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Histórias clínicas: Cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica
Histórias clínicas: Cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica
Histórias clínicas: Cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica
E-book880 páginas13 horas

Histórias clínicas: Cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica

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Sobre este e-book

Ao longo da vida, Freud publicou cinco grandes histórias clínicas, que se tornaram os casos paradigmáticos da clínica psicanalítica, tanto por seus sucessos quanto por seus impasses. Dora, Hans, Homem dos Ratos, Schreber e Homem dos Lobos são, ao mesmo tempo, nomes próprios de casos singulares e paradigmas das estruturas e dos tipos clínicos que eles indexam. Na escrita dessas histórias, sobressaem a escuta sensível do psicanalista atento ao detalhe e o talento inigualável do narrador que escrevia seus casos como romances. Foi o próprio Freud que insistiu na publicação conjunta desses cinco casos, reunidos pela primeira vez num único volume no Brasil, oferecendo ao leitor uma visão de conjunto dos mais célebres casos clínicos da psicanálise.

No presente volume, a tradução buscou não apenas reimprimir e reeditar, em português do Brasil, os conteúdos apresentados por Freud, mas também adaptá-los para a realidade dos leitores brasileiros – especialistas ou não –, proporcionando-lhes uma visão tanto das superfícies textuais mais aparentes quanto, sempre que possível, das camadas internas, das entrelinhas, das pressuposições mais recônditas nos textos de Freud, indelevelmente marcados por um estilo que mescla o científico e o literário. Leitura indispensável tanto para psicanalistas quanto para aqueles que se interessam em conhecer como cada sujeito inventa formas de viver com seus sintomas e sofrimentos psíquicos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de ago. de 2022
ISBN9786559280742
Histórias clínicas: Cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica
Autor

Sigmund Freud

Sigmund Freud nació en Freiberg en 1856 y recibió una educación judía no tradicionalista, abierta a la filosofía del Iluminismo. Concluyo sus estudios de Medicina en 1882.. Junto a Joseph Breuer, Freud abandonó progresivamente el método de la hipnosis y pasó al de la catarsis –primero– y al de la asociación libre, fundamento del psicoanálisis, después. La obra de Freud se divide generalmente en dos períodos caracterizados por diferentes tópicas del aparato psíquico. La primera abarca el período que va de1900 a 1920 y distingue inconsciente, preconsciente y consciente. En la segunda –de 1920 hasta su muerte– hace intervenir las instancias del ello, el yo y el superyó. Después de una vida de trabajo materializada en veintitrés tomos (sus Obras completas), Sigmund Freud falleció en Inglaterra el 23 de septiembre de 1939, un año después de dejar Viena, ciudad en la que los nazis quemaron sus libros y los de otros intelectuales judíos, también perseguidos por el fascismo.

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    Histórias clínicas - Sigmund Freud

    FRAGMENTO DE UMA ANÁLISE DE UM CASO DE HISTERIA (CASO DORA) (1905)

    PREFÁCIO

    Considerando que, após uma extensa pausa, começo a corroborar as minhas proposições apresentadas nos anos 1895 e 1896 sobre a patogênese de sintomas histéricos e os processos psíquicos que ocorrem na histeria, apoiando-me no relato minucioso de uma história clínica e de seu tratamento, não posso poupar-me deste prefácio, que deverá, por um lado, justificar o meu procedimento em diversos sentidos, e, por outro, reconduzir as expectativas que o acolhem a uma proporção adequada.

    Sem dúvida, era-me uma tarefa delicada ter de publicar resultados de pesquisas – e na realidade esses resultados surpreendentes e pouco lisonjeiros – que inevitavelmente não puderam passar pelo crivo dos colegas da área. Porém, não é menos delicado se agora começo a disponibilizar à opinião pública um pouco do material que me servira de fonte para obter tais resultados. Não escaparei às críticas. Se estas antes consistiam em afirmar que eu nada relatava sobre meus pacientes, agora tratarão de apontar que relatei de meus pacientes¹ o que não se deve relatar. Tenho a esperança de que serão as mesmas pessoas que, assim agindo, mudarão o ensejo de sua crítica, e de antemão já prescindo de alguma vez querer privar esses críticos de seu julgamento.

    Para mim, a publicação de minhas histórias clínicas continua a ser uma tarefa de difícil solução, ainda que eu continue a não me preocupar com aquelas pessoas mal intencionadas e sem compreensão. As dificuldades são em parte de natureza técnica e, por outro lado, têm sua origem na essência das próprias circunstâncias. Se for correto que a causação dos adoecimentos histéricos é encontrada nas intimidades da vida psicossexual dos doentes e que os sintomas histéricos são a expressão de seus desejos recalcados mais recônditos, então a elucidação de um caso de histeria não pode deixar de desvelar essas intimidades e de revelar esses segredos. É certo que os doentes jamais teriam falado se lhes ocorresse a possibilidade de suas confissões serem utilizadas cientificamente, e é igualmente certo que teria sido totalmente em vão, se alguém tivesse pretendido que eles mesmos autorizassem sua publicação. Em tais condições, pessoas circunspectas, bem como também as tímidas, poriam em primeiro plano o dever da discrição médica e lamentariam não poder prestar, nesse caso, quaisquer serviços de esclarecimento à ciência. Não obstante, acho que o médico não assumiu deveres apenas perante cada doente, mas também perante a Ciência. No fundo, perante a Ciência significa nada mais que perante os muitos outros doentes que sofrem ou ainda sofrerão do mesmo problema. A comunicação pública do que se julga saber sobre a causação e a estrutura da histeria torna-se um dever, e a omissão, uma covardia vergonhosa, sempre que se puder evitar o prejuízo pessoal direto do doente em questão. Acredito que fiz tudo para excluir minha paciente de um dano como esse. Escolhi uma pessoa cujos destinos não se desenrolavam em Viena, mas em uma cidadezinha distante, e cujas relações particulares devem ser, portanto, praticamente desconhecidas em Viena; desde o princípio mantive o sigilo do tratamento com tanto cuidado que apenas um único colega absolutamente digno de toda confiança pode saber que a moça teria sido minha paciente; concluído o tratamento, ainda esperei quatro anos para a publicação, até eu ter sabido de uma mudança na vida da paciente, fazendo-me supor que seu próprio interesse nos acontecimentos aqui narrados e nos processos anímicos poderia, agora, estar dissipado. É óbvio que não foi escrito nenhum nome que pudesse dar uma pista a um leitor dos círculos leigos; além disso, a publicação em um periódico especializado rigorosamente científico deveria ser uma proteção contra esses leitores não autorizados. Naturalmente não posso impedir que a própria paciente experimente uma sensação desagradável, se, por um acaso, cair-lhe nas mãos a narrativa de sua própria história clínica. Porém, nada ficará sabendo sobre si que já não saiba e poderá colocar-se a pergunta sobre quem, além dela, ficará sabendo que se trata de sua pessoa.

    Sei que – pelo menos nesta cidade – existem muitos médicos que – com bastante repugnância – não querem ler uma história clínica destas como um artigo sobre a psicopatologia da neurose, mas como um roman à clef destinado a seu divertimento. A essa espécie de leitores dou a certeza de que todas as minhas histórias clínicas que venham a ser posteriormente comunicadas serão protegidas por garantias semelhantes de sigilo, contra a perspicácia desse leitorado, embora, devido a esse propósito, minha forma de explorar meu material tenha sido obrigada a enfrentar uma restrição excepcional.

    Pois bem, nesta história clínica, a única que até agora logrei subtrair das restrições impostas pela discrição médica e pelo desfavor das circunstâncias, relacionamentos sexuais são debatidos, todavia, com toda franqueza, os órgãos e as funções da vida sexual são chamados por seus nomes corretos, e, a partir da minha exposição, o leitor casto poderá convencer-se de que não hesitei em discutir com uma jovem mulher sobre tais temas em tal linguagem. E agora talvez eu também precise defender-me dessa crítica? Simplesmente faço valer, para mim, os direitos do ginecologista – ou, antes, direitos muito mais modestos que esses – e declaro ser um indício de uma concupiscência perversa e insólita, se alguém vier a supor que tais conversas sejam um bom meio de atingir a excitação ou para a satisfação de desejos sexuais. Ademais, sinto-me inclinado a exprimir meu juízo sobre essa questão recorrendo a algumas palavras tomadas de empréstimo:

    É lamentável ter de destinar um espaço a esses protestos e asseverações em uma obra científica, mas não me venham tecer críticas por isso, mas acusem, sim, o espírito da época, que felizmente nos fez chegar a uma situação em que nenhum livro sério pode mais estar seguro de sua existência.I

    Passo agora a comunicar o modo como superei as dificuldades técnicas do relatório desta história clínica. Essas dificuldades são muito consideráveis para o médico que precisa realizar diariamente seis ou oito desses tratamentos psicoterapêuticos e, durante a própria sessãoII com o paciente [Kranke], não pode fazer anotações, pois despertaria a sua desconfiança e perturbaria a recepção do material a ser registrado. Também para mim, ainda é um problema não resolvido o modo como eu poderia registrar, com vistas à comunicação posterior, uma história de um tratamento de longa duração. No presente caso, duas circunstâncias vieram em meu auxílio: em primeiro lugar, a duração do tratamento não se estendeu por mais de três meses; e, em segundo, os esclarecimentos foram agrupados em torno de dois sonhos – um relatado na metade e outro, no final do tratamento –, sonhos cujo teor foi registrado imediatamente após cada sessão e que puderam oferecer um apoio seguro para a subsequente trama de interpretações e lembranças. Quanto à história clínica propriamente dita, escrevi-a de memória, somente após a conclusão do tratamento, enquanto minha lembrança ainda se mantinha fresca e estimulada pelo interesse na publicação. Consequentemente, o registro [Niederschrift] não é em absoluto – fonograficamente – fiel, mas se pode atribuir-lhe um alto nível de confiabilidade. Nada de essencial foi nele alterado, a não ser a sequência das elucidações, em alguns trechos, o que fiz em atenção ao contexto.

    Passo agora a destacar o que será encontrado neste relato e o que nele fará falta. O trabalho levava originalmente o nome de Sonho e histeria, pois me parecia especialmente apropriado para mostrar como a interpretação dos sonhos se entrelaça na história do tratamento e como, com sua ajuda, é possível obter o preenchimento das lacunas mnêmicasIII e o esclarecimento dos sintomas. Não foi sem bons motivos que eu, no ano 1900, antecipeiII um elaborado e exaustivo estudo sobre o sonho às minhas publicações planejadas sobre a Psicologia das neuroses, e de fato também pude verificar, a partir de sua recepção, como é insuficiente a compreensão com que esses esforços ainda hoje são recebidos pelos colegas da área. Nesse caso, também não era pertinente objetar que minhas considerações, devido à retenção do material, não permitem adquirir uma convicção fundamentada em verificação, pois qualquer um pode submeter seus próprios sonhos ao exame analítico, e a técnica de interpretação dos sonhos é, de acordo com as instruções e os exemplos apresentados por mim, fácil de aprender. Hoje, assim como naquela época, preciso afirmar que o aprofundamento nos problemas do sonho é um pressuposto imprescindível para o entendimento dos processos psíquicos no caso da histeria e das outras psiconeuroses, e que ninguém que pretenda esquivar-se desse trabalho preparatório terá a perspectiva de avançar apenas alguns passos nessa área. Uma vez que esta história clínica pressupõe o conhecimento da interpretação dos sonhos, sua leitura revelar-se-á altamente insatisfatória para qualquer um que não preencha essa condição prévia. Em vez do esclarecimento buscado, nela ele só encontrará estranhamento e certamente estará inclinado a projetar a causa desse estranhamento no autor, declarado como fantasioso. Na realidade, tal estranhamento está ligado aos fenômenos da própria neurose; ele é encoberto ali apenas por nossa familiaridade médica, voltando à luz a isso na tentativa de explicação. Ele só seria totalmente eliminado se conseguíssemos derivar a neurose, por inteiro, de fatores que já se nos tornaram conhecidos. Mas toda a probabilidade indica que nós, ao contrário, receberemos a partir do estudo da neurose o estímulo para aceitarmos muitas coisas novas, que paulatinamente podem tornar-se objeto de conhecimento mais seguro. O novo, porém, sempre suscitou estranhamento e resistência.

    Seria equivocado se alguém acreditasse que sonhos e sua interpretação ocupam uma posição tão destacada em todas as psicanálises quanto neste exemplo.

    Se, no tocante à exploração dos sonhos, esta história clínica parece privilegiada, por outro lado, em outros aspectos se revela muito mais precária do que eu teria desejado. Todavia, suas falhas estão relacionadas justamente àquelas circunstâncias às quais devemos a possibilidade de publicá-la. Já afirmei que eu não saberia como dar conta do material de uma história de tratamento que se estendesse por um ano. Esta história, com a duração de apenas três meses, deixou-se abarcar e recordar; mas seus resultados permaneceram incompletos em mais de um aspecto. O tratamento não prosseguiu até alcançar a meta preestabelecida, mas foi interrompido por vontade da própria paciente, quando determinado ponto foi alcançado. Naquele momento, alguns enigmas do caso clínico nem sequer haviam sido abordados, e outros, apenas esclarecidos de forma incompleta, ao passo que a continuação do trabalho teria certamente avançado em todos os pontos até o último esclarecimento possível. Portanto, aqui, só posso oferecer um fragmento de uma análise.

    Talvez um leitor familiarizado com a técnica de análise apresentada nos Estudos sobre a histeria admire-se com o fato de que, em três meses, não tenha sido possível conduzir, à sua solução final, pelo menos aqueles sintomas já abordados. Mas isso se torna compreensível se eu comunicar que, desde os Estudos, a técnica psicanalítica passou por uma revolução radical. Naquela época, o trabalho partia dos sintomas e estabelecia como meta o seu esclarecimento, um após o outro. Desde então, abandonei essa técnica, porque a achei totalmente inadequada à estrutura mais fina da neurose. Agora deixo o próprio paciente determinar o tema do trabalho diário, partindo, assim, especificamente da superfície que seu inconsciente ofereça à sua atenção. Mas, em seguida, obtenho aquilo que se relaciona com uma solução de sintoma, de maneira fragmentada, entrelaçada em diferentes contextos e distribuída em períodos bastante dispersos. Apesar dessa aparente desvantagem, a nova técnica, que é muito superior à antiga, é incontestavelmente a única possível.

    Devido à incompletude dos meus resultados analíticos, restou-me apenas seguir o exemplo daqueles pesquisadores que ficam tão felizes por trazerem a lume inestimáveis – embora mutilados após longo sepultamento – vestígios da Antiguidade. Restaurei o que estava incompleto de acordo com os melhores modelos, por mim conhecidos de outras análises, mas, assim como faria um arqueólogo consciencioso, não deixei de indicar em cada caso onde minha construção se superpõe ao autêntico.

    Propositadamente, eu mesmo provoquei outro tipo de incompletude. Afinal de contas, em linhas gerais, não expus o trabalho interpretativo a que foi preciso submeter as ocorrências e comunicações da paciente, mas apenas seus resultados. À exceção dos sonhos, a técnica do trabalho analítico só foi revelada em alguns poucos lugares. É que, nesta história clínica, interessava-me colocar em evidência o determinismo dos sintomas e a configuração [Aufbau] íntima da doença neurótica; se, ao mesmo tempo, eu tivesse tentado cumprir também a outra tarefa, isso só teria produzido uma confusão inextrincável. Para a fundamentação das regras técnicas, em sua maioria descobertas de modo empírico, provavelmente seria necessário compilar o material de muitas histórias de tratamento. Contudo, neste caso, não se deve imaginar que foi particularmente grande a redução produzida pela moderação da técnica. Justamente a parte mais difícil do trabalho técnico não entrou em questão com a paciente, tendo em vista que o fator da transferência, do qual se fala ao final da história clínica, não foi tematizado durante o breve tratamento.

    Há um terceiro tipo de incompletude deste relato de que nem a doente nem o autor são culpados. Ao contrário, é muito mais natural que uma única história clínica, ainda que completa e que não deixe lugar a nenhuma dúvida, não pode dar resposta a todas as questões levantadas pelo problema da histeria. Ela não pode ensinar a conhecer todos os tipos desse adoecimento, nem todas as configurações da estrutura interna da neurose, nem todos os tipos possíveis de relação entre o psíquico e o somático encontrados na histeria. Não se tem o direito de razoavelmente exigir de um caso mais do que ele pode oferecer. Além disso, quem até agora não quis crer na validade geral e irrestrita da etiologia psicossexual na histeria dificilmente obterá essa convicção através do conhecimento de uma história clínica, mas melhor faria em protelar seu julgamento, até ter adquirido direito a uma convicção mediante trabalho de sua própria lavra.III

    I

    O ESTADO DA DOENÇA

    Após haver demonstrado, em minha A interpretação dos sonhos, publicada em 1900, que sonhos em geral podem ser interpretados, e que eles, uma vez concluído o trabalho interpretativo, podem ser substituídos por pensamentos impecavelmente construídos, inseríveis em um lugar conhecido no contexto anímico, gostaria de dar um exemplo, nas páginas a seguir, da única utilização prática que a arte de interpretar sonhos parece admitir. No meu livroIV já mencionei de que maneira me deparei com os problemas dos sonhos. Encontrei-os no meu caminho, enquanto me empenhava em curar psiconeuroses por meio de um procedimento especial de psicoterapia, no qual os doentes, entre outros episódios de sua vida anímica, também me contavam sonhos, que pareciam exigir inserção na trama havia muito tempo entretecida entre sintoma de sofrimento e ideia patogênica. Àquela época, aprendi como se deve traduzir a linguagem do sonho para o modo de expressão da nossa linguagem do pensamento compreensível sem qualquer outro auxílio. Posso afirmar que, para o psicanalista, esse conhecimento é imprescindível, pois o sonho representa um dos caminhos pelos quais pode chegar até a consciência aquele material psíquico que, por força da resistência que seu conteúdo desperta, foi dela [da consciência] bloqueado, recalcado, tornando-se, por conseguinte, patogênico. Em suma, o sonho é um dos desvios para se contornar o recalcamento, um dos principais meios do assim chamado modo de figuração [Darstellung] indireta no psíquico. O presente fragmento da história do tratamento de uma jovem histérica deverá demonstrar como a interpretação dos sonhos intervém no trabalho da análise. Ao mesmo tempo, ele me fornecerá a oportunidade de, pela primeira vez, defender publicamente, em uma extensão que não dê mais lugar a mal-entendidos, uma parte dos meus pontos de vista sobre os processos psíquicos e sobre as condições orgânicas da histeria. Pela extensão eu não preciso mais me desculpar, desde que se admita que é somente pelo aprofundamento mais atencioso, e não pelo afetado desprezo, que é possível cumprir as grandes exigências que a histeria faz ao médico e investigador. Com certeza:

    Não somente Arte e Ciência,

    Na obra há de estar paciência!

    Começar preparando-me para apresentar uma história clínica sem lacunas e arredondada significaria colocar o leitor, de antemão, em condições inteiramente diferentes daquelas do observador médico. O que os parentes de pacientes – neste caso, o pai da jovem de 18 anos – relatam fornece quase sempre um quadro muito incognoscível do curso da doença. É por isso que então começo o tratamento solicitando na verdade que me seja contada toda a história de vida e doença, mas o que então escuto continua não sendo suficiente como orientação. Esse primeiro relato é comparável a uma corrente não navegável, cujo leito ora é obstruído por massas rochosas, ora dividido em bancos de areia que o tornam raso. Não posso deixar de me admirar sobre como surgiram, no caso dos autores, histórias clínicas uniformes e exatas de histéricos. Na realidade, os pacientes são incapazes de fornecer semelhantes relatos sobre si mesmos. Embora possam informar o médico de maneira suficiente e coerente sobre esta ou aquela etapa da vida, em seguida vem outra etapa em que suas notícias se tornam superficiais, deixam lacunas e enigmas, e, mais uma vez fica-se diante de períodos bem obscuros, não iluminados por qualquer comunicação utilizável. As ligações, mesmo as aparentes, ficam em sua maioria rompidas, a sequência de diversos acontecimentos, incerta; durante o próprio relato a paciente corrige reiteradamente um dado, uma data, talvez para retornar então, após hesitação prolongada, novamente ao primeiro enunciado. A incapacidade dos pacientes de fazer uma exposição ordenada de sua história de vida, na medida em que esta coincida com a história clínica, não só não é característica apenas da neurose,V como também não carece de uma grande importância teórica. Especificamente, essa falta tem os seguintes fundamentos: em primeiro lugar, a paciente retém, consciente e propositadamente, uma parte daquilo que lhe é bem conhecido e que ela deveria relatar, proveniente dos motivos ainda não superados da timidez e do pudor (discrição, quando há outras pessoas em jogo); essa seria a parcela da insinceridade consciente. Em segundo lugar, uma parte de seu saber anamnésico, de que a doente normalmente dispõe, não lhe ocorre durante o relato, sem que a doente utilize a intenção de retê-lo: parcela da insinceridade inconsciente. Em terceiro lugar, nunca faltam as amnésias verdadeiras, lacunas da memória, nas quais entraram não apenas lembranças antigas, mas, inclusive, recentes; e tampouco faltam as confusões de memória formadas secundariamente para preencher essas lacunas.VI Quando os próprios acontecimentos são preservados na memória, alcança-se, com a mesma segurança, a intenção subjacente às amnésias, eliminando-se uma ligação; e a ligação é rompida da forma mais segura se for alterada a sequência cronológica dos acontecimentos. Esta última também sempre se revela ser a componente mais vulnerável do tesouro de lembranças, a mais sujeita ao recalcamento. Algumas lembranças são encontradas, por assim dizer, em um primeiro estágio de recalcamento, mostrando-se marcadas por dúvida. Certo tempo mais tarde, essa dúvida seria substituída por esquecimento ou falha de lembrança.VII

    Um estado como esse das lembranças relativas à história clínica é o correlato exigido pela teoria, correlato necessário dos sintomas da doença. Ao longo do tratamento, o doente então adiciona aquilo que antes reteve ou o que não lhe havia ocorrido, embora sempre o tivesse sabido. As confusões de memória revelam-se insustentáveis, as lacunas de memória são preenchidas. Somente por volta do final do tratamento é que se pode visualizar uma história clínica coerente, inteligível e sem lacunas. Se a meta prática do tratamento consiste em eliminar todos os sintomas possíveis e substituí-los por pensamentos conscientes, então se pode propor a tarefa, como outra meta teórica, de curar todos os danos de memória do doente. Ambas as metas coincidem; quando uma é alcançada, a outra também será ganha; o mesmo caminho leva às duas.

    A partir da natureza das coisas que formam o material da psicanálise, deduz-se que devemos prestar atenção, em nossas histórias clínicas, não apenas às circunstâncias puramente humanas e sociais dos doentes, como também aos dados somáticos e aos sintomas da doença. Acima de tudo, nosso interesse voltar-se-á às relações familiares dos doentes, mais precisamente, como será mostrado, também devido a outros vínculos, e não apenas considerando a hereditariedade a ser investigada.

    O círculo familiar da paciente de 18 anos incluía, além de sua pessoa, o casal de genitores e um irmão um ano e meio mais velho. O indivíduo dominante era o pai, tanto por sua inteligência e suas qualidades de caráter como por suas condições de vida, que fornecem a estrutura para a história da infância e da doença da paciente. À época em que aceitei a moça em tratamento, ele era um homem na segunda metade da casa dos 40, dotado de uma vitalidade e um talento não totalmente comuns, um grande industrial em uma cômoda situação material. A filha era apegada a ele com especial afetuosidade, e sua crítica despertada prematuramente resultava em um desagrado ainda mais forte em relação a algumas ações e particularidades dele.

    Ademais, essa afetuosidade foi intensificada pelas numerosas e graves doenças a que esteve submetido o pai desde que ela completou o sexto ano de vida. Naquela época, seu adoecimento por tuberculose tornou-se pretexto para a mudança da família para uma pequena cidade, privilegiada pelo clima, de nossas províncias do sul. Ali, a doença pulmonar rapidamente melhorou, porém, em função dos cuidados julgados necessários, esse lugar, que designarei como B., permaneceu sendo, mais ou menos pelos 10 anos seguintes, o domicílio principal dos pais e também dos filhos. Quando estava bem, o pai ficava ausente temporariamente, para visitar suas fábricas; no alto verão, procurava-se uma estância termal nas montanhas.

    Quando a garota tinha cerca de 10 anos, um descolamento de retina forçou o pai a um tratamento de repouso em ambiente escuro. A consequência desse acaso médico foi uma restrição permanente da visão. O adoecimento mais grave aconteceu cerca de dois mais tarde; consistiu em um surto de confusão mental, a que se seguiram manifestações de paralisia e leves perturbações psíquicas. Um amigo do doente, de cujo papel ainda nos ocuparemos mais adiante, convenceu-o, tendo ele melhorado um pouco, a viajar com seu médico até Viena, para se consultar comigo. Hesitei um pouco, sem saber se eu não deveria supor, nesse caso, uma paralisia tabética, mas me decidi então pelo diagnóstico de afecção vascular difusa e, após o doente haver admitido uma infecção específica anterior ao casamento, fiz com que realizasse um rigoroso tratamento antiluético, que fez regredirem todos os distúrbios ainda existentes. Foi, sem dúvida, graças a essa feliz intervenção que o pai, quatro anos mais tarde, apresentou-me sua filha, que visivelmente se tornara neurótica, e, passados mais dois anos, levou-a até mim para tratamento psicoterapêutico.

    Entrementes, eu também conhecera, em Viena, uma irmã um pouco mais velha do paciente, na qual era preciso reconhecer uma forma grave de psiconeurose sem sintomas caracteristicamente histéricos. Depois de uma vida ocupada com um casamento infeliz, essa mulher faleceu devido às manifestações, afinal não totalmente esclarecidas, de um marasmo que progrediu rapidamente. Um irmão mais velho do paciente, que eu via ocasionalmente, era um solteirão hipocondríaco.

    A moça que se tornou minha paciente aos 18 anos desde sempre teve suas simpatias voltadas para a família paterna e, desde que adoecera, via seu modelo na tia, que acabei de mencionar. Também para mim, não era duvidoso que ela pertencia a essa família, tanto pelo seu talento e sua precocidade intelectual como também por sua predisposição a adoecer. A mãe eu não conheci. De acordo com as comunicações do pai e da moça, fui levado a imaginar tratar-se de uma mulher de pouca instrução, mas, sobretudo, não inteligente, que, especialmente a partir do adoecimento e do consequente distanciamento de seu marido, viria a concentrar todos os seus interesses na gestão doméstica, oferecendo, assim, o quadro daquilo que se pode designar como a psicose da dona de casa. Sem compreensão em relação aos mais vivos interesses de seus filhos, passava o dia todo ocupada em manter limpos a casa, os móveis e os utensílios, em tal medida que praticamente tornava quase impossível usá-los e usufruí-los. Não se pode deixar de lado essa situação, da qual se encontram indícios suficientes em donas de casa normais, de formas de compulsão por lavagem e outros tipos de compulsão por limpeza; todavia, falta totalmente, nessas mulheres, como também na mãe de nossa paciente, o discernimento da doença e, portanto, uma característica essencial da neurose obsessiva. Há anos, a relação entre mãe e filha era muito inamistosa. A filha ignorava a mãe, criticava-a duramente e escapara inteiramente da sua influência.VIII

    O único irmão da moça, cerca de um ano e meio mais velho, fora para ela, nos anos anteriores, o modelo ao qual sua ambição aspirara. Nos últimos anos as relações entre os dois haviam se afrouxado. Na medida do possível, o rapaz tentava escapar das confusões de família; quando era necessário tomar partido, ficava do lado da mãe. Desse modo, a costumeira atração sexual aproximara, por um lado, pai e filha, e, por outro, mãe e filho.

    Nossa paciente, a quem doravante darei o nome de Dora, na idade de 8 anos já apresentava sintomas nervosos. Nessa época adoeceu de falta de ar permanente, com crises muito agudas, problema que surgiu após uma pequena excursão nas montanhas e foi atribuído ao esforço excessivo. Transcorrido meio ano, aos poucos esse estado foi desaparecendo, graças ao descanso e aos cuidados que lhe prescreveram. O médico da família parece não ter hesitado nem por um momento em diagnosticar o distúrbio como puramente nervoso e excluir uma causa orgânica para a dispneia, mas é evidente que considerou esse diagnóstico compatível com a etiologia do esforço excessivo.IX

    A pequena passou pelas doenças infecciosas habituais da infância sem danos permanentes. Segundo o que ela contou (com intenção de simbolizar!), o irmão costumava adoecer primeiramente, de forma branda, ao que ela o sucedia com manifestações graves. Por volta de 12 anos, ela passou a ter dores de cabeça unilaterais semelhantes a enxaqueca e acessos de tosse nervosa, no início sempre juntos, até que os dois sintomas se separaram e sofreram um desenvolvimento diferente. A enxaqueca tornou-se mais rara, desaparecendo aos 16 anos. Os acessos de tussis nervosa, que provavelmente foram provocados por um catarro comum, permaneceram durante todo esse período. Aos 18 anos, quando começou a ser tratada por mim, tossia novamente de forma característica. Não foi possível constatar o número desses acessos, sua duração era de três a cinco semanas, uma vez também durou vários meses. Na primeira metade de um tal acesso, o sintoma mais incômodo, pelo menos nos últimos anos, era a total perda da voz. O diagnóstico de que novamente se trataria de nervosismo manteve-se por muito tempo; os variados tratamentos usuais, incluindo hidroterapia e aplicação local de eletricidade, não lograram nenhum resultado. Foi nessas circunstâncias que a menina se tornou uma moça madura, independente em seus julgamentos, acostumou-se a zombar dos esforços dos médicos e acabou por desistir da assistência médica. Aliás, desde sempre relutou em recorrer ao médico, embora não sentisse nenhuma antipatia pela pessoa de seu médico de família. Qualquer sugestão de consultar um novo médico provocava a sua resistência, e também a mim ela só veio movida pelo poder da palavra do pai.

    No início do verão de seus 16 anos, vi-a, pela primeira vez, com tosse e rouquidão, e, já naquela época, sugeri um tratamento psíquico, o que foi dispensado, quando também essa crise de duração mais prolongada acabou de forma espontânea. No inverno do ano seguinte, após a morte de sua amada tia, ela esteve na casa do tio e suas filhas, e ali adoeceu, com um estado febril, que àquela época foi diagnosticado como apendicite.X No outono subsequente, sua família deixou definitivamente a estância termal de B., uma vez que a saúde do pai parecia permiti-lo, primeiramente estabelecendo residência permanente na localidade em que se encontrava a fábrica do pai, e, menos de um ano mais tarde, passou a residir em Viena.

    Nesse ínterim, Dora tornara-se uma moça de aparência viçosa, com feições denotadoras de inteligência e amabilidade, mas que inspirava muitos cuidados aos pais. O principal indício de sua doença tomara a forma de alteração de humor⁵ e mudança de caráter. Era evidente que não estava satisfeita consigo mesma nem com os seus, enfrentava hostilmente o pai e não conseguia mais se entender com a mãe, que estava determinada a fazê-la participar dos trabalhos domésticos. Procurava evitar contatos; quando o cansaço e a desconcentração, de que ela se queixava, permitiam-no, ocupava seu tempo ouvindo palestras para mulheres e cultivava estudos mais sérios. Certo dia, os pais foram tomados de susto por uma carta que encontraram em cima ou dentro de uma escrivaninha da moça, na qual se despedia deles, por não mais conseguir suportar a vida.XI É verdade que a visão nada estreita do pai permitiu a suposição de que a moça não estivesse dominada por nenhuma intenção séria de suicídio, mas ele ficou abalado; e quando um dia, após uma troca de palavras sem importância entre pai e filha, configurou-se nela um primeiro ataque de perda da consciênciaXII [Bewußtlosigkeit], em que também houve amnésia, foi determinado, apesar da sua relutância, que ela deveria entrar em tratamento comigo.

    Não há dúvida de que a história clínica que esbocei até aqui não parece, em sua totalidade, digna de ser comunicada. Trata-se de uma "petite hystérie" com os mais triviais de todos os sintomas somáticos e psíquicos: dispneia, tussis nervosa, afonia, e possivelmente enxaqueca, além de alteração de humor, insociabilidade histérica e um taedium vitae provavelmente não considerado grave. Por certo, já foram publicadas histórias clínicas mais interessantes de histéricos e com frequência registradas de forma mais cuidadosa, pois a seguir nada se encontrará de estigmas da sensibilidade cutânea, da restrição do campo de visão etc. Apenas me permito observar que todas as coleções de fenômenos bizarros e assombrosos no caso da histeria não contribuíram muito quanto ao conhecimento dessa doença que ainda permanece enigmática. O que nos faz falta é justamente o esclarecimento dos casos mais triviais e dos mais frequentes, e neles, os sintomas típicos. Eu ficaria satisfeito, se as circunstâncias me houvessem permitido fornecer, de modo integral, o esclarecimento para este caso de pequena histeria. De acordo com as minhas experiências com outros doentes, não duvido que meus recursos analíticos houvessem bastado para tanto.

    No ano de 1896, pouco tempo após a publicação dos meus Estudos sobre a histeria, juntamente com o Dr. J. Breuer, solicitei a um eminente colega da área seu parecer sobre a teoria psicológica da histeria ali defendida. Sem rodeios, respondeu-me que a considerava uma generalização infundada de conclusões que poderiam ser corretas para alguns poucos casos. Desde então, tenho visto sobejamente casos de histeria, tenho me ocupado, alguns dias, semanas ou anos, com cada caso, e, em nenhum deles, dei pela falta daquelas condições psíquicas postuladas pelos Estudos: o trauma psíquico, o conflito dos afetos e, como acrescentei em publicações posteriores, o abalo na esfera sexual. Tratando-se de coisas que, por seu empenho em se esconder, tornaram-se patogênicas, evidentemente não é lícito esperar que os doentes as ofereceram ao médico, tampouco é lícito resignar-seXIII ao primeiro não que se oponha à investigação.

    No caso de minha paciente Dora, foi graças à compreensão do pai, já várias vezes destacada, que não precisei, eu mesmo, buscar a conexão com a vida da paciente, pelo menos para a última configuração da doença. O pai contou-me que, em B., ele e sua família haviam selado uma amizade íntima com um casal que ali já residia havia muitos anos. A Sra. K. teria cuidado dele durante sua grande doença e, dessa forma, adquirido um direito eterno à sua gratidão. O Sr. K. sempre teria sido muito amável com sua filha Dora, fazia passeios com ela, quando ele se encontrava em B., dava-lhe pequenos presentes, mas ninguém teria visto nada de maldoso nisso. Dora cuidava dos dois filhos pequenos do casal K. do modo mais esmerado, praticamente assumindo, junto a eles, o papel de mãe. Quando pai e filha me procuraram no verão, há dois anos, estavam justamente prestes a empreender viagem para a casa do Sr. e da Sra. K., que estavam passando o verão em um dos nossos lagos alpinos. Dora deveria ficar várias semanas na casa da família K., o pai pretendia viajar de volta após poucos dias. Nesses dias, o Sr. K. também estava presente. Mas, quando o pai se preparava para partir, a moça, de súbito, declarou de maneira muito resoluta que retornaria junto ao pai, e, de fato, assim o fez. Somente alguns dias mais tarde deu a explicação para seu estranho comportamento, ao contar para a mãe, que deveria transmitir a história ao pai, que o Sr. K., durante um passeio após uma volta de barco pelo lago, teria ousado fazer-lhe uma proposta amorosa. O acusado, ao ser interpelado pelo pai e pelo tio no encontro seguinte, negou, com toda veemência, todo e qualquer passo de sua parte que houvesse merecido uma tal interpretação e passou a suspeitar da moça, que, segundo o relato da Sra. K., só mostrava interesse por assuntos sexuais e que, em sua casa no lago, havia lido, inclusive, a Fisiologia do amor, de Mantegazza, e livros similares. E que provavelmente, aquecida por essas leituras, teria imaginado toda a cena que descreveu.

    Eu não duvido, disse o pai, que esse incidente seja responsável pelas alterações de humor, pela irritabilidade e pelas ideias suicidas de Dora. Ela exige de mim que eu rompa o contato com o Sr. K. e principalmente com a Sra. K., a quem antes simplesmente venerava. Mas não posso fazê-lo, pois, em primeiro lugar, eu mesmo considero a história contada por Dora sobre o insolente atrevimento do homem uma fantasia que se impôs a ela; em segundo lugar, porque estou ligado à Sra. K. por uma sincera amizade e não quero magoá-la. A pobre mulher é muito infeliz com seu marido, de quem, aliás, não tenho a melhor opinião; ela própria sofria muito dos nervos e em mim encontra seu único apoio. No meu estado de saúde, certamente não preciso garantir ao senhor que, por trás dessa relação, não se esconde nada de ilícito. Somos duas pobres criaturas que nos consolamos mutuamente como podemos, em um envolvimento amistoso. O senhor sabe que não encontro nada [disso] em minha própria esposa. Mas Dora, que tem a minha cabeça dura, não se deixa demover de seu ódio contra os K. Seu último ataque ocorreu após uma conversa, na qual voltou a me fazer a mesma exigência. O senhor que procure agora colocá-la em melhores caminhos.

    Não em consonância total com essas revelações havia o fato de o pai buscar, em outras conversas, empurrar a culpa principal pelo caráter intolerável da filha para a mãe, cujas excentricidades roubavam, a todos, o prazer do lar. Todavia, há muito tempo, eu havia me proposto protelar meu julgamento sobre o verdadeiro estado de coisas, até que eu tivesse ouvido também a outra parte.

    No episódio vivido com o Sr. K. – na proposta amorosa e na subsequente ofensa contra a honra [difamação]⁶ –, teríamos, portanto, para nossa paciente Dora, o trauma psíquico que Breuer e eu, àquela época, apresentamos como precondição indispensável para o surgimento de um estado histérico de doença. Contudo, esse novo caso também mostra todas as dificuldades que desde então me impeliram a ultrapassarXIV essa teoria, acrescidas de uma nova dificuldade de natureza especial. O trauma que conhecemos da história de vida é, como ocorre com tanta frequência nas históricas clínicas de histeria, efetivamente impróprio para explicar a singularidade dos sintomas, para determiná-los; apreenderíamos tanto mais ou tanto menos do contexto se outros sintomas, que não tussis nervosa, afonia, alterações de humor e taedium vitae, houvessem sido o resultado do trauma. Mas, agora, a isso ainda se junta o fato de que uma parte desses sintomas – a tosse e a falta de voz – já foi produzida pela doente anos antes do trauma, e que as primeiras manifestações remontam de fato à infância, já que ocorreram no oitavo ano de vida. Precisamos, portanto, se não quisermos desistir da teoria traumática, recorrer à infância, para ali procurar influências ou impressões que possam ter o efeito análogo ao de um trauma; e então é realmente digno de nota que, mesmo na investigação de casos em que os primeiros sintomas não se haviam instalado na infância, vi-me estimulado a rastrear a história de vida até os primeiros anos da infância.XV

    Depois de superadas as primeiras dificuldades da terapia, Dora comunicou-me uma experiência vivenciada com o Sr. K. que, inclusive, era mais apropriada para produzir o efeito de trauma sexual. Àquela época, ela estava com 14 anos. O Sr. K. combinara com ela e sua própria esposa que, à tarde, as duas mulheres fossem até seu estabelecimento comercial, situado na praça matriz de B., para dali irem assistir a uma festividade religiosa. Mas ele induziu sua esposa a ficar em casa, liberou os empregados e estava sozinho quando a garota entrou na loja. Quando se aproximava a hora da procissão, pediu à menina que o esperasse junto à porta que levava da loja ao andar superior, enquanto ele baixava as cortinas. Em seguida, ele retornou e, em vez de passar pela porta aberta, subitamente apertou a garota contra si e deu-lhe um beijo nos lábios. Aí estava a situação que provocaria uma nítida sensação de excitação sexual em uma garota intocada⁷ de 14 anos. Porém, nesse momento Dora sentiu um forte nojo, desvencilhou-se e, passando em frente ao homem, correu em direção à escada e dali até a porta da rua. Mesmo assim, o contato com o Sr. K. perdurou; nenhum dos dois jamais fez menção a essa pequena cena, e ela também afirma tê-la mantido como segredo até a confissão no tratamento. Além disso, no período que se seguiu, ela evitou qualquer ocasião de ficar sozinha com o Sr. K. Por aquela época, o casal K. combinara uma excursão de vários dias, da qual também Dora deveria participar. Após o beijo na loja, ela cancelou sua participação sem apresentar motivos.

    Nessa cena, que na série é a segunda e no tempo é a primeira, o comportamento da menina de 14 anos já é total e inteiramente histérico. Toda pessoa em quem uma causa de excitação sexual provoca sentimentos preponderante ou exclusivamente desprazerosos eu consideraria, sem receio, uma histérica, independentemente de ela ser capaz de produzir sintomas somáticos ou não. Esclarecer o mecanismo dessa inversão de afeto permanece sendo uma das tarefas mais importantes e, ao mesmo tempo, uma das mais difíceis da psicologia da neurose. Segundo meu próprio julgamento, ainda estou a uma boa distância dessa meta; e também no quadro desta comunicação só poderei apresentar uma parte daquilo que sei.

    O caso de nossa paciente Dora ainda não está suficientemente caracterizado pelo destaque da inversão de afeto; é preciso dizer, além disso, que aqui ocorreu um deslocamento da sensação. Em vez da sensação genital, que decerto não teria faltado em uma moça saudável sob tais circunstâncias,XVI configura-se nela a sensação de desprazer que é própria da membrana mucosa da entrada do tubo digestivo, o nojo. Decerto, a excitação labial através do beijo exerceu influência sobre essa localização; mas ainda acredito reconhecer também o efeito de outro fator.XVII

    O nojo sentido naquela ocasião não se tornou um sintoma permanente em Dora; além disso, na época do tratamento, ele só existia, por assim dizer, de maneira potencial. Ela comia mal, chegando a confessar uma moderada aversão por alimentos. Em compensação, aquela cena deixara outra consequência, uma alucinação sensorial que, de tempos em tempos, voltava a surgir também durante seus relatos. Dizia que continuava a sentir a pressão daquele abraço na parte superior do corpo. De acordo com certas regras da formação dos sintomas, as quais vim a conhecer em conjunção com outras particularidades da doente que de outra forma seriam inexplicáveis, por exemplo, não querer passar por nenhum homem que ela visse em uma conversa animada ou afetuosa com uma mulher, criei para mim a seguinte reconstrução do desenrolar dos eventos naquela cena. Penso que ela sentiu, no impetuoso abraço, não apenas o beijo em seus lábios, mas também a pressão do membro ereto contra seu corpo. Chocante para ela, essa percepção foi eliminada da lembrança, recalcada e substituída pela inofensiva sensação de pressão no tórax, que recebe da fonte recalcada sua intensidade excessiva. Um novo deslocamento, portanto, da parte inferior do corpo para a parte superior.XVIII Por outro lado, a compulsão [Zwang] em seu comportamento se construía como se se originasse da lembrança inalterada. Ela não gostava de passar por nenhum homem que ela acreditasse estar sexualmente excitado, porque não queria voltar a ver o indício somático dessa excitação.

    É digno de nota como, aqui, três sintomas – o nojo, a sensação de pressão na parte superior do corpo e o temor [Scheu] de homens conversando animadamente – que provêm de uma experiência vivida, e como só referindo um ou outro desses três indícios torna-se possível a compreensão do desenrolar da formação dos sintomas. O nojo corresponde ao sintoma do recalcamento da zona erógena dos lábios (mimada pela sucção infantil, como veremos). A pressão do membro ereto provavelmente provocou a alteração análoga no órgão feminino correspondente, o clitóris, e a excitação dessa segunda zona erógena foi fixada pelo deslocamento sobre a sensação simultânea de pressão no tórax. O temor de homens em estado de possível excitação sexual obedece ao mecanismo de uma fobia, para se proteger contra uma reanimação da percepção recalcada.

    Para deixar clara a possibilidade dessa complementação, indaguei à paciente, da maneira mais cuidadosa, se seria de seu conhecimento algo sobre indícios corporais da excitação no corpo do homem. A resposta para o momento atual foi: sim, mas para aquela época foi: ela acreditava que não. Desde o início, usei com essa paciente o máximo de cuidado, para não supri-la com nenhum novo conhecimento do âmbito da vida sexual, e não por razões de escrupulosidade, mas porque eu queria submeter minhas premissas a uma dura prova nesse caso. Portanto, eu só chamava uma coisa pelo nome se suas alusões extremamente claras fizessem a tradução na linguagem direta parecer uma ousadia muito insignificante. Além disso, sua resposta rápida e honesta costumava indicar que aquilo já lhe era conhecido, mas de onde ela o sabia era o enigma que não podia ser solucionado através de suas lembranças. A origem de todos esses conhecimentos ela havia esquecido.XIX

    Se me for permitido imaginar assim a cena do beijo na loja, então chego à seguinte proveniência para o nojo.XX A sensação de nojo parece ser, originalmente, a reação ao cheiro (mais tarde também à visão) dos excrementos. Mas os órgãos genitais e, em especial, o membro masculino realmente podem lembrar as funções excretoras, porque nesse caso o órgão, além da função sexual, também serve à micção. Esse funcionamento é o mais antigo conhecido e o único conhecido no período pré-sexual. É assim que o nojo passa a fazer parte das manifestações de afeto da vida sexual. É o inter urinas et faeces nascimur do padre da igreja⁸ que está aderido à vida sexual e, apesar de todo o empenho idealizador, dela não consegue se separar. Mas eu quero destacar expressamente como meu ponto de vista que não considero o problema resolvido com a prova dessa via associativa. Se essa associação pode ser evocada, com isso ainda não fica esclarecido que ela de fato será evocada. Ela não o será sob circunstâncias normais. O conhecimento das vias não torna dispensável o conhecimento das forças que por elas transitam.XXI

    Além disso, não achei fácil voltar a atenção da minha paciente para seu contato com o Sr. K. Ela afirmava que nada mais tinha com essa pessoa. A camada superior de todas as ideias que lhe ocorriam nas sessões, tudo o que facilmente lhe vinha à consciência e que ela conscientemente se lembrava do dia anterior, sempre se referia ao pai. Era bem verdade que ela não conseguia perdoar o pai pela continuação do contato com o Sr. K. e principalmente com a Sra. K. Todavia, sua versão sobre esse contato era diferente da que o próprio pai queria alimentar. Para ela, não havia nenhuma dúvida de era uma relação amorosa trivial a que ligava seu pai à jovem e bela mulher. Nada que pudesse contribuir para confirmar essa proposição escapava à sua percepção implacavelmente apurada nesse particular, aqui não havia nenhuma lacuna em sua memória. A convivência com os K. já havia começado antes do grave adoecimento do pai; mas só se tornou íntima quando, durante a doença, a jovem senhora arvorou-se oficialmente de cuidadora, enquanto a mãe se mantinha afastada do leito do enfermo. Na primeira temporada de férias de verão após a convalescença, ocorreram coisas que tiveram necessariamente de abrir os olhos de qualquer pessoa para a verdadeira natureza dessa amizade. Juntas, as duas famílias haviam alugado uma ala do hotel, e aconteceu de, um dia, a Sra. K. declarar não poder manter o dormitório que até então dividira com um de seus filhos, e poucos dias mais tarde o pai de Dora desistiu de seu quarto, e ambos ocuparam outros quartos nas extremidades, separados apenas pelo corredor, enquanto os quartos de que abriram mão não ofereciam essa garantia contra perturbações. Quando, mais tarde, ela repreendeu o pai por causa da Sra. K., ele costumava dizer que não entendia essa hostilidade e que as crianças teriam, ao contrário, todos os motivos para ser gratas à Sra. K. A mãe, a quem ela então se dirigiu para o esclarecimento sobre essa conversa obscura, comunicou-lhe que o papai, naquela ocasião, estava tão infeliz que havia querido cometer suicídio no bosque; mas a Sra. K., que o teria pressentido, fora atrás dele e, com suas súplicas, tê-lo-ia convencido a se preservar aos seus. Naturalmente ela não acreditava nisso, não há dúvida de que eles teriam sido vistos juntos no bosque, e aí o papai inventou esse conto sobre o suicídio para justificar o encontro amoroso [Rendezvous].XXII Quando então retornaram a B., diariamente o papai ficava, em determinadas horas, na casa da Sra. K., enquanto o marido estava na loja. Todas as pessoas estariam falando sobre isso e, de maneira insinuante, indagando-a sobre o assunto. Com frequência, o próprio Sr. K. queixava-se amargamente à mãe de Dora, mas sempre a preservando de alusões ao tema, o que ela parecia considerar delicadeza de sua parte. Passeando juntos, o papai e a Sra. K. sabiam arranjar tudo de tal forma que ficava sozinho com a Sra. K. Não havia dúvidas de que ela tirava dinheiro dele, pois fazia despesas que certamente não podia pagar nem com recursos próprios nem com os do marido. O papai também começou a lhe dar grandes presentes; para disfarçá-los, também se tornou bastante mão aberta com a mãe e com ela própria (Dora). A mulher até então achacada, que inclusive precisou procurar uma clínica psiquiátrica durante meses, pois não conseguia andar, desde então estava saudável e cheia de vida.

    Mesmo após terem deixado B., o contato de vários anos continuou, com o pai explicando, de vez em quando, que não tolerava o clima rigoroso e precisava fazer algo por si, então começava a tossir e a se queixar, até partir subitamente para B., de onde escrevia as cartas mais animadas. Todas essas doenças apenas eram pretextos para rever sua amiga.⁹ Então, um belo dia, ficou decidido que se mudariam para Viena, e ela começou a suspeitar de uma combinação. Realmente, nem sequer fazia três semanas que haviam chegado a Viena, ela veio a saber que os K. também tinham se mudado para Viena. E que no momento também estavam aqui, e que com frequência ela encontrava, na rua, o papai com a Sra. K. que amiúde também encontrava o Sr. K., que ele sempre ficava a segui-la com os olhos, e que, quando certa vez a encontrou andando sozinha, seguiu-a durante um longo trecho para se convencer do lugar aonde ela ia, se ela, por acaso, não teria um encontro amoroso.

    Que o papai era insincero, que ele tinha um traço de falsidade em seu caráter, que ele só pensava em sua própria satisfação e tinha o dom de arrumar as coisas da forma que lhe conviesse, tais críticas, ouvi-as principalmente nos dias em que o pai voltou a sentir uma piora em seu estado e partiu para B. por várias semanas, ao que a perspicaz Dora logo acabou por descobrir que também a Sra. K. fizera uma viagem com o mesmo destino para visitar seus parentes.

    Eu não pude contestar essa caracterização do pai de maneira geral; também era fácil ver com qual recriminação específica Dora estava munida de razão. Quando estava com o ânimo exasperado, impunha-se a ela a interpretação de que teria sido entregue ao Sr. K. como prêmio por sua tolerância às relações entre sua esposa e o pai de Dora, e era possível vislumbrar, por trás do carinho devotado ao pai, a fúria contra esse uso. Em outras ocasiões, ela sabia bem que, com essas falas, tinha se tornado culpada de exagero. Naturalmente os dois homens nunca haviam firmado um pacto formal em que ela tivesse sido tratada como um objeto de troca; sobretudo o pai teria recuado horrorizado diante de uma impertinência dessa natureza. Mas ele era daquele tipo de homens que sabem atenuar um conflito pelo topo, ao falsearem seu julgamento sobre um dos assuntos em oposição. Se lhe tivessem chamado a atenção para a possibilidade de uma relação duradoura e sem vigilância com um homem não satisfeito pela própria mulher poder representar perigo para uma adolescente, certamente ele teria respondido: Ele podia confiar em sua filha, um homem como K. nunca poderia ser perigoso para ela, e seu próprio amigo seria incapaz de tais intenções. Ou então diria: Dora ainda é uma criança e é tratada por K. como criança. Mas, na realidade, as coisas se deram de forma tal que cada um dos homens evitava, a partir do comportamento do outro, extrair qualquer consequência que fosse inconveniente para suas próprias pretensões. Todos os dias, ao longo de um ano inteiro, estando por perto, o Sr. K. autorizou-se a enviar flores a Dora, além de aproveitar qualquer ocasião como pretexto para valiosos presentes e passar todo o seu tempo livre na companhia dela, sem que seus pais reconhecessem, nessa conduta, o caráter de um galanteio amoroso.

    No tratamento psicanalítico, quando surge uma sequência de pensamentos corretamente fundamentada e incontestável, há certamente um momento de embaraço para o médico, que o doente aproveita para perguntar: Mas isso tudo é verdadeiro e correto, não é? O que o senhor está querendo aí modificar, agora que eu lhe contei?. Logo se nota que esses pensamentos inatacáveis pela análise foram utilizados pelo doente para esconder outros que querem escapar à crítica e à consciência. Uma série de censuras contra outras pessoas faz supor uma série de autocensuras com o mesmo conteúdo. É preciso apenas dirigir cada uma das censuras de volta para a própria pessoa do falante. Essa maneira de se defender contra uma autocensura, dirigindo a mesma censura contra outra pessoa, tem algo de inegavelmente automático. Ela encontra seu modelo no pagar na mesma moeda das crianças, ao responderem sem hesitar: Você é um mentiroso, quando são acusadas de terem mentido. No empenho de revidar o insulto, o adulto buscaria qualquer ponto fraco real do adversário, sem colocar o valor principal sobre a repetição do mesmo conteúdo. Na paranoia, essa projeção da censura sobre outro indivíduo torna-se manifesta sem mudança de conteúdo e, por conseguinte, sem apoio na realidade, como um processo de formação de delírio.

    As censuras de Dora contra seu pai também estavam sistematicamente forradas, revestidas, com autocensuras do mesmo conteúdo, como mostraremos em pormenores: ela tinha razão quanto ao fato de o pai não querer deixar clara a conduta do Sr. K. em relação à sua filha, para não ser incomodado em seu relacionamento com a Sra. K. Mas ela fizera exatamente a mesma coisa. Ela fez-se de cúmplice dessa relação e repeliu todos os indícios que revelavam sua verdadeira natureza. Somente a partir da aventura no lago datavam a sua lucidez sobre esse fato e suas rigorosas exigências ao pai. Durante todos os anos anteriores, ela favoreceu de todas as maneiras possíveis o contato do pai com a Sra. K. Nunca ia à casa da Sra. K. quando suspeitava que seu pai lá estivesse. Ela sabia que, nesse caso, as crianças teriam sido afastadas, e, assim, ajustava seu trajeto de tal modo que encontrasse as crianças e fosse passear com elas. Houvera uma pessoa na casa que, de pronto, quis lhe abrir os olhos para as relações do pai com a Sra. K. e incitá-la a tomar partido contra essa mulher. Tratava-se da sua última preceptora, uma moça mais velha, muito lida e com opiniões liberais.XXIII Por algum tempo, professora e aluna entenderam-se bastante bem, até que Dora, de repente, inimizou-se com ela e insistiu para que fosse demitida. Enquanto a senhorita teve influência, usou-a para acirrar os ânimos contra a Sra. K. Expôs à mãe que era incompatível com a sua dignidade tolerar essa intimidade de seu marido com uma estranha; também chamou a atenção de Dora para tudo o que era extravagante nessa convivência. Seus esforços, contudo, foram em vão, Dora manteve-se afeiçoada à Sra. K. e não queria saber de nenhum motivo que a levasse a achar indecoroso o contato do pai com ela. Por outro lado, ela se dava conta muito bem dos motivos que moviam sua preceptora. Apesar de cega por um lado, de outro, era suficientemente perspicaz. Notou que a senhorita estava apaixonada pelo pai. Quando o pai estava presente, ela parecia uma pessoa bem diferente, chegando a ser divertida e solícita. No período em que a família vivia na cidade em que ficava a fábrica e a Sra. K. estava fora do horizonte, sua animosidade se voltava contra a mãe, que, nesse momento, era a rival a ser considerada. Mas tudo isso Dora ainda não lhe levava a mal. Só se indignou quando percebeu que ela própria era totalmente indiferente para a preceptora, e que o amor que esta lhe demonstrava aplicava-se, na verdade, ao pai. Enquanto o pai estava ausente da cidade em que ficava a fábrica, a senhorita não tinha tempo nenhum para ela, não queria ir passear com ela, não se interessava por seus trabalhos. Mal o papai voltava de B. e ela já se mostrava pronta para todos os serviços e assistências. Por isso ela a descartou.

    A coitada havia iluminado, com uma lucidez indesejada, uma parte de seu próprio comportamento. Assim como a senhorita era às vezes em relação à Dora, assim também era Dora em relação aos filhos do Sr. K. Assumia o lugar de mãe para eles, instruía-os, saía com eles, oferecendo-lhes um substituto completo para o escasso interesse que a própria mãe lhes demonstrava. Entre o Sr. e a Sra. K., com frequência, veio à baila o tema da separação; ela não se realizou, porque o Sr. K., que era um pai muito carinhoso, não queria abrir mão de nenhum dos dois filhos. Desde o princípio, o interesse comum pelas crianças fora um meio de união do contato entre o Sr. K. e Dora. A ocupação com as crianças era, para Dora, evidentemente, o disfarce que deveria esconder outra coisa de si mesma e de estranhos.

    De sua conduta em relação às crianças, bem como do que foi esclarecido através da conduta da senhorita em relação a ela mesma, resultou a mesma consequência que a de sua anuência tácita quanto à convivência do pai com a Sra. K., a saber, que ao longo de todos os anos ela estivera apaixonada pelo Sr. K. Quando formulei essa conclusão, não encontrei nela nenhum assentimento. É verdade que ela imediatamente relatou que também outras pessoas, por exemplo, uma prima que a estivera visitando por algum tempo em B., ter-lhe-iam dito: Você está mesmo totalmente louca por esse homem; mas ela própria não queria lembrar-se desses sentimentos. Posteriormente, quando a abundância do material vindo à tona tornou difícil uma negação, ela admitiu que podia ter amado o Sr. K. em B., mas, desde a cena do lago, isso teria passado.XXIV De qualquer modo, era certo que a censura por ter feito ouvidos de mercador a deveres incontornáveis e por ter disposto as coisas da maneira mais conveniente à sua própria moção apaixonada, ou seja, a censura que fazia contra o próprio pai, recaía sobre sua própria pessoa.XXV

    Por seu turno, a outra reprimenda, de que o pai criaria suas doenças como pretextos e as usaria como meios, cobre também toda uma parte da sua própria história secreta. Um dia, ela queixou-se de um sintoma supostamente novo, dores de estômago lancinantes, e quando perguntei: Quem você está copiando com isso?, eu acertara em cheio. No dia anterior, ela visitara suas primas, as filhas da falecida tia. A mais jovem ficara noiva, e a mais velha adoecera, nessa ocasião, de dores de estômago e precisou ser levada a Semmering.¹⁰ Ela achava que a mais velha só estava com inveja, pois sempre adoecia quando queria obter algo, e agora queria justamente sair de casa para não ter de assistir à felicidade da irmã.XXVI Mas suas próprias dores de estômago testemunhavam que ela se identificava com a prima considerada dissimulada, fosse porque também invejava a mais feliz por seu amor, fosse porque via, no destino da irmã mais velha, que acabava de sair de uma relação amorosa infeliz, seu próprio destino refletido.XXVII Mas, observando a Sra. K., ela também aprendera como utilizar as doenças de forma proveitosa. Uma parte do ano, o Sr. K. passava viajando; sempre que retornava, encontrava a mulher achacada, embora um dia antes, como Dora sabia, ela estivesse bem de saúde. Dora entendeu que a presença do marido tinha o efeito de fazer a esposa adoecer e que a doença era bem-vinda, para ela esquivar-se dos odiados deveres matrimoniais. Uma observação sobre sua própria alternância entre doença e saúde durante os primeiros anos de menina vividos em B., que de repente inseriu-se nesse ponto, não pode menos do que me fazer suspeitar de que seus próprios estados de saúde, bem como os da Sra. K., deveriam ser considerados em uma dependência semelhante. E que, na técnica da psicanálise, vale a regra de que uma conexão interna, mas ainda recôndita, dá-se a conhecer pela contiguidade, pela vizinhança temporal das ocorrências, exatamente como na escrita um a e um b colocados um ao lado do outro significam que a partir dali deva ser formada a sílaba ab. Dora apresentara inúmeros acessos de tosse com perda de voz; teria a presença ou a ausência do amado exercido influência sobre esse aparecimento e desaparecimento das manifestações da doença? Se esse fosse o caso, então em algum momento se deixaria comprovar uma coincidência denunciadora. Perguntei qual tinha sido a duração média desses acessos. Cerca de três a seis semanas. Quanto tempo teriam durado as ausências do Sr. K.? Ela teve igualmente de admitir que entre três e seis semanas. Com sua doença, ela demonstrava, portanto, seu amor por K., assim como sua esposa demonstrava sua aversão a ele. Apenas era lícito supor que ela teria se comportado de forma contrária à da esposa, ficando doente quando ele estava ausente e gozando saúde depois de sua volta. Isso também parecia realmente estar correto, pelo menos durante um primeiro período dos acessos; na verdade, em momentos posteriores, sem dúvida revelou-se uma necessidade de apagar a coincidência entre os acessos de doença e a ausência do homem amado secretamente, para que o segredo não fosse traído pela constância dessa coincidência. Depois restou a duração do acesso como marca de seu significado original.

    Lembro-me de ter visto e ouvido àquela época, na clínica de Charcot,¹¹ que, nas pessoas com mutismo histérico, a escrita entrava vicariamente em lugar da fala. Elas escreviam de maneira mais fluente, mais rápida e melhor do que outros e do que antes. O mesmo acontecera com Dora. Nos primeiros dias de sua afonia, para ela a escrita sempre fluía da mão com especial facilidade. Como expressão de uma

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