JURANDIR, Dalcídio. O Marajó

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DALCDIO JURANDIR

MARAJ

CEJUP 1992

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[9] Missunga, Missunga! Coronel debruara-se no parapeito. Um sossego no casaro. D. Ermelinda tinha ido ver a doente no Araraiana. Um pica-pau martelava a velha macacaubeira. Com a cisma de haver tatu perdido ou alguma cotia nas toias, Missunga entrava no capoeiral vizinho, seguindo o co. Exibia ao ombro a espingarda e espreitava os esconderijos mais prximos. As tocas desertas, os ocos de pau vazios. Detinha-se, vencido, diante do mato virgem. Missunga, Missunga! A terra parecia subir pelos homens, bichos e rvores com o calor. Solido. Famaleal farejava entre as folhas modas. Missunga voltou. O casaro do Paricatuba, com o seu escuro telhado entre coqueiros e bacabeiras, lhe dava uma impresso de fadiga e de quase ressentimento. Bem que podia comer carne de cotia hoje. No sei como tirar esta caninga. Benedito j vinha ao seu encontro e Famaleal caava borboletas. Arriou a espingarda na mesa grande, como se tambm arriasse o azar e o medo do mato, soprou o caloro, estirou-se no banco. Cruzou as mos sobre o peito, cerrou os olhos. Fechar os olhos assim era, em alguns dias do seu tempo de menino, sentir [10] as mos viscosas daquele cego do Arapin, apalpando-o. O escuro que havia nos olhos do cego avanando sobre ele. O menino sentia ao mesmo tempo como que uma febril necessidade de experimentar a cegueira, certo de que podia, com delcia, abrir os olhos, de repente, afastar as mos do cego, e ver. As antigas folhinhas que seu pai

Na grande boca do rio das Amazonas est atravessada uma ilha de maior comprimento e largueza que todo o reino de Portugal... ........................... .................................... ... a ilha toda composta de um confuso e intrincado labirinto de rios e bosques espessos; aqueles com infinitas entradas e sadas, estes sem entrada nem sada alguma... Padre Antnio Vieira Carta ao Rei Luciana Vieira

deixava marcando um tempo morto nas paredes, entre as aranhas e as osgas to tranqilas e ntimas, como pessoas da famlia; ver as mangueiras, como se tivessem amadurecido os frutos subitamente; o cachorro dormindo nos velhos alguidares cheios de razes e ervas, feito animal fabuloso e os negros braos, ao sol, de Roslia, a cozinheira, partindo lenha com o seu indolente vagar. A claridade era violenta, nela riscava uma asa, plantas e porcos encostados nas tbuas se deixavam dominar por um mgico torpor. Mas nenhuma realidade era mais viva que a do colo de Mariana em seus olhos fechados, o mau menino naquele colo se encolhia e pecava. Ver sua me tambm, depois de um instante de cegueira. O rosto dela, mais ntido, confessava melhor a amargura e a ruma crescente. De olhos fechados, muito bom ouvir s Roslia bater carne cantando, apelidar as galinhas, conversar com os carneiros to sujos, ensinar nome feio ao periquito, ralhar, batendo o p, com o vento que, mexendo nas mangueiras, vinha tirar a roupa das cordas. Vozes isoladas no tempo e no espao, como aquelas folhinhas, autnomas, se enchendo de uma inexplicvel doura na treva. Missunga, nessa interina cegueira, punha-se a indagar se as aranhas o espiavam ou se podiam desprender as folhinhas ao vento, desfolhar os dias, as semanas, os meses, soltar o tempo, recuperando-lhe a vida sem limite. Sobre todas as coisas e os seres, sobre aquilo que ele chamava a escurido da conscincia, que se confundiam nessa viva sensao de treva, o cego do Arapin volvia com as mos inchadas. E o seu grito, no Paricatuba, quando, ao atravessar o igarap seco, numa estiva alta, tombou na lama? Seria assim, talvez, a voz dos homens primitivos gritando o seu medo e a sua dor? Esse grito atravessou o mato e caminhou em Missunga, at hoje, [11] sub|terrneo, quando os olhos se fecham e quando o receio detm o caador diante do mato virgem. Longe, o mesmo pica-pau lavrando a macacaubeira. O escuro

crescendo, crescendo at o limite em que tememos encontrar-nos unicamente conosco. A sombra do sangue dentro do olhar, as imagens do tdio e da infncia misturando-se. O desejo de uma inrcia em que todos os desalentos se. afundassem, todos os vagos mpetos morressem para sempre. Seria assim, talvez uma verdadeira experincia da morte, um sono no fundo do rio, o retorno queles terrores de menino diante do sono que o assaltava na sombra da rede sem embalo, dos sustos que Mariana lhe dava, dos latidos do co naquela noite chuvosa em que, no barco do pai, subiu o rio morto, passando por um trapiche abandonado onde (por que teria suposto?) devia haver um menino morrendo. Missunga, vai na vila pra mim. E o diabo daqueles papis. Vai que estou me sentindo mofino-mofino. A modo de uma quebreira. E, viste? O Lafaiete que acabe logo aquela escritura. Abrindo repentinamente os olhos, Missunga soltou sem querer: Papai, fal... Mas se conteve. Que voc ia dizendo? Nada. A pergunta do pai, num tom indiferente, traa uma hesitante censura, como se houvesse entendido o filho, o que o surpreendia. Para que quer saber? Entende alguma coisa disso? Conhece l o mundo, o que nos fora a lei das circunstncias? No entanto, jamais podia acreditar que seu filho seria capaz de interpel-lo. Talvez mesmo nem o filho quisesse dizer o que inexplicavelmente entendeu. Inexplicavelmente? E por que se preocupar com isso, logo com as vagas e supostas interpelaes do filho? Missunga espreguiou-se no banco. O pai lhe parecia mais volumoso de ventre, o bigode cinza, a pele queimada, o anel que sempre lhe foi uma obsesso na infncia. Uma tarde, viu o pai com o dedo sangrando, o anel tornara-se to vivo, mais rico, mais obsessionante naquele sangue. Como se lembra muito bem. [12] Cer-

|rou novamente os olhos. Seu pai! Com essa exclamao que fez a si mesmo, Missunga invejou-lhe aquela velhice ciosa ainda do seu ardor, quase insinuante e tocada, muitas vezes, daquela patriarcal jovialidade com a qual Coronel Coutinho sabia dominar os stios e a vila de Ponta de Pedras, os lagos e as fazendas de Cachoeira. Continuou com os olhos cerrados. O pai desapareceu. Como seria a morte ou esta a conscincia mesma? Um par amoroso de osgas caiu da parede. Que pensam as aranhas? E as osgas caindo no amor? As sensaes da morte, de culpa iminente, do amor fsico, do medo, da inrcia, do estranho desalento e da extrema passividade diante do pai enchiam o escuro e imaginou um sono na beira do mato, noite, os passos da ona espreita... Era preciso ir vila e apressar Lafaiete em mais uma daquelas escrituras que seu pai sabia mandar fazer de maneira to fcil e habitual. No quis ir vila na Borboleta, a lanchinha-motor. Queria a inrcia que o rio parado lhe dava, profundamente, quando viajava em montaria. Mandou Benedito limpar o casco. s limo. Missunga escorou o remo do lado e o casco deslizou na gua retinta. No deixou que Benedito remasse. Pensou logo num banho, num longo mergulho, o sono dentro do rio. Logo devolveu o remo a Benedito e com a sua pesada lassido estirou-se ao longo da pequena montaria. Aquele igarap era escuro, igual poo de cobra grande. Curvavam-se os aaizeiros na beirada como para matar a sede ou espiar tambm o que havia de mistrio na mar. Lombos de tabatinga, nas margens, rachavam-se quase soltos. Aquele ingazeiro grande, com as razes saltando da terra, como chifres de algum monstro enterrado, deixaria ouvir amanh o barulho do seu tombo. O sol mordia a gua que se arrepiava toda, reverberando. sombra dos matos, que se espalhava no igarap, Missunga olhava a mataria grossa de onde saltavam japiins. O casco deslizava, ganhou o pequeno estiro Benedito um

ndio no remo saindo no rio. O rio parecia crescer, mundiado pelo sol. Missunga [13] pendu|rava os olhos nos cachos, verdes ainda, de aa. No leve vento, sob o cu baixo do estiro, os aaizeiros bailarinos. Metia a ponta dos dedos ngua como no seu tempo de menino, quando imaginava bichos do fundo dormindo. O rio ao sol parecia com febre. Pudessem os rios correr para o sol com o sonho dos homens, a fora das rvores, o espanto e a curiosidade dos bichos! Ficara estirado nas guas como um peixe-boi envenenado no timb. Bem podia pensar, dentro de sua inrcia, sob o vago rumor daquele remo to gil e flexvel na gua, nalguma namorada de Belm, o rosto subitamente belo de uma desconhecida, a voz de alguma antiga amante, o grito das mulheres do mundo num beco, noite, entre babados e ces ladrando. A terra lhe transmitia uma espcie de estupidez amorosa e invencvel, lama gostosa na alma, o hlito de Alade, calor, frutas rachadas no cho. Por que viera da cidade para aquele torpor? A solido derramava-se nele como num poo sem fundo. Por que as imagens da infncia, do desalento, daquela fartura que seu pai lhe dera, at as imagens da morte? Pensava tirar as visagens confusas, o medo, a quebreira da solido, ficando horas de molho no igarap, chupando tapereb, fazendo, de espingarda no ombro, imaginrias caadas. Ou brincando com Alade. E voltava com uma nova pergunta: isto, afinal, no considerar-se feliz? D. Ermelinda, no Araraiana, com a doente. S depois de um silncio, em que lastimava ter vindo, pde maquinalmente perguntar: E no melhorou? Senhora? Estou lhe dizendo se melhorou. A voz de D. Ermelinda era sem curiosidade, quase irritada. Mandei fazer uma fumentao mas nada. Uma dor que qual! Peguei ela na ajuda que fiz pro Bernardino na tapage. Tambm

remdio no se acha, pensa? Bernardino, a senhora sabe... As palavras cansadas da enferma caam sem eco no silncio da visitante. Foi pro Coronel l na Fbrica. Ento, eu disse; vou ver [14] se minha comadre Isidora tem um remdio. Gito, mmo com aquela dor danada, no dente, foi l, coitado. Comadre me mandou um... A mamona. Ermelinda calada. Comadre me mandou um. A mamona. O cheiro da mamona lhe trouxe o quarto velho, os pesados castiais no armrio cheio de drogas de seu tempo de solteira. No, no dava para visitar doente. Sobretudo naquele calor, e doente daquela pobreza, embrulhando aquela rede que era um trapo. Lembrava-se de suas irms, amarelas de ictercia, solteironas, e da sua me, quando caam de cama. Quanto aborrecimento, quanta impacincia por estar ali, cabeceira, e dando um ch e mudando um pano, tolerando gemidos e queixas. A visita a um doente fazia-a reavivar aqueles dias cruis em que sua me adoeceu, depois do que se passou entre as duas, de maneira to imprevista. J no fim, os olhos da me na agonia fixaramse na filha numa desesperada acusao. A boca parecia afundar-se, escura e inerme, no esforo vo de exprimir aquele dio, aquela maldio, como compreendeu a filha. Fazia recordar sombriamente a noite em que sua me a surpreendeu, ento recm-casada, nos braos do tio, um oficial da Polcia. No esquecera aquela sbita expresso de espanto, nusea e rancor e logo sua me se volveu to rapidamente como se fosse apanhada por um redemoinho. Depois foi o silncio em que permaneceu, to inexplicvel que parecia cumplicidade, uma cumplicidade to hostil que a humilhava continuamente. Isso as separava cada vez mais. Guardavam entre as duas uma reserva que ningum compreendia e por isso Ermelinda era ainda mais odiada pelas irms. Muitas vezes, em casa de sua famlia, ao lado do marido, sentia at os ossos o olhar de sua cmplice, aquela demorada contemplao to meticulosa e escarninha que no s a despia toda

como a envelhecia e prostitua. Era dio antigo, pensava Ermelinda aquilo foi, apenas, um pretexto, para a revelao desse dio. Antes a tivesse espancado, denunciado ao marido. Sua me era orgulhosa de um passado de que as prprias filhas no tinham bem noo. O marido, um marinheiro, morrera em viagem. Ermelinda viua uma vez queimando papis no fundo do quintal. As duas filhas [15] doen|tes mereciam dela mais pena que simpatia. Era pobre com uma paciente e formal dignidade. Ermelinda odiou-a e com esse dio lanou-se mais uma vez ao oficial de polcia. Sua indiferena pelo marido aquele Josias que lhe veio de Abaet contra os seus sonhos de um grande casamento crescia apesar daquela maldosa compaixo com que a me dela o tratava. Quando a me adoeceu sentia-lhe a soturna hostilidade dos agonizantes que no perdoam. Com o medo crescente, teve impulsos de gritar e de a estrangular, ou, com uma sede infinita de piedade e perdo, ajoelhar-se diante daquele embrulho quase frio de carnes e cabelos imveis, denegrido pela sombra e pelo aniquilamento. Desejos de cair sobre o peito, sobre aquele estertor, aquela voz sem palavras. Os soluos a sufocavam. Pde afastar-se e procurou a paz que havia l fora, morna e indiferente. Dominou-se com intenso esforo e voltou porque a agonizante a fascinava. E dura, tensa, assistiu quela morte, surda ao pranto das irms e cega luz da vela que ardia sobre a face da me. Foi talvez o instante mais alto na vida de Ermelinda. Aqueles dias a esvaziaram e a morte de sua me a restitura ao marido. Olhando a comadre, D. Ermelinda quer dar um consolo qualquer, lembrar um remdio, prometer uma rede. No se lembra, no sabe, aumenta a irritao que lhe d uma certa agonia, pois necessita varrer a lembrana de sua me. Estava agora no mundo para se estirar na rede e ficar se embalando, se embalando ai que calor! as carnes soltas no roupo cheiroso, sentindo-se nua contra o mormao e as ms lembranas na varanda do casaro. Sua comadre, entretanto,

lhe merecia alguma estima. Torrava bem o caf, passava bem uma roupa, moqueava que era um gosto um peixe e lhe contava histrias do Coronel com as mulheres do stio que no lhe inspiravam cime, mas a faziam conhecer melhor o fazendeiro. Necessitava esquecer tudo aquilo, divertir-se com as caadas de Missunga. Bem, minha comadre... o que precisar... Anastcio rema e a montaria vem em cima da mar. Sob o toldo de panacarica, arrepende-se D. Ermelinda daquela visita. Ver doentes! Preferia antes preparar um defunto, enfeitar um [16] cai|xo, acender vela nos castiais, cabeceira do cadver, a sensao de extrema impotncia que o crucifixo lhe transmitia, o prazer de acompanhar entre amigas e as flores um enterro concorrido. Como se podia viver naquele chiqueiro, naqueles trapos de rede e por que naquele abafado falar em mamona? Quando chegasse ao Paricatuba rema, Anastcio tomaria um banho, com sabonete e oriza, a rede a esperava, branca, rendada, macia. Na rede, esperando-a, Coronel Coutinho assoava-se. Andava pela casa, mofino, pondo em dia as folhinhas atrasadas, com um desejo de sossego que sempre achou em Piracatuba longe da cidade, da marchanteria, das fazendas de gado e das prprias estaes de gua que de dois em dois anos ia procurar no sul. Ali seu av fundara um velho engenho e seu pai reformou a casa grande. Faltava apenas a capela como havia em Itacu. Os jornais de Belm amontoavam-se embaixo da rede. Um cansao nas pernas e na vontade. No sabia porque to mole, que dia cabuloso aquele! H uma semana em Paricatuba, o corpo na rede, a cabea no brao, no colo de Ermelinda, aos embalos, morrinhando e o sossego no vinha. Mandara Missunga vila para ver em que p estava a complicao daqueles papis do primo Guilherme. Desejava no brigar, no ficar mal com seu primo por pedaos de terra. Sim, que o primo era o que se sabia: bastava dizer que depenava a fortuna de um surdo-mudo que vivia em Belm, num velho palacete, rosnando e arrastando os

chinelos. O filho tambm deveria se ocupar nalguma coisa, sair daquela indolncia de Paricatuba. Bem que podia mand-lo fiscalizar os embarques de gado no Alto Acari, o que seria um desgosto para o seu administrador. Ou mand-lo para Belm tomar conta da marchanteria, o que daria maior trabalho aos seus empregados. E a tentar fazer perguntas... Sozinho na varanda, metido na rede e na moleza, Coronel Coutinho com o espanto de saber que D. Ermelinda visitava a sua comadre no Araraiana, Comadre Engrcia! Naquele vero, quanto tempo j! Bernardino, o compadre, pelas tapagens, nas coivaras ou enfeixando lenha para o Paricatuba, Coronel mandava riscar o casco no rumo do Araraiana. Finado Estanislau era [17] o seu velho remeiro. Ficava num sovaco do igarap, o casco amarrado no pau da aninga, esperando o branco que dormia a sesta com comadre Engrcia. Um galo cantou. Um tiro na mata, longe, afastou a questo com o primo Guilherme. Uma buzina no rio; e a canoa, novos jornais e as passas para Ermelinda que vm chegando. A rede parou de embalar. Os olhos do Coronel Coutinho deram com a estampa de N. S. de Nazar meio descolada da parede. Ouvia-se vagamente um rumor de remos pelo igarap. A necessidade que teve de mandar prender trs homens que pescavam nos seus lagos em Cachoeira. E a pergunta que se tornou to inesperada e completa no pensamento: falsa, papai? A canoa vem chegando com as encomendas, no? Queria que voc visse a sua comadre disse Ermelinda, num tom de lstima, subindo rapidamente para o quarto. Como? Por qu? Que que tem a comadre? Coronel deteve-se no meio da varanda, coando os ps nos chinelos. Ouvia-se abrir e fechar a grande mala das roupas de cheiro de Ermelinda. Ela voltou, de roupo, indagando: Seu filho tirou o selo da espingarda nova, desta vez? Comese, enfim, paca no jantar? Venha me ver nadar um pouco, ande.

Desceu atrs dela, via-a soltando os cabelos, caminhar, vagarosamente, entre as bacabeiras, na direo daquele brao escondido do igarap que a esperava com a mar cheia. Ficou olhando, quase alheio, no mesmo abatimento. Ela foi escorregando no limo da estiva e, de sbito, tombou no primeiro mergulho, como apanhada por um bicho.

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[18] Releu a carta de Hilda, soprou a saudade num bocejo. Ora, a Hilda. Para caoar, se lembrou da velha modinha: Mataram a pobre da Hilda Com dezesseis navalhadas... e da ltima festa da Assemblia Paraense, em que danou com Hilda. Um garom, ao servir os msicos, caiu botando sangue pela boca, o cadver retirado pelos fundos do clube e o baile continuou esplendoroso e seleto, como disse depois a crnica do Manfredo. Hilda, Hilda, Deixaste tanta saudade J o rio liso o enervava, o estiro da ilha defronte, a mancha de uma barraca noutra margem dentro do aaizal. Seu pai era o dono daquele rio, daquela terra e daqueles homens calados e sonolentos que, nos toldos das canoas, ou pelas vendas, esperavam a mar para iar as velas ou aguardavam quem lhes pagasse a cachaa. Na cidade, longe da vila, quanta noite de champanhe, espremido do suor e do sangue daqueles caboclos, dos vaqueiros que fediam a couro e a lama ouvindo nos campos os tambores do Esprito Santo.

Invejava em certas horas o que os Salmes faziam na fazenda em Chaves; as brutas farras com caboclas, delegados de polcia, promotores de justia, tabelies, tesoureiros municipais e carne de novilha gorda assando na brasa debaixo das rvores. Missunga sentiase como aquela tarde, oco e morno. A pequena igreja [19] olhando o rio, o coreto, os banquinhos do largo, dois benjamins que Coronel plantara no dia da Ptria e os guris jogando piso. Em Piracatuba o mato dava-lhe um receio sem nome. Naquelas verdes espessuras estava a fatalidade, espiando entre os paus, assobiando com os quinquis. Missunga apanhara no ar a grande palavra: Fatalidade, para explicar os champanhes, o surdo-mudo que o seu parente Guilherme explorava, a morte do garom e as crnicas do Manfredo. Dois guris, que se atracavam por via do pino, o atraram. Missunga, vivamente, gritou como sempre gritava aos seus cachorros: Eta! Isca! Isca! Ei! Isca! A gurizada fechou o crculo. Golpeia, Pedrinho! Missunga divertia-se. Seus gritos excitavam os guris que rolavam na poeira, sujos e escuros como porcos. Pela nuca! O prazer de v-los brigando era talvez pelo que deixara de fazer quando menino. A vontade e ao mesmo tempo o temor de lutar corpo a corpo, as lembranas ruins e inconfessveis, com os moleques do seu tempo, deixavam-no sob a opresso de uma infncia mutilada. Uma velha surgiu e com um cip avanou sobre os moleques que debandaram como leites enxotados levantando poeira. Seus demnios! Ora deixe, nh Felismina, os meninos se divertirem. Foi j isso, ento, que aprendeu no colgio? Fez deslizar a mo na cabea da velha, rindo. Sua ama de leite! e viu-lhe os ps descalos, rachados. Talvez fosse tambm uma das vtimas de seu pai. A filha dela, a Orminda, no seria irm? Sob a

blusa encardida e rota, os velhos peitos e Missunga sentiu um vago remorso, qualquer coisa de alheio em si mesmo, alguma coisa que furtara quela velha, que a faria feliz, e esperdiara pelo mundo. A poeira no ar faiscava. Ardiam-lhe os olhos. Como tudo lhe parecia morto naquela vila to vazia como o seu destino. Sentou-se no banco do largo, desejando, com uma crueldade de [20] criana, ver um curumim daqueles com a cabea sangrando, a perna partida... E sorriu quando se ps a rever Lafaiete matando a sua fome na mesa patriarcal da casa grande da vila, exclamando: Seu filho, Coronel, vai longe... e com os recursos que tem ser uma grande carreira! Tentando estudar em Belm, tinha pensamentos doces, rever o seu Paricatuba. Como estaria Guta? As cheirosas goiabas, bichadas, o cacaual, onde, nu entre as mulheres, as pernas pra cima, os alaridos, montava nas costas de Mariana. Entre os folies de S. Sebastio tocava reque-reque e acompanhava a folia. As mquinas a vapor feitas de relgios que Ovdio ensaiava, no banheiro do trapiche da vila, os barquinhos de miriti, o medo dos peixes tralhotos como se fossem os penetrantes candirus. E o grito do preto Janjo, maldosamente, uma tarde na casa grande: D. Branca, v v o que Missunga t fazendo com os outros no capinz! E o juju ngua, depois os demorados carinhos, to adormecedores, de Mariana que lhe dizia: Olhe, chave na boca, em? quando na frente dele brincava com tanta intimidade com os caboclos. Na manh em que Mariana partiu, Missunga abriu a boca no mundo e esperneava como gato brabo nas mos de D. Branca. Queria-porquequeria Mariana com ele. Ento o pai com a mo no ombro do pequeno: Resolvido, Branca. E ainda este ms. A Mariana que tu queres, seu safado, o colgio dos padres. E o Carmo! Logo que pde se livrar do Carmo onde, entre o castigo do

catecismo, o enjo das rezas e o desencanto das aulas, chorou a morte de Mariana no Arari, iam as madrugadas deix-lo exausto e bbado porta do palacete, na S. Jernimo, as mulheres gritando nos carros, o co dinamarqus ladrando no gradil. E o que no fez por Adelaide, batizada com champanhe, vinda do Baixo Amazonas, linda e arisca como gara emplumando nos lagos do Nhamund. O banho com ela, ao luar, no Ina, o reservatrio dgua da cidade. O que, por Adelaide, no gastou com o Batista, o martimo da Guiana, que at cocana lhe trazia. E quando Adelaide lhe atirou, entre palavres e gritos, o copo de usque: tu [21] me deixaste mas tu te arrependes, vais ver quanto valho! nem podia imaginar que ela, no carnaval, havia de tomar veneno por aquele marinheiro negro. Foi, enfim, o adeus ao Ginsio e na chuvosa madrugada, cambaleando, pde ainda atirar na secretria do pai o roto e sujo canudo de preparatrios. Ao insistir com o pai: que, enfim, necessito ver coisas no Rio, Coronel resistia: Meu filho, eu quero ver voc doutor. Saiba o que se passa dentro de mim por sua causa. J basta o que dizem da nossa famlia... que composta de asnos... que at um surdo-mudo faz a fortuna do nosso parente Guilherme. Mas, papai, quantos doutores Antnios e Manois j h na famlia? Um cavalo que o senhor mande... O velho abandonava a cadeira de embalo e remexia nervosamente os papis da secretria. Seu desejo era ver o diploma e comprar, ter o gosto de comprar o anelo de bacharel. Missunga advogando as suas questes. Ou de beca, no jri, defendendo os rus amigos. Era deputado pelo PRF, o filho no poderia substitu-lo com melhor capacidade? Missunga secretrio-geral, deputado federal, lder da cmara... Visse como aquele moo esperto, o Teodoro, subiu. No se incomodava de gastar mais para isso. Era o filho nico. Ao menos no sul aprendesse de perto o que um diploma valia, mesmo na vida de um rapaz que, graas a Deus, tinha ainda onde cair morto.

E como naquela Semana Santa, mandasse pedir, com urgncia para ver mais coisas outros vinte contos de ris, Coronel estourou, recusando o jantar e at os filhs de jerimum que tanto apetecia; Nem mais um tosto! Nem um tosto mais! Fao o peralta voltar imediatamente! clamava que os carnavais do peralta o levavam falncia. Acabaria dando um tiro na cabea! Com o prato de filhs na mo e os midos olhos alarmados, D. Branca advertia-os: Tambm que isso! Tamanha sexta-feira da Paixo, Manoel! O domingo da pscoa trouxe a S. Jernimo um telegrama [22] no assinado por Missunga. Desfigurado, amarrotando o telegrama, Coronel gritou: Branca, nosso filho! Da cadeira de embalo para a rede, a pedir o livro de cheques, Coronel nem sabia como acudir sua mulher com a falta de ar, as criadas com leques abanando. Telefonassem para o Cipriano avisar a bancada no Rio. O melhor hospital. Procurassem a maior sumidade. Se quisesse tratar-se na Sua, no hesitasse. E em largos passos, gesticulando, telefonava, de vez em quando, ao seu mdico. Sim. Tem de ficar uns seis meses. Mais, se for necessrio. Contanto que venha bom. Sim. Sintomas de congesto cerebral. Sim. Uma congesto cerebral! Os passarinhos revoavam em torno do coreto. Missunga levantou-se. Seis meses de congesto cerebral! Trouxera atestados mdicos ao pai que insistia na pergunta: E por que no consultou a maior sumidade que houvesse? E sua me que o metera em confisso e lhe dizia: Pra-o-qu meu filho, voc agonia tanto seu pai... Missunga repetia sorrindo: E a sfilis paterna, mame, a sfilis paterna... J na calada da casa grande da vila, palpando os azulejos da parede, Missunga ia pensando: E sua me? Aquele ar de desgosto que ela tentava esconder. A serenidade na doena. A morte

inesperada. Os passarinhos saltavam pelo grosso muro da casa de azulejos portugueses, baixa, de muitas janelas, que seu av mandara construir na praa, os fundos com o trapiche para o rio, a loja ao lado. Noutro ano, na festa da Conceio... Missunga olhou a cadeia defronte, junto Intendncia fechada. Nas grades, duas mos escuras se agitavam. Devia ser um bbado. Gritou: Ei Levindo! Ei! guarda! Soltem esse homem a! No o ngelo? Voltou festa da Conceio, o encontro do pai, de luto ainda, com D. Ermelinda. Ela perdia os olhos no velho, alto, que ao lado do padre, passeava no largo, discutindo vinhos, com o [23] Carval e persegui-lo para aumentar os lances no leilo. Noites depois, tomando cerveja no Meira, com ela, Coronel: Ento casada, no? Seu marido em Abaet? No, Coronel, foi para o Arari. Deixou-me aqui para passar a festa. O bumbo da banda chamava os msicos no coretinho. Lafaiete mastigava pastis e o comentrio entre os amigos: Aquilo para o Coronel um negocio. Os olhos do tabelio. Um movimento rpido nas suas mos vazias. Parou de mastigar. Era o volume de notas que Coronel puxara. D. Ermelinda olhou, pasmada ficou. Viu a me, os amarelos castiais no quarto abafadio, a sua indiferena pelo casamento, a farda cerzida do oficial de polcia, o azar dos negcios de Josias pelo Arari, com ar pateta, vendendo farinha, mel cachaa a troco de boi velho, capivara, peixe seco e at pluma de gara. Outros abaeteuaras eram benzidos para o negcio, prosperavam. Ao voltar do Arari nessa viagem lhe apodreceram umas arrobas de capivara Josias das Mercs quis, de espingarda e dois tripulantes armados, buscar a esposa no Paricatuba. Ao meio da

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viagem o abaeteuara comeou a refletir. Hum. Sabem duma coisa? Tenho ainda uma velha me. Dobrem a canoa, dobrem. A espingarda escorregou-lhe das mos. Josias das Mercs chorava. Os japiins vaiavam da beirada. A essa mesma hora, com o seu ir e vir da varanda para a cozinha ou para o quarto onde, como nos seus instantes mais graves, tentava pentear os raros cabelos grisalhos, Coronel Coutinho pedia caf e gritava: Benedito, e nem gua nesta moringa, rapaz! Que lhe deu na cabea para ficar com ela no Paricatuba, tirar aquela D. Ermelinda do marido, senhor! O remdio seria dizer-lhe, que j estava farto... (que cheiro a oriza o de Ermelinda, como sabia combinar o impudor de uma amante com o ar srio, to natural, de uma senhora, como fcil e deliciosamente soube plantar-se em Paricatuba). [24] Ermelinda... Coronel, limpando o suor com a manga do pijama, tentava dizer-lhe que daria vinte contos se fosse embora (vinte? muito. Mas dez). Vinte contos se teimasse. Estava desgovernado, sem a sua gente em Paricatuba. E o filho, que diria, o filho que o viu aos soluos, fazendo cena, sobre o cadver de D. Branca? Ermelinda... Ela abriu os olhos, em que ia a tranqila deciso e a contagiosa indolncia. Que macia a espreguiadeira! Em? Como voc... o senhor, est plido. Quero um leno e... D. Ermelinda espreguiou-se e foi buscar o leno. Coronel deixava fugir a exclamao: Como os seus quartos balanam, Deus do cu! Tome... Em que est pensando, homem? Ermelinda... Antes da nossa amizade, tenho a minha posio

social. um escndalo. Esse homem... pensei muito. Posso dar-lhe um tiro. (Veio-lhe, ento, a cena de h vinte anos no baixo Arari: a caa aos porcos bravios, com Gonalinho, o tiro no caboclo que sempre lhe recusara devolver uma espingarda velha. A cabocla agarrou-o nas pernas f-lo descarregar o rifle no cho, caindo tambm com a coxa baleada. O ru no Jri fora Gonalinho.) D. Ermelinda voltou espreguiadeira. E depois tambm a tua honra que est em jogo. A dele... E mesmo o senhor que est me dizendo isso, Coronel? Mas, Ermelinda, reflete. Reflete pelo amor de Deus. No tem mais amor de Deus, Coronel. E com medo do Josias, santo Deus! Medita. Ermelinda... Minhas responsabilidades meu filho... Meu luto... Mais vergonhoso no ter medo do Josias? Ermelinda fitou-o, com malcia, to tranqila e segura, que o desesperou. Mas, Ermelinda, no h armas. Meus empregados no esto. Queres?... [25] O qu? Coronel, num desalento, sentiu um sbito pudor de concluir. Ermelinda insistiu com um olhar em que fingia condescendncia. Queres, ento, Ermelinda, que esse covarde me assassine miseravelmente? D. Ermelinda dobrou a cabea para trs numa gargalhada. Coronel, vermelho-vermelho, desabou na cadeira de vime. As carnes de D. Ermelinda caram em cheio na rede de embalo. O vento arrancava as folhinhas, remexia os jornais, soprava para dentro as folhas da mangueira. O relgio parado. E descanse seu corao que ele no vem. No sei quem dos dois que tem mais valentia. Ermelinda! No sabe que j matei um homem, um homem,

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que fao e aconteo dentro do que meu? O olhar da amante o desorientava. A pergunta que ela fazia a si mesma: matara mesmo ou... riscava nos seus olhos. Coronel pediu uma grande coragem para enfrentar o rival. Contavam que seu av matara um homem numa aventura semelhante. Uma grande coragem. A noite caiu, a solido que vinha das rvores, do grosso capoeiral, do igarap enchendo, das aves noturnas, da impresso de castigo a que estava ameaado e que o relacionava com a morte do caboclo, as surras que dera, lhe trazia tambm um homem cego e doido. Subiu um grande luar. Uma grande coragem para Coronel Coutinho. A janela do quarto onde Benedito dormia estava aberta. Por que no encarregara o caboclo da defesa, no o mandou buscar reforo... tudo uma confuso, foi, uma confuso. Mesmo Benedito, muito novo ainda que era, sem experincia, e quem sabe se Ermelinda no lhe fez uma cilada para extorquir dinheiro, em cumplicidade com o marido? Coronel parou porta do quarto, falou baixo: Benedito. A cabea do caboclo surgiu como suspensa no luar que entrava pela janela. O sono, o espanto, o luar o transformavam em um verdadeiro ndio, seminu, o ar espreita... Coronel recuou. Benedito dominou o luar e se aproximou, humilde e solcito. [26] Pega o casco e vai me levar j-j, Campinina. Noutro dia, ao anoitecer, Ermelinda examinava, na varanda, umas velhas louas cheias de p que encontrara numa grande mala quando romperam tiros no igarap, logo um motor roncou e instantes depois Coronel Coutinho, com um revlver cinta, as perneiras negras, o luto, o chapu preto, o ar bravio, estacava diante dela. E em seguida lentos, surgiam caboclos armados de espingardas e rifles, espiavam por todos os cantos. Um deles fixava o olhar nas latas de sardinhas do aparador. Houve um silncio, Coronel fez um sinal, os capangas foram descendo lentamente a escada que dava para as goiabeiras em flor. Caiu extenuadamente na cadeira de vime.

Ermelinda at a muda, ia perguntar-lhe se queria alguma coisa, gua, caf, rede; quando se deu a confuso l fora, rumor de armas, gritos subindo casa adentro, homens correndo entre rvores, um brado rouco: E de paz! e uns passos precipitados invadiram a varanda. Com a espingarda no ombro, o punhal no cinto, Capito Lafaiete assomou e Coronel se ps num salto como se visse diante de si o inimigo, o marido. Ermelinda acudiu e Coronel sorriu, desapontado e vexado, se abatendo e de novo na cadeira de vime: Quero a rede. A mgoa Coronel, que eu tive de no vir mais cedo acudi-lo. Mas o senhor, que me permita, deve propor ao governo a demisso do rsulo. Aquele tenente nunca foi seu amigo, nunca que foi delegado de polcia neste ou noutro mundo! Falava ansiadamente, D. Ermelinda contemplou Capito Lafaiete de alto a baixo. Era seco, a cara engelhada, os cabelos branqueando, os olhos sem cor, as orelhas como que tremiam. Parecia mais vergado com as armas, as mos mais ossudas. Encostou aliviado a espingarda parede e deps o punhal entre as velhas louas na mesa. D. Ermelinda, ento, arrastou a cadeira de embalo para ele e como tomada de repentina lembrana dirigiu-se janela para ver os capangas que conversavam, as armas no cho, sob as goiabeiras em flor: Olhem. S quero que no me apanhem as goiabas verdes! As recordaes de D. Branca ficaram dependuradas naquele [27] povo como contas de rosrio. Tardes de domingo, sentada na sua poltrona, no velho alpendre (que D. Ermelinda mandou retirar para ali plantar os seus canteiros de cravos e girassis), D. Branca recebia as velhas comadres, as afilhadas que sentavam pela escada, nos bancos, nas esteiras, contando casos, lhe pedindo roupa velha, retalhos de seda, sapatos usados, remdios. Algumas traziam almofadas para tecer renda que D. Branca comprava. Ali no alpendre ela combinava com as velhas rezadeiras a ladainha para S. Miguel Arcanjo e as

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novenas de Maio. Os curumins lhe traziam ingnuos feixes de miriti com que ela mandava fazer gaiolas, barquinhos, presentes da terra para os amigos em Belm. Traziam frutas silvestres, plantas, um filhote de quatipuru, uma ariranha e pediam em troca latas de biscoitos vazias, caixas vazias de figo, vazios carretis de linha, os papis coloridos dos embrulhos de D. Branca que tanto os maravilhavam. D. Branca no escondia o seu ar de senhora de engenho, de protetora, de madrinha do povo. Coronel Coutinho para fazer o gosto da senhora, nos primeiros anos de casamento, moveu engenho na Campinina que possura escravos no tempo do pai, Coronel Joaquim lvares Coutinho. Uma tarde, Coronel deu com o furto de algumas frasqueiras de cachaa: Agora, sim, acabei mesmo, Branca, com a tua teimosia deste engenho. Estes caboclos s a muxinga. Meu pai que os conhecia e sabia como os tratava. Ateou fogo nos canaviais, despediu os moradores, mandou queimar as barracas abandonadas. Os trabalhadores dobraram a cabea, ajeitaram os chapus de carnaba e foram se despedir de D. Branca que chorava. Veio o cerrado, os morcegos foram morar na casa do engenho. O apito da Campinina nunca mais apitou. No seu alpendre, em Paricatuba, D. Branca suspirava pelo engenho perdido. Quanto gostava de andar entre os canaviais, chupar cana que ela escolhia entre as mais doces, ver os tachos, a garapa espumando, o mel que prazer mandar potes de mel grosso que seu tio, em Belm, lhe encomendava sempre. O engenho de Itacu com aquela [28] casa grande, como um convento, beira do Arari, a capela, havia sido de seu av. D. Branca no se esquecia de visitar em Santana, Araquiaua e no Alto Arari as runas de engenhos que os frades coloniais deixaram em Maraj. Quando seu pai agonizava em Ponta de Pedras j estava Coutinho escolhido para substitui-lo na Intendncia. No fez mais do que herdar a propriedade e o ttulo do Coronel. Em poltica, acentuava o

velho tabelio Marcelino, Coronel sabia se aprumar, em p, no fundo do casco na maresia. Continuou com as fazendas no Arari e duas casas de negcios: a loja da vila e a Intendncia, que no lhe davam, na verdade, grandes lucros, conservava-as, como objetos de estimao, dizia. Seu melhor empenho era ter gado, numeroso, solta nos vastos campos. Ganhar com o menor esforo possvel, aumentar suas terras e os seus rebanhos era, afinal, uma modesta preocupao que no ofendia a Deus nem ao prximo. Devorara pequenas fazendas em Cachoeira, estreitando cada vez mais o cerco em torno das ltimas e teimosas pequenas propriedades que deixavam, enfim, de lutar com o grande domnio rural. Maraj para Coronel Coutinho e alguns fazendeiros grandes era um mundo parte, privado, lhes pertencia totalmente. Qualquer pensamento para aliviar as condies do vaqueiro e das fazendas, era como um ato de invaso propriedade. Quando D. Ermelinda comeou a plantar os seus cravos e girassis, os pobres de D. Branca se afastaram, resmungando. Ento a nova senhora de Paricatuba se divertia contando ao Coronel Coutinho as histrias do povo contra ela. Pajs metidos no meio, Coronel recebe o feitio dormindo e acorda nos braos da mulher do canoeiro. Ele sentiu a ausncia das afilhadas de D. Branca que iam a Paricatuba aos domingos tomar a bno. Suas afilhadas! Coronel dizia aos amigos em Belm que sabia povoar os seus matos, cruzar o seu fidalgo sangue portugus com o das ndias, encher a terra de povo com a marca dos Coutinhos. De que serviam as vacas e as mulheres seno para aumentar os rebanhos?

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[29] Soprou a preguia e estirou os braos na manimolncia da tarde. Longas sestas na rede cor de ouro do Cear. Suas caadas, a pesca de onde voltava sem um camaro no fundo da montaria, os

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robes de D. Ermelinda, com o seu ar a famlia e a serralho, tentando parecer uma boa e verdadeira madrasta, o separavam ainda mais de Paricatuba, das goiabas bichadas, das lembranas de Guta, do colo de Mariana e lhe aumentavam a solido. Pertencia, afinal, perguntava, por fatalidade aos insultos de Adelaide, s crnicas de Manfredo, s elegantes partidas de tnis no Par Clube, entre ingleses, norte-americanos e os melhores cavalheiros de Belm? Lera, com to ntimo prazer, a nota esportiva da Folha a respeito de seus dotes magnficos de discpulo digno de Suzanne Lenglen e o cronista destacava os recursos tcnicos, os golpes, o arremesso agressivo do exmio raquetista da dupla Missunga-Abelardo, campe no Par Clube. Queria era aprender golfe de verdade. E isto valia uma viagem Amrica do Noite, pensava. No tnis estava sem competidor em Belm, o que o enfastiava um pouco. J no contemplava com o mesmo entusiasmo e alguma inveja o retrato de Suzanne Lenglen na moldura em seu quarto de S. Jernimo. Nem mesmo entre os turistas ingleses apareciam bons competidores. O mal da fartura, o sucesso no tnis e o desengano nos estudos, o namoro de Hilda como este objeto o queria prender, entregar-se, engatar na sua herana! o empurravam para aqueles matos, fazendas, aquela Alade que fedia a peixe, a lama da vrzea na vazante. Seu pai se danava com as sbitas manias. Ser soldado, ser aviador, cursar uma universidade nos Estados Unidos. [30] O grande mal, papai, foi o senhor no seguir a tradio dos velhos pais paraenses. Como? De 1900 a 1914, os pais mandavam os filhos para Oxford. Paris, Lisboa, Londres eram, nesse tempo, dez vezes mais perto de Belm que o Rio. Que importava ignorar o Po de Acar se conheciam o Quartier Latin e o Moulin Rouge, o British Museum e o foot-ball? Agora, atrai-me dizia com ar de troa a carreira das

armas... Necessito aventurar. Imagine se eu tivesse... Na sua famlia de alm-mar consta algum capito? Imagine se eu chegasse a general. Em, que me diz? General Manoel Coutinho Filho. Os gales... estpido, mas digno da famlia! Limpava tranqilamente a virgem e custosa espingarda. O pai sustentava: no ficava bem que seu filho se demorasse tanto na vila, dando liberdade ao povinho. Perdia o ar de necessrio respeito e distncia que deve haver entre pessoas de categorias diferentes. Tambm a presena de Missunga no s o tolhia um pouco nas suas liberdades em Maraj e ate mesmo no seu a vontade com Ermelinda como o humilhava o povinho mais de perto ver, maldosamente, o fracasso do filho. Conversando com Lafaiete e Primo Nlson e em presena do filho insinuava que a vantagem do prestgio est em manter certa distncia entre o prestigiado e prestigiadores. Por exemplo, o Papa. Que seria do Papa se estivesse sempre aparecendo ao povo? Imagine o Papa andando, todos os domingos, a p pelas ruas de Roma ou comendo macarro num restaurante! O Rei Jorge da Inglaterra jogando dados com um mineiro! Tomo por exemplo, o Papa. Que seria do Sumo Pontfice se no tivesse a guarda sua, a pompa, o Vaticano? E uma exigncia da religio. Realmente, realmente, Coronel uma coisa que no me vinha, de modo to exato, me passando pela mente afirmava Lafaiete que, no ntimo, se divertia com os argumentos do seu amigo. Missunga, com um volume de A Cultura dos Campos, de Assis Brasil, contemplava o tio Nlson taciturno que mexia a [31] ca|bea, sem saber se confirmava ou se andava com o pensamento no seu gado da Primavera e nos gastos do filho no Rio. Certa noite, jantavam em Paricatuba, Coronel, de repente, perguntou ao filho: E que fim levaram teus livros? Missunga estranhou que o pai lhe falasse assim vista de Er-

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melinda. Afinal pensava que seu pai... Ora, papai, dei. Dei todos. E. Muitssimo bem. Quis Missunga perceber no olhar de D. Ermelinda uma censura de famlia, como se quisesse lhe mostrar que sabia de tudo, Coronel no tinha segredos para ela. Ela achou apenas divertida a resposta dele. Ele via, com pena, muito estudante pobre copiando dos livros que no podiam adquirir. Desgraados! Se espreguiava com os seus cigarros e as suas contas a pagar. Decorar noventa pontos! estava j, veja s, no primeiro ano da Faculdade de Direito, um imprevisto e ousado passo que dera! Respeitvel, incmoda sabedoria! Sombrios, pesades compndios de direito, como vocs o atiravam, com furor, para o seio de Adelaide! Aquele professor de matria, que julgava mais odiosa na Faculdade, era seu amigo. Andava s voltas com o cncer da esposa no hospital e com as dvidas ganhas no jogo. Um homem atarracado e pelado, o redondo ventre erudito, lia a Odissia e admirava Clemenceau. Uma vez, em companhia de Missunga, depois de citar o episdio do velho co no regresso de Ulisses e um discurso do Tigre, o mestre confessou-lhe o cncer e o jogo. Missunga soube, ento, como passar na Faculdade. O direito no era conquistado atravs daqueles compndios hostis e daqueles inacessveis ventres que se petrificavam nas ctedras e sim pela honrosa possibilidade que o estudante obteria, junto ao mestre amigo, de pagar-lhe o hospital, as letras do jogo e o enterro da mulher. No primeiro dia das provas que o promoveriam to fcil e brilhantemente ao 2. ano, nem Adelaide, aos puxes e gritos, [32] pde acord-lo, tir-lo da cama naquela manh. Que estopada ter ainda de passar nas provas! Vai, Adelaide, passar por mim... S

estudaria se tivesse de copiar como aqueles desgraados copiavam. Tamanha vadiao me comeu no sei quantas barcadas de gado, repetia Coronel, em suas habituais confidencias, ao primo Nlson que se consolava um pouco porque seu filho era igual igual. Missunga, uma tarde, andando atrs de uma mulher, num fundo de triste e paludoso arrabalde, descobriu, entre velhas vacarias e campos de futebol, aquela Escola de Agronomia e Veterinria. Um professor, exibia-lhe o risonho algbrico, o seu ar de co ensinado e teimava em explicar-lhe surda e confusamente trigonometria. Melhor voltar s estradas do Paricatuba, descobrir talvez a sua vocao entre os bichos, com a espingarda no ombro e o Benedito. Os cachorros farejavam as sumutumas, sapopemas e as tocas de tatu. Tinha era muita borboleta. Pareciam mais impacientes quando Missunga, sem explicao, lhes fechava a portinhola, de miriti, da barriquinha de Alade. Ento Benedito inventou: Missunga, com efeito, encaiporava os matos. Tinha medo das aturis onde moravam as sucurijus, dizia ele, e ao mesmo tempo que desejos de ir at l! Atiava os ces atrs de caa que ningum via. Para caoar, a bicharada toda se escondia e mandava os pssaros bem-te-vi e cancan ficarem de aviso nos caminhos. O Prncipe no havia de comer um tatu com a bala de sua espingarda. (Benedito ouvira Coronel dizer: L vai o Prncipe para as suas caadas reais, ele pensa que no tempo das Cortes de Frana...) Os bichos perdiam o tempo brincando com o Prncipe aparando as balas com as folhas das rvores. Caadores da redondeza no se podiam conter, desolados, ouvindo tanta munio se perder. Lhe traziam, no atur, veado gordo, cotia, paca. Missunga exclamava, risonhamente despeitado: Vocs so uns curados, seus diabos! Pedia defumao, ia ouvir lies de seu Felipe, usava quanto

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amuleto havia para caador e nem um periquito por desgraa. [33] Aposto que esses cachorros tm culpa. So empanemados. Mulher prenha comeu embiara deles, aposto. Foi quando os cachorros grevaram. Deixaram o Prncipe sozinho com as suas caadas nos bosques reais. Ele nos desonra e nos culpa! Sua caa aquela, aquela... Benedito, s risadas, divertia os companheiros, ousou mesmo contar sua histria a Alade, com quem tinha liberdades e acabou foi ela bem achando graa. Ficava horas e horas na enchente do igarap, chupando tapereb, roendo miriti, brincando com as ucubas, como lontra. A velha mangueira deitava ngua os galhos gordos, baixos, da gente sem pular sentar em cima. A Missunga se deixava ficar lendo jornais, revistas agrcolas, ou toa, fumando, se lembrando de migar tabaco para o curupira. Alade chegava, descala, por entre as sororocas. Atravessava o igarap na mar seca, deslizava os paus lisos de lodo, pisando siris e camares. Trazia uma rosa no cabelo. Era cunhant de primeira lua quando Missunga danou com ela numa festa em Paricatuba. Depois, no mormao da tarde, cansado de errar pontaria nos bichos do mato, ele ia ver aquele corpo crescer, verdoengo e macio que nem filho de bananeira. Era na barraquinha da tia de Alade. s vezes, em p, debruado no jirau onde os tajs, como plantas sagradas, esperavam o paj para as misteriosas noites de atuao, Missunga ficava mundiando a pequena. Alade, debaixo duns cajueiros meninos que comeavam a dar flor, colocava-se, ora de frente ora de costas, no tronco do cajueiro mais alto. Desfolhava e mordia as flores do cajueiro num desleixo de cunhat mesmo nova. Pulava, se enganchava no tronco, roando-se toda para firmar a perna no galho mais baixo e vergar o ramo mais flexvel at o cho de folhas. De vez em quando, um ai: mordida de formiga. Com o ramo que balanava ela fazia adeus a Missunga e soltava um riso. Colada ao tronco, enganchada no galho, meio sumida entre as folhas,

balanando o ramo, Alade parecia possuda pelo cajueiro. Levou-a uma noite para o igarap. As folhas pingavam luar como sereno. A mar vinha vagarosa do rio, parecia descer na lua cheia. Trouxera Alade, como uma filha das guas brancas, [34] os cabelos de prata, o corpo de peixe, o cheiro de aninga. No pode evitar que Missunga a despisse, como descascasse uma fruta, tentou escapulir-se dos braos dele, as guas caam da lua, branca era a terra, o homem, e s a noite, com peludo e escuro mistrio, era o que Alade cobria com as mos. Sou sua irmgaua! Sou sua irmgaua! Seu pai meu padrinho! Sou sua irm. Me largue. Sou sua irmgaua... Missunga, ao voltar naquela noite para a casa grande de Paricatuba, ficou subitamente dominado pela pergunta: Sua irm? Sob a capa de padrinho, seu pai escondia filhos e filhos, todo mundo sabia. Pelas informaes de Benedito (no, no passava de padrinho), pde ficar, ao certo, aliviado. Podia ter acontecido, pensava. Teve, assim mesmo, uma esquisita sensao de culpa. Estivera to prximo que, se lhe viesse logo a suspeita naquele momento, atravs das palavras de Alade, teria foras, seria possvel evit-lo? Alade continuou a despescar o cacuri de sua tia. Noites tranqilas, sem aquela dvida, delcia pelo desespero que no teve e se o tivesse que terrvel, inevitvel saudade pelo condenado prazer, tardes e noites com Alade no cho de palmas de aa. Mais tarde havia de sentir-se fatigado. Um caboclo o substituiria. Para Alade a sorte era aquela, to natural como a de subir os aaizeiros, pescar camaro, entrar no cacuri onde os peixes se debatiam, que nem ela sob o ardor de Missunga, o luar abrindo os olhos do mato e a gua escorrendo pelos paus no choro da vazante. Sentindo delcia, doce alvio! por tamanha suspeita passada, Missunga achava Alade, por isso, mais preciosa, restituda s suas mos com um inesperado encanto.

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Ia ver seu Felipe e D. Januria, moravam no muito longe da casa grande. Eram restos dos velhos parentes da famlia que iam se apagando por aqueles matos. Os dois velhos, se restava farinha, batiam no papo o triste mingau de aa. Isto se o pequeno da Feliciana podia tirar um cacho de aa no mato e fazer o vinho para eles. D. Januria no tinha mais foras para amassar. Pareciam felizes, pensava Missunga. Coronel dizia: Esse [35] Feli|pe o tal da histria: Preguia, queres mingau? Quero. Ento vai buscar a cuia. No quero mais... O homem tinha adoecido de indolncia. Nem nimo para se levantar de onde estava e procurar uma cuja. Coronel os tolerava generosamente, era do contrato firmado no cartrio ficarem naquelas terras at que fechassem os olhos. Sempre os tratou como parentes, respeitava a sua fartura perdida e quando eles e outros posseiros se espantaram, estavam feitas as escrituras por Lafaiete. Coronel queria ter o povo na mo. Terra por terra ele tinha que enjoava. Queria terra que tivesse povo. Povo ficava agarrado a ele como turu dentro do pau, dizia seu Felipe que, com seu desalento, procurava entre as folhas da Bblia, o pequeno e j apagado retrato de D. Branca. Fracassaram-lhe todos os desejos, ficou ali, bambo, na rede cor de poeira, opilado e cabeludo. No via mais o mato se aproximando e envolvendo a barraca. Trabalhar? Mas, pelo amor de Deus, para que? Lia na Sagrada Escritura que o mal do homem a cobia. Seus livros espritas assim tambm lhe falavam. Missunga aparecia, noite, pelo igarap, com Benedito remando devagar. No portinho, um coqueiro se dobrava sobre as guas, como a cabea de um bicho na sombra da noite. Num monte de palha, velhos cachorros fomeavam. Seu Felipe contava, tio, do seu tempo. Tinha uma voz de seu tempo. Tinha uma voz de remanso. Muito povo

os olhos dele viram passando por ali, se acabando. Ah! quando se fazia farinha, ah! quando se mandava buscar mel na Campinina e a mocidade caa nos caminhos tanto beber cachaa de D. Branca. Ah! as eleies, o seu pequeno eleitorado, a fome e gula do eleitor, as festas daquele tempo. Mandara construir um barraco para as festas. No eram como as que fazem por a, findando na polcia, em mortes. Homem liberal, o que tinha dava. Por ser assim um era que estava contando as palhas podres de sua barraca. Felipe silenciava a questo das terras. Ah, os haveres que perdera quando o Isidoro Antunes se [36] par|tiu nas pedras das Lavadeiras. No contava a Missunga que o pai do Coronel sortira a loja de Ponta de Pedras mandando tirar as mercadorias alheias no poro do navio. Podia-se muito bem dizer: a loja do Isidoro Antunes. Queria cobrar a tosto as vezes que foi juiz de festa de santo na vila. E os fatos de alpaca? Calcule quanto uma camisa naquele tempo? Seu Felipe tinha o gosto da imaginao. D. Januria no quarto, parava de se embalar, dizia, cuspindo: Assim, Felipe, j no. Tu j passa do limite. Faz por menos. Rangiam as cordas da rede na viga. A voz dela atravessava a parede esburacada e escura, como se viesse daquele antigo tempo de que Felipe falava. Ela rezava pelas almas, pensava nas possibilidades de ter roadinho. Tempos antigos de farinhar, que bom umas macaxeiras, um tucupi, mandiocas para ralar, goma para tacac, beijus. Ao lado da rede a sem bilros, quanta renda fizera! Debaixo da rede, o cachimbo vazio. Nem vela havia mais para o oratrio, o pesado oratrio, grande como um altar. Seu Felipe em compensao contava de visagens. A lembrana dos mingaus se misturava na correria dos bichos que malassombravam caminhos, roados, trapiches, as noites de pesca. Era o lobisomem com os botos atravessando a floresta. Mundiadas com a serenata dos botos brancos, fugiam mortas de amor e de feitio as mulheres em tempo de lua e as moas mal-a-mal nascendo os

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peitos. Catitus pulavam do mato saltando e danando. Irapuru vinha cantar nas bacabeiras e quem deixaria de acreditar que a cobra grande encostava, meia-noite, no Porto Santo para carregar lenha como um navio todo iluminado? D. Januria tinha insnia, e se, por vezes, censurava no marido o exagero das histrias, no negava a si mesma que ele sabia muitas e muitas coisas deste mundo. Nem uma cera para que os santos lhes mandassem o sono, o esquecimento daquela fome mida que lhe doa at os ossos. S o fumo aliviaria a fome e a insnia. E agora, santos do grande oratrio, como passar a noite? Seu Felipe parecia atuado na mundiao da boina. Esquecia a Escritura Sagrada, a reencarnao e virava paj. No lhe dissessem isto, se zangava e com voz mandona dizia que pajs s [37] no tempo dos ndios. Desencarnaram, so hoje espritos de luz, guias. Caa um silncio como um sopro do velho oratrio, Seu Felipe cochilava. Missunga erguia-se. A vazante ia deix-lo no casaro, debruado na pergunta: ate onde ia parar a sua vida, aquele medo de solido, o tdio e ao mesmo tempo a saudade do Ri e de Mariana? Seu Felipe despertava, sobressaltado, procurando o rapaz, chamando por D. Januria, pelos cachorros famintos. Parava o olhar surpreso na mesinha onde a lamparina a azeite dava uma luz mansa e triste como se fosse a nica luz do mundo. Havia uma grande e redonda moeda brilhando em cima da Bblia.

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[38] Desejos de ver Guta no Campinho. Estava, diziam, uma verdadeira moa. Foi primeiro Loja do pai e sorriu hiptese, que lhe ocorreu, de ficar ali caixeiro vendendo sabo, tabaco e cachaa para aqueles caboclos. Apareciam Loja os homens que batiam

capim das ruas da frente. Vinham com a garrafinha de querosene, pediam sal, uma quarta de caf em gro, os dois dedos de tabaco. Estavam ganhos os dois mil ris da Intendncia. Que pensaro de mim? indagou Missunga a si mesmo. Eles davam boas tardes e o tratavam com uma espcie de dignidade que Missunga no entendia bem. Alguns passavam por ele, com um certo alheamento arrogante. Saam cuspindo o ardume do mata-bicho. Missunga tentou pedir a um deles qualquer coisa, falarlhes para que uma intimidade os unisse, no pensou bem no que queria, pelo menos teve desejos de ir com eles armar camboas para peixe nas praias de Mangabeira e Jaguaraj. Viu passar o porteiro da Intendncia, com os seus tamancos, um feixe de varas no ombro. A casa do Benedito em runas, o caso onde o extinto Clube Ltero Musical ostentava umas festas com foguetrios, recitativos e quadrilhas. Adiante o Disco de Ouro, aos pedaos um palacete que foi a dona enlouqueceu com o naufrgio do Isidoro Antunes. As casas caindo. As casas caindo. Pensou em Ciloca, o leproso, fantasma de toda noite em Ponta de Pedras. O povo evitava os postes de luz de carbureto em que Ciloca costumava encostar-se para contar aos meninos anedotas obscenas, ensinar-lhes maldade, envenenar-lhes a curiosidade. [39] Mui|tas vezes, os meninos ouviam histrias com um silncio diferente. Ciloca sabia orao de S. Cipriano, a Bela Adormecida do Bosque, o Ali-Bab, contos de feiticeiros, cortes e meninos encantados. Fora padeiro da vila. Quando no pde mais esconder a molstia, o povo havia comido muito po amassado com aquelas mos. Na padaria lembra-se Missunga quando passava as frias na vila Ciloca, os dedos na massa do po, suando, a cara lustrosa, contava amores que inventava, vcios que no tinha, padre que vira agarrado s devotas na sacristia, charadas d O Malho que decifrara, bruxarias de S. Cipriano que o livro do santo bruxo no contava. Falava do Pedro

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Malazarte e de proezas que o heri nunca fizera. Velho Nlson se desesperava sempre com a lembrana do Ciloca padeiro. Olhava pensativamente o povo esvaziando Ponta de Pedras, em lenta e triste migrao. Trabalho mais no havia. Em Belm, era o apito das fbricas chamando pessoal de todas as vilas abandonadas do interior. S fica a baixa categoria de gente. Ningum mais. Se os homens iam para Abaet, Tocantins, para os garimpos, escolhiam as olarias, serrarias, a pesca na contracosta, a vida dos barcos, partiam para as Ilhas. Coronel Coutinho se queixava: Isso falta de amor terra! Lamentava que a Intendncia lhe devesse j seis meses de vencimentos. Nas festas de Dezembro dava para o dia do Crio, aos caboclos, a frasqueira de cachaa, a grosa de foguete e o padre. A vila mesmo vira tapera foi como tio Nlson encontrou Missunga na rua do cemitrio. As barracas se esfarelavam nas capoeiras. Tio Nlson lembrou o engenho de Campinina que h muito deixou de soltar o seu apito na remota espessura do mato. Falou na falta de camaro e na necessidade de mandar Ciloca para o leprosrio. No sei pra onde vai isto, meu filho. O Sr. do tempo dos navios de roda, tio Nlson. No se acostuma... brincou Missunga. Vamos pra casa. Caminhavam lentos e mudos como se caminhassem no [40] pas|sado: os velhos navios de roda descarregando pipas de vinho, latas de azeite de Portugal e peas de linho H. J. A Intendncia caiada. A luz de carbureto funcionando. Tio Nlson via hoje os trapiches se arriando, vapor era novidade de ano a ano. Ciloca espalhando o livro de S. Cipriano pelo povo. Os carneiros entravam e saam do muro grande. At o srio Felipe mudou de loja para Belm. Agora quem substitui ele no Maraj esse outro ladro, o Calilo.

Apesar de fazendeiro, tio Nlson gostava da vila e das fazendas. Nascera ali, e dali se ausentara na mocidade: uns vagos estudos em Belm e um passeio ao Rio. Envelheceu em Ponta de Pedras e nos campos. Todas as tardes sentava nos paus cados defronte de casa, rua do cemitrio, mal rebocada de terra amarelenta e esteios escuros, as janelas pintadas de negro. Estou cansado de partir uns paus, disse. Costume muito seu, esse, de partir lenha. Estava sem camisa, com as suas velhas calas de mescla. Com aquele corpo teso como os bacurizeiros, a pele dura, as mos avantajadas, os olhos escondidos na cara grande, velho Nlson era mesmo o antigo tempo, a Ponta de Pedras do O Zephyro e do O Zenith, dois jornais do Pereira, o vogal sempre reeleito e do finado Marcelino, o tabelio. E a tipografia que era sua, tio Nlson? Aqueles patifes me furtaram ela quase toda. O resto de caixas e tipos o mato comeu. A casa desandou toda, uma noite. A erva de S. Caetano cobriu o resto. Hoje o jornal daqui O Vento. O Vento? Sim, que aquele beberro escreve a mo e tira trs exemplares nos domingos. S imoralidade e mexerico. E tal qual um testamento de Judas. Missunga hesitou ainda, com algum receio ou vexame de ir at casa do seu tio. Velho Nlson o levou pelo brao, por entre as mangueiras que seguiam em fila como num enterro para o cemitrio. O cemitrio jazia numa paz doce. Ali o antigo tempo, dentro do velho muro, orgulho de Ponta de Pedras, em Cachoeira o cemitrio era de estacas. As plantas como cruzes, os [41] passari|nhos, os velhos caboclos contando ainda, nas sepulturas, suas histrias de cabanos e de ouro enterrado. Missunga chegou a ter uma vaga vontade de uma sesta definitiva debaixo daquele cho. Quem te viu quem te v. Ponta de Pedras! Uma velha frase de seu Nlson. Achava bem precioso dizer que

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o povo era da mais baixa categoria. Chegava at essas alturas do falar difcil e j chegava cansado como se tivesse escalado montanhas e montanhas do bem falar. Enchia o seu cachimbo de patriarca e cachimbava como um paj abandonado, sem que ningum mais acreditasse nele, acabando os seus dias a defumar aqueles paus caldos, o capim seco, o cemitrio, as rvores fiis, aquele p grande de bacurizeiro, um ou outro porco fossando por ali perto. Defumando o prprio silncio em que guardasse, como numa urna funerria, as cinzas do antigo tempo. Se lhe agradava saber que cresciam os seus rebanhos da Santa Ins, ficava cada vez mais inquieto com as escovaes do primo Guilherme ao querer lhe passar o bolo numa venda de gado do Arari. o pai escrito e escarrado. No digo que o que ficou nesta vila foi gente da mais nfima? Velho Nlson quando chegava a murmurar a NFIMA CATEGORIA estava nos seus grandes dias amargos de falar difcil! Tinha subido uma altura imensa. Limpava com as mos grossas o suor do peito, dos sovacos e com a vassoura enxotava as galinhas, como se tambm varresse da vila a gente nfima que ficara. Os periquitos ainda faziam zoada nas mangueiras. Li adiante a curva do rio, o mato cobrindo o igarap, e um pedao de vrzea onde se exibiam, na lama, com o luxo de seus leques vistosos, os miritizeiros carregados. Viram os acenos de Lafaiete na esquina, pararam. Sim, senhor. Em casa de um pobre tabelio filho de nababo no vai. Esperei para um caf e at agora. Missunga lhe havia j, na loja, transmitido o recado do pai, no vira a cumplicidade e o ar maligno de confidente que pensava descobrir em Lafaiete na questo das escrituras. Espantoso seria para o tabelio se fosse obrigado a fazer uma escritura legtima. Como o pai e a justia se entendiam muito bem! Tio Nlson arrastou cadeiras para a frente da casa. [42] E a vida, ein, Lafaiete? Apodreci num cartrio, amigo... E pensar que Ernesto, meu

colega de Liceu e que colava as minhas composies , hoje, deputado federal. Galeo, outro, que diretor do Tesouro, dei-lhe cascudos um dia porque me furtara no pquer. D. Marta trouxe o caf e dirigiu-se to naturalmente a Missunga que este se surpreendeu. Havia, na verdade, passado algum tempo mas esperava por parte dela que estpida aventura! alguma reserva, um constrangimento, uns olhos baixos pelo menos. Sorriu para D. Marta e desceu o olhar para as mos de seu Nlson que pareciam mais pesadas e rudes sobre as coxas. E Lafaiete contemplou D. Marta, alguns segundos, viu-a cheia, sada h pouco do banho, os jasmins murchando nos molhados cabelos. Lembrara-se do frio com que vinha, nas madrugadas, depois de um mergulho no trapiche, acordar a pequena Marta, cria de casa. D. Marta o encarou com indiferena. Seu brao se estendeu, abundante, entre os trs amigos para recolher as xcaras. Espalhou-se um cheiro a sabonete e a baunilha. Enquanto conversavam, D. Marta voltava sua mquina de costura no corredor. Ah! lanadeira tu ests de lua, hoje. Tentou cantar baixinho, ouvia a voz de Missunga e se ps a pensar naqueles dias loucos de dezembro que ela tudo fizera para esquecer. To sem vontade de costurar, to mole, to irritada mesmo com a presena de Missunga, Lafaiete e do prprio seu Nlson resmungo e pensativo. Se ao menos Elmirinha estivesse viva, foi o seu quase obscuro e aflito pensamento. Uma saudade, morte de Elmirinha, o primeiro filho to desfigurado, a morte de Laura, a faca de Beltro com o sangue de Laura, o grito do filho de Laura, pensamentos e lembranas indistintos e confusos. Criara-se em casa do pai de Guilherme onde Lafaiete a encontrou. Uma noite, D. Guilhermina avanou, os olhos crescidos, para Marta que se acuou a um canto, com as mos instintivamente sobre o

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ventre, os lbios trmulos. Lafaiete, que surpreendera a cena, logo compreendeu e gritou: [43] Vendo, Guilhermina? Eu j suspeitava, eu j suspeitava... porta da rua com ela, porta da rua... Caminhando para a sala, sob a dvida: Guilhermina suspeitar? Marta confessar? bradava que a cabocla procurasse a vida, os homens, o mundo, contanto que sasse de casa. Sasse j. E em casa de famlia! E em casa de famlia! D. Guilhermina suspeitou, teve medo ou hesitou em interrogar a pequena e dela ouvir o que no queria saber. Ao mesmo tempo compreendeu que talvez estivesse sendo injusta com o marido. Melhor nada saber e deixou que as palavras de Lafaiete enchessem aquela noite sobre Marta e a obrigassem a partir. O medo de Marta! E o berro: E em casa de famlia! E em casa de famlia! enchia-a de pnico. Aquele homem era dos brancos, falava de peito cheio, protegido pelos grossos livros na mesa que ela custava a arrastar quando ia varrer a sala do cartrio. Aqueles livros sombrios a condenariam se por ele fossem abertos para acus-la. Aquele berro vinha daqueles papis em pilha que ela no podia tocar. Medo, o mesmo medo das visagens quando a mandavam perseguir os ratos e mat-los a vassoura na cozinha sem luz. O filho de Marta a verminose levou. Depois, quanta noite em montaria, remando, entre homens que bebiam e cantavam, a insultavam e amavam, a baeta de roupa, o chapu de pano na cabea, as pernas turas de lama, subindo o stio ao claro da lamparina que o dono da festa suspendia num paneiro para o desembarque dos convidados. Quanto medo, naquela festa de St. Ivo, quando o amante, bbado, quis atir-la na lama, alagar a montaria no estiro, naquela escura e to infeliz madrugada da morte de Laura no terreiro da festa. Foi quando a senhora do seu Nlson enlouqueceu. Seu Nlson andava atrs de uma pequena que cuidasse da casa e da louca. Marta sentiu medo da sorte de Laura, no a podia esquecer, ouvia o grito do filho

de Laura diante da faca de Beltro. Preferia tratar de uma louca mansa. Um ano depois, Marta teve de seu Nlson, j vivo, uma menina, a Elmira, nasceu com os olhos azuis do pai. To crescida que estava, uma tarde no banho desaparece na mar. Uma e outra palavra de Missunga, l fora, a levava de novo [44] para aquele baile que Capito Guilherme oferecera no aniversario da filha. Pecado que ela no tinha: ir em bailes da sociedade. Foi festa por insistncia de Guilherme. No era casada mas em casa dele podia danar como uma senhora. E pela primeira vez no pde resistir quela sbita ansiedade, ao ardor, diante do olhar de Missunga que a invadia toda, examinava-lhe as carnes sgicas [rijas]. Dias loucos de Dezembro. Cara como moa donzela. Noites depois, o encontro atrs do cemitrio, formigas de fogo os atacaram e ele murmurando: que seu corpo, D. Marta, doce, tem rapadura... E afinal a cena tambm atrs do cemitrio: No volto mais, estou praticando uma infmia a Tio Nlson. Voc deve se compenetrar de que o desonra. Como se arrependera tanto de haver respondido quase aos gritos e aos soluos. Vontade de esbofete-lo diante de seu Nlson quando ele ordenou: No grite. Suspendeu a costura. Esqueceu os dias de Dezembro, os passos de Missunga fugindo por entre os galhos. Tinha de aquentar a janta. A empregada no viera, andava com uma febre, febre mesmo misteriosa. Lafaiete e Missunga se despediam, o tabelio falava num Afonso da Espanha, num rei popular e dizia que a sua paixo era ver as touradas, ver Sevilha, as vozes se apagavam pela rua do cemitrio. Anoitecer de sbado. J as corujinhas piavam. Tio Rafael vagarosamente se dirigia para os sinos que se penduravam nuns esteios ao relento junto da igreja. Sino macho e sino fmea, dizia o povo. Coronel os trouxera do Itacu e os apresentou diretoria da Festa e a

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comisso zeladora da Igreja com uma conta de sinos vindo novos da Alemanha. Tio Rafael apanhou os badalos do macho e fmea e tocou Ave Maria. Taberneiros se benzeram, depois de negarem ao sacristo da Santa, um quilo de farinha fiado. Caboclos, com o copo na mo porta das vendas tiraram o chapu. D. Maria fez o pelo sinal sobre a panela que fervia. Missunga e o tabelio caminhavam em silncio. Seu Nlson bateu o cachimbo, olhou o tempo e persignou-se. Ps o seu velho bon na cabea contra o ar da noite. Tentou animar o caraxu que se encolhia todo na gaiola sem cantar. Que [45] perseguio aqueles ratos num gui-gui-gui pelo telhado. Na parede descascada, oscilando na aragem que entrava, o retrato do Baro do Rio Branco a quem seu Nlson, comendo bacuri, exclamava. Ah, Baro, que inveja estou lhe dando. Voc que gostava tanto de doce de bacuri do Par! Depois de enfiar-se na camisa curta, sentar na velha poltrona, deu o seu pequeno brado habitual: Apressem a janta, gente. Branco, alto e curvo tinha um ar histrico de velho bandeirante. Os sinos ao relento anunciavam ladainha. Vinha do cemitrio a doura da noite.

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[46] Olhou o cu da vila, as estrelas murchas, o silncio que exalava de tudo. Teve um desejo do muito longe, das outras distncias que o mato fechava. Agora a vila pobre lhe parecia boa e macia como rede de embalo. O pio das corujas era como acalanto. Como estava ficando sem gente. Se os rapazes iam embora, para quem ficavam as mulheres? Bem podia ter ele o direito de ser o pai da futura meninada do Marajoau. Seria mais tarde o patriarca da vila, um tio Nlson barbudo, fazendo raa com as cunhats, os afilhados lhe tomando a

bno. Missunga enchia a noite com aquele informe desejo. Sim, o padrinho abenoando o povo, feliz, com a sustncia daquelas sumaumeiras de Paricatuba. Tomou o rumo do Campinho, mandara dizer a nh Benedita que ia tomar aa, apanhado na hora e amassado por ela. Viu uma sombra desaparecendo na capoeira. Palpitou que era Ciloca. Foi atrs e parou diante do sororocal macio. Sabia da histria de Ciloca contada, com todos os exageros, pelo povo. No sororocal, o leproso rebolava-se num desespero. Era sempre assim quando a saudade de Sinhazinha o angustiava, lhe coava a carne podre, lhe mordia os nervos, contava o povo. Sinhazinha viera fugida. O pai, Dr. Batista, juiz de direito, fincou p contra o namoro. No entregava a filha a um serenatista, um padeiro, um tocador de violo, um frasqueira. A pequena bateu o p que casava, saiu de casa do juiz para o amor debaixo do sororocal. Morreu de parto. A vila soube pela voz toda da famlia de Sinhazinha que a moa havia morrido de uma ter maligna. Para esconder a vergonha [47] a vila comentou Dr. Batista dera, ele mesmo, um leite na mamadeira ao pequenino que ficara. Enterraram o anjo, uma hora da madrugada, no fundo do quintal. Cresceu em cima um tajazeiro muito bonito, de noite piava coma um choro fraquinho de criancinha de leite. Ciloca, falava o povo, se deitava nas sororocas teimando recuperar aquela manh de amor, ouvir o gemido de Sinhazinha, os soluos. O cheiro de Sinhazinha lhe ficou na alma e nas chagas como um visgo. No breu da noite, Sinhazinha lhe aparecia das oraes de S. Cipriano, como um corpo feito de mangaba, leitoso e travoso restituindo-lhe aquela manh nupcial. Missunga esperava que nh Benedita amassasse o aa. Ciloca tinha lhe tomado tempo. Pensou em Alade. Alade se delia no brao dele como sapotilha madura. Gostava dgua como filha de lontra, tomava banho no pino da mar como se a mar enchesse s para ela.

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Ficava com gua at o peito lambendo-lhe os seios e cantava. Missunga dizia que era o canto da mar cheia que Alade cantava. Nh Benedita, a preta doceira, amassava o aa. Os quartos dela se mexiam, peitos, braos indo-e-indo no velho alguidar. Nh Benedita! Suas cadeiras de almofada buliam rebuliam no tempo do lundu, do coco. Tempo de vapor de roda. Era nova e por isso cativeiro de sua me bom tempo era. Axi! que trocava mea mocidade com a moarada mole de agora. Tinha a boca torta de cachimbo. Guardava no oratrio atrs da imagem de S. Benedito a carta de alforria que o Coronel Coutinho, muito novo ainda, lhe dera quando a escrava ia ter o Elesbo, filho dele, morto aos 12 anos. Sua filha Estefnia cantava no coro da igreja, contam que morreu estuporada. Missunga tomou aa, apanhado tardinha, e amassado com aquelas mos speras, grosso, espumando na farinha de tapioca. E verdade, verdade, aquela velha negra foi amante de seu pai, seus filhos meus irmos. O aa de nh Benedita trazia o sabor do antigo tempo quando havia escravos em Ponta de Pedras, que fim levaram Catarina, Margarida, Maria de Nantes, netas de escravas? Batiam algodo [48] nas madrugadas com dois maos de palmeira caran sobre um almofado. Torcido e fiado saa o algodo para os velhos e rsticos teares em que as negras trabalhavam fazendo redes. Era a batio, como um rumor de tambor surdo nas palhoas, acordando a vila nas madrugadas. Eu lhe conto porque nunca mais voc pega desse tempo, meu filho. Hoje quem que faz rede, quem bate mais algodo? No quer mais aa? No? Ento no gostou. Gostei sim, tia Benedita. Missunga carrega em seu corao no a histria, mas a carta de alforria que Benedita guardava. Voltou. A noite escura despovoava Ponta de Pedras, Missunga

sentia-se como em pleno mato virgem. Seu pai continuava no se incomodando de mandar consertar os canos de luz do carbureto. Aos. poucos, gente apalpando na escurido ou trazia lamparinas, candeeiros, riscando fsforos, acendendo fachos. No Campinho, Picapau, que tinha os ps torcidos e era escrivo de polcia, principiou a ensaiar na flauta uma das suas valsas sentidas amolecendo a rude treva que vinha das capoeiras, do rio, da noite que se orvalhava. Missunga ia ouvir a ladainha. Os sinos chamavam. Tio Rafael, de manga de camisa, ps toalha nova no altar de Nossa Senhora. Camisa de tio Rafael podia sair aos fanicos, Nossa Senhora havia de ter sempre roupa nova. D. Ermelinda deu uma toalha linda, de promessa para a santa. Tio Rafael desinteressava-se de si mesmo para dedicar-se, tratar bem de Nossa Senhora, da sua igreja, rezando as suas novenas. Padre era luxo que s vinha em dezembro. O jeito era ir arremediando para que o povo de todo no ficasse esquecido de fazer ao menos o pelo sinal. Tio Rafael acendeu dois. castiais. Tocou os sinos para a segunda chamada. Comeou a entrar gente. Na igreja, cheiro de alfazema se misturava ao fedor dos morcegos que ofuscados na luz dos castiais esvoaavam na sombra. Si Felismina se benzeu e foi admirar a toalha nova do altar. Uma beleza. Tambm D. Ermelinda pode... Missunga bateu no brao de si Felismina. Ela se voltou espantada. Se espantou, mea me? Por que no? Voc anto j no me conhecia. Veja! Como t Coronel, D. Erme... Mea me sempre falei consigo, mea me. No fale. No falei com a senhora hoje? Missunga, sempre te lembra que fui tua me. Tu te esquece de me tom a bena, seu malagradecido. Defumei muito ele com alfazema. Queimei o umbigo quando caiu. D. Branca coitada sem um

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pingo de leite. Quem te viu, esse choro. Agora, faz parte que no v a gente. Branco, em? E sua gente e Orminda? Para que estar contando histrias de pobre? Sua vida, depois da morte de Francisco? Tanto que no queria Francisco sentando praa: Ouve tua me, meu filho. Ouve. Dudicia tua. Quero servir a Ptria, mame. Que fao aqui? Ser eleitor do Coronel Coutinho? Apanhando aa toda a vida? J criei calo de tanto trepar no aaizeiro, mame. E s desgosto. S temos esta misria. At tesouro enterrado j escavaquei. Si Felismina se calava, fiando no seu cansado tear. As redes de si Felismina eram fadadas. Fazendeiros e doutores lhe mandavam fio, as redes saam bonitonas, grandes. Meu filho morreu na revolta e os polticos bem como querem. Meu filho com a barriga aberta na rua como qualquer disgraado e os mandes se abraando. Me contaro que ele pedia gua, gua, quando morria. At gua no quisero dar pro pobre do meu filho. Da por diante, as redes de si Felismina eram feitas tambm com os fios de suas lgrimas, numa revolta contra os brancos. Com esse dio, tecia as redes para branco ter amor, ter sossego, dizia ela. Missunga ficou na porta da igreja, pensando na sua ama de leite Felismina. A revolta levou-lhe o filho (seria tambm irmo dele?) barriga aberta no meio da rua em Belm. Dizia que no chorava a morte de Francisco. Chorava a sorte. Se morresse doutro modo, sim, mas daquela forma? Era o seu arrimo. Os outros coitados: um andava por a inchado, o Marcelino, flechado de bicho do fundo. S prestava para ladro. No sabia porque Deus [50] deixava aquele infeliz neste mundo. Para estar padecendo assim flechado de bicho... O outro perdido no Jari. Estevo, barqueiro na contracosta, nunca aparecia. Restava Oriunda. Si Felismina amaldioava a tal de Ptria. Chamava os caboclos e os caboclos iam morrer em defesa duns homens que desonravam a

ptria. Se eles voltavam, me terra estranhava os filhos. Filho no queria mais bem me terra. Vitorino voltara perdido. Vadiava pela vila armando briga nas farras. Os vcios visguentos da cidade o envenenaram para sempre. Vitorino voltara besta, ordinrio, torcendo o nariz ao seu povo e a terra. Para ele a vila era um buraco entupido de mato. A sua gente no podia imaginar o que era Rio de Janeiro, o que era andar no bondinho do Po de Acar, correr da ronda no Mangue, falar a gria carioca. Ento sentava na soleira das portas, inventava casos, ponteava violo, punha as raparigas lado a lado com as suas namoradas donzelas, acendia a bagana e se estirava numa indolncia de soldado em folga, pensando no Corcovado, nos trens da Central, nos distrbios da gafieira. Me terra criava filho para servir de pasto aos brancos sem vergonha. Ptria ficava a de cara no cho. E a Bandeira servia para abanar o ardume das feridas abertas e espantar os urubus que iam afiar o bico nos cadveres insepultos. Os brancos se banqueteavam reconciliados. Si Felismina sabia que um parente lutara ao lado dos cabanos. Por causa do filho achava que se devia fazer uma nova Cabanagem para acabar com muito branco. Missunga perguntou se ele fora menino mamador. Meu filho, voc quando me mamava mordia meu peito por demais. Um dia ficou roxo. Cad anto que se alembra? Os rezadores j estavam ao p do altar. Tio Rafael era o capitulante. Pela ltima vez os sinos chamaram. Missunga comeou a reconhecer gente. Pessoal do Ponto Certo. A filha do Bernardino, os Almeidas, povo do Campinho. O Rodolfo. Tia Esperana. Sentado, muito devoto, seu tio Guilherme devia estar pensando como lograr seu Nlson e como tomar as terras do seu compadre Jango. A ladainha ia comear. O contralto era Vtor Nua, alto, o pescoo longo e esttico, o mesmo Vtor que tanto o [51] impressio|nara na sua infncia, com a sua voz aflita e cansada. O baixo era Manoel Vilar, escrevia o programa das festas de dezembro, professor

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em ladainha. Tio Rafael puxou o latinrio. Vinte sculos de f amassados de superstio e humildade saindo com um travo na voz dos rezadores. O latim perdia o mofo, a rida exatido, a rabugem de sua velhice para ficar mesmo lngua de ladainha na boca dos capitulantes. Missunga deu com a velha Benedita. Como rezava! Como sua cabea de bilro, cabea de negra, estava bonita. Os doces da velha Benedita, nas festas de dezembro, tinham um sabor do afago da me preta, o sabor da ladainha que tio Rafael rezava. Missunga no podia esquecer o que fez com a negra velha, no podia esquecer, o canto de ladainha lhe reconstitua a cena. Chefiava uni bando de guris, a esperar nh Benedita no meio do caminho quando ela viesse pro largo com o charo de doces na cabea. Nessa noite vinha retardada. Ningum no caminho. Os guris, acuados. Nh Benedita com o peso do charo grande na cabea. Missunga ps dois dedos na boca e assobiou. Rasteira na velha a gurizada em cima dos doces. Missunga, mais tarde, lambuzado, sujo, cansado e com medo apareceu no largo. Logo se espalhou a proeza do menino e a zanga do Coronel. Mas, seu Missunga, voc um menino heri. J um homem. Na certa velha Benedita lhe fez alguma maldade. Exclamou Lafaiete. Missunga recorda como viu uma cdula escapar-se das mos do seu pai, cair na poeira e Benedita apanhar. E os olhos de Lafaiete perplexo, que insistia: V l, Benedita, se no ests exagerando o prejuzo, diante da generosidade do Coronel. Arrastado e aos gritos, com as palmadas do pai, foi ainda a negra Benedita: Chega. No bata tanto nele, foi coisa de criana. No esquece aquelas mos de preta na cabea, aqueles braos que o protegeram do pai. Velha Benedita fazia doces melhores do que os que perdera, melhores e de graa.

No chore pra sua me no saber. Ela est doente... [52] Ele se deixou ficar naquela pura bondade. Com aquelas mos esqueceria o catecismo, a gramtica no Carmo e o desalento de sua me que lhe dava uns carinhos cada vez mais tristes como se despedindo. Se pudesse levaria nh Benedita para tratar dele no colgio. Agnus dei... qui tolis... Ouvia com indefinvel azedume o ora pro nobis montono pingando daquelas bocas fiis a Nossa Senhora. Sentia-se como despojado daquela religio com latim errado e f bem certa. Belm era Adelaide morrendo pelo marinheiro negro, era a Hilda, o tnis, o garom. Os trenzinhos da Estrada de Ferro tuberculosos tossindo pelos apitos. A Baslica exibindo em mrmores e vitrais da Itlia a vaidade e o temor de Deus dos fazendeiros, advogados e comerciantes. Tudo ali parecia apodrecer. As ltimas chuvas amoleciam o resto de carter daquela gente de cima. Belm crescia na vrzea lodenta sob as chuvas, os carapans e a F na Virgem de Nazar. Missunga preso ao seu mundo, desovando na solido o seu pensamento desasado e mido. Rico e intil, sem saber coisssima; no dava para nada. Para nada. Sua famlia tinha um vitral na Baslica, tinha um altar, um automvel, nos domingos de maio, com uma criada para distribuir pelas igrejas as esmolas anuais que Deus pedia. A ladainha lhe trazia a voz de Orminda fazendo coro, aquela voz o denunciava, ia contar outras histrias aos escravos mortos, razes no velho cemitrio, no ouviam mais. Seus sofrimentos, humildes demais para subirem ao cu, ficavam sangrando no cho. Ouvia Agnelo que, ainda bbado, rezava, como um bbado de Deus, com uma voz quase um grito num tom de blasfmia como se prometesse derrubar os altares e arrancar o manto de Nossa Senhora para os curumins, que cada vez mais entristeciam na poeira do Campinho. No rezes mais, Agnelo. No cantes mais, Orminda. Tua

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voz nasceu para o coro pobre da velha igreja. Talvez rezes pelo teu irmo na contra-costa. Seu pensamento fixou-se na imagem da Santa no altar, a cara de boneca, o manto brilhando. Quase todos os anos Capito Guilherme mandava encarnar a imagem em Belm. O coro sereno na voz sumarenta de Orminda. Deus transbordava nas vozes. Velho Deus [53] da doceira Benedita, no s mais o meu Deus. Meu Deus o da Baslica, de um Papa que tambm chamam Pontfice ou Santidade, Pio ou Leo, num trono de ouro fala difcil para o mundo. Nossa Senhora no ouvirs meus irmos sem nome nem as prostitudas pelo meu pai e pelos meus tios, santa do Agnelo, o bbado, do Marcelino, o ladro e do Ciloca, o leproso. Es tambm a santa do meu pai, lhe ds boi gordo, vaqueiros mansos e alta nos preos da carne para que haja mais altar e mais vitral na Baslica. Missunga lembrouse de Adelaide. Quis sair. Por que Guta no viera? A voz de Orminda era a de uma irm perdida, a voz de Agnelo, a dos que pedem contas a Deus. Nunca mais pudera reavivar a vontade de pedir Nossa Senhora uns dias menos sujos e um imaginrio perdo s suas culpas comuns. Rico, mas como queria ser feliz! A ladainha tambm lembrava a voz de Mariana e a histria da tia Esperana, a negra benzedeira: Quando D. Branca morreu, no foi S. Pedro quem lhe abriu a porta mas Nossa Senhora. O povo, ouvindo a histria contada pela negra, via D. Branca entrar no cu de brao dado com a Senhora da Conceio. Voz de Mariana, histria de tia Esperana e logo sua me tentando imitar si Felismina no acalanto: Cavaleiro de meu pai D-me um jarrito dgua... No ltimo banco, Marta, alisando o catecismo que trazia como um adorno, olhava os morcegos, as pretas de si Feliciana cochichando, abafavam o riso com as mos. Um rezador voltou-se, com um gesto ordenou mais respeito. Missunga reconheceu o folio

Arnaldo, coxo (aquilo foi uma luta com cobra sucuriju) remeiro velho, bebendo, cochilando e remando dias e noites nos longos rios. Sua cabea luz das velas dominava o altar. Tio Rafael repuxou o latinrio. Os rezadores se levantaram, fizeram o pelo sinal deram as boas noites e meninos lhes tomaram a bno. Os sinos bateram e os rapazes que, no escuro da rua, esperavam as pequenas, com o cigarro vagalumeando na boca, ficaram atentos. A escurido dos [54] ca|minhos foi levando os pares no se sabia para onde. Ciloca no poste da esquina, olhava o povo passar e murmurou chasqueando: Vo... Vo... S. Cipriano bote a peste neles. Saudade de Sinhazinha como se as suas prprias chagas de leproso doessem. Rafael, Rafael, olha quem chegou atrasado para a ladainha. A vaca muito mansa espiava pela porta lateral da igreja, os olhos esbugalhados pela claridade. A vaca quer rezar tambm, Rafael. Credo. Esses bichos s faltam, Deus me perdoe, obrar na igreja, urrar e parir. Uma praga. Pra-o-que tem intendncia? Interrompido por um abrao e a risada de Missunga. Os olhos do leproso ficaram corujando na sombra. Tio Rafael e Missunga juntos enxotaram a vaca. Ento, Rafael, no te enjoaste da igreja, no? Rafael no respondeu, s fez sorrir. Tratava-o com reserva, sem humildade ou reverncia. Era mesmo quase seco. Enjoar-se de Deus, repetiu ele consigo, como se Deus fosse comida, alguma fruta, festa, mulher, estudos. Desde curumim preso aos santos. Brincava de fazer santo de miriti, de barro, de madeira. Dunga para armar igrejinhas e altares debaixo dos cajueiros, no terreiro, na barraca, beira do igarap. Reunia companheiros para festejar os santos de brinquedo. Enfeitavam o terreiro com palmas de aa, tajs, faziam andor para a calunga de miriti, atiravam talas de paneiro no ar imitando foguetes.

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Os cajueiros se ornamentavam de papel de cor. Nh Benedita saa de seus cuidados para fazer mingaucutuba que os meninos, felizes, bebiam em tigelas de barro e cuja pitinga. Cantavam folia, faziam procisses pelos caminhos do mato, tiravam esmolas pelo Campinho. Foi vendo isso que a madrinha do Rafael, a me do Coronel Coutinho, lhe presenteou uma coroa da Santssma Trindade. Para ele e seus parceiros fazerem a devoo. E j crescido, embora no soubesse ler, Rafael decorava folia e ladainha ouvindo os folies e as puxadeiras de reza. Principiou tocando reque-reque para depois vir a ser o mestre folio do tambor na tirao de esmolas da Virgem Padroeira. Sua religio era alegre, festeira, bem enfeitada de folhas e fitas, ao som do tambor [55] e da viola, muito mingau, arroz doce e pastel com azeitona, no terreiro. Depois trocou a Coroa pela imagem do Menino Deus. Se metia na canoa em que seu mano Antnio andava embarcado e ia a Belm pelo tempo do Natal para ver prespios e pastorinhas da cidade. Voltava triste porque tempo no havia para isso e ainda no sabia andar na cidade. At que uma noite, em janeiro, seu irmo o levou ao subrbio e Rafael viu um prespio, moas vestidas de pastoras adorando o menino, lindas. No, no eram como as chochas pastorinhas de Ponta de Pedras. O prespio, que encanto o prespio. O sonho de armar um prespio de Natal na vila, festejar Menino Deus, cresceu, cresceu. Quando pde formar a sua turma de folies, prepara o primeiro prespio, reza a primeira ladainha na barraca do seu pai, Rafael no esconde as suas lgrimas e foi o que se falou naquele fim de ano em Ponta de Pedras, o prespio do filho do Calafate no Campinho. Seu pai, velho Florncio, o Calafate, sentado no terreiro, tecia os seus vistosos paneiros de jacitara. No sei a quem esse um puxa, dizia, referindo-se a Rafael. Me dele no era assim. Santo com ele, eu j no. Nunca virei a cabea com coisa de igreja. Agora quem tiver a sua sesso de experiente me chame.

Rafael foi tomando conta da igreja, toca sino, conserta goteira, tira casa de caba no telhado, at vestir Nossa Senhora. O pai dizia que aquilo no dava futuro. No via que passava fome, os santos ficavam a para os brancos e os padres engordarem? Rafael j estava de trouxa arrumada para ir embora quando Senhora da Conceio lhe apareceu: Mas Rafael e quem cuida de mim, de minha igreja, das minhas festas, das ladainhas? Fica. No morrers de fome. Ters sempre uma camisa para vestir e uma rede para o teu sono. Fica com o teu Menino Deus no Campinho armando todos os anos o prespio. Rafael desmancha a trouxa e conta o sonho para o povo. Ao depedir-se, Missunga abraou-o e prometeu um presente para o prespio. Rafael ganhou a estrada do Campinho. Na [56] bar|raca seu pai roncava acendeu o toco da vela e ao deitar-se na rede esfregou os ps para tirar a poeira e rezou. O casco de Missunga ia embora na mar. O rio, na foz, arquejava com a ladainha das ondas nos pedrais. Longe, l fora, a baa debatia-se. Nossa Senhora estaria enchendo de peixe as canoas de pescadores? Antes de entrar no igarap do Paricatuba, o casco balanou embalado pelas mos da mar cheia. Missunga parecia adormecer. Viu, Guta no macuru, como um bero, em que ela se embalava. O sono sob a voz de Mariana, a toada de Vctor Nua, o folio, to aflita, subia no embalo das guas, mortas ladainhas!

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[57] Mandou Benedito aproar a montaria para o Calilo. A manh parava as guas como um remanso. Vamos tomar caf no sino. Aquilo pertencera ao velho Tenrio. Roados grandes, fruteiras, muita criao. O pai de Tenrio morre cheio de dvidas. Coronel

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Coutinho cobrou-as apossando-se da maior parte dos terrenos. O filho ficou sem animo, com a mulher bbada gritando, toda noite, na beira do rio. As fruteiras, a criao, os roados grandes, tudo acabou. Tenrio ficou mandriando, vendo a casa, boa para os isguetes do outro tempo! ruir, vagarosamente, parede por parede. Ficou folio de Sto. Ivo. Atrs dele, o Calilo, um srio que andava comprando ouro quebrado no Marajau. Seu Tenrio, lhe dou em mercadoria o valor do seu sitio. Faa o negcio. No. Queira. de herana, seu Calilo. Meu pai estimava a terra. Olhe que negcio, aproveite. Tenrio remanseou, remanseou, faz no faz o negcio. Abanou a cabea, respondeu confusamente que mais cedo ou mais tarde podia ser que se resolvesse para ver se dava certo. Mas pea pro Coronel aquela ponta de terra ali. Tambm d pro seu negcio. Era de meu pai. Coronel cedeu a ponta de terra. De maneira, seu Calilo, que no me venha apepinar, ein? [58] Tenrio comeou, ento, a comprar no Calilo. Era, s, vai, Enedina, no Calilo. Vai, Prudncia, no Calilo. Meses depois, Enedina grvida. Deu-se no tempo em que Santo Ivo desaparecera e Tenrio perdera, por isso, as suas viagens de folio pelos stios, vilas e fazendas, entre rezas, folias e danas. Ah, as gordas carnes do Alto Arari lhe faziam esquecer o piro de farinha azeda, a xicrinha do ralo caf, a tristeza que encontrava pelos caminhos do Anajs, pelos campos sem gado e sem caa, com os lagos secos, a terra rachada no sol duro, os pescadores sem peixe a as mulheres sem fora de parir os filhos. Quando a me perguntou filha: Quem foi, anda? Enedina voltou-se como que instintivamente para o pai e isso fez a me olhar

tambm para o companheiro, com um sinistro pressentimento. Desembuche isso direito, Enedina. A me baixou a cabea to aliviada que no perguntou mais nada filha, sentou-se no soalho da velha casa. Tenrio ento tomou o casco. Desembarca no trapiche de Calilo: Seu Calilo, minha filha. Foi o senhor. Difcil atirar o srio ngua, pis-lo na lama, sangr-lo devagarinho, fcil atear fogo no barraco. Naquele resto de honra ou vingana rompe um sbito desejo de negociar, cobrar a perdio da filha a troco de uma cala nova, um cinturo, uma saia nova para a mulher. Calilo acenou para o seu empregado Hemetrio, o cavador de ouro, perna apoiada na balana grande de pesar borracha, cacu, e peixe. Hemetrio, diz pro pai de Enedina qual o macho que ela ainda no conhece nesta beira de rio. Tenrio arrancou a portinha de miriti do nico quarto da casa velha: Ordinrias, me sem prstimo pra guardar a filha! Saiam! Saiam! Pde desabafar com voz cansada em que havia mais indiferena que revolta. A filha no se mexeu. A me largada no soalho, seminua, bbada. Naquela mesma noite ela correu para o mato aos gritos. Tenrio, noutro dia, com trs companheiros, foi encontr-la morta, num atoleiro entre mangues e aningais onde bandos de cigarras saltavam. [59] Tenrio saiu ento procura de santo para trabalhar no seu oficio. A filha doente, com as pernas em chagas, foi ter a criana na barraca de um tio no rio da Fbrica. Morreu, como lhe disse um conhecido, a bem dizer, podre. Nenhum santo havia para foliar, tirar esmolas, correr terras. Voltou ao seu stio para receber, uma tarde, a visita do Coronel Coutinho, o delegado de polcia, Lafaiete, Calilo, que chegavam de

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motor. Tenrio, assine isto. O olhar de Tenrio era de uma passiva surpresa, de tmido ressentimento. Assinar o qu? Que papel era aquele? To doente, to desamparado, to ausente de si mesmo, ficou naquela inrcia com que, diante dos oratrios, mexia os lbios na folia a Sto. Ivo. Pde ainda dizer: Se aquela conta... No a tera parte do que vale o sitio. Calilo voc sem alma... Assine isto, Tenrio. Comeu, pagou. No tente protelar... Vocs quando pegam um creditozinho perdem a cabea. Comem, comem e depois... No so econmicos. Brasileiro e assim mesmo disse Capito Lafaiete, desembrulhava uns papis, com impacincia. Tenrio quebrou o silncio: Mas nem assinar o nome sei, Coronel. Capito Lafaiete deixou cair os braos para exprimir que era uma objeo to pueril, um obstculo to fcil. O delegado considerou o grande mal do Brasil, o de s pensar na comida e no na instruo. Assina-se a rogo. O que no quero bandalheira no meu municpio, sentenciou Coronel Coutinho. Tenrio s sabia ler quando Capito Lafaiete assinava o nome dele no livro de eleitores. O tabelio assinou o papel, a firma reconheceria depois. Calilo e Coronel no terreiro conversavam sobre a necessidade de educar os caboclos a obedecer leis. Tenrio, num caixote, olhava o cho, uma formiga passeava num pedao de miriti. Lembra-se do stio de D. Mariazinha que Coronel tambm tomou. A mulher aparecia na vila variada do juzo. Coronel falava na Sua, na educao da Sua. Aquilo sim, que pas! [60] Sem mulher, sem filha e sem terra, Tenrio, mudo e inerte ficou a um canto, num soturno alheamento. Ao ver-se s, arrumou

seus trapos, ateou fogo na velha casa. Desamarrou o casco da estiva. Sentou-se no banquinho do casco. Tomou o remo. Tinha um vagar em tudo. De repente suspeitou. Quem sabe a finada mulher no guardara, entre panos velhos, no fundo do ba, a cabea de Sto. Ivo desaparecido da casa de Manoel Rodrigues? O fogo sobre o rio iluminava-lhe a suspeita.

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[61] Subiu o trapiche: sim, senhor, tinha feito negcio aquele srio. O barraco de telhado novo, um mastro pintado de verde e amarelo em que iava, aos domingos e feriados, a bandeira do Brasil. O porto alto e bem acabado. De l a gente via a baa luzir, ao pino do sol, fumaando no longe. A coluna indicava o baixio onde soobrou o Izidoro Antunes, o caldeiro espumava nas pedras da Lavadeira. Ouvia-se a buzina das canoas que entravam, enxotadas pelo temporal, para o sossego do rio acolhedor. Nas tardes de trovoada rolava o mar l fora, surdamente, e a maresia vinha quebrar-se no tijuco da praia e mexer com os camares nos paris. Calilo, que engordara, recebe Missunga como a um filho de seu chefe. O rapaz olhava as cunhats que iam comprar cheiro e tabaco a troco de aa e lenha. Iam, descalas, entremostrando o corpo, flor no cabelo, brincos baratos e vistosos na orelha. Montaria no porto, remo no fundo da montaria, subiam ajeitando a saia, a blusa rota, carregando o paneiro de aa, o feixe de lenha ou a caixa de ucuuba, alguma garrafa de azeite de andiroba. Aquelas cunhats, dizia Calilo na sua lngua aos patrcios, se comprava por um paneiro de farinha. Menos at: um trancelim de 1$500. Por que Alade no foi atrs do paneiro de farinha nem do trancelim pensava Missunga. Calilo viera de Belm lhe contava Benedito, com doena do mundo que espalhava pelas caboclas. Todo o estiro andava

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contaminado. Calilo, ento, exibia as drogas contra a doena e os caboclos nem podiam regatear. Bom dia, s Calilo. [62] Arriavam o peso. As mulheres tiravam da cabea o chapu de carnaba ou de pano e apertavam a mo de cada um dos presentes: Como vai, bem, e o senhor? estendiam, rpido, a mo e recuavam escorando-se nas portas, sentavam nos bancos do trapiche, mudas. Olhavam de revs o filho do Coronel Coutinho. Voc j est rico, Calilo. O srio ria. Havia mulheres que sorriam e outras olhavam como sem compreender. Ficavam espera que Calilo as despachasse. Puxa, Calilo custa despachar a gente. Ah, uma pacincia. Entreolhavam-se lentas como sombras. A presena de Missunga as constrangia mais sob o silncio. Quando falavam eram monosslabos ou contavam casos da roa, febres, apanha de caroo ou sonhos. Acendiam cachimbos, cigarros ou mascavam tabaco. As velhas com ar srio de velhas mes, cenho franzido, cachimbavam, empapuando as bochechas, cuspindo grosso, saio arrastando, os rosrios e a tristeza. As antigas voltas no pescoo. Alguns brincos da monarquia. A mo pronta para abenoar. Deitados no trapiche, os curumins, remo ao lado, amolengavam ao sol, espiando passarinho pelas seringueiras, nus e sua cor os confundia com os couros de cotia ali estendidos e os paneiros de cupuau. Alguns deles se aproximavam do balco e olhavam, com um secreto desejo, as empolas vazias como pingentes em roda do farol suspenso no teto, idia de Hemetrio para dar um enfeite na casa. Missunga se lembrou que Alade lhe pedira certa vez todas as ampolas que ele encontrasse em Piracatuba. Uma pele de jibia, esticada na vara, faiscava de escamas. Os porcos, embaixo, focinhavam no lamaal. Junto ao balco, cabeludo e sujo, uma rodilha na cabea, Toms

do Mato esperava o gole. Era a besta de carga do estiro. Sacos enormes na costa, caminhava lguas no mato atravessando pinguelas, igaraps, aturis. O povo gostava tambm que ele imitasse com o seu grito o som do clarinete. Missunga lhe pagou a cachaa sob condio de imitar o clarinete de Manuel Paraense. Toms do Mato rasgando os beios grandes num riso pediu o gole primeiro. Depois gritou. Era o som do clarinete. Ento as [63] mu|lheres riram, a conversa parecia animar-se. Trataram de estas, lembrar que Toms do Mato passava noites e noites na capoeira. Ao rirem desencostavam-se das paredes, espichavam a perna, se deixavam ficar meio arriadas como se ainda lhes pesasse a carga nos ombros e na costa. Subindo o trapiche, com o remo na mo, a saia enrolada no cs, Alade parou confusa. No esperava Missunga quela hora, no barraco de Calilo. Ele foi ao seu encontro entre os curumins e os caboclos que aguardavam a mar. Com os lbios levemente caldos, como se reprimisse o riso, Alade desviou o olhar para as seringueiras, para qualquer coisa que aparentemente a entretivesse. As mulheres mal disfaravam a curiosidade. Calilo riu. Alade, cada vez mais arrependida de ter vindo, envergonhada e lisonjeada ao mesmo tempo, sabia que as outras falavam mal dela, a invejavam e isso lhe deu foras para responder pergunta de Missunga. Vim comprar sal. Calilo atendeu-a logo e ela desceu o trapiche sem despedir-se de Missunga. Calilo media tabaco, querosene, pesava a farinha. Seu Calilo, no corte o dedo. Demais grande esse cruzado de tabaco. Calilo naquela sua lngua de srio, os olhinhos geis, o lpis atrs da orelha: Que nada, dona Mrcia, tabaco do Acar, do bom, chre, chre, fique sabendo, que tal? S uma cachimbada desse vale uma sesta.

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O senhor fez promessa? Por trazer essa especialidade? En, en. No, capricho. Que diabo, fregus no deve fumar coisa ordinria. Mas do bom. As mulheres se aproximaram. Missunga, dentro da loja, tudo fazia para deix-las vontade. Chrem! Chrem. Tomem. Calilo ia de nariz a nariz, estendendo o meio molho de tabaco. Especial, mulherada, especial. [64] At que o senhor criou vergonha. Criei, dona Laura, criei. E tabaco mesmo de encomenda. Uma cabocla, com o filho na ilharga, cochichou outra: Foi com um tabaco desse que ele pegou a Laurinha do mestre Zeca. E a Enedina, anto, hum?! acrescentou a outra. Ambas taparam o riso com a mo logo se voltaram para Calilo que exclamou, partindo o meio molho de tabaco: D. Ernesta, no quer migar? Dar um trago? Uma cachimbada? D. Ernesta, alta e gorda, com um pano no ombro, aproximou-se vagarosamente. Era mulher de falar pouco. Cachimbeira de fama. Conhecia tabaco de longe. V l. Se voc me der, me d. Mas me deixe cherar primeiro. A velha aspirou fundo. Rolou o tabaco nas narinas, considerou a tania e a cor, tornou a aspir-lo. Todos aguardavam o seu julgamento. Calilo sorria no balco, esfiando o bigode. Missunga fingia ler um jornal velho. D. Ernesta devolveu o tabaco, espirrou, limpou o rosto com a ponta da saia e olhou em torno, muito seria: Ruim no . Calilo, ento, cortou o tabaco e ela migou, esfarelou o fumo na palma da mo, soprou o cachimbo, encheu-o, acendeu no fsforo que

o srio lhe estendia. Depois, vagarosa, foi ver se a mar j ponteava. Comeou a cachimbar, olhando a gua tufar na praia, siririgando... A mulherada avanou sobre o balco reclamando o tabaco. Com uma condio, disse Calilo, de levarem o pirarucu. Vrias mulheres espalmaram as mos no rosto num ar de lstima. Mas podre como est? Podre. Podre. Acham podre? Vocs j perderam o sentido do olfato. Sabem o que olfato? Na Frana se come queijo podre e sobremesa de fidalgos. Nem me digam na frente do doutor esta palavra podre. Palavra feia. Se ele no estivesse aqui, eu bem sabia o que dizer. [65] Que ento o senhor dizia? Dizia que podre era a me. No era? A me. Qual a me? A me, a me, ora esta. O pirarucu no est podre. Podre a santssima me. Algumas caboclas soltaram um ah!, e outras riram. O pirarucu em cima do caixo j fedia, bichado? sob as moscas. As mulheres abanavam a cabea. O tabaco, pelo menos, podia compensar aquilo. O fumo aliviaria o fedor, enganaria a fome. Seu Calilo no corte o dedo tirando esse tamanhinho de tabaco. O senhor mesmo perdido no mato era capaz de no dar um trago pro curupira. Podia me perder mil vezes no mato. Curupira que viesse me pedir cigarro. Mandava que ele fosse pedir me. Ele que no ia me ensinar a sair do mato. Isto pra vocs que acreditam nele. Levam ou no levam o pirarucu? Podre? Como est vendo, doutor, esta a vida de um negociante. Missunga ergueu-se rpido, silenciosamente, apanhou os restos do peixe podre e atirou na lama onde os porcos fossavam. Calilo no

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fez mais um s gesto. As mulheres entreolharam-se no espanto geral. O rapaz encaminhou-se para o trapiche, o srio o alcanou. Doutor, eu estava brincando com elas. Eu no ia vender, no, no ia. Missunga bateu-lhe, de leve no ombro: No foi nada. Estava podre, no estava? Afinal seu pai era culpado, ele, como filho, tambm culpado. De resto, gostaria que Alade tivesse assistido cena, e Guta, e os amigos de Belm que o aplaudiriam. J no rio, sentia vergonha daquele impulso sem platia, daquele gesto intil.

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A esperar o remeiro, que o levaria vila, deu um embalo na rede e olhou os prprios braos esticados: falhei. Benedito. As roas que mandara iniciar estavam abandonadas. Tentou levantar o engenho da Campinina, s havia ferro-velho e o pai negara-se a fornecer dinheiro. Ateou fogo nos canaviais que restavam e em Paricatuba ao ouvir o caro do velho, respondera: Para que canaviais se o negcio para o Calilo? Depois era bonito ver uma queimada no meio do mato. Benedito dizia que era vingana de caador sem sorte. A um novo grito chamando o remeiro, Coronel lhe apareceu, com um jornal na mo: Ests com uma vida, rapaz... Tens de voltar para Belm. Vila no vida. E preciso acabar com a histria daquela cabocla. Que cabocla, papai? No sabes, ento? Todo o mundo a par. Ermelinda me falou. Voc no nasceu para isso.

Mas at D. Ermelinda se metendo? Ein? O filho calou-se. Lembrou-se da pergunta que tentara fazer a propsito das escrituras. Voc no sabe que uma cabocla besta dessa lhe pode fazer mal? Mal? No sabe o que mato, no sabe o que uma cabocla quando pega rapaz... assim... Voc l conhece o que ruindade de ndio. De ndio! Afinal voc deve partir, meu filho. [67] O pai alterado e ao fim com aquele inesperado meu filho de reconciliao e brandura. Havia uma inteno nas palavras do velho que se queria vingar, talvez, da interpelao daquela tarde. O rapaz no disse mais coisa alguma e lhe veio, embora absurda, a suspeita: ser que ela mesmo sua filha? No, no era. E por que a suspeita? Ela mesmo contara: o pai dela morrera no rio da Fbrica, a me j grvida, ao colher um cacho no aaizeiro, pois era disso que vivia tombara e teve o aborto ao mesmo instante no cho. Alade contava a morte da me com os olhos enxutos, s o silncio, depois, que vinha de seus lbios, de seu olhar parado, de seus cabelos agrestes, das mos ainda vermelhas dos urucus que espremera, parecia fluir como uma envergonhada dor annima entre as folhagens, os pssaros, as guas de onde subia o cheiro dos taperebs maduros. Somente em pleno rio, em presena d remador, ele pde desabafar: , papai fala de mim. Querem ver s ir perguntando pelo Marajau adentro: Quem teu pai, guri? meu padrinho, Coronel Coutinho. E o teu? E meu padrinho Coronel... O remeiro surpreso s primeiras palavras, no conteve o riso, suspendendo o remo que brilhou fora dgua. Rema, rema, Benedito, quero dar uma prosa com o meu

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sogro. Benedito no se atreveu perguntar quem era o sogro, pressentiu a ameaa sobre Guta. Certamente... Remando pensava nas donas Florncias, Valentinas, que Coronel distribura pelas fazendas no Arari. Foram as amantes mais felizes. Cad que levava D. Ermelinda para os campos? Elas criavam porcos e patos, salgavam carne, tinham os seus terns, at gado ferravam. Apareciam s festas de fim de ano em Cachoeira, o ar de senhoras, as largas saias de cambraia e matins de tricoline, com os afilhados berrando na igreja em torno da pia, espera do batismo. J estavam maduronas, quase da idade do Coronel (ele segredava ao primo Guilherme vacas velhas que no do mais cria, primo), e viviam nas fazendas menores como S. Jos, Sta. Catarina, Tojal... Coronel corria os campos do Arari dirigindo a matana dos jacars, as malhadas e [68] as ferras, tomando terras, surpreendendo vaqueiros no amor com as velhas guas e as vacas mansas nos encobertos, fechando os lagos para os pescadores e os prprios vaqueiros. Um pescador, Marcelino, antigo vaqueiro do Paraso ousara entrar num lago da fazenda e foi morto a tiros pelo vigia. O vigia tinha ordem para assust-lo, dizia o Coronel. Foi um tiro de rifle mal calculado. A gente lastima. Mas de que modo se pode ensinar esse povo a respeitar a propriedade, a deixar de ser ndio? Coronel atravessando currais e porteiras, boiadas, cavalarias, feitorias de pesca, mondongos, lagunas, procisses nas vilas, conduo de folies, onde erguia a cabea de seu alazo era para laar nos ranchos e na beira do rio, entre as lavadeiras, a assustada moa donzela. Benedito soltou um curto riso. Que isso, Benedito? Me rindo por nada. Missunga olhou a manh caindo em cheio no rio. Parecia neblinar, l no longe faiscando de sol. O casco ia embora em cima da

maresia branda. Missunga olhava o estiro, uma ou outra sumaumeira grande e pensava: Pudesse derrubar tudo isto. Estender minhas plantaes. Ali um trapiche. O srio expulso. Adiante o armazm, casas de colonos, o arrozal nas baixas. Algodoais branquejando na luz da manh. A trepidao dos tratores. Caminho buzinando longe na estrada e a felicidade entrando pelos olhos de toda gente. O mato, a gente com a sua misria, a bicharada, tudo isso pertencia ao Coronel Coutinho, Senhor seu Pai. D c o seu abrao, mestre Amncio. Velho Amncio, mestre-carpina, morava no Campinho. Trabalhava com os dois filhos, Z Cruz e Venncio. Sente, doutor, neste banco. Coronel, bem? O velho estendeu uma velha esteira no terreiro da barraca e sentou-se, cachimbando. O seu cutitiribazeiro est carregado, mestre Amncio. . Amncio ergueu o olhar para a rvore. [69] Ainda no tem maduro se tivesse o doutor levava. No gosto muito, mestre. E enjoado. Agora caiu do mato comigo. L atrs da casa do Joo da nh Euzbia tem uma rvore boa. Cada um. Eu sei. Que h dos dois? Do Z e Venncio? Esto, paresque a. Ah! Foram pro igarap. Guta, nem sinal de aparecer. Missunga vexava-se de perguntar por ela. Por que no lhe vinha dar ao menos bom dia? Mestre Amncio foi lhe contando dos seus trabalhos, Missunga alheava-se para pensar em Guta, a Guta de seu tempo, bem menina ainda. Caa das rvores um silncio cheirando a fruta, a resina. Um pouco maior que ela quando foi para o colgio. Mestre Amncio trabalhava por conta do Coronel Coutinho, em Paricatuba.

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Se Mariana era o acalanto, o pegadio, Guta brincava de cabra cega com ele, do tome esse raminho, do lobisomem. Ela escondia travessura do Missunga, salvava-o de situaes crticas. Era D. Branca fazer um gesto para dar uma palmada no menino, logo a menina ia pedir. Pedia com uni tom de voz de quem nasceu para saber pedir e alcanar o que pede: Madrinha no d, a culpa no foi dele. No d. E D. Branca, cad raiva? L abraava a pequena, beijava-a e dizia: Tu, minha filha, nasceste para ser boa. Missunga, esse impossvel, tem uma santinha por ele. Esse malcriado. Se o menino, nas suas danaes, partia a unha do p, a bichinha a amarrava o pezinho dele, curava: No chore, Missunga, seno, tua me vem. Era tirando espinho da mo, esfregando o sujo das pernas, ensaboando a cabea, ajeitando a gola do seu fato comprado feito na loja, abotoando o sapato. Porque ele gostasse, trazia-lhe duas savas, uma agarrada outra. Missunga, batendo palmas, achava que era uma briga, e tomava o seu partido. Se a sua sava perdia, ele vingava. Apanhava as savas mortas e atirava-as no cabelo de Guta. [70] O dente de boto, que desde criana de peito usava no pescoo, ela deu de presente ao amiguinho. Ele o perdeu tomando banho, no igarap do Arapin, meio-dia, quando Coronel Coutinho foi ver um amigo, muito mal de febre. Missunga s fez foi chorar a perda do dente de boto que tanto protegia as crianas. Guta, logo que soube, lhe disse: Deixe, Missunga, eu peo outro e te dou. O menino acreditava nos poderes do dente de boto. J o primeiro dente que sua me lhe colocara no pescoo at hoje no sabia como perdeu. Sem o dente podia apanhar quebranto. Mariana lhe falava muito nisso. Nh me Felismina, era o que conversava, e Missunga sentiu o medo do quebranto aumentar. O segundo dente, o

bonito dente de tanta estimao de Guta, ele tambm perdeu. Ficou assim como quem anda pelos balcedos sem ser curado de cobra. E trabalhamos com aquele pau. Missunga est com os olhos na boca de Mestre Amncio no lhe entende as palavras. Teria sido mesmo Guta que lhe dera aquele apelido de Missunga? Uma bobagem de Mariana que D. Branca acreditou, achou to curiosa e inocente, nunca mais chamou o filho por outro nome. Contava que Mariana correra varanda: D. Branca. Oua o nome que Guta chamou pro menino... Guta, efetivamente, ou inveno de Mariana? Guta mesma jamais confirmara. Somente Coronel considerava absurdo, inexplicvel que o apelido pegasse to facilmente como pegou e para sempre. Guta ou Mariana, no sabia, um nome sem explicao nem origem, um nome de brincadeira ou faz-de-conta. Por isso Missunga sentia Guta presa mais sua vida, como se nela pudesse recuperar ou encontrar qualquer coisa, o mistrio daquele nome, Mariana restituda e outros sentimentos inesperados. Aprendia com Guta a lio dos cinco dedos: Pai de todos, fura bolo, mata piolho. Mata piolho... No, Missunga, upa! Vamo... Pai de todos, fura bolo... Isto. Qual o outro? Anda. [71] O dedinho de Guta ia andando pelo brao de Missunga at que encontrava o rato quiu, quiu, matei o rato! Missunga se desmanchava em riso, o vento fazia ccegas nas rvores tambm. Era ele tirar um dente-de-leite e j Guta dizia: Joga no telhado pro rato trazer outro. D. Branca tinha que jogar o dente-de-leite no telhado. Por que o rato escondido nas telhas era sempre mau para os meninos? Tudo que Missunga pedia, de impossvel, a me logo apontava para o telhado: Rato levou, meu filho.

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Rato encantado, dono de tudo que Missunga desejava e que jamais podia ter. Histria boa para Missunga era da lua. A lua que ela havia guardado na caixa de fsforos. Invenes de seu Felipe para iludir as crianas. Quando anoitecia e era lua cheia, Guta dizia ao amigo: Olha, a minha lua igualzinha quela. Eu tinha duas. A outra fugiu da caixinha e aquela do cu. Te juro. A lua cheia parecia to perto da terra, to viva como uma menina que viesse cair em cima dele, cair na palma de sua mo. A lua era uma medalha, a moeda que tinha a cara da Princesa Isabel ou o Corao de Maria? Seu Felipe contava que era a medalha de uma menina que se afogara no mar. Por qu? Se a medalha era a lua, tinha subido e ficava por cima do rio? Seu Felipe no respondia. Missunga queria era a lua da caixa de fsforos que Guta gostava sempre de esconder dentro de um sapato velho. Mostra, ao menos. Mostra. Seu Felipe me disse que no se deve abrir a caixa seno a lua foge com a outra. O mundo ficava sem luar porque a lua que est nos alumiando agora, est por causa da outra da caixinha, que companheira. Soltando, as duas vo embora, assim seu Felipe disse. Seu Felipe lembrava a histria da cascavel, companheiro dela fora morro por um caador num caminho de Paricatuba. A fmea veio atrs, no rastro e picou o caador na prpria rede. Encontraram-na morta noutra dia no mesmo lugar em que seu companheiro morreu. [72] Mas o menino queria abrir a caixinha, ver a lua. No, no abro! Que teimoso! Brigaram. Se agatanharam. Guta cobriu com a mozinha os arranhes do rosto. No me puxa o cabelo, mano! Fugiu e foi soluar escondido. Missunga num berrerio correu a contar a D. Branca: Mame, ruindade da Guta, no quer mostrar a lua. Eu quero

a lua. Eu quero. Pea, mame, pra ela. Mas onde est a lua, meu filho? Ela tem numa caixa de fsforo. Tem. Pea mame, onde. Mas mano... Faz mal. Levou um minuto com o dedinho na boca e resolveu-se. Espera. Guta voltou com a caixa de fsforos vazia. Ah!, mano, pois o rato no levou? Pronto! Rato levou e agora, mano, em? O rato levou a lua. O rato comeu a lua. O rato se encantou no telhado. Ento Missunga no pediu mais a lua. A outra que no cu aparecia clareando a rede que Mariana ia embalando at ele dormir, no era a verdadeira lua, no era. A verdadeira estava alumiando a barriga do rato encantado. Mestre Amncio conversava. O vento embalava as rvores, e a conversao. Missunga se lembrava bem que, uma noite, beira do igarap, com o Coronel Coutinho, mar cheia, luar, ele viu uma lua boiando no sossego das guas. Olhe, papai, olhe a lua da Guta. O rato vomitou a lua que comeu. Ela est de bubuia. A do cu est olhando ela. A gente no pode pegar? Ande, papai, pegue seno peixe come. Sonhou que pescava a lua das guas, com a isca feita dos cabelos de Guta. Peixe engolia a lua, e a lua, pelos olhos redondos do peixe, mirava o cu perdido. Contou isso para Guta que ficou com os olhos to redondos como os do peixe, roendo a unha. Quando ao fim das frias se despedia dela, na partida para o colgio, a menina se recusava a abra-lo, como D. Branca pedia, [73] sentindo-se, a um tempo, vexada e sem compreender porque ele, afinal, partia. Guta! Guta! A um caf pro doutor, anda. Missunga ergueu-se.

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No, no, mestre... Eu no demoro. Mas meu hbito. Espere. Sente que . Ora... E tem pau, madeira por aqui perto? No h pau por perto, bom de machado. preciso ir longe. E preciso que a Guta leve a comida pra l pra esses centro. preciso? , doutor. Veio o caf. Como vais, Guta, bem? Bem, e o senhor, como vai Coronel, D. Ermelinda... Todos indo. (Que voz vagarosa e como o tratava de senhor, imaginem, de senhor, de senhor, hum-hum.) Ela se encostou na parede de juara, bandeja na mo. Para Guta, era o filho do Coronel Coutinho, o moo que estudava para doutor. O que passou, passou, babau! Gostavam de dizer as velhas do Campinho. Estava descala, com um vestido de chita desbotado, salpicado de tijuco. Os olhos pareciam machucados de insnia. E ele tomou o caf bebendo aqueles olhos tambm. Os tucumzeiros carregados guardavam o caminho para o igarap. L dentro os cipoais, o escondido, os folhedos macios cheirando a lacre e a baunilha, os puruizeiros davam seus frutos silvestres parecidos com uvas. Chupavam puru juntos. Agora havia dois purus bem pretos, desfazendo-se de maduros, naqueles olhos. Mar enchendo, a ansiedade subindo. Exibia um porte de filha de tuxaua, alta, carnuda, peito cheio. O velho continuava a conversar, sumia-se nos matos atrs de madeira. Tirava muita encomenda de casco, canoa, batelo. Era neto de nordestino flagelado, nasceu no Alto Amazonas, abateu cedreiros reais, bem assobiando, sentindo a terra tremer com o baque monstro agitando os ecos no espanto da floresta. Andou pelas Ilhas, lutou com ona, fez roa, cortou seringa, morrendo e vivendo com a febre no lombo. Dez filhos nasceram e logo [74] mor|reram pelos seringais,

nos trapiches, debaixo do toldo de canoa, nos tapiris de Breves. A mulher, cabocla de Mazago, acabou-se nas Ilhas, entre partos e febres. Veio para Ponta de Pedras com os dois zinhos e a Guta nos braos, a convite do Coronel que o conheceu num porto de lenha em Muan. Armou barraca e foi para a lida dos paus com o seu machado batalhador. Fosse contar as rvores que abateu podia dizer que abatera uma floresta. Puxava os toros num rolar lento pelos caminhos encharcados, ora na terra firme, ora varando cipoais, rolando, ele e os filhos, rodos de savas, golpeados de espinhos, e urtiga e frieira, estropiados. E agora daqueles sofrimentos e trabalhos surgia Guta com aquela leve penugem nos braos. A nesga de carne saindo do colo tinha um moreno que devia ser macio, fcil de arrepiar. Havia aqueles olhos machucados, cor de insnia. Sua voz sem o acento nordestino do pai, era talvez a fala da me, das Ilhas, lenta, com uma ponta de ternura em certas palavras, num certo jeito esquivo de dizer. Pegar Guta pelo brao, lev-la arrastando para o fundo do mato, mesmo que imediatamente viesse mestre Amncio, partisse com o machado os dois pelo meio. Guta agora devia estar no quarto com aquele distrado impudor de mulher na intimidade. Estaria mudando a roupa? O quarto cheio daquele odor de virgem corpo suado. O punho da rede roaria os seios, curvada remexia a roupa na mala procurando uma angua. A mala aberta se enchendo daquele sexo inocente que crescia como... Missunga via pela porta uma saia dela estendida na pimenteira, uma saia encarnada. Como foi que o senhor disse, mestre Amncio? Ah! O senhor diz certo. O doutor parece que est mesmo com vontade no cutitirib. No. Ando com uma dor de cabea pau. Do sol quente. E falando nisso, mestre Amncio, j vou. Vou chegando. Guta lhe estendeu a mo que se amoleceu indiferente na dele.

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No havia mais a lua, as savas, o rato encantado naquele sorriso, naqueles olhos, naquela voz de remo maneiro cortando a gua quieta, e ninhos desfazendo-se ao vento. Missunga viu que ela trazia no pescoo um trancelim de 1$500 com uma medalha. [75] Essa medalha a lua? E ainda gostas de puru, Guta? Como? Ela como que desfez a insnia dos olhos surpreendidos. Sua voz se tornou mais lmpida, o olhar a dizer: por que essa pergunta sem sentido? No mesmo instante ela fez um ah!, como a lembrar-se e seus dentes como espuma encheram o riso que lhe dominou todo o rosto. No era a menina que ria, mas a moa que, por no compreender, tivesse por isso mesmo s motivos para rir. Aquela medalha era a lua j morta. A menina devia estar esquecida no fundo do ba. Aquele corpo de moa tinha misteriosamente desassossegos. Em vez de uma lua na caixa de fsforos havia um corpo naquela saia encarnada da pimenteira, um quarto, o banheiro de folhas de aaizeiro para esconder no banho aquela intimidade to conhecida pela mala aberta, e pelos santos do oratrio de miriti. Guta no devia ser possuda pelos brutos da terra. No devia casar. Ele a ensinaria a amar, a fazer de seu corpo uma perfeita mquina de prazer. Alade era mansa como a terra sentindo as razes, as mars, a inquietao das rvores sob a trovoada. Se abandonava com um jeito um pouco distrado, to tranqilo, to natural com uma animalidade inocente, to inocente em certas horas, que havia naquilo a sensao quase do incesto. Guta seria assim? E ela fitou-o com o olhar da menina de Paricatuba que lhe falava de D. Branca e Mariana. Viu ainda Guta, junto ao poo, encher o balde e ai ficou imvel, o balde na mo, bisbilhotando algum ninho oculto nas folhagens. O papagaio voou da cozinha, pousou no ombro dela. A saia encarnada, sobre a pimenteira, lembrava o olhar espantado dos santos no oratrio, a mala aberta no quarto, as plantas grelando no banheiro de folhas. As pimentas se tornariam maduras mais depressa debaixo

da saia encarnada. Queria caminhar, caminhar e passou pela barraca da velha amade-leite Felismina. A morava a Orminda, talvez sua irm, sua amante, amanh, quem sabe?

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[76] Lafaiete viu-o voltando do Campinho, suspeitou. Era, por certo, Orminda. E esfriou, no esperava que o rapaz lhe fosse disputar uma coisa que j estava, a bem .dizer, nas suas mos. J h tempos rondava a barraca de velha Felismina. Ponta de Pedras, noite, para Lafaiete, no tinha mais cobra grande boiando no meio do rio como uma ilha frente do trapiche nem porca encantada grunhindo nas ruas e sumindo para os lados do cemitrio. Lafaiete ia barraca da velha Felismina para admirar o jirau dizia ele. O jirau era ao lado da barraca, com um p de amor crescido, o bogari, tajs e um amor dos homens, flor que muda trs vezes ao dia: branca, encarnada e cor de rosa. Lafaiete prometia sementes de rosa e hortnsia para o jirau ah, adorava flores! com os olhos em Orminda, sem ouvir si Felismina contar que a barraca estava para cair, jeito no havia para comprar um cento de palha, chuva caa na sua rede feita de sacos de trigo. Fazia redes bonitas para os brancos mas como comprar fio para fazer a dela? O que ganhava, no dava. Lafaiete desconversava, fazia-se um silncio e voltava a prometer as sementes de rosa para que o jirau se tornasse um jardim. No h como rosas. Por cima da barraca a mangueira sacudindo os galhos, estalando nas noites de trovoada. Felismina sempre pensava na praga [77] de sua inimiga, a velha negra Feliciana. Filhas da Feliciana eram umas pretas levadas do diabo. A mangueira podia arriar um dos galhos

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sobre o casebre. Tanto que pedia ao Coronel para mandar derrub-la. Aquela boca de cobra, a boca daquela preta. Ela sempre teve raiva porque no pariu uma filha como Orminda. Queria uma filha menos escurinha. Estalavam os bilros da almofada de Orminda. A velha continuava a falar da encardio da pele das filhas de nh Feliciana. O tabelio ajudava-a a enxotar os porcos que invadiam o terreno. Se so do senhor, Capito Lafaiete, por que no manda talhar? H tanta falta de mercado. No era, Orminda? No sei, mame. Ele est presente, pode dizer. Os alfinetes espetavam o papelo. Orminda erguia-se para ajeitar melhor a almofada, sacudiu o vestido procurando alfinetes. Lafaiete via o limo de igarap esverdeando-lhe os olhos ladinos, o corpo magro e liso que nem pele de mandub, peixe que ele tanto gostava e Guilhermina fritava to bem. Lafaiete despedia-se prometendo mandar derrubar a mangueira, a moa s dizia: Boa tarde, Capito Lafaiete sem desviar os olhos da almofada. Tinha de acabar a renda que se atrasara com a sua viagem a Mangabeira donde voltara naquela tarde. Vira as mulheres de peito a mostra correndo no mato, fazendo farinha, lavando roupa na praia. Andara entre os caboclos na gapuiao. A mar trazia peixe para as velhas camboas. Pescadores subiam o mut para arpoar um peixe-boi que comia o capim da praia. Rezou ladainha na casa do Horcio: As contas do seu rosrio so balas de artilharia que combate nos infernos rezando Ave-Maria... Comia sardas gordas de espeto, ia com as mulheres bater gergelim no roado, escalda farinha no forno, bebe mingau com ma-

nicuera, caminha para o poo de pedra que os frades deixaram e onde se diz que tem dinheiro enterrado. S mato, pedra e terra [78] revolvida o poo. At gente de outras terras viera cavar no p do taperebazeiro. Era impossvel que naquele antigo domnio dos frades coloniais no houvesse dinheiro para desenterrar. Orminda, ao chegar beira do poo, d um grito para o fundo: Ei! Tu tem dinheiro, em, poo? Cada teu ouro?! Capito Lafaiete tambm passara dois dias e duas noites mandando cavar e lhe prometera um anel, um par de brincos e um vistoso broche, com ouro daquele poo. Dormindo a sesta nas areias da praia, debaixo das rvores, Orminda esquecia a insistncia de Lafaiete, as queixas de sua me e as indiretas das filhas da negra Feliciana. Voltara a p pelo caminho da Mangabeira. Conversara e brincara com as moas do Arapin para quem lia e ensinava as modinhas novas, trazia novidades da vila, um molde de blusa, amostra de renda, a carestia das roupas, gente conhecida que foi. embora de uma vez. Para decorar modinhas, estava s. Aprendera o seu pedao de cartilha na casa do mestre Alfredo. Podia at ser uma professora, lhe diziam as moas do Arapin. Comeu em jejum no igarap muito miolo de japiim, repetia nh Felismina, para ter boa memria. Gostava de fazer lenha com as caboclas, lanar rede pros camares, carregar os pus para a gapuia. De peito pra cima na mar sentia o frime gostoso. Olha, um sucuriju! Um homem ali espiando! vem, vem! Todas, mais que depressa, corriam em bando, se escondendo pelas toias de lacre, espantando as guaribas que dormiam. Consentiam que os guris tomassem banho com elas. E eles ouviam, surpreendidos e menos assustados o grito das moas quando nadavam de costas: Olhem uma aranha caranguejeira, olhem a barba de bode bem em cima, no meio do corpo da Orminda. Elas ficavam, aos risos, de bubuia, os seios em cima, jogavam gua nos olhos dos curumins, gritavam que eles acabariam era rei-

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nando contra as aranhas e as barbas de bode. Nh Felismina no se cansava de prevenir que essas brincadeiras de menino se misturando com moas no banho acabavam em conversa no mercado, em aleive na lngua da preta Feliciana. Ah, Orminda, Orminda, [79] olha o caminho em que a tua irm se perdeu. Dois filhos que restavam, um era leso e ladro outro, tambm ladro em Belm, deportado para Jari. O da contra-costa nem lembrana mandava. Um mea filho t pagando por ser pobre. E escravo do Duca, no Jari. Notcia dele, nem depois de morto. Orminda voltara para os bilros fazendo renda. Junto janela um p de murtinha dava flor. Nh Felismina tentou varrer o terreiro. No mudava mais aquela saia. No penteava mais aquele cabelo. Fedia a sarro e a sujo. Doena, desgosto, as goteiras na barraca, a falta de farinha, por vezes tomava o seu gole e descompunha todo mundo. Jogou a vassoura para dentro do corredor. At o tear se encontrava desarmado. As corujinhas comeavam a piar no anoitecer. Os braos cansavam. Suas cadeiras doam, a cabea tinha um fogo por dentro. Uma tristeza mida, seca, lhe roendo e aquela mangueira nas noites de vento sacudindo os galhos pesados... Orminda aguardava o anoitecer, se prometera a um homem quando voltasse a Mangabeira... Pensou nas histrias de Calilo. Hemetrio quando vinha vila contava para Orminda: Eu sempre digo pro Calilo que naquele stio do Tenrio tem fortuna enterrada. Aqui tem ouro, seu Calilo. Tem. Tem ouro. Frade entrou por essas baixas. Agora saber o lugar que o buraco. Finado av de Hemetrio dizia. No tempo da cabanagem enterraram foi ouro. A casa do seu Bonifcio levantada sobre umas sepulturas de cabanos. E havia ouro muito, mas muito ouro entre as ossadas. No acredito, Hemetrio.

Calilo fingia no acreditar. Afinal os frades tinham dinheiro. Os cabanos tambm tinham. E quando na vila via Orminda, esta lhe dizia com um olhar: Valho muito mais do que um trancelim. Valho todas as peas de fazenda de sua loja. Hemetrio tinha um conto no Calilo. Devo at a vergonha. E excitava o srio para os tesouros. Tinha um cacuri de bom peixe. Todo peixe era do Calilo. A dvida s podia ser paga se desenterrando ouro. Numa noite Calilo se decidiu. O rio, na noite alta, ofegava como um mal-assombrado. Facho aceso, os dois deslizavam, se atolando na sombra, no lameiro da vrzea. Um corujo ria grosso. Por aqui, seu Calilo. E por aqui? A eu j abri. Tu abriste, em? No me disseste nada, ein? Pra experimentar, seu Calilo. Depois lhe dizia. Cachorro... Por onde? Por onde? Venha por aqui. Diabo que me espinhei. Diabo! E tem, Hemetrio, tem mesmo? A questo se d com o lugar. Se achar. De repente, Hemetrio se assustou: uma cova aberta. Como? Tem cova por aqui? Essa no fui eu... Foste tu, sim. Quem mais? As covas quem tinha cavado fora o prprio Calilo, sozinho, na vspera. Agora queria culpar Hemetrio, ver se podia arrancar do caboclo o verdadeiro segredo. Na certa Hemetrio sabia. A beirada, com aquelas covas abertas, era cemitrio saqueado. Pararam. O ferro bateu no cho, baque surdo inchou no silncio. Hemetrio, luz do facho, comeou o trabalho como um ladro de sepultura. Quem tinha aberto as covas? O prprio Calilo? Calilo j

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teria arrancado algum ouro? Talvez. E Tenrio? A desgraa deste no seria a de ter tentado cavar, neste cho dos defuntos? Hemetrio parou. Calilo, de ccora, segurava o facho. Cava, cava, Hemetrio. No tinha sossego. Podia ter trazido o candeeiro grande do barraco. Mais. Mais! Hemetrio. Este ferro parece que no cava. Cava sim... Ah, cava? Calilo se transfigurava. Aquele ouro saltando das ossadas, da poeira dos defuntos. Viesse o ouro e Orminda no falaria mais com ele como falava, de cara torcida. E verdade que ele no podia abandonar o negcio para viver s atrs dela. Um tabelio tem [81] mais folga que um negociante. Sim, era quase certo que Lafaiete andava tambm caando aquela cutia nova. O ouro faria crescer um barraco na boca do rio. Calilo maginava. De repente pulam esqueletos do fundo do fosso. O ouro chispava das caveiras. Enormes frases fosforejavam entre o faiscar das facas e a raiva, dos banos, as dentuas escorriam lodo e ouro. Ande, ande, seu Calilo, no pense, no magine. O rio parou olhando aquilo. A cova se abria numa gargalhada silenciosa, engolia cobia, miragem, Hemetrio l no fundo cavando. O facho na mo de Calilo era um fogo-ftuo. Orminda se distanciava. Seu corpo nas guas e nas folhas desaparecia. Ele tinha mais dinheiro que Lafaiete, por que ela preferia o tabelio? O ouro seria decisivo. Lafaiete cobri-a com as folhas dos livros e dos autos do cartrio. O medo da justia fazia Orminda ceder ao tabelio. Deus meu, me tirai Orminda da cabea, me tirai o ouro das covas. Vontade de se ajoelhar e pedir a Deus. Mandaria rezar missas pela alma dos cabanos. Daria gratificaes a Lafaiete que em troca lhe mandaria Orminda. Depois, um lento e prspero passeio Sria. Nada, Hemetrio?

Lera em jornais velhos que bas de dinheiro foram encontrados no Acar nas plantaes de fumo. E ali no fundo, Hemetrio cavando como se aquela terra lhe pertencesse. Se Hemetrio no ltimo momento se apossasse do tesouro? Em todo o caso tinha o revlver no bolso. Contavam que Orminda foi achada na praia ao nasceu da velha Felismina. Orminda nasceu da me dgua e com isso Hemetrio excitava a imaginao do srio. L do fundo, Hemetrio gritou: Seu Calilo, pensando em Orminda? Calilo abeirou-se mais da cova, olhou para o fundo, vido. Seu Calilo, Orminda como bota. O caboclo comeou a explicar enquanto cavava, que a bota se parecia com mulher. Quando morta na praia o caboclo no pode fugir tentao. E ah, seu Calilo. por demais bom, mas bom mesmo que mata. No tem mulher igual. Mata. uma areia gulosa. [81] Arranca|ram uma vez um pescador de cima de uma bota morta na praia. Estava quase morto. Mata, seu Calilo. Chega. Vamos embora. Hemetrio pulou da cova como um Lzaro. Extenuados, curvos sob a derrota, pareciam fugir do fosso aberto, dos ecos soltos na solido. As covas se escancaravam como bocas do silncio vaiando e com fome daquelas duas sombras que coleavam na sombra espessa. Orminda achava que Hemetrio exagerava essas histrias de ouro: Como tu s cnico, Hemetrio, tua cara no treme? Com o anoitecer, as velhas foram cachimbar, de ccoras, no terreiro de si Felismina. A terra ainda sufocada de sal. Poeira pelas ruas e nos caminhos. As cigarras se calaram. As velhas romperam o silncio, nh Felismina se levantou com o cachimbo no ar diante de um co que surgia da capoeira queimada, com um olho vazado e a perna sangrando. Ah, preta do inferno! Que fizero com o pobre de Boaventura.

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Um cachorro criado pelo finado meu filho! Felismina mostrou o brao para o lado da casa de Feliciana e prometeu vingar-se. Falou sobre a falta de polcia em Ponta de Pedras. Bem o Capito Lafaiete gostava de dizer que aquilo no passava de uma aldeia. Orminda, antes que a me entrasse na barraca para tentar socorrer o Boaventura, tratou de guardar a almofada, fez pit no cabelo, calou uma chinela velha, bebeu um gole dgua no caneco do pote e falou para o terreiro: Mame, vou ali. Saiu cantando para o fundo do mato. Caminhou, caminhou, andou por cima duns paus, parecia anoitecer mais rpido atravessou a capoeira, viu a cobra correr para debaixo de uma folha de anajazeiro cado. Afinal por que se decidira, por que caminhava como se fosse para uma festa, um encontro com Minervino, de quem recebeu o primeiro carto postal? Parou, hesitante, Os mortos retornam, Minervino podia aparecer... Um homem surgiu de trs da sumaumeira. Orminda tentou correr, a mo do homem lhe apanhou o brao. O caminho descia para o igarap, Orminda avanou num [83] aban|dono de si mesma. No sabia o que tinha, talvez precisasse era andar, andar, embora j houvesse andado tanto na viagem da Mangabeira. E nesta hora no tem ningum? Adonde? No igarap. Ela no respondeu. Tem que passar o igarap? Mar t seca. Mas os paus esto lisos agora. Que que tem? Eu lhe seguro pela mo. Orminda, mas tu ainda s moa, pequena?

Prenda essa lngua, perguntador! E longe assim? O senhor... Hum! Parece que voc tem experincia disso, no? Pra-o-qu, ento, vive encoberta? Abom! Olhe que eu volto! Um cajueiro do mato amadurecia os frutos sagicas como seios virgens. Um cheiro hesitante de bananeiras em flor. Apaizeiros meninos desciam para a vrzea sob o emaranhamento dos cips fofos de folhas. Tucumzeiros carregavam-se de cachos cor de brasa e porcos varavam os cips, assustados. As jurubebas eriavam de espinhos as moitas mais agasalhantes. Pontas de cip agarravam-se pelos taperebazeiros. Um apuizeiro se esparramava sobre a bacabeira morta. Gemia ainda uma pomba rola e as corujinhas comeavam a piar. Orminda continuava na frente, j descala, guardara as chinelas numa toua de capim. Sentia o cansao da viagem de Mangabeira. E atrs, num esgar freqente, meio derreado, a bengalinha, a mo de vez em quando nos rins, Capito Lafaiete caminhava. Tinha esquecido os f6sforos, bolas! Ouvia-se partir lenha atrs da barraca da velha Feliciana. Siris andavam pelos paus do igarap. Orminda parou. Agora tinha que lev-lo pela mo por cima do ananizeiro caldo no igarap. O senhor veio todo ensapatado, eh! Capito Lafaiete ia responder quando ela, de sbito, o largou no meio da estiva, corre ligeira pelo tronco e desaparece. O tabelio [84] tenta apoiar-se com a bengalinha, escorrega e se abraa ao tronco, afundou os sapatos na lama. Pde erguer-se, avanou de gatinhas pela estiva, ofegante, chamando baixo por Orminda, que acabasse com aquela brincadeira, visse que era um homem de respeito, visse... Limpou a lama do rosto as calas pesavam. Chamou. Como atravessar de novo o igarap na escurido que crescia, como se deixou enganar... chamou mais alto. Um pnico o invadiu. Os sapatos encharcados. O

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gosto de lama na boca. Abriu os braos num gesto de desamparo e voltou a gritar na escurido: Orminda, Orminda, Orminda! Nem sombra nem rastro de Orminda.

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Tranqilo azul da tarde imvel entre as rvores Missunga esperava Alade na barraca. Guta lhe aparecia da infncia entre goiabeiras e savas. As goiabas bichadas eram doces, a lua brincava com os peixes, o machado do mestre Amncio, reluzindo de seiva, sangrava os troncos. Mandara Benedito levar uma carta para Guta. Ela no compreenderia certamente. Sim, que ali s havia cilada, o jogo de se falar na infncia... Guta, naquela tarde, estaria inclinada sobre o poo como se a gua l do fundo a fascinasse. Alade, acabara de despescar o cacuri, surgia com a enfiada de peixes no ombro e o cheiro da mar, das pescadinhas vivas, do mangue. Missunga via Guta levando o balaio de comida para o pai e os irmos madeireiros. No caminho um caboclo saltaria da capoeira a agarraria a moa, carregando-a sobre as estivas de juara. Depois, na barraquinha mal coberta e mal tapada, Guta acenderia a lamparina, uma candeia de azeite de andiroba. O homem arma a rede, o vento faz tombar os taperebs na mar, espantando os camares, as guaribas rezam uma reza nupcial. O vento soprando pelas palhas da parede apaga a lamparina, e o amor, talvez fosse para Guta o mesmo que cair de repente no poo. Que frio, diz Guta, na madrugada. Mas o homem lhe d um puxo para que ela v acender o fogo e fazer ao menos um ch se no tiver caf. Ele partiria para a praia de Mangabeira, para a lanceao. Uma noite, D. Ana no armazm iria pegar o filho de Guta. Como no houvesse um [86] vintm para o vinho, o aa mesmo seria o mijo da criana em sinal de

contentamento. O cigarro caiu no cho. Descia pelas rvores um silncio mole, morno. Alade descarnava os peixes. Brilhavam escamas at pelo cabelo, de vez em quando ela passava o brao na boca, suas mos hbeis trabalhavam, distradas, tratando o peixe com aquele amoroso vagar com que fazia as panelas e pratos de barro de sua barraca. Como se queixasse que Calilo queria tomar o cacuri de sua tia, Missunga lhe respondeu: Isso porque dele no aceitaste o trancelim nem o sabonete. Brincando com uma guelra de peixe, Alade olhou de soslaio, tentou abafar o riso, Missunga viu que os lbios dela estavam ainda tintos de urucu que usara na vspera e que tanto o surpreendera, ate mesmo com certo agrado. Voc quer ir pras fazendas, Alade? Alade deixou escapar o peixe de suas mos e sorriu, dando a entender que ele fazia a pergunta por fazer, toa, toa. Alade, escrevi uma carta que no devia escrever. Ela apanhou o peixe, abriu-o, silenciosa. Sem querer ele deixou escapar: Benedito ter voltado? Rasgue, ento, a carta. Disse ela e nada mais compreendia. Por que os brancos, pensava, gostam das complicaes no papel? Sentia-se um pouco lisonjeada pela confidncia. Quem era ela, para tanto? E preveniu, quase inquieta: Mas rasgue. No bote a carta no fogo seno fica com a letra feia. Missunga desdobrou o jornal apanhado do cho, se aproximou de Alade que lhe pediu: Leia, ande. O jornal lhe dava tanta confuso aos olhos. Naquele papel grandes as letras to midas, to juntas, to numerosas, danavam, eram

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como muitos caroos de aa espalhados numa esteira, como as estrelas do cu. Pediu a ele: leia. Me conte o que diz isso, apontando com o dedo sangrento as letras mais gradas e as legendas das [87] gra|vuras que lhe podiam interessar. Perguntava com uma hesitante e pueril curiosidade, com uma espcie de desconfiana ou pudor que era, s vezes, mais do que indiferena, desdm. Prazer ntimo de dar trabalho lngua dele, de achar estrdio e sem jeito que aqueles sinais, riscos e pingos fossem nomes, coisas, casos, histrias, palavra nunca escutada, cada palavra to sua conhecida. Fazia um gesto de quem se lembrava, ao mesmo tempo enxotava o co que lhe disputava os peixes: Ache a Auca. Cate a palavra pxe. Ele fixou o olhar naqueles lbios: pareciam mais grossos, mais vermelhos, o urucu os tornava speros, selvagens. No acho. Mas se voc no tirou o olho do meu beio como que podia achar. Queria achar no meu beio? Nunca viu? Abom! Procure doce. Pronto. Achei acar. Hum. Deixe ver. No vejo nem uma auca nessa letra. Xa v se doce... Provou as letras e obteve, com a graa, um triunfo sobre Missunga. Os peixes prontos para o fogo, Alade pediu um quilo de farinha. Sua tia no voltava do mato onde fora colher plantas para remdio e cera de juta-irica para polir uma panela de barro. Um quilo de farinha, s? Devia quela cabocla um palacete em Belm, as passas, os grandes pes de forma que D. Ermelinda mandava buscar. Imaginava luvas para aquelas mos que arrancavam guelras, escolhiam camaro, reviravam lama, apanhavam turu no buraco dos paus podres. Um Lus Quinze para aqueles ps endurecidos e chatos que caminhavam lguas

no mato, p de caadora e mateira. No queres tambm um trancelim, Alade? Ela no respondeu. Muita coisa queria mas no sabia pedir. Um trancelim, um cinto, uma poro de fitas, a saia para a tia. Desejou aquele vestido que viu no figurino de Orminda, na vila. Ao pensar em Orminda quis pedir a Missunga, quando fosse vila, trouxesse a amiga. Se deu com ela desde a primeira vez que conheceu, nem [88] trancelim nem cinto queria se Orminda aparecesse para comer um peixe com ela, conversarem, Orminda a lhe ensinar a fazer um friso na blusa, ou dobrar uma ala. Missunga continuou: batom tambm compraria. Alade, no palacete, teria saudade do cacuri, do peixe pulando no fundo da montaria ou na sua mo. Os pensamentos vm e vo como aqueles galhos do pequiazeiro no vento. Peixe cozido, sal, alfavaca, limo. Guta teria jogado a carta no poo? Dado a carta para o papagaio brincar? Ou guardado entre os seios? Bom, guardada entre os seios. Por que escrevera, por que tamanho e ridculo impulso se nada mais havia de sua infncia naquele corpo curvo sobre o poo? Ela fizera com as recordaes de Paricatuba, o que faziam certas mes, no Par, com o n umbilical de seus filhos quando cai: queimam no fogareiro para que as crianas sejam felizes. Guta, por certo, para ser feliz, teria de queimar aquele n de infncia que os ligara e cara, do contrrio haveria de se lembrar sempre de Missunga e assim a carta seria o primeiro sinal da partida da moa para o mundo onde, estorcendo-se com o veneno, acabaria aos ps do marinheiro negro. Levaria Alade para a Amrica do Norte. Ela e duzentos contos, algumas boiadas e seria uma sensao em Nova York ou Paris! Alade exibindo pena de arara na cabea, nua entre peixes num aqurio, ndia marajoara, dada de presente dentro de uma igaaba de Pacoval a qualquer naturalista alemo. Sesta, os peixes, o sonho mais chicria e mais pimenta no molho, Alade. Iriam para os campos de Arari domar jacar nos lagos

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e laar os bfalos bravios. Saia desse seu sono, abo! Missunga escutava como se ela falasse do meio do rio, numa embarcao ao sabor da vazante. Aos poucos, cenas de vaqueiragens, as escrituras do pai, Marta acuada no muro do cemitrio, donzelas que seu pai deixava, no campo e na beirada, cadas e abertas como os peixes de Alade, despertaram-no confusamente. E deu com o olhar de Alade, to parado, no entendeu o que havia nele, de triste, um olhar que no se repetiria mais, logo mudou, como surpreendido ou culpado. Bateu a mo na testa, se levantou: Ah! Nem me lembrava mais. Tenho que ir com o Benedito para a sesso, hoje, do Manuel Rodrigues na casa de seu Felipe. [89] A tia de Alade, que chegava com o paneiro cheio de ervas, arregalou os olhos de espanto ao ouvi-lo: Vou me encontrar com as almas esta noite. Benedito teve sorte ao encontrar Guta sozinha na barraca. Taqui. Que ento isso? V l... Pega, aquela menina. No t vendo? Te conhece, Benedito. V brincar com outra, tenho mais o que fazer. Mas, Guta, eu trouxe de Paricatuba. No meto o bico no que h entre vocs dois. Benedito, vocs dois uma histria! Ests muito enganado, Benedito. Ou tu anda leso... Olha, d um tiro de uma vez numa conversa dessa que no quero que caia no ouvido de papai, nem pense que ando me gabando do que nunca me passou pela cabea... Benedito, sai daqui, com as tuas brincadeiras... Benedito no insistiu mais, deixou a carta em cima da pimenteira e correu, com um secreto prazer, quase vingativo, de levar uma resposta que Missunga no esperaria. Estava certo que ela apanharia a

carta e jogaria no fogo. E isso se deu no momento em que o velho Amncio aparecia no caminho do lado dos bacurizeiros grandes, com um feixe de lenha no ombro. Guta assustou-se e apanhou, mais-quedepressa, a carta, guardou dentro da blusa e logo foi ver o aa de molho, ajudou o pai a arrumar a lenha, longe o grito do tucano trazia o anoitecer, passavam asas por cima do cutitiribazeiro, vinha do terreno vizinho um cheiro de cupuau. Vem c, mea filha, me tira este espinho. Velho Amncio sentou-se no mocho, brincando com o papagaio e estendeu o p dodo filha que se ajoelhava no cho, com a agulha. A mo dela tremia.

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[90] Quando Orminda avisou a me que Manuel Rodrigues a convidara para a sesso em Paricatuba, em casa de seu Felipe, o esprita encontrara nela uma extraordinria mdium nh Felismina voltou a repetir o que toda a vila perguntava: Gente, como foi que Manuel Rodrigues voltou to mudado? Ponta de Pedras pasmava. Manuel Rodrigues voltava de Belm formado em espiritismo, falando difcil, contando como a sua vida mudou. Andava Lento, ar proftico, recusando a cachaa que os seus antigos camaradas e folies de Santo Ivo lhe ofereciam. A vila no compreendia tal mudana feita em pouco mais de um ano de ausncia. Seria a fora da nova religio? Teria mesmo morrido nele o devoto, o folio-mor, o festeiro de Santo Ivo? Ele ganhara ou comprara Santo Ivo no Tocantins, ou em Belm, no se sabia. A imagem consistia apenas na cabea do santo, tamanho da de um homem. Manuel Rodrigues contava a histria daquela Cabea: Santo Ivo, que sabia o paradeiro do Cristo, no quis

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denunci-lo aos seus perseguidores e por isso o degolaram. A imagem era a cabea do mrtir degolado. Eis porque se tornara o advogado das cabeas. Manuel Rodrigues, o chefe da comisso de Santo Ivo na tirao das esmolas pelo Arari, Marajoa e Camar, quando se faziam os grandes embarques de gado e comeava a safra de peixe nos lagos, ia cantando folia e recolhendo os donativos com que [91] oferecia a festa e ganhava sua vida. Seu barraco era no Marajoa. Convidava os mestres de ladainha, as velhas rezadeiras do rio, os antigos festeiros de santo que se sentiam atrados pelo poder da Cabea, pela sua histria, estranha Cabea rosada e mrtir de quem no traiu o seu Mestre. Davam assim maior prestgio a cerimnia, maior concorrncia festividade. Depois da ladainha, do leilo dos presentes e das esmolas recolhidas, Manuel Rodrigues fazia o sinal para a msica. Duas noites danavam enquanto houvesse carne de porco e boi velho nas latas do fogo ou secando sob as moscas do jirau. Num princpio de ano, a mulher de Manuel Rodrigues acudiu aos gritos da filha, uma menina de onze anos, que encontrara um lacrau na rede. Na noite seguinte a menina teve um ataque e morreu. Sua me gritava que a morte viera do lacrau mandado por uma dona Blandina que morava na vizinhana, tida como a mais invejosa das mulheres. Grvida, a toda hora mal-assombrada com os lacraus, a companheira de Manuel Rodrigues caiu na esteira noites e noites gritando, fazia o devoto de Santo Ivo procurar quanta parteira existisse no rio. Nenhuma dava conta. Mandaram chamar Capito Lafaiete que entendia. Chamaram paj. Era dor, dor, sangue, gritos: meu Santo Ivo, Nossa Senhora do Bom Parto e do Perptuo Socorro! As parteiras, o tabelio e o paj no esqueciam a histria dos lacraus. Ser criana mesmo na barriga da mulher? As parteiras discordavam nas suas suposies: quisto,

filho atravessado, filho morto, falta de puxo, Capito Lafaiete falava em albumina, em parto fora de tempo. O paj, que a mulher tinha ficado grvida de boto e no de homem, se o filho nascesse devia ser logo atirado no rio, embora tivesse semelhana de gente. Duas crianas caram na esteira, to roxos, dois anjos que no nasciam para o mundo. No oitavo dia da morte das crianas, a me pediu uma ladainha para Santo Ivo. Manuel Rodrigues chamou rezadores. Quando acabou a reza, a mulher rogou ao companheiro que ficasse com ela a noite inteira ao p da rede. [92] Que tu sente? Ela no disse mais palavra. A chuva abafava o barulho dos lacraus que vinham tirar o sono e o sossego da doente. Com os olhos no companheiro, murmurou: Eu te peo que tu entregue Santo Ivo na Igreja... Quem que pode com a inveja do mundo? Pediu para ver Santo Ivo. E morreu abraada Cabea, a chuva abrindo mais as goteiras do quarto e mulheres, parteiras, comadres e curiosas, se aproximaram, assustadas, mal refeitas do sono, espiando. Foram-se as grandes chuvas. Manuel Rodrigues fez Santo Ivo reclamar a sua festa. Reuniu os folies e como no tinha outra mulher para tomar conta do barraco e preparar tudo a tempo para esperar o regresso do santo, foi D. Blandina mesma que se ofereceu. Ao voltar de Arari, Manuel Rodrigues encontrou o barraco abandonado. Blandina havia fugido, falando que no podia com as visagens, tanta a perseguio da menina do lacrau e dos prprios lacraus. Manuel Rodrigues sangrou o boi, os porcos, o carneiro que os devotos lhe deram. Frasqueiras de cachaa e potes de mel o santo ganhara. E a segunda noite da festa entrou com lutas de bbados no terreiro, o susto da mulherada no barraco. Manuel Rodrigues nunca pudera impor respeito e ordem na segunda noite da festa de Santo Ivo. Muitas vezes quando os seus

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companheiros de cachaa se voltavam contra ele, socorria-se de um estratagema que fez Rafael nunca mais aparecer ladainha. Corria no meio do tumulto, arrancava do oratrio a Cabea e caa com ela no cho, rolando como um possudo do demnio. Ento os rivais no ousavam toc-lo. Era o que podia acontecer naquela segunda noite de Santo Ivo em que Manuel Rodrigues no podia mais se agentar de to bebido. O barraco no tinha mais dono. Enquanto os caboclos, no terreiro, exclamavam: Dem dama pro dono da casa! Tenham pena do prximo! Manuel Rodrigues, luz do carbureto que apagava e acendia excitando cada vez mais os danadores, gesticulava procurando em vo com quem danar. As damas, se no arranjavam cavalheiros, escondiam-se no [93] quar|to, varavam a cozinha onde os convivas devoravam o toucinho que enchia as travessas e bebiam caldo, carne no havia mais. De sbito, Picapau, o flautista, ergueu-se sob a exclamao das mulheres, o no pode! dos bbados, os cachimbos suspensos das velhas atnitas: Manuel Rodrigues, bradando que iam saber quem era o seu par de valsa, abre o oratrio, retira uma imagem e sai danando com a Nossa Senhora da Conceio. As mulheres em massa arrebataram-lhe a santa, o folio saltou do meio delas e avanou novamente para o oratrio, abrindo-o. E logo recuou, a cabea oscilante, as mos no ar, uivando: A finada levou Santo Ivo. Santo Ivo no est aqui. Santo Ivo fugiu! A Cabea desaparecera. O povo fugia atropeladamente. Comedores de porco abandonavam a cozinha, derrubando bancos e atirando pedaos de toucinho no cho e na comprida mesa suja de vinho e gorduras onde se espalhavam montes de farinha. Mulheres deslizavam nas estivas de miritizeiro e puxavam as montarias na lama. Sacos, bas, redes, sapatos na mo, saias arregaadas, crianas no colo e nas ilhargas, instrumentos de msica, curumins berrando, velhas estremunhadas saindo do quarto com os cabelos em desalinho,

se agitavam e confundiam na sombra da madrugada, debandando. Orminda se lembrava de que foi Tenrio quem a carregou para a proa de sua montaria, o medo a deixara ficar na lama sem saber que embarcao apanhar, todas haviam sido tomadas de assalto, lanadas ao rio sob a confuso e o alarido. Manuel Rodrigues voltara de Belm renegando o oratrio e o tambor, dizendo qu os evangelhos espritas o salvaram. Vinha dar luz aos espritos dominados pelas trevas, O povo dizia esprito com o acento no segundo i. Considerava a misria do mundo, a falta de respeito, a maldade. O povo passava fome? No vestia, no tinha sade nem tranqilidade? Porque se esqueceu de Deus. Disse a seu Nlson que Ponta das Pedras se findava assim por falta de f no espiritismo. Os padres s queriam se regalar, voltavam cevados e cheios do milho para Belm. Manuel Rodrigues sentia um grande esprito de luz baixar sobre ele. O esprito via as imensas desgraas da terra, tudo que havia de acontecer no [94] mun|do. Naquele tempo de Santo Ivo, a adorao das imagens, a cachaa, a folia e a farra eram a provao, porque sem sofrimento no pode o homem caminhar para a luz. Manso, cheio de pena pela escurido da terra, o ex-folio sentia mais do que nunca a humanidade se afundando no abismo. Aprendera em Belm a palavra: Corrupo e a frase: a corrupo do mundo, nas sesses, amansava as almas penadas. O povo o recebera ainda sob a impresso daquele crente da Armnia que tinha a voz cava, vestia pesada roupa preta, a barba evanglica no rosto de mendigo e a Bblia, anunciando o fim do mundo. Coronel Coutinho, que examinava as suas escrituras no

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cartrio, recebeu-o com um largo abrao, perguntando-lhe se havia feito boa viagem, que impresso tinha do Brasil, de Maraj, onde estava hospedado, como deixara a Europa e confirmou que o mundo, na verdade, parecia caminhar para o fim. Exibindo suas leituras da Bblia, disse que nada mais sublime do que o livro dos profetas. E quando se ouviu que um estrangeiro chegara a Ponta de Pedras, falando no juzo final, uma sombra de mau agouro e medo desceu sobre o povo. Tinha havido, afinal, a guerra, a fome, por que deixaria de soar o fim do mundo? A Intendncia foi aberta para o crente anunciar, no salo, ao Coronel Coutinho, a Lafaiete, ao tenente rsulo, ao magistrio, ao comrcio, funcionrios municipais, ao diretor d O Vento, ao Ciloca, o leproso, Agnelo, o bbado, Marcelino, o ladro, Orminda e nh Felismina que o mundo ia se acabar. O Apocalipse, a guerra, a morte do Tzar Nicolau atroaram no silncio. Um voz rouca avanou sobre o Apocalipse, caiu sobre o salo: Tudo isso tem no Nostradamus. Coronel voltou-se num gesto de irritao e temor, o pregador sorriu bblico e Lafaiete cochichou aos ouvidos de rsulo, com quem tanto antipatizava, oh!, no suportava esse tenente pedindo para evacuar no s o aparteante que era Ciloca, como o bbado e o ladro. Anunciando o fim do mundo, o crente abriu um caixote de onde se derramaram muitas bblias sobre a mesa do Conselho Municipal. Era do mandamento que cada filho de Deus, que quisesse se salvar, adquirisse um evangelho. Coronel adquiriu o caixote in tetro e ofereceu ao profeta um almoo dominical com carneiro, galinha e vinho velho. Tambm cuido da alma dos meus muncipes. Disse, com absoluta seriedade, mandando colocar nas prateleiras da loja as bblias que revendia, a dez por cento de lucro, aos fregueses e aos funcionrios com o desconto feito na respectiva folha de pagamento.

Se a vila soube e sentiu que o crente trazia na prpria voz a guerra, a peste, o Juzo Final, comparava-o com aqueles homens encapuados e barbudos sob a neve que apareciam nas velhas revistas e nas pinturas da casa do Coronel. Na noite de domingo, aps despedirem o profeta no trapiche, Coronel e Lafaiete voltavam ouvindo as corujas e um martelar fnebre na casa de Nabor. Quem morreu, Lafaiete? Uma mulher do stio que chegou ontem, de parto. Nabor acaba rico. Conheo um armador em Belm... Interrompe a conversa com um medo obscuro Lafaiete caminhava obstinadamente mudo , com aquele peso de dvidas e f que se abateu sobre o seu esprito durante a tarde. Tinha as suas preocupaes pelo sobrenatural, dizia. Como afirmar, por exemplo, que no existem fantasmas? Em Belm, no escritrio no caf entre os amigos, combatia o espiritismo. Recolhia ao seu palacete em S. Jernimo, e dormia de luz acesa, para espantar suposio de que D Branca poderia aparecer toda de branco, a mos brancas sobre o pescoo dele. Ao amanhecer envergonhava-se procurava ridicularizar as tolices de homem acordado na meia noite. Em Maraj, no escondia a crena inteira nas visagens no disfarava tanto o seu medo. Ali estava a sua propriedade era um homem em perigo mais prximo do milagre, das aparies, de Deus. Nas fazendas, admitia todas as religies, submetia-se ao padre e ao paj. Com a passagem daquele crente, sentiu [96] me|do, ou pelo menos, cresceu-lhe a vigilncia contra as surpresas que estavam acima do seu mortal alcance. Recordava que, uma vez, o padre Lisandro, apenas para irrit-lo, dissera do plpito: Mais fcil um camelo entrar pelo buraco da agulha, que um rico entrar no reino dos cus. Isto com efeito o irritou, o padre era um trocista, mau intrprete dos textos bblicos, abusava do plpito, pregando entre os fiis a subverso das coisas. Imaginem se o povo comeasse a pensar naquela perigosa

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citao do padre. Seriam novas cabanagens. Lafaiete, voc vai to calado. Pensando nas escrituras, compadre. Voc acredita no fim do mundo, Lafaiete? Compadre, no vale a pena pensar no que est acima do nosso juzo. Ns somos lama, compadre. Tudo a terra come, o resto o nosso medo. Voc sabe, compadre, sou um homem bom. As vezes tenho que ser enrgico. Mas o dever terrvel. O dever de nossa condio. Deus nos deu um destino. Eu nego o livre arbtrio, compadre. O tabelio, sorrindo deixou escapar, enfiando o brao no brao do Coronel: Coronel, compadre, se est prximo o fim, temos que deixar aquelas escrituras em dia. Ora, em Paricatuba, Manuel Rodrigues ia dirigir a sesso na casa de seu Felipe. Tio Rafael no acreditava na regenerao do profanador de Nossa Senhora. Dizia na porta da igreja que os espritas eram uns novos pajs. Lembrassem sempre o herege que danou com Nossa Senhora e fez que Santo Ivo abandonasse Ponta de Pedras. Manuel Rodrigues, mandou dizer a Rafael que lhe perdoava. Rafael, ainda na provao, era vtima dos padres, profanava o nome de Deus com folias, ladainhas e prespios. Quando Missunga entrou na barraca de seu Felipe, com Benedito atrs, Manuel Rodrigues pregava: Nunca mais comi carne pois o nosso prximo no somente o homem, mas todos os animais, nossos irmos inferiores. Comida de quem morre, em? Os vegetais no sentem a morte e [97] por isso no se pode dizer que morrem. Por isso seu Felipe rejeitou, na vspera, pela primeira vez, o pedao de cotia que lhe trouxera? perguntou a si mesmo o Benedito. Palavra do Evangelho, palavra de Deus repetia Manuel Rodrigues. Nem ovo. Nem ovo! exclama com o dedo evan-

glico no ar. Nem ovo. Ovo, em? Se vissem como os nossos espritos protetores mostram o ovo. R! Eu, dantes, gostava de fritada de ovos. Hoje, em? Vi o esprito protetor mostrar o ovo se desfazendo em sangue. Quem come ovo, ein? Quem? No aconselhava dieta a doente. Comesse de tudo, menos carne, nada que fosse o nosso prximo inferior. Alimento que Deus d no faz mal a ningum, para doena nenhuma. Comer carne de vitelo era tambm antropofagia. Comer carne de ovelha era mesmo que comer caminha de criana. Manuel Rodrigues empertigava-se, tinha um caro de bronze, o olhar untuoso, o queixo pesado. Ns fazemos tudo por cumprimento da lei! Seu Felipe, exangue, com os olhos ardentes, parecia cabecear. Tremia com o frio do paludismo. A febre no lhe queimava a carne miservel, carne faminta, ossos famintos agarrados terra. Sua alma estava de posse da verdade. Lera o Despertar da Alma do grande esprita Dr. Rosmaninho que tanto sucesso alcanara entre as almas em Belm. A maior vontade de seu Felipe era ir a Belm conhecer esse mestre das coisas do espiritismo. Manuel Rodrigues falava das suas conferencias lindas, macias como brisa. Pintava o grande irmo Dr. Rosmaninho como um ser sobre o qual baixava o prprio Alan Kardec. Convertia milhares de almas. Dr. Rosmaninho falava do materialismo, a podrido da matria, como era triste a matria, como era s matria este mundo! Ia comear a sesso. Orminda ao chegar surpreendeu-se com a presena de Missunga. Sentiu vergonha, quis voltar, o olhar de Manuel Rodrigues lhe deu sossego. Deus lhe trouxe. Nada tema. sussurrou ao tocar-lhe no ombro, e falou com a voz abafada. Apaguem a luz. [98] Missunga sentiu a treva ondular. Lembrou-se do cego, o

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grito do cego e pouco depois um gemido emergiu da treva, algum saltou freneticamente na cadeira. Era a mdium, era Orminda. Quieta, irmo. Quieta. Ts na treva, irmo? Quieta. A mdium batia os ps, espichava o pescoo, gemia fundo, lanava os braos no ar. Quero cachaa, quero. Paz, irmo. Paz. Paz. Bebias dantes? O lcool era a tua provao? Paz. Quero. Quero. Fui bo no mata-bicho. Comigo... era s no mata-bicho. Manuel Rodrigues disse qualquer coisa no ouvido de seu Felipe a seu lado. Paz. Paz. Espera, irmo. Missunga sentiu que algum se levantava, lento, Manuel Rodrigues voltou-se para a mdium, tocou-lhe o ombro, abraou-a tentando conter-lhe os movimentos. Paz. esprito protetor, baixa tua luz sobre o nosso irmozinho. parte, disse: Tragam a cuia. Algum surgiu com uma cuia, um caneco tiniu no banco e se ouviu um glugluglute apressado. Bebe, bebe que acarma. O esprito, enchendo a escurido, cambaleava entre remorsos, e pesadelos, na purgao do vcio. Manuel Rodrigues ento rogou que todos baixassem a cabea, se concentrassem para fazer a corrente. Um grande esprito de luz ia baixar. A alma invocada, que a mdium incorporava, mais cachaa pedia. Ai, ai, tenho saudade de meu gole. Paz. Quieta, irmo. Esprito de luz... Foi quando Benedito, que era o filho do esprito invocado, se mexeu na concentrao, saltou no escuro para o meio do quarto: Seu Missunga, quando mandei invocar meu pai no foi pr

isto. Finado meu pai no era pau-dgua como voc Manuel Rodrigues. A mdium est no porre. Orminda est se prestando pras cachorradas do Manuel Rodrigues. O ordinrio quer se servir dela e mais nada. Isso no se faz com os mortos. Acendam [99] a luz. Desrespeitaram a sua casa, seu Felipe. Houve um tumulto. A mulher de seu Felipe rolou com um gemido entre os bancos e os homens, aos gritos, amontoaram-se na escurido tentando acudir Manuel Rodrigues que se debatia sob os joelhos de Benedito. Quando a luz acendeu, Orminda jazia no cho, bbada, o brao sobre a testa, e Missunga admirou-lhe os longos cabelos espalhados em que ainda havia os restos de jasmins e baunilha que recendiam vivamente.

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[100] Orminda, naquele despertar assustado em Paricatuba, no quis saber mais nada, certa de que sua me a esperava com a vassoura de aa para dar-lhe na cara. Mal encostou a montaria no trapiche pblico, mandou chamar Capito Lafaiete. O tabelio antes de ouvi-la foi dizendo: Afinal, pra que me mandou chamar? Voc descobriu que mdium, trate de se arranjar com o seu mestre... Capito Lafaiete, no sou culpada de ser mdia. Eu me atuei. No brinco com coisa sria. Agora, se Man Rodrigues abusou, a culpa dele. Estou procurando mea vida. Casa de mame que no posso procurar, depois do que aconteceu. Mandei dizer a ela que ia viver com o senhor. Mas tu s doida-doida, Orminda. Doida! Tambm estou vendo que o sr. no tem palavra. Eu procuro mea vida. V a gente se fiar. V... Orminda, tu s doida...

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Ande. Me despache. Resolva! O tabelio viu-lhe o desmazelo em que saltara da montaria, descala, as chinelas na mo, a cabea baixa, os desarrumados cabelos, a ponta do p riscando de leve a gua, um brao apoiado no esteio da ponte, a axila negra e suada, o arfar de animal enfim capturado. Doida-Doida. mpetos de cheir-la toda, esquecido da noite no igarap, da atuao e das contas que teriam de aumentar [101] na loja do Coronel, no Fontes. Meias, bolsas, sapatos, fazendas estampadas, broches. Doida-doida. Como arranjar-lhe a barraca, como enfrentar Guilhermina, coitada, quase cega, com catarata? Ande. Me despache. Resolva. Lafaiete via Calilo desenrolando a pea de cetim vermelho em cima do balco para derram-lo sobre aqueles braos, aquele arfar, aquele saboroso animal que daqui a uns instantes escaparia de suas mos para sempre. No viu que Orminda enxugou, de leve e rpido, com a ponta da gola, os olhos que no o fitavam nunca. Pensou no dinheiro dos rfos de D. Alzira, a escritura estava nas suas mos. Velha Felismina, exausta de tanto falar e praguejar, ficou olhando toa a mangueira ameaadora. E como se falasse em presena de Orminda: Hum, pequena. Tua mestra tu mesma. Segue tua sorte. Assim que filho d o pago. Quem se perde na sem-vergonhice perde at o amor de me. Vai pros homens, vai pro teu cio, vai! Terminou chorando, batendo a cinza do cachimbo na pedra do fogo. Ia se apagando a lamparina. Querosene no havia. Uma noite de mau agouro espreitava l de fora. O vento zunia no folharal. A mangueira ameaava. Em p, junto ao fogo, velha Felismina permaneceu muda, a mo no queixo, vendo a lamparina apagar-se lentamente. Sou uma pobre, pensou, batida de necessidade, de sofrimento. Um filho morto, dois ladres. O outro nunca mais voltava da contra-costa. Seu silncio era um clamor na sombra, escuro e annimo, cla-

mor de todas as mes de prostitutas e ladres. Nem sentiria se a mangueira tombasse. A filha mais velha, a Das Dores, teve a mesma sorte. Foi violo, foi flauta, foi serenata toda noite, cochicho de homem no terreiro, tio de fogo acendendo cigarro de homem porta dos fundos e o dia em que Das Dores se esvaiu em sangue com um parto sem explicao. Velha Felismina no pde reprimir! E com um diabo daquele. As lbias. As lisonjas. Mas a culpa eu s ponho nela, na cachorra. [102] Arregalou os olhos, coou a costa, gesto de raiva, luz da lamparina, se projetou na parede, sobre o mundo. Enfim era filha. Mas sabia: quem nasce para aquele fado nada h que contrarie. Cumprisse a sorte. Muita vez distratava-a para que tivesse mais termo no danar. Nada, afinal, deu remdio. Acabou foi aquele herege levando ela para Paricatuba. No se esquece da noite em que a surpreendeu com um rapaz na escurido. Ela a tocou para a barraca, batendo-lhe nas costas e no rosto com vassoura: Tu inda moa, Orminda? Me diz, sua diaba. A filha sem chorar, gritando-lhe: Me tire a cala, me examine. Mande ver. mame, parece que a senhora ofende a Deus. Filha e me caam extenuadas, nas redes, chorando: oh! mundo, meu Deus! Quem gozaria era a negra Feliciana. Ah, como as negras ficariam de peito lavado. As lgrimas tombavam pelas covas do rosto que ardia. A lamparina sem querosene. O tear desarmado. Nunca mais havia de fazer uma rede. Que desespero. Nossa Senhora, que agonia. Enxugou os olhos na barra da saia azeda e suja. As brasas do fogo apagavam de vez. Fumegava o murro da lamparina. Pensou em Orminda menina, to mocinha que era e j passava por m e impossvel. Quando o padre Gregrio morava na vila, Orminda

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pulava a cerca, entrava na casa do vigrio, comia-lhe os doces da compoteira, bebia os vinhos da mesa, enchia de pedra os pratos vazios e jogava as garrafas no quintal. Uma tarde, caiu, bbada-bbada, nos fundos do quintal, cantava como em acalanto o meu boi morreu. E os vinte frangos, vinte frangos! da tia Lcia encontrados no poo? Nh Felismina se lembrava como defendia e tentava ocultar o procedimento da filha. Sentia, no meio dos maus pressentimentos e dos ralhos, uma ntima, irreprimvel satisfao aquele jeito danado da menina, pulando cerca, caindo das goiabeiras, ajudando os homens a limparem o poo, montando nos carneiros, apalpando as galinhas para saber se tinham ovo. No velrio de [103] Minervino, e foi quando velha Felismina reparou que a filha era j uma moa, Orminda ficou de olhos pregados no caixo, mais tarde, silenciosa e serena, cobrindo o cadver de flores. Noites, a me ouvia a filha rolar na rede, como se abafasse soluos: Que tu tem, ein, Orminda? Este meu dente. Eu sei o teu dente. Por que Orminda ocultava, por que no lhe viera falar, n regresso de Paricatuba? Por que Orminda no lhe contou o que se passava com ela? No via que seus irmos eram ladres, que foi o fim de Das Dores, que sua me nem o tear podia mais consertar? A velha se ergueu, ps as mos na cabea, o murro da lamparina apagou. A treva devorou aqueles olhos pesados de lgrimas. Orminda mamando, pequenina, to viva que era, correndo atrs dos camares que saltavam do paneiro. Seu filho morto, gritando no meio da rua: gua, gua! Seus peitos deram de mamar a tanta gente Seu leite criou uma gerao. Para seus filhos, seu leite no tiver a graa de Deus. Seu leite alimentou Missunga, a D. Ester, moa branca, se casou na Inglaterra. Orminda fugiu da barraca, uma filha to bem parecida, se

estudasse dava uma professora. Cantava no coro da igreja, e agora no mundo, meu Deus. O sangue de Das Dores se espalhara no cho do quarto, ensopara a terra. Viu Orminda, encostada na parede, de olhos crescidos para aquele sangue e aqueles gritos da irm. Espremam os peitos desta velha, resmungou, e vejam se sai leite; sai sangue, sai lgrima. Sentiu perder as foras. Orminda, mea filha! E s o co, cego e mancando, foi quem acudiu ao seu grito.

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[104] Missunga correu para a barraca de seu Felipe, os padecimentos do velho se agravavam de tal forma, que ningum mais acreditou que voltasse a ler a Bblia, a falar no Dr. Rosmaninho. Ele e sua velha ficaram cegos da noite para o dia. Verdade era que vinham sofrendo j da vista, h muito. Como, cegar assim se no por um castigo, um poder? E o povo dizia. Manuel Rodrigues, por onde andasse, havia de espalhar desgraa. Por que no expulsavam esse herege de Ponta de Pedras? perguntava Rafael. Como fosse apanhado novamente, na vila, abraando a outra mdium na sesso, tenente rsulo mandou Levindo jog-lo no xadrez. Mas no me bote na faxina, tenente. Basta o que isto me prejudica. Na escurido do xadrez, surgiu-lhe a viso da Cabea de Santo Ivo. A fora daquela Cabea era uma fora de Deus? Os dolos teriam poder sobre os homens? O espiritismo mentia? Manuel Rodrigues saltou da esteira, atordoado. Os moleques gritavam atravs da grade atirando pedras. Santo Ivo te persiga, desgraado. Nossa Senhora te d um castigo teba. Vai, vai danar com ela!

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Manuel, aturdido, os espritos de luz o abandonavam. No meio de suas espertezas, aventuras e derrotas, s a Cabea de Santo Ivo era viva, parecia sangrar, rude e fiel na sua acusao. Seu pecado nas sesses no era de sua matria, mas dos pobres espritos [105] er|rantes na treva que invocava. O pai de Benedito descia na corrente pedindo cachaa? Era porque no se conformava ainda com seu desencarne. Estava preso terra e depois, com uma mdium como Orminda... Ah! Orminda, mdium e tanto, que pena! Tambm era Rafael quem levantava o dio da vila contra ele. No. Pelos espritos divinos, no presidia as sesses por m inteno, para fazer mal s cunhats. Um grito atravessou as grades: Estavas botando o esprito de luz na Cristina, em? Por que Santo Ivo desaparecera? Teria sido a finada? No era possvel, estava bbado... Tenente rsulo prometera mandar surra-lo se continuasse a fazer sesses. Excomungado! O inferno te espera. Sers degolado! As pedras choviam dentro do xadrez, batiam nas grades. Uma cabea de bruxa de pano, suja e manchada de sangue tombou aos seus ps. Eis o que Santo Ivo vai fazer com tua cabea! Seria o grito de Ciloca? Cacos de vidro e novas pedras vararam as grades. Onde o Levindo, onde estava o tenente rsulo? No tivera culpa com o caso de Cristina. No sabiam o que era uma atuao? Se fosse pajelana, gostariam. Como era uma religio, uma cincia, com doutores no meio e muitos livros explicando a doutrina, o povo atirava pedras. Se nem o Rafael sabia ler, queriam era a ignorncia! Deixaste a moa grvida no Abaet! Vai criar o teu filho. Tu morrers degolado. Tua cabea h de virar cabea de porco. Reconhecia, desta vez, nitidamente, a voz de Ciloca. Os moleques pela rua escura. Como souberam que Laurinha, a vidente, estava grvida em Abaet? Grvida? Seria ele o culpado? Como as

noticias corriam, como Ponta de Pedras tinha ouvidos e olhos para o mundo inteiro. Tenente rsulo, apenas por simples divertimento, o condenara quelas vinte e quatro horas de xadrez, com os moleques vaiando e apedrejando, sem um guarda, nem o Levindo, ao menos, para debandar os demnios. Levindo, decerto, curtia o seu porre de toda noite. E seu Felipe, prximo do desencarne, o esperava em Paricatuba para as preces? Aquele sim, havia compreendido a doutrina, tinha a luz na alma. S os dois velhos [106] se salvariam daquele povo condenado. Bem, razo tinha aquele crente que passara e de que tanto falavam ainda. No era o fim do mundo mas o fim de Ponta de Pedras que viera anunciar. Tu queres dar s mulheres a graa de ficarem prenhas do Divino? o Ciloca que te fala, degolado em vida! A voz do leproso o encheu de terror. Procurou um pau, uma vassoura, para afastar de sua esteira aquela cabea de bruxa, sangrenta e ftida. Tentou apanh-la e devolv-la pelas grades. A nusea, o terror o fizeram recuar e cair exausto na esteira. L vai mecha! Os moleques gritavam e as pedras batiam na grade, caam sobre a bruxa, quebraram pote dgua coberto de limo a um canto. Levindo, por que tu bebes que no vens em meu socorro? Meu Santo Ivo! O povo condenado! Quando a mulher de seu Felipe soube da priso de Manuel Rodrigues, perdeu a esperana das preces para o companheiro que no queria mais tomar remdio de espcie alguma, queria talvez desencarnar mais depressa. Nh Clara viera ajud-la, cachimbava no cansada de tanto insistir junto ao doente que tomasse uma colher de ch. O quarto se enchia de fumaa dos cachimbos. Uma doena que ningum sabia. A velha cega tinha a voz sumida e permanecia cabeceira do marido, com o rosto fundo, a mo presa beira da rede como a amparar-se. Que silncio. Que calor. Somente l fora os passarinhos faziam um doce barulho nas rvores.

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Um doce barulho. A velha sabia; a sua cegueira era a claridade do desencarne que chegava. Sua reza ficou to silenciosa como o andar vagaroso da morte. Ela e seu velho nada mais queriam deste mundo. A carne breve, a alma imortal. No fundo da rede, seu Felipe jazia, os olhos cerrados, a testa reluzente sob as moscas. D. Ermelinda, se embalando no casaro, mandava saber o estado do enfermo, Missunga aproveitou a ocasio com Benedito no remo pelo macio da enchente. No quarto, a velha pousou as mos ossudas na testa do agonizante. Os passarinhos brincavam nas palhas da barraca. Benedito vinha remando, que preguia, que calor, aproveitando a sombra dos miritizeiros, do mangue. [107] A mar enchia. Missunga recordava as histrias de seu Felipe. A lenda e o mistrio de Paricatuba desapareciam. A mar enchendo trazia a morte para o contador das histrias. A vazante levaria o enterro, o caixo na montaria e dentro os botos e os navios encantados. Nh Clara invocou S. Miguel Arcanjo, rezou o Santssimo. A lua da vela entre os dedos do agonizante subia direito. Um gato pulou na mesa deitou-se sobre a Bblia, cerrando os olhos. Benedito levantou o remo, deixou que o casco viesse pelas mos enchente. A morte era a me do rio cheio. Nh Clara disse uma palavra. A velha cega ergueu-se com um gemido e se dobrou sobre a rede. A vela ardeu e caiu nas mos de nh Clara que tentou recoloc-la entre os dedos do morto. Quando Missunga voltou, Coronel levantou-se da rede: Acabou-se o nosso parente, no? Missunga, ento, lhe falou: Papai, agora que seu Felipe morreu, me d as terras dele no Paricatuba. A velha cega vai morar com os parentes na vila, Lhe dar o stio, por que e para qu?

Vou tentar... Quando cria juzo, meu filho? Voc precisa ir embora. Doulhe quanto quiser contanto que me d sua palavra de que se forma. Tem gasto uma verdadeira fortuna. Assim mesmo no tenho pena de lhe dar mais... Pois quero recuperar o dinheiro perdido fazendo uma plantao em Paricatuba. Quer administrar as fazendas? Quero. Pego a sua palavra. Espere. Como quer administrar? Tirando Man Raimundo de l. Est lhe furtando a olhos vistos. Coronel mergulhou as mos nos bolsos, dirigiu-se a um armrio como a procura de alguma coisa. De repente voltou-se para o filho, com um ar quase irritado: Mas me serve como ningum, ouviu? Devo-lhe a segurana de todos os meus servios. No fosse ele, menino, voc no teria estudado nem gasto como gastou. Aquilo a minha coluna [108] mestra. Papai tambm toda hora pe em rosto... Sempre na cantilena de que eu gastei, gastei. Afinal o que o senhor queria era um diploma. De que serve uma inteligncia sem pergaminho? Quer pois que eu compre um anel de doutor? Se fosse pelo dinheiro terias quantos anis nos dedos? Olhe que o assunto o terreno de seu Felipe. D? Meu filho, sempre pensei que a nossa famlia deveria ter um doutor. No sabes que os Teixeiras se vangloriam disso? E os Menelaus, os Lees no diziam que os Coutinhos de Ponta de Pedras no conseguiram tirar um filho das faculdades? Depois de um silncio: E por que o senhor no manda um caixo mais decente para o velho? Era nosso parente, papai.

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Mas no dei as tbuas? Que querias mais? De forma que possa ficar com o stio ou ento boto Manoel Raimundo das fazendas? Aquele administrador, meu filho, fez por mim o que ningum faria. Nem mame? Filho e pai encararam-se, desentendidos. Coronel manobrou a conversa: Manoel Raimundo conhece todos os campos como a palma de sua mo. Voc precisa conhec-lo melhor. Missunga ouvia com os olhos pregados nas telas da varanda, com um vago pensamento em Guta. Faria do stio de seu Felipe, um pomar para Alade. Parece um general em campo. analfabeto o homenzinho. Mas que tino para tratar de gado. Como sabe trabalhar. Com vaqueiro ele diz duas palavras. Escreveu no leu, j sabe. Nossos gnios se combinam to bem. Tem seu gadinho... Que gaste... Furtar-me? Que desfalque de gado j me fez que me abalasse? Dou-lhe tudo quanto quiser. Anda de automvel em Belm. E o engraado que Lafaiete se arriscou a vir me pedir a administrao das fazendas. Imagine aquele tabelio tomando conta do meu [109] ga|do. Ele no tolera Manoel Raimundo, sabia? Missunga parecia completamente alheio. Um pomar para Alade. A voz de Guta. Uma irritao, por fim, com o elogio do administrador. Seu pai elogiava o administrador como gostava de elogiar o motor Borboleta. Como gostava de elogiar os seus barcos. Tinha a mania dos barcos novos. Pois teve a coragem, o pndego do Lafaiete, de me pedir a demisso do Manoel Raimundo me dizendo que ando iludido. Imagine. Por isso que aparece um crente falando que vai acabar o mundo. S uma coisa que no gosto do Manoel Raimundo. a sua grande fraqueza para o lado de moa. J passou nos peitos no sei

quantas. Sessenta anos e qu. Filhos homens. Filhas casadas. Amante em Belm. O diabo tambm aquela asma. E que providncias toma o sr.? Mas se vo entregar as filhas para o velho! Um hbito que ele adquiriu. Um papo de meninas novas. Uma desgraa. Tambm se no fosse ele, meu Deus... que seria de minhas fazendas. No entanto, por causa de mim... Por causa de uma cabocla... De qualquer maneira voc no pode se comparar com ele. Sua posio outra. Sabe que pode cair numa cilada? Sabe que lhe podem fazer uma chantagem? Uma cabocla pode lhe perder a cabea... Como? Voc deve partir daqui. Deve partir quanto antes. Missunga, os olhos semicerrados. Por que lhe faltava impulso no seu propsito de reagir? Seu pai no o intimidava, no o convencia, o desarmava inexplicavelmente, deixava-o sob uma espcie de sbita perplexidade. Por que seu pai no se calava? Que seria se o velho morresse? Jogou vivamente fora o pensamento. Uma sucesso de pingos dentro de sua inrcia. O velho suspirou, levantou-se da espreguiadeira. Missunga abriu os olhos, aliviado. Coronel Coutinho debruou-se na janela. Apesar de tudo admirava no pai aquela resistncia, aquele sangue, aquele poder de se dirigir e decidir com tanta bonomia e naturalidade. Mas o viu hesitando debruado na janela. Coronel quis interpel-lo. Por que lembrava o nome de sua [110] me com tudo aquilo? Acaso no a tratou bem? Missunga ia saindo, o pai sem se voltar disse: Enfim vou ver o que fao com as terras do primo Felipe... Missunga falou a D. Ermelinda e esta intercedeu. Coronel falou na loucura do filho e Ermelinda afirmou que sabia porque ele no queria dar o stio. Por qu?

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Ela no respondeu, atou a rede, desmanchou o penteado prendendo os grampos nos dentes. Noutro dia bem cedo, Calilo aparecia no casaro, D. Ermelinda viu-o plido, pedindo um particular com o Coronel. Que aconteceu, Calilo? D. Ermelinda retirou-se para ouvir a conversa no quarto, ouvido parede: Coronel, disse Calilo, abafadamente, seu Nlson bateu ia senhora dele e botou de casa. O primo? Como? No verdade. Deu, Coronel. Botou. Mas no pode acontecer tal coisa, no e no. Voc anda doido, vendo fantasmas. E o pior, Coronel, o pior... Sim, o pior? O pior que ele me acusa... Mas voc, Calilo? Voc? Como isso possvel? Quando? Como, se Marta tinha tudo? Coronel bateu palmas pedindo caf. E estou aqui, Coronel. No sei como aconteceu. D. Marta as suas fraquezas e eu tambm. Coronel riu alto. Insistiu pelo caf. Havia aflio na voz de Calilo: Que fao com D. Marta, Coronel? Ein, Coronel? Ponha a mulher dentro de casa e use-a, use-a, viva com ela, senhor. Tambm Coronel quer gracejar com uma coisa to sria... Coronel derramou-se na cadeira de embalo, rindo. O Coronel talvez no sabia que eu estou noivo com a filha [111] do finado Abifadil. Coronel ergueu-se, surpreendido. Da filha ou da viva, Calilo. Fala claro.

Primeiro, Coronel, parecia ser com a viva. Mas... Fale, homem de Deus. Preciso amparar aquela gente. A menina... Coronel aproximou-se do srio e com voz baixa lhe perguntou, sacudindo a cabea: Calilo, voc quer amparar a menina Abifadil com as seiscentas reses, o Muat, as canoas, a casa em Cachoeira, com os porcos que ela tem? D. Ermelinda nada mais ouviu. Calilo respondeu muito baixo e os dois conversaram debruados na janela. Meia hora depois desceram a escada do casaro. E foi assim que ao voltar com a sua espingarda sempre intil, Missunga ouviu o final da discusso entre seu pai e D. Ermelinda: Pensa que estou aqui pra receber os seus amigos patifes, alcovitar as amantes deles no Paricatuba? Missunga abandonou a espingarda: o stio era dele. Necessitava tirar uns centos de palha para a barraca. Alade no podia ficar mais naquela barraquinha cai-no-cai com a sua tia. Havia de fazer um pomar, uma grande plantao, que festa para Alade! Como Coronel, no dia seguinte, se disps a ir vila, falando j em partir para Belm, Missunga lhe falou: Mande Dr. Adelino lhe examinar de novo a presso arterial, papai. E o fgado. Bom que v passar uns meses em Minas.

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[112] Coronel, na casa grande da vila, havia rubricado alguns livros da Intendncia que o Secretrio lhe trouxera e mandado as ltimas ordens para as fazendas. Passara tambm os ltimos dias a tentar responder a um artigo publicado na imprensa de Belm sobre as condies de trabalho nas fazendas e o preo da carne. Era avesso a polmicas, a publicaes pela imprensa, dizia. Desejava esclarecer, um assunto to complexo como o da questo da carne e dos

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fazendeiros e responder altura a diatribe. Tentou redigir o que publicaria como carta ou como tpico e horas inteiras permaneceu vergado sobre a secretria, riscando e amarrotando papel, folheando dicionrio, irritando-se cada vez mais com a m qualidade da tinta, da pena e do mata-borro. Vrias vezes comea a carta e vrias vezes desiste ou porque acha mais cabvel fazer um tpico ou acredita que a carta teria maior repercusso e perdia o flego. Afinal, era perder o tempo, a pacincia e o humor, refletir. Lembrava-se que tentara tambm redigir o seu discurso ao assumir a presidncia da Cmara Estadual e por fim chamou o secretrio do partido para o escrever: Voc sabe, no posso perder meu tempo em me debruar sobre o papel. Isso como jogo de pacincia. Admirava a oratria, mas era avesso a fazer discursos o que no o impedia de recordar, muitas vezes, em conversa: quando falei como presidente da Cmara... Noites, realmente, agradveis para o seu sono, sim, quanta satisfao de si mesmo, ao regressar da Cmara, depois de ouvir: Peo a palavra, Sr. Presidente. V. Excia., o Sr. Presidente. Como esquecer? Um antigo presidente de Cmara no podia se dar ao desfrute de [113] responder a diatribes, repelia a carta e o tpico. Escreveu algumas frases que ficaram, sua memria as guardaria, preciosas par sempre. Esperaria uma oportunidade para diz-las diante do juiz, do tabelio ou em Belm, nas reunies dos marchantes. Na Cmara, se fosse necessrio. Repetia mentalmente as frases escritas quando lhe vieram dizer que a viva de Felipe agonizava e no tinha quem mandasse fazer o caixo. Coronel caminhou, impaciente, para a loja, resmungando: Botem na rede. Ela no tinha ganho uma rede da Ermelinda e que custava 30$? Querem empapar o Nabor, que no faz outra coisa seno fazer caixo. Quem vai para baixo da terra no quer luxo. E entrou na loja falando alto: Eu, quando morrer, quero ir em rede. Quem se enterra se enterra. E a expresso mesmo enterrar quer dizer ir para a terra. Para

que ento gastar com o Nabor? Encontrou porta da loja o fiscal de imposto de consumo esmagando um jasmim na mo, muito empoado, de azul marinho, o ar federal recendendo a perfumes de contrabando. Ao seu lado o Secretrio da Intendncia, de sapato esporte marron, a blusa cerzida, sobraando os seus livros com ar mais municipal que nunca. Missunga e Lafaiete jogavam gamo. Coronel esfregou as mos, ordenou ao caixeiro: Mandem enfim, aquelas tbuas que esto debaixo do trapiche para o Nabor. Aqueles tbuas eram at para consertar o soalho do xadrez das mulheres que o rsulo me pediu. Enfim, v l. Era uma boa velha. Coitada, cega. Fez bem morrer. Dirigindo-se ao balco, quis, por simples curiosidade, rever as velhas contas de seu Felipe que guardava nas gavetas. Afinal parente no deixara de pesar um bocado nas suas costas. Uma vez Felipe o salvara num naufrgio em Marajoau. Afinal porque o deixaria de salvar? Felipe nadava bem, diga-se a verdade... Em reconhecimento, D. Branca lhe enviou um quadro de S. Miguel Arcanjo e comeou a mandar seus vestidos usados, queijo de Minas e po Palmeira para o casal. No era possvel descobrir as contas nas gavetas, sentia-se dominado ainda pelas frases. Como [114] alivia|do, por que isso, enfim, o afastava da morte da parenta, Coronel dirigiu-se ao fiscal: Voc vai ficar para o jantar. Viu um artigo... Ah, sim. Era para lhe falar. Mas nem vale uma resposta. A campanha obra de quem quer extorquir dinheiro ou de quem, por falta de assunto, necessita escrever alguma coisa que cheire a escndalo nessa atual mania de sensacionalismo... Coronel contemplou o fiscal, surpreendido: Oh, como me escapou essa idia. Extorso, sensacionalismo, tima! Concordou que o artigo cheirava a escndalo e a chantagem e viu que era chegado o momento de experimentar a memria e medir o efeito de suas frases:

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Cumpre salientar... engasgara, os olhos subiram ao telhado, desceram pelas oleogravuras e a estampa do homem com o bacalhau s costas cumpre salientar... Missunga lanou-lhe um olhar rpido. O secretrio Municipal folheava, de cabea baixa, os seus livros municipais, mosquitos voavam sobre a manta de pirarucu escuro e ardido, exposta na caixa de sal. Cumpre salientar que as crticas e discusses sobre o assunto... so em geral feitas de m f e com o fim nico de deprimir e tornar odiosa a classe dos fazendeiros, ora sob o falso pretexto de proteo aos trabalhadores, ora sob a capa velada de uma pseudo defesa da populao pobre de Belm. Missunga ergueu novamente o olhar, alisando o nariz. Coronel parecia ainda recordar. O fiscal aplaudiu. O secretrio deu um resmungo de aprovao. Lafaiete soltou o seu: Seu Coronel ainda se preocupa... Ainda se preocupa... O fazendeiro se lembrou do caixo que o animou a dizer, quase excitado: Voc est vendo como vivo aqui, Sinhuca. Seu lugar federal o salvou disto. Aqui esta consumio. At caixo tenho que fazer. Esse povo vive exigindo tudo. Vivos e defuntos precisam de mim. Voc est vendo. Pode depois contar o que fao por to. das estas bandas sem que o governo e os jornalistas saibam. Imaginem um sujeito qualquer, afinal um negro, que anda de fundilhos rotos em Belm, se atreve a falar dos fazendeiros de Maraj. [115] A conversa se agitou com mais vivo interesse. Lafaiete deixou-se vencer no gamo. Coronel lanou a culpa no 13 de maio. O negro foi um mal no Brasil. E sua liberdade um mal maior. Do negro s a mulata era o que ainda se salvava pilheriou e a o fiscal acendeu o olhar. O Coronel voltou ao srio: A desgraa do Brasil foi o 13 de maio. A lavoura e a indstria pastoral no puderam mais progredir por falta de brao... Veio a vadiagem, a preguia, a pretenso de se dar carta de abc aos pretinhos. Resultado: um negro daquele escreve em jornais! Afinal o Brasil no estava

preparado para a Abolio... O fiscal de imposto atacou o sensacionalismo de imprensa e citava o exemplo do Jornal do Commrcio, no Rio. Por que durava 100 anos? Porque conservava a linha de sempre. Lembra va o The Times. Mas os outros... Pasquins... Pasquins... Pasquins... Lafaiete confessou que o jornalismo fora o seu ideal na mocidade, to cedo viu felizmente que a imprensa no passava de uma indstria da injria e da difamao. O fazendeiro tambm confessou que pagara uma vez 30 contos para sustar uma campanha absurda contra os marchantes. O secretrio Municipal tentou falar, o fiscal federal olhou-o com uma indiferena to fria e to alto, que no concluiu a frase e recolheu-se ao manuseio dos tales. Coronel bateu palmas para o corredor, reclamando a demora do jantar. O fiscal lanou fora o jasmim esmagado, fez deslizar as mos sobre as coxas. Levantou-se e tocou no ombro do coronel. A classe dos fazendeiros tem adquirido a fama de nababesca... Coronel aproveitou para soltar as ltimas: Ns, os fazendeiros, sabemos o que isso tudo. Quanta iluso, meu caso Sinhuca, em acreditar na felicidade dos outros! E... Ia concluir, breve hesitao da memria, Capito Lafaiete o interrompeu citando o Mal Secreto de Raimundo Corra. Dirigiram-se para a sala de jantar com dez janelas para o rio. Missunga ficava arrumando o gamo, indiferente. Queria afinal que o pai partisse quanto antes para Minas. O pai, na varanda, exclamava: Os fazendeiros despertam a inveja, a inveja, um dos maiores pecados da humanidade. [116] Caboclos chegaram loja e regateavam o preo do mapar. T demais podre. Dxa por menos. O caixeiro no os atendeu logo claro, que no era possvel baixar o preo foi despedir Ciloca que, na porta, rogava um

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quartilho de querosene fiado. Como o caixeiro recusou, o leproso saiu, com a garrafinha no bolso, resmungando e cuspindo. Na varanda, Missunga encontrou Lafaiete falando da ndole selvagem dos caboclos, nos cabanos, na revolta dos trabalhadores, na Arumanduba e Coronel, aps gritar ao caixeiro que verificasse se as tbuas podiam sobrar para o xadrez das mulheres, encaminhou-se para a mesa, entre o tabelio e o fiscal, abanando a cabea: Ah! Os horrores da Cabanagem! o que tentaram fazer agora no Arumanduba, com o Z Jlio, meu colega de partido, a quem o partido deve o jornal, deve tudo... A Cabanagem esta no sangue dessa gente. E o fiscal de imposto de consumo, sem antes esconder a sua surpresa ao ver peru no jantar, comeou a atacar aquele bolchevismo. Missunga tomou a montaria para o Paricatuba. Encontrou D. Ermelinda na rede folheando um figurino. To macio o embalo afagando-lhe o corpo, mole do calor. Ela desejava at que viesse uma pequena para lhe abanar, lhe tirar aquela roupa, lhe enxugar as carnes suadas. Espanta o calor, rede de embalo! Na vila, o enterro da cega passava entre as mangueiras, o cemitrio o recebia com os passarinhos pulando entre as sepulturas seu Nlson no pudera partir sua lenha, sentou-se na escadinha de casa. Mais uma do meu tempo que se vai, disse, e o resto da frase: s fica mesmo a baixa categoria, ficou boiando no seu pensamento. No trapiche do Calilo, na mesma tarde, D. Marta falava. Ia embora, sim, havia primeiro de esfregar na cara dele todos os desaforos que quisesse. Tinha sado de uma casa farta e sossegada, era a bem dizer senhora do seu Nlson, para vir atrs dum Calilo. Quem era melhor do que ela para tomar conta do barraco, [117] daquela ticaca? Quem era ele para julg-la indigna de ser uma senhora? Se arrependimento matasse... Eu agora era capaz de pedir de

joelhos um lugar de lavadeira pro seu Nlson. Veio-lhe uma sbita saudade de suas panelas, do doce de bacuri que fazia para o velho, at mesmo das noites em que tratava do reumatismo de seu Nlson. Um desespero. Sou uma amaldioada, uma ordinria. Elmirinha, fazia tanta falta, no tivera mais um s filho, outros homens a chamavam e sentia-se rasa, desorientada e perdida. Fazer aquilo no era da natureza? A sorte no a queria mais na fartura. Tinha de ser o que foi como menina. Uma desamparada, uma ningum. Calho voltou do balco com uma cdula de cinqenta mil ris. Tome. Marta o encarou: Com isso voc pode andar com a me que lhe pariu, com suas irms e as raparigas de sua famlia. Soque... A o srio, tomado de furor, arrastou a mulher pela ponte, deulhe pontaps, jogou-a no fundo da montaria. Seu Nlson naquela noite estava na rede com as dores do reumatismo. O enterro passara e ficara um cheiro no ar, o cheiro do antigo tempo. Seu filho s lhe mandava pedir dinheiro. No tinha uma filha para lhe dar um beijo, lhe dizer papai lhe pentear os cabelos brancos. Uma coisa queria fazer: No pensar naquela mulher de mais nfima categoria. Revirava-se na rede. As dores aumentavam. Nem no nome dela. Suando com um tremor deixava escorrer da lngua, como baba, um palavro surdo, azedava na garganta, no corao. No quarto, o retrato de sua mulher com o penteado alto, o colo cheio, olhava-o fixamente do antigo tempo. Nada de mais havia ento naquele olhar, subia do guarda roupa aberto o cheiro das roupas de Marta. O espelho grande encostado parede lembrava-lhe aquela noite em que encontrou Marta toda nua, se mirando. Agora, reprimiu a custo um doido impulso de espeda-lo. Tambm diante daquele espelho, vinha a louca, to mansa, contemplar-se e dizer: Essa mulher do espelho que me traz os recados dos peixes.

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[118] Alade encostou o casco na estiva de miriti. Missunga esperava. Demoraste, puxa! No viu que choveu? E enxugando as mos na barra do vestido velho, cor de terra, ela continuou, risonha: Bem que amarrei tabaco pra Santa Clara no galho da goiabeira pra no chover mas choveu. Queria anto que eu viesse debaixo da chuva? Missunga mandou Benedito buscar a bata de roupa e abraou Alade pela cintura. Me deixe. Seno ns cai j. Vinham andando sobre o miritizeiro cado. frente, descala, com o remo pintado de azul com florinhas que Missunga lhe deu, o embrulho da rede debaixo do brao, Alade parecia deslizar, to ligeira, na estiva escorregadia. As rvores pingavam. Saltando da lama, os velhos ces famintos do seu Felipe. Missunga lembrou-se: que fim teria levado a Bblia? Me lembrei que devia ter ficado com a Bblia. O qu?, perguntou ela, parando, sem se voltar, com os olhos na barraca que aparecia entre as laranjeiras mortas pela hera de passarinho. Os cabelos de Alade mal penteados e midos afastavam a Bblia e davam a Missunga a impresso de escuras plantas nascidas da chuva. Benedito trouxe o ba de tampa descolorida e amassada, trs paneiros de plantas, o S. Jorge matando o drago. Missunga mandara limpar a barraca e cobri-la de palha nova. [119] Alade suspendeu a rede no esteio, foi ver o pequeno copiar, e a trempe. Voltou para dizer, recostada ao esteio:

Seu pai parece que no gosta de mim. E meu padrinho mas no gosta. Eu soube. Vai atrs do velho e v. Vai. Sabe duma coisa, vou botar nome na terra. Mas o nome no ento Santo Andr? Que Santo Andr. Isso o passado. Batizo com o nome da minha escolha. No quero nome de santo. O herege. Bem. J achei. um segredo. S a inveno... Levou Alade pelo brao. Andaram em volta da barraca, os ces famintos atrs. A sombra de seu Felipe ainda pesava sobre a terra. Morriam sob a erva de passarinho as ltimas laranjeiras. Missunga mandou o Epitnio da vila pintar uma tabuleta com letras azuis, pregada na seringueira diante do igarap. Alade correu para ver, o que pde foi contar quantas letras havia. Voltou-se para Missunga, os olhos muito abertos, interrogando. O nome, sua boba, no adivinha? Segurou-a pela nuca, fez que ela virasse o rosto inteiro contra o sol e lhe gritou no ouvido, sob o espanto dos velhos ces famintos: Felicidade, ouviu? Felicidade. E voc vai j-j aprender a soletrar este nome, est me ouvindo? Compreendia que estava gritando tambm para si mesmo.

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[120] Inesperado e inexplicvel acontecimento. No rio, na vila, nos stios prximos, n O Vento, corre a notcia: Missunga quer cem homens para trabalhar em Paricatuba, nas antigas terras de seu Felipe. Vinte e seis apareceram. Oh! Mas vocs no valem dez homens, meus velhos. Quero esse capoeiral abaixo. At descobrir a estrada de seringueira. Pago trs mil ris com comida. Depois vocs no se arrependero. Quero

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mais homens. Onde esto? Iam embora da vila e dos stios porque no havia trabalho. Pois agora vai haver trabalho. Quero transformar essas terras em celeiro. E os instrumentos? Que instrumentos? Os de msica? Ento vocs antes de trabalhar j querem dana? Os homens sorriram, com um ar de desanimo e cansao, os rostos escuros. Os machado. As enxada. As foice. Ah! Vocs no trouxeram? Eu pensava... Gritou por Benedito. Fosse buscar todo o estoque de ferramentas da loja, tudo que houvesse. Chamou um dos trabalhadores para levar uma nota ao Calilo. Tinha pressa. Os instrumentos no bastavam. Surgiram mais trabalhadores. Famlias pediam para armar novas barracas. Missunga mandava levantar um rancho. Como descobrisse, na loja do pai, um estoque de sapatos de pano, ofereceu-os aos caboclos. Quero que andem calados. Os homens atiravam os sapatos ao canto, derrubavam o [121] ma|to aos gritos, as mulheres nos taperis ou nos caminhos preparando a comida. Moleques comiam terra, obravam no cho, cuspiam, com febre, o quinino, furtavam tabaco e cigarro das palhoas e se escondiam pela capoeira, curtindo o acesso do paludismo. Quando chegaram as vacas velhas das fazendas e sangraram nas palhas de jaura e no terreiro limpo, Alade comeou a assar as postas de carne sob as rvores, o rosto afogueado, os cabelos em pit, diante dos alguidares de aa, as latas de farinha e feijo, homens que voltavam arquejantes, os moleques e os cachorros insaciveis. Carne, murmuravam as crianas espantadas. Carne!, disseram, com a garganta seca, os peitos doidos, a lngua pesada, os homens esfalfados. Carne, cochichavam quase a medo, as mulheres grvidas, como se tudo aquilo fosse um sonho. Missunga, suado e afoito,

mandava, alegremente, suspender os quartos sangrentos nos galhos das rvores, quando lhe trouxeram cartas de Belm. Uma carta de Hilda, notas de fornecimentos, um convite para uma partida de tnis com um ingls chegado ao Par e um telegrama do pai. Nem enxugou as mos no pano que Alade, s carreiras, lhe dera, com o ar assustado. Tocou para a vila, a bordo do Borboleta e invadiu o cartrio do Lafaiete onde encontrou o tabelio de p, diante de um grosso livro escuro, abanando-se com um almanaque. Seu Lafaiete, mando-lhe dar uma surra se tornar a escrever mais alguma coisa para papai em Minas. Uma surra! O livro fechou-se ruidosamente, o tabelio procurou, atnito, oferecer uma cadeira ao rapaz, gaguejando: Mas se acalme. Que isso. Acalme-se. Pelo amor de Deus, de seu pai, tenha calma. Quem lhe disse tal calnia. Sente-se. Quem? o rsulo, certamente. O administrador? Foi meu pai. Mas, meu amigo, impossvel... No lhe mostro o telegrama porque no lhe dou essa considerao. Essa confiana... Seno aqui mesmo lhe esfregava o telegrama nas ventas. Lafaiete recuou, amparando-se na estante do arquivo, [122] poeiren|ta e roda de cupim em cujos vidros o tabelio colara o seu artigo publicado na Folha do Norte fazendo o elogio da administrao Coutinho em Ponta de Pedras. Afinal, sou amigo de seu pai... Que quer dizer com isso? Que lhe devo respeito? Que que est pensando? Mas, meu filho, eu preciso me explicar. O de dentro faam caf! Guilhermina saiu? Como? Quem a levou? Com aquela catarata, meu Deus. Com aquela cegueira progressiva. Como pagar uma operao em Belm na situao em que estou. Voc est vendo, meu filho, a montanha de papis que tenho de resolver, as escrituras...

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Missunga quis ver uma inteno. Escrituras. Na parede o retrato do Coronel com a farda da Guarda Nacional. Ao lado fotografia de Missunga com a farda do colgio. O rapaz continuou, j moderado: Quero que mande um telegrama pro papai dizendo que nada h em Paricatuba. Escreva e assine a cpia que eu mando hoje mesmo pela canoa para Belm. Nunca se meta na minha vida. Poder com a minha vida, nem meu pai. Mas sente. Tudo se explica, saberemos nos entender. Vou lhe dar a cpia. Afobado, o tabelio procurou entre livros e autos espalhados na secretaria, uma folha de papel. Correu ao quarto. Que que vai ver no quarto? A Lafaiete se voltou com as mos na cabea: Mas, meu filho, voc est fora de si, pelo amor de Deus. no quarto que preciso guardar meu papel porque o juiz, o promotor, os advogados, o rsulo, me acabariam ele todo de cima da secretria. Voc no imagina, nem pode imaginar o que um cartrio, uma vida dentro dum cartrio... Voltando rapidamente, com o papel, sentou-se para redigir o telegrama. Missunga olhava pela janela a pequena praa, bacurizeiro alto, o campo de futebol e porcos fossando. Escritas as primeiras palavras, o tabelio ergueu a cabea com a idia brilhando nos olhos: [123] Eis a! Vou aproveitar para reiterar o pedido ao Coronel. A velha aspirao de Ponta de Pedras! Coronel prometeu e at me pediu que eu em cartas lembrasse sempre. O telgrafo, zombou Missunga, de costas, j desalentado, arrependido de haver feito aquela cena. O tabelio continuava a escrever em silncio. Ao procurar o mata-borro concluiu: E a imagem de Nossa Senhora do Rosrio para a nossa irmandade. Incrvel que no se tenha ainda mandado buscar a Santa! Missunga voltou com a primeira fadiga, as primeiras hesitaes.

Encontrou-se com Guta no Campinho. Ela no lhe disse mais que trs palavras, embatucou, mostrou-se apressada. Havia infncia, sim, naquelas mos sossegadas, e no eram as brutas e suadas mos dos que derrubavam o mato. No havia ali crianas morrendo de verminose. Guta nem ao menos lhe tocou em Alade. O incidente no cartrio o enervava. Por que, ao menos, o tabelio no reagiu? Depois foi o encontro com seu Nlson. Oh!, como o recebeu com os olhos midos, o tremor das pernas e das mos, o esforo para no chorar, no dizer palavro, no gritar pela Marta. No sentiu na voz do tio, no gesto, no olhar, no silncio uma vaga acusao, sequer, contra ele! Pelo contrrio. Ao despedir-se, seu Nlson como que lhe agradecia por ter ido visita-lo. Talvez por tudo isso Felicidade corria o risco de lhe fugir das mos, os trabalhadores a arrastavam para mais longe do que pensara. Acabaria no tendo mais foras para se repartir entre os problemas. E a caa Guta? Sim, era uma caa. No ltimo encontro, o olhar dela, por vezes, lhe comunicava uma infinita simpatia, era talvez pelo que ele fazia pelos pobres em Felicidade. E esse olhar o impacientou, deixou-o desarmado e cada vez mais apreensivo. Quando chegou ao trapiche, trs pessoas o esperavam. Tenrio, Orminda e seu irmo Marcelino. Tu vais desencabear os meus trabalhadores, Orminda. Teu irmo vai furtar e Tenrio vai inventar folia e ladainha. Enfim, vamos! O motor partiu com Benedito pilotando. Os problemas de Felicidade j se tornavam pesados e interminveis, queria resolv-los como resolvera os problemas de estudo e de Hilda. Tinha de [124] ir at o fim. Em Belm quando foi despedir-se do pai, este lhe disse: Meu filho, no volte para Paricatuba, o meu pedido. Missunga at pressentiu morte naquela despedida, o velho parecia dizer que no voltaria mais. Via o navio j ao largo, o pai fazendo adeus com o seu chile.

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Ficou observando os trs passageiros. Tenrio, sujo, a amarelido e a tristeza. Marcelino, de cabea baixa, curioso do motor, cabeludo. Orminda qualquer coisa nela o intimidava, e ao resvalar novamente na suposio de que podia ser filha de seu pai, ergueu-se, acelerou a marcha do motor, olhou o rio algum tempo e se voltou para Tenrio: Tenrio, tu s ainda folio? Sou, sim, senhor. Quando tem santo... Agora me lembrei de mandar fazer uma capela em Felicidade. Mas no sei pra que santo. Santo Ivo... disse Orminda timidamente, olhando, com quase malcia para Tenrio. Sim... E a imagem? No fugiu? Pois dou cem mil ris para descobrir o paradeiro dela. Na certa, furtaram. No foste tu, Marcelino, que vendeste no Ver-o-Peso, em, rapaz, a troco de espelho e brilhantina? Por que Orminda no reagia pelo irmo?, logo pensou Missunga. Afinal se arrependia da maneira como tratava Marcelino, e lhe veio outra reflexo: tambm eu por que no reagia por Orminda? Esta deixou-se ficar de costas, olhando o rio. Tenrio ficou com o sonho. Cem mil ris pela Cabea. Sua mulher teria escondido a imagem dentro do ba? Teria mesmo se queimado no incndio da casa velha? Santo no se queima. Teria ela enterrado e vendido? Sua filha talvez o levasse. Quem teria comprado a Cabea? Orminda, que era mdium, bem podia descobrir o esconderijo do santo. Foi na certa a profanao de Manuel Rodrigues que fez o santo fugir. Onde ests, Santo Ivo, onde te escondeste? Orminda, no se zangue pelo que digo a Marcelino. Ela sem se voltar, mas surpreendida, respondeu balanando a perna, num acento de censura e lstima pelo irmo: Mas se ele faz! No tem mais vergonha. Tambm, coitado... [125] Tu te corrige, em, Marcelino? perguntou Missunga,

com bonomia. Marcelino, com a cabea que sim, no tirou o olhar do motor barulhento. Missunga olhou para Orminda. A trepidao sacudia levemente os seios dela, o corpo tremia. O rosto era, com efeito, fino, um esquisito abandono na boca. Um brao dela para fora tentava tocar a gua, to branco sobre o rio que se tornava luminoso. Mandei dizer a Rafael que eu queria que ele fizesse a festa do Menino Deus l e o preto s fez foi rir. Que eu era um doido. Sou. um doido, no, Orminda? No sei. O sr. que est dizendo. Voc vai em boa hora. Hoje tem festa l. E voc, Tenrio, cad Santo Ivo? O motor chegou. Canoa de Abaet descarregava farinha, mel, acar e cachaa no barranco. Tenrio e Marcelino peguem logo. Servio no falta. Missunga levou Orminda para a barraca, Alade ao v-la exclamou: Mas mana como tu t bonita, benza-te Deus! Orminda dizendo: No caoa... procurava ajeitar os jasmins no cabelo de Alade. Os trabalhadores chegaram e pararam quase perturbados. Orminda os dominou com o olhar, a mo na cintura, jogando, de vez em quando, os cabelos para trs. Missunga surgiu, os braos em arco: Quero algodo, quero milho, quero muita farinha! Me ajudem! Vocs no se arrependero! Vou ver se mando fazer a capela de Santo Ivo. Um ardor o iluminava e Alade o contemplava, surpresa ainda pela simplicidade to espontnea e to enrgica que vinha dele. Faltavam sementes, disseram os roceiros. Tinha de mandar buscar sementes em Belm. Onde? Quem tinha? O governo? Algodo! Algodo! Poderia depois chamar D. Felismina para armar os teares de rede, j via uma fbrica de fiao apitando em Paricatuba,

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um navio no porto esperando carga de frutas para a [126] Amri|ca do Norte. Caboclos do Muan apareceram pedindo trabalho. Traziam famlias. Queriam carne fresca, quinino e calomelano. Minutos depois todo aquele ardor se consumia, Missunga se ps a ouvir Benedito chamando os caboclos com a frasqueira de cachaa para distribuir o mata-bicho. O mata-bicho espanta o desnimo, a preguia, lhes d o fogo de levar at o fim o servio. Tambm servia para afugentar a danada da febre! Que importava se Lafaiete falasse no cartrio e nas audincias do juiz, se o administrador, arquejando com asma, exclamasse que ia comunicar ao pai a loucura, pedindo para voltar urgente seno talvez tivesse uma queda do corao ao encontrar o despropsito? D. Ermelinda, esta sim, botava dente de ouro em Belm. Felicidade tinha ronqueira para anunciar festa. Faziam ladainha, falavam na bondade do moo, cantavam folia, comiam capado gordo comprado do Calilo. Precisava mandar buscar mais quinino, mais veneno contra sava, mais leo de rcino, mais querosene. Tinha de fazer uma plantao de mamona. Voc est com o Capito Lafaiete, Orminda?, disse Alade. Estou e no estou, respondeu tranqilamente. Orminda ps o seu brao no de Alade, chamou-lhe colega e no disse mais nada. Afinal queria livrar-se do tabelio. Na vspera se dera uma cena. Calilo na vila fora v-la, fechou-se com ele na barraca. Caiu a noite, com a noite a chuva, e Lafaiete batendo porta: Abre, Orminda, abre! Eu te prometo no falar mais em conta, e te dou aquele sapato! Eu no tenho mais cime de ti. Pelo amor de Deus, Orminda. Tem pena que eu pego pneumonia nesta chuva. Calilo sob o terror Orminda voc louca, tenho responsabilidade! varou pelos fundos sob o aguaceiro, Orminda resolvera fugir das contas que Lafaiete mostrava e da pergunta constante: Pra o que saiu da casa de sua me, Orminda? No se esquecia ainda do que lhe dissera o Coronel, porta do

mercado, quando ela foi comprar camaro: Tu acabas pondo o Capito Lafaiete andando de gatinha na rua. Afinal isso lhe doeu, tomou uma crescente antipatia pelo [127] ta|belio. Ao mesmo tempo, tinha pena dele. Ele chorava, com a cabea entre as suas mos. Como ela queria ser livre! Como q ria todos os seus desejos realizados, todos os seus caprichos cumpridos, todas as suas manias aceitas! Calilo lhe dera um trancelim caro. Gostaria de ter muitas jias, no para us-las, mas para t-las guardadas. Queria ser sozinha, dona de suas pernas. Dormia numa larga rede de varanda de fil, coleando no lenol e como aquele movimento todo de Felicidade a excitava, era a liberdade e para isso bastava saber que sua chegada havia festa. Quando se aprontou para a dana foi ver Alade que, j n tinha, ainda pilava caf. Como tu t cheirando, mana Orminda... Deixa este pilo que , toma teu banho e vamos, anda. Ao chegar festa, os homens pareciam agitados. Orminda no sabia como se repartir entre os cavalheiros que a disputavam com silenciosa brutalidade e isso quase a fazia feliz. Danava sorrindo, meio derreada, o rosto suando no rosto do par, em faceiro abandono. Quando a msica parava, ela corria para junto de Alade, tinha de amarrar de novo a meia branca algodo que teimava cair e Alade a protegia dos homens que faziam barreira frente dela, disputando a vez. Ficavam de roda, a cabea ora virada para a msica, ora para Orminda, firmes. Orminda ajeitava a meia, procurava com o olhar quem lhe tinha tirado o leque. Ento lembrana do que diziam algumas raparigas de Ponta de Pedras, sentiu desejo de se abandonar durante a noite a todos aqueles machos que a cercavam, escureciam diante dela. Um medo a invadia. Pensou na me. Julgou-se realmente doida-doida, como lhe dissera Lafaiete. Os homens a esquartejariam sobre os galhos.

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Lembrou-se da promessa de Missunga sobre a capela Santo Ivo. Uma vez, do trapiche para a igreja da vila, carregara a Cabea. Sua me a mandou carregar para da em diante ter a cabea mais sentada. Santo Ivo. Nem ela nem seus irmos criaram juzo. Seu irmo Marcelino padecia daquele ataque continuamente. Como pegara a doena? Sina de pescador. Todas as noites pescava, sozinho, voltando pela madrugada. Uma noite, pirarucu boiou perto da montaria, a gua se arrepiou, teve [128] um brilho que Marcelino desconhecia e o peixe, trs vezes boiando, trs vezes olhou fixamente o pescador. O olhar do pirarucu o flechou. Quando Marcelino sofre o ataque, pede, no transe, para levarem ao rio, o peixe quem o chama. S mestre Jesuno, o to falado paj de Condeixa, poderia curar Marcelino. Orminda queria lev-lo, bem cedo o levaria. Assim pudesse. Santo Ivo havia de aparecer para tomar conta da capela. Como aqueles homens a cercavam cada vez mais, aproximando-se do banco! O recurso levantar-se, bebe gua, conserta a meia, d um lao melhor na angua que a incomoda. Onde estava Tenrio? Por que Missunga no comprava um tambor para o folio? Tenrio, na folia, tinha uma voz que a enchia de uma tristeza, uma compaixo por ele. S a folia do Divino era mais triste. A msica demorava tocar. Partiu-se uma corda do violo. Onde estava Marcelino? Certo que em Felicidade ficaria outro homem? Tambm por que Missunga lhe dissera aquilo a bordo do motor? Ela no merecia ouvir. Na verdade, os pobre esto no mundo para levar tudo pela cara. Os brancos desconhecem a vergonha dos pobres. No sabem que a gente se envergonha, tem muitas vezes uma doida vontade de enterrar a cabea no cho, de dizer nomes, bater e cuspir? Marcelino furtava, por certo, no seria por fora do peixe que o flechou? No seria um destino? Tu t vendo o horror de tanto homem em cima de ti, Orminda, parece que andas longe, longe. Que tu tem? Paixo recolhida? No, mana, pensei em mame.

Tocou a msica. A barreira avanou, ela tropeou entre os caboclos, viu-se empurrada, algum machucou-lhe o seio, um brao mais grosso e mais forte arrastou-a; teve ainda de enrolar a meia um pouco abaixo do joelho para no cair durante a dana. Alade, espera que Missunga viesse da casa grande, danava to tranqila, to fiel a si mesma, se lembrando que os paneiros de farinha estavam mal agasalhados. Quando Voltou ao seu lugar nao viu mais Orminda. Procurou-a por todos os bancos, foi espiar na cozinha, no jirau entre as bananeiras. Saiu para o terreiro [129] e encontrou Missunga que fumava, sozinho. No viu Orminda? No, por qu? Ela no respondeu. Queria-a peito de si, ter cuidado por ela, evitar, talvez, que os homens... Nem sabia explicar o seu cuidado por Orminda. Ao lado de Missunga, receou pedir-lhe que a ajudasse a procur-la. As rvores pareciam aumentar o tamanho da noite para subirem mais a vontade. Um cheiro de jurubeba, de coisa queimada. Orminda parou nas razes do bacurizeiro. A, lhe disseram, aparecia a visagem de seu Felipe. Um tamandu bandeira tambm aparecia, fechando o caminho. Como podia ser, se ali perto havia um sauval imenso, gente que tamandu no deixa viver, que Missunga no pudera destruir? Um caboclo atravessou o caminho, correndo. Atravs da capoeira vinha o choro da orquestra. Missunga caminhava de brao com Alade e sentia os homens excitados, o cheiro da cachaa, vozes abafadas no mato prximo. Orminda brotava das assombraes verdes do mato, dos ocos das cascavis, do reino das formigas, do cu chovendo supersties sobre os homens. As galharias estalavam. As savas cobriam o caminho com o guia frente, um vaga-lume. A rainha da savas, pequena cobra de- duas cabeas, vinha chupar todo o sangue de Orminda. Na suposio de Alade, Orminda devia estar se debatendo sob aquela

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massa de homens que a disputavam. Missunga pensou na cobra coral, to bonita e to poderosa a sua curiosidade de menino, que seu pai conservava num vidro em Belm. Acreditava que a cobra fosse viva, viera de onde h bichos coloridos e ocultava poderes mgicos. Uma noite a coral, (cabia dentro de um vidro de perfume) cobriu um rio inteiro, sua cabea ficou mais alta que uma rvore. Ao despertar, Missunga foi contemplar a cobra adormecida. Gostaria de criar aquela coral, conhecer-lhe os mgicos poderes, t-la embaixo do travesseiro... Os dois pararam. Missunga pensou nas sementes que os caboclos pediam. Sentiu maior pena de Lafaiete, o que era j uma tentativa para fugir daquilo tudo. Depois aquela zoada em direo da festa, no mesmo instante algum surgiu da sombra e parou [130] com um grito abafado. Orminda, mana... Alade segurou a mo da amiga, sentiu-a mida, os braos cheios de terra, o cheiro de loo mais forte. Orminda sem dar por si sacudia o vestido. Havia tirado as meias. De cabea baixa, apertou, vexada, a mo de Alade, apressou-se a tomar a dianteira. Missunga atrs como desamparado. Mana, disse Alade, baixinho, tome juzo. Tu toma conta amanh, pra mim, das latas de feijo? Gritos do terreiro, os trs caminhavam apressadamente. Viram a lamparina erguida sobre algum que se debatia no cho, se amontoava muita gente. Mame, o mano! Orminda correu, varou o crculo, afastou rapidamente os caboclos que a viam em lgrimas curvar-se sobre o irmo e sacudi-lo, afog-lo: Mano, meu mano... E a cabea de Marcelino, flechada de bicho no fundo, o corpo, no ataque, to escorregadio, ningum podia segur-lo, resvalou para

os braos da irm como num sono, luz das lamparinas que o medo e o espanto do povo traziam do barraco.

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[131] Velho Florncio, o Calafate, foi ver Felicidade. Ia levar tambm a resposta definitiva do filho a Missunga sobre a festa do Menino Deus. Rafael mandava dizer que se comeara a festa no Campinho, no Campinho havia de acabar. Os homens rodearam Florncio, o Calafate, que ensinava a significao das flores, do nome das flores. Quer mais um gole, Calafate? V l, v l. E prosseguindo na lio: E sabe por que se d o nome de General a esta flor? Ningum sabe, Calafate. O senhor estudou, seu Missunga, e no sabe? Missunga se levantou do banquinho e ps a mo no ombro do velho. Ei, seu Florncio, por qu? Calafate apontou o cu, os olhos se abriram, acesos, piscando como vaga-lumes, deu dois passos: Por qu? Por que de superior perfume! O nome est dizendo, General! De superior perfume! A vila toda gostava de cham-lo doutor. Velho Florncio deu sua risadinha gutural, coando os calombos do brao. Campinho gostava mais de cham-lo Calafate. Mas a vila era: Doutor Florncio! Missunga perguntou: Mas, seu Florncio, explique, por que lhe chamam de doutor? [132] Sorte da gente, meu senhor. Sorte da gente.

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Como? Ento no sabe? J expliquei isso ao juiz de direito, ao promotor: porque todo doutor burro. E por isso que me chamam de doutor. Coisas do tangolomango... Florncio contava histrias de tangolomango ao pessoal menino do Campinho. Em Felicidade, Doutor Florncio, o Calafate, olhava, coando o queixo, repuxava a barbicha. Dava sua risadinha de guariba. A barbicha tomou um ar zombeteiro. Doutor Florncio, o Calafate, veio sentir o cheiro da Felicidade e voltou para o seu Campinho. Os cajueiros eram sossegados. Tinha encomenda de paneiro para tecer. Aquilo fogo de palha. No h organizao. As sementes esto podres. Filho do Coronel Coutinho no homem pra se meter naquilo. Vale l nada. Rapaziadas... Continuaria a tecer os seus paneiros sentado nas razes dos cajueiros do Menino Deus. Missunga mandara chamar os dois irmos de Guta. Velho Amncio tinha de preparar a madeira para o barco novo do Coronel. E os irmos entravam no mato assobiando. Assobiavam o desejo de ir embora, sair dali, correr mundo, ver outros trabalhos lutar por um futuro. Aqueles paus lhes pesavam na costa, entravam por dentro de seu destino e a ficavam apodrecendo. Amolavam o machado como se amolassem aquele desejo de fuga. O seu desejo ficava to agudo, to amolado, to cortante como os machados. As rvores tombavam aos golpes do machado. S os obstculos da sonhada viagem para Belm, para Manaus, no tombavam aos golpes do seu desejo. Os paus se escondiam pelo matagal. Velho Amncio tinha faro de cachorro benzido. Batia o machado no cho para sentir o tremor das rvores ameaadas. E o desejo dos filhos caa aos pedaos, por aqueles caminhos, pendurava-se pelos galhos partidos, pelos atalhos cerrados, pelos ninhos que balanavam, se esfarelava na queda dos paus. Os rapazes iam embora deixar os restos de seus desejos na

cabeceira de algum igarap espremido nos aturis, num oco de pau apodrecendo no balcedo. Vendo-os silenciosos chegarem do trabalho, Florncio [133] excla|mou: Tambm deu o tangolomango em vocs?, e partiu para o cartrio, fazia questo de dar a sua opinio a Capito Lafaiete. Como encontrasse a porta fechada, as janelas entreabertas, hesitou e compreendeu que o tabelio trabalhava, ou melhor, falsificava. Ou doente? Havia de dar sua opinio a algum naquele dia e caminhou para a casa de seu Nlson que, de p, apoiado a um ancinho, contemplava o cemitrio. D. Guilhermina afomentava as pernas do marido. No amassa muito, Guilhermina. Di. Tu nem sabe. Di. Mas credo, Lafaiete. Assim a fomentao de nada vale Sabe, Guilhermina? Ein? Ai! Guilhermina, di! Se aquiete, homem! Diga o que voc ia dizer. Missunga anda praticando uma srie de atos to desatinados. No v o que est fazendo no Paricatuba? Uma verdadeira bacanal. Rios de dinheiro do pai no bucho daqueles caboclos. Escrevi aos parentes. Ao gerente da marchantaria. Tenho feito tudo. Agora quer comprar a filha do mestre Amncio. Sempre digo ao Coutinho que no tolero excessos, mesmo partindo dele. O que se viu do meu pega com Missunga aqui no cartrio? Fui eu lhe dizendo nas bochechas o que meu corao sentia e o que o meu carter repugna. A minha maior derrota nesta vida tem sido em virtude de minha franqueza. Da minha maneira esquisita de apreciar as coisas. Sou, em verdade, amigo do Coutinho e ele reservadamente (digo aqui s pra ti) me pediu que olhasse Missunga. Ele sabe disso. Por isso que o interpelei no mercado. Ele quis reagir mas a minha velha autoridade moral... O prprio Coutinho, por que somos ligados? Porque quando tenho o que dizer no engulo. Digo. Ele sempre diz por a: Gosto do Lafaiete

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pela sua franqueza. Ele me vendo em erro, goste eu ou no goste, me chama a ateno. E . Tenho salvo o Coutinho de poucas e boas. Deve-me inumerveis favores. Por que ele no me larga? Agora que tem sido um ingrato, sim. Ento no era para me dar uma posio material melhor? Me ofereceu a administrao geral das fazendas. Mas tive escrpulo. Sabem que no gosto de Man [134] Rai|mundo. Depois diriam que fui eu que o afastei. Mesmo no tenho cara pra tamanha desforra daquele analfabeto e ladro. Seria covardia da minha parte tirar partido da larga amizade que Coutinho me dispensa, para obrig-lo a deixar na mo um pobre analfabeto daquele. Analfabeto mas ladro. Agora tenho baixos sentimentos para insinuar junto a Coutinho que ele ladro, o Man Raimundo? O delegado que o delegado, eu nada disse. Pois bastava uma palavra e essa besta estaria no olho da rua. Agora, quanto a Missunga, Coutinho me deu amplos poderes at de rapt-lo, bot-lo no fundo de uma canoa e mand-lo para Belm. Pois at ladres e meretrizes tem l! J o Coutinho me escreveu nesse sentido. Guarde essas cartas... respondia d. Guilhermina. Ora, se guardo. Gostava de dizer no mercado, na Intendncia, no cartrio, que a Guilhermina era a sua candeia de azeite, lhe tratava das cibras em abril. Discorria minuciosamente sobre a sua dor na ponta do p, dor nas cadeiras, nos rins, no lado do queixo, no ouvido, dentro do osso, dor no meio da cabea. Guilhermina lhe fazia emplastos com ovo e arruda, p de rosca e mocot. Lafaiete se deixava afomentar. Ah! como to difcil, to insuportvel, comeava a velhice. Nem aquele esperto do Man Raimundo se lembrava de morrer, se acabar num chifre de garrote ou sobre uma das muitas pequenas que ele babava com a sua asma. Mentia talvez para se fazer menos derrotado, imaginar-se menos intil no mundo. Como desejaria ter aquele prestgio que tanto alardeava junto da mulher! Mentia

melancolicamente. Tinha aquela necessidade. Como tudo foi intil para convencer o Coutinho a fim de lhe entregar as fazendas. Orminda viveria em Belm, se ele pudesse, de lancha, como o administrador Man Raimundo, visitar as fazendas, dar ordens aos feitores, marcar nas malhadas as suas reses. Seria mais brando com os vaqueiros e por isso ganharia uma barraca tranqila, com um jasmineiro na frente, em Belm, uma vitrola, uns mveis, no muito caros, e a grande cama de casal. Orminda sairia do Campinho, da lngua do mercado, das pragas da nh [135] Felis|mina e do deboche das pretas da Feliciana. Fingia ignorar que Calilo passava os cobres a Orminda. Ele primeiro dera o estrilo. Depois fez que acreditou na amante. Calilo escorria o dinheiro, enfim, o colo de Orminda era sempre uma afomentao melhor que as afomentaes da velha Guilhermina. Orminda luxava e ele sabia que todo aquele luxo no era ele que pagava. Andava to endividado, to sem crdito, at D. Ermelinda em vez de lhe dar cem como pedia, lhe dava vinte, trinta, uma esmola! O cartrio j no dava. Acabara o cobrinho dos rfos. Coronel no era de lhe dar uma larga proteo. Missunga, um doido. Tudo fez para que acabasse com a Felicidade. Acabou foi Missunga lhe abotoando o peito, querendo lhe atirar com os ossos sobre os livros do cartrio. Tivera uma discusso com o Flvio Aguiar por causa duma conta, dvida de quase um conto de ris. Meio lhe mandava recados mais recados. Tinha falsificado duas escrituras que lhe deram seis contos de lucro, tudo foi para. pagar a conta do Santiago, este o ameaara de pau no meio da rua. O resto foi para uns remdios carssimos para os olhos de Guilhermina. Guilhermina piorava com aquela vista se apagando. Seu Nlson lhe dera ontem cinqenta mil chorados. Tinha pena de seu Nlson. Seu filho, o Nelsinho, hipotecara a Santa Ins. Velho Nlson assim acabaria de p no cho. As pernas doam, a cabea doa, os rins doam. Coronel Coutinho, bem gozando as guas de Caxambu, lhe deixava para consolo o

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direito de abrir o gramofone da casa grande coberto de poeira. Faltava agulha. Sentava-se numa velha cadeira de couro, porta da taberna do seu chefe ou lia, recolhidamente, os jornais vindos na canoa de Belm. Ia poucas vezes folhear o almanaque Bristol na sala, parava o olhar, examinava, com pensativo interesse, a pgina das charadas do almanaque Csar Santos. Com um rumoroso suspiro, tirava do fundo da barrica cheirando a querosene, duas mofentas bolachas. O caixeiro se danava, surdamente pondo essa mo porca nas coisas e Lafaiete bocejava. Fungava. Roa com os cacos de dentes as bolachas e se deixava curvar na cadeira, a cabea pendida, o rap esquecido no bolso e o pensamento em Orminda metida em Felicidade. Ah! Meus tempos de [136] borracha! Tinha dinheiro! Tinha dinheiro! Capito Lafaiete Maria Vergueiro andava pelos navios do Amazonas liquidando dinheiro no jogo. Ficou jogador conhecidssimo a bordo dos navios da lama, como eram chamados os navios fluviais. Quando vinha a Ponta de Pedras, em vapor de roda, vestindo e cheirando carssimo, era para gastar um bocado, com rudo, nas festas de dezembro. Era tambm capito, da Guarda Nacional. Armava jogo com os grados do lugar. Distribua charutos e cervejas, mandava rezar missa solene pela alma da tia que lhe deixara o cobre. Depois de jogar fora todo o dinheiro que era seu, comeou a passar o pau no dinheiro que era dos outros. Tirou ttulo de advogado provisionado com o seu fraco por inventrios. Falsificava letras, escrevia cartas annimas, negociava com mulheres para o Acre, chegou a ser empresrio de circo em Manaus. At que um dia, em viagem, um comandante apopltico mandou botar Lafaiete num trapiche de lenha nas Ilhas. Furtara o comandante no pquer, o comandante resolvera atrair o seu parceiro a uma armadilha, e apanhou-o fechado no camarote com uma passageira. No trapiche de lenha, onde foi deixado com a sua bagagem e dzias de baralho na maleta, Lafaiete sentiu a primeira pontada do paludismo. Febre! Febre! Lafaiete estava sem o pquer e sem

quinino. Chegou a Belm com os ossos varando a pele. Aquela falta de ar. O bao doendo, pesando e inchando. Que falta de vontade para tudo. Um barulho no ouvido como gua no fundo. Um barulho. Foi o tempo em que a borracha baixou como gua no Purus. Em Belm, vendo os armazns e os navios no cais, Lafaiete comeou a assobiar. Estava melhor da febre. No sabia o que fazer, o que resolver depois da queda da borracha. Ia andando. Taratatintaratatan. Ah! Pronto! Veja voc, Lafaiete, como a coisa ia-se passando! Bateu na testa. O bao doeu menos. Apressou o andar. Havia de chegar ao Ver-o-Peso para procurar canoa de Ponta de Pedras. Nem se lembrava: na vila aquela moa h anos esperava por ele, dona de alguns haveres, lhe escrevia cartas chorosas e por ele suspirava debaixo da mangueira da casa do [137] Augus|to Aires. Casou com Guilhermina. Todas as tardes, na casa do Coronel Coutinho, a biscazinha inocente e o caf. Aquela casa-grande, de azulejos, os pesados candeeiros, as malas como arcas no corredor, a gorda varanda patriarcal, lhe davam conforto e inveja. Esquecia o pquer e o relancinho dos navios e barraces do Baixo Amazonas. Na sombria sala de visitas onde se ostentam graves cadeiras antigas, a vasta escrivaninha de mogno, gostava de folhear colees e colees de revistas e jornais desarrumados diante do gramofone, a ruma alta dos discos, consolos poeirentos, armrios atulhados de almanaques, calhamaos e baratas. Entre as fotografias de Pedro II e dum reprodutor puro sangue Zebu Coronel fora o introdutor do Zebu nos campos do Arari a do Conselheiro Rui Barbosa. Num consolo a um canto, o retrato do pai do Coronel Coutinho, de corpo inteiro e o macio bigode monrquico. Em torno de to cordial caf, Lafaiete teve melhor contato com as idias do Coronel sobre a poltica, o poderio da Esquadra Inglesa, as vantagens da imigrao japonesa, a histria dos Papas, o saiote dos escoceses, a decadncia do turfe no Par e o tratamento das hemorridas de que Coronel sofria.

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Meu pai dizia Coronel foi homem da monarquia. Meu av portugus da gema. No da leva dos emigrantes dos Aores, na maior parte, moedeiros falsos e facnoras. Meu av veio com a tradio do Rei e da Corte. Um alfacinha. Eu tambm leio, seu Lafaiete. Tenho todo o Rocha Pombo nesta estante. Para que que assino jornais, revistas, compro livros e senhores livros? Meu av domou ndios. ndios no prestavam? Corrija-se! Lutou com os cabanos, essa pgina negra da histria paraense... Lafaiete, ento, afirmava que havia em sua famlia a lembrana de um tio trucidado pelos bandos selvagens do Vinagre. Coronel calava-se e saa para a loja, ia passar a mo na costa de seus eleitores e fregueses, cham-los de compadres com aquele seu a vontade to familiar para com todos. Lafaiete, na sala, voltava a manusear os volumes da Biblioteca Internacional das Obras Clebres, fingindo curiosidade espera que Coronel assim o surpreendesse. Coronel demorava. E de to ilustres pginas, Lafaiete passava [138] a escolher o disco comprado. O gramofone gemia: Raro, rato, Por que motivo tu roeste meu ba? Fingia tambm um ar nostlgico, a cabea entre as mos. Ningum vive de recordaes lhe dizia o Coronel ao encontr-lo ouvindo o disco. Lafaiete fingia-se surpreendido, principiava a coar, nervosamente, a orelha, queixando-se do desemprego e dos rins, do dinheiro perdido no jogo e com as mulheres no fundo, quanta saudade do baralho, foram os seus dias verdadeiramente grandes. Vinha de novo o caf em xcaras de ch e com bolachas. Havia sabor naquela tristeza to sonolenta que envolvia a velha igreja. Os caboclos bebiam, com um ar sacramental, em p, porta da loja. Coma bolacha, beba caf, Lafaiete! Lafaiete refletia: matas-me a fome, no? Afinal de contas por que no nascera rico como o Coronel? Era uma pergunta intil, podia

consol-lo. Coronel contemplava-o, meio sardnico, como se o desafiasse. Esse Lafaiete deve ser muito patife... Lembrava-se do tempo em que vinha passar as festas na vila. As exibies, o ar de igual para igual com que me falava, procurando advogar questes contra ele. As histrias do Lafaiete na Amaznia, o comercio de mulheres para o Acre, seria mesmo? Lafaiete estaria sem saber como utilizar a sua arte de no ter escrpulos e isso era, realmente, inacreditvel, um pulha sem trabalho! Este homem me serve pensou Coronel de tal forma como se tivesse pronunciando a frase, de sbito, em presena de Lafaiete. Preciso de um homem assim, no pelas suas patifarias no, isso no mas, pelas suas habilidades, pela sua experincia. Esse homem vai me servir, o que era a mesma coisa que pensar: de que valeram afinal todas as suas espertezas se veio cair nas mos de um homem de bem? Sabe, Lafaiete? Tire as mos da cabea. Aquele Gaspar est sendo muito safado e muito convencido de que doutor em lei. Deu agora para a qualquer propsito citar cdigos e leis. Fala em lei de boca cheia. Lei pra c, lei pra acol! E eu que o tirei da misria! No tem mais dvidas. Voc vai ser o meu tabelio. [139] Vinham os parceiros da bisca. O primo Guilherme, gorducho, pigarrento e astuto. Seu Nlson, vermelho, com o seu bon, o cachimbo e o silncio, jogava melancolicamente. Os carneiros do Coronel entravam pelo porto do muro, to vagarosos, to resignados e tristes como velhos funcionrios pblicos. Numa das janelas da velha Intendncia de que os pontapedrenses tambm tinham orgulho por ser mais Intendncia que a da sua rival, Cachoeira, o porteiro cerzia a puda Bandeira Nacional. O qu?, exclamava Lafaiete, de repente, dando uma palmadinha nas costas do Coronel j com a sete de trunfo? Coronel sorria, jovial, piscando o olho para o novo tabelio. D. Guilhermina, quase cega, colocou-lhe algodo nos ouvidos.

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Durante o longo silncio em que o marido recordava, no dissera tambm seno uma ou duas palavras. Se, por vezes, se deixava dominar pelas lamentaes do marido, no esquecia o que ele praticava sobretudo contra ela que no podia ter caboclinhas em casa. H um ano tinha sido a sua afilhada, a Ins, trazida do stio. Sempre na boquinha da noite. Lafaiete no queria jantar. No quero, Guilhermina. Este estmago. Vou casa do compadre. E o diabo. Meu estmago. Gemendo e apertando a barriga, saa. Todos iam para a mesa. Ele entrava pelos fundos da casa escorado no cacaual espesso, comeava a imitar o cavalo comendo capim. Tinha o fungo do nariz jeitoso para imitar. Ento D. Guilhermina gritava: Ins, Ins! Vai ver o cavalo entrando pelo buraco do quintal. J pedi pro Lafaiete mandar fechar esse quintal. Anda, Ins! Anos e anos de consumies, raivas, arrependimentos, vexames, enferrujaram os hbitos de D. Guilhermina criando galinha, sentando renda na almofada, tratando de afilhadas, fazendo doce para as festas, agora cultivando aquela catarata. Nem Deus lhe quis dar um filho para consolo. Lafaiete deixou que a saudade de seus dias de pquer o dominasse Suas viagens! Aquela tenacidade para mentir, enganar, manipular vitrias eleitorais ou judicirias, era o seu melhor pergaminho. Tudo passara. Faltava-lhe o antigo impulso. Chegara, enfim, a pensar que se houvesse, Deus do cu!, uma [140] oportuni|dade para tornarse honesto, arriscar-se-ia a tamanha aventura. Sob o horror de Felicidade, Orminda, no meio dos roados entre homens suarentos e carnes assando no braseiro, no o deixava dormir. Por que no tentou aproveitar-se da loucura de Missunga, por que no se insinuara, por que Calilo o vencia? O tabelio entregava-se ao reumatismo e s dores renais como quem se castiga a si mesmo.

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[141] Benedito lhe veio tirar da madorna. Seu Missunga, Ciloca no porto! Pulou da rede. Alade debulhava milho, ergueu-se da esteira. O povo t falando. Diz que veio dar uma olhada. Est desembarca no desembarca. E um demnio esse homem, seu Mi sunga. Imagine que pegaram ele roubando peixe no cacuri d Aguiar. Ele quis pegar a D. Marta no escuro l na vila. A mulher deu aquele berro... Missunga saiu no rumo do porto. Ciloca ameaava Felicidade. O grunhido do porco que Tenrio matava. Crianas choravam e as mes as espancavam. O sol tinia, dava liamba as rvores que amoleciam, estticas, sonhando, num torpor. Voltou suado, com a impresso de que trazia o suor do leproso e que Alade poderia ser beijada, inesperadamente, pelo enfermo. Como este pedira para ficar! Escorria-lhe da cara um suor de splica. Seus olhos espantados arderam na conscincia de Missunga. A cabeleira de Ciloca era postia. No fim, o leproso riu. Tinha uns dentes vidos, a ponta da lngua saltava, as pregas da mscara brilhavam. Um riso, viscoso, mordia os nervos de quem o visse, os dentes vidos tinham ganas de carnes sadias, polpas crianas, os seios de Alade. Missunga lavou o rosto com lcool. Medo daquele hlito, do reflexo daquele riso. O leproso dobrou o casco para a vila. Vingava-se cuspindo no rio, na mar. Alade j na esteira, peito pra cima os seios espalharam-se dentro da blusa de chitinha como se naquele instante desabrochassem. L fora as rvores esperavam. Missunga na rede se embalando e [142] embaixo, a Alade, silenciosa, submissa, como a prpria rede. Ouviuse um estrondo de pau caindo. Como os homens trabalhavam! Veio-lhe uma fadiga mansa, traioeira. Alade na esteira era um bicho de cria e suas mos, que debulhavam o milho, agora debulhavam carinho, lhe coavam a costa, a cabea, lhe davam o esquecimento, o fundo do rio onde o rosto de Ciloca seria tranqilo e

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puro e o corpo de Guta se dissolveria. A sombra caa das rvores como sono. Mariana voltava pelas mos de Alade. Os olhos se fechavam. Ciloca com o trgico rosto a crescer sobre os trabalhadores e Marcelino aos gritos a caminho do rio onde o peixe o chamava. Caam as folhas da jaqueira, repetia-se o tombo de paus longe. Vozes andando entre as sombras e de sbito a voz de Tomaz do Mato, imitando o clarinete. Ergueu-se, levantou Alade pela cintura. Uma nuvem tapou o sol. A sombra se fez como um afago. As rvores sufocavam. A cara de Ciloca escorria. Os homens nos roados abatiam o mato, lutavam. Os dois caminhavam sob o peso de toda a monotonia daqueles machados cortando, daquelas enxadas batendo. Sumiram pelo fundo da capoeira. Um caminho que o mato perdia. A terra meio viscosa, misturada de chuva, sol e seiva. O mato crescia mais depressa, violentamente e os bichos por que estariam mais apressados e alegres? At o receio de Missunga parecia se perder entre as folhagens. Alade e ele num cho de samambaias. O cho de folhas de samambaia, uma esteira verde, viva, orvalhada de seiva de resinas. Felicidade? Para amanh esse problema. Os dias no findam, os sofrimentos aumentam e como pensar em toda aquela desarrumao to difcil, Senhor, de Felicidade? Tomaz do Mato gritava. Divertindo-se em caminhar na ponta dos ps, com ligeireza, Alade parecia bailar entre as rvores e as borboletas. A tarde, depois daquela chuva e agora com o sol, parecia excitar cada vez mais os bichos, as plantas, os homens, os proibidos prazeres, a sensao do sono que os Levasse at o fundo do rio que era a morte. Alade, como as plantas e as chuvas, iluminava-se daquele impudor tranqilo e vigoroso da terra. [143] Missunga cingiu-lhe a cintura, uma curva inesperada de corpo, uma curva que fugia, deslizando entre os dedos. A mo de Missunga na cintura de Alade era um remo cortando gua na

vazante. No cabelo de Alade as aucenas, como se ali mesmo nascessem. Nos olhos dela havia a estranha claridade da selva em noite de trovoada. Quem arrumara aquele cho de samambaia foi Joaquina Soares que sorriu quando Missunga lhe perguntou: No defumaste? Ela deu-se a ares de mulher batida de viagens, conhecimento de homens e feitiarias. Dxe ter a um tempo que embarco pro Iam e trago de l um paj que conheo um bicho na defumao. O rapaz achou uma grande graa. Aquela Joaquina Soares se prestava para tudo, como os olhos da mulher cresceram para os dedos de Missunga! A moeda brilhava. Joaquina apanhou-a. A moeda continuava a brilhar e podia andar pelas veias, correndo pelo gasto corpo de Joaquina, deixando-lhe o veneno, a cobia, a aventura e a misria dos homens. Joaquina Soares, to usada pela vida e pelos homens, no podia esperar que Missunga a desejasse. Ora, quando? Deixava o seu vago cime, o seu indefinido despeito, a sua humilde inveja com os seus desejos to impossveis no cho de samambaias. Voltava, indiferente s folhas e flores, aos restos de ninhos e cheiros de mato que o vento espalhava. Ia consertar os matapis pros camares e lavar roupa dos trabalhadores. Os machados batiam em Felicidade, braos e peitos tremiam de cansao e paludismo, Tomaz do Mato enchia o mato com os seus gritos, bbado, cambaleando entre as sumaumeiras e imbaubais. Os homens, esfalfados, com verminose e desmanchos sujavam os caminhos, as mulheres apanhavam aa e folhas para os casebres, que vontade em Joaquina Soares para espiar os dois nas samambaias. Os cancans cantavam longe. Joaquina Soares deixava seu pensamento parar no bicho Curupira que d descaminho aos homens no mato. Existe mesmo esse bicho?, perguntava Joaquina Soares a si mesma, dominada ainda pelas histrias que as velhas tias lhe contavam no rio

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da Fbrica. O grito de Tomaz do Mato enxotou-a das samambaias. [144] Missunga cobria o corpo de Alade com as folhas de samambaia. Sonolentos ficavam em to morno abandono melhor do que sesta, melhor que peixe em remanso. Mais tarde, viria o problema to distante de Felicidade, de Felicidade to sem objetivo, homens amarelentos e magros desembarcando e aumentando no terreiro pedindo trabalho, querendo comer. Lembrou-se que aqueles homens reunidos assim podiam revoltar-se, no saberia como subjug-los. Gostaria de ficar morando num oco de pau com Alade, numa sumutuma como a cobra surucucu em amores com a paca nos ocos da terra, oh, folhas de samambaia! Alade, Alade, no durmas que a terra te come, e tua carne depois do amor deve ser mais tenra e doce. As razes querem o teu sangue. Desde as noites mais velhas do mundo as razes esperam o teu sangue. Alade acordou, a sombra das samambaias nos olhos, boiando do sono, parecendo vir de longe sono assim to grande e to fundo como os rios da Amaznia. Eu dormi?, disse ela. Se fossem ao igarap sentar nos paus cheios de limo com a gua to clara de se enxergar os peixes mexendo as barbatanas? Os peixes se assustariam e se entreolhariam em torno do corpo de Alade. Aqueles cabelos, escuros, seriam rede de pescar? Eram to vivos dentro dgua, flutuavam como plantas, como os sonhos flutuavam dentro do sono. Os peixes deslizariam, ento, entre os cabelos e ali sossegariam como nos ninhos sob a espuma. No igarap forja um caranazeiro, Alade costumava tirar os frutos do caranazeiro para um vinho to bom como bacaba. Uns cips florindo subiam pelo caranazeiro. Por que no subiam pelos ps de Alade? Alade apanhou cacui para Missunga. Um taperebazeiro grande jogava taperebs to maduros na gua que o cheiro das frutas acordava o amor em Missunga.

Alade podia ficar ali, de bubuia, imvel, os peixes passando por cima e os taperebs caindo como se quisessem deixar em terra to inesperada e to bela, sementes para uma estranha e mgica fecundao. [145] Missunga meteu os dedos na gua, a gua coleava como o corpo de Alade. Ali estava o corpo lquido e misterioso da me do igarap, com os peitos cheirando a tapereb, a cabea enterrada no cho onde murchavam as samambaias. Vamo? Em Felicidade, os homens dobrados na luta. Magros, feios e azedos com os machados e as enxadas na terra e nos troncos. Tomaz do Mato poderia avis-los e eles com os machados no ombro, as foices e as enxadas, caminhariam para as samambaias em silncio ou aos gritos... Vamo, insistiu Alade. Como um cip que se destorce, Missunga levantou-se, lentamente, tentando espantar os pensamentos e as torvas sensaes. Se Tomaz do Mato os estivesse espiando? Quem sabe se antes nao viera deitar-se? Voltava e parecia to separado de Alade. Que valeram afinal as samambaias? Deixando-o rapidamente para trs, Alade corria e desaparecia pelo sinuoso caminho como se, no ato do amor, como uma abelha, houvesse morto o amante.

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De madrugada, se viam luzes beirando o rio. Os caboclos acendiam as porongas, lamparinas com que pescavam camaro. Montarias nos remansos. Marajoau sempre parado na sombra hesitante.

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Ciloca tirara peixe do cacuri. Entornou a cachaa na mo e bebeu. Vendo-o lamber a palma da mo tinha-se a impresso de que se devorava a si prprio. Amarrou o casco no mangue. Derramou cachaa nos peixes que se debatiam e deviam ficar bbados tambm. Um silncio dentro do casco. A gua no bulia. A claridade no tinha pressa de lavar o sujo da noite. Os estires pareciam avanar sobre a sombra. Os peixes, no fundo do casco, no pulavam mais. To vivos que estavam! Foi traio da mar que os levara para o cacuri. Ficaram no fundo do casco, imveis, mortos. Ciloca, ento, cabeceava na proa do casco. Se Sinhazinha viesse! Sinhazinha estaria no sororocal esperando por ele. Lentamente, com a ajuda de remo, lanou os peixes no rio. Um pequeno barulho a gua assustada tomou uma cor cinzenta. O casco adernou, Ciloca escorrega para o fundo do casco. Veio clareando por cima da vila. A luz trepou na cabea da sumaumeira bem alta como se a cacheasse de sumama. Leves arrepios do amanhecer ngua cinzenta, o rio estremeceu como uma cobra que se acorda. Mais adiante, a gua se despia das sombras, os estires pingavam sombra misturada com a luz e o sereno da madrugada. Ciloca no fundo do casco no sentia frio nem que o cigarro caiu apagado debaixo do banco. Sinhazinha deslizou ngua como os peixes. Ele dormia, o rio acordava. Como se a luz viesse das guas boiando.

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[147] Vendo Alade desatrapalhar os punhos da rede, ouvindo as mulheres limparem as tripas da vaca (morta por Benedito e Tenrio), Missunga sentia crescer o seu desassossego. Por que gritavam l ao longe como estivessem ainda excitados pelos urros da pobre vaca que se debatera sangrando no terreiro? Os quartos de carne

vermelhavam estranhamente ao sol e pareciam aumentar de tamanho sobre a barraca, os roados, o mato, o igarap, o Marajoau, a vila, sangrentas e magras. Onde colocar tanta gente que continuava chegando? Os pobres, como as feras, dotados de um faro prodigioso, vinham de longe em busca das carnes que sangravam nos galhos. Igarits, cascos, montarias, bateles enchiam o igarap. Pelas margens improvisavamse barracas, taperis, jiraus, estendiam-se esteiras velhas. Faziam-se camas de palmas de aa, folhas de sororoca e bananeira onde as crianas se arrastavam, dormiam ou choravam, roendo ossos e restos de bolacha que apanhavam no cho entre bas, redes que eram molambos, panelas de barro pretas de fuligem, velhos sapatos de festa j cambaios e fora de uso, pequenas imagens de santo dentro de paneiros espalhados em confuso. Imveis e soturnas, encostadas nas rvores, as mulheres esperavam, ou iam lavar roupa, encher os baldes de gua, apanhar cavaco, inventar um fogo para assar um naco de carne, fazer ch, ou espiar se novas embarcaes apareciam. A vinda de mais gente as encorajava, lhes trazia uma ruidosa e primitiva solidariedade de que no podiam, por certo, ter a menor conscincia. Podiam at mesmo no desejar essa afluncia [148] ca|da vez maior de competidores, uma obscura fraternidade os unia silenciosamente. Missunga com crescente inquietao. Seria mesmo medo e por qu?, perguntava a si mesmo. Aquele rudo humano descia sobre Felicidade como uma invaso que no podia deter e no sabia explicar porque se inquietava tanto. E o pior era que frente daqueles homens aparentemente submissos e relaxados, daquelas mulheres carregadas de filhos no colo e nos ventres, de bas e de santos, daqueles curumins barrigudos e gulosos, estava Alade, ao seu lado, Marcelino, o ladro, com a fora dos bichos do fundo, Tenrio, espera de Santo Ivo, o brado de Tomaz do Mato, a livre e louca

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Orminda. J no era o medo do mato que o dominava, mas o medo do povo. Alade lhe deu a rede e logo apanhou novamente para arma-la no copiar. Me esquecia que no sabe atar disse sorrindo e respondeu ao chamado de Orminda. Missunga quis ret-la, nem ao menos deixou perceber o seu intento. Alade se dirigiu rapidamente para a porta. Tinha de ajudar a distribuio da carne, da farinha, do acar. Ajudar as mulheres na cozinha, ir com elas carregar lenha, levar comida aos trabalhadores que j preparavam os roados para a queima. como ele receava ficar preso quela docilidade a quela energia que vinham de Alade. Ela sabia se confundir no meio dos homens e mulheres sem tirar partido de sua posio. A proporo que dias passavam e os roados surgiam, ela se tornava mais ligada a eles, transmitindo-lhes uma confiana mais viva. Missunga se impacientava e explicava a Alade que o lugar dela no era no meio deles, mas na barraca, ajudando-o. noite, como distinguir as vozes do mato das vozes humanas que se espalhavam, to confiantes, subindo das barracas e dos caminhos? Isso lhe dava maior fadiga, vagas repulsas, no sabia ir ao encontro daquelas vozes, ter o mpeto de caminhar para o povo que j acreditava nele. Tambm tentava reprimir certa irritao ao sentir que, de qualquer modo, o povo j se instalava ali [149] com a maior naturalidade, como se ele fosse obrigado a servi-lo, a dar-lhe trabalho, carne e remdios. At diziam que ele fazia tudo aquilo por ordem do governo. Contavam mais: aplicava apenas a metade da verba que o governo lhe dera para montar a colnia agrcola. Isso o divertia e o irritava. Agira afobadamente, tudo aquilo no tinha explicao, faltava sentido. Criara para si mesmo um problema estpido que o desmascarava, obrigava-o a conhecer-se melhor, a descobrir dentro de si fraquezas e medos que ignorava. No fundo aquela gente o

reconhecia como um louco, permanentemente assombrado com aquela inesperada bondade. A noite caminhava e Alade caiu-lhe nos braos, rindo, como esquecer esse riso? Alade feliz! Como era fcil, mansa, deslizando pelos braos dele como canoa na mar. Alta noite chamou a companheira que ressonava. Queria andar, espalhar a sua insnia pela noite, s assim poderia recuperar o domnio de si mesmo, estar livre e voltar em paz. O sono se derramava daqueles casebres e jiraus, trazia-lhe a presena de escuros rostos confiantes, cabelos desgrenhados, olhos, bocas, braos e corpos extenuados e imveis que mataram a fome, se abandonavam nas mos dele. Nem Alade despertava. O sono, um sono elementar, os unta subterraneamente, sono dos que acreditavam. No tentou mais despertar a companheira. O vento agitou as rvores, parecia ouvir-se a baa l fora, o sono daqueles seres largados nas esteiras, nos jiraus e nas redes adquiria voz na agitao do vento e das guas, era como a ressonncia de velhos mares noturnos e invisveis crescendo ao longo da floresta pesada. Ele ficou s, fumando, lembrou-se do velho Felipe e da Bblia. Sua insnia, como uma traio, conspirava contra a paz e a esperana dos que dormiam.

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[150] Guta ficou de braos cruzados diante da almofada de renda, o olhar para dentro de si mesma. O periquito brincava no seu colo. Passava gente de Mangabeira carregando leite e mangaba nos jamaxis. Dentro da almofada duas cartas de Missunga. E Alade? O certo era que no tinha grandes cimes de Alade. Achava-a to inofensiva, uma criatura que se deu a Missunga por fora da sorte. No fundo julgava-se melhor que Alade, no que merecesse casar com Missunga.

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Vexava-se consigo mesma ao compreender que estava consentindo naquele absurdo. Comeava a sentir-se sem razo e sem socorro. Por que falava ele em D. Branca, em infncia, em coisas incompreensveis e tristes. Seria to cnico e mentiroso assim? At ontem nunca pensou em casamento, em esperar noivo como ele. De repente o desejo de felicidade lhe subiu cabea como uma coisa impura e terrvel. Era cair na boca do mundo, era se deixar levar pelas palavras e acabar como Alade. E em meio de tudo isto, tentava compreenda-lo para justificar-se: mas ele parece to simples. Olhou para a porta, mal abafou o grito de susto. Ento, como vai? Ciloca ficou imvel com o olhar nas pontas das palhas da barraca e havia uma pungente humildade em sua fisionomia mais mutilada e viscosa. Guta, Missunga me expulsou de Felicidade. Como, seu Ciloca? Como se aquele rosto jovem e aquela voz jovem o [151] perturbas|sem, Ciloca no respondeu imediatamente. Chegou mesmo a hesitar. Sinhazinha era tambm jovem e mais bonita. Guta o enchia de uma sbita renncia do que tinha decidido. Me mandou dobrar o casco. Eu no ia empestar a terra dele. Ia ver. Mas, seu Ciloca, veio se queixar a mim por qu? Porque voc, Guta, nunca me deu a costa. Nunca mostrou nojo de mim. Aquele rapaz no sabe o que est preparado pra ele. Guta sabia que no era exato o que ele dizia a seu respeito. Tratava-o mais por temor que por bondade. No rogue praga, seu Ciloca. Mas pra que aquela prospia dele? Para que a violncia de me expulsar daquela orgia? Guta no respondeu. Missunga realmente havia feito aquilo e com um homem que vivia metido com o livro de S. Cipriano? No

via que o leproso era capaz de atirar praga contra Felicidade? Esse pensamento a fez estremecer. Ciloca a contemplava, como se quisesse atac-la. Seu Ciloca. No. No sei lhe dizer. Mas por que o senhor no se recolhe... ao asilo. No leve a mal. Ciloca permaneceu em silncio, contemplando-a, sem surpreender-se. Viera refugiar-se em Guta com a certeza de que ela o repeliria tambm. Ela nem sabia como desembaraar os bilros da almofada. Se Deus lhe mostrasse uma erva... um remdio. Porque Missunga... mas no pde pensar nisso e sentindo que o medo e a piedade a invadiam, ps-se a acreditar na possibilidade de um dia ser leprosa. Viu os olhos do Ciloca. As lgrimas faziam-no mais grotesco. Ela queria pedir-lhe que no chorasse, como se arrependera de haver dito aquilo e dominou todo o seu medo, a sua repulsa para dizer-lhe, com voz alterada: Tem contado muito histria pros meninos? Olhe, no lhe dou um caf... Ciloca interrompeu-a: Voc est mentindo, mentindo. Voc nunca me ofereceu caf. Caf! Caf! Que interesse voc tem pelas minhas histrias? No estou chorando. E a minha cara que luze, que escorre. Voc [152] escarnece... lembre-se... Guta, plida, recuou, com os olhos j enevoados pelas lgrimas numa atitude de fuga e de espanto, ao mesmo tempo, de infinita pena e quase splica para que ele no lhe falasse naquilo que j era o terror de seu corao. Ciloca enxugou a mscara com um leno roto e sujo cheirando a gua de colnia. Os lisos e compridos cabelos escorriam-lhe pela testa. Guta lembrou-se de repente da noite em que passando pela janela da velha casa do leproso, viu-o, luz da lamparina fumarenta, curvado sobre um livro era por certo o livro das bruxarias. Ao tomar o caminho da vila, Ciloca voltou-se para a barraca e

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riu nervosamente. Viu-a ainda com aquele rosto mergulhado no terror e na repulsa, to rico de vida, era como o das mulheres quando apaixonadas de que falava o livro de S. Cipriano. Gritou quando j Guta havia desaparecido. Estou e me rindo de ti, de tua grossa mentira... mas Deus te guarde, minha filha. Jogando a cabeleira para trs, continuou caminhando num vago impulso de voltar, atirar-se sobre ela, em busca de um milagre.

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[153] Benedito correu afobadamente no terreiro: Seu Missunga, Tenrio caiu do aaizeiro, se estrepou no terado. Alguns homens e crianas atacados de alastrim, deitados em folhas de bananeiras. Faltava mantimento. Necessitava mandar buscar uma barcada de bois do Arari. Para dispor de dinheiro mais urgente tinha necessidade de assinar nova letra com tio Guilherme. Um homem lhe apareceu com um tumor no brao, queixando-se que a mulher gritava com uma eterna dor na barriga. Outro a levantar a enxada, havia botado sangue pela boca no roado. Aquilo era o celeiro do mundo, o celeiro do mundo. Celeiro do mundo a me de quem disse resmungou Missunga e o olhar de Alade era de incompreenso e tristeza. Tenrio estendido no terreiro, estorcendo-se. As mulheres se aproximaram com espantadas curiosidades. As moas queriam ver. Orminda, num tom de chacota: No vo, seus diabo. No to vendo que os gro do homem? Era obsceno, refletiu Missunga e mandava Marcelino procurar um experiente para estancar o sangue do infeliz que pde sentar no cho e ficar num torpor, as mos sobre as coxas. Orminda acercou-se dele e exclamou para as mulheres:

Cad as velhas daqui pra costurar o homem? gente... se no tiver quem faa eu mesma fao. Costuro. Voc deixa, Tenrio? Eu trato dele... Abaixou-se, passou a mo pelos cabelos de Tenrio, recordou [154] a tarde em vigor que viu a filha to barriguda, cheia de feridas, fez-lhe perguntas, chamou Benedito, carregaram o caboclo para uma esteira na barraca. Tratou de pedir a Alade uma camisa limpa de Missunga este no se importaria enxugou-lhe o sangue reclamou uma pessoa entendida l da vila ver o doente. Alade lembrou que uma nica pessoa capaz de tratar, dar uns pontos no rasgo, era Capito Lafaiete. Pois chamem o Capito Lafaiete. Ao menos pra isto o diabo velho serve, disse Orminda rindo, cuidando de armar a sua prpria rede para Tenrio. Alade indagou se no era bom fazer um ch. Ch nada, mea mana. Tenrio est assim mas quer um bom prato de carne com aquele feijo que eu, na minha tontice, queimei. No , Tenrio? Come pra agentar. Isso no nada. A gente costura, a gente cerze... Orminda ria com o brao apoiado no ombro de Alade. Tenrio, no se v aborrecer. Ao menos voc se distrai comigo... Nasci doida-doida. Ofende! Alade sabe. Tome a rede. Pode se levantar? Orminda saiu pensando aprontar-se cedo para a festa do Z Melo naquela noite, deu com o homem do tumor, no terreiro, parecia esperar por ela, amarelao, o olhar suplicante, os bigodes cados, o peito nu, e no brao, oleoso na sombra, o tumor que crescia. Queria que me abrisse isto. No posso mais. Rasgue com um terado. Com uma navalha. Mas rasgue, minha filha, Deus lhe ajude. Os homens ainda no chegaram e no agento mais. doer demais. L em casa minha companheira doente j nem fora tem pra falar. A linguagem dela s gemido. Orminda gritou por Missunga que veio e sentiu aquele tumor

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inchar no seu pensamento, agravar-lhe a solido, uns testculos sangrando, um esqueleto de homem tossindo, corpos em carne viva imveis nas folhas de bananeiras. Disse que no tinha animo para rasgar o tumor. Esperasse os trabalhadores. Perguntou Orminda se ela se atrevia. Orminda que se no houvesse outro jeito, ela e Alade dariam conta. O [155] ho|mem rogou. Orminda chamou Alade e as duas mulheres conduziram o doente para a palhoa onde costumavam talhar a carne. Missunga voltou para a rede, para o embalo da irresponsabilidade. Quando voltavam anoitecia Onofre, o piloto da canoa Fontes batia na porta da barraca. Trazia encomendas para Missunga. Era um homem meio patusco, tirando graas com todos at mesmo com o Coronel Coutinho. Com Missunga, ento, como no havia de ter toda a liberdade se viu ele nos cueiros, esperneando nos braos de Mariana? Como vai esta farra, menino maluco. Missunga abraou-o e pediu que lhe contasse as novas anedotas de Belm. O piloto limitou-se a falar das ostentaes de D. Ermelinda na cidade. Sua madrasta em Belm, voc nem imagina, est uma Rainha da Inglaterra. Voc viu mesmo ela com o dente de ouro?, brincou Missunga. Alade e Orminda ouviram atentas. O ouro na boca de D. Ermelinda. lima senhora metida no mais alto luxo. Casa alugada, na Serzedelo Corra, com porto de ferro e jardim. A marchantaria fornecia-lhe quanto quisesse. Ia ao comrcio de chapu, comprava jias (Orminda inclinou a cabea, mais atenta). Encomendava vestidos na Madame, entrava no cinema Olmpia com um ar de senhora um pouco aborrecida, olhando por cima, anis faiscando nos dedos, a criada atrs. Ao sair do Olmpia preferia o sorvete no terrao do Grande Hotel a provar chocolate com a me-benta e bolo ingls que recomendara s criadas quando voltasse. Se havia calor, se a noite

era bonita, mandava chamar um auto. Quero a toda, seu chofer. O auto corria e Ermelinda se lembrava sorrindo das loucuras de Missunga em Paricatuba. No era loucura, pensava. Era uma distrao a mais. Pior se estivesse gastando no jogo, com mulheres, na poltica. E se quisesse ir para a Amrica do Norte? Custaria realmente uma fortuna, ela no seu lugar, fosse como, no recusaria arranha-cus e cabars pelas farinhas com Alade e caboclos abrindo roados. [156] D. Ermelinda gastava sedas, sapatos, bolsas, perfumes, uma artista, exclamava o piloto. Quanto queijo, quantas maas, at gua gelada se bebe na casa de D. Ermelinda. E como seus mveis reluziam! Estava redonda dentro do robe de largas rosas vermelhas, os cabelos j ondulados, o finssimo cordo de ouro no pescoo, a rica medalha de Santa Terezinha do Menino Jesus. No quarto o leito negro com cortinado de fil e almofadas vermelhas. Passava horas numa banheira azul e esquecia os seus litros de gua de colnia para esvaziar no banho toda a garrafa de cheiro da terra. A empregada envolvia-a com toalha azul e um dourado roupo a esperava. A vasta mesa na sala de jantar atulhada de terrinas com peixe no escabeche, frango de forno, carne de porco e espargos, guarnecida por pacientes garrafas de vinho francs e saleiros ornamentais. D. Ermelinda sentava-se na poltrona, queixando-se de fastio. A criada, de touca e avental, trazia-lhe o vidro de Emulso que ela recusava embora fosse um velho desejo seu o de se fortalecer com leo de fgado de bacalhau. Por que no procuravam modificar o gosto do remdio? Era uma pena. Ermelinda, com enfado, provou do vinho, beliscou o frango, palitou os dentes o dente de ouro a incomodava. A criada consultou se queria uns ovos com bem manteiga, uma ponta de chourio e cebola. Vamos ver. Traga. Mas com muita cebola. Mal tocou nos ovos e na cebola. Oh, fastio. Lembrou-se que a

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Companhia estava retardando a ligao de telefone. Se tivesse telefone naquele momento, no custaria consultar o Dr. Prisco, pedir um remdio de paladar mais agradvel que a Emulso. Espreguiavase. Antes tivesse ido para Minas e mandou por fim que a criada fosse mercearia da esquina comprar cinco tostes de camaro do Maranho para comer com farinha dgua. Encolhido na cadeira, o piloto contemplava-a, malicioso, como diante de uma majestade. Ermelinda tinha um olhar triunfante sobre a desolada fartura da mesa onde nem as moscas voavam. Missunga sorri das histrias que o piloto trazia de D. Ermelinda. Onofre lhe contou tambm o que o administrador andava dizendo em Cachoeira: Coronel acabava na falncia com aquele filho to maluco. Missunga respondeu irritado que Manuel Raimundo no passava de um feitor de escravos. Vivia furtando o pai, ferrando gado no seu nome, o seu melhor negcio era vender bois nas prprias fazendas a comerciantes de Abaet e Igarap Mirim. Era gado fora da conta. Quando o pai voltasse contaria tudo, falaria rudemente, e como deixara de pensar na sorte dos vaqueiros? Tinha mesmo uma excelente oportunidade para tomar conta de todas as fazendas e despedir Manuel Raimundo. Aumentaria o ordenado dos vaqueiros. Fundaria uma fbrica de laticnios. Uma charqueada. Contrataria um tcnico suo, seus queijos ganhariam prmios nas exposies. Mais fcil que plantar algodo, abrir roado. Justamente isso o que devia ter feito. Em vez de Felicidade, expulsaria Manuel Raimundo e reformaria as fazendas (Orminda no esquecia que no leito negro sob to alvo cortinado, D. Ermelinda sesteava). Onofre, voc passa a vida s flauteando, no, Onofre? Pilotar, no pilota mais. S dirige debaixo do toldo... O piloto riu sem protestar e foi se despedindo. Orminda correu para ver como Tenrio passava. Alade, as mos seguras no punho da rede de Missunga, falou no p de limoeiro que plantara junto da

barraca. Seus joelhos ficaram sujos da terra fofa. Missunga viu-lhe nos olhos alegres a ternura com que tratava e falava do limoeiro. O limoeiro subiria com pencas de limo para temperar o peixe e a carne de porco. Oh, se todas as sementes vingassem na terra como aquela distrada alegria em Alade. Missunga decidiu de repente, ir vila, ver Guta. Guta chamava-o, envolvendo-o com os fantasmas da infncia morta. Para vingar-se do equvoco de Felicidade teria de inventar naquela noite mesma um baile na Intendncia, ficar bbado, dar gritos, levar os msicos para tocar, no cemitrio, uma serenata em torno da sepultura do av. Voltando ao baile, despiria-se [sic] no meio do salo, correria rumo da igreja para beijar Nossa Senhora no altar. E por tudo que fizesse, Guta havia de fugir doidamente pelo mato at que ele a alcanasse como se apanha um pato brabo ferido. Alade, voc pode ir festa do Z Melo. Tenho de ir vila. [158] Talvez eu dance por l. Ento me traga de l um carretel de linha. Mas venha primero v o limoero plantado. Eu alumio pra voc ver. Benedito descia no casco pelo macio das guas para a farra do Z Meio. Era ainda nas terras de Felicidade. Podia-se ir tambm pelo caminho do mato. O caboclo aproveitou a enchente, a noite clara, para remar pelo igarap. Na sua bata a cala de riscado engomada, o palet que Missunga lhe dera, lustroso da goma da sua comadre Joaquina Soares, a camisa comprada feita no Calilo, os cigarros, os sapatos, a cachaa, ia divertir as pernas. No era muita a vontade de danar, mas o capricho que ele considerava prprio de homem, de contrariar sua pequena Antonica. Esta prometera ficar mal de morte com ele se teimasse ir festa do Z Meio, com quem ela h um ano no falava. A primeira gente que viu foi a penca dos cearenses passeando no terreiro. Tinham chegado h pouco de Muan, com fama de valentes. Ouviram falar de Felicidade. Trs irmos e o pai que

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andava de muletas. Pediram trabalho. O velho, os olhos de fantico. A boca fofa sumida numa barba seca e m. Os filhos exibiam umas mscaras de capangas e falavam de no acabar mais. O velho guardava no bolso uma orao para afastar o inimigo, parecia odilos, amaldio-los, compreendendo-lhes a impacincia que no disfaravam para se verem livres dele. Quando soube da chegada dos homens, Missunga se ergueu da rede com os olhos mais vivos. Lembrou-se da seca, dos trinta mil cearenses que conquistaram o Acre. Os trs homens ficariam para conquistar a terra. O velho, mudo, com o silncio entre os dentes, descansou as muletas e esperou. Veio Alade, perguntou-lhe se tinha fome. Os olhos boiaram amarelos e vidos e o silncio se abriu para deixar passar um resmungo: Quero. Alade levou-o para a mesa. Trouxe um prato cheio de feijo, carne de porco, o velho soltou um risinho curto, agudo e feroz, Alade estremeceu. Parecia comer com dio a comida, como se comesse a prpria carne dos filhos. Vazio o prato, o invlido voltou os olhos cheios de uma sombria insaciedade para o medo de Alade. Queria mais. Os trs filhos viravam os caminhos atrs da [159] cachaa, mexendo com as mulheres, contando casos de valentia. Benedito, primeira vista, desagradou-se. E quando Antonica lhe disse que um deles lhe atirara uma graa, no pode mais suport-los. Teria de prevenir o patro, mandasse aqueles bichos embora. No era por ser cearense, cearense havia em Felicidade e gente muito boa. J a festa do Z Meio principiava mal, resmungou. Preparou-se dentro do mato, no escuro, ocultou a bata embaixo dos cipoais, ao lado a garrafa de cachaa. Um trago, acendeu um cigarro. O n de gravata incomodou-o. Para que gravata, ora bolas. Reconheceu que foi para mostr-la, exibi-la ostensivamente, uma velha gravata de seda dada por Missunga. Adivinhariam o presente, a gravata podia aparecer j muito usada aos olhos dos camaradas e seria troa at o fim da festa. Afrouxou apenas o lao mal arranjado

havia de pedir uma ajuda ao Euclides que era dunga em lao de gravata, seguiu-se um instante de irritao porque ah! possvel! tinha esquecido o vidrinho de extrato. Na certa, praga de Antonica, no fundo no deveria ter feito aquele capricho com ela mas Antonica tinha modos de querer governa-lo e ele no era leme de igarit que mulher podia governar. Resignou-se ao lembrar que Euclides lhe daria um pouco de perfume em troca de trs dedos de cachaa. Atravessou o terreiro apinhado de gente e procurou espiar se havia mesmo muita dama, como tanto anunciaram. De fora, debruado no parapeito sobre o salo de dana, foi aos poucos colocando-se de um modo que ficou, por trs, rente nuca de Orminda Estava sentada no banco, entre muitas moas, satisfeita porque seu padrinho Pica-pau viera tocar. Ele tocou-lhe, de leve, nos cabelos, murmurou: Quando a nossa? Orminda virou-se, como assustada: Tu j bebeste, mas credo... Tua boca no nega... Logo pediu que ele fosse buscar Alade. Tanto que ansiava pela companhia dela. Talvez ele a convencesse. Ela no vem. Vem, sim. [160] No vem. No vem sem minha autorizao, pilheriou. Orminda apoiou o brao no parapeito, insistindo. Como tivesse dele a mesma resposta, voltou-se bruscamente fazendo um ah! de fingido aborrecimento, convencida, afinal, de que Alade mesmo no queria vir. Por que, se Missunga dera licena? Um pequeno atravessou o copiar gritando rouco: Arroz doce! Crianas continuavam a berrar. Benedito soprou bem no ouvido de Orminda que saltou no banco tentando ralhar: No faz, diabo, te puxo essa gravata! Benedito quase enfiou ao temer que Orminda perguntasse quem lhe dera o presente e prometeu a si mesmo tirar a gravata para evitar

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aborrecimentos. Talvez por isso quis desforrar-se: Vai dar o peito pro teu filho que est berrando no quarto, me sem corao. Faz o filho e no quer criar. Quando pra fazer no tem gua que apague o fogo... Ela abafou o riso, deu-lhe a costa e espichou o brao, por trs, para tentar beliscar-lhe a mo. Os trs cearenses giravam no copiar, examinando as damas, como dominadores. So j os donos da festa, esses? Danaste j com eles, Orminda? Dancei, mas, meu mano, tomei um abuso de todos os trs. A razo que no sei. Mas tomei. Deve ser besteira minha... E Benedito disse com voz baixa: Mas... Eles na certa te cantaram... E tu logo... Benedito fez um gesto obsceno, a mulher de pronto se ergueu e quis bater-lhe no rosto, rindo. A orquestra tocou. Aquela gente danava triste. Dana em que os pares arquejavam. Benedito no se moveu e esperou, sob a indeciso de tirar ou no a gravata. Quando a orquestra parou, Orminda caiu no banco como se o seu cavalheiro a houvesse empurrado. E a nossa parte? Quando queira. Benedito, ento, dirigiu-se a passo lento para a porta repuxando o paleta desajeitado, a camisa, no endireitava o n da gravata com medo de rasg-la. O pior era que os sapatos como sempre [161] lhe doam. Para que o diabo daquela gravata? Retrocedeu, apressou os passos em direo do mato prximo. No demoraria muito tempo para tirar o sapato e entrar na dana descalo. Bebeu, meteu a garrafa no bolso tinha de procurar Euclides para o perfume. A flauta do Pica-pau soprou o samba, Benedito correu, tropeou, caiu, limpando-se afobadamente, para alcanar a sua dama. Deteve-se na porta ao ver um dos cearenses avanar com o brao

estendido para Orminda. Ela talvez lhe dissesse: Tenho par. O homem insistia, a mo estendida. Benedito receou. Eles eram doidos, o caso no se dava com Antonica. Orminda sempre era Orminda e se desenganou de danar daquela vez. Contudo viu que ela permanecia imvel no banco e em frente a mo j desafiadora do cearense. Um instante e se ouviu o grito: Pois vai apanhar, ouviu? Sua cara de mandioca esfolada! Ela quis se abaixar e correr, a bofetada derrubou-a sobre o banco, ergueu-se e com raiva mordeu o brao do agressor, cuspiu-lhe a cara, confusamente os homens acudiam. O homem, puxa da faca e a maneja, rapidamente a mulher deu um grito com o brao e o rosto a sangrar. Marcelino, afoito, surge num salto e tomba a um s golpe e desta vez o cearense acerta. Rompendo o tumulto, com a faca pingando sangue, o assassino ganha o terreiro sob o clamor das mulheres que invadiam os quartos, se espremiam no corredor para onde carregaram Orminda. Benedito, j voltando da cozinha com um terado, atravessa o corredor, via o sangue escorrendo do rosto de Orminda o seu vestido todo banhado de sangue , pula o parapeito Marcelino era j um cadver e salta sobre o nordestino que, espumando, mantinha os homens a distncia. Benedito brande o terado com tal rapidez que desorienta o inimigo e o abate.

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[162] Dois dias depois, inesperadamente, chega o Coronel Coutinho. Foi, na verdade, grande alvio, concluiu Missunga que viu o pai sem trazer a fria que dele se esperava, dirigir-se aos trabalhadores: O remdio arrumar as bagagens e ir embora. Se arrumem.

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Alm do que aconteceu, at alastrim se lembraram de trazer. Empestaram a terra. Dem o fora que isso ai vai pras mos dos japoneses. Japoneses? Foi a pergunta que Missunga fez a D. Ermelinda quando, de volta de Felicidade, subiu a velha escada da casa grande de Paricatuba. D. Ermelinda, que viera de Belm com o Coronel, sorriu, instalada num surpreendente quimono e no prazer de mostrar a Missunga a sua intimidade nos negcios da famlia Coutinho. Ah, voc no sabia? No perguntou a seu pai? Ento no sabe de nada. Pois seu pai firmou um contrato com os japoneses para fazer uma colnia nas terras do finado Felipe. Este quimono foi at presente de um dos diretores da Companhia que foi jantar conosco em casa. Fiz tudo pra no aceitar, o homem, to amvel, tanto insistiu que seu pai permitiu. E um campeo desse jogo, como bem o nome? Ah! Jiu-jtsu... Com o desejo de exibir a Missunga. ou de iludir-se a si mesma a sua condio de senhora e no de amante, Ermelinda mentiu ao declarar tambm que lera o contrato. Missunga s queria pensar, naquela hora, no alvio que tudo aquilo lhe trazia. Era assim o caminho aberto para se entreter, unicamente, com Guta [163] e, coisa estranha, Guta era-lhe, agora, to calada e to fcil como a prpria irresponsabilidade. Sem um gesto, contemplava os trabalhadores arrumarem as trouxas e os bas, seguindo para o porto. Os taperis abandonados, as esteiras se desfaziam na terra e os homens, mulheres e crianas carregados de bouba, alastrim e paludismo. Missunga acreditou mais uma vez na fatalidade, achou estpido pensar muito nisso e idealizou, para o dia seguinte, uma caada. Levaria Alade e numerosos ces... Desciam em montarias e cascos pelo igarap, cabisbaixos e soturnos. Alguns tentavam pilheriar, divertir-se com o desastre. A recordao daquela noite de sangue pesava sobre a partida. Orminda, o brao ferido, o rosto cortado, embarcava numa canoa que a prpria Alade ignorava de onde viera nem para onde

partia. Fique mais uns dias, mana. preciso sarar isso. Veja como est a do rosto. Isso arruna, mana. No quero que minha me me veja assim, Alade. Eu no morro. Vasilha ruim... Vou pra onde a cabea der, mea mana. At um dia em que a gente se veja. As pedras se encontram. Ao voltar do porto, Alade encontrou Tenrio no meio do caminho que lhe perguntou por Orminda, ao que ela respondeu: Foi embora. E entrou chorando na barraca, apertando na mo o par de brincos que a amiga lhe deixara como lembrana. A retirada comeara pela manh cedo e terminara noite. coronel Coutinho, por causa do alastrim, da bouba e do paludismo, mandou atear fogo nas palhoas e esteiras. Queria entregar as terras limpas ao japons dentro de trinta dias. Missunga ento desceu de Paricatuba para ver Alade. As fogueiras apressavam a partida do povo. Foi, antes, ao igarap e deu com as caveiras dos bois espetadas nas varas beira dgua. Um caboclo gritou: Vou levar uma cabea dessas pra fazer um boi bumb no rio da Fbrica e carregou uma caveira para a sua embarcao. Outras atiravam miritis e taperebs podres nas que ficavam. Uma mulher havia arrancado a tabuleta: [164] FELICIDADE para utiliz-la como remo. Um caboclo riu alto e mulheres no reprimiam tambm o riso. Missunga sentiu que podia ser vaiado e logo sorriu ao refletir que eles no se atreveriam. Mas, pior do que vaia, tudo aquilo humilhava-o e o expulsava tambm. Uma velha cabocla tremendo de febre lhe lanou um olhar no de acusao, de escrnio. Uma cunhat de seios quase mostra, o vestido em farrapos, sorriu pobremente para ele. Ele tocou-lhe o brao, arrastou-a

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para a sombra e procurou v-la bem no rosto, com os seus olhos sobre os dela. Tu no s a Lucimar? Sou, sim, senhor. A voz dela era abafada e havia mau cheiro no seu corpo. Soltou-a na sombra. Ela esperou, inerte, a cabea baixa. Que teria se passado nela, perguntou ele a si mesmo. Suas mos traziam a curva dos seios, uma deprimente piedade misturada com um desejo sbito de arrastar aquela cabocla para as samambaias sob o rumor dos que partiam e ao calor das fogueiras. Algum gritou do igarap, gritou longamente, um grito de saudade e de escrnio, um grito que lhe pareceu doloroso ecoando atravs das fogueiras e de toda a desolao. Adeus, Alade, Adeeuus. Alade, at um dia, mana Alade, adeus. Alade, at a volta, um dia ns se vemos. Um dia, pensou Missunga, ela voltar para eles. Eles com aqueles gritos que se arremessavam do meio do igarap contra as fogueiras advertiam-na. Esperavam Alade quando fosse mandada embora tambm, to coisa nenhuma como o povo que partia. Lucimar, v embora. Voc ainda moa, Lucimar? Ela abanou a cabea, confirmando e se afastou lentamente. Missunga avanou no rumo da barraca de Alade. As fogueiras cresciam. Alade seu rosto parecia abrasado enxugou as mos suadas na bainha do vestido. Ouvia a zoada no igarap, ouviu os gritos de adeus. As plantaes perdidas. A dispensa sem os mantimentos. O fogo se alastrava no cho [165] debai|xo das rvores onde os caboclos comiam as postas de carne gorda. As panelas de barro jaziam quebradas no terreiro, vingana, naturalmente, dos caboclos. Cad os milharais, o algodoal, os fornos de farinha, as hortas e as fruteiras? O sangue do cearense, de Marcelino, o sangue dos braos e do rosto de Orminda mataram toda a

esperana. Orminda mesmo lhe dissera: Ah!, mana, eu trouxe a morte pr c, tudo partiu de mim. Te lembra de Manuel Rodrigues, de Santo Ivo, da praga da mame? Missunga continuou em silncio. As fogueiras queimavam a noite verde. Os ltimos rostos batidos pelo claro voltaram-se para os dois, um instante. Missunga no os encarou e acreditou que se fosse um homem partiria com eles. Alade encarou-os, sentiu medo, suas palavras foram estas: Missunga, seu pai mesmo mau a bea, puxa! Nada entendia daquilo, nada sabia explicar. Se sentia pena dos irmos expulsos, achava que Missunga merecia pena tambm, no tinha foras para lutar com o pai. A crepitao das fogueiras, a pressa dos que partiam, os gritos adeus! adeus! at um dia, Alade! gargalhadas, choro de crianas, pragas, barulho de remos, sim, o seu povo partia. Missunga segurou-lhe as mos. Como eram geis as mos de Alade escolhendo o aa, subindo na palmeira, moldando o tijuco para as panelas, polindo-as com cera do mato, distribuindo a carne e a farinha. At mesmo em presena dos cadveres, no se apagara em seus olhos aquele vago otimismo, aquela vigorosa inocncia animal que fazia Missunga, derrotado, encher-se de uma despeitada irritao quando j tudo no tinha mais remdio. Felicidade para Alade seria fcil, talvez num simples arranco de machados, enxadas e sementes. Naquele momento, as mos dela estavam murchas e no havia no olhar a ingnua resoluo dos outros dias. E eu tenho de ir pr casa de mea tia. Por qu? Voc fica, ora essa. Eu, em? Pr queimarem a barraca comigo dormindo? Eu, ein? Alade fez um gesto de aparente indiferena, de infantil desdm. O p do limoeiro j crescia e suas pequenas folhas [166] brilha|vam na claridade das palhoas em chamas. Tinha em vista armar um jirau para plantas de remdio, roseira e um jasmineiro de parceria com

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Orminda. Arrependia-se no ter fugido com Orminda, acompanhar aquela gente, quanta pena no teve de Lucimar com aquela ferida na coxa e a esperava ainda para lhe dar um vestido. Saiu, foi esconder-se entre as rvores sem evitar que as lgrimas escorressem pelos arbustos, num minuto se refez, Missunga abraavaa pelas costas e ela sorrindo, um sorriso mido e aparentemente distrado, dava a entender ao companheiro que fora ali se ocultar para divertir-se em v-lo sua procura. As vozes no igarap se apagavam, mal se ouvia o rudo dos remos, as fogueiras devoravam de uma vez as palhoas e s ficou a barraca de seu Felipe para onde os dois caminharam sob o cheiro da terra queimada e a escurido da noite. Ele riscou um fsforo e entraram. Missunga lembrou-se de seu Felipe, via-o ainda lendo a Bblia, o cachimbo da velha, os bichos e os rios encantados que desciam das histrias. Acenderam a lamparina. Alade sentou-se num tamborete, cobriu o rosto com as mos. Voc chora porque aconteceu isto? Tolice... E s por isto? Logo achou cnica a pergunta e porque ela fez no com a cabea, disps-se ele, ento, tomado de um presentimento, a perguntar outras coisas. Ficaram de lngua presa no silncio, porta da cozinha. A noite sobre as rvores e as cinzas fumaava. Alguns pssaros noturnos voaram rpidos. Alade correu para tirar do fogo a chaleira que fervia. E voltou, lenta, apoiou-se na ponta da velha mesa onde havia uma lata de farinha, um machado sem cabo, um violo desencordoado. Na lamparina Missunga acende o cigarro. Mas certo mesmo, Alade? No anda enganada? Vamos ver, espera... Se aquiete, abom. No apalpe. J no lhe disse, no est vendo? Quem mais pra saber do que eu? Missunga hesitou ante o olhar da companheira que o encarou, sem ressentimento nem lgrimas. Pensou em Guta, que havia ela de

dizer? E o riso do pai de certo murmurando: vai no [167] meu rastro. Filho de peixe... Eis em que dava Felicidade. E Missunga ps as mos no ombro de Alade. S h um meio... E por mim, preta. Qual, ento, meu Deus... disse ela baixo e o rapaz viu-lhe o medo no olhar, em todo o rosto inocente e espantado. J um vago pensamento sobre o filho a preocupava. Sentiu o mal estar de Missunga, o vago pensamento e a pergunta que lhe queria fazer apagaram-se no medo que aumentou. E ele lembrou o nome de Joaquina Soares ou nh Clara. Nh Clara era melhor. Alade pensou na queda de sua me grvida do alto do aaizeiro e ao ouvir o nome de nh Clara no pode se conter: Algum mal eu criar meu filho? Em? Deus tem mais pra dar que o diabo pra tirar. No chorava por isso, chorava pelas plantaes perdidas, pela fuga de Orminda, havia de ter o filho na casa da tia sem que ningum soubesse. Nem diria que era dele, que tinha o mundo com isso? Depois te explico tudo, Alade. Depois, nh Clara, ouviu? Pela manh partiu para a vila. Alade tinha a fora da terra que ele no soubera domar. De qualquer maneira era seu filho e concluiu, com srdida amargura, que nenhuma curiosidade tinha pelo nascimento daquela criana. Entrou na loja, ouviu vozes na varanda, era Lafaiete, certamente, acusando Calilo pelas contas de Felicidade. Num consolo na sala, a imagem de Nossa Senhora do Rosrio que o pai trouxera, os jornais recentes de Belm narrando a tragdia nas terras de Paricatuba. Coronel chamou-o. Lafaiete ia falar, exaltado, da imagem do Rosrio quando vieram dizer que o primo Guilherme estava na loja e queria um particular com Coronel. Este, ento, dirigindo-se para o filho, resmungou com furor: So as letras! So as letras! Lafaiete escancarou o olhar numa assombrada interrogao.

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Missunga fugiu para a rua. Viu gente caminhando para o trapiche, Tio Rafael, entre meninos, porta da igreja, um foguete riscou em direo do rio. Guta, com certeza, havia de ir ao trapiche esperar a santa que regressava dos campos de Cachoeira. A vila esperava os folies na mar da tarde. Alegro pros guris soltos na poeira do largo, na calada do mercado e no banho [167] do rio. As moas iam para a cabea do trapiche pblico olhar no rio manso, as canoas que ergueram as velas e as montarias cheias de gente aguardando a santa. No era propriamente a imagem da Conceio mas a sua Coroa de prata que os folies conduziam com viola e tambor, cantando folia e rezando ladainha para recolher as esmolas dos devotos distantes. Partiam da vila em setembro e a fins de novembro voltavam. O tempo anunciava chuva, O arco-ris sobre a mata, caindo no rio onde bandos de curumins nadavam ate o meio entre as montarias, pendurando-se na borda das canoas. Guta, indiferente s moas que brincavam e riam alto, permanecia recostada ao parapeito do trapiche, junto escada, certa de que Rafael, seu padrinho, no lhe daria a Coroa para carregar at a igreja, pedira com tanta insistncia. As moas da alta no permitiriam sem dvida. Fique sossegada, lhe dissera o padrinho, isso no a convenceu. Pssaros num vo vagaroso atravessaram o rio, o arco-ris, a voz dos sinos espalhada alegremente na tarde chove-no-chove. O arco-ris se fez mais luminoso, o grito dos meninos no rio era como o grito de meninos que se afogassem. Em silncio, sentado na beira do trapiche, Tenrio contemplava o estiro por onde havia de surgir a embarcao da santa. Tristeza de folio extremamente sujo e maltrapilho que perdeu a viagem, nunca mais tirou folia, ficou sem a companhia dos santos. Felicidade tinha sido a morte de Marcelino, e o rosto quase desfigurado de Orminda. Santo Ivo jazia no fundo do aningal. A mulher bbada teria atirado a

Cabea no encantado onde os peixes adquirem poder para flechar os homens, endoidecer as mulheres, furtar criana nos jiraus. Tenrio viu sobre a sua misria o arco-ris, as moas alegres de vestidos estampados, as canoas no rio. Rebuscou em vo nos bolsos midos da cala uma bagana de acaso. Bem que poderia ter ido na comisso, esmolar, voltar como porta-estandarte, folio efetivo de Nossa Senhora. Vaga no havia. A comisso da santa era de velhos folieiros de confiana de Rafael. Esperava algum dia bater o tambor da padroeira, cantar ao lado de Rafael fazendo ala a [16] romaria que ia beijar as fitas e se benzer diante da imagem, vida que preferia. Vida spera, na verdade, mas divertida, cheia de acontecimentos, andando sempre, ah! quanta vez com Santo Ivo a longa viagem da tirao das esmolas. Como todo folio, andava a p, montava em osso, isto , em cavalo sem sela, dormia no cho, nas tbuas junto da barraca quando havia dana e no queria passar a noite em claro. Muitas ocasies despertava com a garrafa da cachaa junto dele, as vacas perto olhavam-no curiosas, ruminando. Um ano pde entrar na comisso de S. Sebastio Vitor Uua adoecera os folies trabalhavam por conta da diretoria da festa. O mestre-sala, velho Arnaldo, ganhava trs mil ris por dia. Sim, foliou com velho Arnaldo, acompanhou a sua toada. Temporada que no esquece nunca mais, S. Sebastio o santo dos vaqueiros, os folies deste santo tratados como gente grande. Tenrio era da famlia de Santo Ivo. Pobre, sem os poderes, junto a Deus, do Divino, do S. Sebastio e da Nossa Senhora, Santo Ivo, o santo de quem se tornou folio, a quem entregava a sua misria, o seu destino, pedia o julgamento de suas culpas e a sorte, no outro mundo, de sua companheira e a filha. Via a comisso da Cabea andando pelos campos, remando pelos rios. A ponta da bandeira enfeitada de pena de gara e raja-rabo de camaleo. Manuel Rodrigues tirava da bata a toalha que tinha no centro o desenho da Cabea e forrava a mesa em torno da qual e perante Santo Ivo (a Cabea pesava como se fosse o corpo inteiro) podiam cantar a folia.

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Entre os sujos e tristes se destacava Tenrio, braos respingados de lama e a aflio da voz. A toada da folia era o seu mundo. Ali a perda do stio, o desgosto pela mulher e pela filha se enchiam de um pungente ardor: Em nome do Senhor Se levanta um resplendor... Tom de viola, cadncia de tambor, o reque-reque como voz de sapo no acompanhamento. Manuel Rodrigues batia o tambor com ar sonolento e os folies erguiam, humildemente, as vozes de lamentao e splica, para que todos os coraes ficassem dominados. Cantavam junto aos balces do comrcio, entre [170] alquei|res de farinha, mos de milho, mantas de peixe seco, couros de boi sangrando nas balanas, vaqueiros e pescadores fedendo a curral, a tarrafa e a maresia. Livrai-nos da peste... Cho... ra... ra... Os caboclos, mais atentos folia que os comerciantes, iam saindo logrados, ao som da reza em louvor do Santo Ivo, no peso do sal, na medida do tabaco, no metro da alfacinha. A folia consolava o mundo da fome, da peste e das lgrimas, lacraus trazendo a morte a mandado de inimigos, anjos roxos nas esteiras, o suor e o sangue das parturientes que se despedaavam em gritos, o leo do Santssimo na boca dos moribundos. Meninos com febre, rodelas de anta e uxi no pescoo contra o quebranto, espiavam aquelas dores e mortes, os olhos crescidos, engelhados pelo choro, nos jiraus onde, entre as plantas, corriam as formigas e brotavam cogumelos. A luz da vela descobriu nos rostos o medo, tristeza de geraes, sombras de pranto, crispaes de soluos.

Devotas, vamos rezar. Devoras, vamos rezar. Cheguem todos de joelho. Fazendo o pelo sinal. Aquelas vozes subiam do fundo do rio, dos charcos e casebres, dos seios secos, dos ventres gastos, das bocas sem dentes, do atoleiro onde morrem os bezerros esquecidos e os velhos cavalos. Subiam dos peitos como de poos fundos e de fundas feridas, num desespero e numa agonia que s os folies, os desgraados, os podres podiam sentir. A tarde debruava-se nas rvores ao redor do barraco, espiando aquela reza arrastada, montona, subterrnea. Com Santo Ivo, Tenrio levava duas mudas de roupa, atravessava balcedos, tabocais, malhadas de gado brabo, ora carregando os estandartes, o tambor, ora a Cabea. Manuel Rodrigues, mestre sala, conduzia a bata das esmolas. Ao chegarem a uma fazenda era possvel haver carne ou bois de montaria que os [171] le|vassem outra fazenda onde comer. Assim percorriam os campos. Velho Arnaldo, lembrava-se bem, na viagem de S. Sebastio trazia a bata do dinheiro do santo presa ao cs da ilharga, na cinta, a chave pendente no interior da blusa de onde nunca retirava. Quando queria abrir a bata desatava esta da cinta e trazia ao alcance da chave. As ordens de gado eram guardadas num saco dentro do ba. Velho Arnaldo carregava a imagem sob o chapu de sol pelos campos. S. Sebastio, se festeja em janeiro, gosta de andar sob a chuva, dizem os folies que comem aguaceiro pelos descampados. E a fome? E as casas que nem uma xicrinha de caf podiam oferecer? Tenrio viveu os seus grandes instantes quando as bandeiras se encontraram nos campos do Arari. A de Nossa Senhora da Conceio no girava, O mestre-sala recomendava ao porta-bandeira sustentasse bem alto a flmula, dominando as outras bandeiras de santos que se abaixavam

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em sinal de obedincia e louvor a Nossa Senhora, porque Nossa Senhora era a padroeira, a dona dos campos do Arari. A do Divino era de sangue, o sangue do Cristo, das feridas do povo, vermelha. S ao Divino a bandeira da Padroeira se curvava, reverente. O Divino a imagem do Pai do Cu. Santo Ivo andava o Arari inteiro, atravessava a baia, surgindo em Abaet onde dava religio em troca de cachaa e mel puxa-puxa. Os folies sacudiam o pandeiro, raspavam o requereque, desenrolavam a bandeira. Tenrio tamboreava bonito e s havia um sentimento de folia mais triste que a de Santo Ivo, era a do Divino Esprito Santo: sempre lhe recordava a morte de seu amigo Manuel Jacar num quarto onde havia uma vela, um cachorro e o ronco do moribundo. Subiam nas enchentes, acordavam os stios, esperavam mar, caminhando pelos rios entre festas e lutos. As fazendas disputavam a dormida do santo. Quando havia casa farta, depois da bia (folio: comilo) a ladainha, seguindo-se a folia, depois da folia o isguete, o danar afavado dos stios. Entrava pela noite, vinha a madrugada, o sol na cabea dos folies, rezavam a folia da despedida. Bom passar a noite em casa farta, se podia comer, por isso as folias eram bem puxadas, tambor batendo na f e no amargor dos homens e viola adoando o som do tambor. [172] Viva quem serviu a meu, Quem deu gua ao falua. Deus lhe d o reino da glria, E o cu por salvao. Quanto lugar os esperava com o defunto no copiar, a criana agonizando, a subscrio para o enterro que saa em canoada pelo rio, o choro silencioso das mulheres no resguardo ainda do parto. Tenrio se lembrou: Missunga prometeu um altar para Santo Ivo em Felicidade. Uma capela. Quem dera Santo Ivo num altar ao lado da Senhora da Con-

ceio. Santo nasceu para morar na igreja. A prova era que Nossa Senhora no saa de seu altar. Os santos nunca deveriam ser retirados de seus lugares, levados pelos homens para errar pelo mundo. Nasceram para ter vela e reza dentro de suas casas. Quando se afastavam era por prpria vontade como as Nossas Senhoras de Cachoeira e Ponta de Pedras. Certas noites, a santa de Ponta de Pedras descia de seu altar, deixava o manto entre os castiais, abria um caminho no mato e partia para a praia da Mangabeira onde fora erguida a sua primeira igreja. Andava pela praia enchendo as camboas de peixe e camaro, os matapis ajudando os pescadores. Era a saudade de sua igreja velha, das boas mangabas leitosas, dos pescadores sem mancha no corao, da reza vagarosa daqueles caboclos velhos que rezavam com a voz da baa no mau tempo. Nossa Senhora ia ver o cemitrio onde os velhos devotos e rezadores dormiam sob tajazeiros e espinhos, acreditando no cu. Talvez ouvisse as suas vozes, os tambores, as violas, todo o infinito e surdo lamento da ladainha dos mortos. Nossa Senhora voltava ao clarear da madrugada, seus ps salpicavam luz na areia do caminho. Pela manha as velhas iam ao altar e estacavam surpreendidas. Viam os ps da santa cheios de areia e midos ainda do sereno da madrugada. Tenrio acreditava que Santo Ivo fugira para retornar sua igreja, sabe l onde, distante, desconhecido oratrio. Ainda que sua mulher o tivesse levado, certamente o santo conseguira abrir a bata e atravessar o rio, andando pelo fundo como paj sacaca. [173] Tenrio acreditava nas histrias da santa que as velhas sabiam contar porta da igreja, noite nas esteiras dentro das barracas tempo das grandes chuvas. Ningum podia duvidar daquilo que s os santos sabiam fazer. Nem os grados da terra poderiam descrer dessas histrias. Coronel Coutinho, um grado, um branco, quando chegava o Divino na fazenda, carregava a Coroa, colocava-a no oratrio cheio de velhas imagens, aucenas e rosas. Como o povo, beijava as fitas, benzia-se e ouvia, de cabea baixa, como um pecador,

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a folia do Divino. Temia o castigo do Divino. Sabia muito bem o que acontecera com Z Feio. Este no quis dar agasalho aos folies do Divino. Viu-os de longe no rumo de sua fazenda, no teve dvida, gritou: No sustento vagabundos em minha casa. Fechou o rancho, a casa grande, soltou os vaqueiros para os campos. Mal havia percorrido um quarto de lgua, viu a casa, o rancho, os currais, fumaando. Z Feio ps as mos na cabea, correu para o incndio como um doido. S encontrou cinza e carvo, fumegando. Foi a febre matando o gado, papeira nos bezerros, cavalo com quebra bunda, o fazendeiro deixou crescer uma barba de amaldioado. Nasceu-lhe um dente bem no cu da boca e disso morreu. Coronel Coutinho exclamava: No quero complicaes com os santos. Dava ordens para sangrar reses, assinalava bois em nome do Divino. Contava o caso: o primo Guilherme, por causa de uma noite de febre em que viu a morte na fazenda, deu um boi ao santo. Quando vieram buscar o presente, Primo Guilherme olhou na manada o boi prometido e oferecido, lustroso de gordo, corpulento e manso como boi de santo. Achou melhor escolher outro boi menos rolio e menos bonito para embarcar. Assim que o barco desatracou da caiara, o pessoal viu foi um boi grande e ara surgir dos campos, desce a beirada, mete-se ngua e nada com fria atrs da embarcao. Ento o piloto dobrou o leme e gritou: Major Guilherme, o boi esse. Ningum engana o santo. Coronel Coutinho queria a sua fortuna abenoada pelo Divino, mandava Santa Luzia em procisso abenoar os currais. Todo [174] santo que aparecesse. Tenrio ouviu, uma vez, o branco dizer para Manuel Rodrigues no Alegre: Quero o meu gado na graa de Deus. Os foguetes espocaram no ar, os meninos corriam para o trapiche, as moas desceram a escada. Tenrio viu na dobra do estiro a bandeira branca, tinha no centro a imagem da santa toda enfeitada de

fitas, um ramo de flores na ponta do mastro, girando. Ao ritmo dos remos no sol, as montarias alinharam-se para encontrar a embarcao. Tenrio observou que o folio no sabia girar muito bem o estandarte da santa. Sorriu ao recordar as vezes em que enfeitara o estandarte de Santo Ivo e o agitava com todo garbo e sustncia no meio do rio. Os folies da Coroa deviam voltar orgulhosos, por fora traziam folias novas. O tambor batia frouxo, faltava aquece-lo. O povo engrossava o trapiche. Os menino corriam atrs de rabo do foguete. A Coroa envolta numa larga toalha branca surgiu nas mos do velho Arnaldo que a ergueu rica de fitas e flores e o arco-ris era o caminho que a trouxesse de to longe para deix-la no meio do povo. Tenrio experimentou certa inveja de velho Arnaldo, naquela hora, como ele sabia erguer a Coroa para os olhos de todo o mundo, sempre pagando o que Nossa Senhora fez por ele, quando o tirou do abrao do sucuriju no fundo dgua. Tinha a voz parada, palavra chocando na boca, um poder de devoo que s os pajs podiam ter quando atuados. Tocado pela cachaa, o velho Arnaldo tirava umas cantigas de santo, mais pareciam do caruana. Sabia contar, como nem as velhas, o passeio da santa em Mangabeira. Tivera um encontro com ela no meio do caminho, ficara sem fala, sem movimento, amparado a uma rvore. Manoel Vilar vinha frente dos folies. Era quem ia a Belm contratar o padre, enfeitava o arraial e organizava os leiles. Como Rafael no pudera ir naquele ano, Manoel Vilar o substitura na comisso. Trazia a viola a tiracolo, enlaava de fitas, um guardachuva no brao. Tenrio coou a barriga, na verdade tinha fome, havia de arranjar, antes de tudo, quem lhe pagasse um gole. Os folies, certamente, voltavam bem bebidos, com molhos de tabaco, cigarros, [175] peixe e ovos de marreca. Teriam passado em Santana onde seu Serafim os esperava com uma festa anunciada com muita antecedncia, quando os folies bebiam ainda, pelos currais de Cachoeira, a bacuba de leite no meio dos vaqueiros antes da folia da

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alvorada. Desejou estar ao lado de Manoel Vilar, tomar o tambor e bater com o seu tom, o tom de Santo Ivo. Tinha ainda os testculos inchados, a ferida mal sarada lhe doa. A embarcao encostou na escada do trapiche. Velho Arnaldo saltou com a Coroa. As moas avanaram para apanh-la. Rafael, trazendo Guta pela mo, gritou: quem levava a Coroa era a sua afilhada. E uma promessa antiga, dela. As moas recuaram, desapontadas. Tenrio intimamente aplaudiu e se admirou ao ver pela primeira vez que eram to escuros os olhos de Guta, os braos dela se estenderam, morenos, uma toalha os envolveu. Tenrio lembrou-se, ento, de Orminda quando levara Santo Ivo para a igreja, a sua voz no coro, via-lhe o rosto em sangue, os braos em sangue, e a me de Orminda em lgrimas lhe dizendo no Campinho: Por que deixaram minha filha ir embora assim como estava? Por que no me trouxeram ela? A Coroa no colo de Guta veio vindo, o arco-ris pousou nos cabelos da moa. Os sinos tocavam. O povo encaminhou-se para o largo da Matriz. J porta da igreja, Rafael esperava. Era quem ia colocar a Coroa na cabea da santa no altar. Vendo as salvas de prata, bas da santa, sacolas, a qualidade do tambor, Tenrio considerou quanto eram pobres os folies de Santo Ivo. Encostado a um poste, Ciloca, o leproso, sempre alisando a cabeleira, olhava a procisso passar. Guta ao v-lo sentiu um sbito dio, o acusava por tudo que havia acontecido em Felicidade, chegou mais ao peito a Coroa, ajeitou as fitas que caam de seus braos, apressou o andar. No mesmo instante imaginou-se noiva, frente do cortejo, rumo da igreja. Oh tolice, refletiu. Com aquela crescente aflio, aqueles pensamentos, estaria em risco de tropear e cair com a Coroa. Chegou calada da igreja, deu com Tenrio que pedia a Rafael:

Queria que tu me deixasse ao menos entrar com a Coroa. [176] Logo que eu entre te entrego. Tu deixa, ei Rafael? Guta no deu tempo para Rafael responder. A procisso se deteve. Colocou a Coroa nos braos de Tenrio que os vestidos das moas faziam mais sujo, mais velho, mais infeliz. A rica e bela Coroa brilhou nas encardidas mos do pobre diabo, as fitas se misturavam com os trapos, cobriam-lhe o peito roto da camisa, a toalha derramava-se pelos braos. Por um momento ele se viu aturdido, vacilante, algumas moas resmungaram protestos, a ferida parecia sangrar, doendo-lhe mais agudamente. Guta puxou-lhe os restos de manga da camisa, pegou-o pelo brao troando mentalmente de si mesma: o meu noivo, e disse sorrindo: Que lhe falta para entrar na igreja, homem de Deus? De volta do largo, confuso com o que vira, Missunga decide recolher-se, quela hora mesmo, ao Paricatuba. J no trapiche da loja viu com surpresa D. Ermelinda no banheiro de mai, pronta para o banho no rio. No havia dvida, estava sua madrasta, acabava morando na casa da vila, fazendo a festa de Nossa Senhora do Rosrio na Matriz. Desceu a escada, tomou um casco, resolveu ir sozinho para Paricatuba. Ouviu a voz de Ermelinda: Mas que cabea a sua de ir agora. Por que no chamou Janoca para virar o motor? Ora, veja. Remar num casco e a bem dizer de noite. Missunga deu a primeira remada com raiva. O casco avanou para o meio do rio. Os sinos tocavam. Ermelinda no banho tinha o vagar e a delcia de uma pata no mato. Soube ao chegar a Paricatuba que Alade se mudara para a barraca da tia. Teria falado com nh Clara? No, ele mesmo falaria. Foi a p, caminhando, com o pensamento em Tenrio. Procurou ocultar-se naquela tarde aos olhos da Guta. Teria Felicidade nos encontros com Guta, ali, sim, havia plantaes viosas, a casa de mquinas fumegando e apitando, os trabalhadores felizes voltando do

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trabalho, a lua saindo da caixa de fsforos, o sonho que Mariana lhe dava. Sentiu por isso uma inesperada pena de Alade. Despertou bem cedo, se lembrou que necessitava mandar [177] cha|mar Benedito no mato. Procurou os empregados, gritou pela nova empregada de D. Ermelinda, apelou para os cachorros. Partiu em busca de Alade. Encontrou-a debruada no parapeito de miriti da barraquinha. Falou da chegada da padroeira, da imagem do Rosrio, perguntou se queria ir vila para ver a nova santa, indagou se tinha noticia de Benedito. Ele precisava aparecer. O jri havia de absolv-lo de qualquer forma. Voc no responde? Comeu abio, em? A boca pregada? Voc quer que eu v na vila pra apanhar? Ein? Falou com a sua, l? No estou entendendo, sua boba. Diz que voc no sai de Campinho grudado nela. Missunga meteu os dedos nas talas de miriti. Alade se encostou na parede. Tinha um cheiro de maracuj nas mos e na boca. Chupaste maracuj? Chupei e sim... no entorte a conversa.. Me conte de sua paixo com aquela sua belezinha... At me mete uma pena de saber que a pobre vai ter a mesma sorte... E olhe, no fale com nh Clara. Lhe peo pelo amor da finada sua me. Me deixe com meu filho. Eu crio. Alade falava, cabisbaixa, quase sem queixa, nas suas palavras um manso ressentimento, seus olhos desciam pela parede de miriti seguindo uma aranha. Com conversas, no, Alade? Ela ergueu subitamente os olhos como para dar uma resposta que h tempos preparara. Se voltou suspendendo a ala da camisa. Se voc pudesse, Alade, ia por mim trazer Benedito do es-

conderijo. Voc vai? Ela foi revirar a saia estendida sobre uns arbustos e ajeitar, no velho e arriado jirau das plantas de sua tia, uma casca de ovo espetada no paneiro de arruda. Alade, eu te explico... Vou falar com nh Clara. Ela no respondeu, ficou perto do jirau, o sol cobria-a de uma inesperada beleza, as ancas largas, o corpo ainda no deformado [178] na saia transparente. Missunga aproximou-se dela, tomou-lhe as mos cheirando a maracuj, beijou-lhe os olhos, o que ela achou muito esquisito, passou a mo pelos cabelos dela, voltou a falar em nh Clara. Escorregava-se naquele corpo como nos paus lisos de lodo. Sim, Alade era lodo das guas vivas, lama gulosa. E era o que restava de Felicidade, das plantaes de Tenrio, Marcelino e dos seus protegidos. O remdio mesmo seria desaparecer daqueles matos rumo da cidade, levar Guta. Ouvira seu pai dizer: Que ele gaste na cidade, acho razovel, humano. Mas com essa caboclada, com esses bichos daqui nas minhas terras?

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[179] Gritou pelos ces, carregou a espingarda, marginou o igarap e caminhou rapidamente at aproximar-se de uns tucumzeiros que ocultavam a barraca. O de casa! Nh Clara! A esse grito, uma velha gorda surgiu porta, amassando tabaco na mo e, logo surpreendida, recuou para desarmar a rede na salazinha. O visitante, ao entrar, lhe faltou nimo para confessar o motivo de sua visita. Nas paredes de miriti, enodoadas de fumaa, colavam-se fotografias de jornais e revistas. O couraado Minas Gerais. Um Cristo carregando a cruz. A estampa de S. Sebastio. Uma aldeia da

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Europa sob a neve. A criana, prmio de robustez infantil. Principiou a conversa sobre assuntos de caa. Os ces l fora ladravam. A espingarda encostada parede. Recordou o desaparecimento de Santo Ivo, lhe perguntou pelas benzeduras que ela sabia fazer, pelo ponto de farinha no forno em que era mestra tambm, na mulher virando porco, no caador se transformando em catitu, histrias que ela contava na casa de seu Felipe. Caiu sobre o seu regresso um fim de tarde sem pssaros nem cigarras, pesada de solido. Adiante, vagarosos e tristes, sob o bafo da lama que vinha da vazante, os cachorros caminhavam. Chegou barraca da tia da Alade. Saiu pro igarap. Com uma dor... Dor? A velha tia coou o peito e confidente fez um ar de quem ralhava: [180] Escute... Ela, a modo que bebeu uma misturada... Corra atrs dela. E a senhora, por que no foi atrs? Quando vi o senhor achei melhor o Sr. ir. Ela atendia... Talvez nem seja... Missunga apressou o andar, voltou-se, de repente, exclamando: V buscar nh Clara. Ela, na certa, bebeu. E eu no queria que... Chame nh Clara. Gritou mais ao longe: Depressa! E adiante, entre as seringueiras, j aflito: Correndo, D. Geralda! Quase noite, o cho, a mata cediam aos ps. Corria. As pernas pesavam. Atrs os ces saltavam as moitas. Cheiro de razes podres, sementes, savas pisadas, da selva em fecundao. Alade. Alade. Velha idiota. Para que, Alade, a beberagem. Louca. Te levarei para o xadrez, idiota, se mataste o meu filho. Gritarei, espremerei teus seios, teu ventre, te atirarei ngua. No fundo, o doido sou eu. Quem acreditar nas minhas complicaes? Mas a velha era a culpada. Ela

mesma deu a beberagem. Dentre as folhas de samambaias, Alade saltava. Via-a montada no cajueiro: Sou tua irmgaua, sou tua irmgaua! Via-a uma tarde na esteira, o corpo na sombra e saltando da camisa os seios banhados na luz que escorria de uma fresta do teto de palhas, o espanto que ela teve quando assim despertou, as mos cobrindo os dourados seios, as mesmas mos cobrindo a noite crespa de onde surgir o filho, o filho que lembrar o grito de Toms do Mato, as feridas de Orminda, o olhar de Marcelino morto, os trabalhadores expulsos batendo os remos nos troncos encalhados no igarap. Um filho. E Guta? Tropeou nuns cips. Os ces que haviam se distanciado voltaram inquietos. Guta, beira do poo, era tambm a noite mida e oculta sob as mo obstinadas. Missunga deteve-se, ouviu um gemido abafado. Os ces rodearam, curiosos e vidos o corpo de Alade cado ao p de um acapuzeiro junto dgua. Carregou-a nos braos. Me deixe que eu ando. [181] Teimou carreg-la, sentiu, com uma contida nusea, os dedos manchados de sangue. Lhe deu uma estranha energia, decidiu lev-la nos braos at que, esfalfado, pde deix-la na esteira. Nh Clara j esperava. As rvores balanavam na noite macia. Havia ninhos nos galhos. As sementes estalavam. A terra o ventre inesgotvel, parindo sempre. Missunga apanhou a espingarda, caminhou longe e atirou nas rvores, nos ninhos, com os ces ladrando. Sentou-se, exausto, num tronco partido. Exausto. Felizmente a noite clareava, era a lua. Voltou para ouvir ainda os gritos de Alade. Viu vagamente ainda qualquer coisa viscosa sangrando na vazante. Lembrara-se de um bezerro morto na fazenda. Era o seu lixo, o fruto podre das samambaias. E o cheiro, os gemidos, aquela noite aberta em sangue e a nusea. Onde estavam as mos que no a cobriam mais?

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Alade gritando. Se os gritos parassem talvez fosse a morte. Dor, dor. A dor de que misteriosamente as velhas caboclas falavam: Isabel com uma dor. Uma dor que vem tomando conta do corpo. Uma dor que s Deus. Os ces haviam desaparecido. Alade, viva ainda, sangrando como caa ferida. Sob o luar as rvores se dissolviam, os gritos adquiriam mais corpo do que os troncos e se espedaavam contra a noite. Um vago cheiro de alfazema no sopro da noite sobre as folhagens. Sim, os gritos cessaram. As rvores readquiriam corpo e Missunga sentiu falta de cigarros, oh, nenhuma piedade por Alade! S a lstima de si mesmo, o medo de espiar pela porta para saber o que acontecera. Na porta algum surgiu, como espreita, e ele chamou. Era a velha, a velha Geralda, esfregando as mos, meio apressada, avanou para ele e disse baixo. Se aquietou. [182] Dezembro. Ainda queimavam roados. Fim de safra nos aaizais. Rafael preparava o prespio de Natal no Campinho e Guta o ajudava. Menino Deus no colo de Guta nem ao menos se mexia. As moas rodeavam-na. Vamos, Virgem Santa, d uma palmada na bunda deste guto pra elezinho chorar. Queria ver o Menino Deus choro. Malina com ele, sua boba... Era Antnia que falava e as moas: Mas que isso, Antnia, ests crente, ento? Guta repreendia: Se esqueceram que h inferno... Pensa que presta? As moas riam. Menino Deus permanecia, como sempre, muito quieto, olhar aceso, nos braos de sua ama que o vestia e o enfeitava. Antnia insistia: Quando o meu Esprito Santo pra me dar o meu Menino Jesus? Que pena Manoel Rodrigues ter ido... Os risos mais altos. Guta advertiu:

Olhem, era assim que Orminda brincava. Ela dizia o mesmo, essa Antnia doida... Padrinho Rafael estava ali para repreender, embora soltasse, de vez em quando, a sua risada, os dentes luzindo. noitinha, as moas debandaram e deixaram o prespio quase pronto. O cu e a estrela, Rafael deixava para armar noutro dia. O devoto de Menino Deus considerou a sua obra, armou a sua rede e acendeu a lamparina. Deixou-a a acesa durante a noite, numa casa sem luz os [183] san|tos no velam. Sim, que uma noite ouvira: Rafael, durma sempre com luz. Nunca mais durma no escuro. Ouviu nitidamente, a voz descia da escurido da noite, do silncio e dos cajueiros l fora. Lamparina toda noite fumegando, os santos velavam. Podia faltar o tosto para a farinha, para o querosene, no. Na tarde seguinte, Guta veio sozinha espalhar folhas e ver o efeito do prespio que Rafael armava com aquele seu devoto e alegre vagar. Varreu o terreiro, cobriu com areia de praia e folhas de mangueira o cho da barraca. Limpou as razes dos cajueiros que, a flor da terra, eram os bancos do povo. noite, depois que Rafael voltasse da igreja onde havia novena da padroeira rezariam ladainha e cantariam folia; folies de Nossa Senhora das Dores do Camar haviam chegado vila, queriam ver e louvar o prespio. Guta assusta-se abandona o paneiro de folhas porta da barraca, tenta esconder-se... Que lhe deu na cabea, murmurou. Rafael fora encher gua no poo dentro do mato. Que lhe deu na cabea... No queria mais ver esse homem... Missunga apanhou-a pelo brao. Via-lhe os ps descalos, a areia nas mos. Fugindo, no? Que lhe deu na cabea de aparecer esta hora? V embora, pelo amor de Deus.

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A voz de Rafael vinha vindo no mato prximo. Missunga s teve tempo de beijar os cabelos de Guta defronte do prespio. Ela jogou-lhe areia, folhas, ficou a um canto, afogueada, o suor no rosto. Alguns meninos vinham correndo pela estrada, aos gritos. Missunga saiu apressadamente da barraca e os moleques j batiam no tambor, no reque-reque, na viola, mexendo com as fitas do Menino. Meninos saiam, meninos safados. Guta nem parece que esta ai pra ver... Ela, confusa, quis apanhar os potes dgua que Rafael trazia. Este riu baixo, disse: Mea afilhada, muito cuidado... Veja com quem est lidando, mea afilhada, mea afilhada... [184] Quase bbado, falando na falta dos camares, chegava da vila o velho Calafate. Guta, ento, espalhou o resto da areia e das folhas em silncio e foi para a sua barraca, preparou o jantar do pai, deu roupa aos irmos, voltou do banho para ficar ao p do poo ouvindo os sinos que tocavam novena. Festa de Nossa Senhora da Conceio. Como tinha chegado to depressa, diferente e to dolorosa para ela. Que seria de sua sorte. Nossa Senhora? A voz de seu padrinho subia do poo escuro e se confundia com a voz dos sinos. No caminho, frente da sua casa, alegres moas a chamavam. Missunga atravessou o largo da Matriz no coreto o mestre da banda batia no bumbo chamando os msicos soube que o seu pai mandara fazer um balo, alguns estudantes de Belm o convidaram para a cerveja. Viu o mestre distribuir as partituras da msica, dar o sinal, uma valsa desceu para o largo e o olhar de Missunga deu com Alade bebendo mingau de milho num dos bancos entre velhas caboclas. Tinha um embrulho de doces no leno. Bebia devagar como sem gosto. O leilo comeava. Os folies partiam para o Campinho. E o balo? Alade, por fora, queria ver o balo. Como estava sumida entre as velhas ca-

boclas, com aquele mingau vagaroso e o tmido embrulho de doces. Gostaria de cerveja? Desejaria arrematar um po-de-l, uma galinha assada para comer de volta na montaria? Demorava a ponta da colher na boca, ouvindo e vendo os msicos e as senhoras que se acercavam da mesa de leilo. Capito Lafaiete, tesoureiro da festa, examinava a lista dos arrematantes. Missunga enterneceu-se, a tristeza que sentia em Alade e nele mesmo talvez viesse da cerveja. Poderia sentar no banco ao lado dela, indagar que tal o mingau, e recordar-lhe a cena que no esquece. A cena em que ela lhe diz imprevistamente: Tinha a sua cara... Ele... Ele? Quando... Se ainda era um feto. Feto? Diga de novo? Credo... Sim, uma coisa de nada. Era, era a sua cara. [185] Cale a boca. Missunga fitou-a, srio. Erguendo-se, bateu o chapu de carnaba nos joelhos, alm do nojo, um sbito desespero. Olhou pela janela da barraca. Perto, no jirau, forjam roseiras. Cascas de ovo espetadas nas hastes. O silncio trazia do mato um ofego abafado. O diabo do pica-pau martelava o silncio. Aquela coisa naturalmente viscosa sangrando. Naquela noite as rvores avanaram para ele: Somos me, no temos vergonha. At as cobras eram mes. E aquela cabocla a lhe dizer que o mostrengo tinha a cara dele. E por que no enterraste Alade? (Pergunta estpida, refletiu logo.) Porque no foi em voc... Ela cuspiu a frase inesperada: Hum! mar levou, peixe comeu. Ele fez um movimento de surpresa e dio, quis erguer-se. Mas esse mesmo movimento o acusava. No fundo, a frase era dele e no dela. Viu-a de cabea baixa, tentando tirar um espinho do dedo.

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No esperava por uma resposta dessa, Alade. De quem a culpa? Minha? Deus sabe... Minha, de ningum mais... Por que falou assim, Alade! Por que uma resposta daquela? Alade continuando a catucar no espinho, tranqila e sem lgrimas, principiou a falar lentamente: A culpa foi minha. Podia criar meu filho. Era meu, estava na mea barriga. Da feita que pegou devia nascer. Pouco me incomodava que ningum olhasse pra ele, tivesse vergonha. Fez pausa. O espinho sangrou-lhe o dedo que ela chupou. A vergonha era minha. Eu sei que voc no queria ter filho comigo. Eu podia lhe dar um bicho, no era? Quem sabe se no vai dizer se rir de mim pros outros, dizendo que foi boto que me emprenhou? Deixe disso, Alade. Podias morrer de parto. Quem sabe s se o filho, o meu filho, no seria a tua desgraa? Alade ergueu os olhos, o dedo deixara de sangrar, respondeu quase sem voz: [186] Puxa, homem, mais maior do que esta? Missunga em silncio olhou-a ainda mais surpreendido, tirou o leno para tentar amarrar-lhe o dedito. Ento, sua tola, est mesmo na desgraa? o espinho no dedo, em, em? Tentava faz-la rir, abraou-a e ela se deu toda ao abrao, fatigada, arrependida, perguntou-lhe se queria o aa. No, Alade. Ela ficou inerte nos seus braos. Missunga sentiu-lhe a respirao quente, a testa cor de barro cozendo, o olhar de sono. Alade era uma criatura humana, no era? Uma pergunta que se fez to obstinada naquele momento. Ela, de sbito, se afastou, ficou meio curvada, os cabelos em desalinho.

Sua tia deu o dinheiro a nh Clara? Queria que ela ficasse com o dinheiro alheio? Missunga voltou a abra-la, abraou-a muito que ela gemeu tentando escapar-se. Uma pena, um desejo de a tratar como tratava Guta, como se tratava a si mesmo. Alade, s uma cabocla do peito. Pois bem, vamos fazer um filho, ouviu? Missunga lhe deu um beijo no pescoo. No largo, naquela noite via Alade num banco, com um triste mingau de milho e silenciosas caboclas ao lado que olhavam as senhoras brancas sentadas ao p da mesa de leilo. Os estudantes j bbados gritavam. Carvalho apregoava segredos de amor e galinha de forno. Amanha, Alade estaria tirando peixe do cacuri. No Calilo comprando querosene e ouvindo graas do srio. Os estudantes gritavam pelo baldo e queriam que a banda terminasse a funo do coreto para o baile das Almeidas comear. Carval apregoava, os estudantes bebiam e no Campinho rezavam. Calilo e Hemetrio aproveitavam a noite para cavarem a terra beira do rio. Os jornais de Belm contavam de potes cheios de ouro achados na Estrada de Ferro. Calilo gesticulava. Ouro, ouro surgindo em toda pane. Em Marajoau as noites passavam e o ouro dos frades no aparecia. Que encanto era esse, que fora [187] havia no fundo da terra que prendia os potes de ouro em Marajoau? Se achasse o ouro, Nossa Senhora teria na sua igreja torre para os sinos. Bolas, Hemetrio, cova pra enterrar defunto. No tem nada. Seu Calilo, tem. No duvide. Que tem, tem. Aqui foi um cemitrio. A mina t no meio das sepultura. A gente quebra o encanto. Mas, Hemetrio, nem osso mais tem a. S tem terra. Nem fantasma de defunto tem mais.

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Calilo aos poucos se afundava no ouro. No sonho cresceu o corpo de Orminda, o ouro em p derramava-se pelos seios de Orminda, envolveu-lhe os cabelos. Orminda, que desapareceu. Ele a viu mudar os panos sujos de sangue no trapiche aceitando o pacote de algodo, recusando o perfume e o pedido que lhe fizera. Seu corpo era belo, Hemetrio. Era ouro, caboclo. Era encanto que faltava tambm quebrar. E a histria de Orminda subia o trapiche, entrava no barraco e andava com o srio em torno das covas luz do candeeiro e o calor da ganncia desesperada que se fundia em sonho, sonho s. Hemetrio, como coveiro, parecia sepultar a lenda do ouro que o rio contava. Orminda era mulher para andar nas histrias, ficar nas modinhas, na beira dos trapiches, na lembrana dos homens, pensava o srio. Lenda que no se podia esquecer mais. Tambm ouvira uma vez um canoeiro soltar no trapiche a mesma confisso surpreendente e misteriosa: Orminda boa que s bota. Da feita que um infeliz cai naquele bicho s arrancando fora. Era a confirmao do que dissera Hemetrio que continuava, l no fundo, cavando. A terra bebia-lhe o suor como se fosse matar naquela noite quente a sede das razes e das ossadas. Calilo viu o balo vermelho. Hemetrio, onde enterraram esse ouro? Mandar Rafael rezar no barraco uma longa ladainha para as almas. O balo era o corpo de Orminda, j bem alto, levando o ouro dos monos.

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[188] Guta, diante do prespio: Est mesmo um brinco.

Tratou de espalhar a areia, as fitas, as ovelhas vindas de Belm, as pedrinhas brancas apinhadas na Mangabeira, as nuvens de algodo no cu de papel azul onde brilhava a estrela anunciante. Fitou a estrela e cantou baixo se lembrando da pastorinha: Sou a estrela anunciante... Menino Deus nascia de verdade em Ponta de Pedras. Belm de Nazar, no fundo do prespio, era aquela vila marajoara, oferecia ao Menino: toalhas, brinquedos, um barco de miriti, uma fronha azul, a touca de cetim, paneiros de plantas, criaes, o macaquinho de cheiro, a vaca manina presa no quintal do Coletor, doces e almofadas para o leilo. Guta trouxe do terreiro os paneiros grandes cheios de folhas de mangueira e as espalhou pelo cho que antes molhara para no levantar poeira. Enfeitou com rosas e jasmins o quadro do Sagrado Corao e emoldurou de fitas azuis e brancas as pequenas fotografias da parede: Tio Rafael de palet e chapu de palhinha, suas primas de Belm em grupo de trs, uma tia bem preta, o cabeo em bands, um padre, amigos, senhores de Belm, o aprendiz de marinheiro, o filho soldado de nh Felismina e o retratinho apagado de Guta aos quinze anos. Ela deu com a mocinha de cara indecisa, olhar tmido e compreendeu quanto estava diferente dela de rosto e de alma. O que restava verdadeiramente dela se apagava naquela fotografiazinha e ficou, algum momento, cabisbaixa, to desiludida de si mesma que desejou fugir. Beijaria as fitas do prespio, no seio as suas cartas, furtaria o retrato da menina, sumiria. [189] Dirigiu-se ao copiar estreito e aberto para os limoeiros, coqueiros e tucumzeiros que desciam para o igarap. Sentou-se junto mesa onde sempre os folies jantavam e conversavam sobre as suas viagens. Na parede um velho espelho quebrado que ela apanhou e limpou com o peito da blusa. Mirou-se muito sria, examinando os olhos, os cantos da boca, se alguma expresso de culpa ou mentira lhe marcava a face morena e limpa. No sabia explicar porque at pouco tempo quando se mirava no espelho, s descobria no rosto,

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vagamente, a distrao pela vida, a lembrana de um ou mais pessoas que a achavam bonita. Agora o espelho lhe apontava certas linhas do rosto, certas sombras e culpas, todo um rosto que atravessasse uma fogueira, partido em trs faces diferentes. Apenas seus cabelos no mudavam, calmos, e teve medo de pux-los ou ajeit-los diante do espelho para que lhe no completassem a nova imagem que traava de si mesma. tarde, um susto: a visita do Coronel Coutinho ao prespio, acompanhado de uns brancos.. Olhou de relance, aquele homem alto lhe parecia to distante, o que se podia chamar um homem rico, dono da vida e dos campos, viajando pelo mundo, falando de cima de sua riqueza e daquele orgulho que vinha por trs do ar acolhedor e bonacho. Tudo aquilo a separou de um sonho brusco, como que de maneira definitiva, de Missunga, e ao fazer um caf aos visitantes chegou a convencer-se mesmo, com indefinido despeito, que no passava de uma criada para servi-los. Coronel no se cansava de falar de seus ces dinamarqueses, to bravios, de Belm. E ela pensava, embora compreendesse o capricho de seu pensamento: esses ces ele os soltaria sobre ela, se um dia fosse queixar-se do filho, ou buscar refgio ao ser expulsa de casa. Um dos visitantes falou a palavra Jerusalm e riu. Jerusalm, repetiu Guta baixo. Era a pastorinha de D. Elvira que nunca mais saiu. D. Elvira ficou paraltica. Filhas de Jerusalm. Que vontade de ser a cigana rica da pastorinha e essa lembrana a levou ao seu tempo de menina, como brilhava o vestido da cigana rica e como era triste o canto da pastora perdida. Rafael, ao avis-la da hora da procisso, passou-lhe a mo pela cabea: Que cara essa mea afilhada? Mgoa? S se sua, padrinho. Olhe o terreiro, que . A mar de povo... No meio do caminho, imvel, a cabeleira luzindo ao sol, Ciloca acendia o cigarro. Uma onda de poeira o cobriu por instantes, um

bando de japiins passou alegremente sobre os cajueiros. Rabo de foguete raspava as folhas do mato e os moleques aos gritos iam apanh-lo rolando entre os galhos partidos. O terreiro comeou a se encher de gente, arraial do Menino: pescadores vindos de Mangabeira, com as mulheres, os filhos e os cachorros, roceiros do Arapin, mariscadores do Jaguaraj, alguns sapatos de dez anos, tortos e ressequidos, apertando os ps grossos e desacostumados. As mesmas roupas pobres, peitos de mies ao sol que as curumins sugavam, aos puxos, como bezerros. As mingauzeiras se abanavam com os largos panos com que cobriam as latas e as panelas fumegantes de mingau, os tabuleiros de arroz doce, cocada e os paneiros de cuias. Guta via Rafael sem sossego e o ajudava nos preparativos, reparando nas moas que chegavam com roupa nova e ramos de jasmins para o prespio. Antnia, de encarnado, os sapatos brancos, aproximou-se dela e segredou-lhe: Vou fazer uma filha com aquele meu beleza, que tu sabe, pra casar com esse nosso menino Deus, mana. Saiu rindo, amarrando os sapatos apertados. A vila inteira ia ver o prespio. Guta se voltou para algum que lhe tocava o ombro e ficou surpreendida. Ainda h pouco se lembrava das Filhas de Jerusalm e ali estava a cigana rica que tanto invejara, a que sempre desejaria ser na pastorinha de D. Elvira. De luto, a saia rua, o rosto encovado e o filho escanchado na ilharga chorando, esfregando as mozinhas esquelticas no sujo ventre opilado. A [ebre de Jaguaraj tirara-lhe o marido. O filho chorava, queria um carneirinho e a estrela do prespio. Os romeiros abriram ala, afastando-se apressadamente, entre sussurros, para deixar entrar Ciloca. O leproso ajoelhou-se diante lo prespio, alisou os cabelos como perto, os jarmins cheiravam! beijou uma a uma as fitas do Menino e voltou-se para s mulheres assustadas e indignadas. No pensem que as fitas do filho de Deus vo ficar

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empestadas. No so fitas do diabo. [191] luz das velas, seu rosto tornara-se mais repelente aos olhos do povo. Permaneceu ajoelhado, surdo ao murmrio geral, esperando pela raiva de Rafael quando chegasse e o visse naquela atitude que nunca entenderia seno como profanadora. Mas ao olhar novamente a estrela anunciante, tudo, enfim, que era o encanto daquela devoo e daquela festa no Campinho, lembrou-se de Sinhazinha que vestia as pastoras de D. Elvira, lhe contava o que o padre lhe perguntava no confessionrio, partia o po-de-l arrematado no largo da Matriz lambendo o papel de seda que o cobria e enfeitava. Quis reavivar, num segundo, aquelas recordaes de sua juventude mais ligadas ao Natal, ao Campinho, s moas que acompanhava na procisso, a banda de msica na qual tentara o clarinete. Aos poucos ia transformando j o seu corao no dispunha mais aquele ato de gracejo hostil a Rafael em sbita contrio, vergonha e horror de si mesmo. Rafael podia chegar a bot-lo da sala, aos gritos. Ergueu-se rpido, deu com o olhar de Guta, fugiu para o terreiro, para a estrada onde a poeira o envolveu com o vento da tarde. Caminhou imaginando seis leprosos com quem faria devoo a S. Cipriano na vila, rezando ladainha, lendo bem alto as receitas e as oraes do santo bruxo. No gostava de S. Lzaro. Um dia haveria de furtar o S. Lzaro da casa de Nafta e atir-lo no poo, aos pedaos. Mandaria construir uma capelinha de palha e cho batido para S. Cipriano. Mal distinguia os gritos de Rafael que queria mudar as fitas do prespio, no permitido pelas velhas. Eram fitas sagradas, no pegavam doena. Guta, para disfarar o que sentia depois do que viu, procurou saber quem partia lenha atrai da barraca para o chocolate dos mordomos. Surpreendeu Antnia escapulindo-se pelos tucumzeiros com o Vicente, o barqueiro, chegado da Contra-Costa. Ambos ficaram de mos dadas balanando, atrs da mangueira. Faziam as

pazes, brigados que estavam quantos meses. Guta viu-os desaparecerem, foguetes espoucaram e de novo a figura do Coronel Coutinho, alto, gracejador e falando dos ces dinamarqueses, fez a moa encostar-se parede da barraca, enxugar os olhos com a manga curta do vestido. Entrou no quarto de Rafael e extenuada caiu na rede. [192] Voltavam as noites em que esperava Missunga beira do poo, atras de sua barraca. Que fez no mundo para ter o castigo daquela amizade? Amizade era a sua palavra de amor, a palavra de seu povo quando ama. Caboclo no conhece o amor pelo nome. Naquele castigo, correu, cega e tonta para os encontros com Missunga. Ele chamava, com terna malcia e gravidade, os encontros com a infncia, sob o olhar de sua me. Falava em D. Branca, recordava cenas e cenas em que brincavam juntos em Paricatuba. Ela via ento naquele homem uma criatura j diferente, se passava para a sua famlia, falava a sua linguagem, invocava o nome da me para ganhar confiana, muitas vezes se tornava quase medroso ao abra-la. Aparecia to simples, to leal, nas calas de menino, abenoado pela me, nas primeiras e muitas noites apenas conversando ou de leve lhe beijando a testa, trmulo, assustado, ora quieto e pensativo, sem abra-la, com a mo em seu ombro. Uma noite, trouxe uma pequena medalha, escapuliu das mos dele e caiu no poo. Depois, bruscamente lhe falando, ofegante, de sua infncia e dos cabelos dela, da boca e das medalhas, dos olhos e das savas, lhe falando com tantos atrevimentos e afagos, palavras e dedos do homem na sombra, lnguas de cobra envenenando-lhe o sangue, deixando-a sem fala. Para acabar to prolongada agonia, o medo e a onda de seus informes pressentimentos, caiu, de madura, nos braos dele, como se tivesse se precipitado no poo. E agora ela e Alade afinal misturadas na mesma sorte que tanto as separava dele. Aquelas cartas metidas na almofada faziam mais fundo o seu abandono. Nelas restava algum vestgio da menina que se perdera, no tivera mais socorro na beira do poo. A menina morrera como a cigana rica. Ele a enterrou no aaizal. As

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razes que vinham em ambos da infncia, de repente secaram, tudo aquilo tinha qualquer coisa de uma praga de Ciloca, de uma receita tirada do livro de S. Cipriano. Guta pensava no vento sobre as palhas da barraca, o cheiro das frutas machucadas, o velho pai e os irmos dormindo. Se naquela hora acordassem, o pulo no poo seria mesmo o seu ltimo gesto. Quando viu Missunga puxar um balde de gua, compreendeu instantaneamente que ele apenas a desejara e a deixaria para sempre com aquele [193] golpe lhe doendo como picada de formiga tocandeira. Teve um sbito e logo contido impulso de se atirar no poo. Repeliu o murcho agrado daquelas mos midas da corda do balde, via-se espancada, suja, pisada como fruta podre, o sangue dela havia de marcar a terra sob o aaizal. Estalavam galhos dentro da noite, talvez os passos de Ciloca a espiar. O vento nos tucumzeiros e no aaizal abafava-lhe os soluos. Agora esta vontade de gritar: No me acham diferente? Repararam que no sou mais de enfeitar o prespio, carregar a imagem da Padroeira, levar o Menino na procisso? Os homens e as velhas sabem quando a moa moa, pelo modo de andar. Todo o mundo j devia ter reparado que ela no andava mais como uma moa. Sentiase, obscuramente, mais mulher, como o ar de terra se meada. Saiu do quarto, j refeita, ao chamado de Rafael. O prespio necessita dela para vigiar o povo que enchia a barraca, o terreiro e as estradas prximas. Via, ento, h quanto tempo no via, a Marta beijar as fitas, ficar um tempo a olhar o prespio, as mos arroxeadas de amassar aa. Quando se afastava do prespio, caiu-lhe desfolhada a flor dos cabelos. Tentou apanh-la, muitas pessoas avanavam para as fitas do Menino e a flor desapareceu pelo cho. Pouco vestgio havia da Marta de seu Nlson e isto em to pouco tempo. A seda velha do vestido, o ar de desleixo e perdio que havia nela, tudo em Marta era amargura, espelho de amargura para Guta. Volta da procisso. Guta carregava a pequena imagem do prespio. No queria carregar, o padrinho chegara a impacientar-se de

tanto insistir. Perto, muito perto, algum de vestido brilhando: seda, lam, cetim? Meu Deus, a Alade... Alade olhou o Menino e a fitou numa sbita raiva com que mordeu o lbio e desviou o olhar sob o temor de que a rival lhe visse as lgrimas e isto a levasse a arrancar a imagem de suas mos. No tremia carregando a imagem? Acreditava, aquela convencida, que carregando o Menino, este lhe poderia dar o branco para marido? Sabia ler, era menos p no cho de que ela, tinha modos [194] de branca, no entanto, que iludida! E de repente compreendeu porque Missunga escrevera aquela carta, que no devia ter escrito. Ah, sabia, no devia ter escrito, ele disse. Ela por certo lera as bobagens dele, se enchera, at lhe metia pena. As letras da carta, vento soprando naquele balo. O balo naquele momento profanava a imagem do Menino Deus. Nesse ponto foi muito bom no ter encontrado ningum que ensinasse a ler. Para qu? Para se encher das bobagens de uma carta, como aquela balo e convencer-se toa como aquela infeliz? Olhou-a, de novo, certa de que perdera o filho por causa dela, e ali estava carregando o filho de Nossa Senhora. A uns vinte passos a procisso parou. Rafael na curva do caminho, que seguia direto para o prespio, avanou para tomar o Menino nos braos. Atrs de Alade, Guta tinha os olhos no vestido brilhoso. Sim, seda. Missunga o comprara, com certeza, no Aguiar onde Antnia tambm comprou. E sua tristeza em que se misturava desespero e vergonha aumentou ao se lembrar de Marta, da flor pisada. Ao seu lado, dando mama ao filho, a Cigana Rica, mascando tabaco e cuspindo grosso. Um cheiro de doce e mingau sob os cajueiros. Um bbado tentava caminhar para a capoeira. Alade no ficava para a folia e a ladainha ganhava a estrada, e Guta sentiu desejos de ao mesmo tempo insult-la e beij-la, Alade era, de qualquer maneira, sua rival, menos infeliz e sem nenhuma culpa. Viu-a bem perto de si,

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sentiu-lhe o ar de menosprezo e raiva, apesar de todo o brilho daquela seda, como estava, coitada, mal pintada e empoada, sapato de pano. Nem bonita como antes acreditava. As lamparinas forradas de papel de cor penduravam-se nos cajueiros. Guta no sentia a mesma doura no mingau da tia Esperana. E a mo, de leve, de Missunga, no brao, e a voz, aquela voz que a perseguia, a envolveu e a dominou: E ento? J viu por onde anda papai e os manos? Nem perguntou por Alade como a si mesma prometera, num desejo de sacrificar-se para sempre contanto que ele amparasse aquela pobre de Paricatuba. Lentas as mingauzeiras enchiam as cuias [195] como numa cerimnia de macumba. Os cajueiros frutificavam aqueles cajus de fogo. Dentro da capoeira acendeu um fogo. Rafael corre para saber o que acontece. Doutor Florncio, o Calafate, alisava, indiferente, a barbicha e coava os ps cheios de terra e frieiras. As rvores pesavam no cu, cobriam o cu e as estrelas piscavam entre os galhos como vaga-lumes. Doutor Florncio, o Calafate, no ouvia ali ao p da capieira o movimento do arraial. Feito um paj, escutava as vozes que subiam os troncos, do oco da terra, dos bichos, dos caminhos perdidos, das guas perdidas na selva. Se lembrava do porquinho que, criava, das duas picotas que agasalhava no canto da cozinha e do galo e a sua famlia de galinhas e frangas midas que se empoleiravam nos galhos da mangueira baixa. Velho Arnaldo, depois da ladainha, foi caxingando, conversar com o seu parente. Com uma caixa de fitas na mo, Carval ergueuse da mesa posta embaixo dum cajueiro e comeou apregoando um p-de-arroz oferecido pela Sra. Ermelinda Soares. Uma mulher gritou, longe, no meio da estrada: Olhem estes diabos, aqui. Me acudam! Guta reconhecia a voz, a voz de Marta e sua mo tremeu na

mo de Missunga que a levava. Outros gritos sucederam-se. O soldado de policia, o Levindo, passava correndo. Comeou a cachorrada, disse Arnaldo que sentiu naquela voz uma semelhana com a voz de Orminda. E completou seu pensamento: todas essas mulheres nessa situao se parecem, seus gritos so iguais. Afinal que fim levou Orminda, que nunca mais se soube... O mundo um poo, meu amigo, um poo. Por causa disso, ando reparando numa coisa. a filha do compadre Amncio... Esses brancos so um inferno. Orminda era uma bonita mulher, tu no achava, em, Arnaldo? Velho Arnaldo confirmou com a cabea. Via-a na pia, berrando quando o padre lhe metia o sal pela boca. Era a melhor voz do coro, cantava to bem no Te Deum... O vento sacudia nos cajueiros as lamparinas vermelhas. Os dois velhos caram em [196] silncio. Os bacurizeiros subiam, suas razes no traziam sua fora de subir do fundo da terra, mas daqueles velhos, sonolentos e cansados coraes.

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[197] Antes de partir para as fazendas, Coronel Coutinho chamou Lafaiete no gabinete da Intendncia. Bem, meu campadre, vamos ver o saldo dos festejos. Tenho que prestar contas no Arcebispado o mais cedo possvel. voc sabe como so os padres por dinheiro. O tesoureiro dos leiles e das esmolas de Nossa Senhora baixou a cabea, alisou nervosamente os joelhos e fungou fundo. Compadre, o que foi ento que voc fez com os cobres da santa, compadre. Olhe que no quero ver as despesas, quero apenas o saldo. Me conte afinal o que houve... Lafaiete quis, de incio, reagir e ousou dizer num lamento:

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Hipoteco o que tenho e pago, meu compadre. Coronel Coutinho ps-se a examinar o carimbo dos tales, enxotou ruidosamente um cachorro que entrara no gabinete. Compadre Lafaiete, Capito Lafaiete, no nem uma nem duas nem quatro que voc mete a mo no pobre dinheiro da santa. Voc diz hipotecar. Hipotecar, hipotecar o qu? O cartrio que pertence Justia? O tabelio tentou falar, um gesto de indulgncia de Coutinho o impediu. Coronel largou o carimbo na mesa e foi janela como para tomar alento. Os passarinhos nas mangueiras defronte faziam festa. At metia pena humilhar aquele pobre diabo. Gostava dele. Lhe dava pena. O tabelio fingia ler um papel que tirara do bolso. Lembra-se, compadre, do conselho que lhe dei a propsito da filha da Felismina? Isto ainda conta de Orminda. No lhe [198] avisei? E depois, compadre, voc tem ganho bem na minha mo. Lembra-se das duas escrituras? Lembra-se que em meu nome voc comprou as terras da Marcela por cinco contos e fez a boba passar um recibo de como se tivesse recebido quinze? E o despejo do Macrio? E a madeira que lhe dei na desmanchao da casa da Almira? O tabelio no respondeu, reduzido a caco numa cadeira, amarrotando um papel na mo. A vila sabia que Nossa Senhora era para ter uma fortuna na parquia, uma igreja grande, com torre para os sinos, rgo, o to sonhado rgo para o coro e festas com duas bandas de msicas no arraial. Assim como o dinheiro caa nos cofres de Nossa Senhora, assim desaparecia. O fazendeiro folheou indiferentemente os tales municipais amontoados na mesa e foi falando: Bem que lhe disse para cortar aquilo com Orminda a tempo. Vou lhe mostrar, enfim, que sou mais amigo seu do que da Nossa Senhora, se bem que o que digo seja uma blasfmia. O tabelio via o propsito do Coronel de humilh-lo. Entregouse quela depresso a que se habituava nos dias do reumatismo e das

dores renais, e chegou a sorrir. Afinal, meu compadre, convenhamos, aqui e que ningum nos oia, meu compadre, Voc soca a f dessa boa gente na entreperna de qualquer cabocla. Voc est velho. Olhe as contas a Deus, olhe as contas ao nosso compadre Satans, pecador... Contendo o riso o fazendeiro ps a mo no ombro do aniquilado tabelio. Voc sabe, precisamos comprar o rgo e levantar a torre para os sinos. Isso um problema que devemos resolver e acha que s o meu dinheiro que deve custear tudo em Ponta de Pedras? Afinal o seu negcio, ano passado, com o dr. Lustosa foi um escndalo. Aquele velhaco tomou as sementes em Cachoeira de uns pobres velhos e voc ajudou, papou grande. Lafaiete deu um tom resignado nas palavras: Compadre, no pense que gastei tudo. No, compadre. Mas antes que lembre o nome de Deus, do Diabo ou do dr. Lustosa, fao lembrar que minha mulher uma doente, doente e em que [199] estado. Sabe o que ter uma mulher, como eu tenho, dentro de casa, meu compadre, cega? J de volta ao cartrio, o tabelio ria de si mesmo ao pensar que Coronel Coutinho prometera completar o dinheiro. E abrindo os braos exclamava: Quanta escritura, Nossa Senhora era testemunha, arranjei para aquele homem. Quantos leiles comeu e quanto gado da santa. E dizer que a santa deve sacudir a cabea com a pouca vergonha de seus festeiros. E Orminda, era ou no era filha dele? Aquele olhar dela no enganava. Aquela velhacaria, aquele cinismo. O tabelio, no mesmo alvio, sentiu uma espcie de vingana. Era, sim, filha. E o pai no tinha coragem de confess-lo e mal escondia o despeito de no a ter possudo. Coisa estranha, nem ele nem Felismina confessavam . Ele, para esperar uma oportunidade de faz-la tambm sua amante, por certo. Gostaria de dizer-lhe isso

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queima roupa. Orminda sabia? Coronel Coutinho dava uma filha para o mundo. E mal podia recalcar o despeito de saber que outros homens eram amantes da filha que tambm desejava. E a torre para os sinos? Sim, conhecia a torre. Era aquela bela casa de veraneio no Mosqueiro, com moinho de vento e motor eltrico, feita custa dos devotos. O rgo era aquela D. Ermelinda comendo passas em Paricatuba com uma caboclinha lhe catando o cabelo. Lafaiete comeou a escrever, tinha que aprontar uma nova escritura. Sua mo tremia, a letra oscilava, o corao batendo hesitante, era a velhice. E isso lhe dava sempre o toque do fim prximo, o calafrio do outro mundo e a realidade do Purgatrio ou do Inferno assaltava-o de vez em quando como um soco na cabea. A lembrana de Orminda lhe dava de sbito a realidade, envelhecera a remoer desforras imaginrias. A filha do Coronel Coutinho 3 caindo de feridas e fome beira do rio, na sarjeta em Belm, a filha do Intendente e deputado, a irm de Missunga. Que material para uma chantagem em Belm. Por que a velha Felismina no confessaria? A noite entrou pelo cartrio, uma aragem soprou os papis da secretaria. O tabelio reclamou luz. Guilhermina surgiu no corredor, apalpando as paredes. Chega de escrever, Lafaiete. Por que no queres jantar? O tabelio levou a cega cadeira de embalo e ficou em silncio olhando os papis espalhados na mesa e espera que a nova empregada, a Col, trouxesse candeeiro. Tu j ouviste falar, Guilhermina, que a Orminda filha do Coutinho? A cega, inerte na cadeira. Passou-se um tempo e a voz de splica e lstima encheu a sombra: Lafaiete, tu bem sabes que no posso ouvir falar no nome dessa rapariga... Col trouxe, ento, o candeeiro. O tabelio examinou a rapariga como quem avalia uma novilha, guardou a escritura na pasta e fechou

as gavetas a chave. Discutimos hoje, novamente, eu e Coutinho. As nossas eternas discusses. Afinal, Guilhermina, Coutinho um amigo. Me arrependo, muitas vezes, do que lhe digo no calor da discusso. Ele tem suas fraquezas, isto tem, mas que e um amigo, no se discute. A cega nada respondeu, as mos imveis e secas nos braos da cadeira de embalo.

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[201] Na lancha, com o pai, a caminho das fazendas, Missunga voltava a reavivar as palavras de Guta. E sua resposta: No isto, Guta. Vou a Cachoeira tratar duns papis e volto logo. Mas no chores. Os olhos so meus, me deixa. Vais levar comida pros trs l no mato? Queres eu vou contigo. Posso falar com teu pai... Tua voz no me engana, Missunga. Naqueles olhos, naqueles braos, naqueles seios, em todo aquele corpo que esmagou em suas mos vidas, no via seno medo, vergonha, desespero, o mundo no qual no lhe era permitido entrar. Via ento o velho pai vergado sobre a filha morta na esteira, o murmrio das mulheres, o silncio dos irmos. Como Alade fora to natural, como foi to simples t-la ao seu lado. Mas havia Felicidade e o grito dos homens chamando ou dizendo adeus Alade no sai mais do seu corao e assim nem Alade era fcil como acreditara. Naquela manha voltara pela praa onde meninos jogavam futebol e olhou aquele palacete, o nico da vila, fechado, onde morou Helena. Ouvira-a ali tocando piano, o velho piano que a mulher de seu Nlson, j louca, vinha tocar sob o riso das meninas. Ainda estaria ali o piano no palacete fechado? Junto quele piano conheceu Helena.

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Sempre a considerou uma amiga, nada mais do que amiga e Helena, as pestanas longas, tocando vagar somente valsas com lnguida monotonia. Talvez porque [202] inutilmen|te o amasse foi que aceitou desesperada aquele casamento com o Dr. Milton, um homem esverdinhado e de olhar duro, que num acesso de cime em Belm cortou-lhe a face a navalha, furou-lhe os olhos e ao v-la cega, degolou-se. Os pais de Helena, arruinados, acabaram-se bem cedo. Suas fazendas, no Arari, passaram para as mos do Primo Guilherme. Helena, cega e o rosto perdido, envelhecia em Belm, na casa de um parente, numa poltrona dia inteiro. Naquelas janelas, como agora a recorda e a julga, lindssima, mulher com quem casaria Helena esperava-o e lhe dava flores, rebuado, beijos de moa e valsas no piano. Atravessara a praa, foi abordar o pai. Comeou a falar, sem convico: Sabe, papai, cansei-me de procurar uma noiva em nosso meio. Aquilo que eu, o senhor chamamos de nosso meio. Quero agora uma mulher simples ao meu lado. Procurou fazer silncio. Via, Helena, cega, os olhos pacientes o retinham outrora, junto ao piano. Causara-lhe aquele casamento, aquela cegueira. Tentou recuperar a pouca firmeza que ainda havia nas primeiras palavras. Guta ate ontem era uma menina. Vem de meu tempo, brincamos junto, era quem mame mais gostava em Paricatuba. Lembrase? Afinal queria uma criatura simples, que no me chateasse, uma companheira... J no fim destas palavras sentia-se um pouco comovido. Sim, achava bom dizer: Esta a minha companheira. O pai seguia, sem responder, para o banheiro no trapiche, a toalha no ombro, a saboneteira. Assoou-se, sacudiu a toalha com aquele vagar que Missunga temia porque lhe retirava o resto de

convico, restabelecendo nele o Coutinho por inteiro. Falou sem fitar o filho com zombeteira indiferena: Meu filho, o que ests dizendo no dizes com o teu corao. O corao da gente fala pouco e falaste muito. Ests querendo te iludir, nada mais. Nem precisa olhar para teus olhos, basta ouvir tua voz. Isto, com efeito, herdaste de tua santa me, um sentimental. Tua me era assim. [203] O velho acenou para uma embarcao que passava no rio. Linda manha, na verdade. E noutro tom, perguntou: E as tuas caadas? Desistiu? No vens ao banho, agora? Entraram no banheiro, Coronel despiu o pijama. Santa me, pensou Missunga. O pai foi descendo a escada para a gua, o sabonete na mo. O filho aproximou-se. Sei o que queres dizer, meu filho, o que vais falar. Conheo isto, de longe. No meu tempo de estudante, conheci um colega com quem aconteceu a mesma Coisa. Pior, estava apaixonado Era mais srio o negcio. Hoje acha uma graa quando recorda a histria. A pequena, uma doida, a Diva, filha de um pobre bbado caiu depois no mundo, no seu elemento. Ele casou-se muito bem. Desceu e mergulhou, a espuma subiu pelos ombros, cobriu-lhe a cabea, a voz veio gorgolejando das guas, dentro da espuma. Te adiantaste, ento? Missunga quis responder, sua visvel confuso animou o pai a fit-lo e dizer-lhe com bonomia: Medo do velho Amncio? s por isto? Mergulhou novamente espalhando espuma, ao voltar tona, assoando-se, viu que o filho safra, fechando bruscamente a porta do banheiro. Fora, a manha parada sobre a mata, a lama, os telhados, o rio sem uma embarcao. Missunga voltava pelo trapiche e considerou ridcula, idiota, aquela cena com um homem nu, ensaboado, nica preocupao, naquele instante, de evitar a espuma nos olhos.

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O remdio era partir, embora sobre a fuga houvesse o medo como seu pai sabia! daqueles machados. Guta descobriuo todo e o pai dele o desmascarava Ambos tinham razo, certeza comum que desesperava a moa e tranqilizava o pai. Os machados abatiam as rvores grandes. Aqueles machados o alcanariam at na ndia, no Egito ou nos mais fundos coves de sua conscincia. Iria s fazendas achar uma soluo, Consumir aquela piedade por Guta misturada ao pensamento de Helena, o desejo de ver Helena, cega, tocando piano na casa fechada. Diziam at que visagens tocavam piano, ninho de gatos, morcegos, casa de cupim. [204] Iria s fazendas. Por que acontecia com ele o que no aconteceu com os outros, jovens fazendeiros, tinham nas fazendas e nos stios, as caboclas que queriam? A lancha apitou numa curva, defronte a ilha de aningal e mangue crescia no rio estreito e raso. Perto, amarrada no mangue da margem aquela draga parada com funcionrios pblicos fumando, bebendo caf, afinando violo, deitados em redes no gozo das verbas federais destinadas dragagem do Arari, caminho de transporte de gado para Belm. Era tambm um dos projetos de Missunga a dragagem dos campos, para evitar as enchentes, a desobstruo do rio Goiapi, do Tartarugas. Coronel Coutinho na rede comeou a afirmar que as verdadeiras dragas dos rios so os cobras grandes, mes dos mesmos rios. Quando uma cobra morre ou foge ou se muda, o rio seca, o rio desaparece. Muitos caboclos j assistiram luta de duas mes do rio. A do Arari tinha brigado, perdera as foras para conservar o rio. O administrador cochilava. O foguista saltou da casa de mquinas com o rosto de cobre, suando. Coronel tentou ainda arrancar o filho do silncio, falando sobre as matanas de jacars. S o barulho da mquina, o sono podia vir, o sonho nascendo da sbita lembrana de Helena, vinha de longe um som de piano. O sono podia vir, afastar aquela pergunta que insistia: casar com Guta? Pela

primeira vez, compreendeu que as falsas escrituras lhe pertenciam tambm, desmanchavam-se no sangue, obstruam-lhe os caminhos da conscincia.

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[205] Coronel Coutinho mandou abalar a malhada. Os vaqueiros sacudiram as cordas, lambaram os cavalos, ergueram as rdeas: Ei! Ei! Ei! Vara! Ei! boiama! Reses bravias levantaram as cabeas, farejando o ar espesso de p. Os touros armavam a fuga, estonteados sob a poeira tresmalhando. Faz logo a esteira! Rpido isso! Os vaqueiros faziam a esteira, cercando gado arisco. Atrs, o coice formado pelos vaqueiros que ficavam na retaguarda vigilante e arriscada onde as reses bravas se amontoavam. Era o gado dos encobertos, .asselvajado, como dizem os vaqueiros. Quando espirravam, vaqueiro desviasse o cavalo do chifre das feras. Missunga no seu alazo seguia na esteira. Sabia que cavalo manso no coice significava pssimo feitor, pois s os cavalos no fogo da idade podem dominar os garrotes selvagens. A malhada agora se transforma em vaquejada. E o rebanho em marcha para a ferra, assimilao, a castrao dos novilhos, serrao dos chifres, contagem. A vaqueijada vai a passo, vagarosamente, pelo campo. Ainda longe a porteira do curral grande. Missunga reconhece o guia na frente, grande vaqueiro, de vara e ferro, chotando na sua gua alvaoa, o Gaaba. Os vaqueiros continuavam nos eias. Missunga na vspera discutira com o pai sobre o trabalho nas fazendas. Aquela malhada, com urros e gritos, poeiras e cavalos, desentorpecia-o, transmitia-lhe certo desejo de

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responsabilidade, certo impulso para lutar contra o que [206] pensava ser o seu sangue, a ave de rapina que havia em todos os Coutinhos. Meu filho, falava o pai, voc no sabe o que isto. Pensa que fazenda em Maraj criao de gado na Inglaterra? Vaqueiro nasceu vaqueiro morre vaqueiro. Eles deviam ao menos ter uma sociedade como os pescadores. Mas que sociedade tm os pescadores, meu filho? O que que voc anda sonhando. Onde se viu sociedade de pescadores... Voc quer falar nas colnias de pescadores? Voc sabe o que quer dizer uma colnia de pescadores no Arari? Brigas e roubalheiras. S tem servido pra tirar dinheiro do pescador e mais nada. A histria do Milico na presidncia da colnia do Arari uma delcia. Aquele, sim, soube ser protetor dos pescadores. Meteu todo o cobre no bolso e deu uma banana. E voc deve saber que ndio no tem instinto gregrio ainda, vaqueiro ainda ndio, caboclo disfarado em semicivilizado, analfabeto, manhoso e pronto para cravar a garra. Como, papai? A falta de instinto gregrio o que domina neste pas... O gado entrava nos currais, a ferra comeava com Gaaba erguendo no ar a marca do ferro em brasa. Missunga deixou os currais, decidiu correr os campos, as fazendas, dias nas vaqueiradas, outras ferras, outros rodeios, embarques de gado nas caiaras. Depois, nas distantes malhadas da Diamantina, foi ver o gado dispersando-se. E pela primeira vez a sua espingarda nova acertava em duas marrecas do campo. Mandou ass-las no espeto, comeu com a mo, que falta fazia Alade! No longe, dentro da noite de Diamantina, ao p das brasas que assavam a carne e as marrecas, ouviam-se as onas. Pela manh, ia com os vaqueiros para a caa do bfalo nos campos selvagens e admirava-se no ter medo. Alade gostaria de ver como os vaqueiros caam bfalo nos balcedos, lanam

os novilhos que, feridos a vara do ferro e a tiros, avanam com ferocidade sobre os caadores. Estes, prevenidos e geis, escondem-se com os seus cavalos pelo aturi, atolam-se nos [207] mondongos entre aningais e esperam. Os bfalos, desorientados, sangrando, correm pelos campos e tombam agonizantes. No sabem descobrir o inimigo no balcedo, o faro lhes falta, explicam os vaqueiros. Missunga desmonta para ver como os caadores tiram o couro dos grandes e negros novilhos. Agora a galope ao lado dos caadores de bfalos. So homens que aparecem no Arari, nada sabem do mundo, o seu lugar o mondongo, onde o gado bravo se espalha e urra espantando e ao mesmo tempo excitando as onas e as cobras soltas nos atuarias. Mundo dos bfalos que se tornaram selvagens como os jacars, as sucurijus, os negros patos reluzentes sobre os lagos. As malhadas desfaziam-se nos descampados secos. Os vaqueiros gritavam seus gritos pesavam no ar, cresciam na solido e no barulho das boiadas. Missunga tinha a impresso de que eram como aqueles gritos, dentro dos poos fundos, que tanto o preocupavam na infncia. Guta gritava para dentro do poo e dizia que era a me dgua que falava do fundo. Mariana gritava para os poraqus e o poo se enchia de vozes, as pedras, o barro e as toias ralas de capim, a gua, tinham ressonncias. Helena com as mos nos olhos vazados, o grito sobre o piano, com o grito dos vaqueiros e o urro do gado. E a lembrana de Guta voltou como um grito subindo do poo sob o aaizal. Os cavalos saltavam. Grandes aves vermelhas passavam no alto, as colheireiras, Missunga pegou da espingarda e atirou. Pelos campos um movimento, um alarido, um estridor excitavam cada vez mais as manadas e os homens. Mais tarde, os vaqueiros o levaram para ver o cho das malhadas coberto de cascavis esmagadas pelo rebanho. Missunga atravessava os campos.

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Campos do seu pai; a grande propriedade ao longo da ilha, cercas de arame, currais, lagos, malhadas, Chaves, Anajs, Soure, Cachoeira. Nas palhoas de vaqueiros, perdidas aqui e ali nos descampados, as tristes mulheres espiavam. Meninos nus e ariscos fomeavam no quarto escuro onde o amor, a misria e a morte se confundiam. No, pensava Missunga, muitas vezes naquele escuro quarto havia tambm o Coronel Coutinho, seu pai, para quem [208] o gemido das moas defloradas tem o segredo de conservar-lhe a velhice e o pegadio s fazendas. Alade, devia ver os bfalos, o cho de cascavis. Os vaqueiros gostavam dele: um branco muito dado. No se metia a besta, sabia brincar, selar e montar um cavalo, beber com toda gente, e aprendia a atirar nos patos voando, dava gorjetas, pagava festas, comia em cima da porteira a carne frita na prpria gordura que as mulheres lhe traziam. Regressava para ouvir Ramiro, o tocador de chula havia de tornar, com efeito, menos pesada aquela noite. Como vai esse campeo dos violinistas do Arari? Ramiro soltou sua lenta e grossa gargalhada, deitou o violino no brao para executar a msica. Tocava de orelha. Gaaba dizia que ele tinha a mo curada para tirar tudo que queria dos instrumentos. Viola com ele diz por que geme ou diz por que no geme. Gaaba, velho companheiro de serenatas nas margens do Arari, trouxe a garrafa de cachaa que Missunga mandara buscar. Ficaram no ptio da casa da fazenda, esperando a lua nascer quando ento a festa comearia. Ramiro fechava os olhos ao tocar o violino. Depois do violino, solou violo, e inventava chulas, as chulas corriam os campos, batiam bem fundo no corao do povo. Cantou a chula do Raimundo Srgio que, para chamar a namorada, imitava o mugido da vaca na porteira do curral. Os vaqueiros em torno, fedendo a sela e a cavalo, bebiam atentos e risonhos.

Ramiro no tinha emprego certo nas fazendas. Quando a necessidade era muita, a ponto de no ter mais uma camisa curta, ia ajudar os seleiros. Tido como bom curtidor, armando bem um celim. Sangrava bois velhos pras matalotagens do Coronel Coutinho e gostava de se vingar tambm dos fazendeiros ruins boas vacas gordas esfaqueava nos encobertos. No era ladro de gado, no tinha sangue para essa aventura, se vingava, dizia ele, do tempo em que era feitor mal pago e das vezes em que sua mulher, ainda viva nesse tempo, tinha que reagir contra o desrespeito dos patres. Despedido, uma grossa dvida a pagar, deixava na fazenda um rendimento de gado que era uma admirao. A mulher, [209] uma tarde, andando no pirizal foi mordida pela jararaca. Isabel no durou trs dias. Depois os dois filhos comidos pelos vermes e pelas febres na beira do Anajs. De volta do enterro do ltimo filho, uma tarde, olhou o que havia dentro de sua mala e os tarecos das barracas. Na parede restava o violo, uma viola sem cordas, o saco do violino, as perneiras de couro cru. Desarmou a rede, largou pros centros, sua famlia era o mundo. Missunga atolava-se naquela dana com as caboclas, no cho duro do rancho. A poeira, sob a fumaa das lamparinas, subia daqueles corpos suados e tambm fumegantes que se empurravam no quebra-peito brbaro. De passagem, sem ser visto, pode ouvir um resto de conversa de dois velhos vaqueiros que fumavam, sentados num tamborete na sombra do genipapeiro. Manelo saiu da fazenda do Arajo com um gado. Ora, vendia uma frasqueira de cachaa por um boi. Fazendeiro que no faz isto acaba como o velho Guarin. Perde tudo e vira ladro porco. Trepados nos currais, nas porteiras, nos galhos baixos das rvores, os vaqueiros comiam em cuias e pratos de barro as gordas carnes mal assadas. Era assim quando Missunga demorava no Rosano. E os quartos de carne recordavam Felicidade, Alade virando o

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fil de espeto nas brasas... sabia que o administrador coava a cabea e rosnava: Esse menino bota um dia a fortuna do pai no meio da rua. Sua passagem aqui no Arari me tira o resto da vida. ele e a minha asma. Nas moitas do campo, nas ilhas, ao bafo quente dos currais, perto das reses que abanavam os rabos contra os maruins e os carapans, os vaqueiros bebiam, comiam e esperavam as mulheres. A caminho do descampado, para a palhoa onde um menino gemia com o corpo em carne viva de tanta ferida, Missunga acompanhava aquela rapariga, pelo simples desejo de caminhar no campo. A mulher ia calada e molhada de suor a que se misturava um cheiro de talco, sarro e couro cru. Pulava vaga-lume nas moitas. [210] Tocou no brao mido da rapariga, a mo deu com um anel Quem te deu este anel, ... como e bem teu nome? Hum... Um resmungo e a mulher continuou muda com os seus ps de homem, topando a terroada. Quem te arrumou, ento, aquele filho? Ela apressou o andar. Missunga cuspiu numa espcie de inrcia intima, sem pensamentos, sem desejos, uma cara desconhecida e maliciosa com o dedo do silncio na boca, olhava-o l do fundo de si mesmo cansado, por certo. Quis voltar, hesitou um pouco, ao flanquearem uma pequena ilha, decidiu-se. Te deixo aqui. Vai que me de fogo no te perde. E vem buscar a pomada do teu filho. Trata do pobre, me desalmada. Disse com ar de troa. No pde esquecer o silncio dela, parada, cabea baixa, o riso curto, desapareceu, correndo e saltando as toias.

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Missunga largou a espingarda nas mos do vaqueiro. Puxa. Nem capivara h mais nestes campos vasqueiros? O senhor que veio da Diamantina deve ter visto por l fartura... Mas o Arari no o rio do pirarucu, do peixe boi, do tambaqui e das capivaras? E as grandes pescadas? O vaqueiro sorrindo apontou para o rio. Missunga debruou-se no parapeito do alpendre. Canoas geleiras passavam, levando peixe fresco para Belm. Tarrafeam em tempo da desova. Vo bater tamuat na ninhada do peixe. S pode acabar... Missunga ouvia sempre as mesmas histrias. Maraj devastado, as lagunas secas, os campos vazios de caa, adeus fartura. Para onde foram as marrecas, o pato brabo, passares da beira do Arari? S o lago Arari era que se enchia de redes e tarrafas com os pescadores aos gritos, cercando os peixes. As geleiras desciam o Arari, muito lentas, esperando reboque. Breve, a lancha apitaria. Lembrava-se Missunga que no seu tempo de menino os donos das canoas e os tripulantes eram quase todos pescadores e barqueiros de Portugal. Canoas de convs corrido, vigilengas, no respeitavam o mau tempo na baa de Maraj, tinham de atravessar para chegar cedo a Belm. As geleiras desciam abarrotadas de peixe e os pescadores nas beiradas faziam adeus com os chapus de carnaba e com as saias que as mulheres estendiam nas cordas de cip. Missunga chegara ao fim da safra. De setembro a janeiro, [212 po|vo de Cachoeira, Anajs, Baixo Arari, Soure, Ponta de Pedras, arma barracas nas margens do Arari e do lago. So as feitorias. Missunga prepara-se para assistir a tarrafeao, a lanceao, o

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encontro do peixe no rio. Contam-lhe que os pescadores do lugar no gostam muito daquele povo de arribao. No toldo das canoas e nos trapiches, os donos dos peixes no eram os que vinham das guas, molhados, rotos e sujos, mordidos de piranha, ferrados de arraia, lanhados pela tarrafa e pelas pedras do fundo, modos pelas longas horas dentro dgua nas madrugadas e nos meios-dias. No. Eram aqueles to poucos, contavam maos de dinheiro, davam ordens, mandavam desembarcar sacos de sal, caixas de sabo, frasqueiras de cachaa, peas de pano, alqueires de farinha, material de pesca. Mandavam desembarcar tambm um padre para batizar os curumins que nasciam nas palhoas como vermes. Vestiam pijamas, calavam chinelos, escovavam os dentes na janela do barraco, liam jornais, discutiam poltica. Missunga viu que um deles, o Sinhuca Arregalado, lhe acenava com muitos gestos. Um compadre de seu pai, gordo e rumoroso negociante da beira do lago. Tinha um balco, um borrador e o pulso de todos os pescadores do lago. Durante seis meses no inverno, sem peixe, sem caa, sem roupa, sem boa palha para a cumeeira da barraca, o pescador perdia o flego no balco do Sinhuca Arregalado. Os seis meses duros de pescaria no vero no chegavam para pagar a metade da dvida. Missunga olhava para as mulheres nas feitorias, faziam fogo, iam estender novamente as saias jogadas ao cho pelo vento e pelos pescadores. Sinhuca Arregalado sobe o trapiche e o abraa no alpendre. Estava lhe chamando para bebermos um vinho juntos. Por que no foi comer um peixe com coco em nossa casa? Fazendeiro grande assim mesmo, come sardinhas de Portugal em pleno Arari. Voc chegou ainda no restinho da safra. Falou depois de certa campanha nos jornais de Belm contra os fazendeiros e os comerciantes de peixe e louvou a medida do Coronel sobre a beirada.

[213] Que medida? indagou Missunga. Ento no sabe? Proibindo que os pescadores armem feitorias na beirada do rio que passa pelas suas fazendas. Mas legal? Como? A propriedade de seu pai... E para lidar com essa gente necessrio isto. Mo de ferro no pessoal. Reservei para voc uma daquelas pescadas grandes do bom tempo. E quer ir festa de Santa Cruz? L tem at padre, banda de msica, pequenas. Est uma vila. Tem casas de sorte no arraial... Que diabo, trabalhamos pra melhorar a terra. Sempre tenho feito alguma coisa por este lugar. Eu sou o pai de todos... Agora com o inverno na porta, vou sofrer com pescadores batendo no meu balco pedindo fiado. Por outro lado o roubo do gado, a ingratido. No soltaram o Guarin? Est velho mas ali h um ladro de raa, meu amigo. Justia nesta terra muito mansa. Seu pai no tem conta do que padece. Os patifes matam reses, porcos, flecham tudo, uns ndios. Voltam a ser ndios, como diz bem seu pai. Mas meu compadre vai bem de sade? Missunga no anima a conversa. Sinhuca investe contra os jornalistas. Imagine que eu mal desembarco em Belm e logo vem um jornalista, dono de um jornal muito borrado, da mais pura cavao, trazendo a notcia de minha chegada. Tenho que pagar, tenho que dar cinqenta. aniversrio, tudo, pergunta quando fazem anos os meus filhos... Voc conhece, o Marcelino. Retrato de Coronel Coutinho no tem conta na A Imprensa. Ora, isto no se ajeita. Neste Brasil tudo vai para o pior. Fique certo de uma coisa, meu caro, s uma ditadura militar que pode endireitar este pas. S uma ditadura militar. noite, Missunga vai ver a salga de peixe nas feitorias. Pensa logo num entreposto moderno, maquinismos importados dos Estados Unidos, ele mesmo iria busc-los. Uma fbrica de conserva de peixe. Exportar tamuats em conserva, ovas de pescada, pacus. Gaaba levou-o para comer um tucunar assado na feitoria onde Ramiro

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cantava chula. Gostou de ouvir o barulho das tarrafas caindo ngua. Comeu po dormido das geleiras e admirou mais uma vez o rumor das tarrafeaes. [214] Horas depois, Ramiro parou de cantar, toda a beirada acordava. As mulheres comearam a gritar na feitoria, os pescadores paravam o trabalho. Missunga viu os fachos acesos no meio do rio. Os cachorros ladravam. O filho de Manoel Camaleo havia se atirado ngua para arrancar do fundo a tarrafa atravessada num toco ou nas pedras. No se lembrou da piranha, do jacar. Precisava salvar a tarrafa. No sexto mergulho, era uma hora da manh. Os gritos continuavam. O cadver boiou na enchente do rio ao pino do sol. Missunga mos na cabea olha a beirada. Sua me no gostava que ele pusesse as mos assim. Seria mesmo a fatalidade? Aquele rapaz teria de morrer... Intil lutar contra aquele rio de peixe e lama. A pedra no fundo dgua. A morte estava naquele fundo de lama e pedras onde as tarrafas se deixavam prender. O desconhecido era aquele sexto mergulho uma hora da manh. Pensou nas mos do cego do Arapin, o escuro nos olhos fechados, o desejo de experimentar a sensao da morte prxima no fundo do rio. Saiu com aqueles soluos da mulher do afogado. A me dele chamava-se Pureza, amassava aa em Cachoeira, morreu em cima do alguidar. O pai, de uma famlia de pescadores, o velho Manuel Camaleo, no mandava ensinar os filhos a assinar o nome porque pescador que aprende a ler fica panema, sem sorte nenhuma para a pesca. Os dois filhos do afogado to pequenos, s podiam pilotar o casco, os dois ao mesmo tempo, enquanto o pai na proa jogava a tarrafa. Os tarrafeadores passam no rio, acompanhando o enterro. O caixo na montaria, e atrs a canoa das mulheres. Na popa dos cascos vo os cadetes, os filhos dos pescadores, pilotando. Meninos herniados, nus ou com um calo roto, tingido na casca do mucuri.

Missunga olha o enterro. Ao seu lado, com o violo no saco, Ramiro amassa, em silncio, o seu carnaba. Missunga ouve o pai argumentando contra os pescadores. A beirada pertence s suas fazendas. Mandara vender boi velho aos geleiros, ordenara que os vigias guardassem, de rifle em punho, [215] os lagos e igaraps nas suas terras. Mandaria desarmar ou queimar as barracas sem licena. Mas a Marinha... A Marinha no foi feita para permitir abusos. E depois o que mais indigna a pouca vergonha. Como? H at o caso do pai amigado com a filha. No h respeito. Uma prostituio dos diabos. Prostituio? Coronel Coutinho calou-se. Missunga queria lhe falar do afogado, da morte daquela mulher de parto. Um dos vigias surgira nas Pedras, a primeira feitoria de pesca ao subir o rio, amedrontando todo mundo, de rifle em punho. Uma mulher de parto morre de susto. Coronel manda chamar o delegado, o administrador, manda destruir feitorias, aquela pescaria tem de acabar. O nosso vigia assustou a mulher e matou... Meu filho, embarque, embarque para Belm. Siga para a Amrica do Norte, contanto que saia daqui. No chega o que fez com Paricatuba? Missunga desceu o alpendre e montou o cavalo. No iria comer a pescada com vinho do Sinhuca Arregalado. Queria conversar com o ladro de raa., o Guarin, que havia sido pequeno fazendeiro. Cumprira a pena e vivia na beira do lago, preguiando, sem pescar, vivendo de consertar tarrafas, fazer um relho. Galopou nos campos. Teria foras para lutar com o pai? Para que inquietar-se, afinal? O cavalo tinha um galope firme. No campo

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sob a vaga claridade do dia morto, algumas reses assustaram-se. Seu pai queria o aumento do preo da carne em Belm. Resolvera obter um tenente de polcia para iniciar uma represso, em regra, contra os ladres de gado. Velho Guarin se defendesse, fugisse. Os vigias escolhidos por Manuel Raimundo guardavam os lagos, onde o peixe sagrado. Sim, os vigias guardavam os lagos para Missunga sentir-lhes a poesia ao crepsculo. Passavam rio acima as geleiras de vela arriada. Uma lancha apitou. Missunga se lembrou que os caboclos dantes imitavam a [216] fala dos geleiros portugueses, gritando nos toldos, na beira do rio, bebendo nos trapiches, cortando peixe, estendendo redes e tarrafas. Guarin lhe deu um mocho e espiou o tempo. Falaram sobre a morte do pescador. Para que chorar, afinal? Deus quis. Sim, que deixou mulher, grvida por sinal, dois meninos... Na verdade, Aristides era alegre, cantador, sempre lhe trazia um peixe, farinha, sal e po da geleira. Em Santa Cruz fez, o ano passado, o papel de vaqueiro real do boi bumb. Mas lembro deste verso que ele cantava bem mesmo: Este boi da branca Este boi da mulata Tem pacincia, cafuza, O que Deus promete no falta... Guarin cantou bem baixo, desentoado e sorriu. Gostaria que Missunga lhe desse um cigarro, algum milho pro tabaco. E como Missunga lhe falasse em caadas, na falta de capivara, dos patos brabos, velho Guarin contou de seu tempo de pequeno fazendeiro. Quanta marreca em Santo Agostinho. As marrecas iam tomar banho no lago quente ao meio-dia. Ficavam depenadas, cada pena pra voar? Amontoavam-se beira do lago sob o solzo. Ento os vaqueiros

apareciam e abatiam o bando a pauladas. As vezes rodeavam o lago, enxotavam as marrecas pelo campo at o curral onde eram metidas nos paneiros... E o velho deixou escapar um gemido: Hoje... Missunga ia montar, Guarin terminou: Hoje aquele turco logrando vaqueiro por estes campos. Ele vem aqui pra casa. Me pediu agasalho enquanto estivesse por aqui. Missunga foi ao encontro do srio que cruzava os campos queimados com seus dois bois cargueiros e um caboclo atras. Mas tu, Tenrio, como vieste parar aqui, rapaz? Examinou a carga que os bois traziam, peas de morim, alfacinha, chita, retalhos de seda, miudezas, brilhantina e talco [217] Pais|sandu, um garrafo de cachaa. Trata-se de um regato dos campos, disse Missunga, que se ps tambm a examinar o srio. Era chupado e triste, acorcundado, a voz servil. Negociava de fazenda a fazenda, a troco de uma vaca velha, um boi quebrado nas ferras, carne salgada, capivara, peixe e ouro velho. Missunga acompanhou-o at a barraca de Guarin e mandou Tenrio fazer um caf. Voc, Guarin, no tem mulher. No tem quem faa um triste caf nesta barraca, O srio tem caf. E acar? O srio ofereceu-se para comprar acar no Sinhuca Arregalado, um pouco longe, no importava. Tinha diante de si o filho do dono de tudo aquilo, o filho do Coronel Coutinho. Tenrio se disps a rachar um pau de lenha para o fogo. Vendo-o, Missunga pensou violentamente em Orminda. Onde estaria? Ouvira vagamente que andava pelo Arari. Ento, Tenrio, sarou? Isto nunca que sara. Missunga quis saber da histria do Elias, se obtivera licena para negociar nas fazendas, como descobriu Tenrio. Guarin falou que o srio se queixava muito da ma sorte.

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As lbias dele. O srio faz negcio e bem. Amolador em Belm, vendedor de cachorro quente, cafeteiro no Ver-o-Peso, comprador de lenha em Barcarena. Chegando ao Par pensava voltar muito cedo Sria na primeira classe de um daqueles transatlnticos que vira no porto do Recife. Ouviu falar em diamante de Marab, prolas do Tocantins, ouro em Oiapoque. Volta do Oiapoque com beribri. Em Marab, sem diamante, naufraga nas cachoeiras e em Tocantins perde todas as mercadorias numa alagao. Estava seco, aflito, caminhando pelo subrbio de Belm a gritar com a sua fala de srio: Compra ouro quebrado! Preso uma noite como receptador de furto, erguia os braos a Deus, implorando um bom negcio. No teria cobia. E esqueceria os diamantes, os files, as prolas. Seu sonho agora era um pequeno hotel em Belm. [218] Ao sair da priso, sentiu que Deus lhe indicava o caminho. Contavam-lhe que em Maraj os vaqueiros eram doidos por miangas, sedas que reluziam, talco, extrato, fitas para os chapus de carnaba. Velhas mulheres fazendeiras guardavam trancelins, anis, voltas de ouro, brincos e muito cobre havia. Deus de misericrdia, o caminho para o hotel. At com ladres de gado fazia negcio. Vaqueiro queria vestir bonito, dar carto postal, pulseira, mianga, cetineta pros xods? Arriscasse o lao no meio da malhada, noite, apanhasse boi manso e velho, enterrasse o couro para esconder a marca dos patres, vendesse a carne salgada ao Elias. Tenrio, seu empregado, carregava os troos, tratava dos bois, salgava a carne e a enfardava no traseiro dos animais. Ajudava algumas vezes a enterrar o couro das reses furtadas. Cozinhava, e nas horas menos amargas, ia contratar alguma mulher para o patro. Tenrio queria juntar dinheiro para comprar um Santo Ivo. Havia de fazer uma tirao de esmolas e dar uma grande festa de Santo Ivo. Uma vaga esperana, quase certo de juntar dinheiro para

comprar um Santo Ivo, nem furtando. Veio o caf, a conversa tomou rumo ao falarem numa mulher sacudida, olhos de limo, que sorria para Elias. Por que, indagara o srio a si mesmo, uma mulher to bonita com aquele talho no rosto? No brao uma ferida cicatrizando. Ela contemplava os troos montados no boi, perguntou se havia seda estampada. Comprazia-se em repuxar a saia, correndo os dedos pelo cs como se fosse desat-la e oferecer-se em troca da seda que Elias infelizmente no tinha. O talho no rosto no fora profundo, atingira de leve a face, mais visvel, mais empolado no pescoo. Queriam degol-la com certeza. Um pescoo firme, por isto resistira. Aquela cicatriz para sempre no rosto lhe imprimia uma graa mais preciosa, um ar de perigosa beleza. Viera no rebojo da pororoca que rebenta no Moirim e sobe o Arari at as feitorias de pesca. Um abaeteuara a trouxera em sua canoa entre potes de mel, farinha, cachaa, bilhas de barro e molhos de tabaco. Desembarcou com um pote de mel, um paneiro de farinha, uma garrafa de cachaa e indagou pela [219] D. Leo|nardina. O abaeteuara lhe deu tambm uma bilha com a palavra Saudade gravada em verde entre folhas vermelhas. Elias ficou pensando nos diamantes de Marab, nas prolas do Tocantins, no ouro do Oiapoque, enterrados naquele corpo, o corpo de Orminda. Esqueceria para sempre as cachoeiras, a alagao, o beribri, a cadeia, se Orminda o quisesse por um dia s. Ele tinha uma colcha de flores e duas peas de renda fina. Tinha uma caixa de meias, um vidro de gua de colnia e muitos cartes postais. No trazia seda estampada mas cetim encarnado to reluzindo, uma maravilha no corpo de Orminda. Tinha uma volta... Missunga voltou, galopando largo. Guta teria o mesmo destino? No recusou a pescada e o vinho do Sinhuca Arregalado.

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Ao chegar barraca da Madrinha Leonardina, Orminda quis lavar o corpo com cachaa para tirar a morrinha e a catinga do abaeteuara. Depois foi que leu para Leonardina a carta de Abaet. A paj ouviu atenta, cachimbo pendente da boca. Orminda leu a assinatura Joana das Mercs devagarinho e olhou fixamente a feiticeira. Primeiro sentiu receio mas a velha a recebera to bem, logo teve vontade de lhe dizer: Tome conta de minha vida, me bote nas feitiarias, me faa feiticeira tambm. Queria saber por que os peixes flecham os pescadores, por que ficava to liso o corpo de seu irmo Marcelino e por que deu para ladro. Leonardina olhava-a sorrindo e perguntou que talho era aquele no rosto e no brao. Madrinha, feliz no sou no mundo. Nem parece que fui batizada na pia. Parece que ainda sou pagoa. Minha me no me deu mais a bno. Tenho a marca daquele homem na minha cara. Perdi um irmo que s hoje sei a estimao que tinha por ele. No soube? Ouvi falar, sim. Tu aquela menina do caso de Paricatuba? T falando com ela mesma, madrinha. E lhe peo um agasalho conforme fala a Joana das Mercs na carta. Ofende? Orminda passou a mo no rosto, o olhar risonho: Madrinha Leonardina, um fazendeiro cheio pra mim... Ofende? A feiticeira deu uma risada. Citou o nome do filho do Coronel Coutinho. Orminda fez muxoxo. Lembrou-se de Alade, ah! [221] se pudesse traz-la pros campos... Jogou os cabelos para trs. A paj se aproximou dela, lhe pegou o queixo, de leve, observou o golpe no rosto. O olhar de Orminda ficou parado, o limo de bubuia naquela gua funda e parada. Madrinha Leonardina desceu as mos pelo brao, pelos quartos, examinou-lhe o cordo do pescoo, parecia de ouro e voltou a sorrir, misteriosamente. Achava que aquele golpe a tornava mais provocante. Um corpo, uns olhos, uns modos de fmea

nascida para virar o mundo. Vem c, mea filha, entra pro quarto. O cheiro das razes, da defumao, a obscuridade, tudo deu a Orminda a sensao da feitiaria. Veio-lhe a viso de Joo e Maria, de que falava Antnia com suas historias no Campinho nas noites sem lua. A velha feiticeira engordava as crianas num caixote para comlas depois. Te despe um instante, mea filha. Como est a Joana das Mercs, como tu conheceu ela? Leonardina abriu o ba, apanhou o rabo de ararauara e espanou o corpo de Orminda. Acendeu o taquari, soprou a fumaa nos claros seios da mulher, aos poucos envolveu-a toda no fumo. Orminda tossiu, balanou a cabea, meio sufocada, sacudiu os cabelos, os braos cruzaram-se sobre o ventre na sombra, os seios boiavam, oleosos e puros. Compreendeu que aquilo devia ser assim mesmo, o caruana lhe fechava o corpo contra a desgraa. O fumo a sufocava. A paj abanou-a com o rabo de ararauara. Mea filha, nunca fiz isto com ningum, tu me alembrou... Teu irmo era flechado? Ficava liso como peixe? Seu corpo podia ficar tambm com ataque. Mas, benza Deus, onde tu foi buscar um corpo assim, mea filha. Foi feito na forma do violo... Orminda riu alto e respondeu como num lamento: Caoando, j, do meu corpo... Seus olhos se tornaram mais grados. Te veste, mea filha. Ento tu pede um fazendeiro, no? Tens um jeito de bem sem cabea. Mea filha tu no veio pro mundo pra ser de um s homem. No vejo sossego no teu corpo. E uma pena, te juro. Tu gostou de alguma pessoa, j? No existe mais. Pessoa que no esqueo. Ofende? [222] Orminda respondeu mansa num ar de vago desalento e principiou a vestir-se. Os olhos ardiam, a velha sacudiu a cabea, o cachimbo fumaava.

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Pois bem, te atira, te assanha por estes campos, mea filha. E apagou o taquari. Ento no posso ser feliz, nem um dia, Madrinha Leonardina? Ofende? Orminda perguntava com voz resignada, quase distrada, e engoliu a pergunta que ia fazer a respeito de Missunga. Isso no sei adivinhar, mea filha. pras ciganas que lem a mo. Agora que tu vai fazer danao por estas beiradas o que eu sei. Orminda fez uma careta a velha gracejou: Ramiro havia de cantar uma chula nos ranchos e no toldo das geleiras, falando de uma mulher .de Marajoau, mundiadeira de homens, contando mortes na sua histria, com marca de faca no rosto. Orminda tapou o riso com a mo e foi abrir o ba. Tirou o vestido encarnado, indagou a si mesma: a velha teria ferro de engomar? Oferece um peixe de chocolate feiticeira e se ps a falar de tanto mel, cachaa, farinha e pobres pedindo esmola no porto de Abaet. Contou da viagem, a vela rasgara na travessia, o medo, depois, da pororoca no Moirim. Sentia-se bem agasalhada na barraca de Leonardina, a flor dos pajs dos campos e dos lagos do Arari. Queria ser sua afilhada de verdade, haviam por isso de passar fogueira no S. Joo. Teria uma madrinha poderosa para lhe afugentar a m sorte e ensinar-lhe a andar entre homens to traioeiros e ruins. Soubera da fama de Leonardina em Abaet numa conversa com Joana das Mercas quando ajudava uma poro de moas a ralar coco para os doces de um casamento. Melhor do que ela s mesmo o Mestre Jesuno do Muruac, lhe dissera Joana e isto j sabia h muito tempo, tanto que seu desejo era levar Marcelino ao famoso curandeiro. Joana das Mercas lhe contou: Leonardina benzia o gado do Coronel Coutinho, defumava as marcas da propriedade, os malhos da castrao, cordas, selas, relhos, porteiras e pedia ave que aumentasse os rebanhos, a sade, a riqueza do Coronel, no [223] deixasse as mulheres agarrar o branco com puanga. Coronel no

escondia o seu temor diante da fama de sua amiga, lhe trazia presentes da cidade, carne de gado, rede de varanda rendada, cachimbo novo, palha para a barraca. Noutra noite, Orminda via a feiticeira na sua funo. Tremia o marac espanado com rabo de ararauara. Nua, com a cinta no corpo ligeiro e batido, fumava o taquari sagrado e lanava o rolo de fumaa sobre os assistentes. Vinha a cachaa para acordar a vidncia e Orminda pensou em Manuel Rodrigues, o sono da primeira embriaguez, o encontro com Lafaiete na escada do trapiche, a desapario de Santo Ivo, os ataques de Marcelino, a reza de sua me quando caa a trovoada. Por onde andava Benedito? Teria feito aquilo por que gostava dela? O marac chocalhava estranho como cobra cascavel. A meianoite desceu, se derramou, com a ronda dos bacuraus sobre o sono dos campos. Madrinha Leonardina danava e cantava, evocando caruana, a alma do fundo dgua que esconde no lago os bois encantados e as vacas rainhas do pastoreio: Pretinho bunitinho Dinlindandan anda na beira da praia Dinlandandan O meu arco bunitinho Dinlindandan Minha flecha bunitinha Dinlandandan Orminda enxugou o suor do rosto, dinlindandan, ardiam-lhe os olhos com o fumo, um cheiro de razes queimadas e cachaa dominou a penumbra. Algum lhe estendeu uma cuia com bebida que ela apenas provou. Curvada, olhou de soslaio a feiticeira que ofegava numa espcie de delrio, os olhos cerrados, a boca retorcida, como uma

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parturiente no transe. A ave, a pessoa, atuada pelo caruana, cantou numa voz fanhosa. Orminda, com arrepios, olhou em torno os rostos dos assistentes mergulhados na sombra densa de fumo. Caripir mureureua atin-nan qui nu m and vuando atin-nanan meio morto meio vivo atin-nan minha arma por ti penando atin-nan A paj enrolou-se toda no fumao que traz a misteriosa fora do fundo. Era o mundo do caruana onde estariam os vaqueiros e pescadores afogados, apanhados pelas sucuri e jacars, as meninas desaparecidas, as mulheres que pariram filhos de bichos, a explicao da feitiaria. O mundo das tribos mortas onde, nas agaabas, os velhos pajs se encantaram. A noite desdobra o silncio em que a voz de Leonardina caminhou para os longes, uma voz de criana e de louca. Quiriru berrou no campo cum fama de boi voqueiro traz o arco traz a frecha pr mat o fiticera. No rio, os pescadores gritaram longe, era a mar, os peixes subiam. Madrinha Leonardina ia acabar o servio:

Vamo acab passarinho do dia Vamo acab passarinho do dia evem evem o claro do dia evem evem o claro do dia Orminda foi ver o cu e cantarolou: evem, evem o claro do dia. E lhe nasceu, de repente, com um travor no corao, a saudade do coro da Igreja, as noites do dia da festa em que sua voz descia sobre os fiis e vestia de adorao a Padroeira. Acendeu o fogo, dinlindandan, trouxe num bule sem tampa [225] o caf aos presentes. S havia trs xcaras, de beio rodo, na bandeja, no que eram devolvidas, Orminda ia enchendo sem lav-las. Atrs da barraca assavam peixe, algum ria. Um galo cantou clara madrugada sobre o rio. Orminda foi ver quem fazia fogo perto daquele rolo de cips que Madrinha Leonardina mandara tirar na vspera. A lenha crepitava, eram vaqueiros e uma cabocla de cabelos assanhados, sem dentes, virava o peixe nas brasas. Veio no cheiro do peixe? perguntou um dos vaqueiros. Foi, respondeu ela procurando acocorar-se em torno do fogo. Ento vai comer com a gente. Que tal o servio da Madrinha? Como Orminda no respondesse tentando melhor acomodar-se diante do fogo, o vaqueiro ps-se a contar algumas proezas da feiticeira. Via ali, ao p do fogo, uma mulher desconhecida, o rosto na madrugada parecia orvalhado, era alta, tinha um perfume igual ao daqueles que vira, vero passado, em Belm, entrando numa casa onde bandos de homens permaneciam em torno de roletas grandes e redondas mesas de baralho. Reparou tambm que a cabocla desdentada olhava-a demoradamente.

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Quem primeiro conheceu Madrinha Leonardina foi o boto. Conheceu? pergunta de Orminda, a cabocla soltou uma curta risada, cuspiu e meteu a saia cor de terra entre as coxas. Os vaqueiros riram. Sim, conheceu, quem primeiro fez vivena com ela foi o boto. Deixem de graa. Assem esse peixe logo. Ofende? retrucou Orminda fazendo-se ntima e isto animou os homens. O vaqueiro prosseguiu: Leonardina amarrou o casco na aninga perto do Moirim e esperou pororoca estourar nas pedras. Em vez de pororoca veio o boto que soprava para a lua minguante. Madrinha Leonardina fez vivena com o bicho debaixo das pedras onde nasce a pororoca. Da o poder que ela tem. Ela foi esposarana do bicho um vero inteiro, confirmou a cabocla rindo, a virar o peixe nas brasas e continuou: [226] Madrinha Leonardina, mulher de acabar festa nas fazendas, usava faca americana, dava em homem, O corpo era cheio de tanta curva quanta curva tem o rio Arari. Um dos vaqueiros acrescentou que aqueles campos conheceram a marca, a forma do corpo de Leonardina, ela no escolhia lugar para servir amor ao homem. Aquela beirada... A cabocla advertiu: Olha, fala... Brinca e v... Orminda ergueu-se para apanhar a cuia de farinha. Os vaqueiros olhavam-na ao primeiro claro mais vivo do amanhecer. Uns olhos serenados caindo nos homens. De onde viera? Seu vestido encarnado tornava-a plida e os cabelos soltos ondulavam ao vento leve. Talvez viesse para se tratar com a curandeira, sabe l de que, geralmente essas mulheres so cheirosas e vistosas na aparncia. Orminda lhes parecia forte, disposta, andava firme. A cabocla via naquela fmea alguma coisa de ruim e de belo que temia e invejava. Ela voltou e ofereceu farinha. Avisou que trouxera mel ainda da viagem e se queriam. Quis saber mais histrias de Leonardina e um

vaqueiro de voz grossa e lenta lhe contou o caso de Ramiro, tocador de viola, violino e violo. Ramiro era tambm homem de esperar o salto da ona com o terado na mo. Nos fuzus do rancho botava o violino de lado, passava a rasteira nos rivais que se acabavam no cho duro e ficava com a mulher que queria. Se ela se recusava a sair com ele, no duvidasse, ele a levava a fora at que a vaca braba amansasse. Findavam a noite trepados na porteira dos currais, comendo pirarucu com leite, esperando que o sol se levantasse do fundo dos campos. Um dia reinou que havia de acabar com a fama de Madrinha Leonardina. Dou-lhe s no p do ouvido na sesso. Tiro o encanto duma vez... Na sesso, Leonardina, que soubera das intenes do vaqueiro, foi danando para a ilharga dele, com a faixa atravessada no corpo, o marac, o taquari fumaando. Ramiro, meio bbado, se ergueu e atirou o brao... A velha, gil, desviou a bofetada, tocou o corpo do vaqueiro com o marac e soprou-lhe a fumaa bem no rosto. Ramiro s deu foi grito, grito feio, o pessoal acudiu. Tombou mole aquele como peixe modo. [227] Me emendei de uma vez pra sempre, e s fiquei bom mesmo depois que ela me fumentou, me tratou. Orminda fitou Ramiro que sorriu e se curvou a fim de abrir a barriga do peixe para ela. O claro das brasas lhe mostrava a cara de um verdadeiro caboclo j maduro, queimada e larga, o bigode ralo. Voc agora deve ter o corpo fechado pela Madrinha, no? Ela se voltou, com o olhar surpreendido em que Ramiro via os perigos do mundo de onde ela viera: dois vultos aproximaram-se do fogo e dos vaqueiros que saudavam o sol comendo aracu assado com cachaa. Era Elias, e Orminda ergueu-se rapidamente para abraar Tenrio, tentando evitar que as suas mos sujas de peixe tocassem na rota e fedorenta blusa do conterrneo. Mas meu mano. Por aqui... Me conta... E que andam fazendo

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a estas horas? Vieram de algum quarto? Tenrio deu um bom dia a todos. Tinham acordado naquela hora, viram a luz, ouviram partir lenha, calcularam que fosse a sesso. Elias queria falar com Madrinha Leonardina. Soubera que ela fez matar todo o gado do Major Milico no atoleiro porque Major havia prometido amarr-la nos chifres dum garrote brabo. Elias, efetivamente, no podia fazer negcio naqueles campos sem a proteo da feiticeira. Os vaqueiros e as duas mulheres ofereceram o peixe e permaneceram em silncio, comendo. Tenrio esperou que Orminda bebesse a cachaa, Ramiro lhe dava numa cuja. Ela hesitou um pouco, devolveu a bebida sem prov-la. Orminda, quero uma particular contigo, disse ento Tenrio com voz rouca. Ramiro, tirando as espinhas da banda do peixe, mostrou-se impaciente. Afastada de todos, ouvindo o particular que Tenrio lhe cochichava, Orminda permaneceu silenciosa, a cabea inclinada, e os vaqueiros consideraram sua beleza. Elias esperava. Ela voltou para o grupo e examinou, da cabea aos ps, o srio que se aproximara: era seco, bigodudo, sujo. E a sua risada caiu sobre Elias e se espalhou alegremente pela manh. Riu, riu, esquecia as mos sujas repuxando a blusa de Tenrio que a [227] olha|va espantado. Os vaqueiros tentavam compreender. A rapariga sem dentes jogava a mo cheia de farinha direto na boca, com os olhos postos nos dentes de Orminda. Tenrio, no invejo a sua sorte, meu mano... A manh trazia os pescadores para o rio. Orminda mais plida sem nenhuma pintura com os olhos fundos cheios de fadiga e zombaria ao mesmo tempo. Como , Tenrio? Uma colcha com floro? Ofende? Elias, ento, meio assustado chamou Tenrio e os dois saram em silncio. Ao v-los j distantes, to infelizes naquele amanhecer, Orminda se

tomou de repentina compaixo, nascia de sua vaidade mesma, quis cham-los para lhes dizer qualquer coisa, recusar sem ofenda-los. Perguntar a Tenrio que fim levara a Alade, se Benedito... Um grito do rio e outros subiram: da saia encarnada, tu no voa? Tu no guar? Orminda tentava imitar a arte perfeita daquela rapariga em jogar a mo cheia de farinha dentro da boca. Ramiro disse que ia selar um cavalo e levantou-se. Tocou o brao de Orminda, viu-lhe a marca do rosto: a senhora morre de tanto rir, num sbito atrevimento cochichou: Quero falar consigo, daqui com pouco. E logo ao defrontar Leonardina que surgia com o fumo de seu cachimbo, falou alto: A dona a est se rindo mas de sono, no, Madrinha?

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Deteve o galope, a boiada cruzava o rio. Reluziam ao sol as cordas ensebadas e retesas, as reses ofegantes, as selas, os rostos escuros. Montarias e varas, os bois guias frente e o grito dos vaqueiros: Vra! Vra! enchiam o rio barrento. Regressara do Mutum onde passara a noite danando e bebendo. Ramiro, depois de marcar uma quadrilha que foi um sucesso, saiu com seu par, a Orminda, na garupa de um cavalo cardo j pela madrugada. Missunga voltara s, sem solues para Guta, esfalfado. Transps os currais, apeou e entrou. Na varanda em passos midos, as mos atrs, o queixo espichado, com o seu dlm cqui aberto ao peito, sob o receio de prximo acesso de asma, Manuel Raimundo no escondia sua clera. Os Passares, donos do Mutum, vizinhos de cerca, andavam brigando com o Coronel por via de uma matana de porcos ordenado por Manuel Raimundo. Coronel h tempos os furtara numa ruidosa demarcao de terras. No Arari se

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sabia que o orgulho dos Passares era no deixar que Coronel lhes tomasse o Mutum. O administrador fingiu ignorar que Missunga havia danado no Mutum. Sabia exibir seus truques e suas manhas, numa irritao constante com que impunha a sua responsabilidade como administrador. Isso representava toda a sua vida, o fim de sua carreira de seringueiro do Acre, fugindo do seringal para escapar escravido das dvidas, guarda-costa dos Seriemas no Anajs, soldado de polcia, feitor, compadre do Coronel, e, por fim, administrador do maior fazendeiro do Arari. Saber administrar [230] cinqenta ou oitenta fazendas no era para quem soubesse apenas ler e escrever, ou entender de gado. Analfabeto, mandando que os filhos lessem as notas de conta, uma ou outra pgina da Bblia, Manuel Raimundo agia com o desembarao e a firmeza de quem sabe o que quer. Administrando as fazendas, considerava-se um pouco dono delas tambm e assim como pde obter a confiana cega do patro, saberia confundir Missunga, mostrar que a disciplina de uma propriedade deve ser uma questo do administrador e no do filho do proprietrio. Vaidoso do cargo e da confiana do Coronel, sabia que sem ele as fazendas no prosperariam como prosperavam. Muitas vezes, quando mandava ferrar ou assinalar e embarcar dez ou vinte reses por sua conta, para pagar os dentes de ouro dos filhos ou aumentar o seu rebanho, dizia a si mesmo: Ningum necessrio neste mundo mas imagine, seu Manuel, se tu desaparecesses, quantas cabeas de gado sumiriam, que seria do pai e do filho? Sabiam, continuava ele dum lado a outro na varanda, que estava proibido passar para as terras dos Passares. Pouco importava que a festa fosse de empregados. E voc, seu Elizirio... Missunga olhou para os dois vaqueiros encostados parede onde pendia um Sagrado Corao de Jesus. O administrador sentou-se na rede com falta de ar. Vou dar ordens pra meu filho fazer as suas contas. No

guardou obedincia, rua. E voc, seu Almerindo, me pedir para viver com a senhora D. Rita, respeitoso pedido... No sabia que ir festa no Mutum era desrespeitar minhas ordens, fazer pouco do patro, ofender os Coutinhos? Os Coutinhos? Missunga sorriu e acendeu o cigarro. Os Coutinhos. Guilherme Coutinho furtando o surdo-mudo. Antnio Coutinho, ladro de porcos no Camar, jogando no meio da baia o inventrio da sobrinha. Coronel Coutinho, assassino, ladro de gado, nu e ensaboado no banheiro mandando prostituir a filha do Amncio. Os Coutinhos! Missunga se ps a fumar, subitamente divertido com tudo que o administrador falava. Talvez da tirasse, concluiu sorrindo, qualquer soluo para Guta e para as suas confusas indagaes. [231] Est proibido amigamento nas fazendas. Seu Almerindo no tem um real de saldo. Deve os olhos da cara. Devia trabalhar um ano de graa para saldar a conta. E o compadre me prometeu acabar com festas tambm. Festa s faz cansar cavalo. E depois a proeza de seu Ramiro com uma tal de Orminda, uma rapariga que at morte j provocou. No se podia deixar entrar qualquer rapariga nas fazendas. E at seu Pedro, pai de sete moas, metido no Mutum. Esse, afinal, ainda se agenta... O administrador deitou-se na rede e deu um curto embalo. Missunga pensou: se perguntar que conheo Orminda, direi... M se limitou a dizer: Agenta o seu Pedro porque tem sete filhas moas, no Manuel Raimundo? O administrador no respondeu, aquietou-se na rede. Sete moas que podiam ser suas irms, seria a resposta, disse o velho, mentalmente, certo de que daqui a pouco tombaria com nova crise de asma. Missunga viu os vaqueiros descerem a escada, despedidos. Manuel Raimundo se embalava. L fora, o grito dos que passavam o gado no rio.

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No sabe do velho, em, Manuel Raimundo? Saiu cedo para o Menino Deus. Outro cigarro e as coalhadas de D. Roslia surgiram na mesa da varanda, no Menino Deus. Uma grande rede da cor das coalhadas para a sesta do pai. A rolia D. Roslia no tivera um filho com Coronel. Criava afilhados e fazia coalhadas. E todos os anos, em Menino Deus, dava uma festa por devoo a S. Francisco das Chagas. Manuel Raimundo, voc bem sabe que estive no Mutum, que dancei l... Dancei com Orminda tambm, Ramiro um grande marcador de quadrilha. E tambm conheci uma garota sua... Como v... O administrador, deitado na rede, respondeu com o olhar no teto: Meu filho; voc muito moo para compreender o que e uma responsabilidade. Aqui deve haver ordem, seno eles [2232] mon|tam em nosso cangote. Seu pai sabe. So meus zelos de compadre e amigo tambm. Voc amanh vai saber. Se voc me desmoralizar uma ordem, a disciplina est perdida. Voc foi ao Mutum porque no sabia. No lhe avisaram. Seno no ia. Ainda no mediu o que uma responsabilidade. Manuel Raimundo desenvolveu a sua lgica de administrador, repetindo: Responsabilidade, zelo! Responsabilidades, zelos... E afundou-se na rede, sem ar. Tentou erguer-se. Chamou pela filha que apareceu de boca aberta, cheia de dentes de ouro. Papai no fale tanto. Se aquiete um pouco. Missunga examinou os remdios contra a asma, o mao de receitas que estava no oratrio. Numa redoma de vidro cheia dgua a pequena imagem. Nossa Senhora dos Navegantes, lhe explicou a filha do administrador. J gosta de santo, Manuel Raimundo. Voc no era crente? Manuel Raimundo ergueu-se, suas mos tremiam, e caiu ansiado na

rede. No se pode contrariar uma coisa que vem do princpio do mundo, meu filho. Aonde anda o Antnio pra vir me dar a injeo? A injeo o que me alivia. No sei o que fao com esta doena. Comprei os remdios mais caros. Veja como estou com a carne dura de injees, dura, inchada. E, meu filho, no se meta com os vaqueiros. Sabe a responsabilidade. No se meta. Vem do princpio do mundo. A humanidade ruim, meu filho. Isto tem na Escritura. No h salvao para tanta gente. Manuel Raimundo, voc no desculpa o erro alheio? Mas uma coisa desculpar o erro alheio e outra administrar. Voc se admira porque tenho santo no oratrio. No por medo. Foi porque senti que preciso ter. A f do princpio do mundo. E da Escritura. Missunga voltou a sorrir e ao ouvir a palavra Escritura, se lembrou de Lafaiete. Acudiu o velho na crise, chamou o filho que deu a injeo, a filha dos dentes de ouro trouxe um leque e abanava o pai, com a mesma boca aberta, as argolas de ouro pesando nas orelhas. A imagem na redoma dgua tinha os olhos abertos de um peixe. [233] Voltou para a fazenda. Junto ao alpendre o cata-vento gemia, escorrendo sol nas folhas da bananeira. Os vaqueiros conduziam o gado, na outra margem, pros campos largos. Depois as folhas da bananeira murcharam. Os currais pareciam negros. O Arari era o rio que atraioara Aristides. O catavento gemia no silncio do sinuoso e escuro rio da morte de Mariana. Seco e parado, o Arari fedia a lama e a peixe podre, fumegante no mormao. A queixa, longe, de um boi mugindo. Uma ave, perto, num vo tonto, parece atrada pelo cata-vento que deixara de gemer. A noite era Nossa Senhora dos Navegantes afogada e os seios de Mariana boiando na gua podre.

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Missunga viu dois vultos na beira do rio. Foi a p saber quem eram. Reconheceu Almerindo e uma mulher. Voltou ao alpendre e ficou cochilando na cadeira de pele de jacar. Tinha a impresso de que no sono o jacar o devorava. Almerindo olhou os campos largos por onde o gado sumiu. Duas estrelas bem em cima de sua cabea. Passou a mo pelos cabelos e perguntou mulher: Mas ele tambm fez contigo? Ela no respondeu. Fala, anda, Rita, fez? Contigo mesmo, Rita? Foi? Teu tio soube? Como no haveria de saber... Teu tio? Ele te mandou, te fez ir? Mentira... Foi ele? Me fez, sim. Me apontou a porta do xadrez, disse coisa, tive de ir... Mas depois do que aconteceu entre ns, Rita? Te levou e tu foste, Rita? Mas quando mulher no quer, nem amarrada. No chora, no chora, asneira... Mas tu no te lembra da Lcia que o Jlio Ferreira matou na beirada? O cadver dela era de uma mulher que no se deu. Morreu fechada. Ele no abusou, se abusou foi em cima de um cadver. Podias ver a posio dela quando foi achada morta. Era uma mulher fechada, morreu mas o companheiro dela pode hoje se orgulhar de ter tido uma mulher como poucas... No chora... [234] Passou de novo a mo pelos cabelos, atrapalhado. Por cima as duas estrelas eram a limpidez mesma da noite. Estou despedido. Tu no pode viver comigo. Asneira. Asneira. Tudo uma asneira. Eu no estava exigindo tua morte. Calaram-se. Almerindo via o cadver de Rita ensangentado, retorcido, inchado, inviolvel, na atitude de defesa, as coxas juntas, as mos crispadas, a garganta roxa, os sinais negros da longa e desesperada luta no corpo inteiro, como vira em Lcia. Pensou no velho Manuel Raimundo sob o ataque de asma e Rita com ele na rede,

no tio que a vendeu. Rita agora podia partir de uma vez, podia desaparecer. Estava perdida como o emprego, s lhe restava era o dio ao tio dela, ao administrador. Rita lhe pertencera era ainda uma moa desde aquela noite nos tabocais. Noite em que esqueceu os duros trabalhos, os poldros que amansava, os igaps que rompia a cavalo com um dente de jacar como amuleto na bainha da cala ou no pescoo do animal. Nessa noite foi preciso pr a sela na montaria para no estrag-la era do patro como as travessias a nado de cavalo pelos campos inundados. Chegara cansado e faminto, mal provou um rabo de peixe assado e logo foi esperar a Rita nos tabocais. Perto, apanhado por uma cobra, o sapo pedia socorro. Agora era Manuel Raimundo, era o tio que a jogava nos braos de quem pagasse melhor. Lcia no se deu a Jlio Ferreira, um homem que no gostava. Lutou, lutou, podia se dar a dez vaqueiros da redondeza mas a Jlio Ferreira, no. E Lcia caiu no terreiro, esfaqueada, estrangulada, as coxas cruzadas fundidas em ferro, morta como uma santa. Vai-te, Rita. Vai-te embora. Asneira. Ningum pode. Eu me sumo. No quero estar pra um dia reinar contigo e te dar uma facada dormindo s em pensar que te deste. Afinal tu tambm foste uma ordinria. Um desespero contra Rita, dio e pena de a deixar, suas lgrimas a tornavam to inocente e culpada ao mesmo tempo. Lcia, sim. As coxas de Lcia, cruzadas, rgidas, de ferro e as coxas de Rita como lama na qual se mete o p at o fundo. Lama. Ele pariria procura do novo emprego. Rita podia ficar como lama que se abre a todo p. [235] Poucas luzes na beirada. Ramiro cantava na popa da montagem encalhada e Orminda ao seu lado, lhe pedia pra cantar a chula do rei que no gostava que o pescador dissesse se Deus quiser. Ele cantou depois a chula do preto Epaminondas. Almerindo deu as costas para Rita e disse com voz abafada: Te some da minha vista, ordinria. Que a asma do velho te

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persiga. O gogo do velho o teu remorso, assim espero. Quis dizer: Tambm da filha de um ladro no se espera outra coisa. Saiu correndo com pena de dize-lo e com o medo de que ela o chamasse para mentir-lhe que nada daquilo havia acontecido. Rita chorava manso, sem revolta, sem consolo. Se no tivesse confessado, teria Almerindo junto dela, mesmo despedido. No quis mentir. Ele no sabia o que foi aquela noite, sempre teria de cuspir ao pensar no gogo do velho que lhe impregnara a garganta, a lngua, o peito. Sempre ter medo de acordar sem ar, ansiada. Almerindo queria que ela tivesse a fora, a dureza de Lcia. Ele nem sabia que lutara, seu tio lhe armara uma cilada. Negou o corpo, se fechou, alegou que estava doente, chorou. Pensou mesmo confessar que estava grvida, o que era certo. Almerindo nem sabia, s o saber muito mais tarde e dir que o filho no dele. Podia mostrar a marca do esforo que tez, contar que gritou surdamente, mordeu os beios, podia dominar o velho que ofegava. Atravs da parede do quarto, ouviu o tio expectorar, atento ao que ocorria. Amoleceu, o calor sufocava, estava escuro, era medo, caiu-lhe a raiva do corao, das mes e dos dentes que mordiam, com um soluo e o pensamento em Almerindo. Faltara-lhe a raiva de Lcia, a fora dos dentes e das mos de Lcia que lanharam e tiraram sangue de Jlio Ferreira. Sentiu-se toda naquele catarro, pensou em sua me, e todo o seu corpo se imobilizou como uma tbua sob aquela velhice convulsa, enquanto l fora o tio expectorava. Almerindo no sabia, no deu tempo para ela contar, ao menos contar que estava grvida. Foi melhor, ele mio acreditaria, o velho o pai diria com certeza. Nem toda mulher tem a garra de Lcia. O que protegeu Lcia foi a fora da morte, lhe fechou o corpo a sete chaves, cruzou-lhe as coxas, lhe deu pureza e venceu Jlio Ferreira que de raiva a estrangulou. [236] Sentada na beira do rio, ouvindo a voz de Ramiro, Rita pensava em sua me morta h seis meses e nos irmos espalhados pelo mundo. O pai penou na cadeia como ladro de gado, voltou com

beribri, morreu depois, de uma ferida, cheio de bicho. Podia mostrar a Almerindo a marca do esforo que fez. No foi ela que se deu, foi medo, seu corpo uma tbua, uma pedra. Ao ouvir, de novo, a voz de Almerindo aquela pedra tornava a dar sangue, a ser mulher, a ter corao. No havia mais remdio para a sua vida. A filha de um ladro de gado tinha a sorte marcada. O tio mandava nela. No podia escapar. Almerindo iria atrs de outra que fosse como Lcia. Ela concordaria com o tio em dizer que o filho era mesmo do velho. Ah, mea vida, mea vida, disse suspirando, com as mos na terra, o cabelo caindo pelos olhos. E mais uma vez a lembrana daquela tarde, h tanto tempo, lhe pesou no corao, a tarde em que seu pai, despedido da fazenda, sara de S. Maral com a famlia. Tinha quatro filhos. Sua conta no rancho passava de dois alqueires de farinha, trs barras de sabo, dois quartilhos de querosene, dois metros de morim e tudo isso aumentaria com quatro filhos que comiam e vestiam como pessoas grandes. O patro, por isso, mandava-o embora da fazenda. Vaqueiro no podia aumentar a famlia, desfalcava o rancho. Na hora da partida, o pai lembra-se bem, era uma menina de barriga inchada parou na escada da casa grande, cabea baixa, cara encardida, os ps rachados, um talho de estrepada na perna. Quatro filhos! A voz de Manuel Raimundo ainda rolava dentro de seu ouvido como gua: Vaqueiro no pode ter familho. Subia-lhe confusamente um desejo de se livrar da metade dos meninos. Quatro filhos sem falar em dois que esto no cu. Parafuso queria sacudir do ouvido as palavras do administrador. Quantos anos vaqueirando. Chovesse ou fizesse sol, era ali, queimando chifre de gado para defumar os currais, procura vaca parida pelos campos, quando no amansa poldro, rodeava, ia correr pelo mato e igap atrs do gado arisco, desatolar bezerro nos lagos podres. Chifradas, postemas, febres, moio do corpo, tudo isso se curava na natureza ou com a fomentao da Madrinha Leonardina. O Parafuso andava todo podre

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por dentro, sentia a espinhela cada sem poder mandar benzer l nas Cuieiras onde tinham uma benzedeira de espinhela de mo cheia. Sua mulher no passava de uma vara, de to magra. Os filhos, aqueles moleques cheios de perebas, aquela Ritinha magra, inchada, os ps pretos de lama, j trabalhando, pescando, mariscando, correndo atrs dos bezerros. E por desgraa a mulher lhe tinha dito que desconfiava de outro... Outro o que, anto, Jovenila? De que valia o conselho de uma senhora de Santa Cruz: no comesse ova de peixe para no ter muito filho? Rita via o pai andando devagar em direo do rancho, como cavalo cansado. Mais tarde a caminhada. Ouvira ainda a me dizer a Parafuso: Que tu disseste? Te arruma que . A me hesitante, olhando para o companheiro, sem mostra nenhuma de espanto ou tristeza no rosto velho, ossudo, sujo. Parafuso deu um passo. Mas Antnio, tu... Jovenila, no conversa. Vamo embora. Mas pra onde, com toda essa gente, pra onde, anto? Ritinha via a raiva vermelhando nos olhos do pai. Para onde iam? Que lonjura era essa que amedrontava a me? Ouvira falar na casa do tio Crispim, to longe. Teriam de atravessar campo mais campo, tio Crispim gostava de espancar menina. Vamos, Jovenila, Ritinha... Com a trouxa na costa e os filhos na frente, saram da fazenda. Ritinha nem tomou a bno dos mais velhos, olhou a leitoa que criava, coou-lhe a barriga, deixou-a dormindo, pensava que fosse sua, to gordinha estava. Ela e seu mano mais velho correram pelo campo como bezerros que acabassem de mamar. A mulher escanchou o guri na ilharga. Parafuso olhou em torno, os currais, a casa grande.

Ah, possvel, foi a sua exclamao surda e contemplou por algum tempo a velha casa do rancho. Para que Deus lhe dera tanto inocente? Ao passar por um lote de reses perto do ltimo curral, a me alisou os cabelos. Deteve-se. Viu [238] algu|mas reses conhecidas, o boi Querubim, velho boi marrequeiro. Era boi de canga no inverno, puxava os jacars, cascos e montarias carregados de frechais, farinha, carne e couro de bfalos rebocados pelos bois que rompiam o aguaal. Boi Querubim aparecia tambm nos fins de tarde na fazenda carregado de marrecas. Via as vacas a que dera nome: Saudade, Estrela da Meia Noite, Borboleta, Anana. Ritinha gritava: Olhe, papai, a Anana. A Saudade. Me monte no Querubim, ande. Cala a boca e vamos, diabo. No queria olhar aqueles campos em que perdera a mocidade, tivera camaradas. As vacas ergueram a cabea e o contemplaram. Eram como mulheres amadas. E a raiva o levava para adiante. No contra Manuel Raimundo, contra o patro, a lei, contra os filhos, a mulher. Raiva apenas. No seu tempo de rapaz levava a vida como queria. Vivia aqui e ali remanseando numa malhada, trepado na caiara, ajudando a embarcar gado, carregando andor de santo em Cachoeira. Na vez que conheceu Coronel Coutinho, esticava uma corda no alpendre da casa do Menino Jesus. Quem tu s? Sou o Antnio. De apelido Parafuso. Ah, s o tal de Parafuso. E malandro. No serve pras minhas fazendas. No cria amor ao gado, fazenda. Aposto que es um folio, em? Parafuso riu e sentiu de perto o quanto era poderoso aquele branco. Se tivesse quem lhe valesse, no perderia tempo para passar ali mesmo, como nas velhas brigas de corpo com os vaqueiros, uma das suas rasteiras naquele patro, s para ficar com nome pelos campos. Curtiria xadrez, apanharia mas teria gosto de ouvir sempre

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da boca dos desconhecidos: aquele, foi voc que uma vez derrubou o Coronel Coutinho com uma rasteira no alpendre do Menino Jesus? Curtia sua cachaa sem barulho, meio embalando o corpo, soltando uma ou outra palavra toa, ento falando no que mais sabia dizer: suas proezas de vaqueiragem. Que era nascido para vaqueiro, isso era. Trabalhava quando lhe dava na cabea. Viera do Anajs, das fazendas l de cima. Diz que [239] fu|giu por ter feito mal a uma pequena. A pequena ensinada para levantar o aleive. Sumiu-se. Virou pescador de lago, ajudava tirar ovo de camaleo sem ter medo de cascavel dormindo na toca do camaleo. Molequinho ainda, Parafuso se atrevera com o pai, quis vara-lo com um terado. Uma notcia que correu o Anajs todo. O pai tambm Lhe dava de corda de quatro voltas. No escolhia lugar do corpo do filho para sentar o relho. Um dia, Parafuso se queimou. Mais do que a cordoada na costa e na cara, ardeu nele uma raiva. Apanhara demais e desde criana de peito era assim, apanhando, apanhando, no tinha me, j se via. Seu pai bebia como um sem alma. E ensinou o filho a beber: Toma, aprende. Desde moleque a gente aprende a ser macho. Bebe, corninho, anda! O pai escapou de uma teradada do filho. Dai em diante as pancadas cessaram. Parafuso crescia bebendo os seus goles com o pai, morrendo no trabalho e na cachaa. J taludo, encilhava cavalo, sentava sela, ensebava corda, encurtava rdea, botava as marcas no fogo em tempo de ferra, se atirava pros campos e lagoas, farras, embarques e pescarias. Com os outros ia atrs das guas cansadas, das vacas velhas to mansas naqueles encobertos. E gritavam: Esta por teno da Maria de Lourdes. L vai o Manduca atrs da negra Laura. Se atirava na rede, sonhava com a vaca lhe metendo o chifre no peito e jacar lhe devorando a perna, lento, como ona devora rabo de jacar. Nas beiradas, toldos dos barcos, banco de montaria, fundo dos

cascos, em cima de cavalo ou de pernas abertas no cho, Parafuso bebia e malandrava. Entrava fundo no mata-bicho. Meter a cara no servio, isto no, via muito bem como os outros caiam arrebentados e podres. A vida macia e solta com as velhas guas, as mansas bezerras e o chamego de uma ou outra rapariga de acaso era do que Parafuso apreciava, sobretudo quando tempo de peixe, quando apareciam os estudantes, acadmicos e ginasianos, filhos de fazendeiros. Vinham amar a poesia dos campos. Um bomio falava nisso num soneto dedicado ao Coronel Coutinho, [240] e o prprio Coronel recitava para os rapazes o verso de Castro Alves: O Campo, amigo, o ninho do poeta. Parafuso se aproximava dos estudantes, ganhava camisas velhas, lenos de seda, gravatas, um palinha, um pente quebrado, um cinturo. Generosas lembranas dos meninos fazendeiros. No lago Arari, acima do Igarap Fundo encontra a filha do pescador Zacarias, a Jovenila, mal nascendo os peitos, baixa, troncuda, as pernas musculosas, olhos achinesados, um cacho de murta no cabelo. Enfeitava a salinha da barraca com flor-trombeta. Tinha uma voz pausada de quem est sempre consolando. Uma voz terna, diziam os vaqueiros que a conheciam. Sempre risonha, uma risada mida e macia, seus dentes satisfeitos. Se falaram, criaram amizade um pelo outro, olhando os tarrafeadores que chegavam do lago. O vento levantava as palhas da barraca. As guas do lago, guas dum mar na ventania da tarde. Isso se deu em agosto, quando os tamuats apareciam, os folies de Cachoeira se preparavam para a tirao de esmolas, os vaqueiros iam para as contra-ferras e as auceneiras davam flor. Como Jovenila era doida por uma aucena e por uma fita amarela na cabea! Quando a filha do velho Zacarias lhe passou a mo pelo cabelo duro, cabelo de espeta, ele disse adeus vida macia. A voz dela era vagarosa, seu riso to fcil, os dentes brilhavam, midos e claros, como a maresia do lago nas guas do inverno. Longas noites no jirau

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da barraquinha, olhavam o lago se mexendo e gemendo na escurido. Os pescadores gritavam e cantavam, os vaqueiros se recolhiam aos ranchos, os cavalos se abanavam contra as morossocas. As lamparinas piscavam nas palhoas. O lago era um poo de onde a noite saa. Depois, uma noite, no toldo duma geleira um pinho gemeu, uma voz cantou, um bando de marrecas passou rapidamente. E o Coronel Brandzio, suplente de juiz, fez o casamento, num sbado, com as primeiras chuvas, com o velho Zacarias que no mais se sentia de to bbado. Ia ser homem da em diante. E acabou com quatro filhos e Jovenila, uma vara de magra, jogados no meio do campo sem ter para onde ir. [241] Rita, j em pleno campo, sentiu que podia ser novamente ameaada como fora dias antes. O canoeiro viu a menina: Vocs me do que eu levo ela pra Belm. Conheo quem precisa de uma menina assim. Pai e me se entreolharam. Que tu diz, Jovenila. A menina olhou de lado, esfregando as mos, se encolheu na saia da me. Esta, com a cabea baixa, sem responder, cuspindo a masca do tabaco. Limpou a boca com a ponta da saia e olhou a menina. Lembrara-se do parto. A criana se mexia na esteira, a me notara-lhe o choro estranho, e viu que a menina se esvaa em sangue. A parteira no apertara bem o n do umbigo da Ritinha. Quanto sangue perdeu! Jovenila esfregou o p numa toia de capim e de cabea baixa: Est a a menina. Por mim... Ento Parafuso disse ao abaeteuara: Pode levar, o nome dela Rita. Rita olhou o pai, a me, o beio tremeu, comeou a chorar. Passou a mo no rosto sujo e se agarrou na saia da me. No quero ir. Mame me pegue. No! No!

Vai, diabo. Que ento tu fica fazendo aqui? Ritinha ergue os olhos suplicantes, uns olhos midos e molhados. Em, papai? Eu vou? No? No? Parafuso, cara fechada, cheia de manchas, os beios roxos. A me, de cabea baixa. Ento a menina vai, ou no vai? A menina correu e agarrou as pernas do pai, gritando, com os olhos pulados. Aquele homem era capaz de lev-la, bot-la debaixo do toldo como uma manta de capivara. A me entre duas cusparadas, pegou o brao, sacudiu-a: Quieta, diabo. Te aquieta, demoninho. E asneira, seu Teodoro, ela no quer Parafuso disse, afinal, sem olhar o canoeiro. A me ergueu a cabea. Ritinha cada no cho, com os olhos parados. O canoeiro deu de ombros. [242] Jovenila se lembrou daquela menina levada aos gritos numa canoa para Belm. A menina esperneava, rouca de gritar. Ps a mo no ombro da filha: Traz aquele balde, anda, vamos. E grita, ento! Quem te bateu j? Despedido da fazenda, Parafuso se arrependia de no ter dado a filha. Ritinha sentia medo. Possvel naquela situao que outro homem viesse busc-la. A famlia caminhava. As poucas rvores se enchiam de cinza, amarelavam no campo ardido. O fogo lavrara aqui e ali. A terra negra e queimada, fumegando. Caminhavam meio sufocados, com as labaredas, o mormao, o vento levantava a cinza negra e envolvia-os. A criancinha aos berros, tinha desmancho, se vazando toda. Para onde foi o gado? Para que queimavam as pastagens? As labaredas corriam pelo descampado como grandes lagartos devorando o mato ralo, a pastagem seca. Todos sentiam os ps em

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brasa. No haviam trazido um fiapo de carne e os filhos queriam janta. Ficara a carne do rancho, a carne assada na brasa. Parafuso sentia um gosto de capim queimado, de terra queimada, o gosto da raiva. A mulher limpava o doentinho com a ponta da saia ou com a mo. Sentaram no cho morno debaixo de uma copuda murcha. Parafuso se estirou na terra e pensou: ah, boi Querubim, te quero bem mas nesta hora, tu entrava... Era sempre uma janta. A criancinha pendurava-se no seio de Jovenila. Cada leite? A criana pulava, berrava e chupava com desespero os peitos vazios. Ritinha com o medo de ser levada pelo canoeiro, comeou a chorar. At tu tambm? Olha, ela tambm quer o peito, a jitinha... te cala j! Seria levada para longe, metida no toldo da canoa como um filho de capivara. Parafuso pensava. Perdera a raiva. Chegariam de madrugada na casa do irmo. Crispim os receberia resmungando, danado, no podia com o peso Ritinha via a noite descer, o medo aumentar, longe mugia o gado, o campo sob o fogo crepitava. Parafuso, ento, levantou-se, saltou para a noite sob o espanto da mulher e dos meninos. [243] Riti|nha correu para ver o que era. O pai desaparecera. O curumim dormia no peito de Jovenila. O sopro do mormao queimava o rosto da mulher. Ritinha espiava a noite. Longe o fogo se alteando nos campos. Ritinha esperava. No esquece nunca mais a volta do pai, com o terado, a cala manchada de sangue, um pedao gordo de carne na mo. O olhar da me brilhou na sombra, os meninos se aproximaram, Ritinha parecia atordoada, passando o brao nos olhos e vendo o pai limpando o sangue das mos no tronco da arvore. Mas com o couro, Antonio? Jovenila nada mais perguntou, arriou o filho no cho, pegou a carne e olhou o fogo do campo.

Depois foi o tio lhe dizendo sempre: Teu pai o culpado do que aconteceu a vocs. Um ladro de gado. Um ladro. Vocs no podem prestar. Rita foi caminhando pela beirada. Ramiro deixou de cantar. O tio a esperava. Sou a filha dum ladro de gado, por isso Almerindo no me quis mais. Uma lancha apitou. Rumor de velas baixando, chegava um barco. Ah, se ela fosse se embora... Ramiro contou mas foi muita histria para Orminda. Orminda queria mais. Por fim, Ramiro contou uma do Coronel Coutinho: Coronel dera por falta da Miranda, uma vaca manina, novilhona bonita, me da malhada. Vinha sempre frente do gado do Menino Jesus. Os vaqueiros diziam que a estimao do Coronel pela novilha era como por uma mulher. Chama o feitor. Que contas me d da Miranda, seu Jos? Cismo do Gervsio, Coronel. Gervsio foi despedido do Alegre por desconfiarem dele. Levaram-no para o Coronel, com o rosto fundo, cabeludo, o peito aberto, suado e cansado do servio uma peiao de mamotes no curral. A carne da Miranda que a mulher do Honrio, grvida, desejara provar, enchia duas tinas na barraca de dois pescadores companheiros de Gervsio. Gorda que metia usura. Ramiro falou mais baixo, embora estivessem ss na beirada. Coronel leva Gervsio para uma ilha de mato no campo [244] e com a marca em fogo, gritou: Todo mundo vai saber que foste ferrado com a minha marca, seu ladro... Miranda est vingada. Castigo de ladro ferro em brasa. Foi na mocidade do Coronel. Quando eu soube, quis fazer uma chula. Castigo de ladro ferro em brasa, mas meu sentimento no deu. Conheci Gervsio, j velho, eu gostava do Gervsio. Coitado, no tinha jeito de ladro, ficou foi com pena da mulher do Honrio que desejara. O desgosto arrastou com ele pros confins da Monguba.

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Engraado, o filho da mulher nasceu e aleijou depois com mordida de surucucu. Pra voc ver a pessimidade desses brancos. Ferro em brasa no lombo. Enquanto fazia isso, mandava assinalar gado alheio, tomava conta das fazendas nacionais, botava criadores pequenos na misria. Os filhos dos fazendeiros se fazem doutores custa de gado alheio. Da noite para o dia os pequenos fazendeiros, como o Guarin, perdiam todo o seu gadinho. Ferro em brasa s para pobre como ns. Tu agentava ferro no lombo, Ramiro? Nem quero pensar nisso, mulher. Orminda riu-se. Lembrou-se de Marcelino, ladro de cinco mil ris, de dzias de ovos para vender a troco de espelhinhos e po torrado no Ver-o-Peso. Os dois subiram a beirada, Orminda, ento, pediu a Ramiro: Me faz ento uma chula assim: quem merece o castigo de ferro em brasa? E o meu pedido. Ofende? Dias depois, os vaqueiros da beirada, os pescadores no toldo das geleiras, as lavadeiras, conheciam a chula nova de Ramiro. Por isso Manuel Raimundo o expulsou das fazendas. A notcia correu. As festas iam perder o sal, aquela animao que s Ramiro sabia dar. Manuel Raimundo por medo, dizia Gaaba, no queria Ramiro nas fazendas do Coronel Coutinho. Medo da lngua e da msica de Ramiro, seus instrumentos lhe davam aquela liberdade, aquela cadncia, aquela franqueza que os brancos temiam. As chulas de Ramiro falavam dos vaqueiros, visagens, assombraes, podres dos brancos, davam vida. Nas fazendas dos Coutinhos, as festas ficariam mortas, adeus chulas e toadas do mestre Ramiro, adeus, festas no Rosrio, gargalhadas na beira do rio, cachaa e [245] peixe assado na proa das geleiras, porres de madrugada, quadrilha marcada a rigor. Adeus Orminda, na certa ir com ele, ei mulhero de cabelo na costa, na garupa do cavalo cardo. Gaaba via nos olhos de Ramiro o juramento de que havia de fazer uma chula contra Manuel Raimundo.

Os vaqueiros se despediam dele silenciosamente. As pequenas diziam na beirada: Ora, fique, seu Ramiro. Aquilo mais bobagem do seu Man Raimundo. Fique pra esperar o Divino. S se ele ficar debaixo da saia de vocs, suas guas, murmurou Gaaba, irritado. E aconselhou Ramiro a ficar pelas fazendas vizinhas, pela beirada do Capito Guilherme. Levaria Orminda? Ento Ramiro esperou mais uns dias em Santa Cruz, no lago, e olhando tantas e tantas vezes para Orminda, desfiando aqueles cabelos, dormindo naquele colo, curando o baque da perna naquelas mos, principiou a chula contra Manuel Raimundo. Uma noite, Missunga ouviu Orminda cantando a chula entre as mulheres da beira do lago que salgavam tamuats.

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[246] Ramiro e Gaaba foram para o embarque de gado do Capito Guilherme, primo do Coronel e tio de Missunga, que passava o vero na casa grande dos anjos margem do Arari, perto do lago. Currais em torno da casa, Cavalaria escolhida. Tijucal onde os porcos e os urubus se confundiam. Varas compridas para o coradouro das roupas. E o pequeno ptio, onde Capito Guilherme cachimbava sossegadamente, olhando o rio que se enfia pelo silncio das noites, ou, quando muito cedo acordava, para ver o sol nascendo. Ramiro contava Orminda: Capito Guilherme chegou a ser turuna na poltica, no roubo de gado e de terras. Sempre questionando com os fazendeiros vizinhos, sobretudo com o primo. Seu maior desejo: o Arari inteiro na sua mo, Coutinho no consentia. Coronel Coutinho no escondia em Belm, Cachoeira ou Ponta de Pedras que o seu primo comia a fortuna do surdo-mudo, era dissimulado como uma arraia, no queria matalotagem nas terras nem nos embarques de gado. Na sua lancha e

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barcos os tripulantes comiam peixe podre ou ardido. S peixe seco o rancho nas fazendas. Num tempo de crise de farinha, Primo Guilherme fornece aos vaqueiros farelo de arroz. Perguntaram-lhe ento: Mas, Capito, como os vaqueiros podiam comer farelo de arroz em vez de farinha? Capito Guilherme esfregou as mos e ajeitou o punho da camisa: Ora, podia ser... Tudo pode acontecer no mundo, [247] acres|centava, tudo comea com uma experincia. Capito Guilherme criava porcos de meia com os vaqueiros. Numa fazenda dele l pros centros, levou seus empregados para os duros trabalhos mastigando em seco, o dia inteiro. Pela boca da noite, voltaram, esfalfados e famintos. Na escada da casa grande, Capito Guilherme desabotoando a camiseta, voltou-se para os seus empregados: Agora pessoal, vamos ver se a gente faz uma pescariazinha no lago pra arrumar a janta... Tinha mais de quinze mil reses, mil e cem contos no banco e uma crescente renda de prdios em Belm. Gostava da camisa curta, cala de mescla azul e um rebenque. Em Ponta de Pedras passava semanas, gostava do ar da vila. Sua famlia morava em Belm com freqentes estaes no Rio e em Minas. Quis uma vez ir a Europa, na hora do embarque, pensou seriamente que seria obrigado a comprar roupa contra o frio e vendeu a passagem. Se procurador era um sobrinho que fazia discurso nos clubes dos br cos, calvo, baixo, vestindo-se sempre de branco, impaciente por no ter logo fixado residncia em So Paulo, aquilo sim, era o Brasil, pregava a colonizao alem. Capito Guilherme cultivava uma babosa admirao pelo sobrinho. Podia ver os seus vaqueiros sem sela, comendo vinagreira com farinha podre, inchados de opilao, malria e cachaa, que no lhe tocava os nervos, isso dizia Coronel em Belm, aos amigos. Mas falassem mal do sobrinho, como era costume

de Missunga e seu pai. Tinha orgulho daquele sobrinho, calvo e to elegantemente aborrecido e daquela filha que se educara na Inglaterra e guiava um automvel de ouro em Belm. Montarias se amontoavam na beirada. Os moleques se dependuravam nas porteiras, nos cavalos cansados, nos genipapeiros. As baetas vermelhavam ao sol, as cordas giravam no ar, as marcas esbraseavam na fogueira, o gado mugia e bufava aos montes nos currais poeirando. A vaqueirada entrava no servio, com quatro dedos de cachaa para espertar. Sustento essa gente com cachaa. a inteligncia deles, O povo quer beber enquanto trabalha dizia Capito Guilherme. Gaaba combinava com os vaqueiros: o coiro velho nos [248] pa|ga. Quebra, sem pena. Uma rs quebrada rs sangrada, matalotagem forada, e Gaaba ria. Capito Guilherme assanhava os cabelos. Os urros dos animais com a marca do ferro em brasa pareciam aumentar-lhe o desespero. Eita, novilha de minha devoo! gritava Gaaba. Explodiam as risadas. Crescia o cheiro do couro queimado, o calor apertava, a poeira e o estrume do gado escureciam o ar quente. Os vaqueiros abriam a boca, arquejantes, farejando cachaa e carne. Gaaba de mo virada laara uma novilha. Seus companheiros rodearam a rs. Gaaba desceu do cavalo e foi peiar [sic] a bruta. Atira-lhe o relho nos traseiros, a rs espinoteia e cai com os vaqueiros em cima. Quebrou! Quebrou! Capito Guilherme, gorducho e vermelho, largou todas as suas obscenidades contra os vaqueiros. Mais uma novilha quebrada! Suspendo o servio. Meto eles todos no xadrez. Carnes sangrentas chiavam no braseiro, os homens comiam fil com piro de leite. As velhas limpavam o bucho com gosto, babando o cachimbo, cuspindo pro lado. E os guris apedrejavam os urubus e jogavam bola com as bexigas.

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O fazendeiro deu ordem para recolher a carne das reses quebradas. Os vaqueiros, as mulheres; os meninos, os convidados para o adjutrio, trataram, ento, de esconder carne e midos. O feitor fazia vista grossa. Em torno da carne cerrou-se uma rpida e vigilante solidariedade. Passavam reses pelo rio. Bufando, na gua barrenta, os animais nadavam pesadamente, sem atropelo, na pressa de ganhar a beirada. Missunga, ali tambm presente, viu Ramiro meter a marca na fogueira e erguer a cabea, como um touro, para a outra margem onde algumas mulheres acenavam pedindo embarcao. Num instante Ramiro correu para o portinho, tomou um casco e trouxe Orminda, descala, vestido de floro, um cacho de jasmim nos cabelos soltos. Os vaqueiros tocando as reses brabas gritavam como saudando a chegada da mulher. Ramiro apanhou a marca em brasa e avanou sobre um [249] novi|lho peiado [sic]. Orminda ps a mo na boca, num vago susto em que havia mais faceirice. Ramiro ferrou o animal com garbo para que ela visse, no esquecesse nunca mais o que marca de boi na mo de Ramiro. No urro do animal ferrado, a tarde morria. Missunga despediu-se do tio que no o Convidou para jantar e saiu a galope. Longe, ouvia ainda o urro do gado e os eias dos vaqueiros. Atravessou um balcedo, bandos de patos selvagens passavam. Puxou a espingarda da cilha e atirou. Os patos subiram e outros bandos passaram rpidos num vo mais alto. Missunga voltou a atirar para o cu at o ltimo tiro e a noite tombou vagarosa, sangrando ainda do crepsculo, como uma gara ferida: A noite, Ramiro tocou e cantou para Orminda. O servio s terminaria no dia seguinte. Assavam carne nas moitas do campo, na beirada, mulheres riam e fumavam, vaqueiros bebiam e caam bbados na lama. Orminda ps o cacho dos jasmins j murchos dentro do violo de Ramiro, e os dois saram pela beirada. Ela encostou a cabea no

peito do vaqueiro e cantarolou: Cavaleiro do meu pai D-me um jarrito dgua O acalanto de sua me. Aquele acalanto era bonito tambm na voz da Das Dores. Tanta carne e sua me talvez com fome em Ponta de Pedras. Mais do que aquele ferro em brasa no couro do animal, foi o mal que fez sua me, aquela sbita vergonha e mgoa de si mesma, Ramiro solava a velha valsa que os campos conheciam Orminda desejou fechar-se no quarto e chorar muito, muito. Levaria carne para a mie, pensou na mangueira que ameaava a barraca, na sua almofada, a renda ficara pela metade. Tambm desejou beber um pouco de cachaa, a recordao de Paricatuba varreu-lhe o desejo e continuou a caminhar apoiada a Ramiro ao longo da beiragem. Que ele terminou de tocar, ela enxugou o suor do pescoo do amigo com os seus cabelos. Beijou-o. Fedendo a couro e cachaa, no? Ele riu alto. Deu um tom no violo. As vacas mugiam como [250] mes junto ao curral dos bezerros. Adiante, numa palhoa, uma criana chorava infinitamente. Os homens comiam e salgavam carne atrs dos capinzais. No rio, uma vaca bravia atravessava para margem de onde viera. Um cavalo relinchava curto e angustioso na escurido. De madrugada, Orminda e Ramiro dirigiram-se para o chiqueiro dos bezerros. Um vaqueiro falou: Querem, Ramiro, fazer uma f aqui? Experimente esta vaca. A dona no gosta de leite? Por que isto? Capito Guilherme deixou? Creio que de raiva. Depois precisa amansar algumas vacas pra quando a filha der na cabea de aparecer, ter leite. Ah... por isso!, exclamou Ramiro num riso zombeteiro, apanhando uma cuia no cho.

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Orminda, perto, esperava. Vendo-o, na vaga claridade, tirar o leite com vagar, enchendo a cuia que espumava. Subia da terra orvalhada o bafo noturno dos animais e das bostas do curral. Os bicos do ubre [sic] esguichavam na cuia, molhavam os dedos de Ramiro. As mos speras e escuras se tornavam delicadas e carinhosas, mugindo a vaca mansa. Ramiro ergueu-se, Lento, com a cuia na mo. Soltou o bezerro. Sem uma palavra deu a cuia a Orminda que primeiro fitou, hesitante, o companheiro. Este, sorrindo fez sinal com a cabea para que provasse. Ela provou e logo bebeu num longo sorvo. Quando ergueu a cabea, a espuma lhe alvejava nos lbios. E o bigode, disse Ramiro. Orminda passou a mo nos lbios e foi, por faceirice ou distrao, encostar-se na cerca, ia dizer qualquer coisa, tropeou numa estaca e com um grito caiu de costas, a cuia do leite espumante sobre o peito e o cabelo solto. Ramiro apanhou-a e f-la montar no cavalo. Foram galopando pela beirada para surpreender o lago no clarear do dia. Apearam-se diante do lago e dos campos que a luz descobria. Viram os garrotes erguerem e acariciarem as belas novilhas. No se ouviam mais as vozes dos pescadores na lanceao. As virgens [251] novilhas estavam amorosas e belas e o dia parecia nascer do fundo do lago. Os garrotes, babando, escuros e lentos avanaram e cobriram as novilhas espantadas. No dia subindo, um vo de gara tentava purificar a paisagem. Um rumor de mulheres se aproxima. Vm encher gua do lago. Trazem no amanhecer os peitos inocentes. Trazem o cheiro do peixe que abriam e salgavam durante a noite e seus cabelos esto pretos como as redes da lanceao. As moas vem como se pela primeira vez surgissem da madrugada e viessem ver os garrotes que amam. Os peitos e os sexos crescem fora do vento, do sol nascendo, sob aquele cheiro de peixe e bosta de gado. Elas, e Orminda tambm, contemplam com uma

quase deslumbrada curiosidade, com uma inocente malcia as novilhas ainda ariscas do amor que os garrotes lhes do. E as meninas, com os baldes na mo e rindo pela praia, como se tornam moas de repente. Ramiro e Orminda montam e o cavalo galopa a caminho dos Anjos. As moas voltam do lago e da madrugada, com a lata e os potes no ombro, como se voltassem tambm do amor daqueles touros. Orminda voltou a assistir ferra e o embarque e viu Gaaba suando, a cabea empinada, o caro tostado, crespo de espinhas, os beios de boi, saltados. Falava grosso, lentamente. Os olhos vermelhos diminuam com a fadiga e a cachaa. Orminda ria dos grossos nomes que ele mandava pros bois e os companheiros. Eu maltrato eles referia-se aos bois eles me chifram, me apostemam, me pisam. Mas quando embarcam, vo pro curro, eu sinto. E mea gente. Rangiam as talhas e os bois se empinavam no ar, oscilavam e caiam debatendo-se no poro. Quando as reses espinoteavam no ar, a algazarra era maior. Pegavam no rabo do animal e arriavam os cabos. Orminda via ali um mundo desconhecido e admirava Ramiro, a mo leve para o violo e a teta da vaca, dura para os bois ariscos. Ouviu-se um grito na margem adiante. Um boi teimoso e bravio mergulhara na gua lodenta, obrigando alguns vaqueiros a persegui-lo no casco pelo rio. Eh, Gaaba, atalha por ali! Gaaba se desbruava na borda do casco para apanhar os chifres do boi fera. Com baque nas costas, mal posto no casco, tombou ngua sob a vaia da vaqueirama. Acudam!, gritou Orminda. Algum lhe respondeu tambm gritando: Gaaba mergulhou, foi boiar atrs do caranzal, se escondeu l. Os vaqueiros esperavam um momento. Os bois enchiam a

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caiara, atropelados e arquejantes. Capito Guilherme, do toldo do barco, exclamou: Tempo se escoa, gente. Gaaba foi curtir o porre no caranzal. J viram piranha morrer afogada? Prximo beira, ondulava o caranzal macio. O embarque continuou. Orminda viu aquele boi grande laranjo suspenso pelos cabos, ficou num momento, junto ao mastro do barco, imenso e largado. Somente os olhos saltados pareciam vivos como os de um homem. Naquele instante no alto a cabea apertada nos cabos, a baba escorrendo, imvel e mudo, o boi falava com aquele olhar lcido e triste em que se refletia um pedao de nuvem e de azul do cu que lhe trazia a saudade verde dos campos, velhos currais distantes, as primeiras carreiras de garrote entre as novilhas suas noivas e cordas, muitas cordas, o golpe do lao o arrancara do cho e o levara para o ar. O boi ficou com o olhar fixo para o alto, fixo e profundo como se quisesse absorver o cu, tivesse compreendido o seu destino. O embarque continuou. Quando se ultimaram os trabalhos, Orminda veio correndo e gritou para os homens: Procurem ele. Ele no aparece, gente. Por amor de Deus! Ento com as caras suadas e queimadas, silenciosos e espantados, os vaqueiros se dirigiram para o caranzal. Atiram tarrafas, espetam vara no leito do rio, lanam a linha dos anzis, apalpam todo o fundo. As velhas aconselharam a vela de cera dentro de uma cuja que flutuou no rio. Onde parasse, ali estava o corpo do afogado. As montarias vm e vo com a noite caindo. [253] Uma hora depois, acima do caranzal, Ramiro sente um peso na tarrafa, quer saltar ngua, mergulhar. Ts doido, Ramiro. Olha piranha. A montaria avana, Ramiro joga a tarrafa, outras tarrafas se espalham no rio e Orminda ouve o xo! da lgubre tarrafeao, sentada com outras mulheres na beira.

De repente, Ramiro gritou: Pra, pra a montaria. Larga os anzis. Agentem a montaria na vara. No foi na tarrafa. Foi na linha. Puxa devagar. Devagar. Assim. Ele? Devagar. Calma, mano. Nossa Senhora! Gaaba, velho... Ele, companheiro... As montarias se aproximavam e todos vem surgir, devagar, luz da lamparina, fisgado pelo anzol e trazido pela tarrafa, o tronco todo comido. O sexo um buraco. As coxas intactas. Logo no meio dos fios rotos da tarrafa, a cabea sem os cabelos, descascada. As piranhas penduravam-se no esqueleto, pingando sangue. Algum gritou para as margens. De l, faris e lamparinas erguidas na escurido do rio. Ramiro, com o remo, bate as piranhas que popocam ngua, bbadas de sangue. Naquela noite mesma, Capito Guilherme partia com seus barcos cheios de gado. Ramiro encarregou-se do enterro, foi uma procisso. Voltaram do cemitrio para passar o dia em companhia da velha me de Gaaba, que, por cuidado de Orminda, no viu os restos do filho. Orminda entrou na palhoa, passou para o quarto e viu no fundo da rede, assoando-se, a velhinha que lhe abenoou. Em torno, silenciosamente, algumas mulheres olhavam. Orminda distinguiu na sombra a madrinha Leonardina, e Rita, sentada na mala velha, lhe parecia to cabisbaixa e sozinha como uma viva. Demorou-se pouco e foi sentar na salazinha. Ramiro ento lhe falou de Gaaba quando matava jacar nos lagos pelo vero. O primeiro a cair na gua lamacenta e fumegante para estourar [254] com o machado ou arpoar com o ferro a cabea dos monstros. Laava-os e os arrastava para a terra, torando-lhes a cauda. Hoje os jacars esto de festa.

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Ele me prometeu um couro. Me disse: deixe estar que vou lhe levar numa matana e fao voc montar num jacar-au contou Orminda. Ramiro ergueu-se e examinou o chapu de carnaba do morto, dobrado na frente, rodo nas pontas, queimado do sol, mofado pelo suor e pela chuva, em cima do velho ba de tampa amarrotada. Como que sentia a morte de seu dono. Viu a baeta rasgada, um pedao de corda, a inseparvel garrafinha de cachaa, os almanaques que no lia e que fazia questo de ter, os registros da festa de Nossa Senhora da Conceio em Cachoeira, a enfiada dos dentes de jacar... Tudo aquilo se engrandecia como se tivesse recolhido a vida que seu dono perdeu. Entrou um velho vaqueiro, foi ao quarto, logo voltou, a voz pigarrenta: Fiz questo de carregar a rede em que ia meu companheiro. Ele sempre ajudou enterro de pobre. Enterrou meu filho. E depois de um silncio: E que vaqueiro! Era uma graa quando dizia que no gostava do zebu. Zebu no urrava, dizia, escarrava. Queria era ouvir o urro do gado antigo, saudoso, urro dobrado que dava alegria no campo. E acabou-se um rezador. Poucos como ele no Arari para fazer um coro de ladainha acrescentou Ramiro. O velho confirmou, lento. Orminda deixou cair a cabea sobre o peito, abatida pela fadiga e pelo sono. Ficaram to silenciosos e recolhidos que no viram algum entrar e perguntar em voz baixa e apressada: E a velhinha? Como vai? De que precisa? Ela est bem, doutor respondeu Ramiro. O velho ergueu-se. Missunga encarou Ramiro lembrando-se do ato de Manuel Raimundo que o expulsava das fazendas e ao recordar a cantiga do vaqueiro ferrado, teve uma rapidssima impresso, no totalmente lcida, de que o instrumento de castigo, [255] de que se

servira o pai, no fora a marca em fogo mas a prpria inrcia do filho. Orminda permaneceu, durante o primeiro momento, de cabea baixa, fingindo indiferena, como receosa de mostrar-se ou encabulada. Quando ele a tocou nos cabelos, ela subitamente encarou-o com ansiedade como se ele a surpreendesse mergulhada naquela suposio da me enferma, com os restos do terror e de maus pressentimentos que a morte de Gaaba lhe comunicara. Missunga viu no olhar de Orminda qualquer coisa de uma acusao, o obrigava a confessar-se a si mesmo, como culpado tambm. Ambos estavam vexados. Orminda, pela condio de mulher de beirada, o rosto marcado, andando toa. Missunga porque no a pegava pelo brao e no a levava dali. Se lhe dissesse, mesmo sem certeza: Sabes, Orminda, que sou teu irmo? ela recuaria espantada. Seria talvez pior ao v-la confusa, abatida, fugindo-lhe, como uma culpada. E o ladro, o Marcelino? Missunga fez um gesto de impacincia, coou a cabea, e deu alguns passos pela salazinha. Conversou com ela a respeito da velha e espiou, depois, quase tmido, na porta do quartinho onde em torno da rede as mulheres continuavam imveis e silenciosas. Voltou a olhar para Orminda recostada na janela. Ramiro e o velho conversavam de rosto no cho. Orminda adquiria um ar de pensativa humildade, desaparecia a marca do golpe, os olhos em si mesmos, os cabelos na iminncia de carem soltos. Distinguia em Orminda alguns traos, logo desfeitos, de sua me e rostos como o de Alade, Guta, Helena, naquele rosto se fundiam e se enchiam da mesma pureza e da mesma sede de felicidade e de amor e outros mais desesperados e batidos pelo vcio e pela misria, como o de Laura e de Maria Lcia e de Adelaide, envenenada ou bbada. Ali estava um rosto que encarnava a beleza perdida, o amor perdido, a ternura que a pobreza arruinava e prostitua. A morte de Gaaba fazia-o tambm v-la cheia de um abandono e de um sofrimento que s vira em certas mes que olham, j sem lgrimas, o filho morto. Naquela hora ele quis avanar e beij-la. No mesmo impulso

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fraternal, poderia beijar-lhe a boca, e sentiu mais receio de si mesmo do que do escndalo ou da reao de Ramiro. Orminda podia adivinhar que nele se [255] de|senrolava essa luta? Logo, imprevistamente, subiu-lhe esta pergunta: Que necessidade havia de falar ao pai a respeito de Guta? Por que complicara o que era to simples e to justo? Salvar Orminda, voltar para Guta, e como resolver o problema de Alade abandonada? Para atingir a uma soluo era preciso despojar-se de si mesmo, no, no, esperaria outros tempos, talvez para resistir melhor e isto o fez sorrir, sentindo-se mais cnico e mais infeliz do que supunha. Orminda, at mais. Quando ia acompanh-lo at a porta, os cabelos soltaram-se e ela os apanhou cruzando as mos sobre a nuca. Ramiro fitou-a com surpresa e teve, como nunca, um pressentimento de que em breve ela, sem uma palavra, o deixaria. Sabe, Ramiro, estou com sono. Ofende? Se eu pudesse dormia. No quis revelar-lhe a crescente apreenso de que sua me estava doente e sem ningum em Ponta de Pedras. Deveria partir, ver sua me, largar-se pelo mundo, nascera para caminhar, fugir dos homens, at parar de to insatisfeita e infeliz no ombro de um. Ramiro, meu preto, tenho que passar esta noite com a velha. Gostaria de Ramiro? Gostaria algum dia verdadeiramente de um homem? O amado morto era uma medalha sobre o peito. Muitas vezes o via nos sonhos, acreditava na sua apario em noites escuras, espiando-a. Prendeu os cabelos, voltou a sentar-se, descansando o brao no ombro de Ramiro. A beirada do rio parecia morta. Missunga continuou caminhando. Quando menino, gostava de patinar na lama, como um porco, no tijuco, era, agora, o que acontecia com a tentativa de conhecer-se melhor e tomar uma deciso. Num vo baixo e to vagaroso sobre os

caranzais e mururs murchos, como se os despertasse e os fecundasse, aquela gara era a me da beirada. Missunga acompanhava aquele vo claro e pensativo sobre o alagadio e a solido. Anoitecia. Deixou-se levar a p pela beirada, entre rvores, at aos campos que ficavam mais impressionantes e fundos, a lua boiava. A gara, to branca, num vo fantasma. [257] De repente, os tetus assustados gritaram no alagadio, em de bandada. A gara precipitava-se e queimava-se no poente. Num teso, olhando o rio, algumas reses ergueram as cabeas. Ficaram estticas na ltima claridade, e grandes e atentas, dominaram os campos, o rio, a lua, como animais que a noite fazia surgir dos seus misteriosos lagos.

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[258] Nh Leonardina cinge o corpo com a faixa, invoca baixinho o caruana e corre em direo do lago. Anda pelo campo, apanha flor de batatarana, ouve o grito do sapo apanhado pela cobra e olha fixamente o gado. A paj sentou beira do lago, as mos murchas e trmulas, a voz to cansada. noite Orminda encontra a Nh Leonardina no cho, brincando feito criana, cantando baixinho: Atin-nan-nan Dinlindandan A paj perdia o poder da invocao. Aquelas palavras no tinham mais significao para o caruana com quem a velha Leonardina tivera uma vivncia to longa e to misteriosa. E em vo Orminda tentava levant-la e conduzi-la para a barraca.

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Aquelas palavras, queixa ou splica, onde o poder das palavras? Quem cortou a lngua de feiticeira que os donos do mundo temiam? Corria ao longo da praia. Perdeu a voz, perdeu a memria dos encantamentos, o fumo do cachimbo perdeu o dom do mistrio. Para onde o fumo que enche as almas, acompanha os destinos embalsama os feitios, ronda em torno das sesses da meia-noite, puxa dos poos e dos lagos as vozes da vidncia? onde ests, Cavalo Marinho? Onde perdi meu corpo bonito, mais bonito que o de Orminda? Por que dei meu corpo para a pororoca, por que perdi, bichos do fundo, a minha fora de enfeitiar e de fechar os corpos contra o alheio enfeitiamento? [259] S era a simples lembrana da toada: Mureruereua Atin-nan-nan Os pescadores estendiam as largas redes de lanceao em pleno lago. Dentro dgua cercavam os peixes como vaqueiros na malhada. Seus gritos significavam que a safra da lanceao era compensadora. A noite clara parecia inimiga dos peixes e do lago. Os caruanas no voltavam. Nh Leonardina olhava o cu, as guas e tremia. As redes avanaram sobre o cardume dos peixes O vento aumentou. Os campos caminhavam sem fim com a marcha das estrelas. Com a ponta da faixa arrastando no cho, as mos apalpando a sombra, a feiticeira corria, os cabelos espalhando-se na noite, como o vento e as vozes dos pescadores. O lago a endoidecia. Orminda pedia socorro. Na boca do lago, junto a um bote encalhado na lama, trs homens bebiam, silenciosamente. No escutavam os pescadores do lago, os bacuraus nem o grito de socorro de Orminda. Nh Leonardina estacou. Caiu na terra, principiou a brincar com

imaginrias bruxas, cantou um acalanto. Desaparece o Cavalo Marinho, o cachimbo, o reino da feitiaria. Em seus olhos, e sua voz, em seus gestos o ar da infncia que voltava. Suas lgrimas caam lentas pela faixa e pelas coxas sujas de terra. Esse acalanto Orminda desconhecia. Vinha da infncia cheia de verme, solitria, vivida num jirau sobre a lama onde as cobras deslizavam.

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[260] Vieram as grandes chuvas. Com as primeiras guas, os regos borbulhavam, peixes subindo para os campos. Rios e lagos engrossavam a voz na trovoada, no ronco dos jacars que desciam das cabeceiras. De madrugada, os vaqueiros saam a galope para salvar os bezerros atolados. Dezenas de reses morriam na inundao. Os bfalos soprando ngua, imveis e negros, assustavam os jacars. Sucuriju ia apanhar os patos e rondar as crianas nos jiraus das fazendas. Com a vontade de ir pros longe, ouvir o vagido das nascentes, o pulso do rio enchendo, Missunga andou a cavalo durante o dia. Deu dois tiros sobre o pequeno lago atrs do bamburral de onde, com alarido, debandaram colhereiras vermelhas, um tuiutu, marrecas e um altssimo e grave maguari. Os socs voltaram a cochilar mais adiante, arrepiados. Missunga distinguiu, na lonjura, os vaqueiros a galope rompendo o aguaal, atravessando as lagunas, tocando os rebanhos para os raros tesos. A luta para salvar o gado se tornava mais difcil. Trabalhavam nos atoleiros, famintos, estropiados, doentes. Os jacars, os sucurijus, as arraias tocaiavam. No Lago Arari, Orminda viu de repente a gua crescer em torno da palhoa e em toda a beirada. Via seu rosto refletido, ondulando, naquela gua de inundao, seu corpo, seus cabelos pareciam mururs e olhava tanto para as guas que Ramiro falou:

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Eh, pequena, tu acaba flechada. [261] O lago se espalhou pelos campos, comeu as lonjuras, ilhou as palhoas, bateu de leve debaixo dos jiraus, espiando o sono dos pobres. Caiu ento um silncio de princpio de mundo em que os homens se misturavam com os bichos deslizando nas guas e na lama, na espuma das enxurradas e na folha dos mururs. O peixe, em abril, se esconde, vai desovar nas baixas e nos lagos mais distantes. Os tripulantes das geleiras gritavam at o fim do ano aos pescadores, e estes iam deixar o resto de suas vidas no balco de Sinhuca Arregalado. Os botes pegam porfia no lago. Orminda v da janelinha da palhoa as piranhas na gua transparente. Talvez as mesmas que haviam comido Gaaba. Atravessavam a imagem de seu corpo, deslizavam sobre os olhos e sumiam pelos cabelos. Noites e noites, ouvia a gua crescendo na voz da chuva. De madrugada, o cabuculino piava, a saracura fazia trochop! na gua, a algazarra das marrecas e dos periquitos acordava o lago. Orminda olhava o dia pesado, longo, a solido aumentava. Ramiro andava longe. Comeava a perguntar aos pescadores pelos pirarucus que rabeavam na popa da montaria, como lhe contavam em Ponta de Pedras, pelos tambaquis arpoados na correnteza. Aonde andavam que no apareciam? Foi-se, lhe dissera Ramiro, o tempo em que pescar flecha fazia gosto. Os caboclos desciam da montaria ou do cavalo e cercavam os cardumes, saltando, muitas vezes, sob a pontada eltrica do puraqu. Nos lagos prximos onde h peixe, o rifle dos fazendeiros est na mo do vigia atento. Recolhia a linha de anzis com isca de pitomba e nem um aracu, um apap. Os donos do rio no eram mais os peixes nem as cobras grandes, mas Coronel Coutinho, Capito Guilherme, Sinhuca Arregalado.

Tambm na fazenda, Missunga via no fundo da gua o rosto de Aristides, as piranhas devorando Gaaba e Mariana de coxas molhadas e lisas em que o menino escorregava beira do igarap. Aquelas chuvas e a enchente lhe davam um novo torpor, a suspenso da vida, a solido da gua. Tudo voltava ao lodo primitivo. [262] Decidiu regressar, talvez Guta fosse mesmo a soluo menos ruim. Antes de descer para Ponta de Pedras, Coronel Coutinho fez as ltimas recomendaes ao administrador, embora certo que Mamei Raimundo faria tudo bem nas fazendas. Cuidado com a matana dos passares, com a desova dos peixes, com a febre no gado. Vigiar os bezerros contra os jacars e as onas. Nenhuma pena desses ladres de gado. Ia providenciar para a criao de uma subdelegacia de polcia no lago. Precisava acabar com os ladres que esfolam porco e boi no meio da gua. Energia com o pessoal. Poupar o mais que puder os ranchos. Energia com vaqueiro que no podia tirar mercadorias mais do que permitia o ordenado. Manter sempre vigia armado no lago e nos igaraps. Ao sentar-se na rede armada na lancha, viu, surpreendido, a Orminda entre outras mulheres que passavam numa montaria remando. E exclamou, gracejando, imitando voz do caboclo: Suco, por Deus! Que ento aquela anda fazendo por aqui? Manuel Raimundo pigarreou e riu. Missunga, na escada do trapiche, acompanhava com o olhar a montaria desaparecendo na curva do rio cheio. E muito tempo ficou, sentado ali, tentando escrever na gua, com um canio, a palavra Dagmar, o verdadeiro nome de Guta.

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[263] No novo porto de Calilo, que se transferira para o Mut onde se casou e enviuvou a sofra fora obrigada a mudar-se, Elias desabotoou a camisa: Olha, Calilo. Mas como? Os filhos do administrador do Coronel, Calilo. O srio chorava, a costa marcada de chicote. Ainda estava trmulo e espantado. Os filhos do administrador no Arari lhe pegaram duramente no brao: Quem lhe mandou tirar peixe dos lagos? Quem lhe deu ordem para andar vendendo seus troos nas fazendas? Por que anda comprando carne de rs furtada, seu patife? Pois vai provar da nossa muxinga. Calilo abanou a cabea. Considerou a misria do patrcio e intimamente lutou contra a piedade, que aquele homem lhe inspirava, no conforto e segurana em que vivia no Mut, o fumo no brao pela viuvez to cedo, os haveres crescendo. Elias, pensa bem, voc nunca procurou agradar Coronel. Fazia uma cara de lstima, traou um gesto de contrariedade paternal: E a mercadoria? Tiraram tudo? Tudo, tudo. At minha roupa tiraram, Calilo. Me deixaram de cueca no batelo, foi preciso que uma mulher me arranjasse uma cala na beirada. E Elias, sujo e chorando, viu Orminda, na beirada, com a mo na boca para no soltar o riso, diante daquele quadro no batelo: [264] ele, com a costa sangrando e de cuecas, Tenrio com o sal tentando curar-lhe as feridas. Ela desceu, acenou para Tenrio que lhe contou o sucedido e correu para a barraca. Trouxe uma cala, um ungento e saltou no batelo. Mandou que o srio experimentas-se a cala, que serviu, e examinou a costa do homem. Tratou das feridas, ensinou Tenrio a usar o ungento e ao partir sentiu, sem o querer, que, como

consolao, podia levar o srio para passar uma noite com ela. Por isso caiu numa grande risada, ando doida-doida, como dizia o Capito Lafaiete: meu Deus, me d um tantinho assim de juzo, no sei se o que fao mesmo por destino ou porque sou m de natureza. O srio, cabisbaixo, sentia o ungento fresco nas feridas, sentia as mos dela, Deus meu, uma santa, lhe beijaria os ps. Atrs daquela risada se escondia a bondade de uma santa. Tenrio desatracou o batelo e comeou a empurr-lo vara no rio raso. Pois, meu caro, Coronel e meu amigo. Devo tudo a ele. Voc no agradou o Coronel. No bateu de mansinho na costa dele. Abusou, comprando carne furtada nas fazendas. Pelo amor de Deus, no me comprometo. No posso lhe fazer nada. No posso estar lhe defendendo. V. Elias desfiava a bigodeira, olhou o batelo. Dentro do batelo apenas um resto de mercadoria avariada. Tenrio queria um matabicho. Nem jeito tinha de pedir a Elias. Pediria a Hemetrio que, no balco, exibia o seu riso e um cigarro aceso entre os dedos? E o ouro?, indagou o remeiro a si mesmo e concluiu: esse Hemetrio , um bom do malazarte. Calilo, no tenho sorte. No tenho sorte. Gritou na lngua dele umas pragas rpidas, umas imprecaes, os olhos furiosos, as feridas lhe doendo, a vontade de se atirar sobre Calilo e mat-lo. dio daquela prosperidade de Calilo. Calilo falava em abuso e quem seno Calilo embarcava gado alheio no Mut, altas horas da noite? Abateu-se sobre o balco, soluando e foi uma longa lamentao, 6 vale de lgrimas, 6 infinita misericrdia divina, que maldio foi esta que pesou nos meus ombros e me desgraou para sempre! Calilo pesava o sal, a velha reclamava furto na pesagem. Sim, na verdade, pensava ele, indiferente [265] reclamao da mulher, Coronel Coutinho lhe havia pedido informaes a respeito de Eh as. Disse apenas que no poderia responder por ele. Afinal, Elias seria um competidor na amizade e proteo do Coronel. No chegou a

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afirmar que Elias era um patife, no. Deu a entender que era? Por que comprou carne furtada? Por que vinha se lamentar no seu balco a ponto de compromet-lo? No o convidou para o almoo. Elias compreendeu. Sua voz se embrulhava na garganta. O peito tremia. Desceu em silncio e caiu no batelo como um corpo numa cova. Tenrio empurrou a embarcao para o meio do rio. Comeou a remar, seco por um cigarro, suspirou num gemido: vida cansada...

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[266] Naquela manh de domingo, Guta amassava o aa para cedo levar a comida a seu pai e irmos que trabalhavam no mato. Andavam caando novas rvores para a canoa veleira que o Coronel Coutinho mandara fazer, exigindo pressa. Uma canoa veleira a capricho para encher o pano no geral da baa Marajoara. Coronel no abandonava essa mania. Era dono de grandes barcos, novos, que conduziam gado, um lancho a vapor, dois motores. Canoas como a que mestre Amncio ia construir, ele as tivera em penca e vendera. Lafaiete gostava de dizer: Compadre verstil em barcos. Em matria de iates e canoas e um D. Joo. O tabelio repetia essa espcie de pilhria no cartrio com uma profunda convico de que sabia ter esprito e conhecimento de certas palavras desconhecidas em Ponta de Pedras. Isso feria a curiosidade e inspirava uma vaga inveja, uma passiva inveja, em seu Nlson. Ao mesmo tempo, o Lafaiete ao referir-se a D. Joo insinuava um pouco a sua histria de antigo conquistador, de verstil em mulheres, de que tinha orgulho. Apenas verificou que o seu donjuanismo estava morto quando no pde conquistar Orminda. Esta lhe escapou das mos como o tempo, a vida, o segredo de sua arteirice. O tabelio ouvia do seu compadre:

Mestre Amncio tem que arranjar uma boa madeira para armar a futura Prola do Marajoau. Embora tenha que me enjoar meses depois e vender. Depois o mestre me deve uma conta enorme. Dou-lhe trabalho para ver se diminui a dvida. Mas qual! Aumenta. Comem muito. A filha gosta muito de vestidos. E uma pena que ela seja bonita. [267] Por que, compadre? Acho que bonitas s devem ser as mulheres ricas. As pobres, no. Sei por experincia. Uma menina como a filha do mestre Amncio pode ser um perigo para si mesma e para os outros. Que outros? Coronel Coutinho no disse mais nada, esqueceu-se que o tabelio estava mais ou menos a par do assunto. Percebeu Lafaiete que Coronel, seu velho e to seguro compadre, encontrava-se indeciso, podia, pela primeira vez na vida, ter um problema de conscincia. Talvez compreendesse que estava em jogo alm da do filho, no a sorte de Guta mas a de Orminda. Uma expiao poderia desabar sobre o homem poderoso e tudo dependia de um gesto do filho ou de um gesto desesperado de Guta. Teve mpetos de ir a casa da moa e insinuar, indagar, fazer o possvel contra os Coutinhos. Mas temia a simplicidade da moa, a visvel repugnncia ou temor com que ela o tratava. Guta no amassava o aa cantarolando, como era seu hbito. Escrevera a ele um bilhete a lpis, em envelope fechado a lacre do mato e por mo segura, com estas palavras: Vou ser me. E estava um pouco apaziguada por ter escrito. No recebeu resposta, nem uma linha das fazendas. Compreendeu de maneira quase definitiva, ele fugia dela, preparava a sua ausncia para sempre. No lhe escrevia uma longa carta porque se envergonhava da m letra e da pssima ortografia. Aquele bilhete havia sido escrito muitas vezes, longo, breve, rude, terno, desesperado e sereno, cheio de humildade e de orgulho. E o ltimo melhor expressava talvez a deciso de ser me

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e a esperana de que ele voltasse. Resolutamente o prenderia sob nica condio, a do casamento. Como Alade, como as amantes do Coronel, no, nunca. No soubera falar diante dele nem escrever como era preciso. Ao seu lado permanecia silenciosa, intimidada, cheia de contraditrios pressentimentos. Encostar a cabea no seu ombro, pedir-lhe que a levasse, confessar-lhe que o amava desde o tempo de menina, mentir-lhe mesmo, falar-lhe com um soluo, estaria perdida sem ele um desejo e um clculo que no ousara realizar. Ter ele recebido o bilhete? [268] Parou de amassar o aa. O pior no era o pai cortar-lhe a cara a muxinga, bater-lhe muito, enxot-la de casa. Nem a reao violenta dos irmos. Seria o olhar do velho menos indignado que aflito, de quem tanto confiava nela minha filha tem o juzo da me, uma dona de casa. O espanto dos irmos, a tratavam to bem como poucos irmos neste mundo. Quando precisamente o momento em que no mais poderia ocultar ao pai e em que nenhuma esperana mais teria de Missunga? Uma confiana dominou-a e ficou, por isto, acreditando na lealdade dele. Ele no podia, de um jato, lanar toda a lama em seu corao, todo o desespero do mundo em seu amor, o seu amor era naquele instante razo mesma de sua honra, a sua nica e verdadeira honra. No fosse amada por ele, teria de ficar desonrada e no por causa de sua virgindade mas pela impossibilidade de tornar a amar a algum. Seria uma pobre mulher cuspida e solta no meio de uma trovoada dentro da mata. Uma vez, no porto da vila, observava de perto as Azevedos, moas fazendeiras vinham para a festa da Conceio. To diferentes dela, to de cima, como seus vestidos as engrandeciam, as separavam do povo. Eram brancas como modelos de figurinos, contemplavam o povo com uma ruidosa indiferena, um esquisito e at simptico desdm. No meio delas, Missunga, to simples, to vontade, fazendo-as rir com as suas graas. Por que s aquelas nasceram para ele, por que Missunga lhes pertencia? Se uma

delas aparecesse de filho tudo ficaria em famlia, eram brancas. Mas ele teria falado a elas sobre o seu tempo de menino, que havia de comum entre elas e aquele moo branco preocupado em recordar a sua vida aos oito, aos dez anos, reocupado em tudo que lhe falava de me, dos brinquedos, de Mariana, como se quisesse ser feliz de uma maneira diferente dos da sua igualha? Ao refletir assim, Guta decidiu que havia de criar o filho, no diria o nome do pai, e uma desesperada saudade a levou para as passadas noites de dezembro quando arrumava o terreiro, era moa, livre, enfeitava o Menino. E comeou a amassar o aa, devagarinho, sem foras, como se amassasse a prpria angstia. Preparou o balaio de comida, mudou de roupa, lhe deu de [269] vestir aquele vestido branco, lhe recordava o baile da Intendncia, e vestiu. Olhou-se no espelho: estou uma noiva, benza-te Deus. Pela primeira vez danava com ele e a princpio tremia quando seu rosto tocava no dele como se fosse pela primeira vez. No baile, como que se tornara to pura e to virgem, assim idealizara o primeiro encontro com o amado. Com aquela valsa, sim, queria que comeasse o que comeou e se precipitou beira do poo, na sombra, sob o medo e a solido. De madrugada, era a quadrilha mal danada e mal dirigida, repetida e sempre alegremente confusa. A msica e a dana restituam-lhe a namorada que ela desejara e sonhara ser quando pela primeira vez gostasse de um rapaz. Foi ver as cartas na almofada. Sorrindo, amarrou de novo, com a fita, o embrulho de cartas e ficou um instante pensativa e hesitante. Sim, preciso. Disse e desamarrando o embrulho, dirigiu-se ao fogo, soprou as brasas e foi queimando, uma a uma, as cartas que lhe falavam da infncia, de D. Branca, de seus olhos, queimando as palavras, a letra mida e gentil do amado perdido. Sem uma lgrima, apanhou o balaio, mexeu com o papagaio: Vou ali com o meu namorado e j

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volto, ouviu, meu louro? E saiu vestida de branco, e fita branca no cabelo, um ramo de jasmins no peito e descala. Tomou a direo da mata, teria de caminhar hora e meia, mais ou menos. Seu pai e os manos estavam realmente longe. Como queria a canoa o mais cedo possvel, Coronel pediu que trabalhassem naquele domingo. Teriam de cortar a rvore, arrastar a madeira para a vila pelo igarap. Mais forte, como nunca, o cheiro das rvores, de cho queimado, resinas e razes esmagadas, gua estagnada e frutos brabos que apodreciam. Sua maternidade se fundia com a da natureza, comunicavam-se com os cheiros, os desejos, a moleza e o torpor que havia na mulher e na terra. Caminhava distrada, o balaio na mo, o caminho apertava nas espessuras e os japiins balanavam os ninhos. Parecia mais cansada ah, se estivesse to amorosamente cansada como no baile, como ele danava bem e no perdia uma parte sequer. Depois [269] fo|ram janela, tinha as costas molhadas, os braos, o ar da noite envolveu-a como um banho. Ele no dizia palavra e ela queria que ele repetisse tudo o que mandara dizer nas cartas e tal era a vontade de ouvi-lo que bruscamente saiu da janela e foi ao toalete fingir que ia se empoar, emprestar um leque, conversar com as companheiras. No, estava s, s no baile. O amor era uma solido. O desnimo lhe vinha da insnia, do desejo de fuga, daquela impregnao de terra e seiva que lhe poderia provocar um desmaio. Toma um atalho os tucumzeiros amarelavam os cachos, gostaria de tomar o vinho daqueles tucums meio verdes ou ro-los. Pelo atalho chegaria mais cedo, surpreenderia os trs... Ouvia chuva vindo longe ainda no mato. O balaio pesava, as pernas doam, o atalho cerrado e lamacento. A chuvarada se aproximava. Avanou correndo, j ouvia o bater dos machados confundindose no estrondo crescente da trovoada. Nesse instante, Guta, excitada,

decidiu lutar pelo filho, tambm por seu pai, tudo faria para casar-se com ele, ningum melhor do que ela. Tropeava, fugindo sem temor, habituada queles aguaceiros com ventania de repente. A mata se agitou num surdo desabamento. Guta corria acreditando em sua fora, ele voltaria, o filho o prenderia, casaria sem vu nem grinalda? Subitamente escureceu para a moa, o atalho, a chuva, o salo do baile, a lua na caixa de fsforos, a rvore tombava e a envolveu numa rajada.

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[271] Missunga avanou para a casa grande. Ao subir o trapiche, olha os fundos da casa grande, a varanda sobre o rio. Estava segura de que no casaria, aquele bilhete era um desafio, um domnio sobre a paixo e as iluses. Como diante dessas palavras era ridculo o seu remorso, mesquinha a sua acusao ao pai. O pai mandara Amncio trabalhar no domingo para apressar a construo de uma canoa intil. Argumento falso. Tropeava nesse terreno inconsistente e viscoso. A acusao ao destino, a si mesmo, aos elementos da natureza, trovoada, chuva e rvore, reduzia-se a lento desespero. Voltou a reconstituir os dias de ausncia no campo, em que ia perdendo a saudade dela, ganhando a convico de que seu pai, com a recusa, o conhecia mais intimamente do que pensava, o desgosto de t-la arrastado quele extremo, a certeza de que ela ocultaria tudo e algum escrpulo, de resto. Mas foi s naquele trajeto do trapiche, o bilhete e a notcia o despertaram, e se agitou aquele pntano que era a sua conscincia. Ao entrar no quarto, as mos na cabea, fez um balano instantneo de sua vida. Sem querer achou-o cmico. A rvore tombava

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vagarosamente no pntano, o rosto de uma pobre moa aterrorizada e condenada emergia da lama. Compreendeu, com fria e passiva lucidez, o seu egosmo vulgar e sem remdio, a gratuidade de seus atos, a deleitao com que explorava e envenenava a dor alheia, a humildade, a ternura e assim, num momento,. pensou que se casando vivendo, logo emendou com Alade, poderia devolver ao pntano a sua paz. No seria possvel, [272] atravs desse esboo de remorso, arrancar uma nova vida, ter o pungente herosmo de olhar fixamente para dentro de si mesmo e retirar a face da morta como o primeiro gesto de reconciliao com o mundo e de aceitao do sofrimento? Com Orminda fracassara. Orminda, a exuberncia solta do povo. Seria possvel estender a mo para Orminda atravs daquela morte? Verdadeiramente desejou um grande amor pela morta, que o fizesse romper com o pai e salvar Orminda, recolher todos os seus irmos dispersos. Riu, afinal, dessa nova soluo. A realidade era a morte da moa, lhe fixara, num relmpago, toda a sua condio de homem opressor e infeliz. Romperia com o pai, no chegava ainda a pensar se podia romper consigo mesmo. O pai bateu na porta do quarto e. entrou. Na escassa claridade, os dois homens defrontaram-se, em silncio. Quando voc embarca para Belm? A fcil pergunta, a voz tranqila. Nada sucederia naquele instante quele homem? Tentou compreender que devia lutar contra o pai, diretamente, para dominar a solido, recuperar a melhor lembrana de sua me, e esse desejo, novo ainda, impreciso, que o comovia, de servir vida, merecer aquele amor desaparecido. No sabe quando embarca? Naquelas palavras havia o hbito de uma rude, tranqila e domstica persuaso. O pai e o tio Guilherme eram to seguros de seu poder, de sua vontade e de sua inocncia ante a injustia e o

sofrimento, que pareciam crianas. No havia neles receio, dvida s, muitas vezes, o medo da morte e dos fantasmas no pai nenhuma necessidade de conscincia e de mudana. Velhos garanhes felizes, multiplicavam aquele sujo e desgraado rebanho em que se viu apanhado, por acaso, entre Guta e Alade, e Orminda segurando a feiticeira louca. Pai e tio eram o que eram porque os bois o queriam. S distinguiam a carne das vacas da carne das mulheres porque as vacas valiam mais no matadouro. No entanto ao pai e ao tio sua vida pertencia, era parte do latifndio, o rebanho lhe seria entregue como herana. Durante o silncio em que se debruara nessa obscura [273] anli|se, da qual tambm se surpreendeu, olhou o pai curvado sobre a pequena estante onde se entrevia na sombra o retrato de D. Branca. Meu filho, isso passa. Ah, exclamou a si mesmo Missunga, quase aliviado. No sabia ao certo que o pai, alm do primeiro susto, pouco se impressionou com as conseqncias do desenlace. Sorte era sorte, foi a explicao. Quis apenas com essa desculpa afastar o filho daquela morre como o afastou do casamento. Missunga comeou achar possvel torturar o pai, utilizando-se da fraqueza e da emoo que viu nas palavras do velho e por isso fingia maior revolta e desespero. Ento concluiu que, em lugar do remorso ou pena de si mesmo ou da vontade de reagir, aquela cadeia de emoes e de pensamentos havia de passar. Certeza de que era um homem pior do que pensava e no tinha salvao. Novamente, o rosto de Guta emergia do fundo do pntano, a boca derreada, os punhos esmagados entre as folhas. Isto lhe deu ao mesmo tempo um mpeto de vergonha, o impulso de esbofetear o pai. O velho deu alguns passos, circulou o olhar em torno do quarto e saiu. Voltou para dizer: Venha jantar.

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[274] Ciloca repetia as palavras de nh Clara. Sangue de menino era puro. Mordesse a carne de um menino bem no sovaco e visse. Ficaria curado. Nisto passa um menino, esverdeado e lento como um bicho-tapuru. Outros meninos passam, magrinhos e velhos, os seus moleques amigos, ouvintes de histrias na esquina. Nem que fosse um menino sadio, uma criana rosada, no morderia. Velha ordinria a nh Clara. To ordinria como rsulo que o intimara por ordem do Coronel Coutinho, a recolher-se ao leprosrio. Saiu caminhando, a chuva o apanhou no Campinho, voltou molhado e faminto. Ao chegar a casa encontrou o tenente rsulo. J arrumou a bagagem? E amanh, a noite. Diante de sua lepra e de seu silncio, a autoridade, as olheiras de lstima e nojo do rsulo: as orelhas muito grandes do delegado. Como que se moviam. Grandes. Ciloca olhou suas mos j deformadas, resmungou: Est bem, tenente. Em que embarcao eu vou? Muitos no me aceitam levar. Tenho embarcao. amanh sem falta. Vai voc, o Neves... ate amanh, Ciloca. Ficou na porta de sua casa em runas, velha armao derreada cheia de ninhos de cabas. S restava o quarto esburacado onde dormia. Sentou na rede, fumava os ltimos cigarros, ergueu-se para remexer alguns livros velhos e poeirentos num caixote, folheou um catlogo de relgios, pensou ento saber as horas. As corujas piavam. [275] Deu-lhe um impulso de sair, deixar seus troos na porta do mercado e fazer uma necessidade na porta da igreja. Servir-se das grandes orelhas de rsulo. E morreria mordendo timb, as entranhas em fogo e Sinhazinha nos braos. Morreria cuspindo em todos os

poos da vila. Ps a roupa num saco de lona, apanhou o livro de S. Cipriano e sentiu saudade dos meninos para quem contava histrias, ensinava feitio, pornografia e as proibidas descries do amor. Sentia carinho por eles, era a sua famlia no sero da esquina, com o lampio apagado, onde soltava a imaginao, a sua desforra contra os adultos sos, o seu passado de padeiro e o seu conhecimento escabroso do mundo. Comeava a lembrar os meninos, um a um, Alcides, Pedrinho, Irval, curiosos dele, que no tinham medo, atentos e fascinados pelo que ele contava, e os pervertia. Contou vez uma histria inteira das Mil e Uma Noites. Lera-a nas madrugadas da padaria, o livro era de Sinhazinha. Voltou nessa noite pelo brao de Scheerazade, ou de Sinhazinha? E caiu na rede, chorando. Porque isto recordasse, o desespero o dominou. Oh, por que eu choro... dio, dio de chorar. Os meninos dormiam. Os meninos sonhavam e o procurariam na noite seguinte. Choviam no sonho os pes-de-l que os bruxos comiam, carruagens de ou flamejando dentro dgua, nomes feios e oraes de S. Cipriano. Dissera-lhes uma vez: Se me perguntassem o que eu queria ser na vida, responderia: ser Pedro Malazarte mas um Pedro que tambm tivesse o poder do paj sacaca que anda pelo fundo dgua. Os meninos riram, caoaram, um deles lhe deu uma goiaba doce, lembra-se bem, doce-doce. Calcou o peito como para esmagar os soluos. Por que chorar se deveria cuspir, morde devagar o sovaquinho das crianas, as crianas criadas a leite e maizena [sic] do juiz, do promotor, do rsulo, cuspir na face dos meninos, na pia da igreja, na mo hirta e gasta daquele Santo Antnio da casa do Nabor? rsulo no o apanharia mais. Desapareceria. Que a desgraa o leve para os sucurijus, para as onas, as febres lentas e negras no fundo dos igaps. Que seria dos meninos que ouviam [276] as histrias

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coando as feridas, daqueles comedores de terra sem Pedro Malazarte, a Bela Adormecida, os jantares na casa do rei que duravam a noite inteira? Pegou o saco de lona, ergueu a cabea como para aspirar o sono dos pequenos amigos que sonhavam, fez um gesto para lhes dizer adeus e caminhou.

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[277] J no caminho da Mangabeira, sob a chuva mida, as rvores gotejando na escurido, Ciloca avistou a luz de um farol, logo desapareceu numa curva. Uma tosse o atacou to violentamente que o fez deter-se, curvo e arquejante. Gostaria de seguir a luz e correu para alcan-la, com o saco escorrendo no ombro, os rotos sapatos encharcados. Era um pequeno farol e na curta claridade duas sombras se movendo na espessa folhagem que se abatia sobre o caminho. De repente, o farol parou e as duas sombras em torno cresceram. Voltou Ciloca a correr, atolou-se numa poa de onde saltou um sapo, tropeou e caiu. Seguiu-se novo e longo ataque de tosse. Ergueu-se com as foras que podia ainda reunir e avanou sobre o farol. E perto, a luz descobriu, como num passe de apario, o rosto assustado de Alade, acabava de enrolar o cabelo para trs e se cobria com um pano de saca e o olhar de Missunga que erguia o farol sobre o leproso. Boa noite. Voc gritou? Gritei, mentiu Ciloca, estava demais escuro. Aonde vai? Pra casa de um tio meu no Jaguaraj, novamente mentiu. Tambm doente? Ciloca no respondeu. Sabe quem esta ave de linda plumagem?, gracejou o rapaz,

como para desculpar-se. Ento no sei? No vi Alade em Paricatuba? [278] A lembrana desse nome foi desagradvel ao leproso. Era a sua clera contra Missunga, a bebedeira no rio, o encontro com Guta. Evitou falar na moa nem quis perguntar para onde, naquela hora, ia Missunga arrastando a cabocla. A chuva mida continuava, Missunga numa baeta vermelha, a cala arregaada, as reinas rangendo no atoleiro, a maleta na mo. Mandara buscar Alade naquela mesma noite sem lhe explicar nada, levando-a consigo para Mangabeira, para o rumo que depois escolheria. No e sentia aliviado e vexado ficou com a presena do leproso. Se lembra da Nossa Senhora andando de madrugada por este caminho? Sim. Mariana j me falava. E como vai o livro de S. Cipriano? Queimei, mentiu o leproso, precisava me livrar daquele pesadelo. Pra falar a verdade, Missunga, nunca levei a srio aquele livro. Eu acreditei mais nas previses do Nostradamus. Falava dele por bobagem. Mas essa gente miservel de Ponta de Pedras capaz de tudo. Foram dizer, por exemplo, a seu pai que eu devia sair da vila porque andava empestando tudo. Ora, depois que conheci minha doena, e eu trabalhava na padaria, deixei de freqentar a sociedade. Afastei as banalidades de minha vida. Penso que voc me viu farreando, bebendo, sabe o que houve comigo e Sinhazinha. Aquela, sim, soube gostar de um homem. E o que existe no mundo para mim. Ela? E quem mais? Acha que as mulheres assim so poucas? E no a verdade? S. Cipriano ensina isso? L vem voc falar em S. Cipriano nesta hora, Missunga.

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Voc mete medo na Alade. Est enganado. Alade no tem medo. Tens, Alade? A moa, que se detivera para descalar-se, preferindo levar os sapatos na mo, mentiu: No. O leproso no lhe causava tanto medo pela doena, pelo seu [279] fsico mas pelo que comeava a falar e por certo iria contar de visagens, dos gritos que se ouviam na estrada da Mangabeira, a que se juntava o grito de Guta. No sabia compreender o que levara Missunga a fazer aquela viagem na chuva e a p para Mangabeira. Desgosto pela morte de Guta, remorso? No havia tempo para avaliar se era esse o motivo. Teria ele gostado mesmo de Guta? Acompanhava-o, enfim, com a docilidade de sempre, o mesmo abandono satisfeito. O medo da morta, medo de vingana ou da simples apario do fantasma, assaltava-a. Me d tua mo, Alade. Ciloca fez um gesto para pedir o farol e se conteve. Ciloca, quem est fazendo po, agora, na vila? Ora, quem mais, o Zeferino. E mal. O po sai azedo. Por cima, a farinha no vale nada. Como tudo neste tempo. Tudo falsificado. farinha, gente, tudo. Trabalhei com farinha boa no meu tempo. Joguei muito entrudo no carnaval com farinha Gold Medal. Me lembro de uma comadre minha que fiz engolir trigo pela boca e pelo nariz. Eu estava fantasiado de marqus. Em vez de confete usava saquinhos de trigo. E saber que hoje s vezes no tenho com que comprar um po. Alade riu-se. Era do que gostava muito, de po, que s veio provar em Ponta de Pedras, j bem crescida. Levava no balainho a tiracolo um embrulho de po torrado. Tambm se faz muito pouco po em Ponta de Pedras. A pobreza doida-doida por po. Mas Nossa Senhora quer mesmo os pobres no cu. Nossa Senhora castiga mais que abenoa. Por isso

talvez que o povo cr e teme. Eu, da minha parte, temo Nossa Senhora. E voc, Missunga? Missunga apertou a mo de Alade e suspendeu o farol. O caminho fechou-se num cerradal. Faltava um terado. Um sbito receio sentiu Missunga ao supor que Ciloca poderia atac-lo, arrebatar-lhe a mulher. S simples toc-lo, para defender-se, deixava-o quase impotente. Mas, Ciloca, por que lhe deu na cabea vir neste tempo? A mesma pergunta lhe fao eu, Missunga. Fugindo? [280] Missunga para disfarar o receio crescente, riu-se e passou a mo na cintura de Alade como para amparar-se. Aquele corpo junto ao seu, caminhando na lama, lhe transmitia um calor quase maternal, casto e sossegado. A cabocla avanava com aqueles ps acostumados ao cho, s caminhadas no mato, com aquele peito na blusa entreaberta, aquela respirao serena. Na escurido, abaixada no cerrado, no rastro da luz, cautelosa e tranqila, era uma ndia e isto o ajudava a aceitar a presena de Ciloca, aquela viagem cmica e j extenuante, com a baeta ensopada, a maleta pesando, os sapatos frouxos, o ridculo e as acomodaes da conscincia. Entraram numa clareira, Alade soltou-se dele e pediu baixinho um cigarro. Viciou-se, no? Me deu na vontade. Ofende? Sua me no fumava? Suas conhecidas tambm no fumavam e mascavam tabaco? E os primeiros cigarros quem lhe deu? No foi Orminda? Sabe notcia de Orminda no Arari? No, Alade, no sei. Tome. Acendeu o cigarro, deu um trago e ps na boca de Alade. A propsito falou Ciloca aceitando o cigarro que Missunga lhe oferecia , sabem o que esto dizendo de Orminda, do que ela anda praticando em Cachoeira?

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En-en, respondeu Alade, ansiosa. Em Cachoeira viram ela uma noite subir a torre da igreja com o prprio sacristo. Noutro dia, o mestre Cndido que anda fazendo obras na igreja, encontrou a marca do corpo dela no soalho da torre. Alade deixou escapar uma exclamao. Missunga atento ao resto da historia. No digo que Nossa Senhora quando castiga, castiga mesmo? Pois mestre Cndido botou a boca no mundo, chamou povo, muita gente subiu a torre e viu a sombra do corpo da rapariga marcada, justinho o corpo dela deitado, de costas, at os cabelos espalhados, sabe, no e... Mas minha Nossa Senhora, seu Ciloca! Quem que ento [281] anda contando isso? Alade passou a mo no rosto molhado. Gente que chegou ontem de l. No mercado ficou cheio. Nossa Senhora de Cachoeira tem cabelo na venta. Trastejou com ela, est no castigo. Ela tambm anda a passeio, vai pelo campo, vira uma moa, de vestido branco, o cabelo solto. A barra do vestido amanhece no altar, sujo do capim molhado. Um sujeito, l em Cachoeira, meteu na cabea de saber quem era a moa passeando no campo altas horas da noite. De revlver em punho foi ver de perto. Seguiu ela, seguiu ela, at que viu ela entrar pela porta da igreja e fechar-se por dentro. Pois o desgraado do homem no se emendou, quis forar a porta e foi s fazer fora, deu um grito. Tinha quebrado os dois braos. Os dois braos. E agora h pouco aconteceu outro caso contado pelo Estevo que no homem de contar lorota. A D. gueda, no sei se conhecem, uma senhora que veio ano passado a Ponta de Pedras, cumprir uma promessa com o Santo Antnio do Nabor, trata das vestes da Senhora da Conceio. Um dia achou de levar a filha para ajudar a mudar a roupa da imagem. A pequena viu e foi contar pras amigas as intimidades do corpo da santa. Pois trs dias depois a moa

no morreu louca? Louca-louca. Caminharam silenciosos, o farol lambia a gua empoada, uma cobra saltou fugindo, as folhagens gotejavam, a chuva diminua e um vento agitou as rvores negras e fundidas no cu. Alade, mordendo os beios, via Orminda estirada na torre e a filha de D. gueda, louca-louca. Quando chegaram a Mangabeira, Ciloca se deixou ficar para trs, ganhou um atalho. E gritou: Bom dia, Missunga. Bom dia, Alade. J madrugada. Veja o que voc vai fazer com essa outra irmgaua, Missunga. Vo procurar Santo Ivo? A tosse sufocou-lhe a risada e Alade estremeceu, olhou o cu e um fio de cinzenta aurora desprendia-se do grosso novelo das nuvens da noite.

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[282] Missunga aluga uma curicaca, pequena embarcao a vela, contrata o piloto Pedro Mala Real e manda soltar o pano naquela noite. O rio, uma cobra de prata, se desenrolava na sombra e ia urrar na baa. A curicaca deslizava no visgo da cobra de prata, a mar enchendo trazia o bafo spero de mato podre e de bichos. O estiro foi se distanciando, com ele o medo daquelas trovoadas que arremessavam rvore contra os homens, reduziram Guta quele bagao de cabelo e sangue e quele redemoinho na conscincia. Vinha a saudade dela, seus cabelos sobre o poo, o pranto silencioso no seu ombro, a quentura da noite sobre a nua mulher no cho como um caroo de manga, resto da infncia e da virgem. Alade, num inesperado gesto, abriu os olhos de Missunga para ver, disse, se os olhos dela estavam l dentro. A escurido no deixava. Ele, por isto, desejou casar-se com ela, para torturar o pai,

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para torturar-se a si mesmo, o olhar de Guta boiava aceso na gua morta de seus olhos. A curicaca empinou, uma onda passou alta, Mala Real firmou a cana do leme. A vela debateu-se, a noite ondulou, o mato desapareceu e um primitivo mar surgia, botos sopravam, seguiuse a esparsa murmurao da gua espumando nas pedras de Lavandeiras. Tinha na boca o gosto da maresia, do camaro frito, da cabaa e da ausncia de Guta. A cachaa lhe dava um perdo sem fim. Alade encheu-lhe a cuja e da a um pouco estava bbado. Pediu comida. A gua molhara a farinha. Mala Real parecia sumi-lo na popa. A curicaca jogava. Missunga gritou: Cad a farinha? Isto no a terra da promisso? Est aqui! [283] Fez um convulso gesto obsceno, caiu extenuado no fundo da curicaca. Alade temeu ento que ele se atirasse, de repente, ngua. O mar engrossava, lodo, limo, sementes, pedaos de ilhas desmanchadas, vmito das cobras grandes que rabeiam nos poos fundos. Estranha e alegremente, curvou-se para o bbado e dava-lhes beijos como farinha. Na popa, era o mudo homem domando a vela, o vento e o lodoso mar dos pesados rios da Amaznia. Apoiando a cabea no brao de Alade, Missunga viu renascer, no calor que vinha dela, o corpo esmagado de Guta. E adormeceu. Depois, muitas estrelas apontaram, a gua oleosa se estendeu macia e Alade viu correr no alto uma estrela cadente. Como as velhas ensinavam, pediu uma graa. Estamos defronte do S. Francisco do Malato boiou a voz funda do piloto. Para onde vamos que o doutor no disse? Dormiu? Quando amanhecer ns sabe falou Alade. S. Francisco do Malato, murmurou, o santo de fama. Santo do tempo da Cabanagem. Os cabanos entraram no Malato e picaram o corpo da imagem, principiou o piloto contando para Alade. No se sabe quantos homens eram e quiseram arrastar o santo para a praia.

Mas no podiam com a imagem. Os ps se enterraram, os ombros vergaram, as mos sangraram. No puderam com a fora do S. Francisco. E assim ficou na sua capela. Quando ia a Ponta de Pedras para encarnar, era com festas que o povo o recebia. Doutor Florncio, o Calafate, negava que fossem os cabanos. Os brancos fizeram aquilo e botaram a culpa em cima dos caboclos. S. Francisco, de maneira alguma, podia estar ao lado dos brancos. Seu lugar de santo era ao lado do povo, ao lado dos cabanos. Os brancos eram como os frades no Arari que amarravam os escravos de seus engenhos e fazendas no tronco espinhento do tucumzeiro e caavam ndio como se caa ona. Mas se foram os cabanos mesmo, alguma razo eles tinham, algum motivo o povo tinha para picar de faca a imagem de S. Francisco. Talvez o santo ficasse ao lado dos brancos, andasse favorecendo os portugueses contra a Cabanagem ou, quem sabe se o demnio, naqueles dias de luta, no se metera no corpo da imagem? Talvez fossem os [284] pr|prios cabanos que tiraram o co do corpo do santo, tiraram o co a faca, e doutor Calafate ria, ah!, era preciso, como dizia nh Felismina, uma nova Cabanagem, uma grande Cabanagem no mundo. Mala Real imitava a voz do Calafate. S. Francisco tinha ainda a marca das feridas. Os barcos ancoravam defronte, os martimos atiravam libras de cera na gua ou levavam pessoalmente as promessas ao p da imagem. Espalhavam sua fama pelos rios, furos, ilhas, vilas, barraces. E a baa, l fora, rezava durante a noite uma longa ladainha para o santo. Missunga acordou, perguntou onde estavam, mandou que Mala Real atravessasse a baa. Alade apertou o cabo de bijarruna [sic]. As guas brincavam em torno da curicaca, como meninos em ciranda. Maraj ia se esbatendo, se afundando na noite, morno, misterioso, escuro como jacar encalhado num balcedo. Do outro lado, subindo nas guas em que a curicaca se embalava, a terra geral, a terra grande, ressonando na lonjura, pas de ouro enterrado. Alade se ergueu, vencendo o sono, olhou rapidamente a noite, voltou-se para

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Missunga: No. Volte. Est em tempo de se voltar. Se tiver de viajar vamo pra banda do Camar, de Soure. Que doidcia a sua, j passou a tonteira? Que remorso voc anda curtindo, em? Credo! Mala Real, com a minha ordem, dobre. Missunga, surpreso e dcil, beliscou de leve o queixo de Alade e fez o tom caboclo: Comandante, j... Ambos riram. Ento Mala Real explicou que teriam de atravessar s de manha com a mar. E o resto da noite os levou para o aningal da margem onde fundearam e esperaram o dia. Alade baixou a bijarruna e escorregou para o fundo da curicaca, no mesmo instante adormeceu, algum gritava dependurado num galho do pau amarelo. Ciloca vestido de Judas com Santo Ivo debaixo do brao avanava sobre ela, Missunga, na janela de uma torre de igreja, chamava o povo para ver uma mulher se debatendo no cho com o corpo pregado, era Orminda ou era ela? Mais parecia Dona Ermelinda. Acordou, banhou demoradamente o rosto na borda da curicaca. Missunga ressonava, Mala Real migava o fumo.

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[285] Costearam Jaguaraj, depois a boca do Arari com a Ilha das Pombas que virava navio fantasma navegando meia-noite pela bala. Viajaram, viajaram e viram ilhas azulando na manh um farol no alto, a igrejinha, as pedras de um barranco e canoas bolinando no largo. Joanes. Mala Real encalhou a curicaca na praia. Missunga e Alade rolaram na areia como ondas cansadas. Que pobre e ridcula aventura, murmurou. Lhe vinha o consolo de que seu pai sofria e isso era bom, indispensvel a seu pai. Naquela viagem talvez ele mesmo encontrasse uma soluo inesperada. Talvez viesse de Alade ou do

Mala Real. E correria para Cachoeira para apagar a sombra de Orminda na torre da igreja e dar liberdade a Ramiro nas fazendas. Alade chamou-o, viram grandes pedras esculpidas pelo vento e pelo mar. Certos blocos, trabalhados pelas ondas na enchente, estampavam nas pedras a agonia e o terror dos nufragos, a alegria e o espasmo dos peixes no amor, o desespero dos temporais e a mscara dos ansiosos horizontes. Certas paisagens s podiam existir no fundo do mar ou no fundo das conscincias. Deixaram-se ficar ali o resto do dia e a noite. E ao amanhecer estavam colados na areia, sem animo para continuar a viagem. Mala Real mais adiante parecia dormir. O sol era um olho de boto vermelhando nas guas crescentes. Sob as pedras um esconderijo de areia como um pequeno tmulo. Ali naquela hora Missunga estirou Alade. Ningum passava na praia. Mala Real trouxe ajurus, comeram peixe assado e decidiram continuar a viagem. [286] A curicaca no parou na boca do Paracauari. Os coqueiros de Salvaterra acenavam, Os ajuruzeiros da praia, a palhoa de paxiba, as montarias de pesca, no, no havia coisa alguma ainda que abafasse a voz de Guta, apagasse o olhar, aquele to imaginado olhar no instante em que a rvore... Mala Real no compreendia, mas satisfeito de participar e orientar aquela viagem. Havia depois de contar uma histria. Alade sorria. Na praia de Araruna onde a areia engolia as palhoas e os coqueiros, os viajantes comeram, com to ingnua e rude delcia, a tainha assada do velho Chico Maria, comissrio fiscal municipal e negociante de pesca. Apreciaram um cantor que andava divertindo o povo das praias nas grandes pescarias do ano. Alade ficou quase preta do sol. Tinha um cheiro de duna ao sol, de rede de pesca enxugando. Os bzios das canoas chamavam o vento e para Missunga chamavam tambm a voz de Guta. As longas redes de pesca secavam e mulheres lavavam e estendiam roupa ao longo da praia. Os

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coqueiros ao vento dentro das areias que cresciam, como se debatiam para salvar-se. E os olhos de Alade eram aquela areia e solido, redes escuras, palhoas desfazendo-se e coqueiros mergulhando na areia como mastros desaparecendo nos ltimos instantes do naufrgio. Missunga cavou coco de dentro da areia em que se enterravam os coqueiros carregados. Depois pediu a Mala Real que o levasse ate a ilha dos Machados onde os caboclos ainda no conheciam dinheiro. Mala Real achou arriscado. Dali melhor voltar ou ir a Cajuna. Alade ia apanhando caranguejo soi, caranguejos que andam sobre a lama. Ela no sabia tir-los dos buracos como o povo do Salgado. E Mala Real ficava migando tabaco na curicaca que no Araruna recebia o nome de Tapuruquara. No Cajuna, Missunga lembrou Felicidade. A febre e os vermes das crianas. As mulheres magras espiavam. Os homens, soturnos, na venda, bebiam vagarosamente como condenados. Missunga sentiu aumentar o seu desassossego. Chamou Mala Real: Mas isto uma viagem maluca. Sabe Mala Real, eu ando doente. [287] Mala Real abanou a cabea. Alade mexeu: Doena de branco sade do pobre. E seu olhar caoava. E no Pesqueiro, quando a mar enchia, as vagas luzes do povoado se apagavam e as canoas no igarap ficavam mortas na sombra, subiu o pano da curicaca. Ento Alade desejou vagamente ficar numa barraca, no Araruna, entre as redes e as dunas que engoliam os coqueiros e as palhoas. Bonito ver a praia, pescadores vinham do Tor, do Camb [sic], da lonjura. Aqueles no tinham o luxo de uma aventura, pensava Missunga, suas aventuras eram de todo dia, por fora do destino, to necessrio e como a areia do Araruna. Alade voltava acreditando que a viagem acabaria numa alagao na costa de Soure e do Camar. Missunga, para adiar a viagem, se metera no relancinho na venda do Pesqueiro. Voltava depenado. O dinheiro que

restava, Alade guardara na bautinha de folha. T em tempo de ir embora. Seu pai lhe espera. Alade mergulhou os olhos dentro da noite, as mos frias e submissas no ombro do companheiro. E seu pensamento: Ele pensa agora na morte de Guta? Tudo isto mesmo porque ela morreu daquela forma? Ser que Guta estava de filho tambm? O filho dela era melhor que o meu? Coitada, morreu, no devo pensar nada, nada contra ela. Era tambm uma pobre. Sua alma pode me perseguir. E este homem est perfeito do seu juzo? E assim se atreveu: Voc fez malineza na finada e me pegou de consolao pra esta viagem. Me deixe numa praia dessa, que ! Quem me consola de perder meu filho? Missunga, de olhos cerrados no fundo da curicaca, to imvel na sombra, que Alade lhe tocou quase violentamente com as mos molhadas de lgrimas. Uma onda avanou e banhou-lhe o rosto, os cabelos, Mala Real gritou: Molhou? Ora no brinque, seu Mala Real. No meu cabelo. Falou baixinho a Missunga: Mas uma coisa lhe digo... [288] Outra onda lavou a curicaca. Alade ergueu-se: Isto fora de propsito, no maline, seu Pedro Mala Real. Me molhou toda. No est defendendo a canoa da mareta. Como se conservasse silenciosa, espremendo a barra do vestido, Missunga estendeu a mo para toc-la: Diga o que ia dizer, comandante, ande... Esqueci j. Ento era mentira. Era. Era, Alade? Sua boca no est dizendo que era?

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[289] Entraram no rio da Fbrica, Mala Real os agasalhou numa barraquinha escondida atrs dum aaizal. A ficaram. Alade pescava, acompanhava-o nas imaginrias caadas. Ele voltara do aturi, exausto, bebia a tiquira que comprara em viagem. Alade aprendia a atirar com a sua espingarda. Um dia matou uma mucura. Ele perguntava a Alade se havia liamba no rio da Fbrica. Queria fumar liamba para um sonho no fundo dgua. Liamba?, indagou-se a si mesma a cabocla. E lhe vinha a lembrana da planta, o fumo trazia vises e o esquecimento to suave do que havia de mais pssimo neste mundo. Sua me contava de certo Bento Triste que de tanto fumar liamba teve um repente, atirou-se na mar com um grito nem nunca mais. Mas por isto mesmo que quero, Alade. Pois se atire logo na mar, ora esta. No precisa liamba. Se atire que lhe prometo procurar seu corpo e tratar de sua sepultura. Onde o cemitrio neste rio? Basta que eu saiba. Se voc se afogar e se a gente achar o afogado, esteja certo de que se sabe o caminho do cemitrio. Alade, num saiote spero e grosso, fazia a peconha com que amarrava os ps para subir no aaizeiro. Com a faca nos dentes, para cortar o cacho subia ligeira. A faca fincava na terra e ela deslizava pela palmeira com o cacho na mo. Amassava o aa, depois de amolecido ao sol, grosso e escuro, vinho manso da terra. Seus pressentimentos aumentavam. Em breve ele sai bbado e no volta mais. Em breve se cansar. A tiquira que o embriagava, a [290] liamba que desejava, era Guta, era passageiro ressentimento com o pai, era enjo e desprezo dela. Mas no mato e no rio, nua, como um peixe, no banho, estendendo os cabelos para enxug-los ao sol, Alade deixava-se viver, um pouco mais calada, um pouco mudada. Onde

estaria Orminda? Que fim levara todo aquele povo de Paricatuba? Nunca se esquece daqueles adeuses tristes-tristes, daqueles gritos no igarap, daquelas mos, os olhos crescidos na carne, mulheres grvidas lambiam o beio diante dos quartos sangrentos pendurados na rvore. E seu filho estaria crescidinho. Ofendia? Deu ordem salinha da barraca, conseguiu um caixote, dois banquinhos, tapou o quarto, colou a fotografia de revista em que pastava um rebanho de ovelhas num campo dourado, programa de Nossa Senhora de Nazar, a gravura de relgio e aquele homem de cabeleira tocando violino. O seu S. Jorge matando o drago se rasgara e molhara durante a viagem. E sorriu ao comparar, num repente, que o drago era Missunga mas S. Jorge quem era? Levou horas tentando compreender porque lhe veio essa comparao e quis contar a Missunga, acreditou que ele no gostaria. Via em tudo isso o prximo abandono dele, ele fugiria sem despedir-se, era um branco. Por que a procurou? Por que fez dela uma boba, por que fez dela um resto, por que curtia o seu remorso, a sua tristeza, a sua cachaa se agarrando nela, lhe dizendo coisas incompreensveis? No pequeno alguidar espumava o aa, sangue das palmeiras. Missunga limpava a espingarda. Ela assava no cho o peixe, o camaro, o pedao de caa que Mala Real trazia. Alade lha contava alguns segredos de caa, de pescaria, da vida do rio da Fbrica onde ela nasceu e iam, s vezes, em montaria, vagarosamente, at Mangabeira, ver a baa ou colher atas na Ponta. Uma noite a trovoada desabou, os troncos inchavam, convulsos, na escurido. Missunga ouvia, sob o clamor da mata chicoteada o fantasma, o soluo de Guta que lhe falava da lua desfazendo-se no poo e dos machados faiscando na trovoada, como relmpagos, abatendo incessantemente as rvores e os amantes. Era possvel que a trovoada arremessasse aquele corpo esmagado [291] sobre a palhoa, caindo, podre e verde, na rede. A barraca sob um redemoinho, os ventos arrancavam os cabelos de Guta, os seios dela penduravam-se

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no teto. De uma confuso de gritos surgia Orminda, nuamente, escorrendo leo, os braos estendidos, e os ventos lhe cortando a face como facas. Como da embriaguez e do sono, acordasse, extenuado e assustado e visse Alade observando-o com um olhar malicioso, gritou com ela, avanou para a cabocla e bateu-lhe no rosto. Ela recuou, quase sem surpresa, o olhar seco, encostou-se parede de jaara [sic] e esperou. Por que estava me olhando, ei, ein? E escorregou na esteira como se fosse Alade que lhe tivesse esbofeteado, pedindo que ela lhe desse caf, ch, carib, um abrao, perdo, vergonha, paz, a sua pureza. Ela permaneceu encostada, o olhar no cho. O rosto, plido, tremia. Na manha seguinte, Alade, que sara muito cedo, voltou com uma braada de cravos amarelos e parou diante de Missunga adormecido, roncando, um fio de baba lhe escorrendo pelo canto da boca entreaberta. Devagarinho, foi espalhando os cravos sobre a rede, sobre o peito dele, a cabea. Ele acordou num salto: Mas que isso, Alade? Doida? Cravos? Me enfeitando com cravos. Mas ento j sou defunto? Eu morri? Queres que eu morra? Me fazendo acordar com este cheiro de defunto, este fedor de cemitrio, que lembranas, ein, Alade? Eu ento estou morto, Alade? Vendo-o sacudir a rede, Alade ria, silenciosamente, o rosto quente do sol, os cabelos retorcidos num pit esquisito com uma rosa em boto. Os cravos espalhavam em toda a barraca o cheiro de morte, o cheiro de Guta.

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Alade correu para dentro chamando: Missunga, se no me engano aquele que vem ali seu pai.

Minha Nossa Senhora! E ele, meu mano. Missunga pulou da rede. Aquela visita poderia desarm-lo da disposio de ir mais embora, pegar o caminho de Marab, se esconder sob o barulho das cachoeiras do Araguaia, era o diabo. Ao se encontrar assim to imprevistamente com o velho, voltaria a ser o filho, perderia aquele esboo de carter que principiava a nascer com tanta indeciso. Foge, esconde-se ou cai nos braos do pai? Ele est na porta. Vai receber seu pai. E quem mais vem? Um o seu Lafaiete, outro no sei. Vai receber. Eu no, Missunga, me envergonho. Que que ele pode cismar... Alade se apoiou na rede, curvada. Alade, eu te peo. Por tua me. Pense bem na minha situao. V, por favor. Alade saiu arrastando os ps. Tudo acabava numa grossa patuscada. Ela pediu a beno. O pai olhou severo para a cabocla: Que fim levou o homem, est a? Missunga permaneceu no meio do quarto, as mos no bolso, escutando. A voz do pai lhe parecia to tranqila e lhe entrava no corao com sbita doura. Era a voz das fazendas, de Paricatuba, dos [293] bezerros chorando, de sua me, a voz de Belm chamando. Guta se atravessava naquela voz como num largo e pacfico rio, as guas envenenadas de um afluente. Coronel na salinha abanou a cabea. Olhou as palhas, a esteira, o ba, a cabeleira do violinista e o rosto calmo de Alade. O cheiro de terra em tudo parecia vir da cabocla que tinha as mos tintas de aa. Lafaiete e o senhor desconhecido entraram. Lafaiete fungava. O desconhecido ria um riso contnuo e silencioso, duplas dentaduras lhe entupiam a boca. Ficaram esperando que Missunga aparecesse.

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Coronel no quis entrar no quarto. Alade apoiada na janela, esfregava o brao na parede, silenciosa. As suas mos pareciam ensangentadas. Coronel pensou em mos de moc, dosavam a composio dos feitios, viravam a cabea do filho. Lafaiete cochichara a viagem inteira, e foi estimulado no barraco do ngelo pela mulher deste, que a culpa toda recaa em Alade. Esprita, cartomante, paj, todos afirmavam. Coronel voltou a olhar a cabocla que continuava a esfregar o brao na parede, cabea baixa, os cabelos despenteados, a palidez, a saia de alfacinha com um remendo grande nas costas. Tinha um jeito de culpada. Coronel estava disposto a fazer o negcio com ela. Dinheiro era tudo. Ou tudo acontecia pela cabea dele? Herdara os repentes sentimentais da me. Enfim, era filho, e voltaria. Depois, viera busc-lo com uma amargura funda, um despeito surdo, a rude necessidade de contar-lhe o que se passara em Paricatuba. E teve espanto quando o viu: Mas, meu filho, como tu ests, que fizeram contigo? Alade levantou a cabea como criana assustada. Toma a beno, meu maluco. Missunga, envergonhado, coberto de ridculo, fingiu um ar de filho prdigo, j em conflito com a falsa atitude que assumia, estende a mo e o velho puxou-o pelo brao, abraou-o, apertando-o vivamente ao peito, beijando-lhe a testa. Ficou chorando com o filho no brao. Missunga ento se conteve e tudo faria para evitar o olhar de Alade. Lafaiete enxugou os olhos com um leno amarelo e o desconhecido ria, silenciosamente, com aquelas [294] dentadu|ras de fantasma. Alade debruou-se na janelita do lado, no quis ver a cena. Chorava. Ele enfim voltava. Coronel ficou olhando o filho. Exagerava a mudana, via-o liquidando-se no mato. Sentia os compridos e duros dias de solido, de lcool, de insnia, de desespero e doena sob o domnio daquela cabocla. Contavam que Alade ia tirar raiz de liamba no mato e fazia o cigarro para Missunga fumar, endoidecer aos bocadinhos, era o que se falava no barraco do ngelo. Coronel,

depois de tudo que aconteceu, e ante a iminente soluo feliz daquela loucura, sentia certo orgulho pelo carter do filho. Era homem de sentimento, afinal quem pode impedir que um rapaz da sua natureza no se deixe impressionar pela morte daquela moa, sua amiga de infncia, que o amava, talvez? Compreendia a atitude do filho. Sim, agora compreendia. Missunga relanceou o olhar para Alade, dos cabelos dela descia uma inocncia e uma paz que se misturavam com o cheiro de terra. Coronel pensou que no brigaria com a mulher, seria pior, dava boa quantia, precisava ajustar bem o preo. E at mesmo encontrara no filho um arrependimento e uma mansido que no suspeitava, o que tornava menos difcil a transao e decerto menos dispendiosa. Meu filho. Venho busc-lo. E, Missunga. Oua o seu pai. O qu? Missunga com os olhos no Lafaiete. Alade estava como tirando um peso de suas costas. Ningum mais que ela pedira a Deus, fizera promessa para Missunga voltar. Agora, sim. Vamos, O motor est no barraco do ngelo. Coronel esteve olhando o cho, hesitando. Ergueu o olhar para Alade e voltou-se para Missunga. Sabe o que foi que aconteceu em Paricatuba? Missunga olhou atento. Ermelinda est com o Nelsinho, o teu primo, o filho do Nlson, meu sobrinho. Veio do Rio e est metido com a cachorra. Alade recordou o sonho na curicaca: mais parecia Dona Ermelinda e no Orminda a mulher marcada na torre da igreja. Via um leve tremor nas mos e nos lbios do velho. Missunga [295] perma|neceu de vista baixa. Teve mpeto de dizer: vamos. Lafaiete fez, de repente, um gesto teatral, e aponta para Alade: Cmulo de todos os males para a famlia, essa vampiro te leva para o abismo. Sim, Coronel, uma vampiro. J ouviu falar que a

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mulher pega um homem dando-lhe um caf... o resto ela confessar ao tenente rsulo... Alade deu um passo, tartamudeou um no, no!, a boca tremia. Seus olhos cresceram sobre Missunga. Caiu, brusco, um silncio. Missunga ento encarou o pai: Olhe, meu pai, eu ia. J estava mais ou menos decidido. A crise j passou. Alade veio porque eu lhe pedi. E voc, seu canalha, seu patife, seu Capito Lafaiete da me que o pariu, suma-se daqui. S se foi da sua me, de sua mulher, que eu bebi, co ordinrio. Agora mostro que sou... Ia concluir: um homem, emudeceu. Alade avanou e o segurou pelo brao. No. Por mim, no. Por um aleive desse que voc no deixa de ir. Leve ele, padrinho. Missunga fugiu para o quarto. Coronel mandou, com um gesto, que Lafaiete se retirasse. Com um minuto de vacilao entrou no quarto, a voz do filho o recebeu: E intil, meu pai. Fique com o seu amigo Capito Lafaiete. Amargue sua dor com ele. Foi o que voc aprendeu. Foi o que voc aprendeu. Agora, assim, acredito que aqui h moamba. Um Coutinho metido nisso. Meu filho. Meu nico filho. A que chega uma degenerao. Meus, meus ltimos anos de vida se acabando em desgosto em cima de desgosto. Pois fique a e hs de te arrepender da desobedincia. Pensa que no te posso deserdar? Acreditas que no posso deixar meus bens... Ofegante, interrompeu-se, articulava dificilmente as palavras. Procurou a portinha da barraca. Missunga no quarto teve mpetos de correr, abra-lo e ir com ele. Uma enorme confuso na vontade. dio daquele Lafaiete no talvez pela acusao mas porque o obrigara quela atitude. Achou to gratuito aquele aro como o de ter escrito a primeira carta para [296]

Guta. E sem querer deixou-se rir da cena ridcula. O esboo de carter dissipara-se naquela tentativa e se levantou da rede, j decidido a partir. Deu com Alade na porta e no os viu mais: Ainda no chegaram no porto. Corra que voc pega. Ande. Ele passou a mo pela cabea da companheira, os lisos cabelos acariciavam-lhe os dedos. Sabes, Alade, que no vou. E voltou, de supeto, para o quarto. Alade correu para ver se apanhava os trs homens em caminho. Alcanou o fazendeiro e tomou-lhe a frente: Padrinho meu, leve ele. Coronel, recuou, rapidamente, com espanto e logo com repulsa daquela cabocla, aquelas mos ensangentadas, aqueles cabelos que se desmanchavam pelas costas. Alade, ou pela timidez, ou pressa em que ia, deu um passo e tropeou junto aos ps do fazendeiro que saltou para trs, os dois amigos acudiam com os punhos fechados e aos gritos. Sua cabocla audaciosa! Feiticeira do diabo! Como te atreves? Alade levantou-se rapidamente e os encarou. Uns doidos, foi o seu pensamento. Ouviu em silncio, uns doidos, como tu te atreves, feiticeira? O velho pensou que ela ia cair-lhe aos ps, chorar? Como estonteada, quis correr atrs de Lafaiete e cuspir-lhe a cara. Voltou devagar, que tinha mais a fazer naquela barraca, como podia aparecer depois daquela vergonha? Missunga seria o primeiro a acreditar. E entrou na barraca, o rosto crispado. Durante o jantar silencioso, Missunga lhe beijava os cabelos.

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Alade, no delrio, via a mata flutuar nas guas cor de sol, os bichos verdes abrindo a boca.

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Eu sinto... meu filho. Se mexendo. Me apalpa. Tu no sente ele se mexendo? Missunga segurava-lhe as mos, tambm agitado e com esta pergunta: por que aquela deciso de ficar? Como tratar a doente, contratar no barraco do ngelo uma mulher para ajud-lo, depois do que se espalhou no rio pela boca do Lafaiete e da mulher do comerciante? Ridculo ter ficado sem mais nem menos, naquela palhoa, com os carapans e o paludismo, atolado no desalento, na diria verificao de que a cabocla era melhor do que ele. Seria afinal vergonhoso ficar? Temia a opinio, que se espalhava, de que estava mesmo pegado e era degradante discuti-la quanto mais aceit-la. Ao mesmo tempo receava confiar demasiado em Alade. A chuva da madrugada deixava a terra nascendo de novo sem a febre. Mas toda a febre se refugiara no corpo de Alade. Com a baa ali adiante, ventos, pssaros, palmeiras, a morte espiava por entre as palhas da barraca. Alade, no delrio, escutava o choro do filho, os olhos do curumim boiavam entre as sementes do igarap. Como levla? Foi ao porto olhar o rio para reanimar-se, no mesmo instante voltou, deteve-se mirando a espingarda que desarmou, entrou no quarto, contemplou a mulher. Alade, na rede, o rosto ardendo, os olhos cerrados, os braos como a segurar a criana, os seios altos escapulindo-se da camisa aberta como se quisessem amamentar. Ento se lembrava das ltimas tardes em que a via um pouco [298] triste banhando-se no rio. Primeiro fazia mapoonga que era abrir os braos batendo ngua para espantar os bichos mergulhava, sentava o corpo bem na lama do fundo e de sbito boiava junto estiva de miriti soprando gua, viva como uma ariranha. J com a febre, tratava de nadar no rio, o que fazia Missunga gritar: Tu um dia estupora, mulher! Alade revirou-se e suas ndegas cresceram na rede, os cabelos amontoaram-se como um negro travesseiro, o gemido, que era o

chamado do filho, no se distinguia mais do curto e quase doloroso gemido das ltimas noites de amor. A febre penetrara-lhe o corpo e no delrio lhe deu um filho. Missunga apalpava-lhe a testa escaldante, os mornos joelhos, seu olhar queimava. Onde voc est... Aqui, mea preta. Se aquiete, ande. Parecia estranhamente mais jovem com o cheiro das carnes quentes e machucadas como frutas no sol escorrendo doura. Missunga limpou o suor do peito e o desejo. No, no, coitada de Alade. Tentou embalar a rede, que pesava, deu-lhe um pouco de gua. Os olhos dela se abriam e brilharam como acordados pela mesma ansiedade: E meu filho? Nh Clara me espremeu. Cheirando alfazema... E bunito [sic], ele? Um cachorro desconhecido, molhado e tiritante, veio espiar no quarto. Uma borboleta pousou na rede e caiu depois nos cabelos da doente. Missunga teve um sinal de esperana. A borboleta era muito bonita. Alade lhe pedira uma vez um pente-travessa com a forma de borboleta. Vi uma borboleta.. E meu filho? Alade, fique sossegada. Vou ao barraco, chamar uma mulher l, sim? No. Me principiou uma dor aqui no lado. ele. Meu filhinho. A borboleta azul e negra faiscava nos cabelos. Era possvel que a febre a queimasse. A enferma abria os braos, um rio vermelho subia pelo barranco, o filho bateu as asinhas de borboleta, a me despencava do aaizeiro, deu um grito. [299] Que foi, Alade, por que gritou? Ela sentou-se, a camisa descia-lhe pelo corpo, solta. Ele a fez deitar-se novamente, roando-se naqueles seios abrasados, naquele ventre faminto de criao.

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Diante dela, perplexo e falhado, diante daquela fora de natureza que se desencadeava no delrio. Voltou-lhe o impulso de abandon-la nas mos de uma mulher e partir. Alade, com a febre aumentando, poderia correr atrs dele, aos gritos, desvairada. Estava imvel, os olhos fixos nas palhas do teto. E tudo aquilo o abatia, humilhava, era absurdo. No tinha pacincia para cuid-la nem mosquiteiro para evitar aquela mesma febre, e o igual e muito breve delrio. Aquele sono no fundo dgua, espelho de sonho e morte de seu pensamento, encarnava-se em Alade. Ela estava fora do rio, da terra, das palmas dos aaizeiros, do seu amor como fora das guas uma canoa de borco na lama da praia. Uma vontade de chorar, chamar pela me e pela Mariana como fazia em menino, romper com todo o mundo e meter-se com ela numa canoa, salv-la, dar-lhe um filho depois, dar-lhe dez filhos. E correu para o porto, uma montaria passava no meio do rio, gritou. Fez sinal aos remeiros que desistia da passagem. No quarto deitou o rosto no punho da rede. Imaginou-a meia roxa dos pises da febre estendida em dois bancos juntos, emprestados do barraco do ngelo, forrados por aquele lenol velho, as velas cabeceira. No subiria mais daqueles braos seno o cheiro gelado da morte. Cobriria o rosto da morta com um leno, o de linho marcado com o nome dele que ela tanto gostava. Como aconteceu com sua me quando morreu em Paricatuba, uma velha colocaria o pires de sal sobre o cadver para que Alade, enquanto no fosse enterrada, coitadinha, no fedesse. Aqui teve um sobressalto, se esboava em sua direo o desejo de v-la morta. Libertar-se da histria do enfeitiamento, abandon-la ou lev-la sempre s costas, arrastando tambm o corpo esmagado de Guta. Como enfrentar a curiosidade de todo aquele rio diante da morta, a mulher do Angelo, aquelas figuras de ndios espiando? Sentiu que uma cara lasciva e pustelante era o que Alade via nele, com aquele olhar alarmado pelo delrio. Surgiu-lhe, ento, daquela noite a caminho da Mangabeira a viso de Ciloca, rindo.

[300] A borboleta voava pelo quarto, pousou nos cabelos dela. Ele apanhou-a e mostrou doente. Solte ela. Aquela voz calma anunciava o fim do delrio, a febre passava. A borboleta faiscou na sombra e Alade a viu grande e escura, era a esperana. Agora durma um pouco. Pensou que eu morresse? Que pergunta. Que pena, no? Tou lhe dando tanta consumio. Mas vasilha ruim no quebra, era o que dizia Orminda. Me viu morrendo, no? Se ofendeu? Missunga se deitou na esteira, a febre a borboleta levava. Aquele poder de vida, mesmo no sono, em Alade, o deixava extenuado e to amargo como se fosse ele o doente, voltando do delrio.

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[301] Releu a carta um pouco trmulo, murmurou um bem que nada dizia e reviu a cara do pai quando lhe disse que Ermelinda fugira. Voltava a ler, mais calmo e disso mais se admirava. O pior fora aquela despedida em que sentiu mais do que nunca o conflito entre a sua vontade e a estima ao pai, o ridculo e a vergonha diante das acusaes de Lafaiete e a dvida acerca das coisas misteriosas e inexplicveis atribudas a Alade. Antes via nela uma simples cabocla, mansa e inculpvel, via-a agora obscura e possuda de astcia e mandinga. Voltou a reler trechos da carta, morte que pressentia e o surpreendia mais do que pensava. Um colapso. No podia entender bem. Culpou o destino, o desgosto no o matara, aquele encontro, a obsesso de ver o filho arrastado por uma mulher que o enfeitiara? Ia tentando descobrir no morto qualidades, sentimentos, feies que at

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ento desconhecia e admirava-lhe, antes de tudo, o flego de bfalo, o que matou, por certo, a sua mie. Isto, no foi adiante. Em face de novos problemas, por fora da fatalidade, deixaria os velhos de lado. Olhou para o caixeiro de marchantaria que lhe trazia a noticia. O motor no portinho. O mesmo portador entregou-lhe outra carta tarjada. No sei exprimir o meu profundo pesar, caro amigo. Nosso provecto amigo, compadre e chefe finou-se quando a nossa terra mais precisava de seus servios, de sua vida toda dedicada causa pblica, de seu nobre carter que se aliava a um corao de ouro. Deus o levou. Os pramos celestes o receberam... [302] Saltou trechos e parou aqui: Ignoro qual ser o destino do nosso municpio. Bem sei ou suponho que meu caro amigo no pretende seguir a poltica nem tenciona substituir seu pai na Intendncia. Coronel me havia prometido indicar-me para substitu-lo. Mas os caprichos da poltica so como os caprichos da Parca. E adiante: Espero que meu amigo enterre sempre as divergncias do passado e aceite esta amizade velha, sincera e esta dedicao de velho tabelio e tarimbeiro da vida. Ela faz parte do inventrio de seu pai. Voc herdeiro dela.

LAFAIETE At com a carta do Capito Lafaiete, se comovera e isso completava a reconciliao com o seu mundo. Ao dirigir-se para a barraca, o caixeiro, timidamente, lhe tocou no brao e olhou-o. Ali estava o novo patro, bom e naquele momento pedir-lhe uma promoo na marchantaria, aumento de ordenado, aproveitar o ensejo de uma proteo mais rendosa e duradoura... Balbuciou com ares de confidncia e cumplicidade: Dr... difcil lhe dizer. Mas... Uma pergunta lhe subiu pela garganta e a se debateu, cida, teimosa. A respeito da fortuna? A ameaa de deserd-lo. Seria legal? Lafaiete decerto o saberia. Ou no? E para quem a fortuna? Seu pai a deixava complicada e em perigo? Dvidas? Tambm Coronel Diquinho, fazendeiro Chaves e Mexiana, deixara aos filhos, que de nada sabiam, um monto de dvidas e hipotecas, a runa enfim. No pde reprimir a inquietao, a realidade da herana era mais poderosa que a morte do pai. Pode falar... E que a morte de seu pai foi em circunstncias que no podem ser conhecidas pelo pblico. Um colapso... Mas, quando foi para Soure, no andava bem? O mdico no permitiu?, perguntou com alvio. Exatamente, naquela casa da praia em Soure ele passou bem uma semana l. Na noite de anteontem... Uma pequena embrulhada num lenol saiu gritando do quarto e at hoje parece transtornada. [303] Missunga tinha a garganta seca. Apesar do alvio aquela sbita sensao de runa iminente viu a moa desgrenhada despojando-se daquele subitamente cadver, velho e gordo, que pesou sobre ela. Um fim conveniente a um Coutinho. A morte o apanhara em flagrante, o bfalo morrera por fora da prpria vitalidade. Aquele fim os aproximava cada vez mais, os fundia e, como fascinado, embora lutando contra a fascinao, se deixara envolver pelo nico

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sentimento real e total, o da posse universal da herana poupada e tranqila. Caminhou para a barraca ao lado do caixeiro. Romperia de uma vez para sempre com as emoes. O morto o chamava pela boca do testamento. Chegava a acreditar, diante do absurdo de sua aventura que Alade tentara alguma coisa insinuava... ou... A suspeita no atingia propriamente a mulher e sim a ele. Queria livrar-se da maneira mais limpa e sossegada. Tudo era possvel no terreno da feitiaria e do sobrenatural, dizia o pai quando lhe falavam nas extravagncias da poltica e na existncia das almas. Levaria Alade? Deixaria ela em Ponta de Pedras? Melhor mand-la buscar. No podia aparecer com ela na vila. Tinha de seguir aquela rotina do luto, no queria ser visto ao lado da cabocla. Como explicar Alade? Ela o esperava na porta da barraca. Alade, meu pai morreu. Disse, brusco, sem olh-la, no pde conter as lgrimas. Ela o pegou pelo brao e alisou a mo, de leve, muda e atenta, vendo-o chorar e pender a cabea ao seu ombro, soluando. Durante aqueles minutos longos, sentados no banquinho, Alade compreendeu que ele teria de partir mesmo e abandon-la nada fizera para prend-lo. Aqui lisonjeava-se. Se os brancos falavam em feitio, naquela coisa cuspida por Lafaiete, era que viam nela uma mulher com foras de cativ-lo as foras mesmas dela e no da pajelana de separ-lo do mundo de onde viera, deixando mulheres lindas, brancas, de mos finas como plumas, ornadas de brincos, pulseiras, broches de ouro, meias de seda, morando em palcios, sentadas em cadeiras estofadas, enfiadas naqueles vestidos do grande figurino que Orminda lhe trouxera, uma vez. Ele [304] ficara ali durante meses e por qu? Guta? Guta, sim mas estava morta. No tinha mais direito de acus-la nem a ele porque a amou e sentiu de verdade a morte dela. Ele a escolheu para acompanh-lo naquele sentimento, um sentimento que s ela conheceu bem de perto, talvez as brancas no sabiam sentir

nem entender. Afinal Guta no era das brancas, era da igualha dela. E Alade, neste ponto, se arrependia e culpava pelo juzo que fizera da morta. Agora a queria como a uma irm, sua igual, talvez fosse melhor ter morrido para no padecer, como padeceria, nas mos de Missunga. No levaria fama de feiticeira. Nos meses em que ela viveu com ele, os brancos falavam e caluniavam, no o queriam perder, a ele estavam ligados pelo visgo da fortuna. O pai morrera, o filho chorava, de certo modo aquele branco soluando ao seu ombro lhe dava suficincia e orgulho, triunfo sobre o mundo inimigo. Tinha pena do filho e isto tambm a lisonjeava, nenhuma do pai dele, o que achava esquisito. Aquelas moas brancas perdiam assim aquele momento, no saberiam consol-lo nem aceitar as suas lgrimas como ela as aceitava. Segurou-lhe o queixo, falou baixo. Tenho de seguir. Cabisbaixa, ela concordou com um gesto, Missunga a viu to desamparada e como se estivesse sentindo mais a morte do pai do que ele. Vou no motor. Preciso estar em Belm, amanha. Deixo-lhe dinheiro e mando o quinino. Precisa se tratar. Agora falava solto, sem a lngua pesada, dono de seus nervos. Mando o quinino e tome logo duas cpsulas. Ir a Ponta de Pedras. Fica l. O motor vem lhe buscar amanha. Mando-lhe buscar. Voc vai morar na vila. Mando fazer uma casinha. L ou em Belm. Quem sabe? Estou, meu Deus, com um mundo de coisas a fazer. Alade nada respondeu e foi caminhando, vagarosa, para o quarto. Ele seguiu-a, viu-a cair na rede, escondeu o rosto no lenol e ouviu-a, ento, falar como se falasse de muito longe, de dentro das guas, abafadamente. No, no me mande buscar. No sou nada pra voc, nada, nada. Voc das suas brancas. Agora at o sentimento que voc tinha por Guta se acabou. Se este se acabou que sentimento pode ter por

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mim? No me mande buscar. Continuava a morder o lenol, a abafar a voz e ele, de p, imvel, na tentativa de acarici-la, chorar ou romper de uma vez com aquilo para apressar a partida. Ficaram em silncio. Ele concordou que nada havia entre as brancas de melhor ou igual quela mulher. Comeou a fazer desfilar as mulheres de seu mundo, primas, colegas, a prima Esmeralda, filha do tio Guilherme, a do automvel de ouro, uma boneca de gesso. Vinham as mulheres dos fazendeiros, iam a Minas, acompanhavam os maridos deputados federais ao Rio, a D. Lourena, estpida e avara, a mulher do Gondim, flcida e enfeitada, as Medeiros, polidas, viajadas e chatas, a mulher do Coronel Lizandro, com a mania da ostentao, entulhando a casa de mveis, tapetes e criadas; suas filhas, rol de mulheres mesquinhas e pedantes. outras afetavam religio e elegncia, moas apenas fmeas, ansiosas de farras e de amantes, animais bem nutridos e bem vestidos se ofereciam naquele zo provinciano ao primeiro aventureiro, ao primeiro cadete, ao primeiro calhorda que exibisse roupas, audcia e maestria no tango na Assemblia. Claro que havia boas mes, to domsticas e bobas esposas, sabiam cerzir uma cueca e mocinhas sofrveis, vidas por um casamento no sul. Alade era melhor que todas, melhor, no havia dvida, e no sabia lev-la. Acabaria casando com Elizabeth que oxigenava os cabelos e sonhava ser raptada num avio, Ou Hilda, a que lhe escrevia e o tratava por darling. Alade desobriu um pouco o rosto suado, os beios tremiam, os olhos sem lgrimas. Com uma voz que Missunga achou parecida com a de uma menina, disse: Sabe que sua gente pensa que lhe enfeiticei. E voc ficou acredita-no-acredita. No quero chegar na vila com o nome de feiticeira. Tambm no pense que eu queria que voc ficasse. Por isto v logo. Prove que voc que manda na sua vontade e que no veio por meu feitio. Mostre que o enredo do Capito Lafaiete um aleive

que ele h de pagar. Eu sigo a minha sorte. Na confuso e no espanto, Missunga no teve outras palavras: Afinal agora no ocasio para a gente estar falando nisto. Estou com a notcia da morte de meu pai, Alade. Como a cabocla no respondesse, Missunga tomou a ofensiva e quis mostrar a si mesmo e aos outros que no estava dominado por nenhuma fora alheia sua vontade. De qualquer forma prevenia-se com o que havia nas palavras dela, astcia, ou sortilgio, o que fosse, o fluido para uma provvel capitulao. Aquela atitude inesperada dela podia enfraquec-lo, por isto convinha reagir. Fale, Alade, vai ou no? Pergunta por perguntar. V sossegado. Alade, afinal... Ia falar o Coutinho, o branco, para devolv-la ao que era ela na verdade e tentou por cima especular com a morte do pai. Recuou a tempo meio desesperado. Queria sair dali limpo de emoes e de ressentimentos, de todas as moscas que lhe esvoaavam na conscincia e eis que sobre o cadver de seu pai e a herana saltava daquela cria de quintal um maracaj brabo. Bem, Alade, decida como quiser. Mando o motor. Tenho de pensar na morte de meu pai nesta hora. Voc vai ficar por a, fazendo o qu? No pense que acreditei no que disse Lafaiete. No pense. Alade desembaraou-se do lenol e sentou-se na rede. Apanhou os cabelos, prendeu-os, e falou: Deixe a o dinheiro mas v embora e me deixe. D lembranas aos seus brancos, pras suas brancas. Case com uma delas e me mande um doce. Ao menos um boto da grinalda... Alade, cale-se. Eh, que foi que eu disse? Missunga procurou apanhar-lhe a mo para despedir-se. Mas correu l fora e gritou para o porto que rodassem o motor. Voltou e encontrou Alade sorrindo, os braos cruzados:

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Bem, mando o motor. Se quer mandar, mande, s lhe garanto que ele no me encontra mais aqui. [307] Ele fez que no ouviu e quis beij-la. Alade recuou mordendo os lbios e estendeu-lhe a mo. Ficou atenta ao barulho do motor que aumentou, aumentou como se fosse dentro da barraca e logo foi se distanciando, diminuindo, desaparecendo at que somente ouvia o lento rumor da folhagem como um soluo. A tarde tombou no rio. Veio-lhe o grito de um tucano, um raspo do vento nas palhas, a noite.

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[308] Depois de examinar as contas da marchantaria conversou longamente com o advogado, o gerente, os caixeiros e com Manuel Raimundo. Respirou alegremente cansado, e afirmou que aquele dia era, em verdade, o seu primeiro dia de trabalho em toda vida. E o meu primeiro dia de criao. Quarenta mil reses redondas, bravias e mansas, bfalos, a melhor cavalaria de Maraj, terras, barcos, lojas, lanchas, depsitos nos. bancos, servos, cartrios, juzes, irmos naturais e contas a receber. Renunciou Intendncia de Ponta de Pedras, indicando o seu tio Guilherme. Pela primeira vez ao reler as ltimas cartas de Lafaiete que lhe pedira a Intendncia, recordou com delcia os seus dias em Paricatuba, a viagem na curicaca, as suas complicaes imaginarias e insolveis e via Alade subindo no aaizeiro, o vento levantava-lhe o saiote, o aaizeiro vergava e balanava com ela, os cabelos se confundiam com os cachos e as palmas, todo o seu corpo ficava solto, se mostrava de cima abaixo, um cacho de miriti se abrindo do croat. Aquele corpo lhe pesava no desejo como a recordao de um vcio morto. Era preciso expulsar os fantasmas e pensar na doena de Manuel Raimundo, a asma progredia e isto constitua perigo para a

administrao das fazendas. No segundo dia de criao decidiu visitar o seu domnio com o administrador. A lancha partiu de Belm, rebocando o Prola de Marajoau, que largou na baia, com uma grande vela azul fina de talhe e de velocidade, a mo de mestre do velho Amncio se fazia sentir da proa popa, os tripulantes saudavam a lancha que avanava nas ondas, fumaando. [309] No encostou em Cachoeira, subia o Alto Arari. Durante a viagem, subindo o rio, interessou-se pela asma, pelos filhos e netos do administrador. Conversou a respeito das malhadas, dos impostos sobre a exportao do gado, dos embarques para a Guiana Francesa, da febre aftosa e da importao de zebus. O administrador lhe falara dos novilhos gyr vistos na vacaria do Jaboti em Belm, concordou que seria necessrio mais zebu nos rebanhos. No deixou de insistir que o administrador necessitava ir ao Rio, consultar uma sumidade, aludiu a uma leitura sobre asma, concluiu melancolicamente que a cincia nada adiantara ainda sobre certas doenas to comuns e o administrador recordou que o Coronel Coutinho se queixava sempre de erisipela. O velho administrador exibia, observou o fazendeiro, alm da asma, outra doena, a do pesar pela morte de seu compadre e patro. Aquele sentimento de luto a toda hora pesava em suas palavras, gestos, silncio, suspiros, evasivas, aluses sobre a vida do Coronel. Por isso sentia que no era para o velho um patro da envergadura do pai. No merecia confiana e Logo Lhe vinha o despeito contra Manuel Raimundo como tambm raiva, com que lhe podia perguntar: quem era finalmente o dono? Agora tinha que lutar com o administrador? Este era-lhe indispensvel e a quem havia de se impor como patro, um Coutinho, maneira do pai com aquela cumplicidade, aquele entendimento que tanto unia os compadres. Romper com Manuel Raimundo era comear de novo, rompendo com

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o pai. O mundo velho permanecia, cabia dentro dele o administrador. A lancha apitava em cada curva do rio. Afinal, Manuel Raimundo, voc deve ir tambm a Minas, limpar o fgado. Vai primeiro ao Rio, passa um ms, consulta o sbio e sobe as montanhas. E quem fica testa de tudo isto? Agora que preciso estar de olho aberto. Temos que fazer o inventrio, a contagem. preciso estar de olho em cima. Mostrar a essa canalha que nada vai mudar, que o filho herda do pai a qualidade de bom patro, cuidando do que lhe pertence. O inventrio vai ser trabalhoso. Temos que olhar bem os servios da prpria marchantaria. Vejo [310] l uma poro de coisas para acabar. No acha que h alguns caixeiros que podem ser substitudos? No. No posso sair agora. Onde se viu uma administrao sem a cabea? Agora que a responsabilidade se tornou maior. Temos que mostrar que a casa no caiu. Que outro esteio foi ficado. Ento o fazendeiro, divertido, pilheriou: O rei morreu, viva o rei. O administrador no compreendeu a pilhria, balanou a cabea afirmativamente num ar risonho de entendido. A lancha subia mais vagarosa, os dois homens embalavam-se nas redes. A tarde desceu maciamente, lisa e com gritos de tetus. Manuel Raimundo, que voc pensa sobre o aumento do preo da carne? No achou justo que eu assinasse o memorial dos fazendeiros ao governo? Era o que seu pai fazia. A lealdade de seu pai sua classe de fazendeiros foi sempre uma coisa que admirei nele e seus amigos louvaram. Esse povo de Belm pensa que pode comer carne de graa. No sabe o quanto custa lidar com o boi, com vaqueiros, com enchentes, com vero estorricante, no sabe quanto custa. E atacam os fazendeiros. A inveja um dos maiores pecados da humanidade, dizia o meu compadre.

Achei razovel o memorial... O administrador, na rede, levou as mos no ar, o olhar no alto e exclamou: Graas a Deus, graas a Deus. Minha mulher fez promessa. Deus tira um Coutinho, pe no mesmo lugar um mesmo Coutinho. O administrador parecia exaltado, respirava mal, a asma no o apanhasse naquela hora. A lancha entrou numa curva, desembocou nos largos campos de ambas as margens. O administrador ento ergueu-se e indicou: Aqui principia a propriedade. O proprietrio levantou-se e ficaram os dois, apoiados no balastre da lancha que avanava arquejante, olhavam, silenciosos e graves, a extenso derramada dos campos, desenrolando-se, [311] ga|do pastando, ilhas aqui e ali, trechos de uma paz mida e verde, uma ou outra barraca como ndoas, de onde cresciam, nas portas, tristes barrigas de crianas, mulheres na beirada lavando roupa, garas voando, a gua relinchou alto com imponncia, os campos passavam, passavam, um bfalo olhou a lancha, imenso e desafiador. Os campos passavam. A contemplao foi demorada e como fascinante para o fazendeiro. Voltaram s suas redes e os campos continuavam. O administrador pigarreou e disse rouco: Ainda tem mais campo, eh, so duas horas e pico de lancha. Mundo. E fez um gesto como se tudo aquilo fosse dele, tivesse amansado e conquistado e agora oferecia a um filho e por isto olhava, com indiferente intimidade, os campos, campos e campos. O fazendeiro, sob o arquejo da mquina, continuava olhando, as beiradas passavam lentas, o mundo slido e brbaro que precisava conservar. Mas, que me permita, por que no se forma? Sempre foi vontade de meu compadre lhe ver doutor.

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Vou ao Rio com essa inteno, Manuel Raimundo. Terminarei o curso. Gostaria de me especializar em veterinria, por exemplo. Ser mais til s minhas fazendas, ao meu gado. Em zootecnia. Tenho uns projetos. Desejo estudar um plano de drenagem contra as alagaes nos campos. Vou pensar bem nisto. Estou com mil projetos. At mesmo uma charqueada. Que acha voc? Ponha estes projetos de lado e consiga o seu diploma, menino. Em Maraj quem manda a providncia. Isso s melhora quando Deus mandar. No princpio do mundo no foi o dilvio? Voc perdia dinheiro e no fazia nada. No acredito em doutores de gado. J ouvi falar na engenharia na Holanda mas isto l para os holandeses. O que Deus lhe d basta, menino. O gado no cresce e no se multiplica? Coronel era homem sem projetos. Fazia o que a lei da natureza mandava e deu-se muito bem. S uma coisa ele trouxe pra c, foi o zebu. O resto deixou que tudo viesse com o tempo. E no deixou uma grande fortuna? Trate de formar-se e esquea os projetos. E uma coisa tenho que acabar, Manuel Raimundo, este meu apelido: tenho que voltar e todos me devero chamar Manuel Coutinho, meu nome prprio... Dr. Manuel, meu filho, Dr. Manuel. Acendeu o cigarro e olhou sorrindo para Manuel Raimundo. Veja voc, Manuel Raimundo, e eu que dizia as piores coisas contra o bacharel, o doutor. Isto juzo que chegou, juzo. Graas a Deus. Graas a Deus. E como ? E sua molstia? Ir ao Rio, combinado no ? No. No vou me consultar no Rio. Viaja-se muito, gasta-se e nada se consegue. Vou consultar mestre Jesuno. Mestre Jesuno, em Soure? Mas um paj? Que voc sabe a respeito dos pajs, que sabe sobre a fora do desconhecido? Ento acredita?

E por que no? Vou porque meu corao me pede e minhas filhas. O fazendeiro considerou a ausncia do administrador, se partisse para o Rio a fim de consultar as sumidades. Manuel Raimundo conhecia a fundo os seus campos, deix-los naquela hora era, com efeito, arriscado. Pois vou Levar voc ao mestre Jesuno. O administrador voltou-se vivamente entre surpreendido e agradecido: No, no. Minhas filhas me levam. Que vai fazer? No precisa tanto incmodo. No deve ir. Vou, meu caro, quero levar voc. No vai mais me dizer no. Claro que meu dever. Sou tambm responsvel pela sua sade. Papai se fosse vivo lhe levaria. Na primeira fazenda, encontra-se diante de um vaqueiro ferido por uma ona no rodeador dos centros. Mandou lev-lo, na Lancha, para o hospital em Belm e ficou com o couro da ona sem deixar de exclamar diante do vaqueiro que se estorcia de dor: Que belo couro, em, Manuel Raimundo. Um dia hei de matar uma ona. [313] Uma famlia apareceu no alpendre de So Pedro, querendo lhe falar. Era o vaqueiro Francisco, estava despedido e exibiu a filharada, a mulher grvida e um co. Isso agora com o administrador. Vamos ver o que se faz. Chamou Manuel Raimundo, mandou fornecer um paneiro de farinha, roupa, carne, e quando quis revogar a ordem do administrador, este ps a mo na cabea, falou na anarquia geral que tal ato provocaria em todas as fazendas. No podemos, no podemos. Estes homens, deste modo, tomam conta disto tudo. Para que foram arranjar tanto filho? Isto falta do que fazer. O patro que tenha obrigao de sustentar. Que agente os familhes. Uma anarquia. Assim sem responsabilidade

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no possvel. meu Deus, esta humanidade no tem cura. Pensam que isto aqui mudou. Pensam que compadre morreu, tudo ficou em rebolio. Queriam explorar a boa f do moo, falou em viver uma vida mais tranqila, estava velho, muito aborrecido que o doutor desculpasse. O que me mata no a asma mas a velhice. Papai no fale tanto. Deixe... A filha armou a rede, trouxe-lhe um travesseiro, chamou o mano para a injeo e procurou um leque. O fazendeiro desceu o alpendre, alcanou a famlia que se encaminhava para a beirada. Falou com o pai: Voc quer me dar as trs crianas mais velhas? Dou sim, doutor. Pois fale ao comandante da lancha. Espere, eu falo. A lancha leva elas. Vo acabar de se criar com as empregadas l de casa em Belm. E tome. Empregue este dinheiro numa barraca. Evite mais filho. Mas, olhe, no espalhe a notcia. Seno um nunca acabar de ficar com filho alheio. Exasperado, as suas prprias palavras o golpeavam com uma aguda violncia, multido de irmos o assaltavam, Alade via o filho no delrio. Guta rodopiava na trovoada. E tratou mal a um vaqueiro, gritou com o comandante da lancha, olhou com indiferena as crianas que o pai lhe trouxera para lhe tomar a beno. [314] noite uma tristeza abrandou-o, passou uma hora lendo um velho Carlos Magno encontrado na gaveta da mesa de jantar. Noutro dia amanheceu lpido, disposto a regressar e teve que enfrentar o ladro de gado preso quando esfolava um boi no igap. Queria porque queria falar com o patro. Doutor, eu esfolei o boi, o boi estava morto, morto de febre. Eu aproveitava a carne. Reconheceu Almerindo. O administrador acudiu com um grito:

Vocs matam o moo. Vocs matam o moo. No sabem que ele ainda est de sentimento do pai, no sabem? Quem mandou trazer este ladro na presena do moo? Quem mandou? No mandei embarcar ele preso pra Cachoeira? Manuel Coutinho acompanhou o homem at o barco: No roubou mesmo? Estava morto? Por tudo quanto mais sagrado que estava morto, doutor. De febre. Eu aproveitava a carne. Doutor me livre. O fazendeiro lhe disse ento baixo: E preciso no quebrar a ordem nas fazendas. Voc afinal de contas tirou carne que no era sua. A lei era deixar apodrecer no igap. Vou mandar dizer em Cachoeira para lhe soltar logo que chegar. Mas no me aparea mais por aqui. Procure o mundo. Trata de ser um homem de bem. Voc de Cachoeira a rio abaixo livre. V. Dissera as ltimas palavras, com um sbito desprezo de si mesmo, uma vaga inveja daquele homem que ele julgava livre. E abraou o ladro, deu-lhe uma quantia, recomendou ao piloto, sentiu-se no fim aliviado, mas sombrio. Arre! Soprou fortemente as emoes e as moscas da conscincia. Coitados. Coitados, repetiu murmurando, e caiu, exausto, na rede em que se embalou, se embalou at que adormeceu.

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[315] Alade, no barraco do ngelo, soube noticia de Tenrio. Elias o despedira. Achara que Tenrio era a sua asa negra. E o caboclo resolveu ficar at um dia, talvez para sempre, naquele brao de rio onde Alade o encontrou. Uns restos de palha escura e puda cobriam a palhocinha. O quarto esburacado, de paxiba podre e o jirau. Uma rede cerzida e remendada, atirada num pedao de tbua no cho de juara velha. Uns trapos sujos, juntos a dois baldes de cuja, fediam. Atrs da

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barraquinha tocos cados, uma escadinha pedindo que ningum subisse nela. A toia de aaizeiro ornamentava aquela misria. Tenrio mirou os velhos paris de apanhar camaro. Aquilo no prestava mais para nada. De que valia? No portinho, outro jirau se arriava todo com um p de arruda, um taj aranha rica e uma roseira toda em botes. Uma canota, muito velha, apodrecia emborcada na lama. Esqueleto de montaria. Sobre a barraquinha, a solido. Ouviam-se as cigarras nos siriubais vizinhos. Os japiins mais de longe teimavam disfarar aquela solido grande que espremia da terra aqueles rios de misria e febres caminhando para a baa. Tenrio arrumara uma sem ningum no Marajoau. Ela apareceu na abertura do quarto, visagem de febre e de fome. Os taxizeiros vermelhavam pegando fogo no sol que caa no poente como um guar. Veio a sombra avanando sobre o rio. O mato foi se enrolando na escurido como se a noite, uma jibia, o devorasse. A mulher desceu e encheu os dois baldes de gua. Subiu, foi espertar [316] as brasas do fogo para ferver um ch, a dor no ventre era como uma ferrada de bicho. No havia mais fogo. Nem um fsforo mais. Parou o olhar nas brasas mortas, coou as costas, o cabelo, e cuspiu. Ah, uma migada de tabaco! Tu no tem, Tenrio? Tenrio resmungou qualquer coisa. Magra e amarela, naquela saia de trapos, a mulher coava a perna, os cabelos abandonados nas costas. Suspirou fundo. Seus olhos, como os olhos de uma feiticeira, fixaram-se nalguma coisa incompreensvel, distante. Perdera o filho h dias. Um gito de trs anos apanhado numa noite de festa no Santo Incio talvez com um tripulante da canoa veleira A Resolvida, que viera carregada de mel e cachaa de Abaet. Um curumim inchadinho, feio, os olhos pisados, tremendo, tarde, com o frio do paludismo. Caiu ngua numa lua cheia. Escorregou no jirau. A me deu um grito. Dois dias depois

Tenrio achou o corpo do curumim num p de barranco, roidinho pelos peixes. Ali mesmo, na raiz da samaumeira, tardinha, o curumim fedia por demais enterrou o anjo. A companheira lhe fez duas ou trs perguntas e um silncio escorreu, escuro, em duas lgrimas que desciam na cara encardida da mulher. L fora os japiins. S tenho uma pena que se afogasse. A frase boiou no silncio como um bicho morto inchando na mar. Um curumim crivado de corubas, chorando seco, a comer como um danado, roendo caroo, pau e torro de terra. A barriga crescia que nem bacu. Depois olharam para a trempe. Um tracu cheio de cinza. Uma chocolateira amassada e sem asa. Duas panelas de barro viradas. O alguidar vazio e roxo de aa. A peneira rota no cho. Um espeto e um pedao de terado. No havia mesmo com que distrair os cacos de dente. Tenrio estava com aquela inchao na coxa to mole, to morto. No pudera arranjar nada, nada. Nem cortar lenha para o barraco do ngelo, ele pde. Se estivesse com aquela coxa melhorzinha podia ainda furtar um. peixe do cacuri de seu ngelo. A mulher esfregou-se toda, sanhanhou [sic] o cabelo, os piolhos [317] lhe caam pelo pescoo, desceu a escadinha quebra-no-quebra. Voltou a dor no ventre, a coceira na cabea, a dor que a fez torcer-se sem soltar um gemido. Como estava bonito aquele p de raj aranha rica no jirau arriado. Ficou olhando o rio engolido pela escurido. O gito cara ngua quando o rio na lua cheia estava cheio tambm, escamoso de reflexos. Ela atirara-se a nadar. Foi intil. No tem mesmo um palito de fogo, Janica? A mulher no respondeu. Ficou encostada no jirau, no meio daquela solido. Como se no houvesse mais ningum no mundo, s ela e Tenrio naquela palhoa beira do rio morto, com um curumim, rodo pelos peixes, se delindo ao p da sumaumeira. A ficou Alade.

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[319] Manuel Coutinho, Manuel Raimundo e as duas filhas apearam. Um vaqueiro o guiava, levou os cavalos para o tabocal. Estavam no stio do mestre Jesuno, na estrada de Joanes para Condeixa, municpio de Soure. Das janelas do barraco, uma cabana grande de maloca, trs mulheres espiavam. Uma negra ralava, vagarosamente, qualquer raiz na lngua de pirarucu. Os viajantes se aproximaram e saudaram as mulheres que saram para o terreiro, lentas e silenciosas, olhando de revs, como ndias. Dentro, dois oratrios na sala grande no cabiam mais de tanta imagem. Num jirau de tbuas soltas, suspensas nas vigas sobre o copiar, armadas duas redes. O cho batido exalava cheiro de terra e razes, impregnando os corpos suados, as imagens, as coisas todas. Nos quartos atrs, escuros e abafados, havia doentes, se amontoavam panelas e mo de milho. Mestre Jesuno est?, perguntou o vaqueiro depois de um demorado silncio. O patro, o administrador e as filhas permaneciam mudas, como estafadas da viagem. No, mas daqui com pouquinho ele chega. Respondeu a negra e os visitantes sentaram nos bancos do terreiro, esperando. O administrador temia um novo ataque de asma, o fazendeiro bocejava. Repetia, como um estribilho. Curar, curar o administrador. Nas ltimas semanas, Manuel Raimundo piorava e o patro se cansara de ouvir as filhas do velho insistirem que os remdios estavam matando o pai e ali s mesmo o poder do mestre [319] Jesu|no. O fazendeiro queria partir para o sul. Aquilo o contrariava j alm do limite a que se permitia contrariar. Ter uma propriedade exigia, com efeito, responsabilidade, imaginao prtica, at mesmo dom, sobretudo o dom da pacincia e de crer no milagre. Como desperdila ou distribu-la, como desadministr-la? Achava-a fatal como o destino de Guta. Ou como a misria de Tenrio?, indagou de repente.

Ah, tinha que reagir contra aquele pensamento-puxa-pensamento infinito que o corrompia numa tortura mida e tenaz. Deixava-se arrastar pelo fcil devaneio em que conclua para si mesmo: as fazendas tinham Deus, o tenente rsulo, o Divino Esprito Santo, nh Leonardina que fora para o hospcio brincando com suas bruxas de pano. Faltava mestre Jesuno para completar a propriedade. Ergueu-se para sacudir de si aqueles pensamentos como poeira. No era o paj que curava? No era o mestre curador? Ouvia sua histria, suas curas, seus milagres, o fumo de seu cachimbo secava as feridas, o som de sua voz abrandava as dores. Caadores de ona no Salgado, roceiros de Joanes, pescadores de Salvaterra, mariscadores de Camar e brancos fazendeiros com a bexiga vazando como o capito Onofre, oficiais de policia com congesto cerebral como o pai do tenente rsulo, velho espancador de caboclos em dez municpios do Par, advogados vinham consultar sobre o inventrio e a impotncia, vendedores de liamba, buscadores de ouro no Oiapoque, vaqueiros lanhados de ona, estropiados, rendidos e agonizantes, diabticos e possessos, tsicos e senhoras finas carregando mauolhado na alma e tumores no tero, gente bem apessoada ou maltrapilha de Belm, os desenganados dos mdicos, iam buscar remdio com mestre Jesuno. Comiam poeira ou a lava dos caminhos e dos campos de Condeixa e Jobim, montados a cavalo, em carroas, a p, nas montarias pelos furos, em redes. O barraco, principalmente nas sextas-feiras, dia de sesso do paj, no cabia de doentes e de desesperados. Sentiu sono, o paj tardava, ningum puxava conversa, a tarde mais quente, as rvores, o campo, as fisionomias pareciam crestadas. Aos poucos o vento, descendo pelo tabocal, soprou nas palhas, passou os dedos de leve pelas rvores e foi tirar um fino [320] gemido, uma surdina, de dois paus de miriti, no topo do barraco, encordoado. Que aquilo? A viola do vento, disse o vaqueiro.

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Viola do vento? Foi o filho dele, o ceguinho, que armou os miritis ali e encordoou. Toca como msica. o divertimento dele. Os miritis tocavam ninando crianas ausentes, passarinhos baleados, bezerro morto nos campos, os ceguinhos do mundo. O fazendeiro ouvia-os como sossegando o seu desejo de partir o mais cedo possvel, o arrependimento de ter ido, sem convico nem sinceridade, quela paragem que sentia rida e constrangedora. Manuel Raimundo engolia o ronco da asma e ruminava a esperana. As duas filhas imveis. A msica dos miritis tinha uma tal inocncia que todos no ousavam falar, talvez nem pensar que o pensamento, ento, era impureza. O fazendeiro tentava compor uma cena ntima, reconstituir uma paisagem. Helena impotente diante do piano, lembrar trechos remotos de msica, elegia ou choro de criana doente sem salvao, a inocncia de Guta com o balaio caminhando para a trovoada. A montanha sobre os tajs no cho das guas em que Alade tinha as mos filtrando o sangue e a seiva do aa e de seus lbios escapava um fio de cantiga e certas palavras como rescordncia, falncia, merecendncia, ela sabia dizer com tanto sabor. Quando algum achava um peixe gostoso, ela replicava: stoso nada... No pde fixar nenhum sentimento que correspondesse quela msica dos miritis, era como a essncia daquela paisagem sulcada de sofrimento e magia, os ais dos desenganados e o silncio dos que esperavam salvar-se. Demora muito mestre Jesuno?, insistiu o fazendeiro, tossindo, dominado por um crescente mal-estar. No. Daqui com pouquinho chega. Apareceu um curumim roendo um caroo de fruta, atento musica dos miritis que o vento afinava j com uma suavidade montona. Toma a bena da gente mais velha, seu corninho ralhou Manuel Raimundo.

[321] A criana assustou-se, deixou cair o caroo, no sabia se apanhava o caroo ou estendia a mozinha melada, suja e tmida ao administrador que resmungou, abenoando-o: Santinho. E o curumim ficou num olhar perplexo diante do fazendeiro, como alheio msica. O fazendeiro sorriu e fez um gesto como tambm para abeno-lo ou lhe pedir a sua triste inocncia. Manuel Coutinho distanciou-se um pouco do terreiro, aproximou-se da barraca defronte, fechada. O vaqueiro apressou-se a acompanh-lo. A mora uma senhora de juzo variado. Tem a mania de espiar pela fresta da porta. Desgosto. O marido, um comerciante, roubou uma moa em Joanes. Mestre Jesuno trata dela. Desta vez, a mulher abriu a janela e olhou. O fazendeiro recuou e contemplou-lhe a face longa e branca na luz da tarde amarela. Nada havia naquela senhora de agitado ou estranho. As mos alvas lembravam as de sua me. Era um desses velhos e ntimos retratos de parede, de tia morta, av quando moa, olhando em nos a infncia que perdemos e que se reflete em seus olhos. Um gesto brusco desfez a apario serena e a janela fechou sem rudo. No terreiro, o ceguinho j estava deitado, ouvindo a sua viola, um co lambia-lhe as pernas. Alguns caboclos chegavam com paneiros nos ombros. Vaqueiros vinham de longe a galope. Um homem mancando sentou numas tbuas perto do tabocal e principiou a encordoar um cavaquinho. No caminho um caboclo, alto, vinha, silenciosamente, enrolando em folha do mato um grosso cigarro. Aquilo liamba, informou o vaqueiro e Manuel Coutinho atentou, vivamente, no caboclo, na maneira de enrolar o cigarro, na lentido com que caminhava, no anteprazer com que preparava o fumo. E tu? J fumaste?, indagou ao vaqueiro. Bem que j me deu na vontade mas me mete medo.

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Por que ento? A gente sonha por demais. Como sabe? [322] Falam. Ele ento no conta? Disque vai matando aos bocadinhos. A gente vai secando, secando, de repente d um grito cai maluquinho, maluquinho ou se atira ngua. Aquele tabaco do diabo. O caboclo parou no campo gravemente e puxou com dignidade o primeiro trago. O sol secava as coisas, os seres, tornava ntido aquele fumo, mais escura a sombra do homem que se alongou pelo caminho. O fumo subia. O vaqueiro olhava-o, fascinado. Aos poucos a viola do vento foi calando e calou como uma criana que morre. O ceguinho levantou-se, inquieto, inclinando o ouvido, tinha o rosto velho e cheio de panos. E tudo se tornou to em suspenso que o fazendeiro avanou em direo do caboclo parado para lhe pedir um trago quando o chamaram do terreiro. Mestre Jesuno chegava. Viu um homem avantajado, maduro, cala de mescla e camisa de croch os olhos meio murchos, o bigode ralo escorria pelos cantos da boca cada, e sem dentes. Suas mos, como se fossem curtidas, eram de uma obscura e rude beleza de terra. Com a mesma voz dos vaqueiros velhos e dos matadores de ona, saudou as pessoas presentes com um quase humilde e vagaroso boa tarde, inclinando de leve a cabea. Explicou a demora. Tinha ido comprar meia garrafa de vinho para um remdio. Tambm tratara em Condeixa um vaqueiro batido. O fiscal da vila o prendeu para o almoo a fim de conversarem sobre eleies que pareciam prximas, era tambm cabo eleitoral da poltica dominante. Pois aqui tem mais um doente explicou Manuel Raimundo, ansiado, e contou toda a histria de sua asma. Mestre Jesuno dizia apenas sim, senhor, manso, sem um gesto, alisando o chapu de carnaba, como desatento. Mandou o fazendeiro entrar, perguntou

pelo filho cego que no via. Foi indagorinha apanhar as ervas, respondeu uma mulher que baixo explicou: o ceguinho guiado por uma pessoa ia ao mato ou andava pelos campos apanhando ervas com que o pai tratava os doentes. O crepsculo desceu sobre o roceiros que voltavam, os gapuiadores, os que no puderam apanhar uma caa para seu fogo, [323] aquele fogo atrs da barraca, entre rvores, onde seria bom assar um quarto de paca, um peixe de espeto e fazer um caf para se tomar com beiju feito na hora. Com o anoitecer, a plana e morena terra marajoara tinha um cheiro animal, excitante e amolecedor no ltimo sopro do mormao. Mestre Jesuno ficou conversando molemente com Manuel Raimundo, de vez em quando dando uma ordem ou atendendo as mulheres. Junto aos oratrios, a negra continuava a ralar a raiz na lngua de pirarucu. Manuel Coutinho se aproximou da conversa, quis falar em doenas, em remdios, nas possibilidades de cura da asma e resvalou para a lenda do lago Guajar com que, supunha, mestre Jesuno deveria ter velhas e misteriosas ligaes. Mestre Jesuno desviou o assunto para a prxima ferra dos Siqueiras, o fazendeiro sentiu-se um ar de autosuficincia, de orgulho naquela reserva. Guajar era um lago falado, a lenda enchia os campos. Os vaqueiros contavam: tinha comunicao com o mar, a mar enchia e vazava, boiavam quilhas de barcos, lemes, pedaos de velas, vozes de afogados, bois bufavam no fundo, ningum ousava pescar ou atravessar noite no lago Guajar. E quando s dez horas da noite principiou a sesso, no copiar, sob aquele jirau onde as redes rangiam, o paj deu ao fazendeiro a impresso mesma do lago. A voz recolhia subterraneamente o numero dos laos distantes, a agonia das lagunas morrendo no vero com as vacas e os bezerros atoladas, a queixa dos rios secando, o mar roncando, os viajantes do mar rezando no mau tempo, os ventos desfiando as velas, possuindo a floresta e dispersando as estrelas, o

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miado longo das onas acuadas nas ilhas, os tambores do Esprito Santo batendo nos coraes. A sombra do jupatizal caa no lago, subia o hlito do lodo e do murur. A gua parada, a mesma gua do encantado que vem do mar, pelo fundo da terra, de todos os nufragos e de todas as lgrimas. O silncio de Jesuno era como sono. Aquele corpo parecia enorme como o lago abrindo as margens para os descampados tristes. Para ele os caminhos no vinham das guas do mar e dos campos mas das dores do homem. Com esses poderes o paj ditava a receita e emplastava a esperana no peito do povo. [324] A morte tambm chegava, mestre Jesuno sorria quando os doentes demonstravam temor. Aquela incompreenso, aquele espanto, aquela covarde esperana misturavam-se com a lama dos campos encharcados, com o p dos negros campos queimados, com tudo o que restava nos homens para teimar em viver. Mestre Jesuno tudo recebia com um respeito, uma inocncia, uma tranqilidade que s poderia ter ido buscar no misterioso Guajar. Por que no pescava no lago? Os peixes talvez tivessem nas escamas o limo que curava os epilticos, os loucos, os desesperados do amor. Queria esse limo no corao para tornar-se capaz de procurar Alade e compreender o ltimo olhar de Guta. Em torno, mulheres descalas e amarelas, a ponto de carem na atuao como possessas. Os doentes se amontoavam. Aquelas caras chupadas e s vezes inesperadamente belas, carregavam-se de contrio e silncio suado na sala escura sob o fumo do taquari. Nos oratrios, os santos sufocavam. Esquecida deles, volvia-se para o paj aquela humanidade marajoara com todos os cheiros suados de seu trabalho, de sua imundcie e de sua pureza. Mestre Jesuno fumava o seu cachimbo e o fumo espalhava o cheiro de alfazema e alecrim. Uma mulher ajuntou gravetos no meio da sala e fez um braseiro. Mestre Jesuno, com o seu calo, a faixa nas coxas, saltou no braseiro e o fogo no o queimou. Subia do braseiro a fora que o alumiava. Depois foi a toada triste, triste, de sua invocao, o

fazendeiro ouvira a voz do primitivo terror, do espanto do homem diante do primeiro fogo e da sua primeira imagem informe de Deus. Saiu. No terreiro alguns homens esperavam. Outros atrs do tabocal bebiam. O caboclo, alto e queimado, ouvindo os mirins, fumava o seu cigarro, esperando embriagar-se e rolar pelo terreiro do, como sempre acontecia. A mulher louca apareceu na janela.. A msica dos miritis afinava o tdio e a superstio. Aqueles homens saam lentos e calados, desapareciam na noite imvel nos campos como um pntano. Doentes gemiam e tossiam no jirau onde a luz encardida da lamparina dava uma claridade [325] quase espectral. No cho subia um bafo entorpecedor. E o movimento dos passos gente sentando nos bancos, se levantando, esfregando os ps e as pernas, escarrando, tomando gua, batendo os canecos na boca dos potes com um tinir arranhante, mulheres se abanando com panos, todo aquele movimento era de um vagar lgubre. L fora, a louca espiava pela janela e o homem alto, no ponto do sonho, correu para os campos. Os miritis tocavam a musica daquela embriaguez selvagem, sob a noite, fixa e lcida como o olhar da coruja no galho do jupatizeiro. O ceguinho embrulhava-se na rede para no mais escutar aquelas vozes, no se lembrar da louca e do bbado de liamba. O fazendeiro ouvia pedaos de conversa no terreiro: Aconselhou leite de peito para o agonizante. Pra mim receitou poraqu seco pro corpo. E para a inchao da perna da Ierec ensinou banha de urubu. A banha escorreu sobre os nervos do Manuel Coutinho. E tinha que passar a noite ali, oh, como era prefervel partir imediatamente para Salvaterra, deixar o administrador nas mos daquela gente por duas semanas como o prprio Jesuno aconselhara. Voltou sala onde o paj ia ditando! um implastro. Um purgante de mamona simples, ma de

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gado torrada, uma colher de chifre de veado galheiro modo, nozmoscada, clara de ovo e caf torrado sem acar. As receitas se misturavam e o fumo pesava na sala, aquela voz invarivel derramava-se oleosa nas caras atentas, nos ouvidos atentos, na mo que escrevia. uma fumentao. Banha de anta. Banha de tartaruga. Amndoa doce. Alho cozido. Bate-se tudo junto pra afument e dar frio durante trinta dias. E para a dor. Manuel Raimundo, na rede atrs, se embalando, j afomentado, sentia mistrio e milagre naquele voz. Azeite doce, banha de para, banha de bode preto... O fazendeiro ergueu-se e foi respirar no terreiro. Um grito ouviu adiante no campo. Os homens correram e trouxeram a mulher carregada que gemia. [326] A noite me pegou no caminho disse ofegante desembarquei em Joanes. Vim de Belm. Ai, meu Deus, que viagem, calculava chegar... Ai, no posso mais. Mestre Jesuno me acuda! Mestre Jesuno acudiu. A doente vomitava sangue. Mulheres acudiam num sussurro. A louca suspendeu uma lamparina na janela. Os miritis tocavam. Ser que a louca vai tocar fogo nas vestes?, pensou o fazendeiro. A mulher continuava a vomitar sangue. Dem leite de peito, dem leite de peito, cochichou o patro sem que ningum ouvisse. Estava cansado e intil. O fumador de liamba rolava no campo, espojando-se na poeira e no sonho. Onde e como dormir? A morte era aquela mulher louca espiando na janela com a lamparina na mo. Armaram-lhe uma rede junto do tabocal. O sono desceu asa de urubu-rei, belo e sinistro, baixando na sombra, banha de urubu se misturava com liamba e msica, os cabelos, os seios espocados de Guta, e acordou com um grito como se estivesse se afogando no lago.

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[327] Abriu a janela. No era a madrugada, era o luar. Soure dormia embalada pelo vento, pela voz da baa, num leito de mangueiras. Esperava o barco motor para seguir at Belm e de Belm partiria para o Rio. Haveria de passar muito tempo para se libertar da morte de Guta. Ela ficava solta na terra, seiva e silncio subindo nas plantas selvagens. Os cabelos inocentes de Alade ficariam verdes entre as palmas e os mururs. Os miriis moles se desfaziam nas mos dela como para agrad-la. Se mestre Jesuno tivesse adivinhado a sua histria? E por que tantos mortos no seu caminho? Andava pela terceira rua de Soure. As mangueiras lhe ofereciam uma paz de orvalho e resina, se derramava dos frutos verdes e das folhas. Em ordem na rua, pesadas de sossego e mangas. Com que maternidade, com que fora de criao a terra as sustentava e as deixava ao luar, na rua da pequena cidade marajoara. Essa maternidade era o que sentia em Alade, via-a na esteira ou no delrio, o ventre espera, os seios da me leiteira. Os galos cantavam. Ia andando. Para aquela solido e aquele pesadelo s uma realidade possvel: a do dia amanhecendo com o barco motor. Desceu a Rua S. Pedro, e beira do rio entre embarcaes e botes de pesca encalhados, viu a vila de Salvaterra, noutra margem com os seus coqueiros, suas casas meio diludas no luar como se dele nascessem feitas de fumo e de prata. Se naquele momento Alade lhe aparecesse estaria certo que ela lhe pediria para ficar ali em Salvaterra [328] plantando coqueiro, matando sava, banhando os filhos na praia, despescando cacuri. Trariam enfiadas de camorim e curimat, comeriam cabea de gurijuba no tucupi, levariam os filhos para mestre Jesuno benzer e fechar o corpo contra o mundo. Voltou-se para o

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fundo de mangueiras em que Soure se deitava. Teve de repente, como um calafrio, a lembrana de sua me. Tentou reconstituir a cena da sua morte mas perdeu os traos essenciais daquela face, daquela voz, daquela expresso de sono, fadiga e desgosto que seus olhos deixaram. Salvaterra se misturava no luar e todas as coisas ali se tornavam virgens, elementares, cheias daquela inocncia e daquele desfalecimento em Alade e Guta quando sofriam ou se deixavam possuir sob as rvores na noite macia, a mar espiando atrs dos paus cados. De Alade, se lembrava bem, com a lua madura dentro da noite espoucando como uma semente. Tudo aquilo era que estava s, ali naquela povoao morta no sono. Os galos malucos voltaram a cantar. As mangueiras continuavam serenas como se quisessem sepult-lo com as suas folhas to inumerveis como a terra que cobria Guta, como as estrelas desfeitas ou sepultadas no cu, bero e cemitrio de estrelas. Quem plantou as mangueiras que estavam ali em fila, misturando o luar nas seivas, colhendo a noite para a curiosidade de suas razes? Contavam que foi velho Gonalves. O velho por isso tinha as mos eternas. Deitou-se novamente. Veio-lhe a nusea da casa do mestre Jesuno, os nervos sob agulhas, as pernas pesavam. Noite imunda aquela em que o paj danava no braseiro e as banhas chiavam no fogo dos sofrimentos. E com seu impetuoso desejo de partir, subiulhe o velho desalento de Paricatuba. Todos os fantasmas rodeavamno, penduravam-se na rede. O sono precipitou-se, rio vertiginoso e vermelho onde boiava como um cadver. Evidentemente estava morto, saa-lhe o sangue pelos cabelos, espumando. Estou morto, dizia. Por que os mortos no me reconhecem? Por que entre eles no v Alade, no distingue a me e Guta carregando um enorme tronco no ombro? Acordou sobressaltado, teria mesmo dormido naqueles minutos? Ouviu rudos, batiam roupas no barraco do mestre Jesuno, esfriavam chs com a colher, arrastavam bancos. Espalhava-se o

[329] bafo a remdios e a pedaos de desespero, a terra pisada e cuspida, os corpos besuntados de banhas selvagens, os fundos e longos roncos da aflio e do alvio nas afomentaes. Sentou-se na rede e olhou. Num canto do quarto, meio desfeito pela sombra, o oratrio. Permanecia no quarto a velha casa pertencia a uma parenta que sempre ia a Soure para aliviar o reumatismo o cheiro dos sonhos, o silncio das mscaras, dos gestos e dos balbucios dos que dormiam, dos que morreram naquele casaro. Quis ver os santos no oratrio. Caminhou para l, p ante p, para no acord-los. Os santos faziam como se tivessem voltado primitiva condio da madeira e da massa informe em que foram moldados. Aos seus ps os resduos das rezas, as ladainhas desfeitas e inteis, o sussurro da penitncia e do medo. Fria e inesgotvel impiedade das imagens. Via-as atravs do meio-sonho e da sombra com que queria espreit-las ou surpreend-las nalgum ato inconfessvel que, enfim, as humanizasse. Por que eles o amedrontavam? Pensou nos santos de sua me, por serem dela, santos verdadeiramente. Quando ela morreu, subitamente se despiram de toda a santidade. Ficaram vazios e desamparados. Despojos de uma f que no se podia arrancar daquela carne triste de me, daqueles nervos, enfim, parados. A madrugada. Um barulho ouviu como o do motor. Sentou-se na rede, pensou no sonho. A luta para que os mortos o reconhecessem, o sangue fugindo-lhe pelos cabelos. O barulho do motor invadiu o mundo, triturou o sonho, espalhou o dia, acordou a velha parenta, a negra Rosria que fez o caf e trouxe o po ainda quente, o moleque Janurio carregou a maleta, e com um Deus te guie, meu filho, tenha juzo e boa viagem, escreve, o barco avanou rapidamente para a baa, Soure desapareceu.

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[330] Ardiam os campos no fulvo esfumaado do crepsculo morno. O gado descia das lonjuras fugindo ao fogo das queimadas e ia beber no rio e no lago. Os vaqueiros caavam bfalos e reses bravias no Mocoes onde tambm os caadores de jacars esperavam fazer uma grande matana. Ramiro deu um tom longo no violo: Gaaba morto, no ia matar jacars sem ele. Orminda, sem lhe dizer adeus, partira. E ele que era um conhecedor de manha de bichos e de mulher! Dela ficou apenas a fita no chapu de carnaba e aquela solido que os campos queimados aumentavam e tornavam mais negra, que o mugido dos bois agravava, louca Orminda. Gaaba aparece noite entre os jacars ou fica de cima das nuvens olhando os seus velhos amigos matarem os monstros? Para Gaaba prefervel ter sido morto por um jacareau, bfalo, novilha brava ou lutando com ona nos Remdios. Orminda estava viva e era Orminda que fazia pensar, olhar os campos, sentir nunca sentidos pressentimentos, louca Orminda, que fizeste, que te deu na cabea, que fogo te acendeu no sangue para fugires como uma gua nova da amansao? Tua companhia fez enlouquecer nh Leonardina, at os garrotes te queriam, desgraada, at os bfalos, os jacars maches, os botos soprando no rio assanhados com teu cheiro que ficou tambm neste violo, no fundo deste chapu que puseste na cabea, aqui neste leno que enxugou teu suor, a tua boca quando mordeste limo caiano, o teu dedo ferido no espinho de maraj. E o sangue, uma gota s, neste leno no hei de lavar. O tom mais longo do violo parecia acompanhar o vo alto, [331] negro reluzente de um passaro. Louca Orminda. Ramiro desceu a escada da casa da fazenda, estava no Menino Deus, que embrulhada d na gente quando mulher se atravessa no caminho. Por cima Manuel Raimundo mandou lhe dizer que no revogava a ordem: no trabalhava nem podia ficar nas fazendas.

Orminda partiu, sem uma palavra, sem uma razo. Havia deixado ela na barraca de nh Leonardina, beira do lago. A louca fora embora, levada na lancha o povo todo chorava, a prpria Orminda fez uma poro de bruxas de pano para entreter a loucura dela brincando com bonecas no cho. E de volta de Diamantina onde ajudou a curtir e fazer uma sela, foi encontrar a barraca fechada, e a falncia correndo no lago e na beirada. Orminda dormiu com Arnaldo, andou com Pedro, passou a noite na feitoria com Anastcio, danou efetivo com Boaventura toda a festa no S. Maral, Deus do cu, viram Orminda em tolda de canoa geleira, entre os barqueiros na caiara, numa rede no rancho de S. Bento. Quando embarcava para descer o Arari, os homens gritavam: vai-te, danao, que a molstia te roa at o osso! Foi vista se recolhendo ao toldo da canoa, chorando. As mulheres lanavam praga e ela s dizia que aleive, que aleive. Somente um menino pulou na canoa e foi se despedir dela. O Claudionor da Maria Maurcia. O menino ao descer enfrentou as mulheres: Ela me deu aquela pomada pra sarar esta ferida. Ofende? E mostrou a perna. A me calou. As mulheres se calaram. Orminda, no toldo, contava o piloto, enxugou as lgrimas, penteou o cabelo, disse que havia esquecido o vidro de extrato e perguntou se podia usar a camarinha, estava com muito sono, mas um sono... Ramiro deu o tom que ela gostava, o tom dos violes s duas da madrugada, um tom que aquece o cu e ajuda a abrir as flores em boto. Louca Orminda. O vaqueiro guardou o violo e montou o cavalo. O galope invadiu a solido fulva dos campos. Nos centros prximos aos lagos ainda vivos, ninhais de carga branquejavam. Ramiro galopa na terra rachada e queimada. Viu em torno de um lago quase seco muito e muito animal [332] vindo de toda a parte, tuiui, passaro, a borboleta por cima da-

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quelas podres guas lamacentas. Pousavam ali os bichos juntos, mansos, irmos, bebendo. Havia passarinhos que no abandonavam nos ninhos distantes os pelados filhotes que morriam. E sobre aquele cho de terroadas onde pelos buracos as cobras se escondiam, Ramiro continuava a galopar. Sobre as palmeiras que o fogo devorava, as lagunas secas, as cobras que espiavam das rachas, a lua tambm queimada. Louca Orminda. Na mesma hora galopou para que ningum lhe falasse mais daquela histria da torre da igreja. Nossa Senhora marcou a sombra de Orminda no cho sagrado que a perdida profanou. Que desvario deu em Orminda? Malvadeza de nh Leonardina? Malvadeza das mulheres da beirada? Ou tudo aquilo nascia de dentro dela, prprio dela como a resina do bacuri? As mulheres falavam, deitou aquele corpo no soalho da torre, aquele corpo havia de apodrecer em vida, caindo aos pedaos. Teria subido, bbada, mundiada pelo sacristo, teria sido por vontade da prpria Nossa Senhora para melhor castigla? Mas o sacristo, jurava, no era o Manuel ngelo. Manuel ngelo at hoje nega. O demnio que levou Orminda. Nossa Senhora viu e marcou a linha daquele corpo, perfeio que s no seu a santa via. Que o diabo existia e andava pelo mundo. Ramiro acreditava. Ele, uma vez, contara prpria Orminda: No sei. Mas parece que encontrei Satans no campo e lutei com ele. Por isso que tenho o corpo fechado. Orminda abriu a boca diante do to impossvel e o seu espanto afrouxava num riso alto, que se espalhava pelo rosto, pelo rosto dos outros, pelos campos, como pssaros debandando. Ramiro teimava que, uma noite, encontrou um no campo e lutou com ele. Lutou com uma sombra, que no falava, parecia no ter olhos, s no cheirava a enxofre. O diabo sabe se disfarar como quer. Eu dizia: com quem estou brigando? Que inimigo esse que me atacou? Fala, desgraado. Ou me mata ou eu te mato. De repente sumiu. Minha mo me doa. Me sentei no cho de to cansado, o

cabelo em p, o corpo arrepiava. Satans carregou Orminda para a igreja. Ah, quando voltar [333] a Cachoeira no poder ouvir os sinos daquela torre contando da noite em que o diabo feito sacristo levou a pobre e a deitou no soalho santo, aqueles cabelos cheirando por toda a igreja, os morcegos loucos por aquele sangue, os santos acordando e espiando aflitos, o hlito de Orminda queimando-lhes a face, acendendo os castiais, as asas dos anjos, a cruz e as chagas de Nosso Senhor. Ramiro detinha-se srio para no rir do que imaginava. Galopando, quer cantar baixinho a chula de Me Maria com o Pai Leo para esquecer. Mas no, impossvel, no teria coragem para ver a marca do corpo de Orminda, a dele estaria ali tambm pois ficou marcado no dela. Os santos no desceriam do altar para ver tambm? V ver Nossa Senhora ser obrigada a apagar o corpo de Orminda. Meu Deus, ando tambm leso. Maginando tanta coisa. Acabo me perdendo no campo. O galope continuou. Aqueles campos eram de Manuel Coutinho, mas de corao os campos lhe pertenciam. Em breve nas lonjuras o fogo-ftuo aceso, a me do fogo, que perdia os viajantes no campo. Fingia luz dos Anjos e o viajante ia bater em S. Carlos, misturava as luzes das fazendas, levava os cavaleiros para o desconhecido, talvez para o lago Guajar, para as fazendas fantasmas onde tm fazendeiros, vaqueiros, gado, tudo fantasma. Ramiro pensou ir atrs de Orminda. Se lhe deixara aquela febre, s ela podia cur-la. O diabo andava sempre no seu caminho. Corpo fechado, nada, uma iluso, Orminda o mordera com seus dentes e lhe entranhara o seu veneno. Como vivente naquelas fazendas, sempre dava para encontrar visagens, o demnio, o boi de quatro chifres, Orminda. Esta mesma lhe havia dito: Voc nasceu pra ver visagens, coisa doutro mundo, por isto me encontrou. E brincando:

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Sabe que no sou deste mundo. Sou da fazenda fantasma de que voc me falou. Nasci l. Tenho um cavalo que uma beleza. Minha casa um palcio. Vim lhe buscar para ser o meu cavaleiro num baile que vou dar. Vim lhe buscar. [334] Fecha essa boca, mulher, que tu tem jeito mesmo de pessoa mandada dos encantamentos. Quem te mandou pra nh Leonardina? Meu pai, fazendeiro dos mais ricos, teve saudade dela e quer que eu leve ela para l. Iu no acredita, Ramiro? Te juro! Pela f da ilegvel. E caa na gargalhada. Oh, rapariga louca. Agora como se ela estivesse ali presente na garupa dele, aqueles seios roando na costa, aquele calor, como seria bom contar de novo a histria do boi de quatro chifres. E ele recorda como a. contou: era uma lida aquela de pegar boi brabo noite. Cada garrote apanhado valia trs mil ris, uma vaca dois mil. Quando a boiada brava que bouquinba da noite saa do cerradal para pastar sentiu aproximao de vaqueiro, abalou, os laos caram no meio do rebanho. Ramiro laou um boi. O lao fechou, a corda entesou na cilha, o boi parou e logo sentou terroadal, como boi de montaria. O vaqueiro desmontou e peou rpido o bicho. O touro tinha quatro chifres, as duas madeiras para trs e as outras duas para a frente. No se mexeu mais) Ramiro desabotou a corda da cilha e partiu para o curral. Eh, gritaram os companheiros, ento nem um boi laado? Lacei foi um de quatro chifres. Os vaqueiros foram e rodearam o touro. Era todo negro, os quatro chifres pontudos, a boca torta. Levaram-no para o curral. De noite, o gado preso fazia pio dentro da cerca e quando o touro carregava a cabea, era medonho. Noutro dia, porteira fechada, havia desaparecido. Ramiro fez uma chula simbolizando o Diabo no boi de quatro chifres:

Os vaqueiro arariura So pior que bala de rifle So mesmo espertinhos Peiam boi de quatro chifre E dizia que Manuel Raimundo ao saber que haviam apanhado o boi de quatro chifres, acrescentava: Se o boi o Inimigo E meu pai de criao. Ramiro freou o galope. Seu faro de vaqueiro no enganou. Estava perto de uma malhada. Para aquelas ilhas de mato que escureciam mais os campos, era como um lago sombrio e parado aquela malhada enorme. Parecia adormecida. Subia o bafo spero dos couros dos excrementos e das ruminaes enchendo a noite. Ramiro sentiu-se to manso e to mole como cavalo de cabresto. Aquele cheiro de malhada lhe dava tambm fadiga, talvez sono, a caruara, que a dor do quebranto. Trazia tambm Orminda, daquelas noites de garupa com ele aos galopes ou na rede armada entre as rvores da beira-rio. Ou andando pelo campo at que, nas trancas da porteira, ficassem olhando o gado, a noite crescer sobre o rio, na beirada onde havia amor, sono e peixe assado. Ramiro viu de longe muitos cavalos caminharem, era o claro da lua nascendo que os fazia acordar e caminhar. Hora em que os bois mal-assombrados boiavam nos lagos e se ouve ronda das malhadas o grito dos vaqueiros mortos. Ouvir o grito do Gaaba? Quantas vezes com Gaaba em vaquejadas ao luar, tocando e apartando gado, no chouto do rosilho, a baeta encarnada atirada ao ombro. Montavam em bois marrequeiros, amansavam os boiecos enfiando-lhes a serigola pelas narinas. Na casa traziam os bois carregados de marrecas. Levavam a pata mansa para os patos brabos na laguna. Soltavam a

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pata e esperavam ocultos nos batataranais. O pato brabo descia. Gaaba, noite, preparava a caa com arroz. Manuel Raimundo proibiu caadas nos lagos das fazendas. Iam para a levantao e derrubada do mastro de S. Sebastio em Cachoeira. Em baderna escolhiam mastro entre as ucuubeiras no mato das Pindobas. Levavam cachaa, machados e ombros devotos para carregar o pau da ucuubeira. Bebendo e cantando folia, derrubavam, como numa cerimnia, a rvore escolhida e carregavam o tronco at a margem do rio. No rio ia o pau de bubuia, com os derrubadores em cima, comboiado pelas [335] monta|rias. Chegavam troviscados cachaa era muita e entregavam o mastro aos diretores da festa que o enfeitavam com folhas, cachos de banana, o registro do santo no mastaru. Quando S. Sebastio voltava dos campos o povo da vila ia encontr-lo, j com o pau enfeitado e gingando, o Baliza na frente, Gaaba no meio e Ramiro acompanhando, com o seu violino, a banda do Miranda. A lua boiou e o seu claro caiu na malhada enorme e escura, deitada no campo. Bonita malhada, disse Ramiro desprendendo o p da balana da sela. E agora que vontade de cantar, tirar aquela tristeza, puxar o seu cavaquinho preso ilharga da cilha e cantar com todo aquele gado na frente, dentro daqueles ermos em que a ona miava e a cascavel chocalhava. A malhada podia espantar-se e desembestar pelo descampado. Ramiro reparou que, rodeando a malhada, os garrotes e os novilhos estavam de ps rondando, vigilantes. Cercavam o gado. Por certo sentiram aproximao de ona. As onas saam para os campos vagarosamente. A malhada adivinhava. Silenciosos, raspando o cho, os garrotes erguiam a fortaleza de suas madeiras, muralha daqueles toutios. As onas sabiam e se afastavam. Ramiro muitas vezes contemplou, nos grandes campos, aquela cinta de traves dos garrotes em torno da malhada. Com a lua, as onas se distanciavam, ficavam nos seus ninhos nas ilhas, miando nas lonjuras.

O vaqueiro sentiu que a sua viagem era como a daquele desertor de Maragogipe que se escondia no balcedo. No havia meio de apanh-lo. Era negro, irmo dos mondongos, andava nu e aparecia na casa da fazenda noite a procurar comida, a dormir num quarto de rancho, em cima das selas velhas. At hoje no se teve mais notcias dele. Agora, como o desertor, Ramiro se sentia perseguido, com aquele sbito dio de querer queimar fazendas, fazendas em que tocava e cantava, onde encontrava Orminda. Aquela malhada era do Dr. Manuel Coutinho. Aqueles campos imensos tambm. Dono dos jacars, das marrecas, das onas, das cascavis, dos tracajs, das fazendas fantasmas. E de Orminda, quem sabia? Caminhava se enchendo daquela solido venenosa dos pntanos, dos aningais, ilhas de ona, ossadas de boi, das cobras. Ainda [337] lhe pesava a viso dos medonhos balcedos do Tartaruga. Como atravess-los e desemborcar no mar da contra-costa? Ver os barcos passarem no grosso banzeiro do mar debaixo de ventania. Que pena para os barqueiros, quando olham a boca do Tartaruga, sem nela poderem entrar e fazer viagem mais fcil, fugindo do mar bravo, Os balcedos devoraram o rio, as guas sob aquela espessa e pesada vegetao, siriringando [sic] com os jacars cor de lodo e sonolentos. Aqueles balcedos enchiam de terror o vaqueiro, ocultavam cobras nunca vistas, bichos desconhecidos. Quando passou pela fazenda Santa Rita, o cavalo estacou. No queria avanar. Uma fora o prendia ao solo. Ramiro, inquieto, lambava o animal, logo ouviu saindo da terra aquela voz: Vai embora. Passa. E seu cavalo passou como chicoteado. Ramiro havia de jurar que ouviu a voz, uma histria a mais na sua vida e uma chula. Uma lio para Orminda, se ela estivesse com ele, para acreditar de uma vez no que acontecia pelos campos. Ramiro apressou o galope. Os touros voltaram-se para aquele tropel surdo, os bacuraus

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voavam e a lua o acompanhava como se acompanhasse a tristeza daqueles campos, a viso do prprio destino de Ramiro sem rumo galopando, galopando. E se o seu galope fosse acabar no lago Guajar? Desejava embrulhar o cavaquinho nos cabelos cacheados da moa branca do lago Guajar, naqueles cachos que caiam pelos ombros dela como se os acariciassem. Queria ao menos trazer por toda a vida no cabo do violino um cacho daqueles cabelos encantados. O caminho do Guajar mesmo? A novilha branca do lago Guajar aparecia nas malhadas. Atrs caminhava um lote de gado brabo. Uma vez foi trancada, como o boi de quatro chifres, no curral dos Anjos. Pela manh no a encontraram mais. Ento Ramiro quis fazer uma chula, no soube tirar da cabea, no houve jeito de pr em verso. Em seu pensamento a chula era bonita, Orminda copiaria e a guardaria dependurada na volta do pescoo. A chula perguntava pela novilha. Novilha branca do lago Guajar quem que vai te desencantar? Contavam que Coronel, na fora ainda da mocidade, fora montado num cavalo cardo e fogoso, [338] desen|cantar a novilha. Mal chegou beira do lago, garas voavam, as marrecas gritaram, o sangue esmoreceu. O cavalo murchou. Novilha branca que andas pelas malhadas, pastoreadores, com o lote de gado brabo. Novilha do lago, ningum te tranca, ningum te ferra, ningum te desencanta, a tua marca onde est e teu dono quem ? Novilha, tu, Orminda? Ramiro se afoitou no galope. Os campos passavam. O vento dobrava os tabocais. Estou ficando como nh Leonardina, estou ficando como Eduardo que tanto leu livro de S. Cipriano. Bem Orminda lhe dissera: Eu fao tamanquar1 embalar tua rede e tu fica pateta-pateta. Ofende? E a chula terminava que o vaqueiro havia de marcar aquela
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novilha com a sua marca. Havia de tirar o corpo da moa de dentro daquela novilha branca, branca ver aucena. E o corpo dela sairia escorrendo sangue da novilha, cheirando a carne de animal. Os cabelos da moa cacheando. At que chegou, tardinha, ao lago Guajar, os patos passavam, as garas desciam pelas campinas prximas. O lago, na distncia, era uma ilha de aningal. Ramiro tambm esmoreceu, novilha branca podia surgir urrando, necessrio ter topete para sangr-la e assim desencantar a moa, e a famlia toda encantada tambm. Tinha de sangrar a novilha de maneira sem ferir a donzela. E bois cobertos de limo apareceriam urrando. A noite poderia cair mais depressa. Queria Orminda ali, queria ver se tinha tutano de rir, se tinha pulso para sangrar a novilha branca. Podia ouvir vozes, o canto da moa, a queixa da moa, podia, Divino Esprito Santo, se encantar tambm. Galopou para o Arari. Agora era tirar com sentimento uma chula para Orminda, defendendo a prxima do aleive da torre. Por mais que fosse certo, era preciso defend-la, era do sentimento da chula faz-la inocente. Parou no meio de um descampado escuro, riu alto se lembrando da chula do boi e do administrador. E retrocedeu para o lago. Que o cavalo se cansasse, o galope era um s, tinha que descer [339] o Arari, passar em Cachoeira, ver Orminda, mas onde? Teria de cantar, junto dela, no escuro para no se encabular, a chula que havia de a defender. No cavalo cansado, Ramiro, faminto e sonolento, chegou a noitinha ao primeiro curral de Santa Cruz. No havia luz nas feitorias? Assavam peixe. Um fiapo de lua se delindo sobre os campos. Alguns pescadores estavam com febre esperando a hora da pescaria. Mulheres teciam ou remendavam tarrafas luz das lamparinas fumarentas, ouvindo histrias de nh Diniquinha. Sombras se confundiam atrs das rvores ou no fundo das montarias encalhadas. Nh Diniquinha era uma velha de Cachoeira que costumava subir o rio no tempo de pescaria. No lago lavava roupa do pessoal que

Lagarto.

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vinha da vila, tomava conta de comida, remendava tarrafa, tingia roupa na casca do muruci, benzia. Ramiro lhe deu boa noite e s pessoas que se amontoavam na barraca. Nh Diniquinha, remendando a tarrafa, ia contando a histria de Maria de Pau vestida de campo com todas as flores, vestida de mar com todos os peixinhos e vestida de cu com todas as estrelas. Os pescadores e as mulheres viam Maria de Pau fechada num tronco de rvore, de bubuia no mar. Foi achado por um rei que gostava muito de ir no mar pescar. Trouxe aquele tronco para o filho, o prncipe, recolheu ao seu quarto sem imaginar que dentro dele se escondia uma linda moa. E uma moa de rara beleza aparecia nos bailes do palcio real, ningum sabia quem era e de que nobreza ou linhagem vinha. O prncipe se apaixonou por ela, seu par efetivo de valsa e schottisch. Ela danava que nem uma fada. Quando batia meia-noite, a moa fazia um jeito, se escapulia do prncipe e sumia. Uma noite o prncipe descobriu, era Maria de Pau. Maria se desencantou, o prncipe casou com ela e houve tanta festa no reino que at hoje esto danando e comendo, que at as fadas e os anjos entraram pelas janelas do palcio, foram danar e comer tambm. Ramiro sorriu. As mulheres ouviam como se vissem Maria de Pau danando com o prncipe e os convidados comendo: Quanta comida, no, nh Diniquinha? [340] Orminda acrescentaria: Dancei tanto que criei calo no p e comi tanto que minha barriga espocou e nh Diniquinha costurou. Ofendia? Orminda assim falava. Assim queria Orminda dentro do oco do pau boiando na baa de Maraj. Batia no pau: quem est a? Uma princesa. De que reino? Do reino do rei Ramiro. Abre a porta do palcio real, princesa. S se me fizer rainha do teu reino. Tua boca disse, ser cumprido. E assim Orminda sairia e assim partiriam para o reino. Ramiro riu das suas bobagens. Pediram que ele tocasse. Ele tocou e cantou. Comeu do peixe

assado. Ergueu-se muito triste, quis fumar, lhe deram cigarros, se espreguiou com desalento. Ningum lhe falou de Orminda. E foi deixar aquela feitoria, encontrar o Raimundinho que lhe falou: Tu no sabe? O qu? Tu ainda no sabe? Fala, homem. O qu? Desembucha. O Aba fechado. Ordem do seu Manuel Raimundo. O povo recebeu proibio de pegar peixe. O administrador mandou armar dois vigias na boca e no meio do rio contra quem se atreva a pescar. E sabe ainda de outra? Se a desgraa pouca, aumenta mais, companheiro. O arcebispo mandou recolher a Coroa do Divino Espirito Santo. Proibiu que sasse. A Coroa foi na Lobato pra Belm. A Coroa perdida, os instrumentos do Divino mudos para sempre, ah!, possvel, o ofcio de folio se acabava. At a f eles tiram. E, Ramiro, a coroa era de prata. uma fortuna. Meu Deus, o Aba fechado, e meus parentes ali e aquela gente toda. No Aba, moravam tios, amigos, ali morava um povo que queria bem. Sem o Aba, como passaria o povo? Tinha que desmanchar as barracas, largar os stios, onde achar o peixe, onde armar novas barracas? Ramiro esquece por um momento a sua postema. Orminda, [341] diante de seus olhos corre o pequeno rio. Na boca e no meio do rio, dentro das montarias, os vigias armados prontos para atira? no primeiro que lanasse a tarrafa ou a linha do anzol. E quanto peixe no rio! Lembra-se bem, de uma vez, que viu a tarrafa de velho Fulgncio branqueando de pescada. E foi ali que nasceu, aprendeu a pescar, a tarrafear, a ter conhecimento com os peixes e suas manhas, preferir o

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tucunar, desprezar a trara, medir o tamanho dos pacus na palma de sua mo, saber quando passa peixe-boi no rio, isca para pirarucu, passar horas tentando puxar naquela gua tipitinga um daqueles tambaquis gordos que velho Fulgncio, l um dia, puxava. Era o rio de sua famlia, de sua nascena, nas suas margens aprendeu a tocar violo, fez a primeira serenata, conheceu a primeira rapariga, buliu com a filha do Anacleto que no quis casar com ele pra se casar com um canoeiro. Foi ali que viu, pela primeira vez, era ainda bem molequinho, fedendo a peixe, um cavalo e um boi de montaria. Agora o administrador fechava o rio, o rio pertencia ao filho do falecido Coronel, a gua do Aba era para os bois beberem. Que os peixes apodrecessem, a ordem era para os vigias atirarem com seus rifles se vissem o povo pescar. Aba o chamava. O lago parado, um poo dentro da noite grande. Os pescadores lanavam as redes. Em breve, o patro manda tambm fechar o lago. As geleiras mal se distinguiam na sombra da beirada. As barracas se desfaziam na escurido. As estrelas imveis como olhos de cego. Nh Diniquinha a contar histria. Ramiro no queria mais saber daquelas histrias, queria outras, conhecia todas que a velha contava e recontava. A histria do Aba ningum contava. Nh Diniquinha no sabia ou tinha medo de contar. Orminda, sim, pediria: Anda, faz chula deste teu rio Aba e lasca no seu Manuel Raimundo. Ofende? Nh Diniquinha no sabia. Nem Maria de Pau saberia abrir o rio, apanhar com as mos to brancas o peixe para as crianas do Aba. Estas, cheias de febre e de vermes, se desfaziam como camalees mortos. No Aba no tinha prncipes, palcio, bailes, [342] peru de forno, fadas, bolo de noiva, princesas danando de saia-balo. Os pescadores gritavam, se ouvia, esfalhando-se [sic], o chu das tarrafas no rio. Um choro de gado, longe, se arrastava pela solido dos campos. Um urro de lamentao pela rs morta. Choravam como

criaturas humanas, O cheiro fresco do sangue. irmo lhes dava aquele desespero que enchia os campos. O urro parecia inchar no peito de Ramiro, na sua postema. Oh, por que aqueles animais no se calavam? As aves da noite piavam com uma tristeza que lhe parecia espremer o corao. O urro do gado aumentava e diminua. As vozes do lago e do gado eram como de homens que marchassem sobre o Aba. As estrelas no tinham olhos para Aba. Se o administrador mandou, o Nicanor, que tomava conta do Aba, era l o comissrio, dobrou a ordem. O povo se queixou. Ento Nicanor mandou matar os porcos, campo no era cocho, queimou as roas, a terra era para as pastagens, prendeu gente, xadrez e faxina eram a criao e a lavoura dos que no sabiam obedecer a lei. No bastava tudo isso, Nicanor dizia que Coronel Coutinho havia comprado o rio da Marinha, com a falta dgua nos campos o Aba tinha de ser o bebedor do gado. O rio era dos bois, no era dos homens. Ramiro sentia que aquele povo podia se reunir, se ajuntar num s homem e abrir o rio. Povo desunido e com medo era como peixe apodrecendo num rio fechado. Era assim que Orminda diria, era assim que ele diria ao seu povo. e Orminda estivesse ao seu lado, eram dois que partiriam. Avanou pela beirada e topou com dois vaqueiros, perto de ima canoa, bebiam. Ramiro, Ramiro. Vem lavar a tua postema. Ramiro pediu um gole. Bebeu e suspirou como aliviado. Seu :orao queimava. Sua postema ardia. Hum, deixa ver mais um gole dessa desgraa. Ramiro, roubamos uma meia frasqueira do abaeteuara. Mas s ns dois ningum agenta. Nos ajuda. A postema chupava o gole. O corao soprava fogo. Orminda num gole, entrando pela garganta, no peito, apagando o [343] cora|o, fechando a negra postema, por baixo e por cima dele, os go-

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les se sucediam. Os dois vaqueiros nunca tinham se visto com tanta cachaa a mo. No demorou, os dois vaqueiros invocavam o Cavalo-Marinho. Vai, Ramiro, roubar um tucunar do Umberto. Ramiro, vai buscar teu bronze e tira uma chula. Ns vai preso amanh mas que se esvaziou uma frasqueira vai ser uma fama. Tira a chula. Chora a tua postema, mano. Chora no bronze. Aquelas trs bocas buscavam no fundo do garrafo: Abas abertos a todos os pescadores, Gaaba em cima da porteira bebendo tipuca, quartos de carne sabrecados em grossos espetos na fogueira do curral, mulheres parindo nas esteiras bem forradas e travesseiros, carne de graa quando prenhas desejassem. Dentro da frasqueira se escondiam misteriosas felicidades, folies do Divino rezando ladainhas sem a lei do Arcebispo. Orminda se embalando numa grande rede sobre o Aba, barqueiros descarregando peas de pano e baeta, farinha, muita farinha. Viam Manuel Raimundo num tacho de fogo e o Diabo com uma colher de ferro mexendo o caldeiro. Um vaqueiro cambaleou e gritou: o Divino. o Divino. Vou na cidade tirar a Coroa das mos do Bispo. A Coroa no dos padre, do povo. Ramiro saltou, fumaando, a postema era um veludo, o corao tinha sado como balo atrs de Orminda. Saltou fumaando: Esse Manuel Raimundo eu mato. Disse sem raiva, tudo lhe saa doce da boca e quis cantar uma chula contra a proibio do Arcebispo. A lngua onde que estava, a cabea em que lugar tinha? O violo, cad o violo? O CavaloMarinho vinha saindo do lago. O vaqueiro tirou do bolso uma tanga de barro, uma pequena tanga de ndia do Pacoval. Ramiro apanha-a e quer colocar a tanga no corpo de Orminda que v no ar, os peitos pulados, uma ndia branca que ele carregaria para cima das canaranas, levaria ela para o Cavalo-Marinho. E levou minutos com a tanga no ar, cingindo o corpo de Orminda.

Cambaleando, tomaram o rumo da canoa geleira. Quero virar jacar tinga. Quero comer Orminda no tijuco. Cairiam num perau onde viveriam como dois muus. Ele [344] ves|tiria Orminda de lama como se fosse nascida do igap e seus cabelos pesados de lodo seriam razes sustentando aquele corpo no fundo do lago como uma planta, em volta os peixes se amassem, as graas se emplumassem, os jacars viessem chocar suas ninhadas. Olharam a canoa. Junto verga um cavaquinho pendurado. Parecia pedir s estrelas que descessem para toc-lo como se elas fossem os dedos de prata da noite. Os dois bbados lutavam para arrancar Ramiro da lama onde se debatia como tambaqui na linha. O cemitrio do Pacoval crescia nas guas do lago. Os ndios mortos danavam no fundo. Os morubixabas se espreguiavam e subiam das igaabas, jaans acordavam e voavam sobre os jacars, cujas bocas se abriam para engolir a noite. O lago rodava, rodava como um pio. As estrelas se afogavam no lago. Os peixes voavam do Aba. E como num coro de sapos, os trs bbados gaguejavam: Atin nn, murerureua. As corujas respondiam. O lago era a orla giratria que Ramiro viu num crio em Belm. Os trs bbados despencam pela beirada, sangram nos paus e nas pedras, desabam na lama, e espalhando-se no rio, na noite, no sono, o chu da tarrafeao. De madrugada, na lama, batido, ensangentado e roto, Ramiro saltou para o campo. Mudou de roupa na sua barraca. Furtou um cavalo, selado. Tirou uma baia da feitoria, amarrou o violo e o cavaquinho na cuba. O cavalo era castanho, afoito, com a marca dos Coutinhos. Olhou o cu e se descobriu como diante de uma imagem. Pediu a proteo do Divino. Adeus, nh Diniquinha. Vamo ver, Castanho, se tu no me deixar no Aba, te sangro s no vazio. O rio fumaava no sereno da madrugada.

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[345] De ccoras, em torno do turucu, pequeno fogo rstico as brasas estalavam Alade, passando o caf, apertava os olhos contra a fumaa. Seus joelhos diante das brasas avanaram e brilharam como se o fogo os queimasse. O rosto mais queimado, com a palidez das velhas febres, e, como o das ndias, vigoroso e tranqilo se enchendo de uma sbita beleza. O vagar com que coava o caf, enchia a vasilha, espremia o saco, ajeitava o turucu sem queimar a maio, era o do amanhecer na selva. Ficou olhando toa as brasas que murchavam. Passou a mo nos olhos ardidos, a lenha era ruim, fumaando muito. Andava to lesa que trazia pau verde para acender o seu zinho fogo, para fazer aquele tico de caf que restava. Com a mo sobre os olhos, teve a lenta lembrana do seringal do Evangelista. Andara defumando borracha naquelas estradas. Uns poucos dias, preciso muita no tinha mais uma muda de roupa. De qualquer modo havia de procurar servio naqueles barraces arruinados do Muan. Ningum para lhe fiar um metro de alfacinha. Queriam dinheiro, algum gnero, borracha, semente oleaginosa, uma garrafa da andiroba, o seu corpo. Mas com este no negociava, s no extremo da fome e da nudez, s no ltimo degrau da pior necessidade. Isto, no, seu corpo no alugava. Era dela, da terra que o havia de comer ou de quem gostasse. Nem um metro de alfacinha. Quanta dificuldade vestir-se! Assim lhe veio um distrado pensamento: por que no andava nua? Era no mato, que mal fazia? Acabaria acostumando a vista dos homens. As ndias necessitavam de morim, alfacinha, chita, [346] an|gua? Um desejo de aparecer nos trapiches, jiraus, tolda de canoas, beira de barranco, ponte de miriti, popa da montaria, nas varandas, no alpendre dos barraces, debruada no balco, com uma folha de sororoca passada na cintura. Na barraquinha, beira do rio, nem azeite de andiroba havia mais. O murro da lamparina seco-seco. Deodato, seu companheiro,

no voltava mais de sua comprida viagem nos rios de Breves. Deixara-lhe pouca coisa para tantos dias de demora que se tornou definitiva. No voltava mais. Encontrara aquele um no jirau da palhoa do Tenrio. Saram juntos na montaria para ajudar numa tapagem de igarap. Ele falava pouco, sorria, deixando o sorriso cair para o canto da boca. Depois uma conversa no quarto da mulher do Tenrio que se foi com aquela dor. Conversa esta emendou noutra e mais outra e uma noite foram na mesma montaria espiar uma festa no fim do estiro. Quer desenferrujar a perna, Alade? Ela mordeu o sorriso, aceitou, silenciosa e danou. No meio do chorinho a flauta era fina e rebulideira, o soalho cheio de altos e baixos, paxiba e acap [sic] a primeira lembrana foi Paricatuba, o olhar daquele homem se ele subisse do rio e aparecesse, credo! S mesmo como boto que vira moo bonito e vem desencaminhar moa. Deodato apertava de leve, muito, de leve, a sua mo, no como muitos que s faltavam quebrar os dedos da dama, partir as costelas, sufoc-las no aperto da cintura, esfregar a boca na testa, na face, na prpria boca, um inferno. Deodato, no. Danava delicado. Danava pela dana. Gostaria dela? A flauta tocou o bis, deixou-se levar nos braos dele, mais triste e mais abandonada. Deodato lhe perguntou se queria mungunz ou arroz doce que ela recusou, alegando fastio. Fastio ou paixo? Paixo no sei de que, j. Dance, no converse. O caboclo, por no ter mais nada a conversar, apontou para o reflexo da lua que se estirava no rio e calado continuou danando pela dana. Ela voltou pela madrugada, triste-triste, um cansao no corao, um confuso sentimento de culpa ou saudade, alguma [347] mudana que a tornava desentendida, recolhida em si mesma. E um pequeno orgulho a fez decidir-se, enquanto Deodato continuou em silncio, esperava que ela lhe desse bom dia ou mandasse entrar: aquele homem no h de saber que eu ando com qualquer. No lhe

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dou esse gosto. Ento, Deodato, at. Aparece. Deodato apareceu e lhe disse, sem fit-la: Vou-me embora deste rio. No fao falta a ningum. Tu fala de barriga cheia, Deodato. Ora, Deodato. Vou-me embora, sim. Vou pra esse centro por a. No que quero este rio veja mea cara mais. Fiz um juramento. Amor contrariado? Agora sou eu que me vingo do tu que me disse na farra: paixo? Se tu pensa que paixo, tu tem coragem de me consolar indo comigo, Alade? Hum, nasci para isto, meu mano. Consoladeira de paixo dos outros. Mas aceito o trato. Quer me levar? No, no, Alade. Sou uma bata de folha amassada e fundo furado pra guardar essa seda. Mas, Deodato, quem te ensinou isto, parece uma modinha, quem seda? Eu? Eu, Deodato, ora qual, como se caoa do prximo... Ela riu e acrescentou, abotoando o peitilho da blusa cerzida: Falando srio, Deodato. Se paixo, te consola comigo. Da parte dela paixo no era, no era amor, gostava dele e nem que aquele viesse, lhe cobrisse de ouro, lhe cobrisse at com as lisonjas de um casamento, a Deodato ela seria fiel. De uma feita que dava a sua palavra, sabia cumprir. E seguiu com Deodato, dcil e to querida por ele, at as febres passaram e os sentimentos se aquietaram como sementes perdidas num remanso. No princpio, para ajudar Deodato, se metera uns dias no seringal. Sua cara se tornara velha, agoniada sob a defumao. Todo o corpo fumegava, os seios fumegavam . S por um castigo voltaria quele servio. No nascera para aquele fumaal. Quando menina, no rio da Fbrica, vira seu pai defumar. Era lembrar a porta do inferno, como contava nh Eugnia com as suas [348] hist|rias, com seu jeito

de contar que falou com o bicho folharal e com o mapinguari. Limpava poo, fazia loua de barro, cortava seringa, Lavrava pau, cortava palma de ubuu, mariscava, uma vez ajudou a abrir a sepultura para um afogado, agentava muitos trabalhos mas defumar borracha no era de seu feitio. J os homens tinham receio de trabalhar ao seu lado para no se desacreditarem. Seu brao era duro como cana de leme. Remar era com ela. Bem miudinha ainda, estava no igarap, s voltas com remo, no casco ou na montaria. Uma tarde apanhara do pai com o prprio remo pela sua teimosia de sair sozinha para o meio do rio dentro da velha montaria da famlia. E depois j grada, quando aquele homem a reconheceu que prazer andar estires no jacum, os ps de molho na gua do fundo da pequena embarcao, chapu de pano na cabea, um miriti para roer. Preferia tirar lenha a defumar borracha. Na ausncia de Deodato, saa com as companheiras. Ela, como era natural, guiando o grupo, atravessava o igap, os cipoais, cortando lenha. Uma vez deu um grito, uma sucuriju enlaou-a num bote, ela mordeu-a com tanta fora e desespero que a cobra afrouxou o lao, enquanto as mulheres acudiam. Voltavam com a carga das achas no ombro, na cabea, nas ilhargas, nos jamaxis presos s costas, rumo ao igarap onde esperavam o batelo. Muitas vezes caminhava sem companhia nenhuma, apanhando tucums, mucaj, frutinhas do mato, catando baunilha, com uma pena de no possuir uma espingarda. Ter aquela arma lustrosa daquele homem no ombro, correr com os cachorros, tocaiar e esperar o veado e a cotia, um pato brabo e de sbito uma ona... Alade provou o caf. Teria mesmo medo se realmente viesse a ona? Sua me gostava de dizer que medo realmente existia somente em cima da pele. Com ona pela frente, no havia outro remdio seno criar firmeza. Sua me contava: ia ela e o companheiro num caminho feio l pras bandas do Cupij, uma ona malhada pulou em cima do homem. Ele, rpido, desvencilhou-se, ela nem soube como

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fez, arrancou de supeto a saia do corpo e atirou sobre a fera. Esta, que se desatrapalhava da saia na cabea, recebeu o tiro bem no peito. A mulher nua ento apanhou a saia, [349] sacudiu-a e a enfiou. Sua me, contando, ria e acrescentava que medo chamava ona. Assanha a gula e a brabeza dos bichos, dizem os velhos caadores. As feras tem o faro do homem medroso. E vo vagarosas atrs dele, caminhando horas e horas em busca daquela presa fcil, embiara como chamam os caboclos, carne amolecida e esfriada pelo terror que as feras devoram, expulsando o medo da floresta. O medo dos homens a desforra da floresta contra os madeireiros que a devastam. As onas esperam longas e longas noites o rastro do medo. Alade bebia o caf, sorrindo com a histria da saia sobre a ona. Era uma lio que no esquecia, no esqueceria se acontecesse o que aconteceu com sua me. Imagine aquele homem... Morreria de medo, a ona o apanharia pelos cabelos, brincaria com ele como gato faz com rato. Ela o salvaria com a saia como salvaria Deodato, como salvaria qualquer homem, primeiro a salvao do homem depois a sua vergonha, O cheiro das intimidades da mulher confundia as feras, por certo, tirava-lhes a segurana do salto e o mpeto da ferocidade. Alade caminhava pelo mato, silenciosa. Seus ps farejavam, olhavam, ouviam, apalpavam os caminhos entranados na selva como os fios do mistrio e da solido. Ps com a memria das razes e dos bichos, vagando de noite por baixo e por cima da terra. Muito caador invejaria aqueles ps bem nascidos, geis e videntes, duros e belos pelo tamanho, pela resistncia, deixando leve rastro, quase nenhum vestgio, pelos imbaubais e andirobais. As feras sentiam naquele rastro qualquer coisa que lhes era familiar e intrpido. Sua voz era quase desconhecida na floresta. Para que falar? Seus ps agiam como donos de si mesmos, aranhas correndo sob as folhas que afofavam os caminhos atolentos. Todos os seus movimentos dispensavam as palavras. Olhou as suas pernas. Terra no

saia mais das suas pernas. Podia tirar no banho, o suor, o cheiro do mato, da lenha, do peixe e do homem, no a terra. Porque a terra vinha na gua que a banhava e lhe cobria a pele de cabocla como os rios, enchendo, cobrem de lodo a vrzea e as ilhas nascentes. [350] O pensamento de Alade se avivou e cresceu para as terras do Bagre. Ontem que falta de nimo at para acender a lamparina. Ficara com as pernas suspensas no jirau, esperando que escurecesse mais. At que lhe deu vontade de ver a lua aparecendo, o minguante se havia sumido tarde e tudo escureceu. Maior a solido e o tombo dos madeiros ao longe onde os homens no descansavam de abater as rvores. Aqueles homens derrubavam os troncos noite, podiam gritar, comer, beber, fazer filhos. Tinham carne viva, borbotava-lhes o sangue no encontro dos paus que desciam pesadamente do trilho, com os tocos e as razes. Deodato, no. Seu companheiro deixara de abater as rvores, no gritava mais. Os homens chamavam pelo companheiro. Seus gritos ressoavam noturnos e belos na floresta. Podiam levantar o machado e a seiva escorria-lhes pelos braos como se as rvores, feridas de morte, lhes perdoassem e ungissem os fatigados corpos. Podiam gemer quando recebessem a traioeira pancada de um madeiro, rolar nas valas, no atoleiro, sobre as sapupemas, no fundo das montarias, nas balsas, torcendo-se de dor. Tinham a carne viva, tinham sangue, um pobre sangue envenenado de paludismo, na verdade, mas sangue, afinal, de homem cortando e virando madeira, de homem vivendo, mexendo as mos, mastigando, pedindo para as mulheres lhes benzerem a inchao, as feridas e a dor do peito. O do seu companheiro, h dois meses, havia secado, havia parado, a terra desfizera-lhe as carnes, talvez os cabelos continuassem os mesmos, os dentes, a camisa, contaram que vestia a cala que ela fizera na mquina de costura de D. Vicncia. Estava desfeito, no Bagre, dentro da terra encharcada. Aqueles homens trabalhavam noite e prosseguiam pelas manhs, como se no dormissem, tinham algum crdito no barraco para a

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farinha, o quartinho de querosene, o sal que as mulheres pediam. Ela quis trabalhar tambm na rolao das toras, os homens recusaram, era mulher. Como comprar, ento, o luto de Deodato? Tinha que tingir aquele vestido velho, considerava-se viva, nunca ele lhe bateu, lhe disse um nome, uma palavra mais alto, s vezes era mesmo como um irmo. E dele nem o filho se salvara. Com um ms, uma doena na garganta em duas noites o levou. Meu Deus, no nascera para [351] me, repetia chorando sobre o filho morto, com os seios duros de leite. Teve que amamentar muita criana do rio para alivi-los, com que gosto e tristeza dava aqueles peitos infelizes para os nens chores e famintos do estiro. Que faria com a sua vida? Morto Deodato, juntar-se com outro homem? No tinha feitio para isso. Aquele homem branco apanhara-a, agora compreendia tinha agora a cabea sentada to nova que mal distinguia o cu do mundo. No estava arrependida, sina ou culpa sua, maldade de homem, fosse o que fosse, tinha passado. No sabia ainda que queria dizer a palavra vampiro. Nunca a esquece, repetindo-a sempre. Vampiro, repetia, olhando, toa, uma estrela, o peixe boiando, uma folha no ar, as letras dum jornal. Vampiro, quando queria ralhar alegremente um gato ou quando tentava brincar com as conhecidas que lhe perguntavam, intrigadas: que tu disse, que ningum entende? Vampiro, para a cachorrinha que atravessava o rio. Que seria vampiro? Feiticeira? Possuda do demnio? Desencaminhadeira de homens? Nome tirado daqueles livros grandes de seu Lafaiete? Sorria, meu Deus, como havia tanta falncia no inundo, como a lngua dos homens tinha mais veneno que as jararacas. Aos poucos a palavra, que era um espantalho e uma calnia, foi se tornando inofensiva e acabava como objeto de troa de si mesma. Aquela mo de bbado lhe doa no rosto inteiro, abrira uma postema grande. Pobre das pobres, repetia a si mesma, infeliz das infelizes, triste das tristes... quem dizia isso? Ah, era Orminda brincando quando no tinha uma meia nova, no apanhava a manga que queria ou espetava o dedo na

agulha. Mas a vida sabia apagar tudo e eis que Deodato morria, eis que outro filho ia-se embora. Que faria naquele rio soturno e sem esperana? No seria mais como aquelas mulheres, nas palhoas midas com as remelentas e nuas crianas ao lado, esperando o tabaco para as resignadas e lentas cachimbadas, beira do jirau olhando a mar e a solido. Ou em torno de mortos, o pires de sal em cima dos cadveres, a ltima cera derretendo-se e dentro do quarto um menino geme, de olho virado, o beio roxo mortos e doentes que j estavam aparecendo no rio com aquelas febres aumentando, sem alvio nem remdio. [352] Maginou, maginou, dia inteiro. Decidiu partir, noitinha. Tomou passagem numa canoa veleira e passou duas semanas no barraco da Casa Branca, servindo de ama, tratando de porcos, lavando umas redes. Depois foi lavar e gomar no barraco de um srio. Fugiu uma noite porque o patro foi mexer com ela no quarto. Ajudou um parto beira de um rio, que alegria lavar, enxugar aquela coisinha vermelha e viva, aquela coisinha gritando mido, oh Virgem Me, quando tenho outro filho? Secou cacau e cai doente de papeira, no barraco S. Flix onde encontra um lenheiro que a convidou para morar com ele nos centros. Ela disse a si mesma: vampiro, e falou como se lastimando e em que havia tambm um pouco de troa: Estou comprometida, seu Jaime, vou de encomenda para um homem. Ofende? Riu-se muito, seu Jaime achou-a mesmo um pouco sem vergonha, ou meio maluca? E ela foi fazer comida num embarque de madeira para os carregadores de um navio muito grande ancorado no rio. Viu homens muito brancos e vermelhos falando lngua estrangeira diferente da que falava Calilo. Viu vinhos, caixas de biscoitos, cortes de seda lindssima, frascos de loo, capas de borracha, meias, ah, Orminda nesse navio! Ficou cozinhando um ms para uma professora estadual que teve de fugir da escola por causa

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das febres e do alastrim. Com ela principiou a conhecer as letras. Trazia a cartilha na bata e a quem soubesse pedia uma lio. Tinha de escrever, um dia, a palavra vampiro. Reservada, falava o essencial para se dar com todos, ciosa de suas cismas, de seus sentimentos. Deodato era um luto calmo desbotando-se no fundo de sua resignao, na extenuao do trabalho e no desejo de chegar a Ponta de Pedras ou Belm. Pensar naquele homem branco consistia em distanciar-se cada vez mais de uma vida que no foi a dela, se confundia com sonho ou pesadelo. As palavras dele soavam to distantes e defuntas, em certos momentos, chegava a indagar, ligeiramente: como foi que aconteceu? Bateu chocolate em Muan para um casamento, dormiu varias noites na montaria amarrada na aninga, ajudando os [353] remei|ros a arrastarem a embarcao na lama, viajou por uns furos, trabalhou em tapagens com timb, sua boca repetia nomes e nomes de rios e lugares que lhe ensinavam, stios mortos, trapiches caindo, palhoas, ninhos, misria e doena atados na selva que se abatia sobre as guas. Comeu cigana, comeu poraqu, comeu coru. Depois, com o corpo todo marcado de morossocas e carapans e dias de fome, chegou a um barraco onde se rezava ladainha de Nossa Senhora do Bom Parto. A viagem continuou, seguindo a luta, num barco regato, com o piloto que tentara abra-la dormindo, o cuspo na cara do homem, o sangue nos lbios dela depois da bofetada, o grito: Mande encostar o barco na beira sino [sic] me atiro n gua daqui mesmo de cima do toldo. Os tripulantes no esconderam o seu espanto diante daquela mulher plida, cor de terra, braos cruzados, que os encarava com um desprezo seco e os parecia comandar. Ficou num porto de lenha, embrutecida pela raiva, lutando contra a vergonha e o medo, entre desconhecidos. Viam nela uma louca ou fugida por algum furto praticado sabe l onde. Longos dias choveu naquele porto, nenhuma embarcao

passou descendo o rio. Alade, ento, furtou um casco e remou um dia e uma noite para chegar ao Itupanema. Dali para o Marajoau, em canoa a vela, era s uma mar.

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[354] Tirou a bata da toldinha da igarit, se despediu dos tripulantes e pisou a escada do trapiche. O corpo dormente, as pernas tremendo, anoitecia. Descala, o vestido preto, o cabelo por pentear, o corao apertando, diminuindo como o de uma criana. Distinguia a velha igreja, a porta parecia iluminada, o sobradinho do coronel Henrique, o mercado, as mangueiras negras, o coreto onde as corujinhas passavam a noite piando, conversando sobre maus agouros e visagens, os benjamins do largo crescidos e a casa grande com o muro alto. Caminhou no trapiche, temerosa, como estranha aquela vila estranha, apesar de todas aquelas coisas familiares que voltava a encontrar. Talvez as encontrasse em si mesma e no mais na vila. A Ponta de Pedras que via era a do seu tempo, no aquela que lhe surgia como abandonada e desconhecida. E para disfarar a ansiedade e o indefinido temor, disse de si para si: A vampiro t na terra... Sorriu e medo maior assaltou-a: se a primeira criatura a encontrar fosse Lafaiete? Apoiou-se no parapeito do trapiche, as pernas continuavam a tremer, seus ps doam. Pisavam o seu passado, a primeira viagem que fez vila, o po torrado e os rebouados [sic] que comera, as rezas do Campinho, os peixes do cacuri, o limoeiro morto de Felicidade, as samambaias murchas, as lgrimas de Orminda com a face cortada e em sangue, o silncio de Tenrio quando descobriu o rosto de sua companheira morta, os piolhos caindo ainda pelo pescoo, os jasmins que ps, tantos!, em seu cabelo e no de Orminda, os cheiros da terra no seu ba tanto [355] fa|ziam cheirar a

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roupa. Por isso seus ps pisavam de leve como se estivessem feridos, sangrando. E tudo lhe pareceu saindo de si mesma, aqueles banquinhos do largo da igreja onde cheiravam as bandejas de doces, os pudins enfeitados e os leites de forno do leilo, os tajazeiros de ornamento que as famlias arrematavam para as suas salas, suas janelas e batentes, Orminda, com ela de brao dado, ouvindo a banda tocar. Meu Deus, encontro Orminda na vila? Encontro a pessoa que mais estimei com amizade sem interesse? Vou convidar Orminda para trabalharmos juntos em Toer, na olaria, ou, por que no em Belm, na fbrica? A vila estava mais abandonada, ningum no trapiche nem no largo. Os postes de carbureto, como sempre, apagados. Lentamente espalhou-se na noite um canto que lhe apertou a garganta e todo o sofrimento e a saudade, temor e a alegria da chegada se fundiram em soluos, velhos prantos no chorados, antigas e novas lgrimas s ali pudera desabafar, tudo que nunca pudera chorar soluava alto, como se dentro dela chorasse aquela menina, de h tanto tempo, quando viu a me cada e morta embaixo do aaizeiro. Rezavam e cantavam na igreja e Alade conservou o rosto no parapeito da ponte. Lembrou-se que estava no ms de Maria, O canto subia plcido e lmpido como se fosse a noite cantando pela boca das estrelas. Guta bem poderia estar ali cantando tambm. Orminda nascera para cantar no coro, oh!, por que elas, to moas, sofreram tanto, por que no puderam cantar as novenas, brincar de jogo de bola, remar pelos estires, namorar muitos rapazes, danar com rosas no cabelo, sem que nenhuma delas se perdesse? E seu primeiro filho como j estaria crescido! Afinal tivera dois e eram um s naquelezinho mamando em seu peito. Daquele homem e do Deodato, filho do igarap e do delrio, no, filho de duas pessoas que se queriam muito bem; filho de Deodato. Orminda teria tido filho? Como tudo naquela vila, ou no mundo inteiro lhe parecia infeliz, sem razo e sem esperana? E veio andando devagar com o resto dos

soluos, passando a mo pelo nariz e pelos olhos, sem saber, ao certo, para onde ia. Por onde andaria Orminda? Com que cara apareceria se ainda falasse naquilo que [356] lhe atriburam, quem sabe se at priso no a esperava? Se lembrou dos adeuses daquela gente saindo expulsa de Felicidade. Adeus, Alade, at um dia. Um dia tu volta. Agora voltava. Compreenderiam todos eles a sua volta, veriam em seu rosto o quanto sofrera, o quanto trabalhara, a marca do aleive, que dois filhos perdera e suas pernas tremiam? A porta da igreja iluminada era a porta daquelas recordaes e lutas de que queria se libertar. Parou defronte ao coreto. E se Orminda estivesse sob o castigo de ter feito aquilo na torre da igreja de Cachoeira? Hesitou, se devia espiar a novena ou logo seguir para o Campinho. Parou, arrumou os cabelos, abriu a bata, tirou um leno, to velho! com ele enxugou o sangue do rosto de Orminda, o suor daquele homem branco bbado depois que lhe bateu. No leno velho embrulhou os doces que Deodato lhe dera numa festa nas Ilhas, com o leno amarrou a barriguinha de seu filho por causa do umbigo. Com ele, agora, enxugava as lgrimas mais livres que chorara em sua vida, secretas e bastantes lgrimas que s a noite sabia e Maria Santssima. Novena as moas de Ponta de Pedras cantavam. Passou defronte igreja, surda quele canto, cega quela porta iluminada, dois castiais acesos. no altar-mor, passou desta vez com as pernas firmes, o corao firme. Teria, sim, de encontrar Orminda. Sairia com ela de Ponta de Pedras no dia seguinte e todas as recordaes, o leno velho, a palavra vampiro, os filhos mortos, Deodato, Guta e Ciloca aparecendo no caminho da Mangabeira, ali ficariam ou sumiriam com o canto da novena, com o toque dos sinos anunciando o fim da reza e ningum se lembraria mais, em Ponta de Pedras, deste nome: Alade. Ao aproximar-se da barraca de nh Felismina, sentiu-se mais perturbada. Uma lamparina na salazinha, um cachorro pulou da porta. A mangueira imvel guardava o que ela pensava ser o mistrio

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daquela barraca. Que tolice meter na cabea que Orminda voltou. Deveria estar no mundo, aquela beleza dela estaria penando. Mas, meu Deus, por que Orminda no aparece na janelinha? A satisfao de ver a barraca, saber que ali poderia estar Orminda ou, pelo menos, certeza de que falaria com nh Felismina, [357] dominou todos os seus sentimentos. Talvez para dar tempo de recompor-se e no aparecer to abatida, resolveu antes espiar, quem que ali estava, que conversavam e se podia ver Orminda, para surpreend-la, dando-lhe um susto, tapar-lhe a vista com as mos e dizer com voz mudada: adivinhe quem ? Deixou a bata perto de uma casa de cupim na rua e correndo, escondendo-se atrs dos troncos, pde chegar at a mangueira. Isso lhe deu prazer, era a menina que gostava de brincar de esconder entre os cajueiros do Paricatuba. Colou-se ao tronco da mangueira, a velha e grande mangueira de que nh Felismina tinha tanto medo. Respirou, sorrindo, passou a mo pelos seios como para desafogar-se, as pernas voltaram a tremer, o cachorro ladrou. Temeu que o co a descobrisse. No. Correu para o mato. Ela ficou sorrindo na escurido, uma formiga mordeu-lhe o brao, outra lhe subiu pelo pescoo, uma sbita coceira no p. Fixou o ouvido e ouviu indistintamente pedaos de conversaes antigas em que ela tomara parte, em stios, toldos de canoa, copiares sossegados fazendo goma de tapioca. Nenhuma risada, nem uma palavra de Orminda, nem uma vez a sua voz. Nada de aparecer algum na janelita. Olhou a noite, estrela como farinha, um vento brando na mangueira, novas formigas e um vaga-lume piscou na moita de capim. O jeito era correr, agachada, ficar rente janela e escutar. Reconhecia a voz de Rafael. Como? No estava na novena? Que aconteceu pra seu Rafael no est tirando a reza? Era Rafael mesmo falando em voz to baixa: Me perguntou depois pelo prespio. Eu disse: no soube ento? A trovoada botou a barraquinha embaixo. Eu e papai tivemos

que sair debaixo da chuva com as imagens no colo. Um caibro quase quebra o Menino Deus. A ele: Mas Rafael, o prespio? E o que tu fizeste? Se mudou? Mandou levantar a casa de novo? Eu respondi: com que ento? Vejam s a pergunta dele. Uma voz que Alade no reconheceu aparteou: Ora essa, por que ele no te deu o dinheiro? Parece at um debique... Sim, espera que ele faa o que tu queres, espera sentado. [358] Bem, mas me deixem contar: contei que arranjei um cochicholo na rua do cemitrio. E foi ento que me indagou por que eu no me mudava de Ponta de Pedras. Me ofereceu um lugar na Limpeza Pblica. Parece que lixeiro. O mesmo que Lafaiete me ofereceu e acabou no arranjando nada com o padre Lizandro. Ele disse que tinha resolvido mandar fechar a casa grande, ia vender o Paricatuba, no queria mais saber de Ponta de Pedras que Ponta de Pedras s lhe tinha dado desgosto. Era uma joa. Deixava a vila entregue ao primo Guilherme que sabia tratar essa gente. Por Deus, me criou uma raiva, me subiu, que parece que fiquei engasgado. Mas o engasgo passou e para que Deus me deu uma lngua? Falei que ele era um branco, podia andar falando assim mas se lembrasse que a sua fortuna, de sua famlia, muito deve a Ponta de Pedras, a joa que ele dizia. Que o av, o bisav, seja l que demnio fosse, quando veio de Portugal veio com o fundilho roto e aqui se achou. Veio se achar aqui. O pago era aquilo. Pois, gente, ele quis gritar comigo. Gritar comigo! Parece que doeu nele e mandou que me calasse. R! Mandei que ele metesse toda a fortuna dele, com licena da palavra, donde ele sabia. Que a terra era infeliz justamente porque sempre teve homens, como pai dele e ele, tomando conta, e isto eu disse de uma s vez e dei as costas, sem me despedi. Isto mesmo... Mas no ? Vocs sabem como senti com o meu prespio perdido. Quando me lembro que era tudo que eu tinha na vida,

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quando me lembro da festa, da minha finada afilhada varrendo o cho e enfeitando. Para que negar que chorei? E me vem um branco daquele achar que isto aqui no presta, que isto aqui... Estou morando num cochicholo perto do cemitrio, vou fazer tudo para armar um presepinho l. No tem ... Que posso fazer num cochicholo daquele? Enfim estou mais perto do cemitrio. Dali pra cova um salto. como diz seu Nlson. A vida pra Manuel Rodrigues que montou a banca de bicho na vila e rapa todo o mido dessa gente... Que homem esse Manuel Rodrigues, e toda a vila joga. Todo mundo sonha com bicho, amanhece e anoitece e s se fala na banca do bicho... [359] Hum, tratante da marca dele acaba delegado, acaba autoridade. Algum tossiu na cozinha. Um cheiro de remdio se espalhou. Como a conversao no continuasse, Alade foi buscar a bata, deixou na raiz da mangueira. Ladeou a barraca, sempre rente parede, at os fundos e ficou oculta atrs da laranjeira da terra que punha os galhos no parapeito de miriti da cozinha aberta sobre o terreno cheio de tajs e fruteiras. O fogo tinha fogo. Fervia um ch numa pequena lata. Achas de lenha. Uma garrafa de andiroba. Cheiro forte de razes. Mucuraca. Manjerona. Mamona. Alho. Um prato com uma papa de remdio, escura. O murro da lamparina fumegava. Se naquele momento Orminda lhe aparecesse era fcil tapar-lhe a vista, ah, satisfao maior da vida. Meu Deus, aparece, Orminda. Meu corao me diz que ests, doida. Baixou a cabea entre os galhos da laranjeira. Duas velhas, nh Felismina, nh Geralda, entraram e foram ver o ch. Felismina deixou-se ver bem ao claro da lamparina. Ah, possvel, o rosto dela de tal maneira triste e encovado. Alade quis logo aparecer, pedir-lhe a bena e perguntar como Orminda passava. Ainda necessitava retardar o instante desejado, o corao batendo como naquele dia em que se sentiu grvida de Deodato. Queria ouvir primeiro o que as velhas diziam. Tinha medo, como nh Felismina a

receberia, no a culparia por tudo que aconteceu com Orminda? Depois de tirar o ch do fogo, Felismina falou: Eu, se pudesse, ainda levava ela para mestre Jesuno. Que a senhora diz, comadre Geralda, foi mesmo... Comadre, tinha tanto inimigo. Aquele aleive de Cachoeira de que ela fala tanto. Parece que foi perseguio dela neste ano inteiro, que horror. Invejada como era, tinha que trazer todo o peso da inveja e esta ai... E as jias dela? Ah, comadre Geralda. Nem vale a pena falar. Na semana passada, o seu Lafaiete veio com o motivo de saber como estava a doente e perguntou se as jias ela ainda tinha, ele podia vender pras despesas da doena. Eu, a senhora sabe, ando com a cabea assim. No tenho homem em casa. Me fiei. Pois eu soube que ele vendeu e foi embora para Belm. Mandei um recado na canoa [360] do Domingos dos Santos, ele disse pro Enas que as jias nada valiam e que a que valia era dele que Orminda tinha usado e ele muito padeceu por causa dela. Roubou as jias, o que digo. Ele tabelio. E autoridade. Pra quem a gente vai se queixar? Mas, comadre, mas isto por demais... E diziam que meu finado filho era ladro. Roubar uma rapariga doente que s Deus sabe como ganhou as jias... Credo! Ele acaba Intendente, comadre. Tive que vender aquela colcha que ela trouxe, a meia de seda, a mala, aquela combinao bonita, rendada, que ela tinha, sabe? Aquele sapato branco novinho? Vendemo. Hoje foi o ltimo vestido. Tudo, tudo em remdio. E por que no escreveu... no mandou escrever... pra ele? Comadre Geralda, este segredo foi uma bobagem minha, tantas que haviam na mesma situao. Mas com ela fiz segredo, no sei. Ento ela, se vendo sozinha no quarto comigo, me chamou e disse me olhando muito: Mami [sic], quem meu pai? A senhora nunca me disse. E eu no disse, no tive coragem, me senti to culpada,

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tudo, enfim, cai na costa do pobre... comadre Geralda. As lgrimas me vieram. Ela arregalou tanto os olhos e se virou pro outro lado. Sem insistir. No me disse um tantinho assim. Mais tarde me chamou e falou que eu nem me lembrasse de pedir nada a ningum. E fazia com a mo como afastando uma coisa de cima dela. Perguntou se eu acreditava na histria da igreja e caiu em soluos... Comadre Geralda, minha filha! Deus te abenoe, te abenoe... A Alade... Abraada Alade, que surgira de sbito, nh Felismina estava como desfalecida. Alade acariciou-lhe a cabea, apertou-a ao peito, com os olhos secos, uma tranqilidade, de repente se apoderava dela e sentiu que dali em diante tomaria conta da barraca e do tratamento de Orminda. Nada disse e conseguiu acomodar a velha num banquinho, enxugou-lhe os olhos com a barra do seu vestido preto, beijou a mo de nh Geralda que lhe abenoava. Ouvia-se a lenha estalar no fogo e a luz da lamparina subia direito, fumaando. Ento Alade dirigiu-se ao quartinho clareado por um pequeno candeeiro. Viu um enorme embrulho na [361] re|de e, a um canto, sentado numa esteira, uma moa que logo no a reconheceu, ah, a Antnia. Esta lhe fez um gesto para que se aproximasse da rede e falasse com a doente. Alade hesitou e instantaneamente refletiu que antes no tivesse vindo v-la assim. Ajoelhou-se ao p da rede, a mo pousou no lenol que retirou de cima da cabea de Orminda. Os cabelos boiaram macios e quentes com um negror e um desalinho, lembraram a Alade a sombra da marca na torre da igreja. O rosto afinara-se, sem cor. Os olhos como que diminudos, olhos de avesso, no se sabia explicar. A boca arroxeada. Conservava a sua beleza, concluiu Alade. Nem o pior castigo, ou doena, podia com aquela fora e aquele dom de ser bonita. Via-lhe a cicatriz, quis beijar-lhe a testa e se deteve, ajoelhada, a contempl-la demoradamente. De sbito um medo a dominou, o de sentir-se contaminada por aquele sentimento de culpa que a doente lhe comunicava, um desejo de fugir dali, de agarrar-se

desesperadamente vida que a amiga parecia arrebatar. Nunca a morte lhe foi to brusca e real como a que sentia naquele corpo adormecido, inchando sempre. Teve pena e vergonha, no ntimo certo alvio por no ter aquela culpa, aquela agonia, se sentir viva, no era possvel evitar. Minha filha, veja o que fizeram dela, o que fizeram dela. O que fizeram... Rafael surgiu na porta e retirou a velha que arquejava. Alade descobriu todo o corpo da amiga, teve um calafrio, muito plida. Uma inchao to disforme, to baa, onde aquele corpo, mana, oh doena... Um brao da enferma se moveu e isso fez com que Alade sorrisse, ou por nervoso ou por considerar sempre qualquer sinal de vida em Orminda era j excessivo em outras criaturas. Antnia aproximou-se e cochichou: No conhece mais ningum. Nem eu? Alade procurou a mo da amiga, acariciou-lhe os cabelos, cobriu-a devagarinho com o lenol, receando machuc-la, debruouse sobre ela e calma falou: Orminda, olha quem est aqui contigo, mana. Abre os olhos e no se assuste. [362] A enferma se moveu um pouco, a boca se retorceu e veio uma voz sumida, interrompida num arquejo, uma voz que Alade quase desconheceu: Cata, prima, cata... Tenho... piolho... Quem vai te catar, mana, Alade. Sou eu, a Alade. Falava para a doente como se suas palavras fossem remdio. E tinha todo o cuidado para no lhe fazer um susto como quem dava o remdio, devagarinho, a uma criana. Cheguei agora, Orminda. Venho te buscar para ir comigo pra Belm. Tu te cura e ns vamos. Tu tem que me conhecer, Orminda, mana.

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Cata, prima... Estou na igreja. Me marcaram. Tu ests comigo, mana. Ningum te faz mal. Ests comigo e eu te defendendo, mana. Mas me conhece. Olha, a Alade. Me ouve! Nh Felismina voltou e falou alto: Minha filha, a Alade que tu chamava tanto, minha filha. A doente abriu os olhos, obscuramente via a torre da igreja, seu corpo marcado, o sacristo a levava, quando deu por si quis correr pela escada da torre, ele a segurou, era mesmo um demnio e ela tombou aterrorizada. Uma escurido desceu, a torre pesava sobre o peito. Mami [sic], cante... o acalanto. A me curvou-se e cantou: Cavaleiro do meu pai, Me d um jarrito dgua Se te der gua, Silvana Tenho a cabea degolada O acalanto misturava-se s vozes de muita gente mostrando a marca do corpo na torre. Silvana prisioneira da torre. Ela e Silvana nas mesmas torres que se confundiam. Suas cabeas, como Santo Ivo, degoladas. O corpo agarrado no cho da torre. Sombras e rudos, cavalos galopando surdamente e, logo em silncio, suspensos sobre uma escada negra que oscilava entre morcegos e altares. Um vu j sem cor os envolveu e os arrastou entre vagos [363] rostos para uma lama espessa e total, para aquela matria que inchava sempre e invadia o mundo. Orminda tentou erguer a cabea. As torres estavam negras, os cavaleiros passavam, o manto de Nossa Senhora era negro sobre o cho desabando. Um sono... Alade amparou-a e os cabelos da enferma desmancharam e se

derramaram pela borda da rede. Deitou-lhe a cabea num rolo de panos, cantou o acalanto bem baixinho e murmurou: Alade que est aqui, mana. Dorme que amanh tu me conhece. Dorme... Mana... Durante a noite, dali no se afastou, veio a manh, Orminda continuou adormecida e j passava do meio-dia, Alade rapidamente apanhou a cera de cima do oratrio, nh Felismina chamando: Orminda, mea filha. Orminda... deixava cair as suas lgrimas pelo rosto da morta.

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