A serviço da repressão: Grupo Folha e violações de direitos na ditadura
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Fernando Honorato
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A serviço da repressão - Amanda Romanelli
SUMÁRIO
[ CAPA ]
[ FOLHA DE ROSTO ]
[ DEDICATÓRIA ]
[ NOTA INTRODUTÓRIA ]
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
1__O DESENVOLVIMENTO DO GRUPO FOLHA
A Rodoviária e a Folha de S.Paulo
O golpe de 1964 e a Litográfica Ypiranga
A Ultima Hora e o Notícias Populares
A TV Excelsior
A Agência Folha e a modernização tecnológica
A Cidade de Santos e a Folha da Tarde
A Fundação Cásper Líbero
O AI-5 e o apoio ao regime
A reforma da Folha da Tarde e os agentes da repressão
A TV Gazeta e o milagre econômico
Empréstimo de carros à repressão e confronto com a militância armada
A distensão e o Caso Diaféria
Diretas Já, Projeto Folha e reformulação da identidade
2__O APOIO AO GOLPE E AO APARATO REPRESSIVO
O apoio ao golpe de 1964
Legitimação do regime e apoio à política repressiva
As campanhas de ação psicológica
A cobertura jornalística
Militares e policiais na estrutura da empresa
Empréstimo dos carros e participação em ações da Oban
3__OS TRABALHADORES E OUTRAS VÍTIMAS
Militantes presos, torturados ou assassinados por meio
de veículos do Grupo Folha
Trabalhadores presos, perseguidos ou demitidos ilegalmente
Violação das leis trabalhistas e precarização das condições de trabalho
A greve de jornalistas de 1979
4__ENCAMINHAMENTOS FINAIS
Benefícios econômicos
Responsabilidade empresarial
Danos e reparações
REFERÊNCIAS
Entrevistas
Fontes e documentos diversos
Periódicos
Livros
[ NOTAS ]
[ AGRADECIMENTOS ]
[ SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES ]
[ CRÉDITOS ]
NOTA INTRODUTÓRIA
Este livro contesta as falas de si
que a Folha de S.Paulo faz sobre sua interação com o golpe e a ditadura de 1964. O intercurso havido entre seus representantes (Folha e ditadura) e suas vítimas jamais configurou um relacionamento pálido, remoto ou episódico, como a Folha expõe e pretende que se creia. Pelo contrário, ele foi intenso, amplo, duradouro, proativo e destrutivo de muitas vidas e da integridade física de várias pessoas, fossem estas inocentes
ou enquadradas como adversárias e inimigas.
Considerando os fatos, dados e testemunhos que este livro apresenta, sugerimos que o leiam, façam sua própria avaliação do texto, e de tudo recolham o melhor para suas/nossas vidas.
Sim, vale a pena!
ROSA CARDOSO
Ex-coordenadora da Comissão Nacional da Verdade
APRESENTAÇÃO
O GRUPO FOLHA, AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS
NA DITADURA E O INCONTORNÁVEL PASSADO
MARIALVA BARBOSA (UFRJ)
Ao começar rememorando o fato de a Folha de S.Paulo ter publicado, em 17 de fevereiro de 2009, um editorial cujo cerne era a crítica à eleição de Hugo Chávez na Venezuela, e neste texto ter se referido ao regime político ditatorial brasileiro inaugurado em abril de 1964, e que só terminaria 21 anos depois, como ditabranda
, ou seja, uma ditadura branda
(como se isso fosse possível), o livro mostra, desde a primeira linha, que alguns acontecimentos históricos são da ordem do incontornável, do inominável, daquilo que não se pode esquecer, sob pena de apagar nossa própria humanidade. O dever de memória
se torna, portanto, inegociável, e deve-se lembrar sempre este passado obscuro que, se não fosse o trabalho de pesquisa, não seria revelado.
Este é o cerne do livro que procura mostrar, em quatro capítulos, como o Grupo Folha atuou na violação de direitos na ditatura se colocando a serviço da repressão como ator-chave e executor de processos da mais inominável qualificação.
Como mostram logo na introdução, o editorial publicado em 2009 pelo jornal engloba uma série de discursos, que se atualizam sem cessar, e baseia-se na premissa de que o regime instaurado com o golpe de 1964 não teria sido tão violento
. Mais recentemente, vimos emergir os mesmos argumentos, com outros propósitos, não menos execráveis, em certa idolatria ao período ditatorial brasileiro levada a cabo por representantes políticos da extrema-direita no Brasil, capitaneada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, que fez e faz apologia à ditadura civil-militar instaurada em 1964 e homenagens a torturadores do período nas inúmeras vezes que se referiu e se refere, por exemplo, ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que foi chefe do DOI-CODI.
Antes de tudo, o livro cumpre com o dever de memória de mostrar como o enquadramento que a Folha de S.Paulo produziu e levou o jornal a não ser identificado com a ditadura militar não corresponde, em nenhum momento, à sua ação efetiva de participação direta nas violações de direitos durante a ditadura. As profundas relações do jornal com o regime, como enfatizam os autores, não podem ser relativizadas nem muito menos esquecidas.
A questão principal que o livro procura mostrar é que além da sua atuação em posicionamentos políticos e editoriais, a Folha, como um corpo organizacional, colaborou diretamente com a repressão — emprestando seus veículos para que o regime pudesse realizar, de forma mais eficiente, a captura e a perseguição de militantes políticos
, por exemplo. Além disso, o Grupo Folha cedeu suas instalações para que agentes da repressão ali atuassem. Com isso, mostram os pesquisadores, a empresa se beneficiou economicamente e de maneira contundente do contexto instaurado pela ditadura.
O livro resulta de importante pesquisa que reuniu historiadores e estudiosos do jornalismo, e que foi vencedora de edital público do Centro de Antropologia de Arqueologia Forense (CAAF/Unifesp), com apoio do Ministério Público Federal (MPF). Este edital selecionou grupos de pesquisa para investigar dez empresas suspeitas de colaborar com o regime, às quais se juntaram, posteriormente, mais três empesas. A única do setor de comunicação foi a Folha de S.Paulo.
O livro é produto, portanto, do trabalho desta equipe, que durante dois anos buscou documentos inéditos e realizou, ao todo, 44 entrevistas, com mais de 100 horas de gravação, procurando diálogos memoráveis com uma enorme diversidade de pessoas que pudessem esclarecer a colaboração do Grupo Folha com a repressão. Foram entrevistados jornalistas e trabalhadores do grupo que foram perseguidos, alguns que foram monitorados e outros que foram presos em seus ambientes de trabalho. Diversos profissionais testemunharam sobre a estreita relação dos dirigentes do jornal com a repressão. Houve também os que narraram terem sido presos em operações que envolveram veículos do Grupo Folha. As entrevistas incluíram agentes do DEOPS-SP e do DOI-CODI, aparatos centrais da repressão durante a ditadura, que confirmaram a colaboração do grupo com o regime e o modus operandi das ações que empreendiam na chamada caça aos terroristas
.
O resultado não poderia deixar de ter a importância de que a obra se reveste: um livro que aciona a luta contra o esquecimento de momentos-chave da nossa história e coloca marcas indeléveis na sua projeção como expectativas de futuros possíveis, em que ações contra a democracia não podem ser silenciadas.
Do ponto de vista de uma história da imprensa, o livro tem, ainda, outros qualificativos, em que se destaca a perspectiva metodológica inovadora, na qual a memória se torna centro propulsor de ingresso num passado como abertura fundamental em direção a ele — e, mais do que isso, como certificação de que houve um passado. Mesmo submetido aos enquadramentos e às ingerências do presente, o ato memorável como recurso testemunhal/documental revela as fímbrias narrativas de um tempo que permanece durando, em função do incontornável passado.
Assim, como um acontecimento incontornável, o regime ditatorial brasileiro produziu muitas marcas, enfeixadas pelo antidemocrático, que não podem e não devem permitir o esquecimento. Dessa forma, é um passado que não pode ser submetido a novos contornos. E é isso que o livro mostra, construindo, pela pesquisa, uma espécie de mapa das ações de violação contra os direitos humanos produzidas pela Folha de S.Paulo, entre outras empresas, como um acontecimento que assim se qualifica como sendo o incontornável do passado.
Além das entrevistas, os autores se debruçaram numa infinidade de documentos consultados em acervos públicos que guardam essa documentação dos órgãos da repressão, como o arquivo do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, nos quais também identificaram abusos em relação aos direitos dos trabalhadores, descritos igualmente no livro. Completa o corpus de análise uma minuciosa pesquisa dos jornais do Grupo Folha, como o leitor poderá verificar ao folhear as páginas que se seguem.
O livro se estrutura em quatro capítulos que seguem as frentes abertas pela investigação sobre formas e conteúdos das violações de direitos humanos durante a ditadura perpetradas em diversas ações pelo Grupo Folha, agrupados em três grandes eixos de análise (que também foram norteadores do projeto): os benefícios econômicos; o apoio e a cooperação com ações de repressão; e os danos causados aos trabalhadores.
Assim, o primeiro capítulo, ao mesmo tempo que apresenta um histórico do Grupo Folha, mostra o contexto político que beneficiou diretamente os empresários à frente do grupo, de forma a constitui-lo como um dos maiores conglomerados de mídia do país.
Na sequência, o segundo capítulo destaca os elementos de apoio editorial e de colaboração ao regime militar, mostrando como o Grupo Folha participou ativamente das conspirações e articulações que antecederam o golpe de 1964 e, sobretudo, o suporte dado pelo grupo ao regime autoritário que se estendeu muito além do apoio editorial, frequentemente lembrado em outras análises.
Segue-se o terceiro capítulo, em que o foco são os trabalhadores e outras vítimas das violações praticadas, de maneira direta ou indireta, pela empresa. E, por fim, no último capítulo, o quarto, os autores tecem considerações finais sobre os benefícios econômicos, as violações de direitos e a responsabilidade empresarial do Grupo Folha, abrindo uma brecha reflexiva e efetiva sobre formas possíveis de reparação.
Entremeiam cada um dos capítulos muitas falas dos entrevistados. São testemunhos de ações inconcebíveis quando se preza a liberdade democrática e o direito de expressar opiniões e divergências. Em tempos ditatoriais isso não é possível. São cenas de mortes ocorridas no interior dos organismos de repressão, como o DOI-CODI, mas que nas páginas da Folha de S.Paulo apareciam escamoteadas por outros pretensos fatos jornalísticos, como um tiroteio não existente — Vocês morrem e nós damos a versão que queremos para a morte
. A frase do torturador ecoada pela memória da depoente mostra o envolvimento atávico do grupo com a repressão desde a produção de fatos noticiosos eivados de mentiras (diríamos hoje fake news) até ações mais diretas, que se resumem à violação de direitos durante todo o período ditatorial brasileiro.
Muitas outras violações de direitos aparecem descritas no livro, como a atuação de agentes da repressão que se transformavam em funcionários do grupo. Também há referência ao empréstimo dos carros da Folha para os órgãos de repressão — muito mencionado, segundo os autores, mas pouco investigado. Vozes que ecoam no livro descrevem, em várias passagens, detalhes de cenas dos carros estacionados dentro do DOI-CODI.
São vozes, portanto, privilegiadas pela escuta atenta dos autores, que, mais do que contar histórias, exercem um trabalho duradouro de memória, fazendo ecoar o passado no presente, para através do papel de testemunha dizerem (e uso aqui expressões de Paul Ricoeur) eu estava lá
, por favor acreditem em mim
e, caso não acreditem, perguntem a outras pessoas
que também estiveram lá.
São incontáveis os que estiveram lá, e em várias situações, atestando a existência de um passado que apresenta cenas que, muitos gostariam, pelos mais variados motivos, verem varridas de suas memórias. Uns pela dor que a memória traumática produz; outros, pela certeza de que, se ninguém falar, há não apenas a possiblidade de apagar o passado, mas sobretudo de dar outra intepretação a ele: como aquela de uma ditadura que teria sido tão branda que foi chamada de ditabranda
, como remarca os autores do livro nas primeiras linhas do seu texto.
Por tudo isso, este livro torna-se também testemunha de uma pesquisa desenvolvida com seriedade, para que o período ditatorial brasileiro e suas ações de violação de direitos não sejam nunca esquecidos. E é em função desta luta contra o esquecimento, que também pode ser comandado
, que a pesquisa foi feita e é agora entregue ao leitor, que, ao ler cada um dos capítulos, ingressará numa cadeia de eventos e significações em favor da liberdade e da justiça.
INTRODUÇÃO
Em 17 de fevereiro de 2009, a Folha de S.Paulo publicou um editorial criticando a eleição de Hugo Chávez na Venezuela e, em certo momento do texto, comentou sobre o regime político que vigorou no Brasil entre abril de 1964 e março de 1985, chamando-o de ditabranda
. A ideia que o jornal buscava expressar com o neologismo era clara. Ao trocar dura
por branda
, sugeria que a atuação da ditadura militar no Brasil fora mais leve, menos violenta do que a de outros países latino-americanos, como Chile, Uruguai e Argentina.
A reação foi imediata. Jornalistas e intelectuais criticaram a expressão. O próprio jornal publicou trechos de algumas cartas enviadas à redação, como as dos professores da Universidade de São Paulo (USP) Maria Victoria Benevides e Fabio Konder Comparato. Benevides afirmou que se tratava de uma infâmia, porque no que diz respeito à violação de direitos humanos, a medida é uma só: a dignidade de cada um e de todos, sem comparar ‘importâncias’ e estatísticas
. Comparato escreveu que o autor do editorial e o diretor que o aprovou deveriam ser condenados a ficar de joelhos em praça pública e pedir perdão ao povo brasileiro, cuja dignidade foi descaradamente enxovalhada
[1].
A Folha publicou, ao final dos trechos das cartas, uma nota da redação afirmando respeitar a opinião dos leitores que discordavam da expressão, mas que considerava a indignação dos professores Benevides e Comparato cínicas e mentirosas
, já que se tratava de figuras públicas que nunca expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como a cubana. Nos dias seguintes, o debate se estendeu em fóruns de discussão na internet e em artigos publicados na imprensa. Em 7 de março, houve uma manifestação, com a participação de cerca de 300 pessoas, em frente à sede da Folha. Nesse dia, Otávio Frias Filho divulgou uma nota em que admitia que o uso da expressão ditabranda
havia sido um erro, uma vez que todas as ditaduras são abomináveis. O então diretor de redação, no entanto, insistiu que a ditadura militar brasileira foi menos repressiva que as congêneres argentina, uruguaia e chilena[2].
A polêmica aos poucos foi se enfraquecendo, mas o termo ditabranda
nunca mais saiu do debate público brasileiro. Até mesmo porque, daquela conjuntura em diante, a questão da ditadura passou a ocupar cada vez mais espaço na arena pública. De fato, 2009 não era um momento qualquer nas discussões sobre o regime autoritário no Brasil. Em julho do ano anterior, havia ocorrido uma audiência pública no Ministério da Justiça, com o intuito de debater estratégias jurídicas voltadas para a revisão da Lei de Anistia. Em outubro, como resultado do encontro, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ingressou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para questionar a validade da lei de 1979. Em dezembro, foi realizada a 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, que daria origem ao 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), instituído por decreto em dezembro do ano seguinte, trazendo, pela primeira vez, um eixo sobre o direito à memória e à verdade — com a sugestão da criação de uma Comissão Nacional da Verdade e Justiça.
Em março de 2009, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) submeteu o caso Guerrilha do Araguaia vs. Brasil
à sua instância superior, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Já em maio, seria estabelecido o Centro de Referência Memórias Reveladas no âmbito do Arquivo Nacional, como resultado de intensas discussões públicas acerca do que fazer com os arquivos da ditadura. Em 2010, o STF julgou a ação da OAB e considerou a Lei de Anistia válida. Por sua vez, a Corte IDH condenou o Brasil no caso Guerrilha do Araguaia
, determinando, dentre outras coisas, que a Lei de Anistia não poderia ser utilizada como forma de garantia da impunidade dos torturadores. No mesmo ano, em meio a esses intensos debates, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva apresentou o Projeto de Lei 7.376/2010, que tinha o objetivo de criar a Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Fevereiro de 2009, portanto, era o olho do furacão dos debates públicos sobre as violações de direitos humanos perpetradas pela ditadura — e, principalmente, sobre o que fazer com os legados dessas violações. E foi nesse contexto que a Folha de S.Paulo sugeriu que o regime vivenciado pelos brasileiros a partir do golpe de Estado de 1964 teria sido uma ditabranda
. Em meio a um processo de construção de uma crítica pública ao regime autoritário, que envolvia debates como a revisão da Lei de Anistia e a criação da Comissão Nacional da Verdade, a Folha foi o primeiro ator com espaço relevante no debate público a relativizar abertamente o caráter violento da ditadura brasileira.
E, na medida em que esses debates avançaram e se consolidaram com o trabalho da CNV, entre 2012 e 2014, também foram ganhando espaço os discursos que legitimavam ou mesmo reivindicavam como positivas as graves violações aos direitos humanos perpetradas naquele período. É evidente que o editorial da Folha não é a origem dessas ideias[3]. Mas é preciso ressaltar que todos esses discursos estão assentados, em alguma medida, na mesma premissa que sustenta a noção de ditabranda
: a de que o regime instaurado com o golpe de 1964 não teria sido assim tão violento.
À época, algo talvez tenha surpreendido quem acompanhava o debate: o fato de tal posicionamento ter vindo precisamente da Folha. De alguma forma, na memória coletiva — em especial no meio progressista e de esquerda —, o jornal não era identificado com a ditadura militar. Pelo contrário, era lembrado pelas suas posições em defesa do processo de democratização, em especial pelo seu apoio entusiasmado à campanha das Diretas Já, uma das maiores mobilizações populares contra o regime autoritário.
No entanto, essa foi uma imagem cuidadosamente construída, a partir de um amplo e eficiente trabalho de enquadramento da memória que a Folha promoveu desde o período da redemocratização por meio de diferentes narrativas autorreferentes: editoriais, edições comemorativas, livros institucionais. Um dos efeitos desse trabalho foi fazer com que as profundas relações do jornal — ou, melhor dizendo, da empresa — com o regime, por ela caracterizado como ditabranda
, fossem esquecidas ou relativizadas (Bonsanto, 2014; 2021; Meneses, 2016).
A narrativa oficial, construída paulatinamente a partir da gestão de Octavio Frias de Oliveira e de Carlos Caldeira Filho, empresários que assumiram o controle da Folha em 1962, pode ser resumida a partir da seguinte perspectiva: apesar de seu apoio ao golpe militar, o jornal logo se tornou resistente — quando não, vítima da ditadura. Nesse período de truculência, a empresa passava por dificuldades financeiras e nada poderia fazer a não ser reestruturar-se administrativamente, atuando de forma discreta e até mesmo distanciada dos acontecimentos de seu tempo. Foi somente após a conquista de sua autonomia econômica que o jornal pôde assumir um posicionamento político mais claro, tornando-se um reconhecido ator político no processo de transição democrática.
Vamos questionar em detalhes essa versão ao longo deste livro. Nesse momento, vale apenas indicar que essa narrativa, que começou a ser construída em meados da década de 1980, ajudou a consolidar a imagem da Folha como um exemplo de jornalismo profissional e moderno, um caso de sucesso a ser seguido em tempos de democracia. Reconhecida e naturalizada por diversos setores da sociedade civil, incluindo jornalistas e acadêmicos, essa é uma imagem que procura ser sustentada