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Sociopata: minha história – A autobiografia de uma sociopata do século XXI
Sociopata: minha história – A autobiografia de uma sociopata do século XXI
Sociopata: minha história – A autobiografia de uma sociopata do século XXI
E-book469 páginas10 horas

Sociopata: minha história – A autobiografia de uma sociopata do século XXI

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Sobre este e-book

Um fascinante e revelador livro de memórias sobre as dificuldades de entender a própria sociopatia e a busca por esclarecer dúvidas relacionadas ao seu distúrbio mental, muitas vezes mal compreendido e descrito como maligno.
Patric Gagne descobriu que ela deixava as pessoas desconfortáveis antes mesmo de entrar no jardim de infância. Desconfiava que isso acontecia porque ela não sentia a mesma coisa que as outras crianças. Emoções como medo, culpa e empatia não estavam presentes nela. Na maior parte do tempo, ela não sentia nada. E não gostava de como o "nada" a fazia se sentir.
Patric fazia o possível para fingir que era como todo mundo, mas a constante pressão para seguir os padrões impostos por uma sociedade que rejeitava qualquer um igual a ela era insuportável. Então, Patric roubou. Mentiu. Foi violenta. Ela se tornou uma especialista em abrir fechaduras e invadir casas. Sempre com o objetivo de preencher o "nada" com… algo.
Em uma aula de psicologia na faculdade, Patric finalmente descobriu por que era diferente dos outros: ela era uma sociopata. Porém, mesmo que tenha sido identificada há mais de um século, a sociopatia costuma ser negligenciada por muitos profissionais de saúde mental. Disseram a ela que não havia tratamento, nem esperanças para uma vida normal. Os sociopatas da cultura pop – homens loucos e vilões malvados considerados monstros – a assombravam. Seu futuro não parecia lhe reservar nada de bom.
Porém, ao se reconectar com uma antiga paixão, Patric enxerga o vislumbre de um futuro além de seu diagnóstico. Se ela é capaz de amar, talvez não seja um monstro. Junto de seu amor (e alguns personagens peculiares que ela conhece ao longo do caminho), ela embarca em uma missão para provar que os milhões de americanos que compartilham com ela o mesmo diagnóstico também não são monstros.
Sociopata é a irônica, corajosa e inspiradora história da jornada de Patric para mudar seu destino e construir uma vida repleta de amor e esperança.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de out. de 2024
ISBN9786555116083
Sociopata: minha história – A autobiografia de uma sociopata do século XXI

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    Sociopata - Patric Gagne

    PARTE I

    CAPÍTULO 1

    Garota sincera

    Sempre que pergunto à minha mãe se ela se lembra da vez que, na segunda série, furei a cabeça de uma colega com um lápis, a resposta é a mesma:

    — Vagamente.

    Acredito nela. Porque muito sobre minha infância é vago. De algumas coisas, me lembro com absoluta clareza. Como o cheiro das árvores do Redwood National Park e da nossa casa na colina perto do centro de São Francisco. Céus, eu amava aquela casa. Ainda consigo me lembrar dos 43 degraus até meu quarto no quinto andar e das cadeiras da sala de jantar em que eu subia para furtar cristais do lustre. No entanto, outras coisas não são tão claras. Como a primeira vez que invadi a casa do vizinho quando estava vazia. Ou de onde peguei o medalhão com um L inscrito.

    A joia contém duas fotos em preto e branco que nunca me dei ao trabalho de remover e ainda não consigo deixar de admirar. Quem eram essas pessoas? De onde vieram? Gostaria de saber. Acho possível que eu tenha achado o medalhão na rua, mas é muito mais provável que o tenha furtado.

    Comecei a roubar antes de falar. Pelo menos, acho que sim. Não me lembro da primeira vez que peguei alguma coisa, só que, com 6 ou 7 anos, tinha uma caixa cheia de objetos no armário.

    Em algum lugar dos arquivos da revista People há uma foto de Ringo Starr comigo no colo. No registro, estamos no quintal da casa dele — não muito longe de onde nasci em Los Angeles, cidade em que meu pai atuava como executivo do ramo da música —, e estou, literalmente, roubando os óculos do rosto dele. Claro que não fui a primeira criança a brincar com os óculos de um adulto. Porém, com base nos que estão em minha estante, tenho certeza de que fui a única a furtar um par de um Beatle.

    Para esclarecer: eu não era cleptomaníaca. Cleptomaníaco é quem tem uma vontade persistente e irresistível de pegar coisas que não lhe pertencem. Eu sofria de um tipo diferente de vontade, uma compulsão causada pelo desconforto da apatia, a ausência quase indescritível de emoções sociais comuns, como vergonha e empatia. De qualquer forma, eu não entendia isso naquela época. Eu só sabia que não sentia as coisas do mesmo jeito que as outras crianças. Não me sentia culpada quando mentia. Não tinha compaixão quando os colegas se machucavam no recreio. Em geral, eu não sentia nada. E não gostava do jeito desse nada. Assim, fazia coisas para substituir o nada por… algo.

    Começava com o impulso de fazer aquele nada parar, uma pressão incansável que se expandia até se infiltrar em todo o meu eu. Quanto mais eu tentava ignorar, pior ficava. Os músculos se contraíam, o estômago dava um nó. Apertado. Mais apertado. Era claustrofóbico, como ficar presa dentro do cérebro. Presa dentro do vácuo.

    Minhas reações conscientes à apatia começaram triviais. Furtar não era algo que eu necessariamente quisesse fazer. Só era o modo mais fácil de interromper a pressão. A primeira vez que fiz essa conexão foi no primeiro ano, sentada atrás de uma garota chamada Clancy.

    A pressão vinha aumentando havia dias. Sem saber exatamente por que, eu estava frustrada, com vontade de fazer algo violento. Queria me levantar e derrubar a carteira. Pensei em correr até a pesada porta de aço que se abria para o pátio e prender meus dedos nas dobradiças. Por um minuto, achei que poderia mesmo fazer isso. Até que vi a presilha de cabelo de Clancy.

    Ela estava com duas, um lacinho cor-de-rosa de cada lado. A da esquerda tinha escorregado. Pegue-a, ordenaram meus pensamentos, e você se sentirá melhor.

    A ideia parecia muito estranha. Clancy era minha colega. Eu gostava dela e, com certeza, não queria roubá-la. Contudo, queria que meu cérebro parasse de pulsar, e parte de mim sabia que isso ajudaria. Assim, com cuidado, estendi a mão e soltei o prendedor de cabelo.

    A presilha cor-de-rosa estava quase solta. Sem minha ajuda, provavelmente, cairia sozinha. Só que não caiu. Com ela na mão, me senti melhor, como se parte do ar fosse liberada de um balão cheio demais. A pressão evaporou. Eu não sabia por que, mas não me importei. Tinha encontrado uma solução. Foi um alívio.

    Esses primeiros atos de desvio estão codificados em minha mente como coordenadas de GPS que traçam o rumo da consciência. Ainda hoje, me recordo de onde encontrei a maior parte das coisas que não me pertenciam quando criança. Porém, não consigo explicar o medalhão com o L. Por mais que tente, não me lembro de onde o consegui. Eu me lembro do dia em que minha mãe o achou no meu quarto e quis saber por que eu estava com ele.

    — Patric, você tem de me dizer onde conseguiu isso — pediu ela.

    Estávamos em pé ao lado de minha cama; uma das fronhas do travesseiro estava amassada contra a cabeceira, e eu me sentia consumida pela ânsia de endireitá-la. Contudo, mamãe não desistia.

    — Olhe para mim — disse ela, segurando meus ombros. — Em algum lugar por aí, há uma pessoa triste que se ressente com a falta desse medalhão. Pense em como essa pessoa deve estar se sentindo.

    Fechei os olhos e tentei imaginar o que a pessoa sem medalhão estava sentindo. Não consegui. Não senti nada. Quando abri os olhos, percebi que minha mãe sabia.

    — Querida, me escute — falou ela, ajoelhando-se. — Pegar o que não lhe pertence é roubar. E roubar é muito, muito feio.

    Mais uma vez, nada.

    Mamãe parou, sem saber o que fazer. Inspirou fundo e perguntou:

    — Você já fez isso antes?

    Fiz que sim com a cabeça e apontei o armário, onde lhe mostrei meu estoque de contrabando. Juntas, examinamos a caixa. Expliquei o que era cada coisa e de onde tinha vindo. Quando a caixa ficou vazia, mamãe se levantou e disse que devolveríamos cada item ao verdadeiro dono, o que para mim não era um problema. Não temia as consequências e não sofria com remorso, outras duas coisas que eu já tinha descoberto que não eram normais. Devolver os objetos atenderia a meu propósito. A caixa estava cheia, e esvaziá-la me daria espaço para guardar as coisas que eu ainda roubaria.

    Depois de olharmos tudo, mamãe me perguntou:

    — Por que você pegou essas coisas?

    Pensei na pressão na cabeça e na sensação de que precisava fazer coisas ruins às vezes.

    — Não sei — respondi.

    Era verdade. Eu não fazia ideia do que provocava essa sensação.

    — Bom… Você se arrepende? — perguntou ela.

    — Sim — falei.

    Também era verdade. Eu estava arrependida. Porém, me arrependia de ter que roubar para deixar de fantasiar sobre violência, não porque eu tivesse magoado alguém.

    Parecia que mamãe queria deixar o problema para trás.

    — Amo muito você, querida — disse ela. — Não sei por que você pegou todas essas coisas, mas quero que me prometa que vai me contar se fizer algo assim outra vez.

    Confirmei com um gesto de cabeça. Minha mãe era o máximo. Eu a amava tanto que foi fácil cumprir a promessa. No começo, pelo menos. Nunca achamos o dono do medalhão, mas, com o passar dos anos, melhorei em imaginar como ele deve ter se sentido ao perceber que o objeto tinha sumido. Provavelmente, é bem parecido com o modo como eu me sentiria, hoje, se alguém o tirasse de mim, embora não tenha certeza.

    A empatia, como o remorso, nunca foi natural para mim. Fui criada na Igreja Batista. Sabia que deveríamos nos sentir mal se cometêssemos pecados. Minhas professoras falavam de sistemas de honra e de algo chamado vergonha, mas eu não entendia por que essas coisas eram importantes. Compreendia o conceito intelectualmente, mas não eram coisas que eu sentia.

    Como dá para imaginar, minha incapacidade de compreender habilidades emocionais básicas transformava em desafio o processo de fazer e manter amigos. Não que eu fosse má ou algo assim. Eu era apenas diferente. E nem sempre os outros apreciavam meus atributos ímpares.

    Era o começo do outono; eu acabara de fazer 7 anos. Certo dia, fui convidada para uma festa do pijama na casa de uma amiga. Ela se chamava Collette e morava a alguns quarteirões de nós. Cheguei à casa dela usando minha saia favorita, rosa e amarela. Era aniversário dela e insisti em levar o presente, um carro conversível da Barbie embrulhado em papel iridescente.

    Ao me deixar lá, mamãe me deu um grande abraço. Estava ansiosa com nossa primeira noite separadas.

    — Não se preocupe — disse ela ao me entregar a mochila e o saco de dormir Holly Hobbie. — Está tudo bem se precisar voltar para casa.

    Eu não estava preocupada. Na verdade, estava empolgada. Uma noite inteira em outro lugar! Mal podia esperar.

    A festa foi divertida. Nós nos empanturramos de pizza, bolo e sorvete e, depois, vestimos o pijama. Fizemos um baile na sala de estar e brincamos no quintal. Perto da hora de dormir, a mãe de Collette anunciou que era hora do silêncio. Ela pôs um filme na TV da sala, e todas nós posicionamos os sacos de dormir em círculo. Então, uma a uma, as meninas adormeceram.

    Quando o filme terminou, eu era a única acordada. Lá, no escuro, estava ciente de minha falta de sentimentos. Analisei minhas amigas imóveis; era inquietante vê-las de olhos fechados. Senti a pressão aumentar em resposta ao vazio e tive vontade de bater na menina a meu lado com a maior força possível.

    Que estranho, pensei. Eu não queria machucá-la. Ao mesmo tempo, sabia que com isso eu relaxaria. Balancei a cabeça contra a tentação e me arrastei aos poucos para fora do saco de dormir, afastando-me dela. Então, fiquei em pé e comecei a andar pela casa.

    Collette tinha um irmão chamado Jacob, que ainda era um bebê. Seu quarto, no segundo andar, possuía uma varanda que dava para a rua. Em silêncio, subi a escada e entrei no quarto. Ele dormia, e o fitei por um tempo. Parecia tão miudinho no berço, muito menor do que minha irmã caçula. Havia um cobertor enrolado no canto. Peguei-o e o ajustei em torno de seu corpinho.

    Depois, voltei minha atenção para as portas da varanda. O ferrolho fez um clique quase inaudível quando as abri e saí para o escuro. Dali, conseguia ver quase toda a cidade. Fiquei na ponta dos pés e me inclinei para a frente para olhar a área, observando o cruzamento no quarteirão seguinte. Reconheci o nome da rua e vi que estava a um quarteirão da minha. Percebi que, em poucos minutos, poderia chegar andando até minha casa.

    De repente, soube que não queria mais ficar ali. Não gostava de ser a única acordada e realmente não gostava de estar tão livre. Em casa, tinha mamãe para me manter na linha. Mas ali? Quem me impediria? De quê? Fiquei inquieta.

    Estava escuro quando saí pela porta da frente, e adorei. Fazia eu me sentir invisível, e a pressão que sentia evaporou instantaneamente. Pisei na calçada e comecei a viagem para casa, fitando as casas enquanto andava. Como eram as pessoas que moravam dentro delas? O que estavam fazendo? Gostaria de descobrir. Desejei ser invisível para observá-las o dia todo.

    O ar era revigorante e a neblina cobria as ruas enquanto eu seguia para casa. Tempo das bruxas, minha mãe gostava de dizer. No cruzamento, puxei da mochila o saco de dormir e o enrolei sobre o meu corpo, como uma echarpe enorme. A distância era maior do que eu esperava, mas não me importei.

    Olhei para o outro lado da rua e notei uma casa com a porta da garagem aberta. O que há lá dentro?, me perguntei. Então pensei: Posso descobrir.

    Eu me encantei com a mudança de clima quando saí da calçada. Parecia que as regras tinham desaparecido com a luz do dia. No escuro, com todo mundo adormecido, não havia restrições. Eu poderia fazer qualquer coisa. Poderia ir a qualquer lugar. Na casa de Collette, aquela ideia me deixou pouco à vontade. Contudo, naquele momento, a mesma situação teve o efeito oposto. Eu me senti poderosa e no controle. E me perguntei por que havia diferença.

    O luar iluminava meu caminho enquanto eu andava na direção da garagem aberta. Entrei e parei para olhar em volta. Uma perua bege estava estacionada de um lado e deixava espaço para vários brinquedos e badulaques. Deve haver crianças aqui, pensei. Meu tornozelo roçou na prancha de um skate. Parecia lixa.

    Resisti à tentação de pegá-lo; fui até o carro e abri a porta atrás do carona. O brilho suave da luzinha clareou a garagem; entrei e fechei a porta. Parei e esperei que algo acontecesse.

    O silêncio dentro do veículo era ensurdecedor, mas gostei. Lembrei-me do filme Super-homem e da visita de Christopher Reeve à Fortaleza da Solidão. É como minha câmara, sussurrei. Imaginei que ficava mais forte a cada segundo que passava.

    Lá fora, uma luz em movimento atraiu meu olhar, e vi um carro passar. Era um sedã escuro, e apertei os olhos enquanto o observava. "O que você está fazendo aqui?" Decidi que o carro era um inimigo.

    Abri rapidamente a porta e saí nas pontas dos pés, a tempo de ver o sedã dobrar a esquina. General Zod, pensei em desafio. Então, atravessei a rua correndo até onde tinha deixado minhas coisas. Quando me abaixei para pegá-las, senti o cheiro conhecido do sabão em pó e decidi que estava na hora de ir para casa. Fui pela calçada, mais perto das árvores. Acelerei e me vi ziguezagueando com alegria pela segurança das sombras. Por que as pessoas têm medo da noite?, me perguntei alegremente enquanto andava. É a melhor parte do dia.

    Quando cheguei ao pé da colina que ia para minha casa, estava exausta. Eu me arrastei pela ladeira íngreme, puxando a mochila atrás de mim como um trenó. A porta lateral estava aberta e consegui entrar sem bater. Subi a escada em silêncio até meu quarto, tentando não acordar meus pais. Contudo, instantes depois de me enfiar na cama, minha mãe entrou correndo pela porta.

    — PATRIC! — berrou ela, batendo no interruptor de luz. — O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO AQUI?

    A reação dela me espantou, e comecei a chorar. Com esperança de que mamãe entendesse, expliquei tudo o que tinha feito, mas só piorei a situação. Ela começou a chorar também, os olhos arregalados de medo, as lágrimas escorrendo pelas bochechas.

    — Querida — disse ela finalmente, me puxando para perto. — Nunca, jamais faça uma coisa dessas outra vez. E se alguma coisa acontecesse? E se você não conseguisse chegar em casa?

    Concordei com a cabeça, embora nenhuma dessas preocupações me perturbasse genuinamente. Mais do que tudo, estava confusa. Mamãe tinha dito que eu podia voltar para casa na hora que quisesse. Então, por que estava tão aborrecida?

    — O que eu quis dizer é que buscaria você — explicou ela. — ­Prometa que nunca mais fará uma coisa dessas.

    Prometi, mas não tive a oportunidade de provar durante vários anos. Logo descobri que os pais viam com maus olhos coleguinhas que iam a festas do pijama só para ficarem inquietas no meio da noite e decidirem voltar a pé para casa sozinhas. A mãe de Collette não gostou nem um pouco quando descobriu o que fiz e não escondeu seu desprezo. Depois que ela contou aos outros pais meu número de desaparecimento, os convites para festas pararam de chegar. Porém, não foram só os pais que ficaram receosos. As outras crianças também sentiam que alguma coisa em mim não estava certa.

    — Você é esquisita — disse Ava.

    É uma de minhas poucas lembranças do primeiro ano. Havia uma casa de bonecas do tamanho das crianças no canto da sala e estávamos brincando de casinha. Ava era uma colega. Era justa e amável, e todos gostavam dela. Essa era uma das muitas razões para ela assumir o cargo de mãe sempre que fazíamos esta brincadeira. No entanto, eu preferia um papel diferente.

    — Sou o mordomo — avisei.

    Ava me olhou, confusa.

    Pelo que eu tinha entendido assistindo à televisão, mordomos tinham o melhor emprego do mundo. Podiam desaparecer por bastante tempo sem explicação. Tinham acesso irrestrito aos casacos e às bolsas de todo mundo. Ninguém questionava suas ações. Podiam entrar num cômodo sem ter de interagir com quem quer que fosse. Podiam ouvir atrás da porta. Era a profissão ideal, pelo menos para mim. Contudo, minha explicação não fez sentido para todo mundo.

    — Por que você é tão esquisita? — perguntou Ava.

    Ela não disse isso para ser desagradável. Era mais uma afirmação, uma pergunta que eu sabia que não precisava responder. Porém, quando a olhei, notei em seu rosto uma expressão muito peculiar que eu nunca tinha visto. Era uma mistura de confusão, certeza e medo. Ela não era a única. As outras crianças me olhavam da mesma forma. Isso me deixou cautelosa, como se elas vissem em mim algo que eu não percebia.

    Ansiosa para mudar de assunto, sorri e fiz uma reverência.

    — Perdoe-me, madame — disse na minha melhor voz de mordomo. — Mas, se ajo de forma esquisita, é porque alguém matou a cozinheira!

    Foi uma distração que eu já tinha aperfeiçoado: choque com um toque de humor. Todos riram e gritaram quando a brincadeira assumiu um tom empolgante, ainda que macabro, e minha esquisitice desapareceu com o vento. De qualquer modo, eu sabia que era apenas um artifício temporário.

    Além da propensão a roubar e desaparecer, algo em mim deixava as outras crianças pouco à vontade. Eu sabia. Elas sabiam. Embora pudéssemos coexistir em paz como colegas de sala, raramente me incluíam nas atividades depois da escola. Não que eu me importasse; adorava ficar sozinha. Contudo, depois de um tempo, minha mãe começou a ficar preocupada.

    — Não gosto de ver você passando tanto tempo sozinha — disse ela.

    Era uma tarde de sábado, e ela tinha subido para ver como eu estava depois de várias horas quieta.

    — Tudo bem, mãe — falei. — Eu gosto.

    Mamãe franziu a testa e se sentou em minha cama, pondo, sem pensar, um guaxinim de pelúcia no colo.

    — Só acho que seria bom você chamar alguns amigos para brincar. — Ela fez uma pausa. — Quer convidar alguém da escola? Que tal Ava?

    Dei de ombros e olhei pela janela. Vinha tentando calcular quantos lençóis seriam necessários para fazer uma corda até o chão. Naquela semana, eu tinha visto algo chamado escada de emergência no catálogo das lojas Sears e ficara obcecada com a ideia de criar a minha. Não sabia direito o que fazer com ela, só sabia que precisava dela. Infelizmente, mamãe estava me distraindo.

    — Não sei — respondi. — Quer dizer, Ava é legal. Talvez no mês que vem.

    Mamãe pôs o guaxinim de lado e se levantou.

    — Bom, os Goodman vêm jantar aqui hoje — disse ela com animação. — Então, acho que hoje à noite você vai brincar com as meninas.

    Os Goodman moravam em nosso quarteirão e eram amigos de meus pais. As duas filhas deles eram o terror do bairro, e eu as detestava. Sydney era agressiva, Tina uma idiota. Viviam se metendo em encrenca, geralmente, por causa de alguma coisa provocada por Syd; eu achava o comportamento delas irritante. Claro que eu não estava em condições de julgar. Porém, na época, eu justificava minha repulsa. Do meu ponto de vista, tudo se resumia à intenção. Embora minhas ações, às vezes, fossem questionáveis, eu não quebrava as regras porque gostava; eu agia daquela forma porque não via opção. Era um meio de autopreservação, de impedir que coisas piores acontecessem. As ações das Goodman, por outro lado, eram ruins, irresponsáveis e para chamar a atenção. As coisas más que gostavam de fazer não tinham propósito algum além da crueldade pela crueldade.

    Minha irmã Harlowe era quatro anos mais nova do que eu. Divi­díamos o andar mais alto da casa com Lee, a babá, uma mulher adorável de El Salvador. A babá Lee ficava no quarto ao lado do nosso. Normalmente, na hora em que os Goodman nos visitavam, ela estava pondo Harlowe para dormir. E eram raras as vezes que Syd não tentava fazer algo abominável com elas.

    — Vamos entrar no quarto da Lee e jogar água na cama dela! — sibilou Syd naquela noite, quando estávamos em meu quarto.

    Eu já estava incomodada.

    — Isso é burrice — falei. — Ela vai saber que fomos nós, e aí? O que você vai conseguir com isso? Ela vai contar a nossos pais, e aí vocês terão que ir embora.

    A presilha que furtara de Clancy estava numa de minhas tranças. Comecei a puxá-la quando pensei: Talvez jogar água não seja uma ideia tão ruim no fim das contas.

    Syd tinha aberto uma fresta na porta e espiava lá fora.

    — É, mas agora é tarde demais, porque ela já está no quarto. Deve ter posto Harlowe para dormir. — A menina se virou. — Vamos acordá-la!

    Tina ergueu o olhar da revista e bufou em aprovação. Fiquei perplexa.

    — Por quê?

    — Porque aí Lee vai pôr ela pra dormir de novo! E toda vez que conseguir, acordamos ela de novo e de novo! Vai ser muito engraçado!

    Para mim, não soava engraçado. Para começar, ninguém ia mexer com minha irmã. Eu não sabia direito a distância entre o quinto e o quarto andar, mas estava disposta a, sem querer, empurrar Syd e airmã pela escada, se necessário. Quanto à babá Lee, eu não queria que ela saísse do quarto. Eu sabia que, no segundo em que minha irmã dormia, Lee ligava para a família e passava horas conversando. Isso significava que eu podia ouvir meus discos do Blondie sem perturbação.

    Na época, eu tinha desenvolvido uma certa fixação em Debbie Harry. Ficava vidrada em tudo o que fosse do Blondie, principalmente Parallel Lines. Na capa do disco, Debbie está em pé, de vestido branco, com as mãos na cintura e um olhar feroz. Adorava essa foto e queria ser igual a ela. Tanto que, se você analisar os álbuns de fotografias de minha mãe, vai achar mais de um ano de fotos em que estou claramente tentando imitar essa postura emblemática.

    Debbie Harry não sorria na capa do disco, e decidi que também não sorriria — por nada. Infelizmente, depois de um episódio especialmente desastroso com o fotógrafo da escola que resultou comigo dando um pontapé num tripé, mamãe decidiu que Debbie Harry era uma má influência e jogou fora todos os discos do Blondie. O fato de que eu os recuperara da lixeira e os ouvia à noite ainda não fora percebido por Lee.

    Decidi mudar de tática.

    — Que tal o seguinte — sugeri. — Vamos lá no quintal espionar nossos pais pela janela.

    Eu sabia que Syd estava irritada. Meu plano não envolvia torturar alguém e, portanto, era comparativamente sem graça. Ao mesmo tempo, a ideia de espionar nossos pais era tão empolgante que nem ela conseguiu resistir. Tina também pareceu animada.

    Depois de alguma negociação, Syd concordou. Abrimos um pouquinho a porta do meu quarto e passamos em fila indiana pelo quarto de Lee. Finalmente, descemos até a lavanderia e destranquei a porta que dava para a lateral da casa. O ar da Califórnia estava gelado e doce ao mesmo tempo.

    — Tudo bem — falei. — Vão por aqui e eu encontro vocês no deque dos fundos.

    Elas pareciam nervosas. O quintal, além de absolutamente escuro, também era, em essência, inexistente, porque a maior parte da casa era sustentada por colunas de madeira que mergulhavam trinta metros morro abaixo. Um passo mal dado, e elas cairiam até lá embaixo.

    — Vocês não estão com medo, estão? — perguntei com minha cara mais preocupada.

    Tina respondeu primeiro.

    — Vai te catar! — gritou ela, enquanto sumia pelo lado da casa com uma Syd relutante atrás.

    Assim que saíram de vista, voltei para dentro de casa e tranquei a porta. Então, subi de volta até meu quarto, apaguei a luz, me deitei e liguei a vitrola. Estava calma e bem satisfeita comigo. Sabia que deveria me sentir mal pelo que tinha feito, só que não. Escutei Blondie sem interrupções.

    Quase uma hora se passou quando vi a sombra de minha mãe na parede da escada. Joguei os fones no chão e consegui abaixar o volume pouco antes de ela passar pela porta.

    — Patric, você trancou Syd e Tina lá fora? — perguntou ela.

    — Tranquei — respondi com franqueza.

    Vi que mamãe não sabia o que dizer.

    — Bom, os Goodman estão muito aborrecidos — contou ao se sentar na cama. — Elas se perderam no escuro e não sabiam como entrar de novo. As duas poderiam ter se machucado, querida. — Ela fez uma pausa e acrescentou: — Acho que nunca mais voltarão aqui.

    — Ótimo! — respondi empolgada. — Tina sempre toma banho na minha banheira com todas as luzes apagadas, o que é loucura, e Syd sempre traz comida aqui para cima e espalha por toda parte. As duas são muito chatas!

    Mamãe balançou a cabeça e suspirou.

    — Bom, obrigada por me dizer a verdade, querida. — Ela me beijou no alto da cabeça. — Mas você está de castigo. Não vai sair nem ver televisão por uma semana.

    Fiz que sim com a cabeça e aceitei meu destino em silêncio. Era um pequeno preço a pagar.

    Mamãe se levantou e tinha chegado à escada quando a chamei de volta. Ela se virou e voltou para meu quarto.

    Respirei fundo antes de confessar:

    — Peguei os discos do Blondie no lixo depois que você jogou eles fora. Escuto toda noite, embora não devesse fazer isso.

    Mamãe ficou parada, sua forma glamurosa contra a luz do corredor.

    — Eles estão… aqui? No seu quarto?

    Fiz que sim novamente. Mamãe foi até a vitrola, onde Parallel Lines ainda girava em silêncio. Ela me olhou e balançou a cabeça. Então, um a um, recolheu os discos e os enfiou debaixo do braço antes de me dar outro beijo. Afastou o cabelo de meu rosto e de minha testa.

    — Obrigada por me contar, minha garota sincera — disse ela. — Agora, boa noite.

    Mamãe saiu do quarto e desceu a escada enquanto eu rolava para o lado e me aninhava nos travesseiros. Esfreguei os pés sob as cobertas como um grilo. Eu me sentia segura e contente. A vitrola continuava funcionando, e o som repetitivo era tranquilizante. Observei o prato vazio dar voltas e mais voltas e, por um segundo, questionei a sabedoria de revelar o segredo e perder meus discos do Blondie. Ainda assim, percebi que sorria ao adormecer.

    CAPÍTULO 2

    Camadas

    Há poucas coisas que meu pai goste tanto quanto um bolo de chocolate em camadas. Quando era menino no Mississippi, Lela Mae, a empregada de meus avós, preparava um bolo desses para ele toda semana. Quando fazíamos uma visita no Natal, eu ficava hipnotizada pelo cheiro do bolo — e por Lela Mae, de uniforme e avental branco, elevando-se à porta da cozinha, guardando a entrada como se aquele fosse seu feudo.

    Minha mãe também era do sul do país. Nascida e criada na ­Virgínia, entendia a importância do ritual e dava um imenso valor a cuidar da casa ao estilo sulista. Assim que soube dos bolos, adotou a tradição como se fosse dela.

    Eu costumava observá-la à mesa da sala de jantar, em São Francisco, enquanto, com uma linha de costura, cortava cada camada em metades.

    — Assim, fica perfeitamente plano — dizia ela.

    Eu adorava passar o tempo com mamãe naquela sala. Ficava deitada sob a mesa e lia livros enquanto ela cortava e punha recheio e cobertura nos bolos. Com o tempo, aquilo se transformou em confessionário. Eu lhe contava tudo o que acontecia na escola e confessava todos os comportamentos que achava questionáveis. Ela me dizia se minhas ações (ou reações) tinham passado dos limites e explicava de que maneira endireitar as coisas. Como minha capacidade de avaliação não era exatamente confiável, mamãe e eu achávamos melhor que eu contasse tudo a ela.

    — Você agradeceu aos Patel pelo açúcar? — perguntou.

    Mamãe tinha me mandado à casa dos vizinhos com uma xícara de manhã cedo.

    — Não, eles não estavam em casa — respondi.

    Mamãe parou o que estava fazendo e me olhou.

    — Então como você conseguiu o açúcar? — questionou ela.

    — Peguei no pote.

    Eu soube que os Patel não estavam assim que cheguei à entrada da garagem. Por alguma razão, eles não a usavam, e, quando estavam em casa, a perua verde-ervilha estava sempre lá. Naquele dia, não.

    Eu tinha certeza de que a porta de correr de vidro estaria destrancada, então, fui até a lateral da casa e dei um puxão nela, que se abriu, como imaginei. Entrei e me servi do pote de açúcar sobre a bancada; no caminho, parei para brincar com Moses, o cachorro da família.

    — Sei que você disse que não poderíamos, mas será que podemos ter um cachorro? — perguntei. — Ele poderia brincar com Moses se ficasse entediado.

    Mamãe me fitou, horrorizada.

    — Se os Patel não estavam em casa quando você foi lá — perguntou ela devagar —, como você entrou?

    Contei a mamãe minha expedição. Quando terminei, ela cobriu o rosto com as mãos.

    — Não, querida — disse ela, finalmente erguendo o olhar. — Não. Você não pode entrar na casa das pessoas quando elas não estão lá.

    Fiquei confusa.

    — Por que não? Eles não se importam. Vamos lá o tempo todo. Tudo bem, desde que a gente não pegue nada.

    — Mas você pegou alguma coisa — disse ela, claramente aborrecida. — O açúcar.

    Naquele momento, fiquei muito confusa.

    — Mas você me disse para pegar o açúcar.

    Mamãe soltou o ar com força.

    — Eu lhe disse para pedir o açúcar. Não para ir lá e se servir sem a permissão deles. Não faça mais nada parecido. Isso está muito, muito errado. Você entende?

    — Entendo — menti.

    Eu não entendia. Achava que pedir açúcar aos Patel era uma formalidade. Eles não se importavam e eu os tinha poupado do incômodo de atender à porta e da conversa fiada. Quem gosta disso? Eu é que não. Contudo, também sabia que não poderia explicar isso à minha mãe. Ela valorizava muito a franqueza. Na dúvida, diga a verdade, ela gostava de me ensinar. A verdade ajuda os outros a entenderem. Só que eu não tinha certeza de que concordava.

    Quando criança, eu vivia num estado de dúvida constante. Dúvidas sobre o que deveria sentir ou não. Dúvidas sobre o que fazia. Dúvidas sobre o que queria fazer. Dizer a verdade a respeito dessas incertezas parecia uma boa ideia em teoria, mas, na prática, descobri que, em geral, piorava a situação. Eu nunca sabia que informação provocaria uma reação negativa. Eu parecia oscilar o tempo todo entre os polos da franqueza e da mentira, e nunca sabia onde ia parar. Isso era ainda mais verdadeiro quando se tratava de mamãe. Irritá-la era algo que eu não queria arriscar. Ela era minha bússola emocional e eu confiava nela para me guiar. Com minha mãe a meu lado, eu não precisava me preocupar com o que sentia nem em escolher o certo ou o errado. Contudo, quando ela se zangava, eu sentia que estava sozinha. E, naquela época, estar sozinha não era um lugar seguro.

    Mamãe suspirou de novo e colocou outro pedaço de linha em torno de outra camada de bolo.

    — Conclusão: só podemos ir à casa dos Patel quando eles estiverem lá. E, não, não é legal mesmo que você não pegue nada.

    Concordei com a cabeça e decidi não confessar todas as viagens que fiz até a casa deles sempre que mamãe nos deixava, minha irmã e eu, sozinhas com babá Lee. Como essa regra era tecnicamente nova, não vi razão para aplicá-la de forma retroativa.

    Parecia que mamãe ia dizer mais alguma coisa, mas ela foi interrompida pelos passos pesados de meu pai na escada. Ouvimos os armários da cozinha se abrirem e se fecharem antes que a porta da sala de jantar se escancarasse e ele entrasse com pressa.

    — Alguém viu minha pasta? — perguntou papai.

    Ele passou por nós e começou a vasculhar a sala de estar. Eu o ouvi sufocar um espirro e me perguntei se estaria ficando resfriado. Torci que não. Íamos patinar no gelo naquela noite.

    Desde o embargo do Blondie, fiquei obcecada por Castelos de gelo, um filme sobre uma patinadora no gelo cega. Fiquei empolgada para experimentar, num rinque de verdade, alguns passos que vinha treinando vendada, de meias no assoalho de madeira; mas se papai, se papai ficasse resfriado, seria um empecilho grave ao plano.

    — Está lá em cima, no escritório — disse mamãe. — Por que você precisa dela? O jantar está quase pronto, é sábado. Vamos levar as meninas para patinar.

    Havia um toque de irritação na voz dela. Papai ergueu os olhos e cobriu o rosto com as mãos.

    — Ah, querida, esqueci! — falou, indo até ela. — Bruce ligou e preciso correr para o estúdio.

    Meu pai era um astro em ascensão no setor musical, o que muitas vezes exigia horários de trabalho prolongados e não convencionais.

    Papai me olhou.

    — Sinto muito, querida. — Então, perguntou a mamãe: — Podemos ir outra noite?

    Mamãe olhou pela janela em silêncio. Achei esquisito, mas parece que papai não notou. Em vez disso, ele seguiu

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