualquer mulher, a menos que estivessem presentes dois padres ou dois diconos. Essa lei foi revalidada e ampliada por So Bernardo de Clavor (1090-153), no sculo XII, na Regra dos Templrios, artigo 72, passando a incluir na proibio me, irm ou tia.
mui perigoso e arriscado atender com curiosidade e cuidado ao rosto das mulheres. E assim nenhum se atreva a dar sculo a viva, nem donzela, nem a mulher que alguma, ainda mui chegada em parentesco, como me, irm ou tia135.
Ivan Lins catalogou o depoimento do monge So Nilo (910-1005) sobre o medo que a figura feminina exercia sobre ele: porque se eu vir uma mulher, voltar o demnio imediatamente a atormentar-me136. Kramer e Sprenger dedicaram dois
130 131
Isidoro de Sevilha apud BLOCH, R Howard. Op. cit. P. 34. BLOCH, Howard. Op. cit., p. 34. 132 Papa do sculo XII. Foi o responsvel pelo do Quarto Conclio de Latro (1215). considerado o conclio ecumnico mais importante da Idade Mdia. 133 BLOCH, Howard. Op. cit. p. 34. 134 KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Op. cit. P. 121. 135 LINS. Ivan. Op. cit. P. 163. 136 LINS, Ivan. Op cit. p. 162.
43
captulos inteiros no seu tratado de demonologia castrao masculina praticada pelas mulheres. No tratado Adversus Jovinianum, So Jernimo (347 420) declara total desprezo e repulsa s mulheres, segundo Rosana Cantavella137. Ele defendia a ideia de que as mulheres eram voltadas apenas para os prazeres carnais e desprezavam qualquer virtude. Ainda de acordo com suas investigaes, na obra De Contemptu Feminae atribuda ao monge cluniacense Bernat de Morlas (+ 1145), no sculo XII, so elencados inmeros defeitos e vcios femininos femina sordida, femina perfida, femina fracta [...] fossa novssima, vipera pessima, pulcra putredo138. Para o religioso, as mulheres eram ignbeis, prfidas, covardes e corrompiam o que puro e aviltavam as aes humanas. Durante o perodo medieval, a imagem arquetpica de Eva foi exaustivamente explorada pela sociedade crist e serviu de inspirao para pensadores, moralistas cristos e escritores. Na literatura religiosa, a preocupao dos clrigos era elaborar preceitos e normas a serem acatados pela mulher para controlar a sua sensualidade e a sua sexualidade, pois para eles, as mulheres eram fracas, deixavam-se levar pelos instintos e por isso eram presas fceis do demnio. Assim, a luxria, de acordo com o clericato, era inerente mulher. O medo da mulher foi disseminado e fomentado no s pela alta cpula do clero como tambm pelos leigos. A temtica da mulher, vista como um instrumento diablico a partir de ento, constante na literatura ocidental e no cordel no diferente. comum encontrar nos livrinhos de feira, principalmente naqueles que tem como tema a traio e o adultrio, a recriao de imagens de anti-heronas; de mulheres pervertidas e falsas, as quais, movidas pelo desejo sexual, traem.
137
CANTAVELLA, Rosanna. Les Donnes medievals es mereixen estudis ms acurats i humils. In: Revista dhistria medieval publiaci editada pelo Departament dHistria Medieval de la universitat de Valncia. 1992. Disponvel em: http://centros.uv.es/web/departamentos/D210/data/informacion/E125/PDF77.pdf. Acesso dia 2 de fevereiro de 2010. 138 Idem.
44
Inimiga da paz, fonte de inquietao, causa de brigas que destroem toda a tranquilidade, a mulher o prprio diabo.139 Como observado, a mulher foi divinizada nas sociedades pags tradicionais. Entretanto, durante a histria da humanidade que sucedeu com o patriarcalismo, a mulher perdeu gradativamente seu aspecto divino e passou a ser associada ao mal. Muitas so as figuras femininas que so apresentadas como flagelo da humanidade. Lilith140 compe as etnografias da Babilnia, da Sumria e Hebraica como sendo a primeira mulher de Ado que se rebelou no sexo e, assim, sendo expulsa do paraso, foi em direo ao mar para gerar com os demnios que ali existiam filhos conhecidos pelas mitologias como os lilins. Ela a primeira personagem das etnografias conhecidas que diabolizada, responsvel pela seduo e queda dos homens:
Ela [Lilith] se adorna com todos os tipos de enfeite, como uma mulher amorosa. Permanece nas entradas das ruas e vielas a fim de seduzir os homens. Agarra o tolo que se aproxima dela, beija-o e enche-o com vinho contendo resduo de veneno de cobra. To logo bebe isto, ele comea a seguila. Quando ela v que ele tem se desviado do caminho da verdade para seguila, ela se desfaz de tudo que originalmente havia simulado para o tolo. Seus adornos para seduzir os homens so seus cabelos bem adornados vermelhos como uma rosa, suas bochechas, brancas e vermelhas, suas orelhas com correntes do Egito dependuradas em seu pescoo com todas as joias do oriente dependuradas. Sua boca (muito pequena) como uma pequena fresta, um ornamento gracioso; sua lngua afiada como uma espada. Suas palavras suaves como o leo. Seus lbios so vermelhos como uma rosa, doces como toda a doura do mundo. Ela se veste em carmesim, adornada com todos os tipos de joias do mundo, com 39 peas. 141
139 140
Petrarca, 1374. Lilith citada na epopeia de Gilgamesh (apox. 2000 a.C.), no antigo testamento (Isaas 34:14) e em relatos da Tor assro-babilnica e hebraica, dentre outras fontes histricas. Ela aparece no Zohar, ou livro do Esplendor, uma obra clssica do sculo XIII que constitui o mais influente texto hassdico, e no Talmud, o livro dos hebreus. Seus filhos demnios, os Lilins, so citados inclusive na verso sacerdotal da Bblia. Outras fontes so o Alfabeto de Ben Sira (sculo VII), em que se inscreve a verso mais ingnua do mito, o Zohar (sculo XIII), que d do mesmo a verso mais oculta, e a Cabala (por volta de 1600), onde vemos Lilith unir-se a Samael. 141 Zohar apud HURWITZ, Siegmund. Lilith a primeira Eva. Aspectos histricos e psicolgicos do lado sombrio feminino. Traduo de Daniel da Costa. So Paulo: Fonte Editorial. 2006.
45
Quando ele [Ado] viu Lilith, o mais encantador dos demnios, em sua reluzente forma feminina (...). Filha do homem ela no , tampouco, noiva de anjo 142. Alm de encantadora, ela seduz, corrompe, destri, empregando artifcios luxuriantes que, como se v posteriormente na Idade Mdia, so utilizados pelos demnios beleza, charme e adornos. A cultura Greco-latina tem, na figura de Pandora143, a recorrncia de alguns elementos apresentados em Lilith, como a seduo, a beleza e a corrupo, excetuando, entre outros, a rebeldia em relao ao sexo. Ela responsvel por ter trazido aos homens todas as mazelas e fadigas. A histria conta que ela foi criada por Zeus e abenoada por todos os deuses para castigar a humanidade em virtude de uma desobedincia, praticada por Prometeu. Este enganou Zeus duas vezes para favorecer os mortais.
A raa humana vivia tranquila ao abrigo do mal, da fadiga e das doenas, mas quando Pandora, por curiosidade feminina, abriu a jarra de larga tampa, que trouxera do Olimpo, como presente de npcias a Epimeteu, dela evolaram todas as calamidades e desgraas que at hoje atormentam os homens144.
Muitas coincidncias aproximam Pandora e Eva, a essncia do pecado na cultura crist. Foram as primeiras mulheres, cada uma em seu tempo, que, movidas pela curiosidade, marcaram a entrada do mal no mundo. Aquela quis saber o gosto da fruta proibida e esta, conhecer o que havia na jarra. Porm, a grande diferena entre as duas a razo pela qual cada uma foi criada: a funo de Eva era fazer companhia a Ado, ao passo que Pandora seria um instrumento a servio do mal. Eva figura na tradio judaico-crist como a responsvel pela queda da humanidade. Ficou em evidncia aps o episdio da desobedincia do primeiro casal145, no qual foi persuadida pela serpente a comer do fruto da rvore proibida, convencendo Ado a fazer o mesmo, desobedecendo a uma ordem de Deus, assim
142
KOLTUV. Brbara Black. O livro de Lilith. Traduo de Rubens Rusche. 9 edio. So Paulo: Cultrix, 1997. p. 31. 143 Pandora , no mito hesidico, a primeira mulher modelada em argila e animada por Hefesto, que, para torn-la irresistvel, teve a cooperao preciosa de todos os imortais. Do ponto de vista religioso, Pandora uma divindade da terra e da fecundidade. No panteo helnico no s pandora aparece como figura feminina ligada a caractersticas funestas. Outras divindades femininas representavam sentimentos negativos como as Frias, a Discrdia ou ris. BRANDO, Junito de Souza. Op. cit. 168. 144 BRANDO, Junito de Souza. Idem. 145 GNESIS 3:1-13
46
pondo a humanidade a perder. Esse episdio serviu como um dos principais argumentos usados pelos Pais da Igreja para fortalecer a atitude antifeminina vigente na poca. Com a reforma gregoriana, no final da Idade Mdia, foi institudo o celibato dos padres, tendo incio, na Igreja, uma literatura misgina, que criou a dicotomia Eva / Maria. Ocorre ento uma diabolizao da mulher, que passa a ser representada centralmente como a descendente de Eva, que para a cultura crist, smbolo do pecado e da tentao146. Ao mesmo tempo em que tem lugar esse processo, emerge uma tendncia, num certo sentido oposta, com o fortalecimento do culto Virgem Maria. Como as mulheres comuns estavam muito distantes do ideal da Virgem, criado pela Igreja, foram consideradas as agentes de Sat, responsveis pela desgraa do homem, e por desvi-lo do caminho da salvao 147.
[...] Tu deverias usar sempre o luto, estar coberta de andrajos e mergulhada na penitncia, a fim de compensar a culpa de ter trazido a perdio ao gnero humano [...] Mulher, tu s a porta do diabo. Foste tu que tocaste a rvore de Sat e que, em primeiro lugar, violaste a lei divina. 148
Tertuliano (160 225) revela nesse texto uma profunda averso ao sexo feminino, comum entre os telogos medievais. Percebemos claramente a diabolizao da mulher que, comparada Eva, considerada culpada por todos os males. Era aconselhado aos homens afastar-se dela se pretendessem conseguir a salvao. No sculo XII, num contexto de reforma moral da sociedade iniciada no sculo anterior, homens da Igreja vo falar sobre as mulheres. Para isso recorrem ao livro do Gnesis, aquele que segundo Georges Duby relata a origem do gnero humano, a fundao da ordem moral, da ordem social e fornece, em algumas frases, uma explicao global da condio humana 149. O principal deles Santo Agostinho que faz a anlise mais profunda sobre o livro que servia para responder as perguntas: por que a humanidade sexuada? Por que culpada? Por que infeliz? Para santo Agostinho todo ser humano possui em si o masculino e o feminino, para ele a mulher semelhante ao homem, no entanto ela deve submeter-se a ele, pois
146
DELUMEAU, Jean, Os agentes de Sat III: a mulher. In: DELUMEAU, Histria do Medo no Ocidente: 1300-1800. So Paulo: Cia. das Letras, 1990, pp. 310-349. 147 MURARO, Rose Marie. A mulher no terceiro milnio. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993. 148 DELUMEAU, Jean, Op. Cit pp. 316. 149 DUBY. Georges DUBY, Georges. Helosa, Isolda e outras damas do sculo XII. So Paulo: Companhia das Letras, 1995; p. 45.
47
foi feita como sua ajudante. Essa hierarquia de gnero tambm estaria relacionada ao fato de no homem prevalecer a razo e o espiritual, enquanto na mulher prevalece o desejo. O homem deve dominar a mulher, pois esta oriunda dele e no o contrrio. Para Rose Marie Muraro, atravs do mito do Gnesis o homem, alm de culpar a mulher por todos os males da humanidade representados pela expulso do paraso supera um complexo inconsciente: na criao quando a mulher tirada da costela do homem, ele se convence de que pariu a primeira mulher. Ela parte da psicanlise para analisar essa tese e como Duby, considera o mito judaico-cristo como sendo a base da civilizao ocidental: o mito dos que creem e dos que no creem nele, dos antigos e dos modernos, porque o mito no aquilo que ele diz, mas a estrutura psquica que ele produz150. Em pleno sculo XII, quando est sendo desenvolvida uma teologia e uma moral do casamento, aparece uma outra interpretao. Deus fez Eva da costela de Ado para mostrar a unio monogmica como indissolvel. Vejamos o trecho de Robert de Lige (+1246):
Se o homem separa-se de sua mulher por causa qualquer que no seja fornicao, mutilado de uma costela, j no completo. Para a mulher bem pior: se abandona seu homem, ela no existir mais para Deus, pois no , de incio, um corpo completo nem uma carne completa, mas apenas uma parte oriunda do homem. 151.
Porque Deus criou a mulher? De acordo com Agostinho, a mulher foi criada apenas para procriar, esta seria o adjutorium (a ajuda) para o homem. No se justificaria a criao da mulher para ser companheira do homem, pois a criao de um segundo homem seria mais interessante para fazer companhia a Ado. Para Duby, essa ideia est bem de acordo com o que pensavam os padres do sculo XII a respeito das mulheres: conversadeiras, desobedientes e sedutoras e, portanto, seria melhor um casal de amigos que um casal formado por marido e mulher. Assim, esta criao estaria relacionada vontade de Deus de crescer e multiplicar a humanidade 152 . Em seguida criao da mulher, o Gnesis cita a passagem em que Eva tentada pela serpente e ocorre a Queda. Talvez esta seja a parte mais importante do
150 151
MURARO, Rose Marie. Op. Cit. p. 70-71. DUBY. Georges.. Helosa, Isolda e outras damas do sculo XII. So Paulo: Companhia das Letras, 1995;. p. 51. 152 DUBY, Georges. Ibidem. P. 54.
48
mito, onde a mulher comete o pecado original e ser culpada por todos os males da humanidade. Por que a serpente tenta Eva e no Ado? Parece-nos que Ado representa o espao do divino, da ordem, diferente da serpente que representa a desordem e a contradio153. Neste sentido, h uma associao da mulher com a serpente e uma dicotomia entre o homem e a mulher, estes representando perspectivas diferentes na relao com o mundo. Ado tambm desobedece a Deus, mas o faz por ser tentado pela mulher, esta sedutora e ao mesmo tempo poderosa, pois foi capaz de convencer seu companheiro a obedec-la, mesmo indo contra a vontade de Deus. interessante que este o argumento que Ado utiliza para se justificar com Deus: a mulher que me destes por companheira deu-me do fruto da rvore e comi. Eva desestabilizou a relao do homem com Deus, portanto um ser destrutivo. Eva desintegrou a ordem criada por Deus, criando uma nova ordem. Ela foi criada para ser passiva, no entanto, ela subverte essa ordem ao fazer o homem pecar, e ento Deus a recoloca no seu lugar, punindo-a com a submisso ao homem. As consequncias da Queda no atingiram apenas Ado e Eva, a punio do Senhor ser para toda a humanidade. No castigo divino, o homem condenado ao trabalho pesado, enquanto a mulher dars luz a teus filhos com dor e estars sob o poder do teu marido e ele te dominar 154. O texto torna sagrado a dominao do homem sobre a mulher, este um direito divino e inquestionvel j que consequncia do pecado da mulher. Mas tem ainda uma questo importante. O castigo da mulher est relacionado sua sexualidade, lembremos que o casal no percebia estar nu, antes que o pecado fosse cometido, ou seja, no Paraso no havia desejo carnal, ele passa a existir com a transgresso feminina. Esta relao mulher / corpo / sexualidade est muito presente nas representaes fundamentadas pelos textos dos padres da Igreja, principalmente no perodo medieval. Como afirma Duby no sculo IX, no mundo monstico, a coisa assim entendida: o pecado a mulher, e o sexo, o fruto proibido155. Voltemos a Agostinho e seus seguidores. Para eles a mulher pecou por orgulho e cobia e o seu maior pecado foi a vontade de comandar. Ela quis ser mais que o homem
153 154
LEAL, Jos Carlos. A maldio da mulher. Rio de Janeiro: Achiam, 1995 p.221. GNESIS. 3:16 155 DUBY, Georges. Helosa, Isolda e outras damas do sculo XII. So Paulo: Companhia das Letras, 1995; p. 55.
49
e mais que Deus. Esse abuso feminino intolervel. Ela pecou contra Deus e contra o homem e por isso foi duplamente castigada. Ao buscarem as leituras e interpretaes do Gnesis, os padres medievais no estavam preocupados apenas com os seus fiis, eles tambm precisavam cuidar de si mesmos. Estando na categoria dos homens no sexuados precisavam convencer-se de que a mulher um agente de sat na terra, nela s existiria tentao e seduo, portanto era preciso afastar-se para obter a salvao. Para eles na origem de toda transgresso da lei divina encontra-se o sexo (...) sabem o que ser tentado e esto cheios de indulgncia para com Ado156 . Como resistir tentao se as mulheres esto por toda parte? Segundo os eruditos estudados por Duby, os celibatrios so os que mais correm perigo, dentre estes os clrigos ou os cavaleiros sem mulher. O perigo est em toda parte, nas cidades, nos campos, e tambm no interior da casa, onde a tentao constante. Apropriar-se das mulheres da casa (geralmente criadas) no considerado adultrio, j que elas esto disponveis, tom-las ou masturbar-se, ambos os atos tem a mesma tarifa nos penitenciais157. Diante desse quadro, alguns padres aconselham o casamento como uma forma de defesa para os homens. So Paulo inclusive recomenda: O melhor o homem no tocar a mulher. Todavia, para evitar a fornicao, tenha cada homem a sua mulher e cada mulher o seu marido158. No sculo XII, as autoridades da Igreja vo torn-lo o stimo sacramento159. No entanto, h uma questo a ser resolvida: como considerar o casamento um sacramento se nele ocorre a unio carnal? A resposta mais uma vez buscada no Gnese: o casamento foi institudo por Deus no Paraso, e s a procriao justifica os prazeres carnais. Tambm de acordo com o Gnese, est claro o papel da mulher nessa instituio: esta deve servir o homem, ser sujeita a ele, podendo sofrer todas as humilhaes, pois seno logo trar discrdia ao leito matrimonial. Os padres buscam os defeitos das mulheres, as veem como eternas Evas, na busca pelo prazer sexual, na busca pela dominao do homem.
156 157
DUBY. Georges. Eva e os Padres. Lisboa: Editorial Teorema, 1996. p. 64. DUBY. Georges. ibidem.. p. 65. 158 1 Cor. 7: 1-3 159 DUBY. Georges. Idem.
50
Contudo, esse discurso no homogneo. H uma srie de textos que se opem complemente ao casamento, considerando que o melhor caminho para o homem afastar-se das mulheres, estes seres traioeiros. Vejamos o exemplo de Petrarca neste texto escrito no sculo XIV:
A mulher (...) um verdadeiro diabo, uma inimiga da paz, uma fonte de impacincia, uma ocasio de disputas das quais o homem deve manter-se afastado se quer gozar a tranquilidade (...) Que se casem, aqueles que encontram atrativo na companhia de uma esposa, nos abraos noturnos, nos ganidos das crianas e nos tormentos da insnia (...).Por ns, se est em nosso poder, perpetuamos nosso nome pelo talento e no pelo casamento, por livros e no por filhos, com o concurso da virtude e no com o de uma mulher160.
De acordo com Howard Bloch possvel encontrar escritos antifeministas em vrios momentos na sociedade ocidental, a exemplo do Roman de la rose, de Jean de Meun (1240 1305), escrito entre 1275 e 1280:
Ah, se eu tivesse acreditado em Teoafrastos, jamais teria esposado uma mulher. Ele no tem por sbio o homem que toma uma mulher em casamento, seja feia ou bonita, pobre ou rica. Pois ele diz, e acredite, em seu nobre livro Aureole, que seria bom ler na escola, que ali h uma vida cheia demais de tormento e desgosto. 161
O texto parte das molestiae nuptiarum, as dores do casamento, que qualificam as esposas como briguentas, orgulhosas, exigentes, queixosas e tolas, alm de incontrolveis, instveis e insaciveis. O tormento e desgosto a que se refere o texto est relacionado a uma viso da mulher como mais faladora que o homem. De acordo com Bloch, essa ligao do feminino com as sedues e as armadilhas da fala j est latente muito antes do sculo XIX e mesmo antes da era crist 162. Ela aparece nas sereias de Homero, na figura de Pandora em Hesodo, ou mesmo no Velho Testamento, na narrativa da Queda, em que a mulher semeou discrdia entre Deus e o homem atravs da fala. De acordo com os pregadores, as mulheres falam muito, falam mal e mentem com extrema habilidade. Trocam maledicncias, discutem entre si, so insistentes, lamentam-se demais, nunca param de falar, so cansativas, petulantes e sabem usar a palavra de forma perversa e conduzir ao erro.
160 161
DELUMEAU, Jean. Op. Cit. p. 319. BLOCH, R. Howard Op. cit. p. 23. 162 Ibidem. p. 24
51
Aqui tambm encontramos outra caracterstica criticada nas mulheres pelos clrigos, a tagarelice. Afinal, foi por um pedido de Eva que Ado aceitou o fruto proibido, e por isso, ela foi considerada enganadora 163. nessa recriminao em ouvir o discurso feminino que se fundamenta a proibio da pregao feminina nos altos cargos clericais. Para Gil de Roma (1243 1316)164, tais desvios de comportamentos devem-se sua natureza dbil e irracional, demonstrados pela incapacidade de parar de falar. Falam de tudo, principalmente de coisas estpidas e inconvenientes. Quando se deixam levar por sua incontrolvel passionalidade, no conseguem parar. Nas cantigas dos trovadores, conhecidas como Les Fabliaux, a afirmao em troca, as mulheres so sempre intrigantes, inconstantes, pouco escrupulosas, briguentas, queixosas, lascivas e sem-vergonhas165 mostra a mentalidade que percorria a Europa no medievo. A mulher que fala demasiadamente perigosa, perversa, fonte de discrdias no seio familiar e na sociedade. A mulher loquaz voltada para o exterior, que constri e destri com palavras. Mostra-se amigvel, disponvel e em seguida corruptvel. Nesse sentido, de acordo com Duby, os clrigos medievais viam a necessidade de criar novas barreiras e proibies, baseadas nas regras das taciturnitas, em que a mulher deveria falar pouco, de forma contida e somente quando fosse necessrio, observando-se o silncio monstico. Reverentes, reclusas no espao domstico, deveriam aguardar que o seu marido ou seus genitores lhe dirigissem a palavra para, numa postura humilde, responde-lhes o necessrio. Fora isso, podiam aconselhar ou dar avisos166. A persuaso do discurso feminino, reconhecida por autores medievais, permitialhe que confortasse e instrusse o marido e os filhos, principalmente as meninas. Era preciso impedi-las de tomar decises importantes e duradouras e sequer deveriam saber de certos assuntos, por sua natural incapacidade de guardar segredos. Alm da inquietao com a mulher, permeava a preocupao dos religiosos com a vida sexual dos cristos. Tal postura fazia-se perceptvel pelo conjunto de regras criadas pela Igreja referentes aos assuntos sexuais, definindo e prescrevendo condutas que iam desde regras gerais (fidelidade, virgindade, celibato) at os nveis da intimidade
163 164
Ibidem. p 30. Idem. 165 LOI, Isidoro. Op. Cit. P. 21 166 Duby, G. Eva e os Padres. Lisboa: Editorial Teorema, 1996. 133 a 136.
52
dos casais atravs da indicao de posies sexuais consideradas incorretas e impuras. So Paulo, com efeito, escreve aos corntios:
bom ao homem no tocar em mulher. Todavia, para evitar a fornicao, tenha cada homem a sua mulher e cada mulher o seu marido. O marido cumpra o dever conjugal para com a esposa; e a mulher faa o mesmo com relao ao marido.167
O prazer fsico era veementemente condenado pela igreja. Com a unio atravs do casamento, foram estabelecidas disciplinas para as relaes sexuais entre os casais. O sexo era normatizado, pois deveria ocorrer na posio considerada natural168, com a mulher por baixo do homem, inferiorizando-a. Todas as outras posies eram proibidas, consideradas imorais e escandalosas 169. A mulher, em hiptese alguma, deveria demonstrar sensao de prazer. Deveria manter-se passiva e em silncio. A relao carnal era terminantemente proibida em dias de festas religiosas, especialmente nos dias em que os fiis deveriam manter-se em jejum. Jean Louis Flandrim calculou que na Alta Idade Mdia cerca de 180 dias por ano eram liturgicamente proibidos para relaes sexuais sem contar os dias de menstruao, gravidez e amamentao, igualmente de abstinncia
170
conceptivo, deveriam abster-se de qualquer contato carnal, principalmente se a descendncia j estivesse garantida. Uma das justificativas criadas para tentar explicar o desejo sexual e para diminuir o peso do pecado foi a criao do mito sobre os demnios do sexo: o ncubus (do latim incubare, significa deitado em cima de) e o Sucubus (do latim sucubare, quer dizer deitado em baixo de). O primeir o tinha como misso tentar a mulher nos desejos e nos prazeres da carne; o segundo, a mesma funo, s que em relao aos homens. Eles faziam isso assumindo o corpo de algum sexualmente atraente, como namorados, esposas ou algum conhecido.
167 168
I Cor. 7, 1-3 Os telogos reconheciam esta posio como a nica natural, sendo todas as outras antinaturais, porque modelavam o homem ao animal, invertiam a natureza hierrquica do homem e da mulher e porque outras posies eram suspeitas de prevenir a concepo e, portanto, contrariarem a natureza do casamento, sendo a contracepo o pior pecado do sexo. TANNA HILL, 1980. 169 FRANCO Jnior, Hilrio. A Idade Mdia, nascimento do Ocidente. So Paulo: Brasiliense, 2005, p. 130. 170 FRANCO Jnior, Hilrio.Op. cit.p. 130.
53
Os religiosos medievais acreditavam que esses demnios sugavam, atravs dos sonhos e do pensamento, a fora vital das vtimas, que poca representava a alma. Sobre a gnese dessas criaturas pouco se sabe 171. A mitologia hebraica credita a Lilith172 a maternidade desses demnios. Depois de ser expulsa do paraso por se insubordinar a Ado, passou a copular com anjos cados e teve muitos filhos, os chamados Lilins, os quais seduziam os fracos mortais no silncio da noite. Na Idade Mdia, esses seres transcenderam o universo do mtico, do maravilhoso, ganhando uma conotao real, servindo dominao ideolgica. Tal justificativa teve boa aceitabilidade e esses demnios passaram a ser culpados pela perda da virgindade de muitas donzelas, pelo adultrio cometido por mulheres casadas, pela negao de um filho, fruto de um adultrio, e, ainda, pelo nascimento de alguma criana defeituosa. Como consequncia dessa criao, muitos fiis foram isentados de culpa ou penalizados de forma branda. Muitas so as recorrncias de mulheres que tm em si o aspecto do terrvel, do devorador, seja ele representado de forma objetiva ou subjetiva. possvel encontrar registros de mulheres com esse aspecto, que nas palavras de Delumeau,
No inconsciente do homem, a mulher desperta a inquietude, no s porque ela o juiz de sua sexualidade, mas tambm porque ele a imagina de bom grado insacivel, comparvel a um fogo que preciso alimentar incessantemente, devoradora como o louva-deus. Ele teme o canibalismo sexual de sua parceira (...) ou ainda ele imagina Eva como um oceano no qual seu frgil navio flutua com precariedade, como sorvedouro que o aspira, um
171
Na Antiguidade Clssica, esses demnios j se faziam presentes na figura de Zeus que, transmutado, seduziu Leda e Europa e em Lamia (metade mulher e metade serpente), que seduzia homens, metamorfoseada. As novelas de cavalaria, uma das mais importantes manifestaes da prosa medieval, derivadas de canes de gesta francesas e de poemas picos, expem narrativas compostas por elementos fantsticos e maravilhosos. Tais produes eram divididas em trs ciclos: o arturiano, o clssico e o carolngio, e ainda h quem acrescente o ciclo bizantino. As correspondentes ao ciclo arturiano que serviram de base para as novelas de cavalaria portuguesas, esto repletas de histrias protagonizadas por esses demnios. Nos episdios dA Demanda do Santo Graal, Tentao de Persival e A fonte da virgem, h registros da presena da sucubus e do incubus, respectivamente. No primeiro episdio, Persival tentado por um demnio transmutado em uma linda donzela, e, no segundo, a donzela atacada por um demnio metamorfoseado na figura do seu irmo. O mago Merlin, conselheiro do Rei Arthur, fruto da copulao entre um incubus e uma princesa. Desta forma, pode-se perceber que as recorrentes aparies dessas criaturas, a partir da metamorfose, remontam histrias mticas da antiguidade e tambm fazem parte do fabulrio medieval. A Demanda do Santo Graal; Apresentao e traduo de Heitor Megale. Edio resumida. So Paulo: Ateli Editorial/Editora Imaginrio, 1996. 172 Segundo a mitologia hebraica, Lilith teria sido criada antes de Eva e por ter se insubordinado foi banida do paraso. H referncias sobre ela na Bblia no livro de Daniel, captulo 4 e no livro de Isaias, captulo 34. Nestas referncias ela aparece como uma coruja. SICURETI, Roberto. Lilith, a lua negra. So Paulo: Paz e Terra,1990.
54
lago profundo, um poo sem fundo. O vazio a manifestao fmea da perdio, assim, preciso resistir aos turvos apelos de Circe e de Lorelei. Pois, de qualquer maneira, o homem jamais vencedor no duelo sexual. A mulher lhe fatal. Impede-o de ser ele mesmo, de realizar sua espiritualidade de encontrar o caminho da salvao. Esposa ou amante, carcereira do homem. Este deve, pelo menos, as vsperas ou no caminho de grandes empreendimentos, resistir s sedues femininas. Assim fazem Ulisses Quetzalcolt. Sucumbir ao fascnio de Circe perder a identidade. Da ndia Amrica, dos poemas homricos aos severos tratados da Reforma Catlica reencontra-se esse tema do homem perdido porque se abandonou mulher173
No fabulrio ibrico do sculo XV, a sereia portuguesa foi formada a partir da hibridao entre Ocenides e Sirenes gregas e a Moura Encantada174 que trazem consigo o aspecto devorador apresentado por Delumeau. O mito da sereia chegou ao Brasil atravs dos portugueses, quando da colonizao. O europeu alm da lngua e dos costumes trouxe tambm os seus valores, crenas, mitos e lendas. Porm, j existia entre os nativos a lenda de um fantasma marinho que matava ndio, afogando-o. H tambm nos rios outros fantasmas, a quem chamam Igpupiara, isto , que moram ngua, que matam do mesmo modo aos ndios175. No foi difcil os portugueses associarem as caractersticas dessa criatura aqutica sua j conhecida sereia que atrai os homens para a morte. Esse diagnstico nos faz perceber que h um imaginrio comum em torno do mito da criatura marinha que mata. Concluindo, o etngrafo potiguar aponta que bastava que um detalhe coincidisse ou o aspecto geral lembrasse as estrias ouvidas na ptria. O episdio ficava assimilado com as nuanas locais e se tornava um s 176. Desse modo, durante o processo de construo desse mito, a herana cultural dos portugueses misturou-se cultura indgena, permutaram-se conhecimentos, vivncias e valores, surgindo, atravs do hibridismo cultural, um amlgama sui generis. H inmeras lendas referentes Iara (ig-gua, iara-senhor), principalmente no Norte do pas. De acordo com Cmara Cascudo, mitos africanos ajudaram a compor a lenda da Iara, destaque-se a Kianda, sereia africana dos Kimbundos e a Kiximbi dos
173 174
DELUMEAU, Jean. Op.cit. P. 467. CASCUDO, Luis da Cmara. Geografia dos mitos brasileiros. 2 Edio. So Paulo. Global, 2002. P. 148. A Moura Encantada contribuiu para a formao dessa lenda. Temos uma mulher encantada, de cabelos longos, de incomensurvel beleza que canta e oferece tesouros para quem dela se enamora. 175 Ibidem. p. 150. 176 ibid. p. 147.
55
mbakas, e, ainda a poderosa Osun, orix dos lagos, todas pertencentes a teogonia africana. Segundo Paes Loureiro, a Iara Me dgua vive nas encantarias do fundo dos rios. Ela atrai os moos e os fascina, mostrando-lhes seu rosto belssimo flor das guas e deixando submersa a cauda de peixe 177. O historiador Vicente Salles a define como a mais perfeita convergncia cultural na mtica amaznica, re unindo figuras antolgicas de vrios continentes178. A Iara, portanto, configura-se como um mito hbrido, formado a partir de resduos de lendas europeias e indgenas, como analisou Cmara Cascudo: A Iara uma roupagem de cultura europeia. No h lenda indgena que tenha registrado a Iara de cabelos longos e voz maviosa. [...] A presena da Iara denuncia o branco ou a influncia assimiladora do mestio, irradiante e plstico 179. Em cordis do nordeste brasileiro, so recorrentes, tambm exemplos de mulheres devoradoras, como a Iara e Saiona, as quais seduzem suas vtimas pelo canto ou pela beleza e as matam. Essas personagens apresentam em sua natureza alguns elementos residuais atemporais, dentre os quais foram pontuados a seduo, a luxria e a fatalidade. No cordel A Lenda da Iara ou os mistrios da me dgua, de Evaristo Geraldo Silva
180
conhecida sereia europeia com a roupagem local. Logo no inicio do relato, o autor mostra-se consciente da influncia estrangeira na referida personagem, bem como de suas variaes. A histria que vou narrar sobre a lenda da Iara Que conforme a regio Muda de nome e de cara Chamam-lhe de Alamoa, Me dgua e Ipupiara.
177
LOUREIRO, Joo de Jesus Paes. Cultura Amaznica: uma poesia do imaginrio. 1a Ed. Rio de Janeiro: Escrituras, 2001. Pg. 37. 178 Idem. p. 48. 179 CASCUDO, Luis da Cmara. Op.cit. p. 153. 180 SILVA, Evaristo Geraldo. A lenda da Iara ou Os mistrios da me dgua. Fortaleza: Tupynanquim Editora, 2005.
56
A origem dessa lenda Vem da cultura europeia L ela bem conhecida J tornou-se uma epopeia Fizeram livros e filmes Para essa grande plateia. Toda a Europa a conhece Pelo nome de sereia Seu olhar hipnotiza E seu canto desnorteia Esse ser domina o homem Feito mosca em uma teia. Ser observada nessa narrativa a relao estreita que h entre a Iara e os elementos ligados aos demnios do sexo e mulher, que so a metamorfose, a seduo, a luxria e seu carter maligno. A descrio da Iara no cordel em anlise apresenta muitas caractersticas que remetem sereia portuguesa mencionada por Cmara Cascudo, entre outras, o feitio irresistvel da voz. O canto se configura numa das principais peculiaridades desse mito. O vulto era uma mulher De beleza sem igual O jovem Jaguarari Sente uma atrao fatal Porque ela tinha um canto Mstico e sobrenatural. Se aproxima ela cantando Sua cano hipntica Ela ainda o induzia pelo sentido da ptica Deixando Jaguarari Numa situao catica! O jovem ndio sentiu-se Ali igualmente um mago E o seu primeiro impulso Foi de se atirar no lago Para abraar a mulher, Beijar-lhe, fazer afago.
57
Merece ateno, na terceira estrofe, o impulso do jovem Jaguarari em pular no lago. A atrao e o desejo que sentiu por ela foram incontrolveis, no permitindo refletir que ali, no lago, poderia ser a Iara, pois ele sendo ndio deveria conhecer essa lenda e j ter sido alertado sobre ela. Concernente aos aspectos demonacos, a Iara no sai do pensamento do ndio Jaguarari, deixando-o perturbado. Do mesmo modo agia a sucubus com as suas vtimas: Outros dias se passaram, Ele com a mesma aparncia. Sempre lhe vinha a viso Perturbar a conscincia O jovem pagava assim Uma grande penitncia. Por muitos dias durou Todo aquele sofrimento. Olhando perdidamente Pro lago a todo momento Sem tirar um s instante A Iara do pensamento . Quanto ao elemento sedutor, este est por todo o texto, caracterizado pelo encantamento atravs da beleza da Iara, usado por essa criatura para atingir seu objetivo de devorar a alma de Jaguarari: Numa belssima viso/ era um vulto fascinante/ que prendeu sua ateno e o vulto era uma mulher/de beleza sem igual. E enfeitiado por sua beleza, o jovem guerreiro indgena tenta, mas no resiste aos encantos da Iara e sa a sua procura por no conseguir tir-la do pensamento.
Assim em certa manh Pega o ndio a sua igara E desce o rio pensando Em encontrar cara a cara A bela ninfa das guas Conhecida por Iara. Alguns ndios que estavam s margens do ribeiro Viram quando o jovem ndio Parou sua embarcao E uma mulher deslumbrante Subiu lhe estendendo a mo.
58
De acordo com a lenda, para sobreviver a essas criaturas preciso cantar melhor do que elas ou resistir ao seu canto. Neste cordel, a maldio da lenda se cumpre, e Jaguarari, enfeitiado e movido pelo desejo sexual, seduzido e se perde. Na Odissia, de Homero, podemos citar um caso semelhante: Ulisses ou Odisseu tambm foi tentado por sereias, mas resistiu ao encontro com as deidades martimas 181. Percebese entre esses dois exemplos uma forte similitude, levando-se em conta o episdio de Odisseu e as sereias da rapsdia XII, da narrativa homrica.
Chegars, primeiro, regio das Sereias, cuja voz encanta todos os homens que delas se aproximam. Se algum sem dar por isso delas se avizinha e as escuta, nunca mais sua mulher nem seus filhos pequeninos se reuniro em torno dele, pois ficar cativo do canto harmonioso das Sereias. 182
Apesar da semelhana da tentao, o desfecho foi inverso. Ulisses amarra-se ao mastro de sua embarcao e resiste ao canto sirnico, Jaguarari, como se v nas estrofes abaixo, sucumbe aos encantos da Iara: Aquela mulher to bela Era a ninfa feiticeira Que abraou Jaguarari E sumiu na ribanceira Nunca mais o jovem ndio Voltou quela ribeira. Por causa da obsesso Jaguarari se perdeu. Partiu pro fundo do rio E jamais apareceu. Foi ser marido da Iara Gozar eterno himeneu!!!! Da mesma forma, v-se claramente que assim como o incubus e o sucubus, a Iara apresenta a mesma essncia diablica destes, valendo-se da beleza, da seduo e da luxria para consumar o seu objetivo de levar a vtima perdio.
181
HOMERO. Odissia; Trad. de Odorico Mendes; Org. Antonio Medina Rodrigues; Prefcio de Haroldo de Campos. So Paulo: Ars Potica / EDUSP, 2000. 182 HOMERO. Op. Cit. P. 158.
59
Assim como no exemplo anterior, no cordel Saiona A mulher dos olhos de fogo
183
registra-se, do mesmo modo, elementos luxuriantes e diablicos. Novamente a sucubus se faz presente nesta narrativa que conta a lenda de uma mulher que tem o rosto de caveira, olhos de fogo, usa uma longa saia e vive na floresta, atacando os homens da regio. O episdio em questo apresenta dois caadores que trabalhavam nas redondezas e depois de um dia cansativo e sem capturar nada, resolvem voltar para casa, mas observam que j est muito escuro, que esto muito longe, mais exatamente no alto da montanha, e decidem pernoitar ali e seguir o caminho de volta logo cedo. Um dos caadores, o mais novo, comenta que gostaria de estar em casa e ser aquecido pela sua mulher ao invs daquele fogo, e repreendido pelo amigo que o alerta sobre a lenda da Saiona. Sentados junto ao fogo Comearam a conversar Um falou: Ah! Meu compadre Quem dera estar em meu lar E ao invs dessa fogueira Minha mulher me esquentar. O outro, um senhor mais velho, Tratou de o repreender: - compadre, no fale assim! (E comeou se benzer) Desse jeito voc pede Pra Saiona aparecer Nossos avs j diziam: No fale em mulher no mato Seno a Saiona vem. Isso no lenda, fato... Mal calou-se, um assobio Rompe o silncio no ato.
183
RINAR, Rouxinol do. Saiona a mulher dos olhos de fogo. Fortaleza: Tupynanquim Editora, 2005. A lenda da mulher que tem rosto de caveira, olhos de fogo e veste uma grande saia de origem venezuelana. Domnguez, Luis Arturo. Encuentro con el folklore en Venezuela. Caracas: Editorial Kapelusz Venezolana, 1990.
60
Logo em seguida repreenso, eles ouvem o piar da coruja, tambm conhecida como rasga mortalha, e ficam assustados, pois, de acordo com a crendice popular, esse pssaro anuncia desgraas ou a morte prxima e inevitvel pelo seu canto lgubre184. Logo em seguida uma luz Vem daquela direo Olhando lhes parecia Flutuar na escurido E quando chegou mais perto Ficaram os dois sem ao. Perceberam uma viso Das mais impressionantes. Era uma bela mulher De olhos negros, brilhantes, Que os dois homens ficaram Mudos por alguns instantes. Era alta, pele branca, Qual capucho de algodo. Cabelos pretos e longos Causava grande impresso Vestindo uma enorme tnica Que arrastava no cho! A mulher se aproxima, cumprimenta os caadores e senta junto deles, mas prxima do caador mais novo. O homem mais velho imagina que aquela a Saiona. Ela ataca perturbando o esprito da sua vtima, aqui, o caador mais novo, metamorfoseando-se numa pessoa prxima e desejada por esta, depois seduz e mata. - Boa noite! Disse ela, E junto ao fogo sentou Prxima do caador jovem Que da mulher se lembrou. - S pode ser a Saiona!, O velho balbuciou. Ela ouviu, claro, porm Fingiu no ter escutado Sorridente, sedutora Tinha o jovem enfeitiado E ele com olhar de bobo
184
CASCUDO, Luis da Cmara. Dicionrio do Folclore Brasileiro. 9 Ed. Revista, atualizada e ilustrada. So Paulo: Global editora, 2000.
61
Lhe fitava embasbacado. E na hora de dormir Levou-a sem dizer nada Deitou com ela na rede Que num galho estava armada Pois via o moo em seu rosto A face da sua amada. O outro caador armou a rede um pouco abaixo da do amigo e, mesmo preocupado, foi deitar. Ele acordou no meio da noite, sobressaltado, sentindo gotas carem sobre a sua rede. E percebeu, de imediato, que algo estranho aconteceu.
De um impulso o caador Ergueu-se preocupado Acendeu uma lanterna, Tendo a rede iluminado Viu seu compadre esvado Em sangue, desfigurado. Pensou: Foi estraalhado Por uma fera tremenda! Pela cena, horrorizado Exclamou: Deus me defenda! E ao virar-se deu de cara Com uma figura horrenda. Eram dois olhos de fogo Em um rosto de caveira Gritou o homem: SAIONA!!! Controlando a tremedeira Desesperado embrenhou-se Pelo mato na carreira.
O caador mais velho s escapou porque clamou por Jesus e se jogou no rio, de braos abertos em formato de cruz e isso afastou a assombrao. Pois segundo J. Rivire, A cruz lembra uma espcie de anzol que fisga o demnio, imobilizando -o e impedindo que ele prossiga sua obra185.
185
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionrio de smbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, nmeros). Colaborao de Andr Barbault... [et al]. Traduo de Vera da Costa Silva... [et al]. 19 ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 2005. p. 312.
62
Sentindo a Saiona perto O homem invoca Jesus Correndo a esmo, no escuro. Mas o acaso o conduz A um rio, onde ele se joga Abrindo os braos em cruz. Diante forma de cruz Para a Saiona, porm Com sua voz de caveira, Essa apario do alm, Num som rouco, horripilante, Assim bufava: vem, vem... A leitura dos trechos acima aponta elementos que levam a crer que a f livrou o homem do mal e do perigo. A invocao de Cristo na hora do desespero e a presena de elementos sagrados, como a cruz186, foram fundamentais para que o caador escapasse, assim como evidencia tambm a f e a crena do poeta popular. O pobre caador Ouvindo aquele bufado Teve a impresso que a Saiona J tinha lhe dominado Mas bem nessa hora os galos cantaram no povoado. Cessou o som cavernoso Daquela alma penada A sua figura horrenda Foi em gua transformada E se transmutando em ar Desapareceu no nada.
O cantar do galo, nesse contexto, figura como outro elemento importante que contribuiu para a salvao do caador. Esta ave , universalmente, um smbolo solar, porque seu canto anuncia o nascer do dia. E por anunciar o sol ele tem poderes contra
186
A cruz, cone primordial da f catlica, foi decretada como smbolo oficial do cristianismo no Conselho de Nicia, em 325 d.C. por Constantino. Para o cristianismo, ela representa o Salvador, o Verbo, a segunda pessoa na Santssima Trindade, e ainda mistifica todo o significado da Pscoa na ressurreio e tambm no sofrimento de Cristo.
63
as influncias malficas da noite187. Este animal ainda tem uma representao religiosa muito forte, tambm um emblema em Cristo, como a guia e o cordeiro. Mas, nele, a nfase recai no seu simbolismo solar: luz e ressurreio 188. A simbologia dos elementos religiosos, a cruz e o cantar do galo, pontuados nessa narrativa denuncia o quo forte a tradio crist no cotidiano do cordelista e o quanto os dogmas e os valores catlicos esto cristalizados na nossa cultura. No enredo do livrinho O mistrio da pedra encantada 189 existem muitas semelhanas com os cordis j analisados. A personagem principal uma mulher e o cordelista a apresenta como sendo muito bonita, irresistvel e perigosa. E quando o ano propcio Aquela moa aparece E a cada ano que passa Mais bonita ela aparece De forma que quem a v Seu rosto jamais esquece Dizem que as suas vtimas Ficam loucas de amor Pois a moa tem um beijo E um corpo encantador Fazendo buscarem sempre Dos seus braos o calor. Dizem que a moa loira Por outras vezes morena Tem a cintura afinada E uma boca pequena Mas pelo poder que tem No criatura terrena.
Ela se metamorfoseia em pedra e fica aguardando suas vtimas aparecerem para devor-las. Assim como a Iara e a Saiona, ela aprisiona a alma e os pensamentos do homem de bem, deixando-o desorientado, como aconteceu com Nestor, a vtima dessa narrativa.
187
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionrio de smbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, nmeros). Colaborao de Andr Barbault... [et al]. Traduo de Vera da Costa Silva... [et al]. 19 ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 2005. p. 457. 188 Ibidem. p. 458. 189 OLIVEIRA, Julie Ane e GERALDO, Evaristo. O mistrio da pedra encantada. Fortaleza: Tupynanquim Editora, 2008.
64
Nestor, esse tal rapaz, A mocidade perdeu Passava os dias sonhando Com a moa que conheceu Pensando nos seus encantos Precoce ele envelheceu. Nestor era um belo moo De corpo to jovial Envelheceu muito rpido De forma no natural, Pois a paixo pela moa O deixou irracional. E seguindo a equao mulher - luxria mal, o fim de Nestor no podia ser outro seno a morte. A mulher, que no tem nome nessa histria, atua de forma negativa e malfica na vida dele. Antes de tirar a prpria vida, Nestor matou um homem por causa dela , depois de ser desprezado pela mulher por quem ele tanto esperou, o que agrava mais ainda a atuao desse mito na vida dele. Mostrando maior destreza Foi Nestor quem conseguiu Ferir o pobre rapaz Que no cho morto caiu Mas durante aquela luta Nestor tambm se feriu. Naquele triste momento O seu corao doa De tudo se arrependeu Tambm medo ele sentia E num impulso Nestor A faca em si mesmo enfia. Os trs cordis analisados, a ttulo de amostragem, foram escolhidos para evidenciar a presena de resduos luxuriantes e malignos relativos mulher, ratificando o pensamento misgino medieval de que o motivo da perdio dos homens de bem, aqui referimo-nos Jaguarari, ao caador da segunda narrativa e a Nestor, est diretamente relacionado mulher, sua essncia, ao seu comportamento. Tal verificao foi possvel devido ao processo de hibridao cultural entre Portugal e Brasil, que resultou na formao de um imaginrio mitolgico composto por
65
essas criaturas diablicas, no qual se cristalizaram os remanescentes da metamorfose e da luxria, tornando possvel a identificao de resduos medievais referente mulher, nos quais se configuram a ocorrncia da residualidade.
Parece at ser doena S com corno o povo sonho Tanto crime, tanto roubo Tanta mulher sem vergonha Violncia e seduo Corno, bicha e sapato A concorrncia medonha190. O Tribunal Catlico Romano, tambm conhecido como Inquisio ou Tribunal do Santo Ofcio foi institudo em Portugal, em 1536, pelo papa Joo III
191
O principal objetivo deste instrumento era combater, sobretudo, as heresias, bem como qualquer um que se colocasse contra os dogmas difundidos pelo catolicismo. A Igreja Catlica fez uma declarao oficial sobre a condenao da bruxaria e da antiga religio dos pagos como ameaas ao cristianismo, dando incio, assim, ao combate s heresias. As heresias, durante o perodo em questo, assumiram diversas formas. Nos sculos IV e V, muitas propostas religiosas foram declaradas falsas, sendo classificadas e condenadas como heresias, como o Montanismo 192, o Arianismo 193, o Donatismo194 e
190
LEITE, Jos da Costa. Mulher doida, moa quente, corno, bicha e sapato. Recife: Editora Coqueiro, s/d. 191 LOPEZ, Luis Roberto. Op. cit. p. 123-124. 192 Movimento cristo fundado por Montano por volta de 156-157 (ou 172). Caracterizou-se como uma volta ao profetismo, pretendendo revalorizar elementos esquecidos da mensagem crist primitiva, sobretudo a esperana escatolgica. Propunha um rigoroso ascetismo, visando preparao para o momento final. Negavam a absolvio aos rus de pecados graves (mesmo aps o batismo com confisso e arrependimento) e recomendava-se aos fiis que no fugissem s perseguies e que se oferecessem voluntariamente ao martrio. 193 Viso Cristolgica sustentada pelos seguidores de Arius, bispo de Alexandria nos primeiros tempos da Igreja primitiva, sendo considerada uma heresia crist do sculo IV, que negava a divindade suprema de Jesus Cristo. Recebeu o nome de arianismo por ter sido criada pelo religioso egpcio rio. Segundo o arianismo, o Filho de Deus, segunda pessoa da Trindade, no tem a mesma essncia do Pai, sendo uma divindade de segunda ordem, j que nascera mortal. Os ensinamentos de rio foram condenados no primeiro Conclio de Nicia, em 325, na cidade de Niceia (atual znik), durante o reinado do imperador romano Constantino I, onde se redigiu um credo estabelecendo que o Filho de Deus foi concebido e no feito, consubstancial ao Pai.
66
o Nestorianismo 195, porque criticavam a Igreja devido ao seu modo de disseminar a doutrina. Porm, quando os movimentos anti-herticos voltaram a agir, a partir do sculo XII, os castigos e as punies passaram a ser mais rigorosas. Nesse segundo momento, as crticas dos valdenenses 196, dos ctaros197 e dos Irmos do Esprito Livre colocavam em evidncia o modo de vida dos representantes da igreja. Como punio, eles foram excomungados, perseguidos pela Santa Inquisio e exterminados 198. Como consequncia, a partir do sculo XIII, as perseguies aos movimentos opositores se intensificaram. Na Europa medieval, os clrigos definiram as categorias que deveriam ser perseguidas pela Santa Inquisio: os hereges sexuais homossexuais, prostitutas,
194
Foi uma seita religiosa crist, considerada hertica e cismtica pelo catolicismo. O nome advm de Donato de Casa Nigra, bispo da Numdia e posteriormente de Cartago). Surgiu nas provncias do Norte de frica na Antiguidade Tardia. Iniciou-se no incio do sculo IV e foi extinta no final do sculo VII. Os autores que mais influenciaram os donatistas, em termos de doutrina religiosa, foram So Cipriano, Montano e Tertuliano. Assim como o Novacionismo, fundado pelo Antipapa Novaciano no sculo III, os donatistas eram rigorosos, e sustentavam que a Igreja no devia perdoar e admitir pecadores, e que os sacramentos, como o batismo, administrados pelos traditores (cristos que negaram sua f durante a perseguio de Diocleciano em 303-305 e posteriormente foram perdoados e readmitidos na Igreja) eram invlidos. 195 Doutrina hertica crist, nascida no sculo V, segundo a qual h em Jesus Cristo duas pessoas distintas, uma humana e outra divina, completas de tal forma que constituem dois entes independentes. A doutrina surgiu em Antioquia e manteve forte influncia na Sria, e sustentada ainda hoje pela Rosacruz e outras doutrinas ligadas gnose. O seu surgimento deu-se dentro das disputas cristolgicas que abalaram o Cristianismo nos sculos III, IV e V, sendo proposto por Nestrio, monge oriundo de Alexandria, que assumiu o bispado de Constantinopla. Isto o levou a opor-se a Cirilo de Alexandria, bispo daquela cidade, que defendia a tese da unidade entre a pessoa humana e divina de Cristo. No Conclio de feso, no ano de 431, discutiu-se sobre o ttulo com o qual se devia referir a Maria, se somente cristotokos (me de Cristo, a dizer, de Jesus humano e mortal), como defendiam os nestorianos, ou de theotokos (me de Deus, ou seja, tambm do Logos divino), como defendiam os partidrios de Cirilo. Resolveu-se adotar como verdade de f a doutrina proposta por Cirilo, concedendo a Maria o ttulo de Me de Deus, e os nestorianos foram considerados hereges. 196 Heresia surgida no fim do sculo XII com Pedro Valdo, comerciante de Lion, renunciou grande fortuna que possua e iniciou sua pregao dos Evangelhos. Eles defendiam que o cristo, para salvar-se, no necessitava de sacerdotes, bastando-lhe a orao e o respeito aos ensinamentos bblicos. A leitura da Bblia era um preceito fundamental cujo cumprimento ficava a cargo dos "pastores", homens que sem abandonar suas atividades comuns, agiam na comunidade como conselheiros morais e comentadores da Bblia. Tiveram importncia, sobretudo, na regio do Languedoc, influenciando os albigenses. Sua principal base doutrinria era a chamada Confisso de 1120, o documento mais antigo da Reforma Protestante, embora no se tenha ideia das condies ou dos autores que o elaboraram, constituiu-se num marco demarcatrio para a formao de uma tradio confessional reformada. 197 Do grego "puro", foi um movimento cristo, considerado hertico pela Igreja Catlica, do final do sculo XI at meados do sculo XIV. Suas ideias tem fortes paralelos com o gnosticismo do incio da era crist. Os historiadores indicam sua formao a partir da expanso das crenas dos bogomilos (Reino dos Blgaros) e dos paulicianos (Oriente Mdio). Os sacerdotes ctaros, que denominavam-se "bons cristos" ou "bons homens" e "boas mulheres", levavam vidas simples e castas. Desprovidos de quaisquer posses materiais, buscavam afastar-se ao mximo do mundo, que consideravam corrupto. Eram considerados bons homens a partir do momento em que recebiam o consolamentum, um rito que representava de maneira simblica sua morte com relao ao mundo. LOPEZ, Luis Roberto. Op. cit. p. 23-24.
67
leprosos e os hereges religiosos judeus, bruxos e hereges199. Embora distintos num primeiro plano, o sexo configura-se como o elemento comum que unia estes diversos grupos, pois segundo Elizabeth Dias Martins o pecado sexual foi associado Lepra; e as grandes calamidades como o Dilvio e a Peste Negra foram consideradas consequncia da sodomia200. Nos discursos cristos havia uma associao entre a luxria e o demnio, que era utilizada para demonizar os desviantes da f. O sexo era a via mais comum para aproximar os homens do demnio. Este procurava dominar as mentes humanas, escravizando-as e usando-as para subverter a ordem natural de Deus e espalhar o pecado pelo mundo. Nas classes populares, as mulheres desfrutavam de maior liberdade pessoal, principalmente no que diz respeito a sua sexualidade, mas nem por isso deixavam de ser perseguidas e punidas ao transgredir as regras impostas tanto pela Igreja, quanto pelo Estado. J as mulheres que pertenciam s classes dominantes, tinham sua sexualidade confinada no interior da casa, podendo sair apenas com a autorizao do marido, que tinha amplos poderes sobre ela, inclusive o direito de castig-la fisicamente Pode-se bater at faz-la sangrar, sempre que a inteno seja boa, isto , para corrigi-la201. Elas tinham poucas opes fora do casamento para encontrar a satisfao de desejos pessoais muitas vezes no realizados no matrimnio. O seu papel principal era o de reprodutora. Alis, era atravs da maternidade que a mulher se afastava de Eva, a pecadora, para se aproximar de Maria, a mulher que pariu virgem o salvador do mundo 202. Essa intensa preocupao dos clrigos devia-se ao perigo que o contato carnal podia provocar: o sexo poderia despertar a paixo do marido pela esposa, fazendo com que ele passasse a am-la excessivamente e, como um adltero, passasse a comportar-se com ela como se fosse uma prostituta. A mulher jamais poderia tratar seu marido como um amante. Apesar de ser posse de seu esposo, ela no deveria esquecer-se de que sua alma pertencia a Deus.
199 200
RICHARDS, Jeffrey. Op. Cit. MARTINS, Elizabeth Dias. Sano e metamorfose no cordel nordestino: resduos do imaginrio cristo medieval ibero-portugus. In: XIX Encontro Brasileiro de Professores de Literatura Portuguesa, 2003, Curitiba - PR. Anais do XIX Imaginrio: o no espao do real - Encontro Brasileiro de Professores de Literatura Portuguesa. Curitiba-PR : UFPR/Mdia Curitibana, 2003. p. 304-311. 201 LOI, Isidoro. Op. Cit. Pg. 23. 202 ARAJO, Emanoel. A arte da seduo: sexualidade feminina na colnia In: Histria das mulheres no Brasil. So Paulo: Contexto, 2006. p. 52.
68
Mas como os desejos do sexo no podiam ser simplesmente descartados era preciso criar justificativas para amenizar o doloroso poder da crena mantida e exigida pela Igreja. Alguns tratados teolgicos foram escritos como forma de justificar os incontidos desejos de homens e mulheres pelo prazer do sexo. Anterior ao sculo XI, j existiam muitos textos e livros de penitncia que tratavam das penas religiosas a serem impostas para aqueles que desobedecessem as regras para a vida conjugal. A ttulo de contextualizao faz-se necessrio conhecer um pouco sobre esses grupos e perceber como a mulher se faz presente em cada um deles, uma vez que essas categorias no tinham o gnero como critrio. Ressalta-se ainda que as categorias das prostitutas e das bruxas tm uma relao mais estreita e direta com o feminino. Os pecados contra a natureza, por ordem crescente de gravidade, so: a masturbao, a relao inatural com o sexo oposto, a relao homossexual e a bestialidade203. A partir do sculo XIV, essas prticas faziam parte das acusaes de bruxaria. A literatura de cordel registrou alguns desses pecados. No cordel Iniciao sexual na zona rural204, de uma maneira geral, exemplifica como os rapazes do interior iniciam a prtica sexual. A bestialidade ou zoofilia descrita como sendo uma prtica comum, principalmente na zona rural. Jovem com 18 anos Sem conseguir namorar Comeou com os animais De todo jeito transar A cada dia era um Que lhe fazia gozar. [...] Todavia, devo dizer Ele no exceo Porm, quase uma regra Para iniciao Sexual dos rapazes De todo interiorzo
203 204
RICHARDS, Jeffrey. Op. Cit. P. 145. NASCIMENTO, Vanecir Santos do. Iniciao sexual na zona rural. Natal: Chico Editora, 2008.
69
E embora retratado dessa maneira, o cordelista faz um alerta sobre essa conduta e embasa seu conselho nas Escrituras Sagradas: Vi at homem casado Essas coisas praticando A passa a ser doena A todos vou avisando Segundo a Bblia, quem age Desse jeito est pecando. Quem pratica, bom deixar Esse ato bestial Se transava, pare logo De transar com animal H outros meios melhores Para o ato sexual. Sobre a bestialidade, a Bblia diz que Ningum, homem ou mulher, dever ter relao com animal; isso uma imoralidade e a pessoa fica impura 205. E para esse pecado a punio prevista, segundo as Sagradas Escrituras, a morte. Se um homem tiver relao com um animal, os dois devero ser mortos 206, para que no ficasse indcios de um pecado to detestvel e repugnante. Outro ato sexual perseguido pela igreja, no perodo da Idade Mdia, correspondente aos sculos XIV e XV, a relao entre pessoas do mesmo sexo e foi alcunhada de sodomia207 pelas normas prescritas pela Igreja Catlica atravs da Bblia. Esse termo surgiu no sculo XII, proveniente do latim medieval e faz referncia cidade de Sodoma, onde essa prtica era amplamente difundida. Com o advento do cristianismo e com o poderio da Igreja, esse termo passou a ser utilizado para designar o que os clrigos denominavam de perverso sexual, principalmente quelas ligadas ao sexo anal, pois tais atitudes iam contra um dos
205 206
Levtico 18:23. Levtico 20:15. 207 Pecado nefando, sensual, tem esse nome derivado da palavra Sodoma, cidade antiga da Palestina cujos habitantes o praticavam. Bosswell, Jonh. Christianity, Social Tolerance, and Homosexuality (Cristianismo, tolerncia social e homossexualidade). Oxford, 1980. P. 93. A mais influente definio de sodomia foi a de Santo Toms de Aquino, construda pela Escolstica, a unio sexual de homem com homem e de mulher com mulher, sendo que o coito anal entre machos seria a sodomia perfeita.
70
preceitos mais importantes para os catlicos do medievo: o sexo voltado exclusivamente para a procriao, sendo, portanto, uma atitude que ia contra naturam208. A essa prtica eram atribudas todas as molstias, como o dilvio, a destruio de Sodoma e Gomorra, as guerras, as pestes, as enchentes, entre outras. Com essa associao, o homem medieval passou, ento, a abominar e a temer essa prtica de sodomia, dando-lhe o carter lascivo e pecaminoso que perdurou pelos sculos vindouros. E essa prtica era classificada como prpria, praticada homem com homem ou homem com mulher e imprpria, praticada entre duas mulheres 209. Ronaldo Vainfas, num estudo sobre essa prtica entre mulheres, acredita que a sodomia feminina sempre foi tratada como um tema dbio pelos religiosos medievais. E defende que um dos principais motivos para os inquisidores ignorarem esse pecado a impossibilidade da mulher ser ativa numa relao sexual, alm de sua discrio nas relaes sexuais quando comparadas aos homens. Talvez os inquisidores se ativessem mais na busca de desvios sexuais masculinos, porque uma das grandes preocupaes era no deixar que esses casos de sodomia viessem a se tornar pblicos e frequentes e tambm porque o homem era considerado puro em relao mulher 210. No sculo IV, Santo Ambrsio (340 397) interpretando essa passagem, declara: Ele testifica que, estando Deus zangado com a raa humana por causa de sua idolatria, acontecia de uma mulher desejar outra mulher pelo hbito de vergonhosa luxria211 e Pedro Abelardo interpretou assim: Antinatural, isto , contra a ordem da natureza, que criou os rgos genitais das mulheres para o uso dos homens e reciprocamente, e no para que as mulheres pudessem viver com mulheres 212. Vainfas esclarece ainda que, durante alguns sculos, o termo sodomia adquiriu um amplo significado, indicando, alm da relao entre pessoas do mesmo sexo, os exageros sexuais, que iam desde a masturbao at a bestialidade. Quanto prtica da sodomia, essa foi associada, sobretudo, aos desvios da genitalidade, incluindo o coito
208 209
RICHARDS, Jeffrey. Op. Cit. p. 136. VAINFAS, Ronaldo. Homoerotismo feminino e o Santo Ofcio In: PRIORE Del, Mary. Histria das Mulheres no Brasil . So Paulo: Editora Contexto 2006, p.119-120. 210 Idem. Loc. Cit. 211 Idem. Loc. Cit.. 212 Idem. Loc. Cit..
71
anal, o sexo oral e outros crimes conta a natureza, discriminados em penitenciais da Alta Idade Mdia213. Existem relatos que demonstram claramente o quanto essa prtica era abominada pela filosofia crist, dentre as quais, algumas passagens bblicas que versam sobre esse tema. No Antigo Testamento Deus diz pela voz do profeta: Com homem no te deitars, como se fosse mulher; abominao
214
Romanos, Paulo diz: ...Pois at as mulheres trocam as relaes naturais pelas que so contra a natureza. E tambm os homens deixam as relaes naturais com as mulheres e se queimam de paixo uns pelos outros 215. Com esta ojeriza corrobora Santo Alberto Magno (1193 1280) que pensava a sodomia como o maior pecado contra a natureza e fundamentava-se em quatro argumentos, a saber: por subverter a natureza, por ser to contagiosa quanto uma doena, por se distinguir pela imundcie e porque aqueles que se viciavam nessa prtica no se recuperavam216. Os castigos para a sodomia variavam de acordo com a idade e com a situao do pecador. Se solteiro, a pena era de sete anos de jejum e de abstinncia; se casado, era de dez anos; se fosse habitual, quinze anos; se fosse jovem, era punido com cem dias a po e gua. Ainda se diferenciava a sodomia homossexual da sodomia heterossexual. Esta era condenada a trs anos, e aquela a dez. S bestialidade se comparava a sodomia homossexual, que era o pecado sexual mais srio. Mesmo com toda vigilncia, essa prtica era muito frequente na Idade Mdia, principalmente entre os clrigos, como afirma Jonh Boswell 217 em seu livro Christianity, Social Tolerance, and Homosexuality (Cristianismo, tolerncia social e homossexualismo), que o trabalho mais erudito e um dos mais completos sobre esse assunto, de acordo com o estudioso Jeffrey Richards, que afirma ainda:
Na Idade Mdia, o meio monstico era um terreno propcio para a sodomia. A regra de So Bento previa que os monges deviam dormir cada um em uma cama, de preferncia em um mesmo local, com sacerdotes mais antigos que cuidariam deles. Os regulamentos de Cluny proibiam que os novios ficassem sozinhos ou na companhia de um s professor. Se um dentre eles,
213 214
VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no Ocidente cristo. So Paulo: tica, 1986. p. 46 Levtico 18:22. 215 Romanos 1: 26-27 216 RICHARDS, Jeffrey. Op. Cit. 145. 217 Bosswell, Jonh. Op. Cit.
72
noite, tivesse que sair para satisfazer as necessidades, tinha de estar acompanhado por um mestre e por outro jovem munido de lanterna. 218
So Pedro Damio tambm escreveu um livro sobre os abusos sexuais do clero, The Liber Gomorrianus (O livro de Gomorra), elencando as formas de homossexualidade, as circunstncias das transgresses clericais e as medidas propostas contra tal prtica. O referido autor entendia esse comportamento como hediondo e terrvel.
Na verdade, este vcio nunca deve ser comparado a qualquer outro vcio, pois ultrapassa a sordidez de todos os vcios. Sem dvida, este vcio a morte dos corpos, a destruio das almas. Ele polui a carne, ele extingue a luz da mente. Expulsa o Esprito Santo do templo do corao humano; introduz o Diabo, incita luxria. Ele introduz ao erro; ele remove completamente a verdade da mente que foi ludibriada. 219
Apesar da proibio massiva sodomia, a tradio crist, em sua gnese, era mais tolerante ao tratar dessa prtica por duas razes: Na Alta Idade Mdia, percebiamse influncias de modalidades no crists na aceitao desse comportamento e a hierarquia eclesistica ainda estava em formao. Somente a partir do sculo XIII, as punies passaram a ser mais severas, principalmente para os membros do clero, o que demonstra que mesmo sendo proibidas, as relaes entre os sodomitas eram to comuns quanto em qualquer outro perodo. Esse tema tambm foi registrado na poesia popular. Em O casamento do boiola220, J. Borges conta a histria de um rapaz, filho de um renomado poltico da cidade, que assume a sua homossexualidade. O pai no aceita essa condio do filho, o que fica claro na estrofe: Um dia o pai lhe falou Meu filho que histria essa Meu nico filho voc Lhe considero boa pea S no me diga que gay No faa uma coisa dessa. A Igreja tambm no apoia essa situao e corrobora com a postura do pai. E embora no concorde com esse tipo de relacionamento, a Igreja, na figura do sacristo e
218 219
RICHARDS, Jeffrey. Op. Cit. P. 143 Idem. 220 BORGES, Jos Francisco. O casamento do boiola. Pernambuco: S/D.
73
do padre, criticada pelo cordelista, pois mesmo sendo proibido o casamento acontece graas propina paga pelo filho do deputado, como se percebe nos versos: E a noite disse ao padre Acertei um casamento De um boiola gostoso E o noivo feito um jumento E o padre disse: nem pensar Fazer este casamento O sacristo respondeu No me bote para trs J disse que se fazia O casamento dos tais E o boiola prometeu Nos trazer 10 mil reais. Disse o padre: assim tem jeito No vou deixar de fazer Deus probe mas no manda Dinheiro prans comer Se um quer e outro quer Desde j vou resolver.
Conforme visto nas estrofes destacadas, verifica-se a remanescncia da condenao desse comportamento, assim como acontecia na Idade Mdia, sendo respaldada na mentalidade moralizante crist medieval. Inserido no mesmo contexto de pecado e luxria dO casamento do boiola, est o cordel Chica Bananinha, a sapato barbuda de l da Paraba 221, que conta a histria de uma moa que gostava de mulheres e que, por muitas vezes, assume o papel do homem na relao. Durante o enredo, a personagem destri casamentos, deflora, desvirtua adolescentes e pratica um dos pecados mais graves contra a natureza, segundo a ideologia clerical: a sodomia imperfeita. A linguagem usada pelo cordelista para falar de Chica e de seu comportamento extremamente chula e depreciativa. O mundo t to mudado que ningum entende nada tem mulher que est nascendo macho e at barbada
221
K. Gay Nawara. Chica Bananinha, a sapato barbuda de l da Paraba. Rio de Janeiro, 1984.
74
como o caso da tal Chica que mulher s na fachada A sua maior faanha Foi acabar com um lar. Tomou a mulher dum homem E, com ela, foi morar. E o marido abandonado Bichou para se vingar (...) Houve at alguns casinhos Dela deflorar com o dedo Quando ficou maiorzinha, De rapaz, no tinha medo. Brigava por namorada Quando queria um brinquedo. Outros pecados cometidos por Chica Bananinha so a masturbao e a molcie222, que so pecados contra a natureza dos menos graves, se comparados sodomia, por exemplo. Ela ainda faz uso de instrumentos, o que agrava o pecado, de acordo com a moral crist. Era difcil arranjar Menina pra sua tara Ela ento se masturbava, Se roando numa vara, No coxim da bicicleta, Pois precheca era rara. [...] Levava a companhia Para seu apartamento. Botava uns apetrechos De uma pica pra dentro E outra pra embucetar, Depois do assentamento. Passava a vaselina E metia em sua dama. Ficava aquele roado, Chiando em cima da cama. E todas as duas gozavam, Fazendo a sua fama.
222
75
Aps a anlise dos versos, percebe-se a existncia de substratos mentais no que se refere sodomia feminina vista na Idade Mdia como um pecado menor, em virtude da mulher no ser ativa na prtica sexual, se comparada ao mesmo pecado quando cometido por homens. As prostitutas223, bem como os prostbulos, tiveram sua presena registrada durante a Idade Mdia. Ela teve a sua relevncia para a poca em questo, pois surgiu e funcionou nesse cenrio como um subterfgio para diminuir a possibilidade de estupros e violaes cometidas por jovens contra mulheres honestas, para combater o homossexualismo e tambm para atender aos homens que buscavam o prazer, considerado como um pecado, quando feito sem fins de procriao. Segundo Santo Agostinho, um dos mais rigorosos no que diz respeito a moral sexual,
Assim como o verdugo, por repugnante que seja, ocupa um posto necessrio na sociedade, assim as prostitutas e seus similares, por mercenrios, vis e imundos que paream, so tambm necessrios e indispensveis ordem social. Retirais as prostitutas da vida urbana e chegareis ao mundo da luxria224.
As opes para a mulher medieval eram poucas: o casamento ou o convento. E como para ser freira era preciso pagar uma alta taxa, a alternativa mais vivel era o casamento, que vinha acompanhado de uma vida de submisso. A educao das mulheres da poca tinha como nico objetivo o matrimnio. Alm de ocuparem uma posio inferior na sociedade medieval, as mulheres ainda tinham duas grandes preocupaes: a inquisio e a prostituio, que reforavam a importncia e o desejo pelo casamento, o que no anulava e nem impedia os acontecimentos dos eventos j citados. As mulheres casadas e suas filhas, de boa famlia, deviam temer a desonra. De acordo com Jeffrey Richards, os motivos que levavam uma mulher a se prostituir na Idade Mdia so praticamente os mesmos que levam a isso em qualquer poca: pobreza, inclinao natural, perda de status, um passado familiar perturbado, violento
223
(Mesmo fora dos grandes cintures de pobreza, que multiplicavam por todos os caminhos o nmero de mulheres que se ofereciam, moas vagabundas iam com ou sem os seus rufies, de cidade em cidade, reforando aqui e ali o pequeno grupo de mulheres comuns a muitos). Elas adaptavam seu itinerrio ao calendrio das feiras e mercados das peregrinaes e dos grandes trabalhos agrcolas. ROSSIAUD, Jacques. A Prostituio na Idade Mdia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 20. 224 Santo Agostinho. De Ordine, Livro II, cap. IV apud GASPAR, Maria Dulce. Garotas de programa Prostituio em Copacabana e identidade social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1988.
76
ou incestuoso
225
famlias pobres. Iniciavam no ofcio por volta dos dezessete anos de idade e estavam includas no grupo das minorias, levando consigo uma marca de infmia que as distinguia das mulheres de bem. Na Idade Mdia, a prostituio, apesar de ser condenada veementemente pela Igreja, era vista como um mal necessrio, ideia defendida por Santo Agostinho, que afirmou: Se as prostitutas forem expulsas da sociedade, tudo estar desorganizado em funo dos desejos226. Compartilham desse mesmo pensamento telogos de destaque como Santo Toms de Aquino e Toms de Chobham. Este at levantou a hiptese de que as prostitutas deveriam ser assalariadas, pois quando alugam seus corpos esto fornecendo mo de obra227. E, caso se arrependessem, com o dinheiro advindo da prostituio poderiam fazer caridade e redimir-se da vida de pecado. Mas ressaltou tambm que caso no houvesse arrependimento, e alm de receber dinheiro, fizessem sexo por prazer, isso seria considerado pecado e no trabalho. O conceito de prostituta foi definido, no sculo V, por So Jernimo: Uma meretriz aquela que se encontra disponvel para atender os desejos de muitos homens
228
. Esta categoria era identificada, tal como os leprosos, por uma marca de infmia e
pela segregao, alm de vestes diferenciadas. A lei cannica diferencia prostituio (envolvendo sexo com muitos homens) do concubinato (envolvendo sexo com uma s pessoa, mas fora do casamento) 229. Apesar de condenada, a prostituio foi tolerada pela Igreja, que a considerou "uma espcie de dreno, existindo para eliminar o efluente sexual que impedia os homens de elevar-se ao patamar do seu Deus"
230
todo relacionamento sexual, mas aceitava a existncia da prostituio como um mal necessrio. De acordo com Jacques Rossiaud, autor de A Prostituio na Idade Mdia, "pode-se afirmar, sem receio de erro, que no existia cidade de certa importncia sem bordel" 231.
225 226
RICHARDS, Jeffrey.Op. cit. p. 121. PILOSU, Mrio. p. 76. 227 Idem. 228 RICHARDS, Jeffrey. Op. Cit. P. 123 229 Idem. 230 Idem. 231 ROSSIAUD, Jacques. A Prostituio na Idade Mdia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. P. 224.
77
As prostitutas eram parte integrante da vida urbana na Idade Mdia, figuras familiares na literatura que sobreviveu poemas, histrias, canes, crnicas e registros de tribunais. Quase no existia uma cidade que no tivesse sua boa casa, como era s vezes conhecido o bordel. 232.
Na Idade Mdia, a nica forma de livrar da prostituio as mulheres pobres, era o casamento. Com isso, no final do sculo XIII surgem fundaes como o Le Halle, onde homens cristos resgatavam uma pobre pecadora e, por amor a Deus, casavam-se com ela. Em uma tentativa de acabar com a prostituio, em 1198, Inocncio III declarou que seria obra benemrita se um homem ajudasse a mulher abandonar a prostituio e, atravs do casamento, salv-la da vida pecaminosa.233 As constantes referncias sensualidade feminina e liberao dos desejos sexuais mostram a mulher como um ser irracional, levado pelas paixes e incapaz de refrear seus impulsos considerados demonacos. Elas so descritas como pecadoras, perigosas, pois so as tentadoras prontas a atrair o homem para a satisfao de seus desejos carnais, levando-o a cometer o pecado. Essa minoria foi sujeito do cordel intitulado A chegada da prostituta no cu, de Jos Francisco Borges. Nesse folheto, o enredo gira em torno de uma prostituta que morre, passa pelo inferno, pelo purgatrio (tendo a companhia do Diabo) e, finalmente, chega ao cu, causando ali uma desordem ao namorar todos os santos. Na segunda estrofe, a vida da prostituta vista como um engano, um erro: Sabemos que a prostituta tambm um ser humano Quer por sua iludio Fraqueza ou desengano O seu viver volvel Sempre abraado ao engano Essa mentalidade remonta ao perodo medieval, tempo em que a prostituta era tomada como minoria social por praticar o sexo fora do casamento, deliberadamente, e por deixar-se ludibriar pelo Demnio, a quem sempre estava associada, como podemos conferir na quarta estrofe, a seguir: Assim que foi enterrada Sua alma se destinou
232 233
RICHARDS, Jeffrey. Op. cit. P. 121. OPTIZ, Claudia. O Quotidiano da Mulher no Final da Idade Mdia, IN: Histria das Mulheres no Ocidente - Porto: PT: Ed. Afrontamento Ltda, 1990.
78
Querendo ir para o cu Mas primeiro ela passou Pela porta do inferno E o diabo lhe acompanhou No podemos deixar de atentar para a comparao, que fica subentendida, entre a prostituta e uma mulher bem casada que se encontram na porta do cu. Temos nesse instante o modelo de mulher em quem a prostituta deveria se espelhar: Pois l j se encontrava Uma mulher bem casada Arengando com o marido Que morreu de uma virada E queria entrar no cu Com uma faca afiada Observemos na estrofe seguinte que o fato de ser prostituta provoca uma reao negativa na mulher bem casada causando-lhe cimes , que logo decide exterminar esse mal: Essa mulher tambm morta Era muito ciumenta Quando viu a prostituta Entortou o pau da venta E disse vou te furar Foi uma luta cinzenta
Na dcima estrofe, percebemos algo curioso, mas muito comum nos folhetos de cordel: a violao de preceitos cristos por parte de personalidades adeptas do Cristianismo em tom de humor. Porm, a transgresso se d devido chegada da prostituta. Segundo a mentalidade da Igreja, ela a responsvel por causar a desordem.
Nessa zoada, So Pedro Se apresentou no porto E disse no tem lugar Pra mulher com bestalho S tem pra mulher sozinha E foi logo estirando a mo. E foi pegando no brao Da prostituta assanhada
79
Disse voc pode entrar Aqui no lhe falta nada Vai dormir na minha cama E me esquentar de madrugada Agravando ainda mais a situao da mulher, aparece na porta do cu um homem dizendo ser seu gigol: Mas atrs deles vinha Outra cara de compl E disse: eu entro tambm Pode dar a estupor Porque na terra eu era Dessa mulher o gigol
Mais adiante, precisamente na vigsima estrofe, Santo Oscar ameaa contar todos os desvios que passaram a acontecer no cu aps a chegada da Prostituta, deixando transparecer que esta provocadora de desordem e responsvel por fazer os santos carem em tentao. Atentemos para o fato de que ser Jesus, representante do Bem, o responsvel por levar novamente a ordem ao lugar, que se transformou num cabar: Disse ele: hoje mesmo Antes de tomar caf Eu vou contar a Jesus Essa puta como Depois de sua chegada O cu virou um cabar Outro pensamento medieval claramente presente no cordel em questo est no fato de ser a prostituta um mal necessrio, evitando que os homens prevaricassem com as moas de virtude, como podemos verificar a seguir, na resposta de Jesus a Santo Oscar: Na terra no teve apoio Em meio sociedade Levou a vida sofrendo E fazendo caridade Aceitando preto e branco Que tinha necessidade Mesmo com as prostitutas Existe um mundo de tarados
80
Correndo atrs de mocinhas E mulher de homem casado. Se no houvesse prostituta Qual seria o resultado?
Tambm importante salientar a recorrente bondade de Jesus, expressa mais uma vez nas estrofes acima, e da sano expressa pela sociedade prostituta, cujo comportamento no condiz com os bons costumes cristos. Essa representao no cordel tambm dialoga com a passagem bblica de Santa Madalena, conhecida meretriz apanhada em adultrio.
- Mestre, esta mulher foi apanhada no ato de adultrio. De acordo com a lei que Moiss nos deu, as mulheres adlteras devem ser mortas pedradas. Mas o senhor, o que que diz sobre isso. (...) Jesus endireitou o corpo e disse: Quem de vs estiver sem pecado, que seja o primeiro a atirar uma pedra nesta mulher!234
A narrativa registra a presena da moral crist na condenao dessa minoria, bem como a conscincia da Igreja acerca da importncia desta para o equilbrio social das cidades, como defendeu Santo Agostinho. Outro grupo perseguido, durante o medievo, foram os leprosos. A Igreja Catlica perseguiu e incentivou a populao a fazer o mesmo. Em virtude da falta de informaes mais especficas sobre as doenas havia, neste perodo, uma grande dificuldade de se diagnosticar a lepra. Essa doena, que at ento no dispunha de tratamento, provocava deformaes fsicas que causavam asco e medo na populao. Por isso, ela era muitas vezes confundida com outros tipos de enfermidades, principalmente com as de pele e as venreas 235. Partindo desta premissa, a segregao dos leprosos pode ser vista tambm como uma maneira, empregada pelos homens do medievo, de afastar da sociedade um smbolo vivo da lascvia, da luxria e da promiscuidade. Assim, a lepra era vista como uma marca do pecado, externa e visvel de uma alma corrompida pelo erro, pela transgresso sexual. O Antigo Testamento afirma que as doenas de pele so pecados que afloram, portanto, alm do perigo do contgio fsico, havia o perigo do contgio moral236. A lepra
234 235
Joo 8:4-8 RICHARDS, Jeffrey. Op. cit. P. 155 236 Levtico 13: 1-46.
81
era vista pela sociedade medieva como uma punio de Deus aos pecados de natureza sexual e acreditava-se ainda ser uma doena sexualmente transmissvel237. Um leproso poderia ser identificado por qualquer pessoa. Bastava que observassem na pele de um parente ou vizinho qualquer alterao. Primeiro era feita a denncia, depois ele era indicado autoridade secular ou religiosa para que um tribunal fosse convocado. O acusado se apresentava diante de um jri formado por um representante da Cincia, do Estado e da Igreja, respectivamente um mdico, um preboste e um padre. A pele do doente era submetida a um exame minucioso, passando por vrios testes238. Para garantir a segurana da populao sadia foram criadas diversas leis. Dentro do regulamento dos leprosrios, a principal regra dizia respeito a mant-los o mais distante possvel do convvio com os outros. Tambm leis municipais foram criadas. Carlos VI, em 1404 e 1413, por exemplo, determinou que os leprosos ficassem fora de Paris. Estas proibies levam a crer que nem todos os doentes estavam confinados leprosrios, e muitos andavam livremente pela cidade, para incmodo da populao, da Igreja, das autoridades municipais e da coroa. No sculo XIV, a perseguio aos leprosos diminuiu. Ao que tudo indica, a Igreja voltou-se mais para perseguir judeus, bruxas e hereges239. Existiam alguns mitos envolvendo o perigo da lepra para a populao saudvel e suas formas de contgio. Uma das histrias estava relacionada identificao do doente e dizia que se os raios da lua batessem no rosto do leproso, este ficaria marcado por vrias cores e o homem sadio ficaria empalidecido. Outra verificao indicava misturar urina do suspeito cinzas de chumbo queimado. Se estas boiassem, estaria ali mais um que deveria ser isolado, pois o normal seria que as cinzas cassem no fundo do recipiente. Estes doentes foram confinados a leprosrios em virtude do desejo da Igreja de mant-los longe da sociedade e pelo medo que estes causavam na populao 240.
237
LE GOFF, O Maravilhoso e o Cotidiano no Ocidente Medieval . Traduo de Jos Antonio Pinto Ribeiro. Lisboa: Edies 70, 1985; 238 Levtico 13: 1-10. 239 BROWNE. Stanley George. Lepra na Bblia: estigma e realidade. Traduo de Vera Ellert Ochsenhofer. Viosa : Ultimato, 2003. p. 48. 240 Ibidem. p. 49-53.
82
possvel visualizar na literatura popular em verso recorrncias da lepra, mas com outra terminologia241. No livrinho Hansenase no cordel 242, o autor apresenta o histrico dessa doena, bem como alerta as pessoas sobre seus sintomas e sua cura. A doena hansenase Na rima vou colocar Esclarecendo a populao Para juntos erradicar Encontrando o portador Para poder tratar [...] Desde antes de Cristo A humanidade mutilada Por este bacilo imundo Que sempre ganhava a parada Pois no tinha medicamento Para ser tratada A lei da antiguidade Expulsava sem compaixo Tirava da sociedade O portador em provao At os seus prprios bens Era feito confiscao No vale dos leprosos Tinha que ir morar Ou em casas abandonadas Tinha que ir parar Porque todos tinham medo De a doena pegar
Como so recorrentes as minorias medievais nos textos de cordis, o imaginrio popular permanece com inmeros elementos do medievo. A lepra, como apresentada no texto supra com a classificao hodierna, analisada no intuito de advertir os leitores sobre suas causas e sua cura. Entretanto, notvel a percepo e a erudio do autor ao
241
A lepra passou a se chamar hansenase a partir de 1873, quando o bacilo que causa essa enfermidade foi descoberto pelo noruegus Gerhard Henrik Armauer Hansen. 242 VILAR, Antonio Cristvo de Queiroz. Hansenase no cordel. Disponvel em: http://www.morhan.org.br/cordel.html. Acessado em 18 de maro de 2010.
83
relatar em sua obra um pequeno histrico do que foi a doena para as geraes precedentes. No medievo, o nmero de pessoas consideradas leprosas era grande, em virtude da aplicao desses mtodos de investigao. Os resultados poderiam ser contestados e os acusados podiam pedir novos peritos e tambm mudar de jurisdio, mas, depois de acusados formalmente pelo tribunal, os suspeitos eram banidos da comunidade e de toda vida social. Para oficializar o dia da separao do leproso da sociedade, em certos lugares, eram realizadas solenidades, consideradas macabras. Era a Separatio Leprosarum, uma espcie de missa dos mortos. Ela tinha incio com uma procisso, ao som de sinos, que contava com a participao dos fiis da comunidade em direo a Igreja. O padre usava as vestes reservadas para as cerimnias fnebres, um vu escuro cobria o leproso, e o ritual era regido com o canto do Libera-me Domine. Sobre a cabea do doente, proferindo Sic mortuus mundo, vivus iterum Deo (Morre para o mundo, renasce em Deus), o padre jogava terra para simbolizar que, a partir daquele momento, ele estava morto para a sociedade243. Jacques Le Goff realizou um estudo sobre a histria do corpo durante o perodo medieval e concluiu que o leproso foi engendrado por seus pais em perodos durante os quais a copulao proibida aos cnjuges. Propriamente falando, a lepra produto do pecado 244 e afirma ainda que, em certo sentido, eles seriam favorecidos pelo Criador, pois como eles sofriam em vida, assim como Jesus Cristo, j estavam pagando os seus pecados e quando morressem iriam direto para o cu 245. Para sociedade medieval, ento, a lepra mostra-se como um paradoxo, pois enquanto molstia que exclua o homem do convvio dos outros, ou seja, morte social, dava a este a entrada ao reino celeste, pois o leproso, como divinizado, j teria pago, nos ambientes terrenos, suas dvidas. Os judeus foram outros a serem perseguidos pela Igreja . Essa perseguio teve incio no sculo IV, quando o cristianismo passou a ser a religio oficial do Imprio Romano. O Conclio de Nicia, em 325, respaldado pelo Novo Testamento, culpava os
243
CURI, Luciano Marcos. Defender os sos e consolar os Lzaros: lepra e isolamento no Brasil. Dissertao de Mestrado defendida na Universidade Federal de Uberlndia e 2002. 244 LE GOFF, Jacques e TRUONG, Nicolas. Uma histria do corpo na Idade Mdia. Traduo de Marcos Flamnio Peres. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2006. Pg, 107. 245 Essa segunda afirmao causa estranhamento. Se os leprosos eram condenados pela prtica da luxria, mesmo sem relao direta, como poderiam ser comparados a Cristo?
84
judeus pela morte de Jesus (acusao s retirada em 1965, no Conclio Vaticano) 246. Os judeus passaram ento a ser difamados por pregadores cristos, que ajudaram a disseminar inverdades sobre eles por toda a Europa medieval, a qual viu crescer vrios mitos sobre os judeus, como por exemplo, eles serem os responsveis pela peste negra e de estarem envolvidos com bruxaria, usando sangue de inocentes, alm de terem semelhanas fsicas com o diabo. Como todos os olhares voltavam-se os judeus, tudo relacionado a eles tinha grande repercusso. O 4 Conclio de Latro, 1215, trazia vrias restries aos judeus. O matrimnio entre judeus e no judeus foi proibido, eles foram impedidos de ocuparem cargos pblicos e foram obrigados a usar sobre as vestes a estrela amarela imposta por Lus IX. A perseguio aos judeus aumentava. Exemplo disso so a Inglaterra e a Frana que expulsaram os semitas do seu territrio, respectivamente em 1290 e 1306; e a Espanha, considerada a mais radical e antissemita, que teve em sua regio, mais de quatro mil judeus assassinados. O batismo foi visto por muitos judeus, principalmente espanhis, como o caminho para escapar da morte. E dentro dos moldes medievais caminho para a salvao mesmo, no mais restrito significado da expresso. E essa atitude teve como consequncia o surgimento de trs novas categorias de judeus, a saber: os judeus que escaparam das perseguies e que insistiram em manter a f judaica, os criptojudeus aqueles convertidos ao cristianismo, mas praticantes do judasmo e os conversos que se converteram de verdade. Estes acreditavam que com a converso teriam os mesmos direitos que os cristos. Independente de suas atitudes, os judeus no foram aceitos e na prtica continuaram sendo responsabilizados pelas desgraas que aconteciam e ainda foram apelidados de marranos (porcos)247. O fator econmico tambm era motivao para as perseguies. Os judeus conquistaram posies importantes nas universidades e em setores da economia. A poltica antissemita proliferou em vrias regies da Europa, sobretudo na Espanha atravs dos estatutos de pureza de sangue 248. Esses estatutos asseguravam que nenhuma descendncia de judeus ou de mouros frequentaria universidades, ingressaria em ordens religiosas e militares ou teria cargos polticos ou pblicos. A habilitao de
246 247
CURI, Luciano Marcos. Op. cit. FERNANDES, Neusa. Op. Cit. 248 Idem.
85
genere uma rvore genealgica constando o nome de todos os antepassados era requisito exigido para quem desejasse se candidatar a esses cargos. O discurso religioso antissemita tinha se transformado num discurso racial contra os judeus convertidos. Arievaldo Viana249, no cordel A histria da rainha Esther, narra a saga do povo judeu, tendo como mote a vida da rainha Esther 250. Esse cordel denuncia o
conhecimento do poeta sobre a histria desse povo, e serve, nesse estudo, para registrar a presena desse grupo, considerado como minoria na Idade Mdia, na literatura popular contempornea. Dentre as mulheres mais belas Ester foi a escolhida Pra ser a nova Rainha Pelo rei foi preferida Mardoqueu disse sobrinha: - No revele a sua vida! - Pois nosso povo cativo E vive na opresso Talvez o rei no a queira Vendo a sua condio melhor guardar segredo Sobre seu povo e nao. Gilberto Freyre, devido a sua orientao positivista, faz forte associao entre gentica e comportamento, quando o assunto so os judeus. No se pode esquecer que o intelectual pernambucano foi contemporneo do processo imigratrio judaico. Sendo assim, Freyre representa, de forma aguda, o ambiente intelectual do perodo em que foram construdos fortes esteretipos sobre a comunidade judaica. Corroborando velhos preconceitos sobre a presena comercial e financeira dos judeus em Portugal e no Brasil, afirma:
249 250
VIANA, Arievaldo. A histria da rainha Esther. Fortaleza: Tupynaquim editora, 2004. Esther, jovem judia, foi criada pelo tio Mardoqueu por ser rf de pai e me. Ela acaba se casando com o rei Assuero sem que ele saiba que ela judia. Com o passar do tempo, um dos ministros preferidos do rei, Ham, passou a perseguir Mardoqueu porque este no lhe prestara obedincia. Se enfureceu e passou a perseguir no s ele, mas tambm o povo judeu. Com a inteno de destru-los, conseguiu convencer o rei, que emitiu uma ordem para extermin-los. Quando Esther soube do perigo que seu povo corria, ela no hesitou e enfrentou as leis que proibiam a presena de qualquer pessoa, homem ou mulher, diante do rei sem ter sido chamado, e cuja pena era a morte. Esther compareceu diante do rei e contou-lhe as maldades de Ham, sua crueldade e o dio que tinha pelos judeus. Na ocasio, o rei ficou sabendo tambm que Mardoqueu tinha salvo sua vida. Dessa forma, Ham foi condenado e a perseguio contra os judeus terminou.
86
Tcnicos da usura, tais se tornaram os judeus em quase toda parte por um processo de especializao quase biolgica que lhes parece ter aguado o perfil no de ave de rapina, a mmica em constantes gestos de aquisio e de posse, as mos em garras incapazes de semear e de criar. Capazes s de amealhar.251
Evidenciando o carter capitalstico e materialista dos judeus, Gilberto Freyre acaba por ratificar aquilo criticado e perseguido pela Igreja, a concupiscncia. At hoje, o imaginrio coletivo sobre o judeu assume algumas das caracterizaes supra, surgindo como agiota especulador e avarento. A inquisio fundamentava-se no combate e na perseguio aos hereges e queles que iam contra os dogmas impostos pela Igreja Catlica. A bruxaria era uma das principais ocorrncias combatidas pela igreja. Pautava-se em pactos diablicos que negavam o cristianismo e envolviam canibalismo, orgias sexuais e pardias blasfemas dos cultos cristos e os bruxos eram vistos como servos do diabo 252. O surgimento das bruxas253 no foi espontneo, mas resultado de um conjunto de esforos realizado para inibir as prticas de magia negra, bem como o sexo fora do casamento e sem fins de procriao. O pnico criado entre a populao foi tamanho, que mesmo sem ter qualquer ligao com a bruxaria, muitas das mulheres acusadas acreditavam que eram bruxas e que tinham um pacto com o diabo. Por trs da bruxaria estava o sexo, visto como o elemento principal do pecado e para o pecado, ideia defendida por Kramer e Sprenger, no Malleus Maleficarum: Toda bruxaria advm do desejo carnal, que insacivel nas mulheres 254. As mulheres eram criadas e educadas para serem boas esposas e para isso precisavam ter conhecimento dos processos de cura e da medicina familiar, mas no deveriam se aprofundar. Uma linha muito tnue separava esse conhecimento do que se entendia por bruxaria.
As mulheres eram vistas como bodes expiatrios de todas as falhas e males humanos. Mesmo os poetas que cantavam o amor,
251
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formao da famlia brasileira sob o regime da economia patriarcal. 35. ed. Rio de Janeiro/ So Paulo: Record, 1999, p. 226. 252 RICHARDS, Jeffrey. Op. Cit. P. 82. 253 A imagem de bruxa que conhecemos uma mulher feia, velha, assustadora, m e rabugenta foi divulgada primeiramente pelos Irmos Grimm, em seus contos, por volta da primeira metade so sculo XIX. Esse esteritipo, durante o medievo, no era diferente e caracterizava-se tambm por mulheres de aparncia desagradvel ou com alguma deficincia fsica, idosas ou ainda mulheres mentalmente perturbadas. NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. Bruxaria e histria: as prticas mgica no Ocidente cristo. So Paulo: EDUSC, 2004. 254 KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Op. cit. p. 116.
87
muitas vezes cercavam esse amor de sofrimento e morte, chegando concluso de que o amor e a mulher eram perigosos para o homem 255.
Ser mulher na Idade Mdia podia ser muito perigoso. Os suspeitos de praticar bruxaria eram geralmente mulheres. Qualquer pessoa podia ser denunciada ao Tribunal da Inquisio . Os acusados ficavam detidos e eram considerados culpados at comprovar a sua inocncia. De acordo com Kramer e Sprenger, inquisidores dominicanos, os provveis bruxos no podiam ser setenciados morte sem confessar a sua relao com o diabo. De acordo com o manual de inquisidores, a busca de evidncias que comprometessem os acusados ou da confisso da prtica da bruxaria legitimava o uso de procedimentos de tortura, tais como:
raspar os plos de todo o corpo em busca de marcas do diabo, que podiam ser verrugas ou sardas; perfura o da lngua; imers o em gua quente; tortura em rodas; perfura o do corpo da vtima com agulhas, na busca de uma parte indolor do corpo, parte esta que teria sido tocada pelo diabo; surras violentas; estupros com objetos cortantes; decapita o dos sei os 256.
Os acusados assinavam as confisses, previamente forjadas pelos inquisidores, depois de torturados. Aqueles que confessavam tinham direito uma morte mais misericordiosa, eram queimados depois de estrangulados; j aqueles que insistiam na sua inocncia, eram queimados vivos. A anlise do contexto histrico da Idade Mdia, permite entender que tambm eram consideradas bruxas as mulheres que exerciam seus conhecimentos sobre ervas para ajudar na cura de enfermidades, as mdicas por natureza, e nessa categoria ainda entram as parteiras, as enfermeiras e as suas assistentes. Para a pesquisadora Rosngela Angelin,
essas mulheres eram, muitas vezes, a nica possibilidade de atendimento mdico para mulheres e pessoas pobres. Elas foram por um longo perodo mdicas sem ttulo. Aprendiam o ofcio umas com as outras e passavam esse conhecimento para suas filhas, vizinhas e amigas.257
255
MURARO, Rose Marie. A mulher no terceiro milnio: Rosa dos Tempos, Rio de Janeiro, 1993.p.
52.
256 257
KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Idem. ANGELIN, Rosngela. A caa as bruxas: uma interpretao feminista. In: Revista Cons Cincia. So Paulo. Volume 1, nmero 7, pg. 296 - 299. Maro, 2006. ISSN: 1809-8436.
88
Segundo os pais da igreja, a prtica da bruxaria est diretamente relacionada prostituio, mas uma prostituio diferente, com os seres do oculto, comprometendo a alma, o esprito. Trata-se de uma prostituio aos demnios, um meio mstico pelo qual se conseguem poderes ou vantagens dos filhos das trevas (Tl 5,5). Em virtude do sexo ser um dos principais elos de ligao entre as bruxas e o demnio, a Santa Inquisio Catlica passou a perseguir massivamente as mulheres principalmente aquelas mais bonitas e atraentes, pois eram consideradas uma verdadeira tentao do demnio e os homossexuais. Esses dois grupos eram considerados potenciais parceiros sexuais do Diabo, pois seriam mais fracos espiritualmente e mais suscetveis s tentaes diablicas, atravs dos prazeres da carne. A teologia medieval unnime em encarar as bruxas como companheiras do Diabo, muitas vezes chamando-as tambm de prostitutas do Diabo ou amantes do Demnio. Filhos de feitiaria (.) no sois vs que procurais a ardncia do sexo? () que tiravas partidos dos teus amantes, com os quais gostavas de ter relaes; e (.) multiplicavas as tuas prostituies
258
conhecidas: fornicao, (.) libertinagem, idolatria, feitiaria 259. No sculo XVIII, teve fim o perodo de perseguio aos pagos, aos hereges e sobretudo a ca a s bruxas. A ltima fogueira foi acesa na Suia, em 1782. No entanto, o fim do combate s heresias no significou o fechamento dos Tribunais da Santa Inquisio, os quais permaneceram em atividade at meados da primeira metade do sculo XX. Na segunda metade do sculo XVIII, A Igreja Catlica viu seus dogmas serem colocados em xeque. Os questionamentos e as dvidas acerca do discurso da Igreja aumentaram, e as pessoas que compartilhavam desses questionamentos contestadores da doutrina catlica oficial eram chamadas de hereges. A palavra herege tem sua etimologia no grego hairesis e no latim haeresis, significando doutrina contrria ao que foi definido pela Igreja Catlica em matria de f. Em se tratando do conceito propriamente dito de heresia, foi aceito o proposto por Marie-Dominique Chenu, de que herege o que escolheu, o que isolou de uma verdade global uma verdade parcial, e em seguida se obstinou na escolha 260.
258 259
Isaias 57: 3-5 Glatas 5: 19-21 260 Telogo medievalista do sculo XIX.
89
A heresia significa uma ruptura com o discurso dominante e ao mesmo tempo a aceitao de uma nova mensagem. Ela contagiosa e em determinadas situaes prolifera facilmente na sociedade. Por isso, representa um grande perigo para a ordem estabelecida, a qual est sempre preocupada em preservar a estrutura social e tradicional. Assim como os hereges eram punidos na Idade Mdia, presencia-se, tambm, no cordel A moa que virou cobra 261, de Joo Jos da Silva, a heresia seria castigada. O livrinho conta a histria de uma moa incrdula que colocava em xeque os preceitos catlicos e as crenas alheias. A personagem central profana o Padre Ccero, afronta me e zomba da f de um romeiro. Como resultado, a sua transgresso aos princpios religiosos cristos punida com uma metamorfose e depois de sentenciada, ela recebe o perdo. Na primeira estrofe, percebe-se a concepo crist teocntrica medieval, como fica claro nos versos: Leitores do Cear a 21 de janeiro deu-se um exemplo assombroso com a filha de um fazendeiro Jesus Cristo a castigou porque ela profanou do padre do Juazeiro
Nas estrofes seguintes, a moa inicia o seu discurso profanador a um devoto de Padre Ccero que pela terceira vez ia para Juazeiro: Diga l ao Padre Ccero que me mande uma fartura de mosquito e murioca percevejo e tanajura teu padrinho dando o conforto de lagarta e gafanhoto eu sei que a safra segura Diga a ele que me mande Dez tons de dor de barriga Mil e quinhentos de sarna
261
SILVA, Joo Jos da. A moa que virou cobra. Recife: do autor, s/d.
90
Dois e duzentos de intriga Vai escrito no caderno 50 mil ris de inverno Quarenta mil de bexiga Na chuva basta mandar Pingo de um tamanho de um pote D trovo que queime pedra Desabe aude e serrote S digo que corre risco se vir pedra de corisco Maior do que um garrote Como todo bom devoto, ele aconselha a moa a pedir perdo pelas blasfmias que disse. Mas esse alerta a fez insultar mais ainda o Padre Ccero: A moa disse: eu no creio Naquele catimbozeiro Que fazendo bruxaria Seduziu o mundo inteiro Lanando a humanidade Por meio de falsidade Conquistou o Juazeiro Ela foi tambm advertida pela me sobre o erro que estava cometendo. E sem dar importncia as palavras de sua me, desafia o Padre Ccero. Vejamos: S creio no Padre Ccero Quando ele me castigar Fizer eu cair das pernas meus braos se descolar criar ponta e nascer dentes correr virada em serpente mordendo quem encontrar. [...] Mame deixe de leseira No mantenha isso na mente Eu s creio em Padre Ccero Se ele fizer de repente Daqui pro fim de janeiro Eu visitar Juazeiro Virada numa serpente
91
Depois desse episdio, a moa no foi mais vista. Tiveram notcia de que surgiu, desde ento, uma cobra enorme na fazenda. O surgimento deste animal pode ser associado prtica da peregrinao penitencial pblica, muito comum na Idade Mdia como castigo para os pecadores, como ressalta Elizabeth Dias Martins 262. No Nordeste brasileiro, a literatura de cordel tambm tem uma funo ldica. Numa poca em que os meios de comunicao eram pouco desenvolvidos, o cordel passou a funcionar como um recurso para a disseminao das ideias religiosas, um instrumento da Igreja para a divulgao de sua doutrina, seriam os folhetos um meio, talvez mais significativo, ento para divulgao religiosa 263. Por trs das histrias h, quase sempre, um ensinamento. No livrinho em questo, a mensagem trata do respeito que se deve ter pelas tradies religiosas que no Nordeste so muito fortes. E de acordo com Elizabeth Dias Martins,
A natureza exemplar da histria referida pelo poeta nas estrofes iniciais nos remete ao teatro medieval de moralidade. Assim sendo, no podemos deixar de aludir a dois autos, o Auto da Alma e o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, cuja moral crist gira em torno da mesma ideia do cordel analisado, a de que o cristo deve estar sempre atento e vigilante quanto aos seus atos, pois o dia do juzo pode estar prestes. O evangelho de So Mateus est referto de passagens nesse sentido.264
Os narradores e/ ou adaptadores dessas histrias mudam, alteram, acrescentam e suprimem alguns detalhes, mas o mote o mesmo: registrar o exemplo da metamorfose como castigo para o desrespeito s tradies religiosas. No mbito da oralidade, episdios dessa natureza so recorrentes. Rgis Lopes registrou em seus estudos que histrias assim:
Alm de obedecerem a uma pedagogia do medo que reafirma o poder do sagrado e converte o incrdulo, essas narrativas nos falam, metaforicamente, sobre a diferena entre o homem e os animais. Nesse sentido, a essncia do homem seria a sua devoo. Sem o sagrado, seria um animal. O infiel estaria no plano dos inferiores por no possuir religio.265
A herana medieval presente na literatura de cordel vai alm da estrutura da forma potica. Ela pode ser identificada, tambm, no contedo dos versos dos poetas
262 263
MARTINS, Elizabeth Dias. Op. cit. Literatura Popular em Verso. Estudos Tomo I. Rio de Janeiro: Ministrio da Educao e Cultura Fundao Casa de Rui Barbosa, 1973. p. 60. 264 MARTINS, Elizabeth Dias. Idem. 265 RAMOS, Francisco Rgis Lopes Ramos. O verbo encantado A construo do Pe. Ccero no imaginrio dos devotos. Iju: Editora Uniju, 1998. p. 63.
92
populares, os quais apresentam os costumes e as crenas de um povo numa constante ratificao dos costumes medievais em nossa cultura de modo cristalizado. Com efeito, a populao brasileira formou-se a partir da fuso de trs etnias: a amerndia, a africana e a lusitana
266
266
PONTES, Roberto. Poesia Insubmissa Afrobrasilusa. Rio de Janeiro Fortaleza. Oficina do AutorEUFC, 1999. Pg. 163.
93
A misoginia ou a recusa ao feminino no foi uma inveno da Igreja Medieval, mas uma apropriao de ideias e modos de ser que j circulavam no mundo antigo. Segundo as definies da Psicologia e da Antropologia, a Misoginia a forma de expresso do dio classificada como Sexismo 269, que acaba sendo confundida e igualada ao Machismo e ao Androcentrismo. Mas, a definio de Misoginia se baseia no dio a mulher e a do Machismo e do Androcentrismo se baseiam na crena da inferioridade feminina, apenas. No entanto, a misoginia nada mais do que a nascente, a base do que vir a seguir, isto , todas as perseguies e violncias sofridas pelas mulheres do medievo. Grande parte dos filsofos abordavam em suas obras a temtica das mulheres na sociedade, mas quase todos tinham um discurso inteiramente misgino.
... a mulher no deve contrariar sua natureza, as que insistem em se dedicar cincia, deveriam usar uma barba, pois esta expressaria mais visivelmente a profundidade que elas buscam.270 Ainsi toute lducation des femmes doit tre relative aux hommes. Leur plaire, leur tre utiles, se faire aimer & honorer deux, les lever jeunes, les soigner grands, les conseiller, les consoler, leur rendre la vie agrable & douce : voil les devoirs des femmes dans tous les temps, & ce quon doit leur apprendre ds leur enfance.271
267
AQUINO, Santo Toms de. Suma Teolgica. VOL II. So Paulo,Edies Loiola Edio bilngue. 2002. 1.92.2 p 611. 268 Ibidem loc. Cit. 269 BARTKY, Sandra Lee. Femininity and domination: Studies in the Phenomenology of Oppression, Routledge, 1990, p. 45 270 KANT. Immanuel. Fundamentos da Metafsica dos Costumes.So Paulo: Martin Claret. P.119 271 ROUSSEAU, J.J. 1969. mile ou de leducation. v.V. Edio de 1782. Disponvel em http://fr.wikisource.org/wiki/%C3%89mile,_ou_De_l%E2%80%99%C3%A9ducation/%C3%89dition_17 82/Livre_IV Acesso dia 24 de maio. Assim, toda educao das mulheres deve ter os homens como referncia. Agradar-lhes, ser-lhes til, fazer-se amada e honrada por eles, cuidar deles quando pequenos, tratar deles quando grandes, aconselh-los, consol-los, tornar suas vidas agradveis e doces: Eis, ento, o dever das mulheres em todos os tempos e o que deve ser aprendido desde a infncia. Traduo por Kall Lyws Sales.
94
As mulheres so criadas para a propagao da espcie, e toda sua vocao se concentra neste ponto.272.
Dentre os mais expoentes escritores da histria, destacamos Pitgoras, filsofo da natureza que procurava explicar o princpio de todas as coisas. Segundo ele, existe um princpio bom que gerou a ordem, a luz e o homem; h um princpio mau que gerou o caos, as trevas e a mulher273. A ideia da mulher como ser defeituoso e gnese de muitos males foi um legado dos gregos. Muitos filsofos justificam essa afirmao, principalmente Aristteles, que foi um dos primeiros a se dedicar ao estudo da relao homem - mulher. Ao reler os clssicos gregos, fica ntida a superioridade da mente sobre o corpo, o que significa uma racionalizao da cultura ocidental para justificar a superioridade do homem sobre a mulher. Neste sentido, o discurso filosfico da misoginia assinalado por expresses que ratificam sua inferioridade, reforando-a como algo natural. O sculo XIII encontrou na filosofia aristotlica endossamento para as justificativas do comportamento feminino. O pensamento de Aristteles disseminou-se no Ocidente medieval como uma validao autorizada que veio respaldar os argumentos clericais. Segundo Aristteles, a mulher era um homem incompleto, portanto imperfeito274. Por sua forma e compleio era mais adequado atribuir a ela debilidade e imperfeio. Como eram privadas de razo, eram incapazes de governar seus desejos e suas paixes em virtude de sua fragilidade, inconstncia e passionalidade. So Toms de Aquino foi um dos principais fomentadores da concepo de misoginia. Entre os argumentos apresentados por ele estava o da problemtica da criao da mulher, para ele curiosa, pois no faria sentido a presena de um ser to imperfeito no ato original da criao. Ainda de acordo com os seus preceitos, apenas a procriao justificaria a existncia da mulher, embora questionasse a necessidade desse ser inferior para uma tarefa to importante. Se equiparada ao homem, a mulher mostrava-se excessivamente mida, mole e inconstante. No tinha opinio prpria e nem equilbrio emocional. Para Gil de Roma, adepto do pensamento aristotlico, A alma segue a constituio do corpo, as mulheres
272 273
SCHOPENHAUER. Fragmentos da Vida e Obra de Schopenhauer. P. 35-36. Apud. LOI. Os Pensadores. So Paulo, Abril Cultural (algumas reedies pela Nova cultural) 274 ARISTTELES apud LOI, Isidoro. Op. cit. P.12
95
tm um corpo mole e instvel, as mulheres so instveis e volveis na vontade e no desejo275. As mulheres, leigas ou religiosas, em virtude de sua curiosidade presente desde a infncia, deveriam ser mantida sob controle, sob vigilncia, sob a tutela masculina. O discurso clerical sugere um novo termo: custdia 276. Atravs dele os homens podiam determinar regras e condutas. Estavam autorizados a vigi-las a fim de salv-las. O marido poderia castigar a esposa como lhe aprouvesse para corrigir seus desvios, inclusive com a aprovao da legislao cannica, a qual aprovava a prtica dos espancamentos277. Os religiosos determinaram que os pais, os maridos e todos os homens da casa reprimissem-nas e vigiassem-nas, mas que tambm as protegessem e preservassem, uma vez que elas configuram-se como um mal que parece inevitvel278. As camponesas eram obrigadas a uma vida penosa de trabalho domstico e no campo, as nobres deveriam ser confinadas a um recinto determinado, o quarto, onde deveriam fiar, pois mant-las no cio poderia aumentar o seu desejo de pecar 279. Muitos discursos orientam as mulheres para que se cuidem para poderem salvar sua alma. Alm disso, os clrigos percebem um pudor e medo entre elas que as fazem recear e fugir do mal. Nas explicaes medievais, tal pudor devia-se a uma ddiva Divina dada por Deus aps seu pecado original, ou, a uma natural consequncia de sua imperfeita compleio. Para manterem-nas longe do pecado, pregadores e moralistas exortam para que sejam tmidas, inseguras em suas relaes sociais, amedrontadas diante de qualquer homem, ficarem rubras diante de possveis abordagens ou perguntas e a se comportarem como animais selvagens, se houver necessidade. Segundo os clrigos, a vergonha e a timidez deveriam mant-las afastadas do convvio social, mantendo-se protegidas no espao domstico ou do mosteiro. Durante o matrimnio, cerimnia em que se transmite a tutela feminina das mos do pai para as do marido, a jovem de boa conduta demonstrava-se assustada, com medo, insegura e insocivel280. Para o marido, mostrava-se ignorante e selvagem diante
275
SANTOS, Luiz Felipe. A Mulher como representao do Bem e do Mal n A Demanda do Santo Graal e nA Divina Comdia. Dissertao (Mestrado em Literatura Portuguesa) Faculdade de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2007. 276 Idem. 277 RICHARDS:1993, P. 36. 278 DUBY, Georges . Helosa, Isolda e outras damas no sculo XII. So Paulo: Cia. das Letras, 1995. 279 Idem.. 280 Idem.
96
de sua aproximao. No entanto, os clrigos advertem os homens: toda a mulher, por mais tmida e reservada que seja, em virtude de sua inconstncia, torna-se excessiva, irrequieta e com o comportamento questionvel. Ao mesmo tempo que luta contra o prazer, pode busc-lo com a mesma animalidade em virtude de seus impulsos irracionais e incontrolveis. Diante disso, as mulheres no podiam manter-se sozinhas, sem a tutela masculina. Deviam ser submissas ao homem, Igreja e s leis de Deus. Graas a uma providncia Divina, as mulheres j nasceram submetidas autoridade de seus pais, de seus maridos e de seus conselheiros espirituais. Em sua tica281, bem como na Poltica282, Aristteles, que inspirou profundamente os clrigos e moralistas medievais, afirma que as mulheres, pela compleio, obedecem e se submetem aos homens que, por natureza, so superiores, fortes, racionais, virtuosos e que devem comandar e tomar todas as decises. Na ordem natural, o macho est acima da fmea 283. O marido ordena e a esposa executa de forma correta e pronta as ordens recebidas. Para completar suas teorias, os aristotlicos utilizam passagens bblicas como um trecho de Corntios, na carta de So Paulo, que diz: Deveis saber que a cabea de cada homem Cristo e a cabea de cada mulher o homem e a cabea de Cristo Deus284, reconhecendo a submisso feminina, pois a mulher fora criada a partir da costela de Ado. Acreditar que a mulher fosse dotada de uma alma como o homem era uma controvrsia que perpassou e inquietou as mentalidades medievais.
Recorrendo aos principais pensadores da tradio crist, destacamos Santo Agostinho. Nascido em 354 d.C, Agostinho foi uma das figuras mais influentes da Igreja antiga285. Seu modo de encarar a sexualidade, a lascvia ou concupiscncia, as mulheres e a corporificao constituiu uma importante dimenso das doutrinas
281 282
ARISTTELES. tica a Nicmacos. Traduo de Mrio Gama Kury. 4ed. Braslia: UNB, 2001. ARISTTELES. Poltica. Traduo de Roberto Leal Ferreira. 3 ed. So Paulo: Martins Fontes, 2006. 283 ARISTTELES. Op. cit. p. 33. 284 I Corntios 11:03 285 AGOSTINHO, Santo. Confisses. Coleo a obra prima de cada autor. Traduo de J. Oliveira. So Paulo: Martin Claret, 2002.
97
crists. Agostinho acreditava que levar uma vida de continncia o aproximaria da vontade de Deus. Nas Confisses, ele escreve sobre a necessidade de controlar o desejo sexual do seguinte modo:
Vs [Deus] nos mandais controlar nossos desejos corporais... verdadeiramente pela continncia que nos identificamos e readquirimos aquela unidade do eu que perdemos ao nos desintegrarmos na busca de variados prazeres. Porque um homem Vos ama muito menos se, alm de Vs, ama tambm algo mais que no ama por Vossa causa286.
A forma como Agostinho trata a sexualidade encontra-se intimamente ligada ao seu entendimento da queda do homem, ou seja, o desejo sexual uma das formas mais gerais do estado do desejar a que o nosso filsofo chama concupiscncia ou lascvia. Na sua obra A Cidade de Deus287, Agostinho afirma que a concupiscncia a palavra genrica para todos os desejos288. Para ele, os prazeres de todos os sentidos, paladar, audio, olfato e viso, prontamente expem a alma aos perigos da tentao e do desejo. Desta maneira, o perigo em satisfazer nossos sentidos est em que somos levados a procurar tais prazeres por si mesmos, e no por apreci-los como criao de Deus. Portanto, o estado geral do desejo, seja ele por satisfao sexual, dinheiro ou poder, por sua vez o castigo que o homem carrega por desobedincia a Deus. Diante disso, Agostinho expe seu pensamento sobre as mulheres afirmando que estas aparecem, sobretudo, como objetos que incitam o desejo dos homens. O vcio no corpo das mulheres, segundo ele, reside no coito carnal e no parto. Desta forma, ele condena o corpo provocativo e procriativo da mulher por ser uma fonte de transgresso para o homem289. Para Agostinho, a sexualidade ideal despida de todo sentimento e desejo, e se justifica exclusivamente para procriao. Assim, o corpo da mulher na concepo agostiniana , exclusivamente, um corpo para ser usado para dar a luz. Portanto, as
286 287
Idem AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus, Traduo: Oscar Paes Leme. Coleo a obra prima de cada autor. So Paulo: Martin Claret, 2004 288 Segundo o dicionrio Houaiss o termo do agostinismo significa luxria carnal, desejo libidinoso e no tomismo medieval, desejo de prazer gerado por uma realidade fsica, material. 289 AGOSTINHO, idem.
98
mulheres existem para os homens. Ele apresenta o homem como feito imagem e semelhana de Deus porque ele tem o poder da razo e do entendimento. Com suas palavras
E assim como na sua alma do homem h duas foras, uma que dominante porque delibera e outra que obedece porque est sujeita a tal diretriz, do mesmo modo, no sentido fsico, a mulher foi feita para o homem. Em sua mente e em sua inteligncia racional ela possui uma natureza igual do homem, mas no sexo ela est fisicamente sujeita a ele do mesmo modo que nossos impulsos naturais precisam ser submetidos ao poder julgador da mente, a fim de que as aes a que eles levem possam ser inspiradas pelos princpios da boa conduta. 290
Faz-se necessrio destacar que apesar de admitir a racionalidade das mulheres, Agostinho a identifica, simbolicamente, com os usos instrumentais inferiores da razo, ou seja, as mulheres continuam associadas com as funes da alma que significam a dimenso da existncia humana que no feita imagem de Deus. Em outras palavras, embora Agostinho reconhea a inteligncia racional das mulheres, a dominao do masculino sobre o feminino permanece numa dimenso natural da existncia humana, que s superada com a ressurreio, isto , na ordem da salvao. Quando a carne feminina purificada da corrupo, a mulher pode atingir a equivalncia fsica com os homens, que lhes prometida espiritualmente. Segundo Agostinho, o corpo dos homens reflete o elemento superior da alma, ao passo que o corpo das mulheres, no. Consequentemente, somente as mulheres passam por uma ciso entre sua alma racional e sua existncia corporificada 291. Assim, a ressurreio da verdadeira natureza das mulheres anula a funo para quais elas foram criadas, ou seja, a essncia das mulheres, no olhar de Agostinho, contrria realidade de sua existncia encarnada. Em suma, na linguagem agostiniana, no s as mulheres so subordinadas aos homens na existncia terrestre como so peculiarmente divididas em si mesmas entre a funo terrestre e sua natureza. Nesse sentido, o pensamento de Agostinho revela uma tendncia androcntrica ao identificar a funo das mulheres com a procriao, a qual, segundo ele, se acha inevitavelmente impregnada de pecado. Desde que a mulher simboliza o elemento da existncia que joga o homem na luxria, este pode identificar-se com o aspecto
290 291
Ibidem. p. 33. Schott, Robin May. Eros e os processos cognitivos: uma crtica da objetividade em filosofia . Traduo Nathanael C. Caixeiro.Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Ventos, 1996.
99
superior da racionalidade. A atribuio de naturezas diferentes a masculino e feminino por Agostinho fornece uma argumentao terica para a dominncia dos homens sobre as mulheres. Embora a mulher seja tambm racional, o corpo da mulher aparece como representao simblica da irracionalidade, ao passo corpo do homem surge como smbolo da racionalidade. Assim, Agostinho constri a identidade sexual dos homens na forma de dominao e a identidade das mulheres na forma de submisso. Embora para Agostinho tanto homens quanto mulheres possuam almas racionais, os relacionamentos sociais entre os sexos so determinados no pela igualdade racional, mas pela desigualdade sexual. Enquanto Agostinho se ocupava do controle da vontade sobre o corpo, Toms de Aquino procurava o controle exercido pela razo. que o
Ao se tratar do pensamento cristo, no passa despercebida a contribuio de Santo Toms de Aquino. Seu pensamento prenuncia o surgimento do racionalismo e o interesse pelas cincias naturais no mundo cristo. Na Suma Teolgica
292
apresenta a questo sobre a hiptese de a mulher ter sido feita na primeira produo das coisas. Assim, para Toms de Aquino, a existncia da mulher problemtica porque, como diz Aristteles, ela um macho imperfeito, porque ela est naturalmente subjugada ao homem e tambm porque ela o ensejo do pecado. Tudo o que Deus cria bom, segundo os escritos. E nt o , torna-se enigma para Toms um ser to imperfeito como a mulher ser criada no ato original da concepo da humanidade. O papel fundamental da criao da mulher explicado por Toms de Aquino:
Era necessrio que a mulher fosse feita, como diz a Escritura, como auxiliar do homem; no, na verdade, como companheira em outros trabalhos, como dizem alguns, dado que o homem pode ser mais eficientemente ajudado por outro homem em outros trabalhos. 293
Santo Toms de Aquino. Suma Teolgica. VOL II. So Paulo,Edies Loiola Edio bilngue. 2002. 1.92.1 p 611. 293 Idem.
100
justifica a sua criao. Entretanto, ele estende a questo, indagando por que a biologia humana precisa da existncia do sexo feminino inferior. Afinal, observa ele, existem animais sem qualquer diferenciao sexual. Sem a diferenciao sexual,
presumivelmente, as capacidades gerativas no ficariam limitadas a simplesmente um dos aspectos da vida da espcie, ou seja, da mulher, estariam em toda parte, no dando ocasio a esta atividade mais nobre. Como a mulher foi criada para a funo reprodutiva, na opinio de Toms de Aquino, ela se torna virtualmente identificada com essa atividade gerativa. Assim, j que a mulher identificada com a reproduo, o homem, segundo nosso filsofo, fica em condies de identificar-se principalmente com os trabalhos mais nobres da razo. A fora ativa encontrada no sexo masculino contribui no apenas a gerao, mas pode ser orientada para a operao vital da razo. Toms de Aquino repete as ideias de Aristteles sobre as relaes sexuais quando assimila razo o princpio ativo do homem. Como percebvel nas obras clssicas, Aristteles associava o masculino com a fora ativa e o feminino com a passiva na obra da gerao. Para Aristteles, esses princpios biolgicos tm correlatos mentais: a atividade, ou forma exprime-se atravs da autodeterminao racional; a passividade, ou matria torna-se manifesta atravs das emoes. Santo Toms de Aquino refora essa identificao do masculino com as operaes da razo quando afirma que o homem serve como o princpio da existncia humana. Ele escreve:
Assim como Deus o princpio de todo o universo, tambm o primeiro homem, semelhana de Deus, foi o princpio de toda a raa humana. Se o homem o princpio da raa humana, as operaes intelectuais devem estar contidas nesse primeiro princpio da raa humana. Por isso, na narrativa do Gnesis, o homem torna-se identificado com o intelecto de um modo que no necessrio para a mulher, que foi tirada desse primeiro homem294.
Portanto, as principais ideias sobre a mulher, a qual na concepo de Toms de Aquino julgada menos apta que o homem para as funes mais nobres da razo, como tambm, biologicamente, inferior ao homem, pois a produo da mulher decorre de um defeito na fora ativa que o homem produz. Assim, o papel
294
101
indispensvel da mulher na reproduo tambm um sinal de sua natureza deficiente. A mulher necessria para atender ao fim da natureza em geral, mas bastarda como indivduo. Mesmo sabendo que as contribuies do macho e da fmea so necessrias para a perpetuao das espcies, as mulheres so vistas por Toms de Aquino como defeituosas quando comparadas pelo princpio da atividade que caracteriza os homens. Santo Toms de Aquino tambm escreve: Nas mulheres os humores so mais abundantes, razo pela qual elas so mais propensas a serem levadas por suas concupiscncias295. Em ltima anlise, como as mulheres tendem a ser governadas mais por suas paixes do que os homens, elas tm maior responsabilidade pelo pecado do adultrio. Toms de Aquino escreve:
A mulher adltera peca mais gravemente que o marido adltero... A mulher adltera peca mais gravemente contra o casamento porque seu pecado torna incerto o parentesco da prole. 296
Santo Toms de Aquino imputa exclusivamente s mulheres essa "leso ao casamento", no entanto, se esquece de considerar que o adultrio do homem tambm torna a paternidade incerta. Mas, Toms de Aquino insiste em afirmar que a funo da mulher no casamento serve no apenas para reproduzir a espcie em geral, mas para reproduzir a prole para determinado homem. Em ltima instncia, a odiosidade do ato de adultrio da mulher consiste em sua violao lei do marido no casamento. Toms de Aquino justifica sua opinio de que a mulher naturalmente subordinada ao homem associando o masculino com as qualidades intelectuais, ativas, dominantes, e o feminino com as qualidades luxuriosas, passivas, subordinadas. No entanto, reconhece que a mulher tem tambm uma alma racional, pois a natureza intelectual em si assexuada. Vale ressaltar que apesar de Toms de Aquino reconhecer a alma racional feminina, deixa claro que o exerccio prtico da razo no o mesmo para ambos os sexos, ou seja, a natureza sexual das mulheres atua contra o funcionamento do princpio racional, que opera com mais xito nos
295 296
102
homens. Em ltima anlise, ao propor o domnio da razo sobre as paixes como condio necessria para o conhecimento e ao afirmar a posio asctica de que as mulheres so menos capazes de racionalidade que os homens, Toms de Aquino, implicitamente aprova as relaes hierrquicas entre os sexos como o requisito para o florescimento da razo. Apesar das reformas da instituio do monasticismo, e apesar de uma reavaliao do casamento, os pensadores da Reforma Protestante mantiveram o repdio do corpo luxurioso, to pronunciado em Santo Agostinho e Santo Toms de Aquino. Os filsofos de maior destaque para a Igreja da poca foram ilustres personalidades, que atravs de seus estudos e trabalhos relacionados sociedade e religio, aliceraram o que hoje se compreende como misoginia. Seus tratados foram to significativos para a histria ocidental que mesmo nas colnias tropicais suas filosofias reverberam unssonas na literatura popular em verso contempornea.
3.1. A MISOGINIA NO CORDEL CONTEMPORNEO: O DISCURSO E AS QUESTES MISGINAS A mulher deixa o marido Porque j tarimbada Tem fama de sapato E no quer perder parada s vezes sem haver briga Deixa o marido e se amiga Com uma mulher casada297. A literatura de cordel uma das maiores representaes da etnografia e da cultura popular. No Brasil, desenvolveu-se, principalmente, no Nordeste, contando as sagas e a sabedoria do povo sertanejo. Essa literatura tem a sua origem na Pennsula Ibrica, mas chegou at ns por volta do sculo XVII, trazida pelos portugueses. A origem do nome est relacionada
297
LEITE, Costa Jos. Hoje em toda parte tem corno, bicha e sapato. Recife: Editora Coqueiro, s/d.
103
maneira como esses folhetos eram comercializados em Portugal, pendurados em cordes (l chamados cordis). A sociedade brasileira marcada por uma estrutura patriarcal, concebida imagem da famlia nuclear burguesa, tendo o homem como provedor e a mulher como responsvel pelos afazeres domsticos, pelo cuidado com os filhos, etc. Assim, por muito tempo, mulher foi reservado apenas um espao: o do lar. Dentre os temas mais polmicos na literatura de cordel a mulher tem sido instrumento de destaque. Na viso dos cordelistas pesquisados, manifestam em diversas formas, destacando sempre a sensualidade, a promiscuidade, a sexualidade, astcia, coragem e bravura.
O cordel espao privilegiado para o sertanejo exprimir suas crenas, sua f integral. Muitos folhetos se baseiam num sentimento religioso; aparecem Deus, Nossa Senhora, Jesus e os santos, de Roma ou de Juazeiro. Satans tambm onipresente, em oposio ao Divino. A tudo isso misturam-se supersties, feitiarias e crendices latentes no imaginrio popular. Os animais intercambiam essas crenas, ora metamorfoseados, ora como agentes da fantasia, da prosa e do verso. Contudo, o desfecho moral e reconfortante, j que a f, a virtude e os bons hbitos so sempre recompensados. Misturando o real e o fantstico, conseguem realizar, muitas vezes inconscientemente, uma leitura palimpsstica da Bblia, das fabulas e dos bestirios da Idade Mdia, modernizando-os e adaptando-os ao contexto em que vivem. As manifestaes na arte, nas danas, nas cerimnias, nas canes, na poesia, no so simples distraes, mas representam necessidades, desejos e anseios de um povo.298
Os cordelistas inspiram-se em acontecimentos reais e tambm em boatos, procurando sempre inserir em seus textos a presena marcante no s do humor e da ironia, mas tambm do drama e da tragdia.
A literatura oral a prpria mentalidade da massa coletiva, foliona, religiosa, crdula, inimiga do parasitismo fradesco e aristocrtico, da ignorncia bestial, da luxria e simonia vulgares.299
Atravs dos textos de cordel, podem ser evidenciados elementos que esto no imaginrio coletivo, que so partilhados pelos poetas e pelos leitores. Os textos apesar da autoria, falam na voz do poeta aquilo que sentido pela maioria. O Nordeste brasileiro foi palco para o desenvolvimento dessa literatura popular. A matria-prima para a fomentao dessa arte o povo, os costumes, as crenas e a cultura foi nele
298
CASCUDO Luis da Cmara: Literatura Oral no Brasil. 3 ed. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1984, 299 CASCUDO, Luis Cmara. Geografia dos mitos brasileiros. 2a ed. Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio Editora, 1976, 480.
104
facilmente encontrada, como bem explicam Diegues Jnior e Nunes Batista, respectivamente. Aquele valorizando o cultural e este o social.
Tudo conduziu para o Nordeste se tornar o ambiente ideal em que surgiria forte, atraente, vasta, a literatura de cordel. Em primeiro lugar, as condies tnicas: o encontro do portugus e do africano escravo ali se fez de maneira mais estvel, contnua, no esporadicamente. Houve tempo suficiente para a fuso ou absoro de influncias. Depois, o prprio ambiente social oferecia condies que propiciavam o surgimento dessa forma de comunicao literria, a difuso da poesia popular atravs de cantorias em grupo e de forma escrita.300 No Nordeste, por condies sociais e culturais peculiares, foi possvel o surgimento da literatura de cordel, da maneira como se tornou hoje em dia, caracterstica da prpria fisionomia da regio. Fatores de formao social contriburam para isso: a organizao da sociedade patriarcal; o surgimento de manifestaes messinicas; o aparecimento de bandos de cangaceiros ou bandidos; as secas peridicas provocando desequilbrios econmicos e sociais; as lutas de famlias que deram oportunidade, entre outros fatores, para que se verificasse o surgimento de grupos de cantadores como instrumento do pensamento coletivo, das manifestaes da memria popular.301
Dessa forma, procura-se investigar como a mulher vista segundo a tica dos cordelistas pesquisados, descortinando o discurso moralizador e machista que traz no bojo a literatura de cordel, bem como discutir os padres de comportamento que qualificam pejorativamente figura feminina. Os padres de comportamento estigmatizam certas posies atribudas s mulheres, como se pode perceber nos textos. Trata-se, portanto, de um relato das condies femininas para a sociedade e diante do masculino que tenta apresentar atravs do cordel a viso herdada da cultura medieval da figura feminina. A mulher acaba por ser percebida como objeto sexual deixando de lado, frequentemente, seus sentimentos e sua condio materna. O homem dirige-se mulher em diversas modalidades: lamento, amor, raiva. So estrofes que exemplificam o papel que a mulher exerce na sociedade e na vida pessoal de muitos homens, transportadas para as histrias da literatura de cordel, o poeta no inventa posies para mulher, apenas retrata um esteretipo que herdado ao longo dos sculos.
300
LITERATURA POPULAR EM VERSOS: ESTUDOS. TOMO I. Rio de Janeiro: MEC/Fundao Casa Rui Barbosa, 1973. p.13. 301 BATISTA, Sebastio Nunes. Antologia da literatura de cordel. So Paulo: Fundao Jos Augusto, 1997.
105
Os padres de comportamento estigmatizam certas posies atribudas as mulheres, como se pode perceber alguns textos. Trata-se, portanto, de um relato das condies femininas para a sociedade e diante do masculino que tenta apresentar atravs do cordel a viso generalizada da figura feminina. A mulher acaba por ser percebida como objeto sexual deixando de lado seus sentimentos e sua condio materna. O que ressalta a o preconceito, o machismo e a misoginia herdados das geraes passadas. Assim, aps a leitura de vrios cordis cuja temtica do feminino prevalecia, foram escolhidos aqueles que mais visivelmente refletiam os nveis de depreciao feminina, segundo os cones da beleza, da submisso, da seduo e da astcia. A ttulo de amostragem, e para ratificar o que foi exposto at aqui, apresentaremos a anlise de quatro cordis. So eles: A Desventura de um Corno Ganancioso, O Corno Vingativo, O Paraibano que foi corno cinco vezes e A Ganncia do chifrudo. Esses cordis, em geral, vo contar histrias e casos de homens que foram trados sempre homens trados e nunca homens que traem outro argumento que ratifica o carter misgino desses livrinhos de feira, pois est implcita a ideia de que s a mulher erra e adultera, retomando a mentalidade medieva. A voz predominante nestes livrinhos masculina, mas tambm temos o registro de uma voz misgina feminina. No enredo d A Desventura de um Corno Ganancioso, a antagonista descrita da seguinte maneira: Tinha ele quinze anos Quando casou com Analha Mulher bonita e pintosa Porm bastante canalha Essa com um ms de casada Botou-lhe a primeira galha. NO Corno Vingativo, o vocabulrio tambm denigre a mulher: O seu nome era Fernando E a sua esposa Lorena Uma tremenda pilantra Dessas de pele morena Que s lhe dava transtorno Fazia o besta de corno Feito uma gota serena.
106
J em O Paraibano que foi corno cinco vezes, nossa anti-herona aparece da seguinte forma: Margarida era uma quenga bandida e trambiqueira embora muito bonita bastante interesseira foi a pior quenga que deu nas ruas da Cajazeira. NA Ganncia do chifrudo, cuja autoria de Maria Goldelivie, a mulher
Era muito interesseira, Vaidosa e doidivana S pensava em sacanagem, Festa, gaita e carraspana, Mas o marido, coitado No tinha fogo nem grana. Percebe, atravs desse cordel, alm de elementos misginos difundidos na cultura, sua autoria feminina, indicando que misoginia est to arraigada cultura popular que independe de gnero: homens e mulheres a dissipam. a escolha lexical de suma relevncia, atravs da observao de adjetivos e de substantivos empregados na descrio da figura feminina, percebe-se seu majoritrio carter pejorativo, que tem como objetivo denegrir a imagem da mulher e coloc-la em posio inferior ao homem, seguindo (propositadamente ou no) o modelo medieval. Os termos escolhidos pelos cordelistas sempre atacam, agressivamente, a moral e o carter das personagens femininas de forma direta, sem uso de figuras de linguagem. Essa falta de subjetividade pode implicar numa viso realista, e por que no dizer at naturalista, dessas histrias, visto que o cordelista registra os causos tal como aconteceram, sem preocupar-se em atenuar as transgresses da mulher. O emprego de termos e expresses de cunho depreciativo deixa claro que o a postura contrria mulher presente no cordel sofreu influncia direta do imaginrio medieval na sua composio, retomando a essncia preconceituosa contra a mulher, to disseminada na Idade Mdia pelas autoridades religiosas. No contexto social das narrativas supracitadas, a situao da mulher sempre de desprestgio. Ela tratada pelo marido como objeto, como mercadoria. A partir do
107
momento que sua traio vem tona, seu par comea a tirar proveito disso, desenvolvendo com ela uma relao de trabalho, uma espcie de agenciamento, como ocorre no cordel A ganncia do chifrudo: Corno no! Fao negcio, / vendo carne para viver302. No medievo, a situao da mulher no era diferente. Ela era como uma propriedade, usada, muitas vezes, pelo homem para obteno de vantagens, a exemplo dos casamentos que objetivavam o aumento de terras. A primeira explicao dada pela mulher para justificar a traio a dificuldade financeira. Nos cordis A ganncia do chifrudo e A desventura de um corno ganancioso, o fator econmico passa ento, em certos casos, a ser o elemento causador do adultrio, principalmente se levarmos em considerao que os personagens so de uma classe econmica menos favorecida. Em outra situao, nO corno vingativo e nO paraibano que foi corno cinco vezes, enquanto o homem trabalha, a mulher fica em casa. Ela no economicamente ativa porque no faz parte da sociedade, estando margem dela, assim como na Idade Mdia, de onde essa mentalidade remanesce. Esta viso da inferioridade da mulher era uniformemente divulgada nos tratados teolgicos, mdicos e cientficos, e ningum a questionava 303. Das narrativas analisadas, em nenhuma delas a mulher trabalha. Talvez para ratificar a situao submissa e dependente dela em relao ao marido, ou ainda, porque culturalmente convencionou-se que o homem quem deve prover e manter a casa e a famlia. No medievo, a situao da mulher, mesmo aquelas de famlia nobre, na sociedade poca da Idade Mdia, era de inferioridade e de submisso. Dentro das famlias, essas mulheres viviam margem. As solteiras ou vivas no tinham direito herana e nem a sucesso. E ser submissa nesse perodo no era tarefa fcil. De acordo com Rivair Macedo,
Ser dona-de-casa de uma famlia senhorial, numa poca como a Idade Mdia, em que a economia domstica era bastante ampla, exigia muita habilidade e senso de organizao. O suprimento de alimentos e vestimentas da vasta famlia estava sob sua responsabilidade. Tinha de administrar o trabalho dos domsticos, acompanhar passo a passo a fabricao dos tecidos, controlar e supervisionar o abastecimento 304.
302 303
GOLDELIVIE, Maria. A ganncia do chifrudo. Fortaleza: 2004, p. 9 RICHARDS, Jeffrey. Op. cit. P. 36. 304 MACEDO, Rivair Jos. A mulher na Idade Mdia. So Paulo: Contexto, 2002. Pg. 27.
108
Vale ressaltar que, neste momento, assim como em outros perodos histricos, havia diferena entre as atividades desenvolvidas pela mulher de acordo com sua classe social. A mulher da nobreza era encarregada de organizar e dirigir as atividades do castelo e das fazendas a ele vinculadas 305. Quanto mulher camponesa, esta no ficava s em casa, ela trabalhava diariamente a terra e fazia os servios domsticos tanto na sua casa quanto nas fazendas senhoriais e nas casas de alguns mercadores. Quanto vida e o cotidiano destas pouco se sabe. Elas praticamente no aparecem nos documentos do perodo. Contudo, o seu trabalho era importante para a economia rural. Ela deveria acompanhar o marido e participar de todas as atividades realizadas no domnio senhorial onde trabalhava. A grande diferena entre a mulher do cordel e a mulher medieval aqui nos referimos camponesa, pois da nobre a nossa era muito distinta que o trabalho desta j fazia parte da estrutura social e econmica, enquanto o daquela era circunstancial e, pode-se at dizer, ilcito, uma vez que se posicionava contra os princpios religiosos, morais e sociais. Esse discurso contrrio mulher, assim como o lugar de desprestgio ocupado pela mulher na sociedade, apresenta-se como resduo da Idade Mdia na literatura de cordel contempornea. Tal verificao foi possvel devido ao processo de hibridao cultural entre Portugal e Brasil, que resultou na formao de uma mentalidade misgina, na qual se cristalizaram os remanescentes preconceituosos concernentes mulher tornando possvel a identificao de elementos medievais misginos lexicogrficos e sociais nos cordis A Desventura de um Corno Ganancioso, O Corno Vingativo, O Paraibano que foi corno cinco vezes e A Ganncia do chifrudo, configurando a ocorrncia da residualidade, a qual permite aproximar temas e tempos. Desse modo, a figura feminina, sob a tica do clero medieval, configura-se como elemento indispensvel para compreendermos a razo pela qual a mulher , ainda hoje, quase sempre, marginalizada nas narrativas dos cordis, sob uma perspectiva de concupiscncia. Acontece que ela traz consigo o peso do pecado original cometido por Ado e Eva poca da criao. A histria da cultura ocidental se consolidou segundo a tradio do saber masculino, do patriarcado. Em funo disso, comum encontrar entre
305
Idem.
109
as obras da literatura de cordel imagens de mulheres estereotipadas, segundo o modelo da sociedade patriarcal, caracterizadas pela luxria e pelo pecado. No tocante mulher, alm das crticas, o discurso vem acompanhado de forte ironia quando aponta a mulher que sai sozinha s ruas, que frequenta festas, ou at mesmo as que trabalham para sustentar a famlia. A exemplo disso, temos as jogralesas, as amas de leite, as tecedeiras, as mulheres velhas, as prostitutas, que, entre outras, tornam-se o tema principal de observaes e crticas.
3.2. A VIRAGO NA LITERATURA DE CORDEL Mulher um bicho traquino Que nos causa inquietao Com seu olhar sedutor Conquista at o leo Vamos nos precaver Dessa obra da tentao.306
A postura misgina se afirma na cultura e no pensamento ocidental, encontrando na literatura um veculo de disseminao ideolgica eficiente, em funo de sua circulao social, que reproduz e divulga padres de comportamento, formas de relaes sociais e ideais que promovem um modelo de mulher submissa e passiva a ser seguido. Percebe-se, na produo da literatura de cordel, o predomnio de um discurso masculino crtico, acusador e condenatrio. Segundo Brando, "... o poeta cordelista , antes de tudo, um esprito eminentemente religioso; se no, profundamente impregnado de religiosidade. Regra geral, o poeta popular nordestino catlico ortodoxo"307. Nos fatos do mundo do cordel, o juzo de valores , portanto, essencialmente religioso e de cunho moral. A marginalizao da mulher no que diz respeito sabedoria popular tambm acontece. Nas quadras populares, nas legendas de caminho, nos ditos, provrbios principalmente nos mais antigos - a mulher continua sendo vtima da maldade do
306 307
MEDEIROS, Elinaldo Gomes de. Boquinha de Mel. O Corno cultura popular. Natal ,2007. P 3. BRANDO, Adelino. Crime e castigo no cordel. Rio de Janeiro: Presena, 1991. p. 35.
110
homem que sempre procura diminuir seu valor, preferindo, na maioria das vezes, a mulher/corpo mulher/esprito. A sociedade nordestina , em grande parte, patriarcal e machista em suas razes culturais. Essa mentalidade oriunda da sociedade judaico-crist primitiva, retomada na Idade Mdia, perodo no qual se difundiu a ideia do homem como ser superior e perfeito, criado pelo prprio Deus sua imagem e semelhana, portanto, reto, bom e justo. O patriarcalismo refletido e pode ser percebido na produo da literatura popular em verso, quando os cordelistas constroem suas narrativas a partir de elementos sociais, culturais e religiosos, os quais remontam, geralmente, ao pensamento da Idade Mdia e ao machismo.
Variadas so as formas da presena masculina na literatura de cordel. Parecenos preponderante a apresentao do homem como o heri, aventuroso e valente, seja se analisarmos os personagens inspirados directamente da histria medieval, muito cantada pelos poetas populares, seja se estudarmos o heri nordestino, o vaqueiro, corajoso que enfrenta todos os perigos para ficar com a sua bem amada, em geral, filha do fazendeiro rico e importante308.
Num universo predominantemente masculino, um aspecto que chama a ateno o homem ser vtima do prprio homem o sexo forte, o cabra macho, aquele que lava a honra com sangue , sendo rechaado e ridicularizado, em enredos misginos, ao aparecer imbecilizado, fraco e manipulado, como um pobre-tipo, na classificao de Tenrio-Pontes, tomando como recorte os cordis que versam sobre traio, bem diferentes daquele esteretipo que o inconsciente coletivo e popular conhece.
(...) So seres ridicularizados e menosprezados ao mximo pela literatura popular e mesmo pelos escritores eruditos mais prximos do cordel, como o caso de Ariano Suassuna com seu Auto da Compadecida. (...) Trata-se da figura muito popular do marido enganado muito a gosto dos maios populares pelo ridculo e pelas hilariantes situaes em que os mesmos so descritos ou colocados309.
Nesses cordis, ou eles so enganados ou esto conscientes da traio e compartilham do benefcio do dinheiro que elas ganham da traio, mostrando-se submissos no s mulher, mas tambm cultura e conjuntura social em que esto inseridos, ou ainda a esse novo discurso que surge paralelo ao oficial, principalmente em histrias cujo alvo aparente da crtica seria exclusivamente a mulher.
308 309
TENRIO-PONTES, Walter. Machismo na literatura de cordel. Lisboa: edies Rolim, s/d. p. 27. Idem. p.102.
111
A mulher aparece no cordel, com mais frequncia, sob duas perspectivas: divinizadas em cordis hagiogrficos bem como enaltecidas em cordis histricos. ou maculadas nas narrativas que tem como tema traio ou adultrio. A anlise dos cordis foi feita sob o vis da Teoria da Residualidade, que diz respeito identificao de elementos culturais de uma determinada poca em outra. A partir da verificao de uma mentalidade patriarcal em fontes primrias como a Bblia e do estudo de obras que tratam sobre o sexismo e a traio, observou-se a remanescncia de substratos mentais acerca do pensamento machista em contextos misginos, vistos com mais gravidade, nestes casos, por se tratar da crtica do cordelista ao comportamento do homem. Assim, a imagem que se faz hoje da mulher foi construda a partir de uma mentalidade formada principalmente de resduos da Idade Mdia que se cristalizaram em narrativas que redundam em trazer o lado negativo da mulher . Como se perceber na anlise das estrofes seguintes.
Uma mulher traioeira 310 Na Literatura de Cordel, a mulher adltera sempre considerada maldita. O simbolismo da serpente, que permeia as narrativas, de modo geral, envolve a mstica do instinto feminino, segundo o princpio da capacidade feminina de seduzir e depois causar destruio. Em Uma mulher traioeira h em torno da narrativa uma oscilao dicotmica que, por um lado, exalta a mulher, definindo-a enquanto ser nobre e divino e, por outro, apresenta-lhe como perigosa. As atribulaes da personagem aparecem nas expresses na mais tenra idade, doze ou quatorze anos, nomeando a mulher como um ser frgil, delicado, no perodo em que vivencia a menoridade. No campo da inocncia, discorrem-se a ingenuidade, a santidade ou divindade, que convergem para o campo da idade.
310
PONTUAL, Jos Pedro. Uma mulher traioeira. Editor: Edson Pinto da Silva. s.d.
112
Nesse tempo ela contava Com 12 anos de idade Um anjo da divindade Nem mesmo ela sabia De sua infelicidade Existe, entretanto, uma linha tnue que separa as duas faces de Helena, as quais o tempo se encarrega de definir. ele que faz a deposio da figura casta que se faz na substituio pelo lado da mulher ameaadora ou perigosa, afeita aos prazeres passageiros, carnais e materiais. Os versos seguintes remetem ao narcisismo da personagem Helena:
E assim continuava O seu viver de orgia Confiada na beleza Nada em casa fazia Julgando que a beleza De seu corpo no saia O sentimento da parte da sociedade sempre de reprovao. A estrofe a seguir aponta claramente a indignao coletiva frente ao adultrio da mulher:
Todos diziam igual A infeliz desgraada Fazer uma coisa desta Sendo to bem casada A expresso bem casada empregada para enfatizar a posio financeira e estvel da mulher, em funo do matrimnio. A nfase da reprovao do adultrio feminino est relacionada ao ponto de vista material, que, em ltima instncia, recai sobre a moral. Na sociedade patriarcal nordestina, muito se tem legitimado por meio de discurso a imagem de que o homem, para ser macho deve ser forte, enrgico, grosseiro. A imagem de homem sentimental banida quase por completo do perfil desses homens. Toda vez que o masculino foge ao perfil assinalado, tratando de modo amvel a sua companheira, recebe sanes negativas da parte da sociedade, que o v como algum fraco e sem autoridade.
113
No imaginrio social e coletivo, o homem que fiel esposa, quando ele no lhe pe as rdeas, fica na condio de vtima de uma mulher aproveitadora e sdica. Desse modo, a relao ideal entre um casal apenas ocorre quando o homem quem exerce a autoridade, sendo quem tem poderes nicos e exclusivos em virtude de seu sexo. Nesse contexto, a traio de Helena ao marido a prova certa de que ela virou o juzo, ou seja, que ela enlouqueceu. E vale dizer que o desequilbrio mental de Helena representa o fracasso do marido:
Com mais de 6 memes Ela virou o juzo Arrumou outro amante Sem pensar em prejuzo Sem o marido saber Desse grande escandalizo O termo corno, no aumentativo corno, ressalta a caracterstica desfavorvel do marido trado. A inteno do cordelista demonstrar, em tom satrico e pitoresco, o descaso que possui a mulher ao trair e furtar o prprio marido e tambm a desmoralizao do esposo diante da situao:
Ela mais o tal Vadinho Na maior devassido Dizendo a ele eu deixei Dormindo s o corno O verso dormindo s o corno confere o tom de passividade do homem frente ao adultrio da esposa. a forma verbal dormindo quem projeta a ideia de inrcia do homem. A estrofe a seguir expressa essa ideia claramente.
O velho pai dela deu-lhe Uma surra de tabica E disse desaparea Voc comigo no fica Deram uma surra em Vadinho Que quase o malandro estica
114
O verbo esticar est na acepo de falecer, perder a vida. O Dicionrio lingustico literrio de termos regionais/populares - Norte/Nordeste311 registra a acepo de esticar a canela, entre outras correlatas, usadas no sentido de falecer. O vocbulo tabica312 apresentado no mesmo dicionrio como brasileirismo chibata feita com a haste do vegetal de hastes delgadas e flexveis, ou vara de cip de que se servem os almocraves para tanger as bestas. importante ressaltar que a surra representa, no contexto da sociedade patriarcal, a mxima expresso de poder e o absoluto controle dos pais sobre os filhos, muitas vezes do marido para com a prpria esposa. pertinente lembrar, tambm, que no contexto da sociedade patriarcal nordestina, a educao dos filhos, filhas, dos escravos, enfim, de grupo subordinado ao membro da classe maior de poder, o patriarca, foi eminentemente exercida base de castigos. A deuza do cabar: a meritriz orgulhosa313
O meretrcio no cedeu perante a presso de cunho moral sexual das sociedades, nem desapareceu com as modificaes no perfil das relaes amorosas e sexuais dos ltimos tempos cabvel observar o papel sexual da prostituta em pocas passadas, quanto iniciao dos homens inexperientes no sexo e nos extravasamentos dos maridos insatisfeitos sexualmente no casamento. O fato de o meretrcio estar literalmente relacionado aos prazeres da carne e promiscuidade sexual, condenada pela Igreja, fez surgir uma srie de mitos e medos sobre a conduta e o desejo sexual feminino. No toa que a imagem da prostituta bela, que seduz o homem com a beleza de seu corpo e com a volpia desenfreada, esboada frequentemente por meio das trovas. Nos cordis, as mulheres belas frequentemente recebem o qualitativo deusa, usado para fazer referncia s mais bonitas e sedutoras. Esse qualitativo envolve uma variedade de matizes de sentido, traz tona elementos msticos como magia, natureza, sensualidade, fecundidade, para citar alguns.
311
PONTES, Maria das Neves de; MELLER, Vilson Brunnel. Dicionrio lingstico-literrio de termos regionais/populares (Norte/Nordeste). Joo Pessoa: Idia, 2003. 1 v. 312 PONTES, Maria das Neves de; MELLER, Vilson Brunnel. Op. cit. 313 SILVA, Joo Severo. A deuza do cabar: a meritriz orgulhosa. Joo Pessoa, 1985.
115
O designativo deusa do cabar, no texto em estudo, usado para enfatizar a capacidade de seduo da prostituta. A nfase nos atributos fsicos da personagem, que se faz presente desde o prprio codinome Deusa, fica impressa nos versos porque a sua beleza e por nenhuma era igualada: Por Deusa do Cabar Ela foi classificada Porque a sua beleza Por nenhuma era igualada Por isso entre as mulheres Era a mais desejada As expresses corpo esbelto, olhos negros, esttua de carne, a mais desejada, morena da pele fina, elegante menina, boniteza", por ser linda e atraente, muito cobiada, mimosa fada e mulher formosa dirigem-se ao aspecto da seduo feminina, retratada na figura de Deusa, a meretriz. O termo morena remete sensualidade da mulher negra, essa mais ardente e mais concupiscente no sexo 314 do que a branca. A ideia de que as prostitutas destoam com o padro ideal de mulher na sociedade, porque so dadas luxria e lascvia e a vaidade, impressa a seguir: Rosalina em Salvador Entregou-se a vaidade Deu expanso ao seu genio Saciou sua vontade Fazendo vida noturna Nas Boites da cidade O termo boite, no portugus brasileiro boate, originrio do francs bote. Esse termo entrou no portugus duas vezes, com acepes distintas e diferentes adaptaes prosdicas. A acepo clssica do portugus bueta (sc. XV), boceta, caixa e, mais modernamente (sc. XX) estabelecimento comercial, que funciona noite, e em geral, consta de pista de dana e palco de atraes artsticas 315. Em
FREYRE, Gilberto. Op. cit. p. 349. HOLANDA, Aurlio Buarque de. Novo Aurlio sc. XXI: o dicionrio da Lngua Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
116
pequenas cidades de interior, o correlato de boate cabar , tambm de origem francesa316. Interessante observar o espao em que se insere a prostituta - quando sai rua procura de um cliente, para depois voltar novamente ao espao fechado do prostbulo. Nesse contexto, a rua equivale ao prprio cabar, em termos de ausncia de normas e de preceitos morais. Nesse contexto, a prostituta tem a oportunidade nica de salvao, no amor incondicional de seu amado, assemelhando-se a tantas personagens de contos fantsticos e maravilhosos, que contam com a figura do maravilhoso prncipe para salv-las. Mas Deusa, diferentemente das personagens infantis, no se sente feliz nos braos do amado e nem submissa a ele: Eu fiz a maior ansneira Em me casar to moderna Pra viver prisioneira Prefiro viver liberta Como em tempo de solteira A personagem, por expor o prprio corpo, oferecendo-o como mercadoria e por querer voltar vida de meretriz, punida. A infrao feminina apontada, ento, enquanto heresia espiritual, juntamente com a noo do sobrenatural malfico que tem origem na mulher. O rebaixamento da personagem observado atravs do discurso em primeira pessoa, nas expresses de splica pelo perdo a Deus. O apaziguamento espiritual assinala-se na oposio fundamental: pecado e misericrdia. A confisso dos pecados, alternativa posta no plano da piedade divina, aparece como possibilidade nica de salvao e libertao do esprito maligno: Nessa hora ajoelhou-se Pedindo perdo a Deus Dizendo Senhor perdoa Os grandes pecados meus As palavras apresentam-se as virtudes que granjeiam a salvao, tais como compaixo, perdo, redeno, arrependimento, splica e clemncia. No
316
CUNHA, Antnio Geraldo da. Dicionrio etimolgico nova fronteira da Lngua Portuguesa . 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
117
campo do sofrimento, inserem-se as palavras: aflio, dor, tristeza, pranto, infelicidade, padecimento, sofrimento, humilhao, que refletem o estado de desengano da prostituta Deusa, em relao doena que lhe aflige. O campo ganha mais expressividade em: faces banhadas em pranto de dores, lgrimas de amargura, noites tempestuosas, xagas to grengrenosas, como se pode ver a seguir: Outrora eu me jugava Uma rosa entre as rosas Hoje estou vendo meu corpo Em xagas to grengrenosas Que j no suporto mais As dores to espinhosas A carga emotiva do desespero da prostituta Deusa eleva-se nas colocaes um ente to infeliz, a minha desgraa, no suporto mais pelas sargetas dormir, exposta ao relento, sem ter o que me cobrir e prostrada nesse cho duro. O campo do desespero e do sofrimento completa-se com o campo da culpa inserem-se os delitos, a responsabilidade da mulher pela prpria desgraa. A minha desgraa fiz Abandonei meu esposo S porque tinha inveja Do viver de meretriz A morte anunciada atravs das expresses substantivas e verbais: meus ltimos dias de vida, encerram os dias seus, meu fim vai ser muito triste. Tambm h um nmero de metforas que sentenciam a morte: minha matria ta se transformando em pus, ruda dos tapurus, no bico dos urubus, encerraram os dias seus, ltimos fios de vida. A morte pode ser interpretada como o destino das mulheres pecadoras e infiis, ou melhor, como o desfecho da misria feminina: Vejo que a minha matria Ta se transformando em pus Prostrada nesse cho duro Ruida dos tapurus Meu fim vai ser muito triste No bico dos urubus. Para o homem, a mulher da vida saudvel diferente da mulher da vida doente. O estgio de putrefao da carne, que significa a culminncia da doena, num
118
sentido metafrico, tambm a culminncia da ausncia do desejo masculino, no momento em que a mulher, no tendo mais um corpo pronto para servir, repudiada. Vale salientar que, no imaginrio popular, a mulher da vida aquela a que o mundo reserva s doenas contagiosas. Em situao anloga a de uma prostituta doente, a mulher que corresponde aos preceitos da sociedade, a mulher virtuosa, aquela que, em seu estado de doente, apenas uma enferma, digna de cuidados, exatamente o inverso daquela para quem a sociedade s devolve o desprezo. Por fim, a morte poderia ser entendida, como um alvio, no exatamente para a prostituta, mas para a sociedade e para o homem, que no se sente bem diante de uma mulher doente, decada. Quanto ao desprezo da prostituta, por parte do homem, significa, mais especificamente, que ele no mais a quer enquanto ser feminino. Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia 317
No texto em estudo, o destaque a beleza e a seduo feminina. Neste, foram listados os termos que caracterizam o modelo de mulher ideal, segundo a viso masculina. No campo da beleza e seduo, enumeram-se os atributos femininos, tais como a beleza, a doura, o calor e a ternura; esses constituem os principais prrequisitos para que uma mulher seja aceita do ponto de vista do poeta. A supervalorizao do conceito de mais beleza feminina est relacionada ao de mais saciedade do homem. Da, uma forte conotao entre os prazeres do corpo e o prazer dos alimentos. No item beleza, o perfil feminino, que objetiva o agrado do homem, corresponde a trs ingredientes fundamentais: no basta ser bela, a mulher tem que ser carinhosa, fogosa e gostosa. A estrofe abaixo serve de exemplo:
Beijo de mulher bonita Tem gosto de mascatel farinha de castanha Quando traada com mel
A impresso de saciedade sexual do homem fica subentendida nos vocbulos paz, amor, honra e amizade. As metforas fome de amor e preenche a
317
LEITE, Jos Costa. Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia. Recife. s.d.
119
necessidade deixam entrever a idia de semelhana do corpo feminino com o alim ento propriamente dito, capaz de saciar a fome de carinho, prazer, desejo, etc. Esse conjunto de sensaes insere-se no campo do desejo, o qual pode ser exemplificado atravs da estrofe a seguir: Beijo de mulher bonita Preenche a necessidade E a fome de amor Com toda sinceridade E o homem com ela sente Paz, amor, honra e amizade Os vocbulos fome e necessidade enfatizam o lado instintivo sexual masculino e machista, colocando a mulher como alimento capaz de saciar esse instinto, conforme foi dito. A pa lavra beijo inclui-se tanto no campo da sexualidade, enquanto carcia trocada entre os namorados ou amantes, quanto no campo da amizade, significando um ato comum de afeio ou cumprimento travado entre pessoas da mesma famlia ou com parentesco prximo. A ao de beijar amplamente inserida num contexto simblico, significando, num contexto de malcia e de suspeita, o sentido de traio - o beijo de Judas Iscariotes em Jesus, est inserido num contexto da traio e prenncio de morte logo aps ter trado a seu Mestre, o apstolo se suicida. Com efeito, a relao beijo/ traio parece provir da. No Nordeste, ainda muito comum entre o povo dizer-se cheiro, no lugar de beijo, como observa Cascudo 318. Essa palavra revestida de afetividade, principalmente na fala das mes nordestinas, na troca de carcias dirigidas aos filhos menores, as quais abusam da expresso D um cheirinho na mame!. Mas, na verdade, o cheiro insere-se num contexto ambivalente, - usado, ou para registrar um maior teor de afetividade, imprimindo uma atmosfera de pureza, de carcia angelical, ou pode apresentar um fundo de malcia e refletir uma essncia voluptuosa. Nesse caso, importante escrever que dificilmente a frase dar um cheiro no cangote, poderia ser inserida no primeiro contexto. Verifica-se uma dupla ideia na expresso mulher boa, presente no texto, dado que essa expresso tanto serve para designar, literalmente, uma mulher bondosa ou
318
CASCUDO, Lus da Cmara. Dicionrio do folclore brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1963.
120
virtuosa, quanto imprime, maliciosamente, a conotao de mulher gostosa, boazuda, de fsico provocante319. No existe nada melhor Do que uma mulher boa Bonita e bem carinhosa Agrada a qualquer pessoa Quem beija ela sente Amor, carinho e quentura
A combinao sinestsica entre a beleza feminina e os sentidos, - viso, olfato e paladar, tem como efeito, reiterar a ideia do teso, do prazer masculino. Assim, a sequencia de vocbulos amor, carinho e quentura insere- se no campo da volpia feminina. De modo inverso, a mulher feia negativamente posta no plano da recusa e da insatisfao masculina. Portanto, as comparaes pejorativas, que remetem a esse tipo de mulher traduzem sensaes desagradveis, tais como dor, incmodo, medo e choro, de forma preconceituosa. Essas sensaes esto expressas nos trechos a seguir: Carinho de mulher feia murro, coice e patada Empurro, pota-p Belisco, soco e dentada Carinho de mulher feia Eu nem quero nem de graa At de longe faz medo Os versos apresentados refletem uma analogia entre mulher feia e alguns animais. Os vocbulos coice e patada, baleia e macaco so mais depreciativos, usados para reforar as semelhanas existentes entre os humanos e os outros seres. O designativo macaco, quando usado para referir -se ao sexo feminino, quase sempre com o objetivo de insultar a negra. Carinho de mulher feia Alm de singelo fraco Se parece uma baleia Cada olho um buraco E o bafo da boca dela Tem catinga de macaco
319
121
[...] Beijo de mulher feia Tem catinga de monturo Tem gosto de caf frio [...] O verbete macaca320 registrado como mulher que est sempre a reclamar de tudo. O sentido do verbete traduz claramente o comportamento agressivo do homem sertanejo com relao mulher. As expresses catinga de macaco, catinga de monturo e bafo so usadas, pejorativamente, com a finalidade de atingir o negro. A aluso aos termos em relao ao beijo da mulher feia aparece como simples pretexto para depreciar a negra, tecendo um paralelo entre ela e o macaco, tanto do ponto de vista da aparncia fsica, quanto do odor. Essa produo de sentido fica mais evidente pela organizao do campo da raa, cujos semas mais evidentes so monturo e caf. Enfim, o texto pretende mostrar que a mulher aprazvel na concepo do homem, enquanto dotada de atributos fsicos, quando sua nica funo utilizar o corpo para agrad-lo. Por isso, a constante vaidade da mulher com o corpo, com o cheiro e com todos os artifcios necessrios para instrument-lo a essa funo, so, nesse contexto, vistos como positivos. Outro ponto que no pode deixar de ser analisado, mesmo na superfcie, diz respeito aos ttulos dos cordis, mesmo quando no abordam traio ou adultrio, trazem nas suas capas chamadas sugestivas e ambguas referentes mulher, as quais inferem significados e relaes pornogrficas e erticas, deixando seu comportamento em evidencia. Nos ttulos: A mulher da coisa grande321, a moa que foi vender o periquito em Pianc322, a mulher que deu tabaco na presena do marido323, a
320
NONATO, Raimundo. Calepino potiguar: gria norte-riograndense. Mossor: Fundao Guimares Duque, 1980. 321 LEITE, Jos da Costa. A mulher da coisa grande. Pernambuco: Editora Coqueiro. s/d. 322 LEITE, Jos da Costa. A moa que foi vender o periquito em Pianc. Pernambuco: Editora Coqueiro. s/d. 323 LEITE, Jos da Costa. A mulher que perdeu a bunda no estado da Bahia . Pernambuco: Editora Coqueiro. s/d.
122
mulher que perdeu a bunda no estado da Bahia324 tem-se exemplos desses jogos de palavras. A mulher da coisa grande, apesar de levar o leitor a interpretaes sexuais, o cordel traz, apenas, a histria de Zefa que era grande e s gostava de comprar objetos grandes. Assim como nesse cordel, os outros tm nos ttulos elementos que podem levar a um entendimento ertico, quando na verdade, apenas uma estratgia do poeta de chamar a ateno do leitor. Como se percebeu nesses cordis, o ponto elementar da descrio feminina, como j exposto, gira em torno de elementos puramente sexuais, corporais: beleza, prostituio, cheiros. Vocabulrio, tema e elementos coadunam para reforar ou evidenciar a inferioridade da mulher que est relacionada, desde a antiguidade, com o episodio da criao do mundo respectivo a cada sociedade. Aps o exposto, fica claro que a estigmatizao da mulher como gnese do mal se configura como resduo da mentalidade crist medieval sedimentada na cultura popular nordestina. A anlise dos cordis constata a ocorrncia da Residualidade, pautada, sobretudo, na permanncia de preceitos morais, sociais e religiosos.
324
SILVA, Gonalo Ferreira da. A mulher que deu o tabaco na presena do marido. Rio de Janeiro: ABLC, 2006.
123
CONSIDERAES FINAIS
No transcorrer das anlises, tentou-se perfilar os diversos aspectos do cordel linguagem, temticas, personagens - que refletem o imaginrio do povo nordestino em relao mulher. Observaram-se pontos concernentes a crenas, tradies, religiosidade, sentimentos e costumes desse povo que, tomados em conjunto, serviram de apoio investigao dos elementos utilizados na descrio da mulher. O presente trabalho investigou de que maneira a Literatura de Cordel deixa entrever os aspectos da mentalidade relativos mulher, demonstrando sua ntima ligao com o medievo. Os trs modelos femininos difundidos na Idade Mdia, e encontrados nos textos dos cordelistas: Eva, Maria e Madalena deixam claro o papel civilizador e moralizante desempenhado pela Igreja Catlica ao longo de, aproximadamente, mil anos de formao da sociedade ocidental. A mulher, personificada em Eva, a pecadora, a tentadora, aliada de Satans e culpada pela Queda. Eva concentra em si todos os vcios que trazem smbolos ligados ao feminino, a exemplo da luxria, da gula, da sensualidade e da sexualidade. Esse estado de maldio foi amenizado com o culto Virgem Maria, que trouxe consigo a reconciliao entre a humanidade e Deus. Contudo, essa reconciliao ainda era restritiva, pois somente aqueles que vivessem na graa divina alcanariam salvao. Com Maria Madalena se estende a possibilidade de salvao a todos que tinham cado no erro, mas foram capazes de se arrepender. Para refrear o desejo e evitar o pecado, o homem, por ser considerado superior mulher desde o Gnesis bblico, eleito para exercer um controle sobre os instintos carnais. Por isso, preciso ressaltar que a hierarquia entre os sexos serviu para legitimar a supremacia masculina. Os papis sociais so definidos e a mulher mantida submissa ao homem, que deve exercer a tutela e o controle sobre ela. Como a Literatura de cordel tem a sua origem no romanceiro popular portugus, no Brasil, ela comeou a ser divulgada nos sculos XVI e XVII, trazida pelos colonos e a partir do sculo XIX, o romanceiro nordestino, num processo de absoro hbrida, torna-se independente, com caractersticas regionais e especficas, sem perder, claro, os elementos primordiais da Europa medieval, os quais configuram-se como a base das matizes morais, sociais e religiosas, vigentes no Nordeste.
124
A mulher como princpio do mal e a sua diabolizao so caractersticas que perduram ao longo dos sculos, pois so evidenciadas na literatura popular em verso. Percebe-se que alm da comunho com Portugal, houve a hibridao de inmeras mitologias, do fabulrio medieval e da etnografia brasileira, convergindo para a construo de um imaginrio hbrido e cristalizado da mulher como devoradora, palco dos demnios, dos seres malfazejos do sexo. As anlises dos cordis comprovam a cristalizao dos resduos mentais, atualizada pelo cordelista. Percebeu-se que no cordel, as mulheres praticamente ficaram margem da sociedade, marginalizadas, evidenciando caractersticas das sociedades patriarcais. Para o sistema patriarcal, ainda perceptvel na contemporaneidade, mediante a
desvalorizao, simblica ou no, da mulher, o prestgio masculino e sua identidade so reconhecidos e ainda supervalorizados. Os folhetos de literatura popular renem com excelncia o cerne da mentalidade eclesistica acerca da mulher e sua inferioridade. Atravs de seus discursos, justificam a misoginia retomando, refazendo e ampliando os discursos de personalidades da histria, que no universo do cordel, encontra-se presente atravs do vocabulrio, das associaes e da maneira como a mulher descrita pelo poeta popular. Centrando-se especificamente nas personagens dessas histrias, foi possvel observar como a misoginia est arraigada ao pensamento do cordelista, como resduos da mentalidade crist medieval, os quais se cristalizaram ao longo dos tempos, passados de gerao a gerao. Ele, ao produzir seu texto, ordinariamente, explicita ou implicitamente, inferioriza e desqualifica a mulher. Fazendo uso de palavras, expresses e associaes pornogrficas, pejorativas e ambguas, mostra que a literatura de cordel um veculo de transmisso de valores que na Idade Mdia serviu de base para a construo de arqutipos femininos para o imaginrio do Nordeste brasileiro. Vale salientar que restrito o nmero de mulheres cordelistas na literatura popular em verso e que as mulheres so, em decorrncia disso, mostradas, quase exclusivamente sob a perspectiva dos homens. Esse um dado relevante, que poderia incitar investigaes e outras pesquisas cuja abordagem dos textos cairia sobre a representao feminina nos Cordis escritos por mulheres. A literatura de cordel nordestina um exemplo da presena desse conjunto que constitui a Residualidade. Relembrando Gilmar de Carvalho, essa literatura vem
125
daquele fundo de estrias que foram sendo criadas e transmitidas de gerao a gerao, num processo de circularidade da cultura. Graas s hibridaes, ess as histrias adquiriram novas aparncias ao entrar em contato com a cultura do Nordeste. De acordo com os pressupostos tericos, os quais sedimentaram as anlises e que serviram de base constatao das hipteses dessa pesquisa, pde-se comprovar, a partir do corpus selecionado para a anlise, que a Literatura de Cordel retrata, por meio das expresses e marcas prprias da oralidade, o papel que cabe mulher na sociedade, fazendo uma leitura prpria daquilo que foi disseminado por clrigos da igreja. Nos folhetos, foram identificados aspectos da realidade nordestina, em face cultura e ao povo e, por fim, o vocabulrio que revelou, mais do que os aspectos formais da lngua, o modo como a mulher percebida e tratada na sociedade atravs do discurso: ainda maligna, sedutora e perigosa. Quando se debate a respeito do caminho do discurso que diz respeito mulher nas representaes sociais do feminino pelo cristianismo e da fala de mulheres que se encontram em situaes destinadas a elas casamento, procriao, submisso confirma-se que h uma herana misgina na vida da mulher presente no cordel, o que naturaliza essas representaes. Atravs do cordel, esta herana sempre redunda em apontar a mulher como portadora do mal, exigindo-lhe para sua salvao, o sacrifcio na vida domstica, a resignao, a obedincia e a submisso ao poder masculino, naturalizando tambm a culpa feminina e a responsabilidade para a mulher da preservao da vida familiar. Ensinamentos, carregados de significados misginos, permanecem nessas obras literrias nas quais a religio exerce extrema fora, e acabam se situando na vida social enquanto um disseminador de ideias antifeministas e da reproduo dos significados da opresso contra a mulher. Essas consideraes, baseadas na teoria da residualidade, examinaram a influncia disseminadora da fisiologia de Aristteles em alguns dos seus seguidores, os quais se tornaram pilares fundamentais da tradio antifeminista medieval, no s no campo da filosofia religiosa (Santo Anselmo e So Toms de Aquino), mas tambm no interessante domnio do conhecimento etimolgico, tal qual expresso, de forma mpar, nas Etymologiae, de Santo Isidoro de Sevilha. Assim, o fisiologismo de Aristteles e o etimologismo de Santo Isidoro de Sevilha, ambos sintonizados em postulados que
126
definiram o antifeminismo tradicional, e essas so duas das muitas ideias fundadoras da convergncia de atitudes discriminadoras contra a mulher no pensamento e na cultura do homem ocidental. As diferenas entre a boa mulher, na perspectiva medieval, e aquela perigosa e transgressora so apontadas pelos cordelistas, sendo perceptvel a conscincia do autor sobre a dualidade da representao feminina. No cordel A mulher de antigamente e a mulher de hoje em dia, o autor traa um panorama entre as respectivas imagens construdas, desde o medievo
contemporaneidade, apresentando as caractersticas e as qualidades e defeitos desta e daquela. O exame da mulher de antigamente como modelo ideal, em contraste com o comportamento da mulher de hoje em dia, mais ativa e, por isso, ameaadora da ordem e da moral, tem como fim exibir uma perspectiva de valorao, do ponto de vista patriarcal e conservador. Como se percebeu durante toda pesquisa, as representaes da mulher no escondem a supremacia dos ideais cristos sobre a boa mulher: a me, a rainha do lar, a esposa calada; e sobre a mulher m: a que tenta, a que rebola, a que fala. Representaes cristalizadas, pois o cordelista, quando descreve a mulher de hoje, apresenta os problemas sociais e econmicos provocados por ela, atualizando os substratos mentais, oriundos do medievo. Nos livrinhos A lenda da Iara ou Os mistrios da Me dgua, Saiona a mulher dos olhos de fogo e Os mistrios da pedra encantada ficou perceptvel a associao que os poetas fazem entre a mulher e elementos diablicos, sobretudo, a luxria e a seduo. Esses cordis, a ttulo de amostragem, foram escolhidos para evidenciar a presena de resduos luxuriantes e malignos relativos mulher, ratificando o pensamento misgino medieval de que o motivo da perdio dos homens de bem est na mulher. Neste caso, a residualidade foi detectada a partir de resduos remanescentes, sobretudo, do medievo, referentes metamorfose, luxuria e seduo, relacionados ao feminino como resultado da hibridao cultural entre Portugal e Brasil no construto de uma imagem negativa, perigosa e maligna da mulher. Os cordis que tm como tema as minorias medievais, segundo a concepo crist homossexuais, prostitutas, hereges, leprosos e judeus funcionaram como registro da perseguio que algumas dessas categorias ainda sofrem, mesmo que de
127
forma velada, pois a maioria dessas abordagens parte do humor para disseminar esses ideais, como o caso dO casamento do boiola. A narrativa A chegada da prostituta no cu registra a presena da moral crist na condenao dessa minoria, bem como a conscincia da Igreja acerca da importncia desta para o equilbrio social das cidades, como defendeu Santo Agostinho; ou ainda de maneira vulgar como Chica bananinha, a sapato barbuda de l da Paraba, no qual se percebe a existncia de substratos mentais no que se refere sodomia feminina vista na Idade Mdia como um pecado menor, em virtude da mulher no ser ativa na prtica sexual, se comparada ao mesmo pecado quando cometido por homens. Como tambm se encontram minorias medievais nos textos de cordis, o imaginrio popular permanece com inmeros elementos do medievo. Outro livrinho que comprovou essa afirmao foi o cordel intitulado A moa que virou cobra ao servir de exemplo para aqueles que desrespeitam as tradies religiosas, to fortes no Nordeste. A funo social do cordel tambm permitiu a abordagem dos leprosos de forma atualizada, fazendo um alerta para os sintomas e a cura dessa doena, uma atualizao, pois na Idade Mdia a hansenase, conhecida como lepra, tinha sua cura ignorada. A responsabilidade pelo fim do casamento, a ridicularizao do homem e o desrespeito Igreja e aos preceitos morais e sociais recaem sobre a mulher nas histrias que abordam a traio ou o adultrio O corno vingativo, O paraibano que foi corno cinco vezes, A desventura de um corno ganancioso e A ganncia do chifrudo. Em A deuza do cabar: a miritriz orgulhosa, Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia, e A mulher traioeira, a figura feminina apresentou trs concepes convergentes para um nico elemento, o corpo. Base nas representaes, o corpo da mulher mostrado como objeto de seduo, meretriz, objeto de desejo, mulher bonita, objeto de repulsa, mulher feia, e objeto de desvio, traidora. Viu-se que no s os textos, mas os ttulos tambm sugeriam o carter malvolo e sedutor das mulheres A mulher da coisa grande, a moa que foi vender o periquito em Pianc, a mulher que deu tabaco na presena do marido, a mulher que perdeu a bunda no estado da Bahia. Mesmo quando as narrativas no tinham no enredo uma temtica de cunho ertico, ainda assim, os ttulos remetiam a contextos ambguos.
128
O que se pode perceber durante a elaborao desse trabalho, fazendo jus ao que o seu ttulo props, que o pensamento medieval, em se tratando da mulher, primou-se exclusivamente por uma monoltica postura misgina. Portanto, foi a partir de ultrajantes pronunciamentos medievais de restrio mulher que resduos culturais se solidificaram e perduraram, sendo encontrados, ainda hoje, em textos literrios, literrios as representaes dessas atitudes. O resultado da pesquisa acerca da misoginia na literatura de cordel indica a remanescncia de resduos medievais no tocante s atitudes masculinas sobre mulher. O desenvolvimento desse pensamento sexista, cristalizado nas obras do poeta popular, levou em conta aspectos fsicos, sociais, culturais, morais e, sobretudo, religiosos. Esses elementos ratificam a misoginia a partir do discurso, do vocabulrio e das situaes que o cordelista cria para se referir mulher.
129
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
A BBLIA SAGRADA. So Paulo: Edies Paulinas, 2005. ABREU, Maria Zina Gonalves de. O Sagrado Feminino: da Pr-histria Idade Mdia. Lisboa: Edies Colibri, 2007. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. Traduo de Oscar Paes Leme. So Paulo: Martin Claret, 2004. Coleo a obra prima de cada autor. ____________. Confisses. Traduo de J. Oliveira. So Paulo: Martin Claret, 2002. Coleo a obra prima de cada autor. ANGELIN, Rosngela. A caa as bruxas: uma interpretao feminista. In: Revista Cons Cincia. So Paulo. Volume 1, nmero 7, 2006. AQUINO, Santo Toms. Suma Teolgica. VOL II. So Paulo,Edies Loiola Edio bilngue. 2002. ARAJO, Emanuel. A arte da seduo: sexualidade feminina na colnia In: DEL PRIORE, Mary. Histria das Mulheres no Brasil. 8 Edio. So Paulo: Contexto, 2006. _________________. O Teatro dos Vcios. Rio de Janeiro: Jos Olmpio, 1997. ARISTTELES. tica a Nicmacos. Traduo de Mrio Gama Kury. 4ed. Braslia: UNB, 2001. _____________. Poltica. Traduo de Roberto Leal Ferreira. 3 ed. So Paulo: Martins Fontes, 2006. AS GRANDES CIVILIZAES DESAPARECIDAS. Portugal: Edio de Seleces do Readers Digest, 1981. BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, Jos Luiz (Orgs). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: Em torno de Bakhtin. So Paulo: Edusp, 1994. (Coleo Ensaios de Cultura). BARTKY, Sandra Lee. Femininity and domination: Studies in the Phenomenology of Oppression, Routledge, 1990.
130
BATISTA, Sebastio Nunes. Antologia da literatura de cordel. So Paulo: Fundao Jos Augusto, 1997. BELLO, Jos Luiz de Paiva. O poder da religio na educao da mulher. Pedagogia em Foco. Rio de Janeiro, 2001. Disponvel em:
<http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/mulher02.htm>. Acesso em: 13 de janeiro de 2010. BLOCH, Howard R. Misoginia Medieval: e a inveno do amor romntico ocidental. Traduo de Cludia Moraes. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. BORGES, Jos Francisco. O casamento do boiola. Pernambuco: s/d. Bosswell, Jonh. Christianity, Social Tolerance, and Homosexuality (Cristianismo, tolerncia social e homossexualidade). Oxford, 1980. BRANDO, Adelino. Crime e castigo no cordel. Rio de Janeiro: Presena, 1991. BRANDO, Junito de Sousa. Mitologia Grega. Vol. I. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1998. BROWNE. Stanley George. Lepra na Bblia: estigma e realidade. Traduo de Vera Ellert Ochsenhofer. Viosa: Ultimato, 2003. BURKE, Peter. Histria e teoria social. So Paulo: editora UNESP, 2002. CAMINHA, Pero Vaz de. Carta de Pero Vaz de Caminha a El rei D. Manuel I sobre o achamento do Brasil. Coleo A obra prima de cada autor. So Paulo: Martin Claret, 2002. CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. Casamento e famlia em So Paulo Colonial. So Paulo: Paz e Terra, 2003. CANTAVELLA, Rosanna. Les Donnes medievals es mereixen estudis ms acurats i humils. In: Revista dhistria medieval publiaci editada pelo Departament dHistria Medieval de la universitat de Valncia. 1992. CARVALHO, Gilmar de. Vozes e letras in: Revista Cult, janeiro de 2002.
131
CASAGRANDE, Carla. A mulher sob custdia. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle. Histria das Mulheres no Ocidente. Volume 2 A Idade Mdia. Porto: Edies Afrontamento/So Paulo: Ebradil, 1995. CASCUDO Luis da Cmara: Literatura Oral no Brasil. 3 ed. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1984. _____________. Geografia dos mitos brasileiros. 2a ed. Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio Editora, 1976. _____________. Dicionrio do folclore brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1963. _____________. Dicionrio do Folclore Brasileiro. 9 Ed. Revista, atualizada e ilustrada. So Paulo: Global editora, 2000. CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionrio de smbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, nmeros) . Colaborao de Andr Barbault... [et al]. Traduo de Vera da Costa Silva... [et al]. 19 ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 2005. CUNHA, Antnio Geraldo da. Dicionrio etimolgico nova fronteira da Lngua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. CURI, Luciano Marcos. Defender os sos e consolar os Lzaros: lepra e isolamento no Brasil. Dissertao de Mestrado defendida na Universidade Federal de Uberlndia e 2002. DALARUN, Jacques. Olhares de clrigos. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle (dir.). Histria das Mulheres no Ocidente. Volume 2 A Idade Mdia. Porto: Edies Afrontamento/So Paulo: Ebradil, 1995. DEL PRIORE, Mary. Magia e medicina na colnia: o corpo feminino. In: DEL PRIORE, Mary. Histria das Mulheres no Brasil. 8 Edio. So Paulo: Contexto, 2006. ________________. Ao Sul do Corpo: Condio feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colnia. Rio de Janeiro, RJ: Jos Olmpio; Braslia, DF: Edunb, 1993.
132
DELUMEAU, Jean. Histria do medo no Ocidente - 1300-1800. Traduo de Maria Lcia Machado. So Paulo: Companhia das Letras, 1989. DOMNGUEZ, Luis Arturo. Encuentro con el folklore en Venezuela. Caracas: Editorial Kapelusz Venezolana, 1990. DUBY, Georges e PERROT, Michelle. Escrever a Histria das Mulheres. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle (dir.). Histria das Mulheres no Ocidente. Volume 2 A Idade Mdia. Porto: Edies Afrontamento/So Paulo: Ebradil. 1995. DUBY, George. Damas do sculo XII. So Paulo: Companhia das letras, 2001. ____________. Eva e os Padres. Lisboa, Editorial Teorema, 1996. ____________. Helosa, Isolda e outras damas do sculo XII. So Paulo: Companhia das Letras, 1995. ____________. A histria continua. Traduo de Clvis Marques. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. EURPEDES. Teatro de Eurpedes: Hiplito, Media, As troianas. Traduo direta do grego. Introduo e notas de Mrio da Gama Kury. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira; Braslia: INL, 1997. FRANCO Jnior, Hilrio. A Idade Mdia - nascimento do Ocidente. So Paulo: Brasiliense, 2005. FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: Formao da famlia brasileira sobre sob o regime da economia patriarcal. 34 Edio, Rio de Janeiro: Record, 1998. GASPAR, Maria Dulce. Garotas de programa Prostituio em Copacabana e identidade social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1988. GOLDELIVIE, Maria. A ganncia do chifrudo. Fortaleza: 2004. HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. So Paulo: Vrtice, 1990. _____________. Fragmentos da la Memoria Coletctiva. Seleo e traduo de Miguel Angel Aguilar. (texto em espanhol). Universidad Autnoma MeropolitanaIztapalapa. Licenciatura em Psicologia Social. Publicado originalmente em Revista de Cultura Psicolgica, Ao 1, Nmero 1, Mxico: UNAM- Faculdad de psicologia, 1991.
133
HILL, Jonathan. Histria do Cristianismo. Traduo de Rachel Kopit Cunha, Juliana A. Saad e Marcos Capano. So Paulo: Edies Rosari, 2008. HOLANDA, Aurlio Buarque de. Novo Aurlio sc. XXI: o dicionrio da Lngua Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. HOMERO. ODISSIA; Traduo de Odorico Mendes; Org. Antonio Medina Rodrigues; Prefcio de Haroldo de Campos. So Paulo: Ars Potica / EDUSP, 2000. KLAPISCH-ZUBER, Christiane. As normas do controle. In: Georges Duby e Michelle Perrot. Histria das mulheres: Idade Mdia. Porto: Edies Afrontamento, 1990. __________________. Masculino/feminino. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval II. Traduo de Eliane Magnani. So Paulo: EDUSC/ Imprensa Oficial do Estado, 2002. KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras Malleus Maleficarum. Traduo de Paulo Fres. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Ventos, 1991. LE GOFF, Jacques e TRUONG, Nicolas. Uma histria do corpo na Idade Mdia. Traduo de Marcos Flamnio Peres. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2006. _______________. A civilizao do ocidente medieval. Lisboa: Estampa, 1983. _______________. Histria e Memria. Traduo de Bernardo Leito [et al.]. 5 ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. ________________. O Maravilhoso e o Cotidiano no Ocidente Medieval. Traduo de Jos Antonio Pinto Ribeiro. Lisboa: Edies 70, 1985. LEAL, Jos Carlos. A maldio da mulher. Rio de Janeiro: Achiam, 1995. LEO, ngela Vaz. Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o sbio aspectos culturais e literrios. So Paulo: Linear B; Belo Horizante: Veredas e Cenrios, 2007. LEITE, Jos Costa. Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia. Recife. S.d. _______________. A moa que foi vender o periquito em Pianc. Recife: Editora Coqueiro. S/d.
134
_______________. A mulher da coisa grande. Pernambuco: Editora Coqueiro. s/d. _______________. A mulher que perdeu a bunda no estado da Bahia. Recife: Editora Coqueiro. s/d. ______________. Hoje em toda parte tem corno, bicha e sapato. Condado: Editora Coqueiro, s/d. _____________. Mulher doida, moa quente, corno, bicha e sapato . Condado: Editora Coqueiro, s/d. LINS, Ivan. A Idade Mdia A cavalaria e as cruzadas. Rio de Janeiro: Coeditora Braslica (cooperativa), 1993. LITERATURA POPULAR EM VERSOS: ESTUDOS. TOMO I. Rio de Janeiro: MEC/Fundao Casa Rui Barbosa, 1973. LOI, Isidoro. A mulher. Traduo Julio E. Emd. So Paulo: Editora Jabuti, 1988. LOUREIRO, Joo de Jesus Paes. Cultura Amaznica: uma poesia do imaginrio. 1a Ed. Rio de Janeiro: Escrituras, 2001. MACEDO, Jos Rivair. A mulher na idade Mdia. So Paulo: Contexto, 2002. MARTINS, Elizabeth Dias. Sano e metamorfose no cordel nordestino. In: XIX Encontro Brasileiro de Professores de Literatura Portuguesa, 2003. Anais Curitiba, 2003, p. 304-311. ______________________. O carter afrobrasiluso, residual e medieval no Auto da Compadecida. In: IV Encontro Internacional de Estudos Medievais, 2003, Belo Horizonte. Anais do IV Encontro Internacional de Estudos Medievais. Belo Horizonte : PUC-Minas, 200, p. 517-522. MEDEIROS, Elinaldo Gomes de. Boquinha de Mel. O Corno cultura popular. Natal, 2007. MONTEIRO, Manoel. A mulher de antigamente e a mulher de hoje em dia . Campina Grande: Grfica Martins, 2006. MURARO, Rose Marie. A mulher no terceiro milnio. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993.
135
MOREIRA, Rubenita Alves. Reflexes sobre a residualidade. Entrevista com Roberto Pontes. Comunicao apresentada na jornada literria A residualidade ao alcance de todos. Departamento de Literatura da Universidade Federal do Cear. Fortaleza, julho de 2006. NASCIMENTO, Vanecir Santos do. Iniciao sexual na zona rural. Natal: Chico Editora, 2008. NAWARA, K. Gay. Chica Bananinha, a sapato barbuda de l da Paraba. Rio de Janeiro, 1984. NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. Bruxaria e histria: as prticas mgica no Ocidente cristo. So Paulo: EDUSC, 2004. NONATO, Raimundo. Calepino potiguar: gria norte-riograndense. Mossor: Fundao Guimares Duque, 1980. NUNES, Silvia Alexim, O corpo do diabo entre a cruz e a caldeirinha . Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000. OLIVEIRA, Julie Ane e GERALDO, Evaristo. O mistrio da pedra encantada. Fortaleza: Tupynanquim Editora, 2008. OPTIZ, Claudia. O quotidiano da mulher no final da Idade Mdia. In: Histria das Mulheres no Ocidente. Porto: Ed. Afrontamento Ltda, 1990. PERROT, Michelle. Os excludos da histria: operrios, mulheres e prisioneiros. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1998. PILOSU, Mrio. A mulher, a luxria e a Igreja na Idade Mdia. Traduo de Maria Dolores Figueira. Portugal: Editorial Estampa, 1995. PLATO. A Repblica. Traduo de Eleazar Magalhes. Fortaleza: Edies UFC, 1986. _________. Apologia de Scrates. Traduo de Maria Lacerda de Souza. Obra de domnio pblico. Disponvel em <
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000065.pdf>. Acesso em: 13 de Janeiro de 2010. __________. Leis. Traduo de B. Jowett. Disponvel em
136
__________.
Timaeus
Traduo
de
B.
Jowett.
Disponvel
em
<
http://classics.mit.edu/Plato/timaeus.html> acesso em 15 de Janeiro de 2010. PONTES, Maria das Neves de; MELLER, Vilson Brunnel. Dicionrio lingusticoliterrio de termos regionais/populares (Norte/Nordeste). Joo Pessoa: Ideia, 2003. PONTES, Roberto. Lindes disciplinares da teoria da residualidade. ________________. Poesia Insubmissa Afrobrasilusa. Rio de Janeiro Fortaleza. Oficina do Autor- EUFC, 1999. ________________. Residualidade e mentalidade trovadorescas no romance de Clara Menina. In: III Encontro Internacional de Estudos Medievais da Associao Brasileira de Estudos Medievais ABREM, 2001, Rio de Janeiro. Atas do III Encontro Internacional de Estudos Medievais. Rio de Janeiro : gora da Ilha, 1999. p. 513-516. ________________. Trs modos de tratar a memria coletiva nacional. In: Literatura e Memria Cultural ANAIS do 2 Congresso da Associao Brasileira de Literatura Comparada vol. II. Belo Horizonte, 1991. PONTUAL, Jos Pedro. Uma mulher traioeira. Editor: Edson Pinto da Silva. s.d. RAMOS, Francisco Rgis Lopes Ramos. O verbo encantado A construo do Pe. Ccero no imaginrio dos devotos. Iju: Editora Uniju, 1998. RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A formao e o sentido do Brasil. So Paulo, Companhia das Letras, 1995. RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danao: as minorias da Idade Mdia. Traduo: Marco Antnio Esteves da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1993. RINAR, Rouxinol do. Saiona a mulher dos olhos de fogo. Fortaleza: Tupynanquim Editora, 2005. RONALD, Raminelli. Eva Tupinamb In: DEL PRIORE, Mary. Histria das Mulheres no Brasil. 8 Edio. So Paulo: Contexto, 2006. ROSSIAUD, Jacques. A Prostituio na Idade Mdia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
137
ROUSSEAU, J.J. 1969. mile ou de leducation. v.V. Edio de 1782. Disponvel em http://fr.wikisource.org/wiki/%C3%89mile,_ou_De_l%E2%80%99%C3%A9ducation/ %C3%89dition_1782/Livre_IV Acesso dia 24 de maio. SANTOS, Luiz Felipe. A Mulher como representao do Bem e do Mal n A Demanda do Santo Graal e nA Divina Comdia. Dissertao (Mestrado em Literatura Portuguesa) Faculdade de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2007. SCHOTT, Robin May. Eros e os processos cognitivos: uma crtica da objetividade em filosofia. Traduo Nathanael C. Caixeiro.Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Ventos, 1996. SICURETI, Roberto. Lilith, a lua negra. So Paulo: Paz e Terra, 1990. SILVA, Evaristo Geraldo. A lenda da Iara ou Os mistrios da me dgua. Fortaleza: Tupynanquim Editora, 2005. SILVA, Gonalo Ferreira da. A mulher que deu o tabaco na presena do marido . Rio de Janeiro: ABLC, 2006. SILVA, Joo Jos da. A moa que virou cobra. Recife: do autor, s/d. SILVA, Joo Severo. A deuza do cabar: a meritriz orgulhosa. Joo Pessoa, 1985. SOUZA. Laura de Mello. Em torno de um mito: a elipse do sab. Racional ou sobrenatural? Um caso de bruxaria. Revista Humanidades. Vol. 9 N 1. Braslia: Editora UNB, 1994. SOUZA. Laura de Mello. O diabo e a Terra de Santa de Santa Cruz Feitiaria e religiosidade popular no Brasil colonial. So Paulo: Companhia das Letras, 1986. TENRIO-PONTES, Walter. Machismo na literatura de cordel. Lisboa: edies Rolim, s/d. VAINFAS, Ronaldo. Homoerotismo feminino e o Santo Ofcio In: PRIORE Del, Mary. Histria das Mulheres no Brasil. So Paulo: Editora Contexto, 2006. VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no Ocidente cristo. So Paulo: tica, 1986.
138
VIANA, Arievaldo. A histria da rainha Esther. Fortaleza: Tupynaquim editora, 2004. VILAR, Antonio Cristvo de Queiroz. Hansenase no cordel. Disponvel em: http://www.morhan.org.br/cordel.html. Acessado em 18 de maro de 2010. WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Traduo de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar editora, 1979. YVES, dvreux. Voyage dans le Nord Du Brsil. Librarie A. Frank. 1864.
SITES CONSULTADOS
http://centros.uv.es/web/departamentos/D210/data/informacion/E125/PDF77.pdf. Acesso dia 2 de fevereiro de 2010. http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_Ixiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html. Acesso dia 8 de novembro de 2009.