"O Largo", in O Fogo e As Cinzas, de Manuel Da Fonseca
"O Largo", in O Fogo e As Cinzas, de Manuel Da Fonseca
"O Largo", in O Fogo e As Cinzas, de Manuel Da Fonseca
O comboio matou o Largo. Sob o rodado de ferro morreram homens que eu supunha
eternos. O senhor Palma Branco, alto, seco, rodeado de respeito; os três irmãos Montenegro,
espadaúdos e graves; Badina, fraco e repontão; o Estroina, bêbado, trocando as pernas, de
navalha em punho; o Má Raça, rangendo os dentes, sempre enraivecido contra tudo e todos.
O lavrador de Alba Grande, plantado ao meio do Largo com a sua serena valentia; mestre
Sobral, Ui Cotovio, rufião, de caracol sobre a testa. O Acácio, o bebedola do Acácio, tirando
retratos, curvado debaixo do grande pano preto. E, lá ao cimo da rua, esgalgado, um homem
que eu nunca soube quem era, e que aparecia subitamente à esquina olhando cheio de
espanto para o Largo.
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caíam de borco. Caíam ansiados de tristeza no pó branco o Largo. Era o lugar onde os
homens se sentiam grandes em tudo o que a vida dava, quer fosse a valentia ou a inteligência
ou a tristeza.
Os senhores da Vila desciam ao Largo e falavam de igual para igual, com os mestres
alvanéis, os mestres ferreiros. E até com os donos do comércio, com os camponeses, com os
empregados da Câmara. Até, e igual para igual, com os malteses, os misteriosos e arrogantes
vagabundos. Era aí o lugar dos homens, sem distinção de classes. Desses homens antigos que
nunca se descobriam diante de ninguém e apenas tiravam o chapéu para deitar-se. Também
era lá a melhor escola das crianças. Aí aprendiam a ser valentes, ou bêbados, ou vagabundos.
Aprendiam qualquer coisa e tudo era vida. O Largo estava cheio de vida, de valentias, de
tragédias. Estava cheio de grandes rasgos de inteligência. E era certo que a criança que
aprendesse tudo isto vinha a ser poeta, e entristecia por não ficar sempre criança a aprender
a vida - a grande e misteriosa vida do Largo.
Veio o comboio e mudou a Vila. As lojas encheram-se de utensílios, que, antes, apenas
se vendiam nos ferreiros e nos carpinteiros. O comércio desenvolveu-se, construiu-se uma
fábrica. As oficinas faliram; os mestres ferreiros desceram a operários, os alvanéis passaram
a chamar-se pedreiros e também se transformaram em operários. Apareceu a Guarda,
substituiu os pachorrentos cabos de paz, e prendeu os valentes. As mulheres cortaram os
cabelos, pintaram a boca e saem sozinhas; os senhores tiram agora os chapéus uns ao outros,
fazem grandes vénias e apertam-se as mãos a toda a hora. Vão à missa com as mulheres,
passam as tardes no Clube, e já não descem ao Largo. Apenas os bêbados e os malteses se
demoram por lá nas tardes de domingo.
Hoje, as notícias chegam no mesmo dia, vindas de todas as partes do mundo. Ouvem-
se em todas as vendas e nos numerosos cafés que abriram na Vila. As telefonias gritam tudo
o que acontece à superfície da terra e das águas, no fundo das minas e dos oceanos. O mundo
está em toda a parte, tornou-se pequeno e íntimo para todos. Alguma coisa que aconteça em
qualquer região todos a sabem imediatamente, e pensam sobre ela e tomam partido.
Ninguém já desconhece o que vai pelo mundo. E alguma coisa está acontecendo na terra,
alguma coisa de terrível e desejado está acontecendo em toda a parte. Ninguém fica de fora,
todos estão interessados. A Vila dividiu-se. Cada café tem a sua clientela própria, segundo a
condição de vida. O Largo que era de todos, e onde apenas se sabia aquilo que a alguns
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interessava que se soubesse, morreu. Os homens separaram-se de acordo com os interesses e
as necessidades. Ouvem as telefonias, lêem os jornais e discutem. E, cada dia mais, sentem
que alguma coisa está acontecendo.
As grandes faias ainda marginam o Largo como antigamente e, à sua sombra, João
Gadunha ainda teima em continuar a tradição. Mas nada é já como era. Todos o troçam e se
afastam.
João Gadunha, o bêbado, fala de Lisboa, onde nunca foi. Tudo nele, os gestos e o modo
solene de falar, é uma imitação mal pronta dos homens que ouviu quando novo.
- Grande cidade, Lisboa! - diz ele. - Aquilo é gente e mais gente, ruas cheias de pessoal,
como numa feira!
Gadunha supõe que em Lisboa ainda há largos e homens como ele conheceu, ali,
naquele Largo marginado pelas velhas faias. A sua voz ressoa, animada:
- Querem vocês saber? Uma tarde, estava eu no Largo do Rossio...
- No Largo do Rossio?
- Sim, rapaz! - afirma Gadunha erguendo a cabeça cheio de importância. - Estava eu
no Largo do Rossio a ver o movimento. Vá de passar o pessoal para baixo, famílias para cima,
um mundo de gente, e eu a ver. Nisto, dou com um tipo a olhar-me de esguelha. Cá está um
larápio, pensei eu. Ora se era!... Veio-se chegando, assim como quem não quer a coisa, e
meteu-me a mão por debaixo da jaqueta. Mas eu já estava à espera!... Salto para o lado e, zás,
atiro-lhe uma punhada nos queixos: o tipo foi de gangão, bateu com a cabeça num eucalipto,
e caiu sem sentidos!
Uma gargalhada acolhe as últimas palavras do Gadunha.
- Um eucalipto?
Apenas por um pormenor, estragou uma tão bela história. Fosse antigamente, e todos
ouviriam calados. Agora sabem tudo e riem-se. Mas Gadunha teima. Diz que sim, que já
esteve no Largo do Rossio, lá em Lisboa.
- Vocês já viram um largo sem eucaliptos ou faias ou outra árvore qualquer? -pergunta
ele, desnorteado.
Todos se afastam, rindo.
João Gadunha fica sozinho e triste. Os olhos arrasam-se-Ihe de água, a bebedeira dá-
Ihe para chorar. Agarra-se às faias, abraça-as, e fala-lhes carinhosamente. Aperta-as contra o
peito, como se tentasse abarcar o passado. E as suas lágrimas molham o tronco carunchoso
das faias.
Vai morrendo assim o Largo. Aos domingos, é ainda maior a dor do Largo moribundo.
Vão todos para os cafés, para o cinema ou para o campo. O Largo fica deserto sob a ramaria
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das faias silenciosas. É nesses dias, pelo fim da tarde, que o velho Ranito sai da venda
rangendo os dentes. Outrora, foi mestre artífice; era importante e respeitado. Hoje, é tão
pobre e sem préstimo que nem sabe ao certo o número dos filhos. Apenas sabe embebedar-
se. Pequeno e fraco, o vinho transforma-o. Entesa-se, ergue o cacete e, sem dobrar os joelhos,
apenas com um golpe de pés, pula para o ar e dá três cacetadas no pó do Largo antes de tocar
de novo com os pés no chão. Ergue a cabeça e grita, estonteado:
-Se há aí algum valente, que salte para aqui!
Mas já não há nenhum valente no Largo, já não há ninguém no Largo. Ranito olha em
volta com o olhar espantado.
A vista turva-se-lhe, range os dentes:
- Ah vida, vida!...
- Volteia o cacete sobre a cabeça, vai de roda, feroz, pelo Largo ermo da vida, atirando
cacetadas contra o chão. Vai, de cinta solta rojando, ágil e ridículo, a desafiar homens que já
morreram.
Até que se cansa naquela luta desigual. O cacete despega-se-lhe das mãos e ele fica
lasso, desequilibrado. Aos tropeções, pende para a frente e cai, tem que cair, o Largo já
morreu, ele não quer mas tem de cair. Pesado de bebedeira e de desgraça, cai vencido.
Uma nuvem de poeira ergue-se; depois, tomba vagarosa e triste. Tomba sobre o Ranito
esfarrapado e tapa-o.
Ele já não pode ver que o Largo é o mundo fora daquele círculo de faias ressequidas.
Esse vasto mundo onde qualquer coisa, terrível e desejada, está acontecendo.
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