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Nem pátria, nem patrão! - 4 edição: Memória operária, cultura e literatura no Brasil
Nem pátria, nem patrão! - 4 edição: Memória operária, cultura e literatura no Brasil
Nem pátria, nem patrão! - 4 edição: Memória operária, cultura e literatura no Brasil
E-book635 páginas7 horas

Nem pátria, nem patrão! - 4 edição: Memória operária, cultura e literatura no Brasil

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Sobre este e-book

Anarquismo e operariado no Brasil Quarta edição revista e ampliada de um livro fundamental para pesquisas na área de história do trabalho e no campo das culturas entre operários. O livro desenvolve uma discussão crítica das contradições e problemas da existência de uma política cultural anarquista no Brasil, e estuda a presença cultural do proletariado e das correntes libertárias no panorama literário pré-modernista da sociedade brasileira, mostrando os laços orgânicos entre a literatura social e o anarquismo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento2 de mar. de 2024
ISBN9786557145463
Nem pátria, nem patrão! - 4 edição: Memória operária, cultura e literatura no Brasil

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    Nem pátria, nem patrão! - 4 edição - Francisco Foot Hardman

    Capa_16x23-1.jpg

    Nem pátria, nem patrão!

    FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP

    Presidente do Conselho Curador

    Mário Sérgio Vasconcelos

    Diretor-Presidente / Publisher

    Jézio Hernani Bomfim Gutierre

    Superintendente Administrativo e Financeiro

    William de Souza Agostinho

    Conselho Editorial Acadêmico

    Divino José da Silva

    Luís Antônio Francisco de Souza

    Marcelo dos Santos Pereira

    Patricia Porchat Pereira da Silva Knudsen

    Paulo Celso Moura

    Ricardo D’Elia Matheus

    Sandra Aparecida Ferreira

    Tatiana Noronha de Souza

    Trajano Sardenberg

    Valéria dos Santos Guimarães

    Editores-Adjuntos

    Anderson Nobara

    Leandro Rodrigues

    FRANCISCO FOOT HARDMAN

    Nem pátria, nem patrão!

    Memória operária, cultura e literatura no Brasil

    4a edição

    revista e ampliada

    © 2024 Editora Unesp

    Direitos de publicação reservados à:

    Fundação Editora da Unesp (FEU)

    Praça da Sé, 108

    01001-900 – São Paulo – SP

    Tel.: (0xx11) 3242-7171

    Fax: (0xx11) 3242-7172

    www.editoraunesp.com.br

    www.livrariaunesp.com.br

    [email protected]

    Esta nova edição revista e ampliada de Nem pátria, nem patrão! chega aos leitores no marco dos quarenta anos de sua publicação original pela editora Brasiliense (1983; 2.ed., 1984). Pela Editora Unesp, a obra teve uma 3a edição revista e ampliada, publicada em 2002.

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

    Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva – CRB-8/9410

    H264n

    Hardman, Francisco Foot

    Nem pátria, nem patrão! Memória operária, cultura e literatura no Brasil [recurso eletrônico] / Francisco Foot Hardman. – 4. ed. – São Paulo: Unesp Digital, 2024.

    Inclui bibliografia.

    ISBN: 978-65-5714-546-3 (Ebook)

    1. Ciências políticas. 2. Memória operária. 3. Cultura. 4. Literatura. I. Título.

    2024-239

    CDD 320

    CDU 32  

    Editora afiliada:

    Para a pequena Estela, que chegou (2023)

    À memória de Diva Foot Hardman (1917-1999)

    Sumário

    Aos 40 anos de Nem pátria, nem patrão!: Lutar contra a desigualdade é lutar pela democracia

    Prefácio à 3a edição

    Parte I – Nem pátria, nem patrão!

    Introdução

    1 Instituições da classe operária e cultura

    2 A estratégia do desterro

    3 Sinais do vulcão extinto

    4 O impasse da celebração

    Um dia são vários lugares

    Celebração e trabalho

    Imaginação e história: signos culturais da presença operária

    Fragmentos de um posfácio

    Iconografia

    Parte II – Estudos afins

    1 Arquivo como resistência: para um fichamento dos anos 1970

    2 Lazer operário: duas visões

    Lafargue e O direito à preguiça

    A vodca, a igreja e o cinematógrafo

    3 História do trabalho e da cultura operária no Brasil pré-1930: um campo de estudos em construção

    4 Palavra de ouro, cidade de palha

    Excurso: São Paulo de Pommery

    5 Poeira das barricadas: notas sobre a comunidade anárquica

    6 Em busca dos espaços operários

    Amargo obrero, amargo trem-fantasma

    Espaços dispersos

    Excurso: Ventos do mar

    7 Os senza patria: imigrantes, classe operária e política na Argentina (1880-1920)

    Preliminares

    Aspectos históricos

    8 Imprensa operária, espaço público e resistência: notas de leitura

    História e classes subalternas

    Classes subalternas e cultura

    Uma cultura de resistência

    9 Incêndios sublimes: figurações da Comuna no Brasil

    Elos perdidos

    Figurações sublimes

    Espelhos morais e vida nua

    10 Duas sobreviventes

    Os inventores desconhecidos

    Lyra da Lapa: acorde imperfeito menor

    Parte III – A luta continua!

    1 Em que ano nós estamos? Em que ano nós estamos?

    2 Memórias contra a história

    3 Nós, que amávamos tanto a revolução: dos sonhos de 68 aos pesadelos de 2018

    4 A luta continua: três exemplos

    Sobre alguns arquitetos da ordem anárquica

    Pietro Gori no exílio sul-americano: sem-pátria e sem-fronteiras

    Sorocaba não foge à luta: contra as oligarquias de ontem e de hoje

    5 Sonhos anarquistas: o SOS do Titanic ecoa pelos sete mares

    Bibliografia

    Periódicos

    Documentos, relatos, opúsculos e álbuns

    Livros e artigos

    Filmografia

    Os vulcões arrojam pedras, as revoluções, homens. Espalham-se famílias a grandes distâncias, deslocam-se os destinos, separam-se os grupos dispersos às migalhas; cai gente das nuvens, uns na Alemanha, outros na Inglaterra, outros na América. Pasmam os naturais dos países. Donde vêm estes desconhecidos? Foi aquele Vesúvio, que fumega além, que os expeliu de si. Dão-se nomes a esses aerólitos, a esses indivíduos expulsos e perdidos, a esses eliminados da sorte: chamam-nos emigrados, refugiados, aventureiros.

    (Victor Hugo, Os trabalhadores do mar, s.d.)

    Assim como as eras da história natural se tornam legíveis através dos estratos geológicos, assim certos períodos [...] se cristalizaram em sua memória em função de determinados lugares: um café, um trecho de calçada, a grade de um jardim, uma fachada fortemente iluminada pelo sol de três horas da tarde. Mais para frente lhe ocorreu [...] ver como se despertava em você essa mesma sensação de contato direto, quase físico, doloroso talvez, com algum elemento material do universo: uma superfície rugosa, compacta, lisa ou marcada pelo tempo ou pelo trabalho ou pelo simples uso, como se nessa limitada paisagem material, inexpressiva por si só, houvessem sido incrustados sentimentos, projetos humanos, como se tivessem reconstruído naquelas superfícies arenosas uma memória, como se essa matéria inerte tivesse sido humanizada por uma possível memória.

    (Jorge Semprún, Autobiografia de Federico Sánchez, 1979)

    Aos 40 anos de Nem pátria, nem patrão!: Lutar contra a desigualdade é lutar pela democracia

    Aqui não é o Grito do Ipiranga, um dos primeiros fake news do novo Estado nacional-monárquico, em 1822. Aqui é, sim, o Grito dos Excluídos e Excluídas, após 29 anos de sua criação. Movimentos sociais, populares e sindicais caminham por mais de duas horas, em São Paulo, desde a praça Oswaldo Cruz até o parque do Ibirapuera. São milhares de pessoas. A cena se repete em 23 estados e 55 cidades, por todas as regiões brasileiras. Nenhuma palavra ou nota na grande imprensa corporativa. Apenas o jornal Brasil de Fato noticia e destaca essa tradicional manifestação, cobrindo o evento em tempo real e com a relevância merecida.

    Esse é um bom exemplo, real, da enorme distância entre a presença dos de baixo e sua visibilidade para os donos do poder e os arautos do espetáculo midiático. Nossa pesquisa originou-se da necessidade de desvendar os sinais e as representações que as classes operárias imprimiram – no mais das vezes, anonimamente – ao longo da história do Brasil moderno e republicano. Sinais e representações que foram importantes elementos inovadores da nossa linguagem, cultura, arte e literatura. Vozes em geral silenciadas diretamente pela repressão ou indiretamente pela desmemória produzida como política de Estado ou artefato da indústria cultural.

    Em 1983, a primeira edição deste livro concentrou seu itinerário no chamado período da Primeira República, mais exatamente entre 1890 e 1935, com um levantamento historiográfico de fontes da imprensa operária em grande parte inéditas e que constituem parte substancial do acervo do Arquivo de História Social Edgard Leuenroth (IEL-Unicamp). O novo personagem que ali despontava com força era a nova classe operária urbano-industrial. Com a predominância das correntes anarquistas, sobretudo anarcossindicalistas, grande ênfase foi dada à produção cultural própria, incluindo um jornalismo independente de alta qualidade informativa e original em sua linguagem e propósito educativo. Seguiu-se logo uma segunda edição. Na mesma esteira, organizamos, em parceria com nosso saudoso colega Arnoni Prado, o livro Contos anarquistas (Brasiliense, 1985), que despertou muito interesse entre os estudiosos da literatura brasileira. Sua edição ampliada, em 2011, que teve a incorporação fundamental da pesquisadora Cláudia Leal entre seus organizadores, trouxe também o registro de textos proletários escritos em italiano e espanhol, publicados na imprensa operária brasileira, a revelar o caráter internacionalista, desde sempre, dessas manifestações culturais (cf. Contos Anarquistas: temas e textos da prosa libertária no Brasil, 1890-1935, 2011).

    Foi há pouco mais de vinte anos que pude rever e ampliar substancialmente os ensaios de Nem pátria, nem patrão!, com vista à sua terceira edição, saída em 2002, graças ao apoio da Editora Unesp. Nela, a segunda parte inclui dez estudos afins, selecionados entre minhas produções vinculadas diretamente ao tema do livro, escritas ao longo das duas décadas após a primeira edição. O fato é que a emergência das lutas anticapitalistas mundiais na virada do século XX ao XXI aumentou significativamente o interesse e a atualidade da pesquisa sobre o passado das manifestações culturais libertárias e socialistas – como bem assinalou então Michael Löwy, na nota prefacial que gentilmente redigiu.

    A história dos movimentos e revoluções sociais contemporâneos colocou-nos em face do dilema que separou, historicamente, movimentos libertários de perfil anarquista e movimentos socialistas ou comunistas de perfil partidário e institucional. Entre tantas reflexões que se têm feito a respeito, em especial no século XXI, chamo a atenção para a contribuição trazida por Olivier Besancenot e Michael Löwy em seu livro Afinidades revolucionárias: Nossas estrelas vermelhas e negras. Por uma solidariedade entre marxistas e libertários (2016 [2014]).¹ Pode-se lê-la como uma espécie de utopia, já que movimentos, sindicatos e partidos se encontram, em geral, muito afastados da ideia de buscar afinidades ou solidariedades entre suas bandeiras e táticas. De todo modo, não devemos afastar o ideal dessa busca por pontes que aproximam. No enfrentamento de regimes fascistas, autoritários e totalitários, a aliança entre horizontalistas e verticalistas torna-se, como se viu em várias ocasiões, e até recentemente, uma necessidade imperiosa.

    Todas as edições anteriores deste livro permanecem esgotadas há um bom tempo. Para esta quarta edição, que surge na passagem dos 40 anos de Nem pátria, nem patrão!, além de uma revisão detalhada de todos os seus capítulos, que contou com o trabalho sempre competente de Danielle Crepaldi Carvalho, tive o suporte técnico imprescindível da equipe coordenada pelo editor-adjunto da Editora Unesp, Leandro Rodrigues. Ela foi ampliada com cinco ensaios selecionados dentre a produção pertinente ao tema que apresentei e escrevi nesse último período.

    Tantos espaços e tantos tempos: da utopia anarquista diante do mundo civilizado em ruínas, que já se prenunciava às vésperas da Primeira Guerra Mundial, às memórias de revolucionárias e revolucionários que enfrentaram e foram vitimados pela ditadura militar brasileira. Da notícia desses arquitetos da ordem anárquica, na bela expressão de nossa saudosa colega Patrizia Piozzi, a esse exilado infatigável, Pietro Gori, um jurista libertário que tantos seguidores deixou, entre outros lugares, na Argentina e no Brasil. E, para não esquecermos jamais do interior, uma pequena nota à tradição de luta social em Sorocaba.

    Além disso, a lembrança dos 50 anos de Maio de 1968 trouxe muitas iniciativas e convites. Participei de seminários a esse propósito em Belém do Pará, Londres e Campinas. A síntese dessas intervenções está na imagem de uma geração que tanto amava a revolução, e que se viu, afinal, premida entre os sonhos de 68 e os pesadelos de 2018. No Brasil, nos anos seguintes, a realidade aprofundou essa cisão.

    Mas, de novo, a luta continua e se renova. E aqui não é o Grito do Ipiranga. Aqui é o Grito dos Excluídos e das Excluídas. As vozes passadas das e dos protagonistas de Nem pátria, nem patrão! ecoam aqui e agora. E os novos manifestantes pedem passagem por espaços que normalmente os excluíram, a começar por esse Monumento às bandeiras, de tantas memórias genocidas na história do Brasil. E reafirmam que têm fome de quê, que têm sede de quê: sua pauta é tão repleta de itens quanto o é a desigualdade social no mundo e em nosso país, em sua permanência e profundidade. Sem transformar radicalmente esse quadro, nada de democracia que possa ser digna do nome. É nessa tecla e toada que ofereço esta nova edição do livro, esperando que possa ajudar nas lutas que cá se travam.

    São Paulo, 7 de setembro de 2023


    1 Edição brasileira pela Editora Unesp. (N. E.)

    Prefácio à 3a edição

    Publicado pela primeira vez em 1983, pela editora Brasiliense, Nem pátria, nem patrão! foi relançado em segunda edição ainda em 1984 e, antes do fim dos anos 1980, encontrava-se esgotado. Sua aparição e recepção acompanharam de perto o despertar dos movimentos sociais, em especial os operários, desde o final dos anos 1970, no longo e difícil processo de luta contra a ditadura militar. A reavaliação dos sentidos históricos e políticos de processos culturais vividos entre trabalhadores da primeira geração de uma classe operária urbano-industrial no Brasil, tema dos estudos que o compõem, fez parte do esforço coletivo de pesquisa que o tema da história social do trabalho encontraria, naqueles anos, em muitos centros universitários brasileiros, em especial nas áreas de história, ciências sociais, economia e comunicação. Tratava-se de buscar novas interpretações acerca do passado operário diante dos impasses daquele presente e, ao mesmo tempo, de constituir elos de resistência à dura repressão que se abatia sobre os meios intelectuais de esquerda na Universidade brasileira.

    O projeto desta nova edição foi sendo adiado, seja pela gradual e melancólica extinção de uma das mais importantes editoras de expressão nacional do século XX no Brasil, inclusive por seu aporte ao pensamento crítico – a Brasiliense de Monteiro Lobato, Caio Prado Jr. e Caio Graco –, seja pelas urgências da vida universitária cada dia mais burocratizada, que atropelavam o desejo de proceder a uma ampla revisão e ampliação do texto impresso originalmente. Finalmente, neste entresséculos, defrontei-me em corpo a corpo com a versão impressa, tarefa que os que a viveram sabem ser muitas vezes tão ou mais árdua que produzir textos novos. Daí resultou a revisão dos capítulos nucleares de Nem pátria, nem patrão!, da Introdução ao Capítulo 3; o ensaio O impasse da celebração, antes apêndice, foi agora definitivamente incorporado como Capítulo 4. As várias alterações feitas, bem como o acréscimo de toda uma segunda seção denominada Estudos afins, reunindo dez textos escritos de forma autônoma em relação ao projeto original do livro, mas a seu tema vinculados de modo estreito, e que haviam saído à luz esparsamente em periódicos e livros, entre meados dos anos 1970 e o ano passado (afora alguns poucos inéditos), acabaram por justificar a mudança de subtítulo do volume em seu atual formato. De vida operária e cultura anarquista no Brasil, da primeira e segunda edições, optei por memória operária, cultura e literatura no Brasil na terceira edição, dado o relativo alargamento de temas e nexos históricos, políticos e culturais. Parte considerável dos estudos então agregados foi também, por sua vez, reescrita, refundida ou renomeada.

    Muitas mudanças significativas ocorreram mundial e nacionalmente nessas quase duas décadas que separam as edições anteriores da presente versão, também bastante modificada. Se, lá na cena de 1980, nascia o Partido dos Trabalhadores, e a festa-comício que introduzia Nem pátria simbolizava um elo com tradições inventadas anteriormente pela classe operária, mas também com o mundo dos megashows populares e da telenovela, agora é o tempo triunfante dos marqueteiros (mesmo derrotados seguidamente, seguem arrotando fórmulas neutras de êxito eleitoral, aumentam seus cachês como craques do esporte votivo e cultivam o autoelogio midiático) e do game milionário de políticos convertidos em figurantes indiferenciados, subalternos e mercáveis da espetacularização generalizada e diluidora da política, em favor da fama pasteurizada na TV, aparentados a artistas populares expressivos, mas em verdade já formatados na função substitutiva e desmobilizadora de toda grande mídia, reforçando, portanto, o conservadorismo que une, em fenômeno de caráter mundial, os donos das emissoras e veículos, das finanças e do poder de Estado. O que se projeta e aparece como exposição igualitária de partidos é na verdade o desfile de discursos esvaziados, a reboque de forças e personagens os mais retrógados, esses sim os ganhadores do show.

    O aspecto correlato desse processo é que a busca de respectability, outro tema importante nas tensões históricas de classe e nas guerras culturais entre visões de mundo contrapostas, que, naquela cena de 1980, confundia-se com a própria luta pela legalidade da representação política e sindical dos trabalhadores (fazendo paralelo impressionante com a história das práticas culturais dos anarquistas, que não buscavam a legalização, mas, ao mesmo tempo, necessitavam apoiar-se em códigos linguísticos e sociais de legitimação), redunda, agora, em real politik que subjuga todo o programa de transformação social e confronto ideológico à perspectiva de um próximo êxito eleitoral ao parlamento ou ao executivo, ficando a legitimidade confinada às aparências palatáveis da sensatez sensaborona dos homens (e mulheres!) de bem.

    O fato é que, se a crise do socialismo real e o desmanche do bloco soviético liberaram, de um lado, forças críticas antiglobalização inimagináveis até a explosão de Seattle, repondo culturas anarquistas e utópico-românticas no centro do furacão, de outro, ela acelerou a barbárie da mercantilização da política-espetáculo e da desagregação dos aparelhos estatais em redes mais ou menos associadas a novas máfias dos grandes negócios ilícitos, em cenário ainda mais desigual, centralizado pelo domínio imperial dos conglomerados financeiros, no concerto econômico-político-militar dos Estados nacionais mais poderosos.¹ As duas tendências antagonizam-se: em 2001, a oposição entre os encontros de Davos e Porto Alegre foi mais que emblemática.

    No Brasil, porém, o confronto Porto Alegre versus privatização dos poderes e espaços públicos por velhas oligarquias mal renovadas continua no epicentro da vida nos planos nacional, regional e local. Certa arrogância olímpica mal disfarça sob retórica de modernidade o extremo arcaísmo com que se quer desqualificar o indiscutível êxito desse novo polo mundial das lutas anti-imperiais. Mas já é tempo de novos internacionalismos em choque. É tempo de desconfiar, mais que nunca, das políticas institucionalizadas em manobras publicitárias. É tempo de reafirmar culturas libertárias antiliberais, coletivistas e antiaparelhistas, neo-utópicas. É tempo de refundar utopias. Talvez Nem pátria, nem patrão! possa ressurgir numa nova conjuntura de espantos e começos, de fundação de espaços antifundamentalistas. Talvez a indagação de um passado operário mergulhado em sonhos perdidos e na ruína das comunas destruídas possa ao menos inspirar a visão do presente e das grandes recusas a serem reiteradas. E percebamos que tal passado não é lá tão remoto, mas pode despontar em cenas e ações atuais. A alegria estuante de trabalhadores livres por alguns instantes das cadeias do capital, imagem capturada da imprensa anarquista de início do novecentos que serviu de mote crítico a Nem pátria, nem patrão!, pode reemergir aqui e agora, por exemplo, na crônica da alegria invisível dos manifestantes de Porto Alegre:

    Os que foram a Porto Alegre experimentaram essa sensação estranha que é a de se reconciliar com o presente. O mundo pode ser outro, diziam. A novidade é que isso pode ser já. Não se trata de jogar as fichas no futuro, mas de perceber que o futuro pode estar começando. A alegria invisível talvez tenha a ver com isso... Não são os protestos, a consciência crítica, o movimento antiglobalização, não é nada disso que move aquela gente toda. É a alegria, e não há por que negá-la. É a alegria da gente que não sai no jornal e que está mudando o curso dos acontecimentos (Bucci, 2002, p.8).

    Se a burocratização do sonho e do movimento é real, também verdadeira é a vontade de remover todos os especialistas em manipular a vida nua, todos os burocratas, demagogos e sábios do pau oco. Todos os intérpretes do Brasil exclusivo dos excludentes e abissal aos excluídos.²

    * * *

    Esta nova edição não reaparece isoladamente, mas no rol de bibliografia hoje mais que representativa de uma área de estudos que se alargou e se diversificou enormemente desde os anos 1970. Da era heroica de criação do Arquivo Edgard Leuenroth, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, em 1974, aos dias de hoje, quando o arquivo se converteu num dos principais acervos de referência internacional para pesquisas no campo da história do trabalho, vários programas de pós-graduação consolidaram suas trajetórias com resultados de qualidade, além de trabalhos autônomos de real valor. Na impossibilidade de mencionar aqui uma listagem exaustiva, devo referir antes de tudo a continuidade de pesquisas em história social, com particular interesse para o campo das culturas entre operários, desenvolvidas no departamento de história daquele instituto. Entre tantos trabalhos, destacaria a tese de Dora Barrancos, Os últimos iluminados (1993), orientada por Michael Hall, a propósito da divulgação científica entre trabalhadores na Argentina do começo do século XX (a mesma autora já havia estudado a educação anarquista no país vizinho em dissertação de mestrado feita em Belo Horizonte, na UFMG, em 1985: Destruir é construir!). Reconstrução minuciosa do cotidiano da greve de 1917 empreendeu Christina Lopreato na tese O espírito da revolta (1996), dirigida por Edgar De Decca e editada recentemente em livro (2000). Os rituais do Primeiro de Maio no Rio de Janeiro da República Velha foram pesquisados por Luciana Barbosa Arêas na dissertação A redenção dos operários (1996); e o jornal libertário O Amigo do Povo foi rastreado por Edilene Toledo em mestrado sobre grupos de afinidade e a propaganda anarquista em São Paulo nos primeiros anos deste século (1993), ambos sob orientação de Claudio Batalha.

    Em outra vertente, no plano das biografias de militantes, cumpre ressaltar, ainda na Unicamp, a importância do estudo de livre-docência de Margareth Rago acerca da anarquista ítalo-uruguaia Luce Fabbri (Rago, 2001), bem como o mestrado de seu orientando Carlo Romani, que desvendou trajetórias de uma mitológica liderança em Oreste Ristori: uma aventura anarquista (1998). Quadro que se deve completar com a dissertação defendida por Rogério H. Zeferino Nascimento em João Pessoa, no mestrado de sociologia da Universidade Federal da Paraíba, em 1996: O mestre revoltado: vida, lutas e pensamento do anarquista Florentino de Carvalho. Já no âmbito da pesquisa em história oral sobre a trajetória de alguns antigos militantes operários, cabe mencionar a que Angela Castro Gomes coordenou, no Rio de Janeiro, junto ao Cepedoc da Fundação Getúlio Vargas (Gomes, 1988b). Quanto ao tema da política cultural no itinerário intelectual militante do anarquista e, depois, comunista Astrojildo Pereira, não há como dispensar a leitura do importante ensaio de Martin Cezar Feijó, recém-publicado e defendido inicialmente como doutorado em comunicação na ECA/USP (cf. Feijó, 2001). Já a imprensa operária inserida no contexto mais amplo do periodismo urbano na cidade de São Paulo foi objeto de alentada tese em história social defendida na USP pela professora da PUC-SP, Heloísa de Faria Cruz (cf. Cruz, 2000).

    No Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, além dos estudos continuados de Antônio Arnoni Prado, com quem colaborei em alguns projetos (cf. Arnoni Prado; Hardman, 1985; e Arnoni Prado, 1986), sublinhe-se o interesse do mestrado de Regina Aída Crespo, Crônicas e outros registros: flagrantes do pré-modernismo (1911-1918), por mim dirigido e que pesquisou, entre outros periódicos, a revista libertária A Vida (1990); e, sob orientação do referido colega, a dissertação de Luiza Faccio, Libertários no teatro (1991), bem como o excelente estudo de Claudia Feierabend Baeta Leal, Anarquismo em verso e prosa: literatura e propaganda na imprensa libertária em São Paulo (1900-1916), dissertação concluída em 1999 e que representa, sem dúvida, contribuição historiográfica inovadora sobre o tema.

    No que concerne à obra de autores da chamada literatura social que mantiveram laços orgânicos com o anarquismo, é preciso referir os trabalhos de Letícia Malard e de Regina Horta Duarte, respectivamente das áreas de estudos literários e história da Universidade Federal de Minas Gerais, sobre o romancista mineiro e anarquista Avelino Fóscolo (cf. Malard, 1987; Duarte, 1991), que teve também há pouco redescoberto um romance social inédito, Morro velho, na vertente do canônico Germinal (Fóscolo, 1999). Já a produção literária anterior a 1930 do escritor Afonso Schmidt foi objeto da interessante tese de Maria Célia R. A. Paulillo, orientada por Antônio Dimas, em literatura brasileira, na USP em 1999, sob o título Penumbrismo e participação social: Afonso Schmidt e a literatura paulista (1906-1928). Na área de história social da USP, merecem ser reportadas, entre outras, a tese de Flavio Luizetto, Presença do anarquismo no Brasil: um estudo dos episódios literário e educacional (1900-1920), de 1984; a tese de Helena Isabel Muller, Flores aos rebeldes que falharam (1990), sobre o espírito utópico de Giovanni Rossi na criação da Colônia Cecília; e a dissertação de José Adriano Fenerick, O anarquismo literário (1997), que trata de romances anarquistas no Rio de Janeiro entre 1900-1920. Também no Rio de Janeiro, Bernardo Kocher e Eulália Maria Lahmeyer Lobo organizaram uma coletânea pioneira de poemas operários entre os anos 1890-1920 (Kocher, Lahmeyer Lobo, 1987).

    No campo de arquitetura e urbanismo, ainda na USP, trabalhos orientados e/ou desenvolvidos por Phillip Gunn, Malu Gitahy, Ana Lanna e Hugo Segawa, entre outros, têm oferecido alguns ótimos aportes ao estudo da questão espacial nas classes operárias.³ Na linha de análise da repressão do antigo sistema fabril, há vários estudos interessantes, entre os quais o de Domingos Giroletti sobre as indústrias têxteis mineiras oitocentistas do Cedro e Cachoeira, o de Elizabeth von der Weid e Ana Marta Bastos sobre a Cia. América Fabril e o de José Sergio Leite Lopes sobre a cidade-fábrica de Paulista, na periferia de Recife (Giroletti, 1991; Weid, Bastos, 1986; Leite Lopes, 1988). Fazendo contraponto a esse poder do capital, o projeto pedagógico do anarcossindicalismo foi estudado em trabalhos como a dissertação de Célia Benedito Giglio, "A voz do trabalhador": sementes para uma nova sociedade (1995), apresentada na Faculdade de Educação da USP. Ainda no plano de importantes pesquisas regionais, é preciso registrar a coletânea de textos da imprensa libertária no Ceará, organizada por Adelaide Gonçalves e Jorge E. Silva, e o detalhado estudo de Sílvia Petersen sobre as antigas associações operárias gaúchas (cf. Gonçalves, Silva, 2000; e Petersen, 2001).

    Para além de pesquisas monográficas, entre trabalhos com perspectiva de mais amplo espectro, vale mencionar o relevante panorama de Angelo Trento sobre a imigração italiana, bem como o ensaio de Jacy Seixas em torno do tema da memória e do esquecimento na história do anarquismo no Brasil (cf. Trento, 1988, com nova edição em 2023; e Alves de Seixas, 1992). Ressalte-se, ainda, no campo da filosofia política, a tese de Patrizia Piozzi, Natureza e artefacto: a ordem anárquica – algumas considerações sobre a gênese da ideia socialista libertária (1991), defendida na USP e orientada por Maria Sylvia de Carvalho Franco.

    Todas essas indicações, longe de esgotarem o acervo de estudos atualmente disponíveis, atestam a consolidação de uma linha de pesquisa das mais férteis, espraiada por várias disciplinas de conhecimento e áreas do saber.

    Para o preparo da presente versão, devo agradecer ao Fundo de Amparo ao Ensino e Pesquisa da Pró-Reitoria de Pesquisa da Unicamp pelos recursos que auxiliaram parcialmente no trabalho de digitação dos textos originais, escritos, boa parte deles, ainda na era da datilografia. A bolsa de pesquisa do CNPq viabilizou a continuidade de projetos paralelos e a aquisição de materiais bibliográficos e de papelaria indispensáveis a uma revisão como esta, que alterou bastante a composição do livro em suas aparições anteriores. Numa fase inicial de conversão do texto em arquivos no formato Word, contei com a colaboração de Marlene De Stefani, a quem sou grato. Para a revisão final, digitações adicionais e editoração do conjunto dos textos, foi de suma valia a atenta cooperação de Ana Edite Montoia, a quem renovo minha amizade. Na digitação e revisão da tradução do texto de Trotski, A vodca, a igreja e o cinematógrafo, obtive o apoio de minha orientanda de mestrado Maria Rita Sigaud Soares Palmeira, cuja pesquisa a respeito das passagens do poeta surrealista e militante trotskista Benjamin Péret no Brasil culminou em excelente dissertação concluída no final de 2000: Poeta, isto é, revolucionário. Esse trabalho representou importante elo na minha retomada do espaço-tempo político e poético de Nem pátria, nem patrão!.

    Armando Boito Jr., coordenador do Centro de Estudos Marxistas do IFCH/Unicamp, ao convidar-me para o Seminário Internacional Comuna de Paris, 130 Anos: 1871-2001, realizado em Campinas, em maio do ano findo, mal sabia que estava colaborando decisivamente para o desfecho deste processo de atualização dos fantasmas da memória operária, cujos riscos e equívocos assumo integralmente. A José Castilho Marques Neto e Jézio Hernani Bomfim Gutierre, que souberam fazer da Editora Unesp um marco de referência nacional e internacional no panorama das edições universitárias e que sempre apostaram no projeto de reedição revista e ampliada de Nem pátria, cobrando-me esse seu novo retorno ao público leitor, minhas escusas pelo atraso e minha gratidão pela confiança. Entre meus correspondentes internacionalistas das utopias renovadas, devo assinalar as amizades solidárias de Michael Löwy (Paris) e Roberto Vecchi (Modena-Bolonha), que, em seu generoso e imoderado entusiasmo pela obra, forneceram-me impulso suplementar não desprezível a mais este engajamento editorial. Na nova seleção de imagens para a presente edição, contei com o apoio militante de Nildo Batata, da jovem geração do Centro de Cultura Social, entidade anarquista fundada em 1933 por Leuenroth e em pleno funcionamento na cidade de São Paulo; de Benê Trevisan e Osmar Mendes, do Museu Histórico de São José do Rio Pardo; de Ema Franzoni, do Arquivo Edgard Leuenroth; e, last but not least, de Flávia Carneiro Leão, do CEDAE-IEL/Unicamp. Igualmente, meu agradecimento a todos os editores ou organizadores dos eventos e publicações que deram origem ao corpo de textos da Parte II, Estudos afins, cujos créditos encontram-se em nota ao final do volume. A bibliografia final condensa o conjunto das referências do ensaio principal e dos artigos anexos.

    Rio de Janeiro-São Paulo, dezembro de 2001/julho de 2002


    1 Para uma visão crítica abrangente da crise dos movimentos socialistas no século XX, desde a Revolução Russa até o ressurgimento das políticas mais conservadoras nos anos 1990, tendo como cenário privilegiado a Alemanha, ver o romance de Tariq Ali, Medo de espelhos (2000). Saga ficcional extremamente bem informada historicamente, trata-se de uma visão impiedosa em sua ironia, mas grandiosa de humanidade na reposição da verdade dos sonhos utópicos das gerações precedentes de revolucionários. A propósito da espetacularização da sociedade de mercadorias, a contribuição mais radical e hoje clássica, brilhante em vários insights antecipatórios, continua sendo o ensaio de Guy Debord, A sociedade do espetáculo (1967). Em 1999, Naomi Klein retoma e atualiza esse viés crítico na análise-manifesto No logo, no melhor espírito libertário da prática dos boicotes e sabotagens a produtos pelo antigo movimento anarquista, aqui repostos em tempos de Seattle, num cenário globalizado sob domínio das grandes corporações industrial-financeiras. Também inscritos num esforço de crítica radical ao pensamento único da ordem neoliberal são os instigantes ensaios de Boaventura de Sousa Santos, Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade (1995) e A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência (2000). Cf. também o confronto entre o poder incorpóreo imperial versus as multidões, em Empire, de Antonio Negri e Michael Hardt (2000).

    2 Nesse sentido, é animador constatar certo renascimento da cultura anarquista mediante a revitalização de antigas entidades como o Centro de Cultura Social, em São Paulo, ou o nascimento de outras, como o Instituto de Cultura e Ação Libertária, em São Paulo, e o Centro de Estudos Libertários Ideal Perez, no Rio de Janeiro; o surgimento de novas editoras libertárias como a Achiamé, no Rio de Janeiro, e a Imaginário e a Conrad, em São Paulo; e de novas publicações como as revistas Libertárias, Libertários e Verve, esta última editada em 2002 como órgão do Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária), sediado na PUC-SP.

    3 Como exemplo, cito o belo ensaio de Hugo Segawa, Prelúdio da metrópole: arquitetura e urbanismo em São Paulo na passagem do século XIX ao XX (2000).

    Parte I

    Nem pátria, nem patrão!

    Breton e Trotski, México, 1938 (Schwarz, 1977).

    Introdução

    Começo pelo fim. Isto, em dois sentidos. Uma introdução é sempre escrita ao fim de um trabalho, última tentativa de dar conta das questões não resolvidas, derradeiro trajeto do discurso do pesquisador, que tenta ainda o risco de alinhavar os processos históricos por ele construídos. Além de iniciar no momento final de um trabalho, esta introdução será marcada definitivamente pelo discurso pessoal, pela primeira pessoa do singular, eu. Foge das minhas pretensões tentar aqui reproduzir um certo proceder científico, tão tradicional quanto ilusionista, cujo ritual consiste em estabelecer hipóteses de trabalho que serão checadas no transcurso de uma prática científica, para se averiguar ou não sua verdade, capaz de transformá-las, nas páginas finais, em tese (legitimada pelas premissas de seu próprio discurso), enfim canonizável pela comunidade acadêmica, para sempre depositada no acervo de créditos, crenças e certezas da burocracia universitária, para sempre afastada da história e da vida dos homens.

    Mas falei de dois sentidos do começo pelo fim. Resta manifestar o segundo. Para contar um pouco da minha trajetória afetivo-intelectual em torno do tema deste trabalho, gostaria de ilustrar o tipo de acontecimento que moveu meu interesse com dois exemplos de uma longa história que teve início nos primórdios da constituição do proletariado como classe no Brasil. Diante de minha mesa, um volante, que me deixa um tanto perplexo:

    Viva o P.T.

    Festa-Comício do

    Partido dos Trabalhadores

    Osasco – 9 Março (1980)

    Presença de Lula – Jacó Bittar – Mané da Conceição

    José Ibrahim – Henos Amorina – Senador Santilo

    Deputados do P.T.

    Barracas com Comidas e Bebidas

    Circo e Brincadeiras infantis

    Shows – Teatro – Exposições

    Artistas:

    Antônio Marcos – Regina Duarte

    Bruna Lombardi – Eva Vilma

    Beth Mendes – Xênia

    Débora Duarte (e outros a confirmar)

    Final com Baile-Forró

    No Ginásio Prof. Liberatti

    Presidente Altino – Osasco

    Domingo – 9 de março – 9 às 19 hs.

    – Vá e leve a família –

    Ao olhar para esse anúncio, vieram à cabeça, inevitáveis, imagens de um passado muito mais remoto: os belos e vistosos anúncios de festivais operários, publicados com frequência na imprensa proletária anarquista, especialmente por volta de 1920 (cf. Capítulo 1). Claro, as semelhanças são névoas passageiras, firmando com mais vigor uma série de diferenças significativas, elementos esclarecedores e integrados à dramática história do proletariado no Brasil. Imaginemos, por um instante, o que os anarquistas criticariam nesse anúncio. Inicialmente, abominariam o próprio emissor do discurso, o Partido dos Trabalhadores e, nessa vertente, olhariam com demasiada suspeita a presença de senador e deputados numa festa operária. Quanto aos líderes sindicais, tudo bem, desde que fossem dirigentes de sindicatos livres e independentes, o que não é bem o caso. Nossos amigos anarquistas poderiam aceitar, não com muito bons olhos, a presença de uma penca de artistas pertencentes ao elenco da indústria cultural. Poderiam, talvez, após longa discussão, aceitar o fato, desde que fosse eficaz aos desígnios da propaganda. Como a atitude tolerante que tiveram, no passado, em relação a bailes, futebol e à presença de clubes esportivos em alguns dos festivais operários: essa popularização só se justificaria se estivesse subordinada à eficácia da doutrinação libertária. De qualquer modo, os anarquistas não trocariam seus próprios artistas amadores, membros dos grupos de teatro social, operários-atores das próprias associações sindicais, pelos astros profissionais televisados: prefeririam, certamente, os produtos de suas próprias agências culturais. Felizmente, para os anarquistas, em seu tempo não havia a concorrência desigual da televisão.

    Finalmente, nosso bom anarquista, orgulhoso de suas bandas e orquestras compenetradas, de fina e rica tradição na musicalidade popular de raízes europeias, olharia intrigado e com ar de espanto reclamaria explicações: Mas o que quer dizer Baile-Forró?!.

    Duas tradições distintas, duas gerações da classe operária separadas por uma longa historicidade entreolhar-se-iam perplexas.

    Esse discurso imaginário seria endereçado, certamente, aos emissores do anúncio, aos porta-vozes do PT, aos organizadores da festa-comício. Festa-comício? Eis uma composição de termos que sintetiza uma preocupação comum a várias gerações de dirigentes do movimento operário, ciosos de penetrar o solo fértil da classe, de deitar raízes e possibilitar a integração do discurso revolucionário ao discurso cotidiano e elementar da classe. Não à toa os anarquistas tornaram-se versáteis na produção de festas de propaganda que tentavam aliar o prazer do entretenimento às tarefas de convencer o público da necessidade da emancipação social. No Capítulo 1, analiso em pormenor a tensão permanente entre esses dois aspectos; expressão, em certo nível, da própria relação contraditória entre massas e direções. De qualquer modo, o anúncio que reproduzi aqui também está construído sobre a simultaneidade de planos e eventos (a qual aparece, inclusive, na variedade tipográfica que compunha o convite no volante original). Isso não é casual: por trás dessa múltipla forma do espetáculo, anuncia-se – pelo menos como previsão ou convite – a presença da classe operária, marcada no apelo à família trabalhadora, marcada no espaço de uma cidade operária, no único momento oficializado pelo Estado e abençoado pela Igreja como tempo livre, curto intervalo em que o operário sai do laboratório de extração da mais-valia e localiza-se no território da cidade: o domingo. Barracas, comidas e bebidas, circo, brincadeiras infantis, shows, teatro, exposições, discursos políticos, comício: festa-comício, classe-direção.

    Sem dúvida, entender as diferenças e, ao mesmo tempo, as intersecções entre as dimensões da classe, do movimento e da direção foi uma das preocupações centrais deste trabalho (Hobsbawm, 1974a). Não imputar à classe o que é mero produto das concepções de uma direção: eis um desafio essencial com que se defronta não só o pesquisador, mas também o militante do movimento operário. Num interessante artigo sobre a Revolução na Espanha, nos anos 1930, ao criticar as ambiguidades do Partido Obrero de Unificación Marxista (POUM), Trotski (1978b, p.111-4) lembrava que, costumeiramente, as direções políticas têm atribuído à natureza da classe operária as suas próprias insuficiências e incapacidade teórica e prática para compreendê-la e, com efeito, expressar sua energia represada em movimento revolucionário. Os trabalhos de Thompson, Hobsbawm, Perrot, Kriegel, Duveau, entre outros, têm manifestado, na historiografia mais recente do movimento operário, a preocupação em não se deixar levar pelas representações que as lideranças construíram sobre a classe que pretenderam dirigir. O peso que os fracassos da social-democracia e do stalinismo – para só ficar em dois exemplos cabais – imprimiram às novas gerações de historiadores e militantes explica, em parte, o cuidado, as dúvidas, mais que as certezas, e a atitude de desconfiança com que nos debruçamos a examinar discursos autoproclamados operários, revolucionários e outros paradigmas da verdade histórica.

    No Brasil, o fluxo de pesquisas universitárias sobre os trabalhadores, como já assinalou Paulo Sérgio Pinheiro (1975), acompanhou de perto o refluxo do movimento operário ao longo dos anos de 1970. Minhas pesquisas começaram exatamente aí, em 1973, com um primeiro levantamento bibliográfico sobre o trabalho urbano no Brasil. Felizmente, o último momento desse sinuoso e desequilibrado percurso, com seus atrasos inevitáveis, acabou se reencontrando, nos quatro últimos anos (isto é, desde maio de 1978), com um novo e vital ascenso do movimento operário, indício mais claro de que o tempo de tese estava se esgotando, ou pelo menos alterando drasticamente suas características. Junto com aquela década, era necessário dar um fim a essa etapa: e cá estou. O leitor talvez já se tenha esquecido, mas eu relembro: dissera, ao iniciar, que começaria pelo fim, isto é, provocado pela sugestão de duas notícias contemporâneas. Resta tratar da segunda. Abrindo um jornal de março de 1980, as manchetes concentram-se na primeira greve geral, depois de dezesseis anos de silêncio, do porto de Santos. E lá, nos meandros do movimento, o repórter teve a sensibilidade afinada para captar o seguinte fragmento, significativo de uma certa época e de um certo espaço (especialmente àqueles que, como eu, são cativados pela atmosfera agitada e esfumaçada do trabalho no cais de Santos):

    No sindicato dos operários portuários, localizado na zona de meretrício da cidade, uma multidão de pelo menos dois mil homens se comprimiu num enorme salão de reunião, discutindo os rumos da greve ou fazendo algazarra com copos plásticos de água. Na rua, grupos se divertiam com as prostitutas, de rostos bizarros e roupas extravagantes (Folha de S. Paulo, 18 mar. 1980, p.20).

    Na greve, liberada a rotina do trabalho, concentram-se uma energia e um imaginário incontroláveis por qualquer discurso linear. Rosa Luxemburgo (1979) captou exatamente esse problema ao selecionar imagens trazidas dos relatos jornalísticos sobre a Revolução Russa de 1905 e o poderoso ascenso grevista que a precedeu. Michelle Perrot, analisando o movimento operário na França pós-Comuna de Paris, desenvolveu também o tema da greve como eclosão da festa, das fantasias, como carnavalização do cotidiano e exercício soberano (espontâneo e transitório) do direito à preguiça.¹ Dommanget pesquisou os rituais coletivos e a simbologia viva presente nas comemorações do Primeiro de Maio. Boris Fausto retomou essa temática na análise da greve geral de 1917 em São Paulo.² A greve, nesse sentido, surge como ponto nevrálgico de entrelaçamento entre os planos da política (universal) e da cultura (particular). Na história do movimento operário, desde o anarquismo até o marxismo, as direções sempre viveram a dificuldade da passagem do particular para o universal, em se tratando das lutas concretas travadas pelo proletariado diante de seus inimigos históricos. Era preciso estabelecer uma ponte dialética entre esses dois termos. De que maneira? Na resposta a essa questão, divergiram tendências, estratégias e métodos.

    Na situação de encantamento produzida pelo espetáculo vertiginoso e alucinante do acontecimento revolucionário, Bakunin (apud Reszler, 1974, p.40), a propósito da Revolução de 1848, confessava:

    Era uma festa

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