Diversidade sexual e de gênero e marxismo
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Diversidade sexual e de gênero e marxismo - Guilherme Gomes Ferreira
Capítulo 1
Sexualidade e gênero em disputa
Abrimos a discussão deste livro justamente com a ideia de disputa, entendendo que apesar de algumas reflexões parecerem bastante óbvias para nós que lidamos com o social (por exemplo, a noção de que vários aspectos da sexualidade e do gênero são frutos da sociedade — do aprendizado adquirido, do fazer histórico, da atividade dos seres humanos etc.), elas não o são para todo o conjunto da sociedade, por isso, entram numa arena de disputa pública por diferentes setores que, nessa mesma sociedade, disputam também projetos societários. Toda uma teia de discursos, de saberes, de análises e de injunções investe e atravessa as questões de gênero e sexualidade (Foucault, 1988), assim como diferentes conhecimentos (biológicos, jurídicos, médicos, psicológicos, antropológicos) procuram obter respostas sobre aquilo que nesta obra trataremos pelo conceito de diversidade sexual e de gênero ou de dissidências sexuais e de gênero.¹ Afinal de contas, numa mesa de bar ou entre familiares em casa, quem nunca participou do fundamental debate sobre essência versus construção, manifestado por frases como: qual a origem da homossexualidade
ou por quais razões uma pessoa se torna trans
?
É interessante perceber que, sobre essas reflexões cotidianas, reside um paradoxo: por um lado, é comum escutarmos das pessoas, na nossa vida miúda, que a sexualidade é algo a ser exercido entre quatro paredes
, quer dizer, um aspecto da nossa vida privada de que outras pessoas não deveriam saber. Geralmente, esse argumento é utilizado quando alguém quer defender a permanência das coisas como elas estão, ou seja, que não haja investimento em políticas públicas para pessoas LGBTI+,² pois somos todos iguais
; que não tenha "beijo gay na novela porque, afinal,
ninguém precisa ver isso na televisão; ou que pessoas trans estão querendo
privilégios demais" ao requisitarem o reconhecimento jurídico e social de um nome — só para darmos alguns exemplos. Por outro, essas palavras e sentidos estão sendo produzidos na arena pública, o que significa que nada fica, realmente, entre quatro paredes. Não por acaso vivemos, no Brasil, períodos recentes de retrocessos importantes na área dos direitos de pessoas LGBTI+, o que Nascimento et al. (2010) classificaram como uma disputa por territórios: enquanto os ativismos de gênero e sexualidade intencionam alargar o gueto
em busca de direitos e representatividade, a resposta conservadora é de maior violência e precarização.
No campo científico, a disputa é também sobre quais elementos constituem o corpo, o sexo, a sexualidade, a identidade e o gênero; que palavras e conceitos definem melhor isso ou aquilo, que explicações tornam-se vencedoras ou são vencidas no decorrer do processo histórico. Por ser este um livro que constitui uma biblioteca básica, entendemos ser necessário introduzir alguns conceitos e palavras à leitora menos familiarizada com o tema, ainda que admitindo que não temos espaço para fazermos uma grande síntese sobre o assunto, mesmo porque precisamos, nós também, defender alguns pontos de vista.
Podemos começar dizendo que, se fôssemos simplificar a experiência humana naquilo que diz respeito à sexualidade, poderíamos dizer que ela é a síntese de quatro dimensões: do sexo, do gênero, da identidade e do desejo. O sexo, categoria que nasce das ciências biológicas³ e que diz respeito, a partir dessa área de conhecimento, aos elementos do corpo que definiriam um membro da espécie humana em relação à sua capacidade reprodutiva; o gênero, categoria sociológica emprestada da linguística e que nasce como um contraponto à noção de sexo para analisar e descrever relações sociais (desiguais) baseadas no sexo; a identidade, categoria que remete tanto ao conhecimento psi quanto àquele antropológico e social; e o desejo, palavra cheia de significado filosófico que nos diz muito sobre como nossa subjetividade atua ao orientarmos sentimentos (afetivos, sexuais) a outros seres humanos.
Todas as pessoas produzem processos de identificação com diferentes elementos sociais: nos identificamos com um partido político, com uma nação, com uma descendência étnica e racial, com uma etapa do ciclo vital e, portanto, também com um gênero. Esse é um processo não apenas de autoidentificação (por não ser só uma identidade construída por nós), como também de heteroidentificação (ou seja, a identidade atribuída para nós, consistindo na percepção social do outro em relação a nós) e de autodeterminação (quando essa dimensão aparentemente individual e que se coletiviza pela percepção do outro ganha contornos de uma coletividade politicamente organizada). Por esse motivo, precisamos entender a identidade como um processo que, ao mesmo tempo, subjetiva o social e objetiva a subjetividade, ou seja, é criado por meio de um duplo objetividade
(mundo externo) e subjetividade
(mundo interno). Nesses termos é que entendemos a identidade como parte de um processo social, já que acompanha o movimento da realidade e, por isso, não é estanque, nem algo de uma natureza ou essência cristalizadas; ela é consequência da atividade humana no movimento de produção da história.
Se gênero funciona, para nós, nos termos de Joan Scott (1995), como uma categoria útil tanto para analisar quanto para descrever as relações sociais entre os sexos ou baseadas no que convencionamos socialmente por sexo no decurso da história, significa que ter uma identidade de gênero é uma experiência de todas as pessoas (pois todas elas estão neste mundo, que é, há muito tempo, generificado), por mais que o termo identidade de gênero
apareça, contraditoriamente, somente quando queremos falar de uma parcela de seres humanos, que são as pessoas trans.
Vincent Goulart (2021) chama a atenção para essa curiosa e sutil diferença entre as expressões gênero
e identidade de gênero
: a primeira está em diversos lugares da vida social para separar as pessoas entre homens
e mulheres
, enquanto a segunda funciona quase como um lembrete de que alguém possui um sentimento de gênero
, uma sensação e uma identificação com um gênero que lhe cabe na fantasia, mas não na realidade. Nesses termos, se pessoas cisgênero possuiriam gênero
, pessoas trans possuiriam uma identidade de gênero
. Essa, no entanto, é uma distinção que não faz sentido, e que só existe para subalternizar pessoas transexuais e travestis, como se somente elas produzissem o gênero na/para sua identidade.
Na sua elaboração célebre sobre performance e performatividade de gênero, Judith Butler (2012a) nos remete a uma série de atos cotidianos que reiteramos (por vezes, sem perceber) e que tornam o gênero muito mais algo que nós fazemos do que algo que nós somos. Assim, ao cortarmos o cabelo de um jeito em específico, vestirmos certas roupas, nos reconhecermos a partir de um determinado nome e correspondendo a certas expectativas comportamentais em torno do que é considerado masculino ou feminino (ou nenhum, ou ambos), estamos fabricando um gênero. Reside nessa afirmação, mais uma vez, o caráter social do gênero, sua condição histórica e processual, já que as normas e as estruturas de gênero que temos hoje não são as mesmas que tivemos no passado nem são idênticas por todo o mundo. Assim, podemos pedagogicamente distinguir as pessoas, como ensina Jaqueline de Jesus (2012), entre aquelas que, no seu desenvolvimento, concordaram com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento — pessoas cisgênero ou pessoas cis — e aquelas que discordaram desse gênero imposto, atribuído — as pessoas transgênero ou pessoas trans.
A constituição do conceito de cisgeneridade foi e tem sido fundamental para nomear essa parcela populacional que concorda com o gênero atribuído pela sociedade, já que a transexualidade só existe em relação à cisgeneridade, do mesmo modo que outras categorias identificatórias, incluindo aquelas da sexualidade, da etnia e da raça. O uso político dessa categoria, no entanto, não significa, como explica Sofia Favero (2019), (des)racializar e (des)sexualizar a cisgeneridade, entendendo, portanto, que a experiência das cisgeneridades precárias não invalida a existência de uma diferença entre pessoas cis e pessoas trans. Logo, todas essas categorias — passando por outras, como transexual, travesti, pessoa não binária, gênero fluido, queer etc. — funcionam como ato de nomeação e de narrativas de si, e estas também precisam ser corporificadas
por marcadores de classe social, raça/etnia, sexualidade etc.
Vejamos a seguir dois conceitos diferentes, porém igualmente importantes sobre esse debate:
A sexualidade é inacessível à análise política enquanto for concebida primariamente como um fenômeno biológico ou um aspecto da psicologia individual. A sexualidade é tão produto da atividade humana como o são as dietas, os meios de transporte, os sistemas de etiqueta, formas de trabalho, tipos de entretenimento, processos de produção e modos de opressão. Uma vez que o sexo for entendido nos termos da análise social e entendimento histórico, uma política do sexo mais realista se torna possível (Rubin, 1984, p. 13).
[...] a distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos. Supondo por um momento a estabilidade do sexo binário, não decorre daí que a construção de homens
aplique-se exclusivamente a corpos masculinos, ou que o termo mulheres
interprete somente corpos femininos. Além disso, mesmo que os sexos apareçam não problematicamente binários em sua morfologia e constituição [...], não há razão para supor que os gêneros também devam permanecer em número de dois (Butler, 2012a, p. 24, grifos nossos).
Tanto Gayle Rubin quanto Judith Butler sustentam — desde diferentes perspectivas epistemológicas — o caráter social e até ficcional do gênero, do sexo e da sexualidade, demonstrando sua condição histórica e como produtos da atividade humana. A suposição de que existe um tipo de sexo ideal para um tipo de identidade e um tipo de orientação sexual (o caminho que leva um corpo com vagina a ser submisso, instável, romântico, domesticável e, consequentemente, se identificar como mulher e se atrair por homens; e outro caminho que leva um corpo com pênis a ser agressivo, racional, dominante, objetivo e, consequentemente, se identificar como homem e se atrair por mulheres) é sustentada pelo que conhecemos como heterossexismo ou heteronormatividade⁴ e, consequentemente, como cissexismo ou cisnormatividade.
Falamos sobre identidade de gênero e é necessário, logo, distingui-la da identidade sexual e da orientação sexual.⁵ Se todas as pessoas são capazes de se identificar com um gênero (ou com nenhum gênero, procurando, na sua trajetória de vida, tentar superar esses processos de identificação tanto quanto possível), elas também possuem uma identificação com uma orientação sexual em específico, quer dizer, com uma capacidade de se sentirem atraídas sexual e/ou afetivamente por outras pessoas em termos de sexo/gênero. Disso se processam categorias como heterossexual, homossexual, bissexual, pansexual, assexual etc., mas cabe aqui uma reflexão de que a partir da atração sexual e afetiva não se decorre, imediatamente, uma identidade sexual.
Nenhuma identidade sexual — mesmo a mais normativa — é automática, autêntica, facilmente assumida; nenhuma identidade sexual existe sem negociação ou construção. Não existe, de um lado, uma identidade heterossexual lá fora, pronta, acabada, esperando para ser assumida e, de outro, uma identidade homossexual instável, que deve se virar sozinha. Em vez disso, toda identidade sexual é um constructo instável, mutável e volátil, uma relação social contraditória e não finalizada (Britzman, 1996, p. 74, grifos da autora).
A identidade sexual depende de uma elaboração, no nível da consciência, sobre as práticas sexuais e afetivas que uma pessoa constitui ao longo da sua vida e dos significados sociais atribuídos por ela sobre essas práticas. Um exemplo disso é o que passou a ser nomeado como homens que fazem sexo com outros homens (HSH), quando a prática do sexo entre homens não leva uma parcela populacional deles a se identificarem como gays, bissexuais ou pansexuais. Poderíamos tentar explicar esse fenômeno de diversas formas, mas parece-nos interessante, de novo, somente sublinhar o caráter social e construído (Haraway, 1991; Fausto-Sterling, 2002) dessas categorias. Essas são decorrentes de processos históricos, como veremos adiante.
1.1 A produção da sexualidade e do gênero como atividade humana
Thomas Laqueur (2001) afirma que, até meados do século XVIII, as ciências médicas acreditavam que haveria apenas um sexo, o masculino, e o que diferenciava as pessoas era apenas a quantidade de calor recebido no decorrer da gestação. A explicação dada consistia em dizer que a mulher grávida, ao oferecer pouco calor ao bebê, fazia com que seu órgão sexual fosse retraído para dentro do corpo, formando uma vagina. Se, ao contrário, o bebê recebesse mais calor, seu órgão sexual aflorava, aparecendo na parte externa do corpo e formando o pênis. Era uma diferença, até então, quantitativa e hierarquicamente vertical — quanto mais ou menos calor, mais ou menos próximo do corpo perfeito (o corpo que teve seu órgão totalmente desenvolvido e exposto).
No final do século XVIII, alguns médicos começam a afirmar que essa diferença dos corpos não versava sobre gradações corporais, mas que havia uma diferença mais profunda e que se aplicava a todo o corpo, externo e interno. Era uma diferença horizontal e qualitativa, não apenas física, como também moral. Decorrem daí grandes justificações que vão elaborar esse segundo sexo, o feminino, e cuja anatomia começa a ser explicada pela personalidade feminina. A mulher não só começa a ser compreendida como diferente do homem fisicamente, mas também psiquicamente, e seu lugar na sociedade deveria acompanhar essa diferença. Os binômios passividade/agressividade, emoção/razão e cuidado/rudeza começam a ganhar relevo na relação mulher/homem, definindo o espaço da mulher como sendo o privado, o cuidado da família e como sujeito do afeto, enquanto o homem deve ocupar o espaço público e o tino para os negócios, sendo ele o sujeito da razão. De acordo com Laqueur (2001, p. 18), [...] há dois sexos estáveis, incomensuráveis e opostos, e [...] a vida política, econômica e cultural dos homens e das mulheres, seus papéis de gênero, são de certa forma baseados nesses ‘fatos’
.
No conjunto das transformações ocorridas nas sociedades ocidentais desde então, outras características do homem e da mulher são cristalizadas com a intenção de reiterar as diferenças de gênero. Só as mulheres podem ser mães
e a mulher, diferentemente do homem, possui instinto materno
são bandeiras levantadas na busca por especificidades de gênero que garantam a legitimidade do próprio binarismo homem/mulher. À medida que essas bandeiras são superadas por novos estudos e novos sujeitos, outras diferenças são procuradas na tentativa de manter, em última instância, o lugar subalterno do feminino em sociedade. Há, na atualidade, outras maneiras de substancializar as diferenças e manter essa subalternidade, como encontrar tamanhos distintos de cérebros no homem e na mulher (e demonstrar que a mulher tem menor aptidão às ciências exatas porque seu cérebro é marcado por algo que está ausente, por exemplo⁶), ou que a testosterona, hormônio que serve como metáfora de homem
, é responsável pelo desejo sexual, pelo estímulo e pelo desempenho (é o hormônio que, por excelência, potencializa e melhora) (Hoberman, 2005).
Parece ficar nítido que há uma resistente tentativa de encobrir o gênero a partir de uma lógica da substancialização da diferença. O objeto dessa substancialização pode variar, passando por exemplo dos ovários aos hormônios sexuais. Mas a referência a algum tipo de materialização do gênero permanece intacta, ou melhor, parece ir se aprimorando a cada descoberta científica. Percebe-se a pregnância de uma necessidade de essencialização
das diferenças entre homens e mulheres ao longo do último século, que remete necessariamente à tradição dualista que tem caracterizado a cultura ocidental moderna. Basicamente, as renovadas formas de essencialismo
têm implicado delimitar o que seria do plano natural, supostamente imutável, e o que se enquadraria no plano social ou cultural, passível de transformação. Um olhar mais atento ao discurso médico da passagem do século XIX ao XX, por exemplo, nos leva a perceber que é exatamente a instabilidade entre essas fronteiras, ou seja, a constatação da sua precariedade, que promove uma insistente reafirmação das oposições (Rohden, 2008, p. 148-149).
Podemos pensar que essa essencialização das diferenças de gênero, ou, de acordo com Nicholson (2000), esse fundacionalismo biológico — a coexistência de determinações da natureza biológica
e de dados de comportamento —, apoia uma série de estruturas de dominação e de opressão em termos de gênero e sexualidade, entre elas, a já comentada heterocisnormatividade, mas também, a violência letal contra pessoas LGBTI+, caracterizada aqui por nós como um terrorismo de gênero e sexualidade, ou heterocisterrorismo.
Com o adensamento das desigualdades sociais provocado pela exploração cada vez mais intensa da força de trabalho e, consequentemente, das condições de vida necessárias para o provimento da dignidade humana, os processos de violência balizados pelas assimetrias entre grupos sociais distintos ganham igualmente espaço nas relações decadentes que adota a sociedade capitalista para manutenção de seu funcionamento (Tonet, 2007). Vive-se, portanto, uma época histórica em que as práticas de discriminação e de preconceito baseadas na orientação sexual ou na identidade de gênero estão cada vez mais presentes.
Se, por um lado, esse fenômeno de agravamento de violências é possivelmente explicado pela desvalorização e consequente invisibilidade a que determinados grupos discriminados são destinados historicamente a conviver, por outro, esses mesmos grupos têm, na atualidade, suas existências na vitrine de uma visibilidade perversa, o que também gera preconceito e discriminação.
A discussão da livre expressão da sexualidade como um direito de cidadania é particularmente relevante no caso brasileiro, pois as marcas da desigualdade social reforçam aquelas da discriminação ligada à orientação sexual e às performances de gênero (Pocahy; Nardi, 2007, p. 47).
Podemos entender a violência contra a população LGBTI+ como resultante, assim, não só do aprofundamento das desigualdades sociais e do avanço do neoliberalismo e do Estado Penal como resposta à violência e à pobreza, mas também do fortalecimento do conservadorismo e da agenda política de direita. A violência de gênero e sexualidade — manifestação de todas as formas de violência motivada pelo gênero ou sexualidade de uma pessoa — possui particularidades em relação às pessoas LGBTI+, particularidades essas que historicamente foram pensadas do ponto de vista da homofobia (e suas derivações: transfobia, bifobia etc.), conceito amplamente difundido por Borrillo (2010) como a atitude de hostilidade, ódio, aversão ou até mesmo medo no que diz respeito às pessoas LGBTI+.
Esse conceito, no entanto, acaba por tratar a questão como algo individual e subjetivo: ao mesmo tempo aponta a fobia como parte de indivíduos ("o sujeito é homofóbico", embora possamos falar de homofobia institucional) e como algo das suas psiques, já que o termo fobia denota um tipo de patologia e, por isso, correspondente por excelência à dimensão da subjetividade. Tomando de empréstimo o termo heteroterrorismo cunhado por Bento (2011), partimos de uma noção da violência contra pessoas LGBTI+ como manifestação do heterocisterrorismo:
As reiterações que produzem os gêneros e a heterossexualidade são marcadas por um terrorismo contínuo. Há um heteroterrorismo a cada enunciado que incentiva ou inibe comportamentos, a cada insulto ou piada homofóbica. Se um menino gosta de brincar de boneca, os heteroterroristas afirmarão: Pare com isso! Isso não é coisa de menino!
. A cada reiteração do/a pai/mãe ou professor/a, a cada menino não chora!
, comporta-se como menina!
, isso é coisa de bicha!
, a subjetividade daquele que é o objeto dessas reiterações é minada (Bento, 2011, p. 552).
Assim, é possível perceber que a noção de terrorismo — a imposição da vontade pelo emprego sistemático do terror/da violência — tem elementos em comum com o machismo: a legitimação da violência, o ataque aos direitos e a dominação de um grupo sobre o outro para fazer valer a sua vontade. Nesse caso, poderíamos entender o heterocisterrorismo como todas aquelas práticas (não somente individuais, mas também institucionais, e, sobretudo, as ações do Estado) que utilizam reiteradamente a violência de gênero para impor a soberania heterossexual e cisgênero, instaurando o medo contínuo nas pessoas LGBTI+ ao acessarem a esfera pública. O heterocisterrorismo, diferentemente da noção de homofobia, aponta para a estrutura e para uma coletividade, além de nomear algo que é largamente utilizado pelo conjunto da sociedade e em suas instituições, o que afeta de maneira direta a vida objetiva e as subjetividades das pessoas