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Tesouros de Agostinho: Textos selecionados
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Tesouros de Agostinho: Textos selecionados
E-book707 páginas12 horas

Tesouros de Agostinho: Textos selecionados

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Sobre este e-book

Em Tesouros de Agostinho, Franklin Ferreira convida o leitor a explorar as obras de um dos mais influentes teólogos da história cristã. Com uma introdução detalhada e uma seleção criteriosa de mais de 130 verbetes, organizados de A a Z, este livro oferece uma visão abrangente e inspiradora dos temas centrais da teologia agostiniana.

Mais do que uma simples apresentação das profundas reflexões de Agostinho, esta obra é uma verdadeira imersão em sua fé e sabedoria, destinada a todos os cristãos. É especialmente valiosa para pregadores e professores da igreja, apresentando as riquezas espirituais e teológicas que continuam a abençoar a igreja, mesmo séculos após a morte de Agostinho em 430.

Que as palavras de Agostinho reunidas aqui sirvam como guia de inspiração e sabedoria para todos aqueles que buscam a verdade e a graça em suas vidas.
IdiomaPortuguês
EditoraVida Nova
Data de lançamento3 de out. de 2024
ISBN9786559673049
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    Tesouros de Agostinho - Franklin Ferreira

    Tesouros de Agostinho: Textos selecionados. Franklin Ferreira. Vida Nova.Tesouros de Agostinho

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    Angélica Ilacqua CRB-8/7057

    Ferreira, Franklin

    Tesouros de Agostinho: textos selecionados / Franklin Ferreira. — São Paulo: Vida Nova, 2024.

    ePub.

    Bibliografia

    ISBN 978-65-5967-304-9

    1. Agostinho, Santo, Bispo de Hipona, 354-430 2. Pais da igreja 3. Teologia I. Título.

    Índice para catálogo sistemático:

    1. Pais da igreja

    Tesouros de Agostinho: Textos selecionados. Franklin Ferreira. Vida Nova.

    ©2024 de Franklin Ferreira

    Título: Tesouros de Agostinho: textos selecionados

    Todos os direitos em língua portuguesa reservados por

    Sociedade Religiosa Edições Vida Nova

    Rua Antônio Carlos Tacconi, 63, São Paulo, SP, 04810-020

    vidanova.com.br | [email protected]

    1.ª edição: 2024

    Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em citações breves, com indicação da fonte.

    Impresso no Brasil / Printed in Brazil


    Direção executiva

    Kenneth Lee Davis

    Coordenação editorial e edição de texto

    Abner Arrais

    Revisão técnica

    Juan de Paula Siqueira

    Marcus Ferreira

    Preparação de texto

    Rosa M. Ferreira

    Revisão de provas

    Silas Carvalho

    Coordenação de produção

    Sérgio Siqueira Moura

    Diagramação

    Luciana Di Iorio

    Capa

    Luis Henrique de Paula

    Livro digital

    Lucas Camargo


    Estudei com dois mestres que amavam a fé cristã e eram os mais exigentes academicamente no Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, onde me graduei em teologia, em 1995. Ambos tinham mentes aguçadas e me desafiavam constantemente, além de possuírem grande talento para expor as doutrinas cristãs com maestria. Sua erudição e perspicácia superavam as de outros professores. Ofereço essa obra com profunda gratidão aos professores John Samuel Hammett e Alan Doyle Myatt, em reconhecimento ao imenso significado que ambos tiveram em minha vida.

    Sumário

    Apresentação

    Prefácio

    Agradecimentos

    Agostinho, bispo de Hipona: doutor da graça

    A época de Agostinho

    Os anos formativos e a conversão a Cristo

    As principais controvérsias

    A centralidade da pregação da Bíblia e o valor da memória

    O fim de uma era

    A teologia de Agostinho

    Uma influência perene

    Tesouros de Agostinho

    Adeodato

    Aliança

    Alma

    Amizade

    Amor

    Anjos

    Apologética

    Árvore

    Ascensão

    Astrologia

    Batismo

    Beleza

    Bem

    Castidade

    Céu

    Christus victor

    Cidade de Deus, cidade da Terra

    Concupiscência

    Confissão

    Consciência

    Contemplação

    Conversão

    Criação

    Criação, dias da

    Criação, humanidade

    Cristo total

    Cruz

    Culpa

    Culto, liturgia

    Culto aos mortos

    Demônios

    Deus, Espírito Santo

    Deus, Filho

    Deus, imutável

    Deus, Pai

    Deus, Trindade

    Deus, único

    Donatismo

    Educação, filosofia

    Educação, método

    Entretenimento

    Escritura, cânon

    Escritura, inspiração

    Escritura, interpretação

    Escritura, suficiência

    Espírito Santo

    Eternidade

    Eucaristia, ceia do Senhor

    Existência

    Êxtase

    Família

    Felicidade, bem-aventurança

    Graça

    Graça, benefícios

    Graça comum

    Graça cooperante

    Graça perseverante

    Graça preveniente

    Guerra

    Heresia

    Homem, ser humano

    Humildade

    Idolatria

    Igreja

    Imagem de Deus

    Inferno

    Inveja

    Irmãos

    Jesus Cristo, naturezas

    Jesus Cristo, sacrifício

    Judeus

    Juízo final

    Justificação

    Lei

    Legislação, legislador

    Livre-arbítrio, liberdade

    Luta espiritual

    Mal

    Maniqueísmo

    Maria

    Martírio

    Matrimônio

    Mentira

    Mérito

    Milagres

    Milênio

    Mônica

    Moral

    Morte

    Mundo

    Nascimento virginal

    Oração

    Pastoral

    Paz

    Pecado original

    Pecado pessoal

    Pedro

    Pelágio, pelagianismo

    Penitência, arrependimento

    Perdão

    Perseverança

    Pobres, pobreza

    Prazer

    Predestinação, eleição

    Pregação

    Presciência

    Prosperidade

    Providência

    Queda

    Recapitulação

    Redenção

    Regeneração

    Regra [para os servos de Deus]

    Religião

    Ressurreição

    Revelação

    Roma

    Sabedoria

    Sacramentos

    Sacrifício

    Salmos

    Salvação

    Santificação

    Satanás, Diabo

    Sedução

    Septuaginta

    Sofrimento

    Superstição

    Tempo

    Tentação

    Tradição

    Una

    Verdade

    Vício

    Vida eterna

    Virtude

    Vontade de Deus

    Zelo

    Bibliografia

    Apresentação

    Ao longo de séculos, a história da teologia cristã tem testemunhado o desejo de inúmeros teólogos compreenderem a Deus mais plenamente. Agostinho ilustra o ponto. Na abertura do livro X das Confissões, ele diz: Que eu te conheça, ó conhecedor de mim. Que eu te conheça tal como sou por Ti conhecido. O desejo do teólogo é, portanto, conhecer a Deus completamente, tal como somos conhecidos por Deus. Contudo, como diz o adágio, querer não é poder. Se não podemos — pelo menos por enquanto — conhecer a Deus plenamente, então, como podemos ter certeza de que nossa teologia, aquilo que pensamos e dizemos sobre Deus, é verdadeira? Como se vê, essa é uma questão que assombra não apenas os teólogos, mas a todos os cristãos que desejam conhecer Deus a fundo. Ora, por que nos assombra? Se não conhecemos sequer a nós mesmos de maneira plena, como poderíamos dizer que conhecemos a Deus plenamente? Além do mais, como saberíamos que tal conhecimento é verdadeiro?

    Em sua busca pela verdade sobre Deus, Agostinho encontrou uma resposta que, por mais simples que pareça, é profundamente transformadora: Tu amaste a verdade. Porque aquele que a põe em prática alcança a luz. Aqui, ele sugere que o conhecimento verdadeiro de Deus está enraizado no amor pela verdade e na prática dessa verdade coram Deo, isto é, na presença de Deus. De acordo com Agostinho, a verdade não é apenas um conceito abstrato a ser apreendido; ela é uma realidade viva que deve ser encarnada e vivida diante do Deus que nos conhece como ninguém. E é nesse movimento de amor pela verdade e prática diligente da verdade que a luz de Deus nos ilumina para algo que transcende as meras ideias.

    A metáfora da luz utilizada pelo Bispo de Hipona é crucial não apenas para entender sua teologia, mas também o pensamento dos reformadores, especialmente de João Calvino. Desde o início de As institutas da religião cristã,¹ Calvino afirma que a luz de Deus é a fonte de todo verdadeiro conhecimento, e é apenas através dessa luz que podemos ter alguma confiança em nossa compreensão de Deus. No entanto, essa luz não brilha em um coração cego e obscurecido pelo pecado. O primeiro passo necessário para o conhecimento de Deus é a cura da cegueira espiritual. Todos nós, por causa do pecado, estamos cegos em relação às realidades divinas. O pecado não apenas corrompe nossa moralidade, mas obscurece nossa capacidade de conhecer e compreender Deus. Assim, a primeira operação necessária para o verdadeiro conhecimento de Deus é a cura dessa cegueira. E isso não pode ser realizado por nós mesmos; é uma obra da graça divina, uma obra do Espírito Santo, nosso mestre interior, como Agostinho pontuou em De Magistro.

    Deus, em sua misericórdia, abre nossos olhos para que possamos começar a enxergar sob a luz da sua verdade. Entretanto, mesmo que nossos olhos estejam abertos, a simples capacidade de enxergar não é suficiente. Precisamos também de luz. Imagine uma pessoa que teve sua cegueira curada, mas permanece em um quarto completamente escuro. Ela pode agora enxergar, mas, sem luz, ela ainda estará em completa escuridão. É por essa razão que Agostinho e a tradição reformada insistem tanto na necessidade da iluminação. A luz que permite ao homem conhecer a Deus de maneira verdadeira é a iluminação do Espírito Santo. Sem essa luz, mesmo o intelecto mais aguçado permanece em plena escuridão.

    Portanto, o conhecimento de Deus envolve estas duas operações essenciais: a cura da cegueira e a iluminação do Espírito. Embora essas operações sejam requisitos necessários para o conhecimento de Deus, elas não são o conhecimento em si. O conhecimento verdadeiro de Deus é sempre mediado, mas a mediação é acompanhada pela luz divina, dando garantia de que o que conhecemos sobre Deus seja de fato verdadeiro, ainda que limitado pela nossa condição humana.

    Agostinho, consciente dessa realidade, diz: quero pôr em prática a verdade no meu coração: diante de Ti, na minha confissão, e diante dos homens, nos meus escritos. Essa prática da verdade não é meramente teórica ou acadêmica. Para ele, a verdade começa no coração do teólogo e é vivida na presença de Deus. Ao falar sobre Deus, o teólogo tem de estar ciente de que está falando diante do próprio Deus, e isso muda completamente a dinâmica do ato teológico. Não se trata apenas de elaborar conceitos ou teorias sobre Deus, como quem escreve uma tese acadêmica. A teologia, para ser verdadeira, tem de ser feita na presença de Deus, com a plena consciência de que o Pai das Luzes está ouvindo. É uma teologia feita coram Deo, feita diante de Deus, e não diante de meras ideias ou abstrações.

    Essa consciência é o que diferencia a teologia cristã de uma simples especulação filosófica. O teólogo que realmente compreende a natureza de sua tarefa sabe que não está apenas estudando um objeto distante ou impessoal. Ele está se engajando em um diálogo com o próprio Deus, e isso exige humildade, reverência e uma profunda dependência da graça divina. O teólogo em sua atividade está em adoração, confessando quem Deus é diante dele e dos outros. Isso evidentemente também revela o caráter pastoral da teologia. Fazer teologia diante de Deus é, ao mesmo tempo, servir à igreja, ao povo de Deus, que também busca conhecer e amar ao Senhor. A teologia, feita debaixo da luz divina, não é apenas um exercício intelectual, mas uma prática espiritual que visa edificar a igreja e glorificar a Deus.

    Em Tesouros de Agostinho: textos selecionados, Franklin Ferreira nos brinda com uma exposição dessas verdades que Agostinho tanto amou. Neste livro, você encontrará uma apresentação da vida e obra de Agostinho bem como um arrazoado dos principais conceitos da teologia através dos textos agostinianos selecionados pelo autor. Franklin não se contentou em apresentar os conceitos teológicos de Agostinho. Ele o fez com uma consciência agostiniana de que toda teologia verdadeira é feita diante de Deus e para a glória de Deus.

    Esta cuidadosa seleção de textos de Agostinho não apenas lança luz sobre a mente de um dos maiores pensadores da fé cristã, mas também oferece ao leitor moderno uma oportunidade de dialogar com reflexões sobre a natureza de Deus, do homem e da verdade. Aqui, o leitor encontrará não apenas reflexões agostinianas profundas, mas também uma convocação para pôr em prática a verdade diante de Deus, tanto em seu coração quanto em sua vida.

    Que esta obra possa iluminar todos aqueles que, como Agostinho, querem conhecer a Deus tal como são conhecidos por ele.

    Jonas Madureira

    Pastor da Igreja Batista da Palavra e professor de Teologia Sistemática e Apologética no Seminário Martin Bucer.


    ¹ Publicado em português por Editora Unesp sob o título A instituição da religião cristã e por Cultura Cristã sob o título As institutas.

    Prefácio

    Nas vastas planícies da Numídia, nasceu Aurelius Augustinus, mais conhecido como Agostinho de Hipona ou Santo Agostinho. Sua jornada espiritual ressoa ao longo dos séculos, deixando sua marca no pensamento cristão e influenciando a teologia cristã por gerações. A vida de Agostinho — desde os tempos turbulentos de sua juventude até se tornar bispo de Hipona — é um testemunho de busca, questionamento, redenção e compromisso com a fé cristã.

    Nascido em 354 em Tagaste, Agostinho foi criado sob os cuidados de uma mãe piedosa chamada Mônica, cujas orações fervorosas sustentaram sua alma inquieta. Depois de explorar o maniqueísmo e o neoplatonismo, encontrou paz verdadeira em Cristo. À sua conversão marcante se seguiu seu batismo em 387, um momento crucial não apenas em sua vida pessoal, mas também na história da teologia cristã.

    Agostinho se destacou como uma figura intelectual e espiritual proeminente, tendo escrito obras que vão desde as profundas meditações das Confissões, passando pela luta para compreender quem é o único Deus em A Trindade, até a monumental obra A cidade de Deus, em que oferece uma moldura para interpretar a história. Em seus escritos, abordou temas fundamentais como a graça divina, a natureza do mal, a soberania de Deus e a redenção por meio de Cristo. Sua teologia sobre os sacramentos e a igreja continua sendo fonte de influência nos debates teológicos e eclesiásticos ainda hoje.

    Ao enfrentar desafios teológicos, como o donatismo e o pelagianismo, Agostinho defendeu com firmeza a importância da graça divina para a salvação humana. A compreensão do conceito da liberdade humana, baseada na soberania de Deus, foi fundamental para o desenvolvimento do pensamento cristão ocidental sobre o livre-arbítrio e a predestinação.

    Este livro serve como uma introdução à vida e ao legado deixados por Agostinho, um homem cuja influência continua a iluminar a igreja mesmo após sua morte em 430. Que as citações e reflexões reunidas nesta obra inspirem os cristãos em geral, mas sobretudo pregadores e professores da igreja, a explorar a profundidade da fé cristã através dos ensinamentos de um dos maiores teólogos que já existiram.

    E que a jornada espiritual de Agostinho de Hipona, desde sua busca interior até sua contemplação divina, sirva como fonte de incentivo e sabedoria para todos aqueles que buscam verdade e graça em suas próprias vidas.

    Ad maiorem Dei gloriam,

    Franklin Ferreira

    Reitor e professor de Teologia Sistemática e

    História da Igreja no Seminário Martin Bucer.

    York, Inglaterra, em junho do Ano de Nosso Senhor de 2024.

    Agradecimentos

    Gostaria de agradecer a Abner Arrais, coordenador editorial em Edições Vida Nova, pelo seu esmerado trabalho como editor desta obra. Estendo minha gratidão aos revisores Rosa Ferreira e Silas Carvalho, assim como a Kenneth L. Davis e Sérgio Siqueira Moura, que apoiaram a publicação desta obra.

    De forma muito especial, agradeço a Marcus Ferreira, licenciado e graduado em História pela Universidade Gama Filho, e a Juan de Paula Santos Siqueira, bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil e pós-graduado em Teologia e Ministério Pastoral pela Universidade Luterana do Brasil, que leram todo o manuscrito atentamente, fazendo muitas e preciosas sugestões, as quais tornaram a obra bem mais abrangente e precisa.

    Finalizando, registro aqui minhas palavras de gratidão ao grande amor da minha vida, minha esposa, Marilene, companheira de peregrinações e caminhadas, à minha querida filha Beatriz e a seu esposo, Jefferson Oliveira, assim como à minha mãe, Aldemira de Macedo Ferreira.

    Agostinho, bispo de Hipona: doutor da graça

    A época de Agostinho

    Os historiadores dividem o Império Romano em dois períodos principais: o Alto Império, que se estende de 27 a.C. até 235 d.C., e o Baixo Império, de 235 d.C. até a sua queda. Na última fase, o Império foi dividido em 395 d.C. entre Império Romano do Ocidente, que terminou em 476, e o Império Romano do Oriente, que durou até 1453, com a queda de Constantinopla para os turcos otomanos.

    Durante o Baixo Império, o imperador Constantino, o Grande, converteu-se ao cristianismo antes da batalha da Ponte Mílvia, em 28 de outubro de 312. Em 13 de junho de 313, ele e Licínio, que governava o Oriente, emitiram o Édito de Milão, que pôs fim às perseguições e garantiu liberdade religiosa aos cristãos. Constantino deu apoio financeiro à igreja, construiu basílicas, concedeu privilégios ao clero (p. ex., isenção de alguns impostos), instituiu leis inspiradas pela fé protegendo crianças, escravos, aldeões e prisioneiros, promoveu cristãos a cargos importantes, estabeleceu o domingo como dia de repouso semanal, devolveu os bens confiscados durante a perseguição de Diocleciano e lutou pela unidade da igreja.

    Na metade do século 4, cerca de dez anos após a morte de Constantino e menos de quarenta anos após as últimas perseguições, 56,5% da população romana era cristã. Naquela época, metade da população da Ásia Menor, Trácia e Armênia era cristã, e o cristianismo predominava na Síria, Egito, Grécia, Macedônia, norte da África, Espanha e sul da Itália. Constantino não utilizou a fé cristã, mas serviu-a. E sua conversão mudou os rumos da igreja e da história do Ocidente.¹

    Após derrotarem a civilização cartaginesa em 146 a.C., os romanos iniciaram uma grande transformação no Norte da África. Estabeleceram uma vasta rede de estradas, fundaram cidades, ergueram vilas, incentivaram a agricultura e promoveram sua cultura e comércio.

    A origem do cristianismo na África é debatida, mas as Atas das Santas Perpétua e Felicidade mencionam uma igreja organizada já em 180 d.C. Os mártires escilitanos, decapitados em Cartago por confessarem sua fé cristã durante a quinta perseguição em 202, ordenada por Sétimo Severo, exemplificam esse período de perseguição, em que muitos cristãos renunciaram à sua fé.² No entanto, entre aqueles que permaneceram fiéis, nem todos exibiram conduta exemplar ou fervor religioso, o que contribuiu para o surgimento de heresias como o montanismo,³ o novacianismo⁴ e o donatismo.⁵

    Cronologia da vida de Agostinho

    313: Constantino promulgou o Édito de Milão, concedendo liberdade de culto para o cristianismo no Império Romano.

    354: Agostinho nasce em Tagaste, Numídia, na África.

    370: Volta de Madaura para Tagaste.

    371: Estuda em Cartago.

    372: Patrício morre e Agostinho une-se a uma concubina.

    373: Nasce seu filho, Adeodato.

    375: Volta de Cartago para lecionar em Tagaste.

    376: Retorna a Cartago.

    380: O Edito de Teodósio torna o cristianismo religião oficial no Império Romano do Oriente.

    383: Agostinho abandona o maniqueísmo e embarca para Roma.

    384: Nomeado professor em Milão. Jerônimo começa a tradução da Bíblia para o latim, tradicionalmente chamada de Vulgata.

    385: Mônica chega a Milão.

    386: Agostinho descobre o neoplatonismo (provavelmente em junho). Conversão ao cristianismo (fim de agosto). Demite-se do cargo de professor e parte para o Cassicíaco (setembro). Teodósio repele os godos no Danúbio.

    387: Agostinho volta a Milão e é batizado, com Alípio e Adeodato (abril). Visão de Óstia. Morte de Mônica.

    388: Volta a Cartago e a Tagaste.

    390: Morte de Adeodato.

    391: Chega a Hipona para fundar um mosteiro. É ordenado presbítero.

    392: Debate com o maniqueu Fortunato em Hipona. Escreve a Jerônimo pedindo traduções latinas de comentários gregos sobre a Bíblia.

    395: Agostinho sucede Valério como bispo de Hipona. Morte de Teodósio.

    396: Morte de Valério.

    403: Agostinho prega em Cartago.

    409: Pelágio em Cartago. Os vândalos e os suevos invadem a Espanha.

    410: Agostinho em Cartago. Recolhe-se a uma propriedade perto de Hipona, por motivo de saúde.

    411-413: Prega regularmente em Cartago.

    418: Pelágio é expulso de Roma.

    426: Eráclio é nomeado sucessor de Agostinho.

    429: Os vândalos chegam ao norte da África Ocidental.

    430: Agostinho falece em 28 de agosto.

    O cristianismo na África tornou-se mais forte após se tornar a religião oficial, em 313. A mudança de postura do Império em relação à igreja levou muitos cristãos a assumirem uma atitude intolerante em relação aos que fraquejavam na fé. Outros, com uma fé menos sólida, titubearam e adotaram uma postura condescendente, chegando até a um descompromisso extremo. Heresias, como a donatista, persistiram por anos. Os pagãos, por sua vez, muitas vezes causavam conflitos, além de introduzirem vários costumes religiosos e políticos pagãos no meio cristão.

    Cartago, capital da África romana, também se tornou a sede cristã da região. Dessa cidade partiram as lideranças hierárquicas da igreja, embora seus expoentes nem sempre fossem os mais proeminentes. Cartago sediou muitos concílios regionais, e sua hierarquia eclesiástica era bastante distinta das de outras partes do Império.⁷ A presença de bispos dissidentes e hereges aumentou a cada dia. Com frequência, havia em uma mesma cidade dois bispos de diferentes grupos religiosos, além de bispos auxiliares e numerosos sacerdotes. Ao lado de seus bispos, muitos com mais cultura do que eles, o clero trabalhava incansavelmente na evangelização e catequese do povo. No entanto, o clero nem sempre era exemplo de retidão, pois houve escândalos entre donatistas e católicos. Apesar disso, a vida de ascese e piedade era intensa.⁸ O povo participava ativamente das celebrações religiosas solenes e, em algumas ocasiões, influenciava na escolha de seus bispos e sacerdotes, como aconteceu com Cipriano de Cartago e, anos depois, com Agostinho, que se tornou sacerdote e bispo de Hipona.

    Talvez o maior perigo durante o Baixo Império tenha sido a suposição de que o cristianismo e o poder romano poderiam coexistir harmoniosamente. A liderança da igreja quase se equiparou à do Estado, com os imperadores romanos atribuindo consideráveis responsabilidades cívicas aos principais oficiais eclesiásticos de cada cidade, os bispos. Com frequência, esses bispos atuavam como juízes locais e representantes do poder imperial. Em contrapartida, o Estado reforçava a doutrina correta e fornecia apoio financeiro. Dada a crença generalizada de que Roma era a Roma eterna, essa estreita relação foi vista como uma força, e não como uma fraqueza.

    Em 410, o mundo romano ficou surpreso ao saber que os visigodos, uma tribo germânica do norte da Europa, haviam saqueado Roma, também conhecida como a Cidade Eterna. Esse evento não foi isolado, pois, nos duzentos anos seguintes, diferentes povos germânicos invadiram a Europa Ocidental, até alcançando o noroeste da África. Enquanto isso, o poder imperial foi se enfraquecendo no Ocidente, ao mesmo tempo que a parte oriental do império — compreendendo Grécia, Ásia Menor, Egito e Síria-Palestina — permanecia intacta. Finalmente, em 476, a grandiosa civilização romana desmoronou, e as luzes do conhecimento e da cultura começaram a se apagar em toda a Europa Ocidental.

    Os anos formativos e a conversão a Cristo

    ¹⁰

    Em meio a esses acontecimentos, em 13 de novembro de 354, Aurelius Augustinus nasceu na cidade de Tagaste, na província romana da Numídia (atualmente Souk Ahras, na Argélia), localizada no Norte da África.¹¹ Agostinho foi o primogênito de Patricius (Patrício)¹² e Monnica (Mônica).¹³ Seu irmão Navigio morreu jovem, e sua irmã, da qual não sabemos o nome, chefiou um mosteiro feminino depois de ficar viúva. Como Bento XVI afirma: ele […] [recebeu] da mãe Mónica, à qual permaneceu sempre muito ligado, uma educação cristã e, apesar de ter vivido durante os anos juvenis uma vida desregrada, sentiu sempre uma atracção profunda por Cristo, tendo bebido o amor pelo nome do Senhor com o leite materno, como ele mesmo ressalta.¹⁴

    Em 365, quando tinha 11 anos, Agostinho foi enviado para estudar em Madaura. Ele nunca dominou o grego, em grande parte por causa das terríveis ameaças e castigos empregados na sala de aula.¹⁵ Em 370, voltou para Tagaste e, aos 17 anos, mudou-se para Cartago para estudar artes liberais¹⁶ e retórica.¹⁷ Seu pai, Patrício, faleceu no ano seguinte, e Agostinho conheceu uma mulher com quem se relacionou; ela foi sua companheira por quinze anos. Mais tarde, ele a deixou e nunca mencionou seu nome em suas obras.

    Sendo arrancada do meu lado, como impedimento ao matrimônio, aquela com quem partilhava o leito, o meu coração, onde ela estava presa, rasgou-se e vertia sangue. Retirara-se ela para a África, fazendo-vos voto de jamais ligar-se a outro homem e deixando-me o filho natural que dela tivera. E eu, miserável, não imitei esta mulher! Não sarara ainda a chaga, aberta pelo corte da primeira mulher. Mas, após a inflamação e após a dor pungentíssima, a ferida gangrenava, doendo-me dum modo mais frio, mas mais desesperado.¹⁸

    Em Cartago ele leu o Hortênsio, de Cícero. A leitura desta obra levou-o a se apaixonar pela filosofia. A partir de então, passou a buscar a verdadeira sabedoria, que acabaria por levá-lo à fé cristã.¹⁹ Como Bento XVI escreve:

    Estando convencido de que sem Jesus não se pode dizer que se encontrou efetivamente a verdade, e dado que neste livro apaixonante lhe faltava aquele nome, logo após tê-lo lido começou a ler a Escritura […]. Mas ficou desiludido. Não só porque o estilo latino da tradução da Sagrada Escritura era insuficiente, mas também porque o próprio conteúdo lhe pareceu insatisfatório. Nas narrações da Escritura sobre guerras e outras vicissitudes humanas, não encontrava a altura da filosofia, o esplendor de busca da verdade que lhe é próprio. Contudo, não queria viver sem Deus e, assim, procurava uma religião que correspondesse ao seu desejo de verdade e também ao seu desejo de se aproximar de Jesus. Caiu assim na rede dos maniqueus, que se apresentavam como cristãos e prometiam uma religião totalmente racional.²⁰

    Em 372, tornou-se um ouvinte maniqueu,²¹ sendo esse, provavelmente, o ano do nascimento de seu filho Adeodato.²² Em 374, regressou a Tagaste como professor de gramática e, em 383, foi para Roma, onde continuou a docência. Ele abandonou o maniqueísmo nessa época por causa de várias contradições que encontrou, principalmente influenciado pelo neoplatonismo, que se afastava significativamente da linha de pensamento original do criador.²³ Essa filosofia tendia ao ceticismo e ao ecletismo, resultando em uma abordagem pouco consistente para Agostinho.

    Dois anos depois, por indicação do prefeito de Roma, Símaco, Agostinho obteve a cátedra de retórica na Casa Imperial e se mudou para Milão. Lá, conheceu Ambrósio, bispo da cidade e o primeiro doutor latino da igreja.²⁴ Como Bento XVI escreveu:

    O grande problema do Antigo Testamento, da falta de beleza retórica, de elevação filosófica resolveu-se, nas pregações de Santo Ambrósio, graças à interpretação tipológica do Antigo Testamento: Agostinho compreendeu que todo o Antigo Testamento é um caminho rumo a Jesus Cristo. Encontrou assim a chave para compreender a beleza, a profundidade também filosófica do Antigo Testamento e percebeu toda a unidade do mistério de Cristo na história e também a síntese entre filosofia, racionalidade e fé no Logos, em Cristo Verbo eterno que se fez carne.²⁵

    Por causa do exemplo dos monges, se convenceu de que teria de renunciar à sua carreira de professor de retórica e a todas as suas ambições e alegrias, caso se tornasse um cristão. Esse último ponto era a principal dificuldade que ainda o detinha. Ele mesmo conta que sua constante oração era: Dá-me castidade e continência. Mas não logo. E ele continua:

    Mas estava ainda fortemente preso à mulher. O apóstolo Paulo não me proibia o matrimônio, se bem me exortasse sobremaneira a escolher um estado mais alto, quando sugeria que, se possível, todos os homens vivessem como ele. Mas eu, ainda bastante fraco, procurava uma condição mais cômoda. Era esse, em tudo, o único motivo de minhas hesitações, enfraquecido que estava por preocupações enervantes, pois, devendo entregar-me à vida conjugal, via-me sujeito a outras obrigações que não queria suportar.²⁶

    A batalha interna entre o desejo e a relutância recrudesceu em Agostinho. Ele queria se tornar cristão, mas ainda hesitava. Os sermões de Ambrósio, juntamente com sua oratória brilhante, eliminaram as objeções intelectuais de Agostinho, intensificando sua luta pessoal. Ele ouvia relatos de outros que haviam tomado a decisão que ele ainda não ousava tomar. Em 15 de agosto de 386, Agostinho estava no jardim da casa que alugava com amigos, lendo a epístola de Paulo aos Romanos com Alípio e discutindo o evangelho. Nesse momento, ele se sentiu incapaz de tolerar a companhia dos amigos ou a própria, fugindo para o outro lado do jardim, onde experimentou uma profunda angústia espiritual.

    Deixei-me, não sei como, cair debaixo de uma figueira e dei livre curso às lágrimas, que jorravam de meus olhos aos borbotões, como sacrifício agradável a ti. E muitas coisas eu te disse, não exatamente nestes termos, mas com o seguinte sentido: E tu, Senhor, até quando? Até quando continuarás irritado? Não te lembres de nossas culpas passadas. Sentia-me ainda preso ao passado, e por isso gritava desesperadamente: Por quanto tempo, por quanto tempo direi ainda: amanhã, amanhã? Por que não agora? Por que não pôr fim agora a minha indignidade?.²⁷

    Toma e lê. Toma e lê (tolle, lege, tolle, lege).²⁸ As palavras que uma criança gritava durante brincadeiras ecoaram sobre a cerca do parque em Milão e chegaram aos ouvidos do desolado mestre de retórica, que sofria intensamente sob a figueira. As palavras que o menino gritava pareciam um sinal do céu para ele. Momentos antes, ele tinha descartado um manuscrito que estava lendo em outra parte do parque. Então, ele retornou ao local, pegou o manuscrito e leu as seguintes palavras do apóstolo Paulo na Epístola aos Romanos:²⁹ Não em orgias e bebedices, não em impudicícias e dissoluções, não em contendas e ciúmes; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo, e nada disponhais para a carne (Rm 13.13-14): Não quis ler mais, nem era necessário. Mal terminara a leitura dessa frase, dissiparam-se em mim todas as trevas da dúvida, como se penetrasse em meu coração uma luz de certeza. Marcando a passagem com o dedo ou com outro sinal qualquer, fechei o livro e, de semblante já tranquilo, o mostrei a Alípio.³⁰ Em resposta a essas palavras do apóstolo, Agostinho decidiu ali mesmo o que estivera tentando decidir por muito tempo — como ele comentou: Tinhas convertido a ti o meu ser.³¹ Em 387, com 33 anos, na noite da Páscoa, de 24 para 25 de abril, Agostinho foi batizado por Ambrósio, juntamente com seu filho Adeodato e com Alípio, na Catedral de Milão.

    Ele abandonou a vida pública, indo morar em Cassicíaco, com amigos e familiares. Dessa época, Bento XVI faz o seguinte comentário:

    [Agostinho] relata uma conversa com a mãe, […] Mônica […]. É uma cena muito bela: ele e a mãe estão em Óstia [Tiberina], em um albergue, e da janela veem o céu e o mar, e transcendem céu e mar, e por um momento tocam o coração de Deus no silêncio das criaturas. E aqui aparece uma ideia fundamental no caminho rumo à verdade: as criaturas devem ficar em silêncio quando se deve dar lugar ao silêncio em que Deus pode falar. Isso é sempre verdadeiro também em nosso tempo: por vezes, tem-se uma espécie de medo do silêncio, do recolhimento, do pensar nas próprias ações, no sentido profundo da própria vida, frequentemente prefere-se viver somente o momento presente, iludindo-se que traga felicidade duradoura; prefere-se viver, porque parece mais fácil, com superficialidade, sem pensar; tem-se medo de buscar a Verdade, ou talvez tenha-se medo de que a Verdade nos encontre, nos apanhe e mude a vida, como fez com […] Agostinho.³²

    Pouco depois, sua mãe, Mônica, faleceu em Óstia Tiberina, perto de Roma. Agostinho então voltou para a África, indo de novo para Tagaste, onde vendeu suas posses e se dedicou a seu ideal de vida comum: estudo, pobreza, trabalho e meditação — a análise meditativa³³ da vida interior, dos desejos e das paixões é umas das principais características da espiritualidade agostiniana.

    Seu primeiro biógrafo, Possídio, escreveu: Chegado [em Tagaste], aqui permaneceu por três anos. Renunciou aos bens, e, junto com aqueles que lhe foram unidos, vivia para Deus nas preces, nas boas obras, meditando dia e noite a Lei do Senhor. E das verdades que Deus revelava à sua inteligência na meditação e na oração ele tornava participantes aos que estavam presentes e ausentes, ensinando-os com sermões e com livro.³⁴ E foi ficando claro o ideal agostiniano da disciplina cristã: pobreza, vida comum, ascetismo, estudo. O objetivo era viver para Deus, ou, como dito por Agostinho, deificar-se na tranquilidade da vida contemplativa.

    Após se mudar para Hipona, próxima à atual Annaba (antiga Boné), Agostinho buscou um local para fundar um mosteiro e viver com seus companheiros. No entanto, em 391, foi quase forçado a ser ordenado presbítero. Lá, Agostinho fundou um mosteiro, onde viveu como presbítero e monge, dedicando-se ao ascetismo e ao estudo segundo a maneira e a regra estabelecida no tempo dos Apóstolos.³⁵

    No período de 386 a 396, Agostinho já tinha escrito de forma considerável. A primeira categoria de livros escritos nesse período consiste em diálogos filosóficos: Contra os acadêmicos, Solilóquios, A vida feliz e A ordem (386); A imortalidade da alma e A gramática (387); A grandeza da alma (387-388); O livre-arbítrio (388-395); A música (389-391); e O mestre (389). O segundo grupo é composto de obras contra os maniqueus: A moral da Igreja Católica e A moral dos maniqueus (388); As duas almas (391); e Controvérsia contra Fortunato, o maniqueu (392). A última categoria é composta de obras teológicas e exegéticas: A verdadeira religião (389); Questões diversas (389-396); A utilidade do crer (391); A fé e o símbolo (393); Sobre o Gênesis, contra os maniqueus (386-391); e algumas cartas e sermões.³⁶

    Em 393, ele ministrava aulas sobre A fé e o símbolo para os bispos locais, algo raro para um presbítero. Logo em seguida, em 395, Agostinho foi eleito bispo coadjutor contra sua vontade. Como ele mesmo relatou:

    Eu procurava um lugar onde estabelecer um mosteiro e viver com meus irmãos. Tinha abandonado já toda esperança neste mundo e, aquilo que eu poderia ter sido, não quis sê-lo, nem mesmo procurei ser o que agora sou [bispo]. Escolhi ser humilde na casa do Senhor, antes que viver nas casas dos pecadores [Sl 83.11]. Procurei manter-me longe daqueles que amam o mundo, e nem me retive igual àqueles que governam os povos. Ao chamado do meu Senhor não escolhi um lugar superior, mas inferior e humilde […] eu temia o episcopado […] tanto que evitei frequentar lugares onde sabia que o ofício de bispo era vacante. Mas, […] o servo não deve contradizer ao patrão. Tinha vindo a esta cidade para visitar um amigo a quem eu pensava conquistar para Deus a fim de que pudesse viver conosco no mosteiro. Sentia-me seguro, pois naquela cidade havia bispo. Fui tomado e feito sacerdote. Assim, através do grau do sacerdócio cheguei ao episcopado.³⁷

    Valério, bispo de Hipona, era de origem grega e tinha dificuldades com o latim. Por isso, ele precisava da assistência de um sacerdote. Sem saber o que estava por vir, Agostinho estava presente em um culto entre os fiéis. No entanto, sua presença não passou despercebida. Valério expôs suas dificuldades ao povo. Então, os fiéis apoderaram-se dele e, como se costuma em tais casos, o apresentaram ao bispo para que o ordenasse: todos, com unânime consenso e desejo pediam, com grande animosidade e altos gritos, que assim se fizesse.³⁸

    Valério queria que Agostinho fosse consagrado bispo o mais rápido possível. Para isso, ele pediu a Megálio de Calama que visitasse a igreja de Hipona. Diante dos bispos reunidos em concílio regional e do povo, anunciou sua intenção. Segundo Possídio, todos se alegraram com a notícia e pediram com entusiasmo que assim fosse feito. No entanto, surgiram desafios: na igreja africana, não era permitido ter mais de um bispo por sede, e Megálio, ouvindo acusações dos donatistas sobre possíveis problemas amorosos de Agostinho, hesitou em consagrá-lo.

    Agostinho, contudo, foi persuadido pelas exceções que estavam se tornando comuns na África e além-mar sobre o primeiro problema.³⁹ Quanto ao segundo problema, Megálio logo percebeu que havia sido enganado e admitiu seu erro publicamente.⁴⁰ Em 396, aos 42 anos, Agostinho sucedeu ao bispo Valério, que faleceu. Sua associação com a cidade de Hipona marcou sua história e se tornou parte de seu nome.

    O episcopado representou um grande fardo para Agostinho. Ele nunca desejou esse cargo, mas o aceitou por amor e o desempenhou com dedicação.⁴¹ Ele observava que pregar continuamente, discutir, repreender e estar disponível para todos era uma tarefa árdua, pesada e exaustiva.⁴² A cidade de Hipona, com 40 mil habitantes e um porto marítimo, recebia visitantes de todas as partes, além dos camponeses das áreas rurais. A população era social e religiosamente diversa, tornando a administração da justiça um desafio. Agostinho passava horas no tribunal, ouvindo, aconselhando e tomando decisões, muitas vezes sem tempo para comer ou até jejuando o dia inteiro.⁴³ Podemos aplicar a Agostinho as mesmas palavras que ele dirigia a Pedro, que havia pedido a Cristo para ficar no monte Tabor:

    Desce, ó Pedro. Desejavas repousar sobre o monte. Mas, não, desce; proclama a Palavra […] trabalha, suporta a fadiga, sofre os tormentos […] A realização do teu desejo, ó Pedro, está reservada, mas para depois da morte. Nesta ocasião, ele mesmo, o Senhor, te diz: ‘Desce à terra para trabalhar, para servir, para ser desprezado, para ser crucificado’. A Vida desceu para fazer-se matar; desceu o Pão para passar fome; desceu o Caminho para cansar-se no caminho; desceu a Fonte para sofrer a sede; e tu recusas trabalhar? Não procures o teu interesse. Tenha a caridade, proclama a verdade e chegarás à eternidade, encontrarás a paz.⁴⁴

    Agostinho tinha diversas responsabilidades pastorais. Ele servia à igreja de Hipona pregando, cuidando dos fiéis, treinando o clero, organizando mosteiros masculinos e femininos, administrando os bens e visitando os doentes. Também contribuía para a igreja africana ao participar de debates e viajando com frequência para responder a convites de colegas ou atender a necessidades eclesiásticas. Além disso, Agostinho se envolvia com a igreja universal, lidando com controvérsias dogmáticas, respondendo a questões e escrevendo livros sobre diversos assuntos.⁴⁵ Agostinho foi sacerdote por cinco anos e viveu 34 anos de episcopado.

    As principais controvérsias

    A teologia de Agostinho se desenvolveu em meio a uma série de debates. Em seu primeiro grande debate teológico, ele se ocupou dos maniqueus. Na maioria das vezes, a polêmica é apologética: ele defende a dignidade da igreja e seu direito exclusivo de se chamar igreja de Cristo.⁴⁶ Contra o racionalismo de seus adversários, Agostinho mostra que a fé não exclui a inteligência — as duas se esclarecem e se reforçam mutuamente. Defende também o Antigo Testamento como preparação do Novo Testamento e que aquele está em harmonia e continuidade com este. Deus preserva beleza e bondade na Criação. O mal é a corrupção do bem, resultado do livre pecado do homem. Agostinho, sob influência do neoplatonismo, e seguindo seu próprio gênio, denunciou de forma especial o dualismo metafísico do maniqueísmo, com seu consequente panteísmo e materialismo.⁴⁷

    No segundo debate teológico, Agostinho se viu diretamente confrontado com o donatismo. Esse movimento, cujo nome vem de Donato, bispo de Cartago, surgiu durante a perseguição dos imperadores Décio e Diocleciano. Os donatistas, que se percebiam como uma igreja de puros, recusaram a ordenação de um bispo suspeito de ter entregado as Escrituras por ocasião de uma perseguição, julgando severamente os cristãos que acolhiam, segundo lhes parecia, com demasiada indulgência os chamados lapsi ou traditores — os que haviam traído a fé diante do poder romano. Chegaram a rejeitar a validade dos sacramentos administrados por ministros que eles julgavam impuros, pois, para os donatistas, os sacramentos só teriam valor se o ministro fosse digno. Aliás, aqueles batizados por ministros indignos deviam ser rebatizados por bispos donatistas. Alguns deles começaram a se reunir em milícias armadas, os circoncélios, assaltando e agredindo os clérigos cristãos, tornando a situação extremamente tensa. Donato foi exilado para Gália, ficando lá de 347 até sua morte, em 355.

    Para Agostinho, os donatistas eram culpados do pecado de cisma, apartando-se da igreja de Jesus Cristo, e foi por ocasião desse conflito que ele elaborou sua teologia dos sacramentos e da igreja. Sustentou firmemente que a graça sacramental age por si mesma, ex opere operato (que pode ser traduzido por em virtude do próprio ato), sendo irrelevantes as condições espirituais do ministro. Em seu entendimento, os sacramentos continuam válidos porque é Cristo quem os oferece. Ele elaborou sobretudo a doutrina da igreja como o corpo de Cristo unificado pelo amor no Espírito. Aqueles que dela se afastam possuem em vão a fé, os sacramentos e mesmo as virtudes. Assim, Agostinho foi levado a afirmar uma igreja invisível, conhecida apenas por Deus — os eleitos, os verdadeiros cristãos —, dentro da igreja visível, que era a igreja na terra. Enquanto esperamos a vinda do Senhor, santos e pecadores estão misturados. Somente Deus conhece seus eleitos. Essa diferenciação entre a igreja visível e a igreja invisível foi enfatizada por João Calvino e outros teólogos protestantes.

    Em uma conferência pública realizada em 411 em Cartago, 286 bispos católicos e 279 bispos donatistas se reuniram. Os católicos saíram vitoriosos, com o governo civil intensificando medidas repressivas contra os donatistas. Embora Agostinho tenha procurado evitar punições severas e a pena de morte, ele aceitou e justificou em algumas ocasiões certa coerção por parte das autoridades civis para promover um bem maior: a salvação da alma e a unidade da igreja. Com o restabelecimento da ordem que isso proporcionou e as conversões consideradas sinceras, ele reconheceu a necessidade de repressão por parte do Estado, concluindo que os donatistas podiam ser compelidos a crer contra sua vontade.⁴⁸ Mas apenas nesta polêmica, por causa dos seus desdobramentos, ele buscou apoio no Estado — acima de tudo, Agostinho buscou a paz e a manutenção da paz pela paz.⁴⁹

    As obras desse segundo período, de 396 a 411, contêm seus escritos antimaniqueístas posteriores: Contra a Epístola de Maniqueu (397), Contra Fausto, o Maniqueu (398) e Da natureza do bem (399). Em seguida, houve escritos eclesiásticos, tais como Do batismo (400), Contra a Epístola de Petiliano (401) e Da unidade da igreja (405). Finalmente, houve obras teológicas e exegéticas, tais como as Confissões (398-399), Da Trindade (400-416), De Gênesis segundo o sentido literal (400-415), Da doutrina cristã I-III (387). Epístolas, sermões e Discurso sobre Salmos também foram escritos durante esse período. Dessa época, são ainda as obras: Os bens do matrimônio, o único tratado totalmente dedicado ao casamento, e A santa virgindade (401). Cartas, sermões e Comentário aos Salmos também foram escritos no período.

    Dentre tais obras se destacam três. A primeira é Confissões. Uma das principais características da tradição agostiniana é a análise da vida interior, desejos e paixões. O título da obra de Agostinho, Confissões, reflete seu propósito: a palavra significa tanto confissão de erros, falhas e pecados, quanto louvor a Deus. Confiando na misericórdia divina, Agostinho examina seu passado, sem autopiedade, reconhecendo a mão de Deus que, com paciência, o guiava por todos os desafios, desvios e perigos de sua jornada. Como Bento XVI escreveu: "São precisamente as Confissões […], com a sua atenção à interioridade e à psicologia, que constituem um modelo único na literatura ocidental […] até à modernidade. Essa atenção à vida espiritual, ao mistério do eu, ao mistério do Deus que se esconde no eu, é uma coisa extraordinária, sem precedentes, e permanece para sempre, por assim dizer, um ‘vértice’ espiritual".⁵⁰

    As Confissões poderiam ser divididas de várias formas. Um esquema inicia-se com um caminho para a verdade (1-9), alcançando o porto da verdade (10) e, por fim, revela-se a verdade (11-13). Há ainda outra divisão clássica: o princípio arquitetônico de salvação (1-9), de santificação (10) e de criação (11-13).⁵¹ Nessa obra está presente uma das orações mais bonitas e famosas:

    Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Estáveis dentro de mim e eu estava fora, e aí Vos procurava; e disforme como era, lançava-me sobre estas coisas formosas que criastes. Estáveis comigo e eu não estava convosco. Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Mas Vós me chamastes, clamastes e rompestes a minha surdez. Brilhastes, resplandecestes e curastes a minha cegueira. Exalastes o vosso perfume: respirei-o e agora suspiro por Vós. Saboreei-Vos, e agora tenho fome e sede de Vós. Tocastes-me, e comecei a desejar ardentemente a vossa paz.⁵²

    Em A doutrina cristã, na verdade um manual de hermenêutica e pregação, Agostinho estabeleceu importantes princípios de interpretação bíblica. Nesse manual de hermenêutica e pregação, ele estabeleceu nove princípios importantes para a interpretação bíblica: 1) A fé é essencial para compreender a Palavra de Deus; 2) É importante considerar o sentido literal e histórico do texto bíblico; 3) O Antigo Testamento deve ser interpretado à luz de Cristo, pois aponta para ele e se completa no Novo Testamento; 4) O objetivo do intérprete é descobrir o significado original do texto, evitando impor sentidos próprios; 5) A interpretação das Escrituras deve ser guiada pela doutrina cristã, que inclui verdades dogmáticas (como Deus, a Trindade, a encarnação, a ressurreição, a igreja, a ressurreição dos corpos, o inferno, o céu e os anjos) e verdades morais (como a fé, a esperança e a caridade); 6) O texto deve ser analisado em seu contexto bíblico amplo, não isoladamente; 7) Se o texto é obscuro, não deve ser usado como base para a fé. As passagens claras devem prevalecer sobre as obscuras; 8) O Espírito Santo não dispensa o estudo de línguas originais, geografia, história, ciências naturais e filosofia; 9) As Escrituras não devem ser interpretadas de forma que se contradigam, levando em conta a progressividade da revelação.⁵³

    Ele destacou a importância de uma coerência entre a vida do pregador e suas palavras, além da necessidade de oração como preparação para a pregação:

    E não duvide que se pode fazê-lo e o quanto pode, consegui-lo-á, mais pela piedade de suas orações do que por seus talentos de orador. Assim, orando por si e por aqueles a quem falará, deve ser orante, antes de ser orador. À medida que se aproxima a hora em que usará da palavra e antes de tomá-la, que eleve sua alma sedenta a Deus, para saber derramar para fora o que sorveu, e comunicar o de que se impregnou.⁵⁴

    De acordo com Bento XVI, essa obra é uma verdadeira e própria introdução cultural à interpretação da Bíblia e, em última análise, ao próprio cristianismo, que teve uma importância determinante na formação da cultura ocidental.⁵⁵

    A Trindade é a obra dogmática mais importante de Agostinho, que levou dezesseis anos para terminá-la. Está dividida em duas partes: a primeira, com uma ênfase bíblica e teológica, vai dos livros I ao VII. Ele aceitou sem discussão a verdade de que existe um só Deus, que é Trindade, e que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são simultaneamente distintos e coessenciais, numericamente um quanto à substância. Na explicação que faz do mistério trinitário, Agostinho concebe a unidade da natureza divina, antes de considerar as Pessoas divinas em separado. Sua fórmula trinitariana é: uma só natureza subsistindo em três Pessoas. Essas três Pessoas se apropriam de modo distinto da mesma natureza: o Pai sem princípio, o Filho por geração eterna do Pai e o Espírito Santo espirado pelo Pai e pelo Filho. Seus escritos estão repletos de declarações detalhadas quanto a isso.

    A segunda parte, do livro VIII ao XV, tem um enfoque psicológico e filosófico. Nessa parte, Agostinho desenvolve as analogias trinitarianas, que ele descobre especialmente na alma humana, criada à imagem de Deus. É esse último ponto que constitui o elemento de maior originalidade no tratado. Frequentemente tem sido dito que a principal analogia trinitária dessa seção é a do amante (amans), do objeto amado (quod amatur) e do amor que os une (amor). Porém, a discussão de Agostinho de tal analogia é bastante curta, e é apenas uma transição para aquela que considera a analogia mais importante, a da atividade da mente quando dirigida para si mesma ou, melhor ainda, para Deus. As analogias trinitarianas resultantes foram:

    A mente, seu conhecimento de si mesma e seu amor de si mesma.

    A memória ou o conhecimento potencial da mente de si mesma, o entendimento, isto é, sua apreensão de si mesma à luz das razões eternas e a vontade, ou amor de si mesma, pela qual o processo do ato de conhecimento é posto em movimento.

    A mente, lembrando, conhecendo e amando ao próprio Deus.

    Agostinho considera que apenas quando a mente focaliza a si mesma, com todas as suas potências de lembrança, entendimento e amor a seu Criador, é que a imagem de Deus, que ela traz em si, corrompida pelo pecado, pode ser plenamente restaurada. Então, seguindo o entendimento agostiniano, apenas no próprio Deus está a base para a razão e a linguagem humana, para nossa capacidade de escolha, para nossa profunda diversidade de emoções, para a apreciação da beleza, para nossa propensão à criatividade, para nosso senso de ética e eternidade, para nosso desejo de relacionamento social.⁵⁶

    No terceiro e mais acalorado debate teológico de Agostinho, começa a controvérsia sobre a doutrina da graça.⁵⁷ Pelágio, provavelmente nascido na Britânia, famoso por sua disciplina moral, ao chegar a Roma, em torno do ano 400, começou a ensinar os seguintes pontos: Adão foi criado mortal e teria morrido quer tivesse pecado, quer não; o pecado de Adão contaminou só a ele, e não a

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