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O caso Altamira: as investigações dos meninos emasculados – do mesmo autor de "O Caso Evandro"
O caso Altamira: as investigações dos meninos emasculados – do mesmo autor de "O Caso Evandro"
O caso Altamira: as investigações dos meninos emasculados – do mesmo autor de "O Caso Evandro"
E-book765 páginas10 horas

O caso Altamira: as investigações dos meninos emasculados – do mesmo autor de "O Caso Evandro"

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Sobre este e-book

Entre 1989 e 1993, vários garotos foram mortos na cidade de Altamira, interior do Pará.
As vítimas apresentavam algo em comum: tiveram os órgãos genitais cortados. Em outras palavras, foram emasculadas.
Por anos, as investigações não avançavam.
Diante de tanto abandono, para as famílias das vítimas não havia dúvida: pessoas poderosas estavam por trás dos crimes. Mas por que eles aconteciam?
Entre as teorias que surgiram na cidade, especulava-se que as crianças teriam sido vítimas de uma seita satânica — algo que remonta ao caso do menino Evandro e traz uma personagem já conhecida para esta história: Valentina de Andrade. Aventava-se também que os cortes na região genital dos meninos tinham precisão cirúrgica, o que indicaria a participação de médicos da cidade. O que seria ou não verdade nesse caso?
Neste livro-reportagem, desenvolvido a partir da pesquisa feita para a quinta temporada do podcast Projeto Humanos, o jornalista Ivan Mizanzuk mergulha nos arquivos de um caso repleto de incongruências.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de dez. de 2024
ISBN9786555116182
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    O caso Altamira - Ivan Mizanzuk

    1. Os meninos de Altamira


    1o de outubro de 1992

    O caso dos meninos emasculados de Altamira tem vários inícios. E esses inícios formam peças na memória daqueles que viveram esse terror, e, para cada pessoa com quem conversei, o ponto de partida variava. Esse é um dos maiores desafios de se contar essa história: qual é o início que devemos adotar? Para fins didáticos, após muitas conversas com Rubens, optei por entender e explicar a gênese de seu processo. Esse não é exatamente o começo dos fatos, mas é a lógica que estrutura todo o caso. Nesse sentido, devemos começar no dia 1º de outubro de 1992.

    Era quinta-feira, e os setenta mil habitantes de Altamira se preparavam para as eleições municipais que ocorreriam no sábado, dia 3. Jaenes da Silva Pessoa, de 13 anos, por sua vez, seguia a rotina de sempre. Por volta das 10 horas, foi ajudar o pai a prender e a soltar o gado e, à tarde, seguiria para a escola, onde cursava a terceira série do antigo primeiro grau.

    Juarez, pai de Jaenes, era do Ceará, tinha 38 anos e havia chegado a Altamira na década de 1970. Era casado com a professora Rosa Maria Pessoa, com quem tinha quatro filhos, sendo Jaenes o mais velho. Semianalfabeto e de origem muito humilde, trabalhava na fazenda de seu primo José Amadeu Gomes, que tinha se radicado ali anos antes e enriquecido. Além de fazendeiro, Amadeu era conhecido por ser dono do posto de gasolina Gomes. Juarez usava a fazenda do primo para criar o próprio gado.

    Naquele dia, Juarez passou parte da manhã na cidade. Quando chegou em casa, ao meio-dia, o filho não estava lá. Juarez tirou um ­cochilo e acordou por volta das 13h30, quando seus outros filhos estavam saindo para procurar o irmão, que já devia ter voltado àquela hora.

    Como os irmãos não encontraram Jaenes, outros familiares e amigos iniciaram buscas no mesmo dia. Amadeu foi até a polícia acompanhado de seu irmão Arnaldo Gomes, advogado e candidato a vereador em Altamira, comunicar o desaparecimento. A cidade vivia um clima de pânico devido a crimes anteriores e todo cuidado era pouco.

    As buscas duraram o dia inteiro e foram retomadas no dia seguinte, com mais pessoas. Era sábado, dia de eleições. Naquela ocasião, a polícia alegou que não poderia ajudar, já que a única viatura estava sendo usada para fazer a segurança das urnas eleitorais.

    Quase 48 horas haviam se passado sem sinal de Jaenes. Familiares, amigos, autoridades, todos estavam preocupados e nervosos, imaginando que o pior pudesse ter acontecido. No primeiro depoimento que prestou, datado de 15 de outubro de 1992, Juarez contou ter falado com José, seu vizinho, que disse que mais ou menos meio-dia do dia 1º, ouviu três gritos de Jaenes, mas […] pensou que ele estivesse tocando os gados.

    Esse depoimento foi realizado duas semanas após o desaparecimento de Jaenes. E é nesse relato que descobrimos que, naquele dia das eleições, o mutirão de buscas estava bastante volumoso. Mesmo sem viaturas, a polícia participou com policiais destacados. Alguns militares também foram cedidos para buscas no mato. No meio daquelas movimentações, Juarez ouviu um tiro e gritos: Jaenes havia sido encontrado morto. Segundo Juarez, deitado meio curvado, os pés cruzados e as mãos meio espalmadas e um pouco levantadas.

    O corpo do garoto estava bastante machucado. No depoimento, Juarez descreveu: "O cadáver de Jaenes […] apresentava um corte no pulso esquerdo, o pescoço bastante inchado, sem o globo ocular esquerdo e um corte no ‘pente¹’" — ou seja, no pênis. Não estamos falando aqui de um simples corte superficial no pênis, mas de emasculação, que é a retirada total do órgão reprodutor.

    Logo após o cadáver de Jaenes ter sido encontrado, a própria família se encarregou de levar um caixão ao local e transportá-lo para casa, por volta das 9h30 do dia 3 de outubro. Depois disso, o corpo do garoto foi enviado ao Hospital da Fundação Nacional de Saúde para ser examinado.

    Ainda de acordo com o primeiro depoimento de Juarez, foi seu primo Perilo Gomes, outro irmão de Amadeu, quem levou o corpo do menino ao hospital para ser examinado por um médico. Por volta das 11 da manhã, Perilo retornou à casa de Juarez com o corpo de Jaenes para que pudesse ser velado. Nesse ínterim, Juarez saiu para votar em seu primo, o advogado Arnaldo Gomes, irmão de Perilo e Amadeu Gomes, que concorria às eleições para vereador. O velório de Jaenes ocorreu naquele mesmo sábado, 3 de outubro, e contou com a presença do prefeito atual e do eleito, além do vice-governador, Carlos Santos.

    Durante o velório, havia muita gente. De repente, veio um conhecido do declarante […] lhe disse: O assassino desta criança está aqui no meio de nós, pois o cadáver está sangrando. […] o declarante foi olhar e efetivamente viu que estava saindo sangue, que pingava no chão; o declarante achou muito estranho, porque, quando o corpo foi encontrado não tinha um pingo de sangue, nem mesmo na roupa.

    Ainda durante o velório, o vice-governador assegurou a Juarez que enviaria uma comissão ao governador Jader Barbalho para que o caso de Jaenes fosse analisado. E havia um motivo para o vice-governador fazer uma declaração tão contundente: Jaenes não era o primeiro garoto que havia sido morto e emasculado ali.

    A movimentação de uma cidade com medo

    Nos autos do processo, há anexado um impresso de outubro de 1992 intitulado Carta aberta à comunidade altamirense. Esse documento não é datado, mas é seguro dizer que foi produzido poucos dias após a morte de Jaenes. Nele, podemos ler o seguinte:

    Nos últimos anos, Altamira vem sendo palco de bárbaras violências cometidas contra crianças e adolescentes. Requintes de perversidade (emasculação, sevícias, estupro…) se repetem nos diferentes casos, sugerindo que a autoria de todos eles deve ser atribuída à mesma pessoa — ou às mesmas pessoas. Recordamos:

    José Sidney foi encontrado morto próximo ao Aeroporto Velho, em julho de 1989;

    [Segundo Sobrevivente],² 8 anos de idade; no dia 11 de novembro de 1990, foi emasculado³. Sobreviveu;

    Ailton Fonseca do Nascimento, 8 anos de idade; desaparecido em julho de 1991, sendo encontrada só a ossada;

    Wandicley Oliveira Pinheiro, no dia 23 de setembro de 1990, foi sequestrado por três pessoas que o amarraram a uma árvore, o emascularam, seviciaram e estupraram; sobreviveu; está fazendo tratamento médico;

    Judirley da Cunha Chipaia, 13 anos de idade, emasculado e morto no dia 1º de janeiro deste ano [1992];

    Jaenes da Silva Pessoa, 13 anos, desaparecido no dia 1º de outubro de 1992 e encontrado morto dois dias depois, emasculado e seviciado.

    Quem assinava o texto, chamando a população para uma passeata que aconteceria a fim de repudiar o tratamento do Estado e pedir justiça aos meninos que vinham sendo mortos havia anos, era o Movimento Contra a Violência e a Favor da Vida, o qual mais tarde levaria à criação do Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses, existente até hoje, que viria a ser encabeçado por Rosa Pessoa, mãe de Jaenes, e receber apoio de grandes órgãos, como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

    Em 1992, a nova Constituição brasileira, datada de 1988, ainda engatinhava. Apenas em 13 de julho de 1990 tinha sido promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (

    eca

    ), um marco importante da redemocratização do país em vigor até hoje. Ao menos no papel, o

    eca

    garante a proteção igualitária de todas as crianças, e era especialmente com base nessa nova lei que o Movimento pedia proteção para os menores de Altamira.

    O Movimento, além de lideranças de base e familiares das vítimas, contava com líderes religiosos, um arranjo comum de se ver naquele período e naquela região, especialmente entre missionários adeptos da Teologia da Libertação — corrente de pensamento nascida na América Latina na década de 1960 e que, resumidamente, defende o envolvimento da Igreja em lutas sociais, sobretudo em prol dos mais pobres.

    Não era a primeira vez que a população saía às ruas pedindo justiça e proteção para as crianças de Altamira. Desde a emasculação do Segundo Sobrevivente, em 1989, a cidade se movimentava, e, aos poucos, formava-se uma articulação social em torno dos casos. Em janeiro de 1992, após a morte do garoto Judirley da Cunha Chipaia, também houve uma manifestação.

    O garoto, a quinta vítima listada na carta, morto e emasculado meses antes de Jaenes, era membro da importante etnia indígena chipaia. De acordo com o pai, José Marialves Chipaia, sua morte chamou atenção de órgãos como a Funai (atual Fundação Nacional dos Povos Indígenas), o que ajudou a dar visibilidade ao caso. Apesar disso, Antônia Melo, ativista de direitos humanos da região, contou em entrevista a Paula Lacerda que a primeira passeata que aconteceu em Altamira teria reunido apenas cem pessoas, a maioria conhecidas, que já estavam de alguma maneira mobilizadas pela situação. A população tinha medo de comparecer a uma manifestação em defesa de vítimas. Medo de quem? Não se sabia — mas já se podia imaginar que talvez fosse de pessoas poderosas. Afinal, estamos falando de Altamira, no coração da região amazônica, uma área de históricas disputas por terras e violências contra pessoas menos favorecidas. Se crimes tão violentos assim estavam acontecendo havia tanto tempo, a explicação mais lógica para a população era de que a impunidade seria resultado de ações de pessoas com recursos para não serem presas.

    Mesmo assim, a passeata realizada após a morte de Jaenes, em 9 de outubro de 1992, em frente à escola onde o garoto estudava, teria contado com cerca de dez mil pessoas, segundo Paula Lacerda. A população, desamparada pela Justiça, soltava um grito de indignação contido havia muito tempo.

    Se olharmos com atenção para a Carta aberta à comunidade altamirense, ela demonstra bem o início de tudo. O nível de abandono e negligência das autoridades de segurança na cidade era tão grande que nem sequer havia a noção do número exato de vítimas até aquele momento. As seis crianças citadas na carta eram as vítimas das quais se tinha conhecimento até então, mas o documento traz alguns erros de dados.

    Por exemplo, sabia-se que existiam meninos que haviam sido emasculados, mas sobrevivido. O texto informa que um deles, SS, foi atacado em 1990, mas o crime na verdade ocorreu um ano antes. Outro equívoco envolve a primeira vítima, José Sidney, dado como morto. Em reportagem de 10 de abril de 1993 da TV Liberal, afiliada da Rede Globo no Pará, o jornalista Emanuel Villaça descobriu que o garoto estava vivo. A notícia foi ao ar no Jornal Nacional:

    repórter

    : Com razão, estas crianças pouco falam e desconfiam de todo mundo. Um deles, o primeiro a ser atacado, era dado como morto, mas era a família que escondia o garoto com medo, medo de tudo. A senhora está pensando em sair de Altamira?

    mãe de josé sidney

    : Eu tô, porque tô com medo do que tá acontecendo, né? Porque eu tenho outros filhos, e eu tenho medo.

    O sentimento vivenciado pela mãe de José dá a tônica da insegurança que regia o dia a dia de Altamira. Para alguns, a maior chance de preservar a vida de um filho era mantê-lo invisível. Por anos, foi o que aconteceu, não apenas com José, mas também com outras crianças vítimas de crimes. Algumas, tristemente, seguiram nessa condição mesmo depois de mortas.

    Número de vítimas

    Numa publicação do Comitê datada de 1996, quatro anos após a morte de Jaenes, o número de vítimas catalogadas subia assustadoramente para 26 crianças. De acordo com o Comitê, elas se dividiam em quatro grupos principais: nove sofreram tentativas de sequestro; cinco desapareceram; oito foram assassinadas — algumas emasculadas, outras cujos corpos só foram encontrados em estado avançado de putrefação ou restando apenas as ossadas; e quatro sobreviveram às emasculações. Esse relatório também mencionava que um dos sobreviventes, de Anapu, município vizinho, não pôde ser identificado, pois, como José Sidney, era mantido escondido pela família. Não é nem possível ter certeza se esse quarto sobrevivente realmente existia ou se era um boato encontrado pelo Comitê. Sendo assim, o número de sobreviventes oficial acaba sendo três: José Sidney, SS e Wandicley.

    Isso reforça a dificuldade de saber ao certo quantas crianças foram alvo de ataques não só em Altamira, mas também no entorno. Quando entendemos que os dados oficiais não computavam os nomes dos desaparecidos, fica mesmo difícil calcular. É possível inclusive que existam vítimas mais antigas, que tiveram medo ou vergonha de falar sobre os traumas que passaram naqueles anos.

    De acordo com a pesquisa de Paula Lacerda, que se dedicou especialmente em entender as dinâmicas e origens dos movimentos sociais das famílias de Altamira, desses 26 casos que ocorreram entre 1989 e 1993, apenas doze foram registrados ou estimularam a abertura de inquérito policial. Ou seja, catorze não existem oficialmente, seja por descaso das autoridades, seja por falta de iniciativa das famílias em denunciar — por medo, por serem analfabetas e não terem acesso à burocracia formal ou por pura descrença no sistema. Era cada um por si, e, se o filho voltasse para casa vivo após uma tentativa de sequestro, só restava agradecer. Esses eram os sortudos. E esse era o clima de abandono que a cidade vivenciava.

    E é também por isso que os autos dos processos, tão técnicos, às vezes nos contam uma história, enquanto as lembranças das famílias, tão cheias de dor, narram outra. É impossível não pensar que, por trás de cada número e nome dado, há um coração. A pergunta que fica é: como é possível que tantas crianças tenham sido atacadas e, em alguns casos, mortas de forma tão violenta, às vezes ficado desaparecidas por anos a fio, e isso não tenha se tornado um escândalo nacional? Como uma cidade chegou a tal ponto de negligência das autoridades? Tudo nesse caso e na forma como os altamirenses viviam (por exemplo, andando armados sem ter porte e convivendo com pistoleiros havia décadas) me parece sintoma do mesmo problema: a falta de estrutura governamental.

    A história de Altamira e a ausência do Estado

    As diferenças profundas do Norte em relação a outras partes do país estão na raiz de diversas das dificuldades que atravancaram o caso dos meninos de Altamira. Para entendê-las, precisamos voltar um pouco no tempo e explicar a história de Altamira.

    A 830 quilômetros de Belém, Altamira é cortada pelo rio Xingu, um símbolo do local. Aliás, o Norte do Brasil todo é entrecortado por rios, o que obriga as estradas que interligam cidades a fazerem longos desvios. Desde o século

    xvi

    , com a colonização europeia, o Pará foi visto como um local para extração de diversas matérias-primas e, no século

    xix

    , se tornou foco de interesse pelo potencial de extração do látex dos seringais para a produção de borracha, no que ficou conhecido como Ciclo da Borracha. Após um declínio, houve novo ciclo na década de 1940, por conta da Segunda Guerra Mundial. Com o fim do conflito, outras matérias-primas da região passaram a chamar atenção. Para transportá-las, eram necessárias estradas que conectassem o Norte ao restante do país.

    Por isso, na década de 1970, no auge da ditadura militar, Altamira virou palco de um projeto nacional dos mais ambiciosos: a construção da rodovia Transamazônica, até pouco tempo atrás (e ainda hoje em alguns trechos), uma enorme estrada de terra no meio da floresta.

    De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (

    ibge

    ), em 1970, Altamira contava com 15 mil habitantes, entre os quais indígenas de diversas etnias, tais como a chipaia (à qual pertencia Judirley, menino morto e emasculado no início do ano de 1992, meses antes de Jaenes). A população era composta de descendentes dos colonizadores europeus e de negros e quilombolas. Havia ainda migrantes de diversas regiões do país, como colonos do Sul e de Minas Gerais, mas principalmente do Nordeste, a maioria do Rio Grande do Norte e Ceará, que haviam chegado à região em busca de trabalho: primeiro no Ciclo da Borracha e mais tarde na construção da grande estrada. Após o início das obras da Transamazônica, em 1980, Altamira já contava 46 mil habitantes.

    O tamanho de Altamira é impressionante: quase 160 mil km² de área, o que a torna o município mais extenso do Brasil. Pequenos países, como Portugal, caberiam inteiros dentro dela. Mas, como uma terra cheia de contrastes, ela conta com apenas cerca de 126 mil habitantes, e seu centro urbano fica bem no meio do estado do Pará, no nordeste da cidade, quase no limite do município. Em outras palavras, é como se 99% da população vivesse no canto superior direito. Boa parte do município para o interior é composta de distritos espalhados pela Floresta Amazônica, nos quais moram agrupamentos menores de pessoas — na maioria indígenas.

    Nos últimos cinquenta anos, Altamira não teve um crescimento populacional gradual. Seu inchaço foi sempre à base de saltos descontrolados, sem planejamento algum, resultado de grandes obras governamentais. A cada governo que chega com um ideal desenvolvimentista, resiste a sina tão frequente no Norte do país: a região é sempre vendida como um oásis, um eldorado brasileiro a ser conquistado, ignorando as populações que lá habitam e que são soterradas por projetos faraônicos. O mais recente, que tornou a cidade cenário de inúmeras reportagens de TV, foi a construção da barragem de Belo Monte, a partir de 2010. O projeto, porém, já vinha do período dos governos militares. O empreendimento foi um fracasso e impulsionou um novo boom populacional. Hoje, Altamira figura na lista de municípios mais violentos do Brasil.

    Na visão de Paula Lacerda, a ausência de autoridade é estratégica, seletiva: é o que permite justamente escolher quais inquéritos são abertos, quais ficam parados, quem é investigado. Abandonos, como o fato de haver uma única delegacia com uma única viatura, frequentemente desabastecida, justificam, por exemplo, projetos de um suposto desenvolvimento, como Belo Monte.

    Em muitos casos — inclusive de assassinatos de liderança —, a polícia age não para investigar, mas para proteger aqueles que seriam os mandantes. Assim, dá para entender por que várias possibilidades de desenvolvimento de processos, denúncias e inquéritos não foram para a frente: não havia interesse político ou talvez eles mexessem com pessoas que causariam problemas depois.

    Para alguns, essa visão sobre a falta intencional de estrutura na cidade pode parecer conspiratória, mas explica bem o sentimento da população de Altamira, especialmente em relação aos casos do início da década de 1990. Isso fica evidente numa fala de Rosa Pessoa, mãe do garoto Jaenes, ao programa Repórter Record que foi ao ar em 2004.

    […]

    rosa pessoa

    : Quinze delegados passaram na época dos crimes. Trocavam de delegado como se trocasse de… De roupa, né?

    repórter

    : Por quê?

    rosa pessoa

    : É uma pergunta, né? Por que esses delegados [que começavam a investigar] não ficavam…? […] E você chega na delegacia e você não encontra uma ocorrência.

    repórter

    : Desapareceram as ocorrências?

    rosa pessoa

    : Desapareceram as ocorrências… Os inquéritos foram feitos só de cinco […] devido à nossa grande luta. E a gente conseguiu de cinco, enquanto foram 26 casos que aconteceram aqui no município […]

    Para as famílias, era isso o que causava mais estranheza. Entre os 26 casos coletados pelo Comitê nos anos que se seguiram, com parentes tentando entender o que teria acontecido com seus entes queridos desde 1989, muitos envolviam relatos de famílias que teriam procurado a polícia, mas se espantado, algum tempo depois, com o sumiço de boletins de ocorrência e a paralização das investigações. A invisibilidade dos casos faz com que atualmente seja até difícil estabelecer qual era a raça ou a etnia das vítimas. Diversas crianças não tinham certidão de nascimento nem qualquer outro documento, e não temos fotos delas. Mas é possível afirmar que muitas hoje em dia não seriam identificadas como brancas e que ao menos uma, Judirley, era indígena.

    De minha parte, após tanto tempo lendo os autos do processo, posso afirmar: as vítimas oficiais são apenas cinco — e essa conta será explicada melhor no decorrer do livro. O que teria acontecido com as outras investigações? Se não temos resposta a tantas ausências, no meio do processo criminal dos meninos emasculados de Altamira, há uma presença que chama a atenção: dos 71 volumes que compõem o processo, os autos do caso Evandro aparecem em nada menos do que 24 — quase um em cada três.

    Como comentei antes, os dois casos se relacionam de forma profunda, mas ao mesmo tempo não tão evidente quanto a imprensa e as autoridades davam a entender à época. Dados os casos aparentemente similares em várias regiões do Brasil, havia quem acreditasse que as respostas para as muitas perguntas que ficaram em aberto em Guaratuba estariam em Altamira.

    E, depois de dois anos mergulhado no caso Altamira, sinto que finalmente tenho uma resposta sobre como essas histórias estão conectadas. Mas há um longo caminho para chegar até lá. O que posso dizer é que, por trás da ligação entre os dois casos, existe a tese de que havia um grupo poderoso interessado em que esses crimes jamais fossem devidamente esclarecidos, e ele ocupava o coração do poder de Altamira. Para entendermos isso, precisamos compreender um pouco mais a história da cidade e os rumos que as investigações tomaram a partir da morte de Jaenes.


    1 A palavra pente aqui pode gerar um pouco de estranhamento. Em minhas conversas com Rubens, acreditamos que isso poderia ter sido um erro de datilografia do escrivão. Contudo, depois de o podcast ter ido ao ar, recebi várias mensagens de pessoas dizendo que, a depender da região do corpo, algumas pessoas poderiam chamá-la de pente mesmo.

    2 Uma das vítimas pediu para que seu nome não aparecesse, por isso, vamos sempre nos referir a ela como O Segundo Sobrevivente (SS).

    3 Na verdade, ele tinha 10 anos, e o crime aconteceu um ano antes, em 16 de novembro de 1989.

    4 Apesar de no folheto original estar assim, essa informação está errada. Como veremos no Capítulo 3, Ailton na verdade desapareceu em maio de 1991 e sua ossada foi encontrada 46 dias depois, em junho. Esse equívoco é um exemplo (dentre tantos) da precariedade de informações que as famílias das vítimas vivenciavam.

    5 Assim como no caso de Ailton, o caso de Wandicley também é marcado por uma série de incongruências em seus detalhes, que serão melhor explicadas nos capítulos seguintes. Por ora, basta dizer que, em alguns de seus depoimentos, Wandicley falou que teriam sido quatro agressores, e não três. O fato de seu relato dar conta de que teria sido atacado por um grupo é fundamental para entender a dinâmica de como esse caso se desenrola.

    6 Formalmente, o Comitê não é desdobramento direto do Movimento, já que inclui apenas familiares de vítimas. A professora e antropóloga Paula Lacerda, porém, explica que, politicamente, é possível fazer essa afirmação.

    2. Os poderosos


    O consórcio da morte

    Historicamente, a região Norte do país é marcada por disputas de terras que envolvem sérios riscos de violações de direitos humanos, em especial de pessoas mais vulneráveis. Em Altamira, isso não é diferente, e essa apreensão social é sentida por todos os habitantes, de uma forma ou de outra.

    Durante nossas pesquisas para o podcast, sentimos que era importante conversar com pessoas que conhecessem bem essa dinâmica das disputas de poderes e terrenos nos bastidores — afinal, precisávamos entender melhor como esse medo de grupos pode­rosos se materializava de forma mais clara naquele contexto. Foi nesse esforço que pudemos ouvir a professora Kátia Maria dos ­Santos ­Melo,⁷ da Universidade do Estado do Pará, que nos falou sobre o consórcio da ­morte.

    O consórcio da morte era um consórcio organizado pelos donos de terras, pelos donos de garimpo... Essas pessoas que se viam incomodadas, por exemplo, com os indígenas, com os pescadores, com os quilombolas etc., e com os movimentos sociais, que lutam pelo quê? Pelo direito no território. E aí eles estabeleceram o consórcio da morte. Como é esse consórcio? Você tá incomodando fazendo essas entrevistas que tá fazendo, esses podcasts, tá criando muito alarde? Tá expondo? Aí eles fazem uma lista. E eles faziam com que essa lista vazasse, então tu até sabia antes, só que quem podia sair fora do território saía, quem não podia, não saía, morria. Aí eles matavam, como mataram a Dorothy,⁸ o Dema e muitos outros.

    Então é um consórcio, um consórcio quer dizer que eu pago o preço pra que tu sejas assassinada. E aí tem os caras que matam, os profissionais, os jagunços, os caras matam mesmo. Eles são profissionais disso.

    E eles mandam muitos recados. O grupo com a Antônia Melo,⁹ elas te falam com riqueza de detalhes. Porque elas vêm desse movimento da Transamazônica da década de 70, 80, elas estão nesse chão. E aí elas vão te contando, o que que passam as mulheres, como que as crianças estão nesse contexto. Elas vão te trazendo tudo isso, depois elas trazem Belo Monte, elas trazem a relação com os indígenas, e elas estão lá, são mulheres incansáveis, já foram ameaçadas várias vezes porque incomodam.

    E hoje os conflitos continuam, né. A finalização da obra deixou um ativo, um passivo socioambiental sem precedentes. Nessa geração, ­Altamira e a região lá, não se recuperam, não se recuperam. Os piores índices, considerando o número de pessoas, de habitantes, estão concentrados em Altamira. Assassinato contra a mulher, aí você vai entrar de novo, a violência contra crianças e adolescentes... Tá tudo lá, são os piores índices.

    De um lado então temos obras de estruturas milionárias, grande impacto social e forte interesse econômico nas mãos de uma minoria. De outro, a população local que sofre todas as consequências sem ter qualquer controle. Foi nesse contexto que os movimentos sociais em Altamira se tornaram essenciais para a busca por direitos fundamentais. E se alguma dessas lideranças passava a incomodar demais, tornava-se alvo do consórcio da morte. Essa é a ameaça constante que marca a região por décadas.

    Então, quando suas crianças começaram a ser mortas de forma violenta, as famílias das vítimas já tinham vivência de uma violência muito específica. Não seria um absurdo acreditar que os mesmos autores pudessem estar envolvidos. Mas algo precisava ser feito, e as pessoas passaram a reivindicar justiça.

    O novo delegado

    Com a população tomando as ruas de Altamira, tornou-se impossível para o poder público continuar a ignorar os casos. Assim, a Secretaria de Segurança do Pará designou um renomado delegado de Belém para conduzir as investigações: Brivaldo Pinto Soares ­Filho — falecido em 2017, será sempre um personagem-chave cheio de mistérios. Sua chegada a Altamira significou um ponto de virada para as famílias das vítimas, peças essenciais durante toda a investigação conduzida pelo delegado. Pela primeira vez após mais de três anos de crimes, alguém parecia disposto a fazer alguma coisa; mas, claro, enfrentaria resistência.

    Ao chegar, o delegado tinha, entre as poucas informações disponíveis, as menções na mídia ao Segundo Sobrevivente — o que, para Maria Ivonete Coutinho da Silva, conhecida na região como professora Netinha e importante ativista dos direitos humanos e da educação, marca o começo dos casos. Isso porque o caso da primeira vítima, José Sidney, não fora divulgado na imprensa. SS, por sua vez, era filho de um homem chamado Amadeu, que trabalhava como caseiro na Associação Atlética Banco do Brasil, frequentada pela sociedade de Altamira.

    Começou a criar corpo, uma notícia. Porque não era o cara que estava lá na periferia, ele estava dentro de um espaço de comunicação, um espaço em que as coisas são mais formalizadas, contou Netinha. É muito importante [notar] que o caso se desencadeou, a movimentação, a organização, a busca, a partir do Segundo Sobrevivente. E é estratégico. É o Banco do Brasil, ali estavam os empresários, estava a juíza. O filho do caseiro foi emasculado. E o menino volta com vida para contar a história.

    O caso foi noticiado no Diário do Pará no dia 18 de novembro de 1989, quando já havia diversas vítimas (é importante notar que nem todas são listadas na carta do movimento que apresentamos no Capítulo 1 ou aparecerão na investigação):

    tarado ataca e mata três crianças em altamira

    A quarta vítima sobreviveu e está internada em Belém

    Um maníaco sexual está atacando crianças na cidade de Altamira, em geral, meninos na faixa etária de 8 a 12 anos. Três crianças por ele atacadas morreram, e outra encontra-se internada no Hospital São Paulo, onde ontem foi submetida a uma delicada cirurgia. A população está apavorada com os últimos acontecimentos.

    Na tarde de anteontem, por volta das 15h30, o maníaco sexual, em uma bicicleta, agarrou o menor de 8 anos, [SS], filho do mineiro Amadeu, casado, de 38 anos, residente na rodovia Eneias Acioli, mais precisamente na

    aabb

    — Associação Atlética dos Funcionários do Banco do Brasil, onde ele trabalha como caseiro. O tarado segurava uma navalha, pôs o garoto na garupa da bicicleta e rumou para fora da cidade. No mato, estuprou a criança e, em seguida, usando a navalha, fez a emasculação total, ou seja, retirou a bolsa escrotal, os testículos e a uretra da vítima.

    Pensando que o garoto estava morto, a exemplo do que foi feito com as outras três crianças, o tarado fugiu. Contudo, [SS] sobreviveu ao ponto de ainda poder contar tudo o que lhe foi feito pela besta fera.

    Pode parecer estranho o fato de a matéria falar de vítimas mortas que não aparecem, por exemplo, nas investigações e na carta. Mas Netinha explicou: Tinha outros aqui, que vinham para a reunião [do movimento das mulheres de Altamira], não falavam direito. Mas tem outros que foram perseguidos, teve outros que foram sumidos. Então, tem o sumiço daqueles que nunca apareceram. E que a família se desesperava. E o movimento começa aqui com o Segundo Sobrevivente. Mais uma vez, é o movimento da sociedade civil que chama a atenção: "Quando nós começamos a pressionar e ir para cima, chamar a imprensa e fazer documento, os casos se intensificam. A partir do Judirley e do Jaenes,¹⁰ esses meninos já eram encontrados com sevícias sexuais, com muita violência, arrancada a unha, furados os olhos… há uma intensificação do ritual macabro, diferente dos outros".

    Ainda segundo Netinha, um caso que chama atenção antes do de Jaenes é o de Ailton Fonseca do Nascimento, a terceira vítima listada na carta do movimento e primeira dada como morta, em 1991. Isso porque sua ossada foi enviada para análise em Belém, mas o laudo jamais foi emitido pelo Instituto Médico Legal (

    iml

    ), e o corpo nunca foi devolvido para que a família pudesse enterrá-lo. A ossada é atualmente dada como perdida. Ou seja, o descaso do Estado com as crianças não acabava no momento em que elas morriam.

    Autópsia do corpo de Jaenes

    O inquérito sobre Jaenes foi aberto em 4 de outubro de 1992, um dia depois de seu corpo ter sido encontrado e velado. Existe nos autos um ofício do delegado Brivaldo, datado de 14 de outubro, requisitando que o corpo fosse exumado para um novo exame mais detalhado.

    A resposta veio logo no dia seguinte, 15 de outubro, assinada pelo médico-legista Armando Aragão. As fotos da exumação já indicavam que o corpo havia se deteriorado bastante. Por conta disso, o dr. Aragão não pôde responder com precisão a tudo. O prontuário escrito à mão pelo médico responde às perguntas do delegado Brivaldo:

    Ao Delegado Brivaldo Pinto,

    1) Se o corpo apresenta lesão?

    Resposta: ferida incisa com amputação parcial do pênis (a 1 cm da base de implantação) e amputação total da bolsa escrotal.

    2) Se houve ato libidinoso anal?

    Resposta: prejudicada em virtude do avançado estado de decomposição do cadáver, impedindo avaliação precisa.

    3) Se foi encontrada alguma substância tóxica?

    Resposta: idem acima.

    4) Se o corte efetuado na vítima tem características de profissional?

    Resposta: Não.

    5) Qual o instrumento cortante que poderia ter sido utilizado?

    Resposta: Navalha, faca bem afiada etc.

    6) Se o órgão retirado pode servir para ser implantado em outra pessoa e qual o tempo necessário para isso?

    Resposta: Não.

    Comentário final: Possivelmente, a causa da morte não decorreu da emasculação (indeterminada, devido ao adiantado estado de putrefação).

    Dificuldades como essa, de obter respostas precisas, estavam longe de ser as únicas enfrentadas por Brivaldo. Em entrevista a ­Paula Lacerda em 2010, o delegado relatou que seria muito difícil obter informações na cidade naquela época, pois as pessoas tinham medo de falar. Além disso, pontuou que haveria um problema de infraestrutura, numa cidade muito fechada em si: Em Altamira, como em qualquer cidade do interior, você não tem nenhuma estrutura para quem chega lá. Ou você bota a tua rede em cima da mesa e dorme, ou você aceita a oferta do prefeito de dormir no hotel da cidade com a prefeitura pagando.

    Assim, ia-se criando uma profunda conexão não só entre as autoridades locais (prefeitura, juiz, delegado etc.), como também com os poderosos, que são pessoas que não têm necessariamente cargos políticos, mas talvez sejam, por exemplo, o dono do único hotel ou posto de gasolina.

    Paula Lacerda definiu isso como uma configuração de poder econômico e político, o que ajuda muito a entender o medo da população e o abafamento dos casos. O prefeito não queria que esses casos fossem conhecidos, que saíssem de Altamira, para não sujar a reputação da cidade. O governador, por sua vez, não queria que tivessem repercussão para que isso não se voltasse contra seu ­governo, afirmou.

    Ela ainda disse que também havia um sentimento de que pessoas poderosas que não eram conhecidas estivessem por trás desses crimes ou associadas a essas autoridades. Afinal, se aqueles crimes ocorriam por tantos anos numa cidade tão pequena, sem ninguém fazer nada, os criminosos só podiam ser gente importante. Haveria provavelmente pistoleiros, policiais, juízes e promotores em sua folha de pagamento não oficial. Qualquer movimento em falso poderia ativar uma rede de inimigos invisível.

    Com o histórico dos casos, Brivaldo passou a desenhar o perfil de um maníaco sexual que agiria na cidade e teria prazer em abusar de meninos com requintes de crueldade. Ele não atuaria sozinho e, provavelmente, gozaria de algum prestígio social. Passou, então, a ouvir testemunhas — e uma delas começaria enfim a dar contorno para os casos.

    Josivaldo Aranha

    No mesmo dia em que Juarez Gomes Pessoa prestou seu primeiro depoimento, o delegado Brivaldo ouviu também Josivaldo Aranha da Silva, de 22 anos. Josivaldo narrou uma estranha situação pela qual teria passado enquanto catava lenha numa estrada localizada na área rural de Altamira, em 3 de janeiro de 1992, dia em que o corpo de Judirley foi encontrado.

    Então o declarante observou que havia um carro tipo picape, carroceria de madeira, [de] cuja cor não se lembra bem, cuja placa não anotou, ­parado debaixo das árvores; que havia dois elementos dentro do carro e um do lado de fora encostado na porta; quando o declarante passava próximo ao carro, esse que estava do lado de fora, alto, magro, cabelos meio lisos e meio aloirado, apontou uma arma para o declarante e disse: Olha, se tu contares que nos viste aqui, ou que viste alguma coisa, vamos te matar onde quer que tu te escondas, em qualquer estado do Brasil; que o declarante respondeu: Descobrir o quê?; ele retrucou: Cala a boca; quando o declarante se afastou um pouco do local, um deles gritou: Olha o que eu falei pra você.

    Que o declarante prosseguiu sua caminhada com a lenha para sua mãe de criação. Quando chegou lá, ela lhe perguntou se ele já sabia de um crime que tinha acontecido e que o corpo de um garoto havia sido achado lá para o lado que o declarante havia ido buscar lenha, tendo [ele] respondido que estava sabendo naquela hora, mas também não comentou nada do que tinha se passado.

    Que no mês de março de 1992, data que não se recorda, por volta das 18 horas, passando a entrada da Betânia, os mesmos elementos se encontraram com o declarante que vinha de bicicleta e o fizeram parar. Um deles mostrou-lhe uma arma e disse: Estás lembrado daquele dia, que nós dissemos se tu falasse alguma coisa nós te matava [sic]. E logo soltou a bicicleta do declarante e disse: Some, some, some.

    Que, de outra feita, um elemento baixo, gordo, moreno, cabelos lisos, sem barba, encontrou-se com o declarante lá no Porto da Vitória, fê-lo parar e disse: Tu és aquele que tiramos uma brincadeira contigo lá na entrada da Betânia, quando tu vinhas de bicicleta, tendo o declarante respondido afirmativamente. Então esse gordo lhe disse: Aquele loiro tem uma granja e uma horta lá perto do Posto Gomes.

    Esse relato de Josivaldo Aranha era relevante para o delegado Brivaldo por uma série de motivos. O primeiro: as pessoas que viram os corpos de meninos emasculados nos locais em que foram encontrados sempre afirmavam que eles pareciam ter sido deixados no local, visto que nunca era possível identificar sangue no solo. (Apesar de, em nenhum dos casos, existir um laudo de exame do lugar onde o corpo foi achado, apenas fotos de algumas vítimas nos locais em que foram encontradas.)

    O segundo: temos aqui alguém afirmando que, no mesmo dia e em local próximo àquele onde o corpo de Judirley foi encontrado, foi ameaçado com arma por três pessoas. Uma delas, que aparentava ser o líder do grupo, seria um jovem magro e loiro que teria uma propriedade perto do Posto Gomes, cujo dono era Amadeu, primo do pai de Jaenes. Então, o suspeito principal era loiro, tinha uma picape, podia morar próximo ao posto da família Gomes e não agia sozinho.

    Oficialmente, Brivaldo estava investigando o caso do garoto Jaenes, morto em outubro de 1992. Mas, ao notar que conseguira uma informação valiosa em outro caso, o do garoto Judirley, morto em janeiro de 1992, o delegado suspeitou de que teria mais respostas se olhasse para outros crimes e que todos os crimes teriam o mesmo algoz. Apesar dessa crença, por motivos desconhecidos, ele não incluiu nos autos os inquéritos referentes às vítimas anteriores, embora se suponha que tenha ao menos os olhado. Essa juntada só veio a acontecer muito tempo depois. Ainda assim, não havia nada mais certeiro do que mirar aqueles que foram emasculados e sobreviveram para contar suas histórias — e foi o que Brivaldo fez.

    O terceiro sobrevivente

    Enquanto Brivaldo fazia suas investigações, Cezário Loiola Pinheiro, de 65 anos, e seu filho Wandicley, na época com 11, se encontravam em Belém. Wandicley era conhecido como o terceiro sobrevivente emasculado. Havia sido atacado em 23 de setembro de 1990. Assim como SS, teve o pênis e a bolsa escrotal totalmente cortados.

    Por causa da violência que sofreram, ambos passaram anos sendo atendidos gratuitamente na capital por um renomado médico cirurgião, dr. Lourival Barbalho, irmão do então governador Jader Barbalho. Lourival buscou usar próteses para realizar uma reconstrução peniana em ambas as vítimas. SS morava em Altamira e ia para Belém a fim de ser atendido quando necessário. Já Wandicley passou a morar em Belém após o ataque, de forma que pudesse ficar mais próximo do médico.

    Por esse motivo, os depoimentos de Wandicley e seu pai, nos dias 20 e 21 de outubro de 1992, foram tomados na capital pela delegada Nilma Nazaré de Almeida Alves. Cezário, o pai, foi o primeiro a falar. Narrou brevemente como teria sido o ataque que o filho sofreu, além de fornecer outras informações. Wandicley prestou depoimento no dia seguinte e narrou o que lembrava. Alguns pequenos detalhes divergiram de um depoimento para o outro — e o da vítima, claro, era tido como o de maior importância. O garoto começou contando que, enquanto brincava com o primo, Jailson, foi agarrado por um desconhecido armado com uma faca, de cor branca, estatura média, cabelos lisos (pretos), penteados para trás, sobrancelhas fartas e rosto cheio e forte, que o levou a uma bicicleta e o amarrou na garupa. Após um trajeto que não reconhecia, numa clareira, ele encontrou mais um homem de olhos escuros, cabelos pretos e ondulados, sobrancelhas fartas, com bigode, de rosto fino, estatura média. Apesar de ter sido então vendado, ele conseguiu perceber que depois disso vieram ainda mais dois homens — e aí começaram as agressões.

    […] recebeu uma pancada em sua cabeça aplicada pelo homem que o havia conduzido na bicicleta; que tal homem usou para isso um pedaço de pau; que o informante, após o golpe em sua cabeça, caiu ao chão. Foi neste momento que o desconhecido moreno de bigode o segurou no braço, ocasião em que o desconhecido de cor branca retirou o short do informante e com a faca […] cortou-lhe os órgãos genitais; que nesse momento, devido à dor, o informante perdeu os sentidos; que somente veio recobrar os sentidos algum tempo depois, sendo que ao retornar encontrava-se sozinho e todo ensanguentado; que, apesar da dor que sentia, levantou-se e passou a caminhar dentro do mato em busca de ajuda; […] conseguiu chegar em uma casa onde pediu ajuda, sendo então levado a um hospital.

    Anexado a esse depoimento de Wandicley, há um retrato falado que aparenta ter sido feito com fotografias de partes de rostos de várias pessoas, como um quebra-cabeça facial. Ao que tudo indica, foi produzido pela polícia com base nos relatos do garoto. No depoimento prestado no dia anterior, o pai comentara ter mostrado o retrato falado a seu outro filho, José Jacinto de Oliveiro Pinheiro, que teria dito conhecer alguém parecido: Luiz Capricho [sic], que mora no mesmo bairro do declarante […] que […], diante de tal informação, passou a investigar tal homem, tendo na ocasião descoberto que se tratava de um pistoleiro que morava sozinho.

    Luiz Kapiche e os Gomes

    Luiz Capricho era, na verdade, Luiz Kapiche Neto, um empresário em Altamira, mas sempre lembrado como radialista e advogado — profissão que exercia sem formação. Isso não era exatamente incomum para a época, especialmente em cidades mais isoladas e sem estrutura como Altamira. Apesar de não ter formação em direito, era conhecido por seu domínio das leis, o que lhe garantia um reconhecimento local como advogado. E ele frequentemente resolvia problemas para uma família em especial: os Gomes.

    Foi na investigação do menino indígena Judirley da Cunha Chipaia que o nome de Luiz Kapiche apareceu pela primeira vez. Ele havia sido chamado para depor no caso em 8 de janeiro de 1992, cinco dias após o corpo do garoto ter sido encontrado. O motivo é incerto, mas é provável que tenha a ver com uma suspeita em torno de um carro que poderia ser dele e que teria sido visto por algumas testemunhas no local em que Judirley desapareceu e, posteriormente, foi encontrado morto.

    Em certo ponto do depoimento, ao ser perguntado se já havia tido problemas com a Justiça no estado do Pará, Luiz Kapiche Neto afirmou ter tido prisão decretada junto a Amadeu Gomes e Araquém Gomes, por terem sido supostamente acusados de ameaçarem de morte a então juíza desta comarca.

    Amadeu, como já falamos, era um rico fazendeiro e empresário da cidade, dono do posto de gasolina que levava seu sobrenome. Era irmão de Araquém, e também de Geraldo Gomes, do advogado ­Arnaldo Gomes, que tinha concorrido a vereador nas eleições municipais de 1992, e de Perilo Gomes. Foi Perilo quem levara Juarez de carro para votar no dia 3 de outubro, dia em que seu filho Jaenes foi encontrado morto e emasculado na fazenda dos Gomes.

    O delegado Brivaldo achou que havia algo de estranho na família Gomes, especialmente no núcleo do poderoso Amadeu. Luiz Kapiche poderia ser um pistoleiro a mando de Amadeu, fazendo pose de advogado mesmo sem ter formação, alguém dotado de coragem suficiente para ameaçar de morte a juíza da cidade. Amadeu era primo de Juarez, pai da vítima Jaenes. Seria possível ele estar por trás da morte de um parente?

    Envolver o nome dos poderosos Gomes era arriscado — e a população de Altamira sabia bem disso. Enquanto essa suspeita começava a correr pela cidade, a professora Netinha participava de uma reunião com movimentos sociais para que os casos das crianças mortas e emasculadas ganhasse maior atenção das autoridades. Na entrevista que me concedeu, ela me contou sobre uma ocasião em que o medo de talvez se estar lidando com gente poderosa tornou-se bastante real.

    Uma vez, em 1992, planejávamos ir para uma audiência pública na Câmara denunciar o caso e, no outro dia, seguiríamos para Belém […], fazer a denúncia. Então, eu fiquei com o padre Sávio¹¹ na pastoral terminando os documentos. Quando finalizamos, ele foi tomar banho. De repente, a luz se apagou. Eu fiquei apavorada. Havia uma escada do centro pastoral que dava para a rua, onde ficava exatamente a delegacia, [e a casa] dos Gomes, tudo. Na hora que apagou a luz, o telefone tocou. Começaram as ameaças: Não pense que eu não tô te vendo, Vagabunda, Vamos te pegar, E, quando tu tiver um filho, tu vai ver…. Eu fiquei tão apavorada, tão apavorada. Eu sempre te acompanho, eu te vejo indo para Brasília. Aquele foi o dia que eu tive mais medo, porque […] o tom da voz, o jeito de falar, as palavras… foi realmente de muita ameaça.

    Poderia aquela ligação ser de alguém ligado à família Gomes? Essa ligação nunca foi investigada, não sabemos a data exata em que ela ocorreu e tudo o que temos sobre esse episódio é o relato da professora. E essa memória é uma marca importante de como era o clima de apreensão da época, de medo dos poderosos — fossem eles os Gomes ou quaisquer outros.

    O fato é que, enquanto a população e o delegado Brivaldo pro­curavam o Monstro de Altamira, pareciam sempre se deparar com um mesmo sobrenome: Gomes. Mas estariam eles por trás de um consórcio da morte, responsável por aterrorizar a população e matar crianças? E, se estivessem, quem era o homem loiro mencionado por Josivaldo Aranha?


    7 Kátia Maria dos Santos Melo é graduada em Serviço Social pela Universidade da Amazônia e mestre e doutora em Política Social pela Universidade de Brasília. Filha de indígenas e trabalhadores da Amazônia, é conhecida na academia e nos movimentos sociais da região. Durante a produção do podcast, ela foi entrevistada pela jornalista Isabela Cabral, que fazia parte da equipe.

    8 Uma das vítimas do consórcio da morte é Dorothy Stang, uma missionária norte-americana naturalizada brasileira que, desde os anos 1970, militava com a pastoral da terra e os trabalhadores no Xingu — comum aliança presente em Altamira em que as lideranças católicas se somavam aos movimentos de base. Dorothy, assim como a professora Netinha, a ativista Antônia Melo e Rosa Maria Pessoa, mãe de Jaenes, foi uma das mulheres que venceram o medo para lutar por justiça. E, por isso, incomodava. Ela foi assassinada em 2005 com seis tiros por pistoleiros a mando de um poderoso fazendeiro em Anapu, município vizinho de Altamira — o mesmo do anônimo de Anapu, criança vítima do caso dos emasculados e até hoje desconhecida.

    9 Antônia Melo foi uma das ativistas que auxiliaram nas manifestações de famílias de Altamira após os casos das crianças mortas e emasculadas, e é conhecida como uma dos maiores figuras de movimentos sociais da cidade. Durante a década de 1990, assumiu o cargo de Conselheira Tutelar em Altamira e, em 2008, fundou o Movimento Xingu Vivo para Sempre, como forma de resistência à construção da hidrelétrica de Belo Mento na cidade.

    10 De acordo com os dados oficiais, José Sidney, 8 anos, o primeiro sobrevivente, foi atacado em agosto de 1989. Seu caso nunca foi investigado, então não há um inquérito em seu nome. O Segundo Sobrevivente, 8 anos, foi atacado em novembro de 1989. Wandicley, 9 anos, o terceiro sobrevivente, foi atacado em setembro de 1990. A quarta vítima seria Ailton Fonseca do Nascimento, 10 anos, desaparecido em maio de 1991 e cuja ossada foi encontrada, junto com seus pertences, no mês seguinte. O menino indígena Judirley da Cunha Chipaia, 13 anos, foi morto em janeiro de 1992. Após ele, Jaenes da Silva Pessoa, 13 anos, foi assassinado em outubro de 1992. Ou seja, dos três assassinados até então, apenas foi possível ver as marcas de violência nos corpos de Judirley e Jaenes.

    11 Padre italiano que imigrou para Altamira em 1973, no começo da construção da Transamazônica. Era coordenador da Pastoral no município na época em que Jaenes da Silva Pessoa foi morto. Desde então, participou das mobilizações com os familiares das vítimas e se empenhou para levar os casos às autoridades. Assim como Dom Erwin Kräutler, era adepto da Teologia da Libertação, corrente de pensamento que defende o envolvimento da Igreja em lutas sociais. Foi uma importante liderança religiosa em Altamira, especialmente nos movimentos envolvendo busca por justiça nos casos dos meninos emasculados.

    3. O suspeito


    O sumiço da ossada de Ailton

    Em novembro de 2021, passei duas semanas em Altamira com Rubens tentando conversar com familiares das vítimas e entender mais profundamente a história que seria contada. Nessa oportunidade, pudemos visitar locais, conversar com pessoas e entender melhor o desafio que estava diante de nós.

    Altamira havia mudado muito nesses trinta anos. A cidade tinha crescido consideravelmente depois de Belo Monte, mas ainda era marcada por extensas regiões com casas simples e ruas de terra.

    E foi em uma dessas ruas que pude conhecer dona Irene, irmã do menino Ailton, desaparecido em 5 de maio de 1991, cuja ossada fora encontrada com seus pertences 46 dias depois. Irene era criança naquela época. Ela nos recebeu com a filha para contar a história do garoto. Após passarmos por algumas galinhas que elas criavam, dona Irene nos contou que a ossada do irmão foi reconhecida pela mãe devido ao traje e aos pertences. Infelizmente, o descaso das autoridades também se revelou após essa descoberta. Levaram [a ossada] para Belém para fazer uma análise, o reconhecimento. Mas disseram que acabou misturando com a ossada de outras pessoas, de outras crianças, e aí ficou lá. Não teve reconhecimento porque misturou, e eles não sabiam, contou dona Irene. [Meus pais] pediram várias vezes […], a minha mãe queria muito ter enterrado a ossada dele. […] Ela ficou muito triste. Vivia muito abalada.

    Esse sumiço revelava um dos aspectos mais cruéis que podem existir para uma mãe que perde um filho: a impossibilidade de enterrá-lo. Foi só quando entrei na casa de pessoas como dona Irene que compreendi que, por mais que estivesse olhando para casos do passado, eu tinha em mãos uma história ainda em curso, de famílias que seguiam vivas e sofrendo até hoje as mortes dessas crianças. A história dos casos era, também, parte constituinte e triste de suas histórias pessoais — e as memórias que emergiram das conversas foram reveladoras.

    Dava para confiar na polícia?

    Com a desconfiança generalizada das famílias em relação à polícia, Brivaldo enfrentou dificuldades. Alguns familiares, porém, aceitaram dar depoimento a ele — e foram fundamentais para o andamento do caso. Uma delas foi Lúcia da Cunha Chipaia, irmã do menino indígena Judirley, assassinado em janeiro de 1992. Ela falou com o dr. Brivaldo em 20 de outubro de 1992 — ou seja, dezessete dias depois de Jaenes ter sido encontrado morto e emasculado, assim como seu irmão havia sido achado meses antes. No dia do desaparecimento, em janeiro daquele ano, ela estava na companhia do garoto, indo à chácara Santa Rita para uma festa de confraternização.

    Segundo ela, o desaparecimento teria acontecido depois de ele ter ido com outras pessoas tomar banho num igarapé, em torno de 13h30. Judirley teria saído da água quinze minutos após as outras crianças, mas nunca chegou à chácara — sua ausência foi percebida por volta das 17 horas. Foi feita uma busca nos arredores, mas sem grande preocupação: acreditava-se que ele tinha ido à fazenda vizinha. Só quando, voltando à casa às 18h30, viram que ele também não estava lá é que foi desencadeada uma busca que duraria alguns dias, envolvendo a polícia local, a Polícia Militar e, por fim, o Exército (ainda que a família de Judirley tenha tido que providenciar transporte aos soldados). No terceiro dia,

    […] por volta das 13h30, os soldados encarregados de dar buscas chegaram à ponte sobre o igarapé Cupiúba e lá se dividiram, seguindo metade do grupo para o lado esquerdo e outro grupo para o lado direito da estrada, sendo que, por volta das 14h30, o grupo que seguiu para o lado esquerdo conseguiu localizar o corpo de Judirley […]

    Um cunhado de Lúcia, Jorge Ricardo, filho do proprietário da chácara Santa Rita, estava junto e informou que o cadáver estava em estado de decomposição, com sinais de violência e lesões aparentemente de bala. Lúcia seguiu contando que

    […] já encontrou o corpo do irmão mais tarde, no Hospital da Fundação Sesp, onde pôde comprovar os diversos ferimentos que o cadáver apresentava, tais como um profundo golpe no ânus, sinais de golpe de faca por diversas partes do corpo e, principalmente, que haviam sido extraídos o pênis e a bolsa escrotal da vítima; […] foi informada por seu cunhado de que a vítima foi encontrada totalmente nua, porém ainda estava ao lado do corpo o mesmo calção que a vítima vestia quando de seu desaparecimento; que, após o sepultamento da vítima e quando foram chamados à Delegacia de Polícia local para prestar os primeiros esclarecimentos sobre os fatos, surgiu a informação de que a irmã da declarante, […] Lizandra, [tinha] visto uma camionete tipo Pampa ou Saveiro, cor de vinho, estacionada às proximidades de um campinho de futebol existente perto do igarapé, por volta das 13 horas do dia em que o jovem desapareceu; […] o delegado […] comentou com a irmã da declarante que aquele veículo pertenceria ao senhor Amadeu Gomes, mas [era] utilizado frequentemente pelo filho deste, […] Amarildo Gomes.

    Ao saber disso, Lúcia logo reconheceu esse veículo: uma outra irmã deles, Lucilene, contara que, cerca de dois meses antes da morte de Judirley, um vizinho de cujo nome ela não se lembrava fora abordado justamente por Amarildo, que estava no carro e perguntou onde ficava uma praça. Foi a partir daí que a família passou a considerá-lo o maior suspeito da morte de Judirley — o que se reflete no depoimento.

    […]

    diante da insistência de Amarildo, o rapaz resolveu levá-lo até o local pretendido e, quando lá chegou, [Amarildo] tentou apalpar o rapaz, tendo este aí percebido que Amarildo Gomes é homossexual, motivo pelo qual solicitou que parasse o veículo, pois caso contrário desceria de qualquer forma; […] a desconfiança em torno de Amarildo aumentou a partir do momento em que a declarante veio a tomar conhecimento de que, poucos dias após a morte de Judirley, Amarildo saiu da cidade, viajando para a cidade de Fortaleza, onde permaneceu por cerca de quatro meses […]

    Reforçava as suspeitas da família o fato de que um funcionário de uma chácara próxima

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