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O Pensamento Antigo à Luz do Amanhã
O Pensamento Antigo à Luz do Amanhã
O Pensamento Antigo à Luz do Amanhã
E-book510 páginas7 horas

O Pensamento Antigo à Luz do Amanhã

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Sobre este e-book

A filosofia não se originou na Grécia, mas frutificou e se enraizou aí com uma força e nitidez capazes de alcançar nosso tempo e nos permitir contemplar os vários elementos estrangeiros que compuseram esse grande mosaico que todos olham e que fala com todos.
Nesta coletânea veremos aquilo que não é fácil de vislumbrar através da perspectiva que nos foi imposta como filosófica por excelência, que é reduzida e, muitas vezes, preconceituosa em relação a vários pensamentos e pensadores. Veremos o mundo a partir da perspectiva feminina presente no pensamento das filósofas na antiguidade grega, veremos a importância dos sofistas nas discussões envolvendo o conhecimento, a linguagem e a ação, veremos todo o rico pensamento das filosofias helenísticas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de ago. de 2024
ISBN9788581281186
O Pensamento Antigo à Luz do Amanhã

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    O Pensamento Antigo à Luz do Amanhã - Admar Costa

    © NAU Editora

    Rua Nova Jerusalém, 320

    CEP: 21042-235 - Rio de Janeiro (RJ)

    www.naueditora.com.br

    [email protected]

    Coordenação editorial Simone Rodrigues

    Revisão de textos Anelise Barreto, Jéssica Martins Costa e Miro Figueiredo

    Capa 3K Comunicação

    Projeto gráfico e editoração Estúdio Arteônica

    Conversão para eBook SCALT Soluções Editoriais

    Conselho editorial

    Alessandro Bandeira Duarte (UFRRJ)

    Claudia Saldanha (Paço Imperial)

    Eduardo Ponte Brandão (UCAM)

    Francisco Portugal (UFRJ)

    Ivana Stolze Lima (Casa de Rui Barbosa)

    Marcelo S. Norberto (CCE / PUC-Rio)

    Maria Cristina Louro Berbara (UERJ)

    Pedro Hussak (UFRRJ)

    Roberta Barros (UCAM)

    Vladimir Menezes Vieira (UFF)

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo, SP)

    Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Pedro Anizio Gomes - CRB-8 8846

    CDD 100

    CDU 10

    1a edição • 2023

    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO

    OS FRAGMENTOS METAFÍSICOS DE TEANO

    Carolina Araújo

    OS NOMES DO κόσμος NO POEMA DE PARMÊNIDES

    Bruno Fernandes Santos

    GÓRGIAS E A DECISÃO ÉTICA TRÁGICA

    Cristiane A. de Azevedo

    ESFORÇO E SATISFAÇÃO NO LEGADO DA ÉTICA SOCRÁTICA

    Cesar de Alencar

    O PODER E O EXERCÍCIO DO GOVERNO NA DEMOCRACIA

    Admar Costa

    O DIÁLOGO COMO KÓSMOS: A COMPOSIÇÃO PLATÔNICA SEGUNDO O OLHAR DOS ANTIGOS

    Nelson de Aguiar Menezes Neto

    SOU EU MAIS DO QUE A SOMBRA À MINHA FRENTE? THUMOEIDES E A IMAGEM DE SI NA PAREDE DA CAVERNA (Rep. 514A-515C)

    Flora Mangini

    O ÉROS COMO AMBIÇÃO TRÁGICA

    Pedro Baratieri

    SEDE DE DISCURSOS: UM MAPEAMENTO DA METÁFORA PLATÔNICA DE VINHO PARA O DISCURSO NO BANQUETE

    Julia Guerreiro de Castro Zilio Novaes

    SÓCRATES E PÓLO. A CONSTRUÇÃO IMAGÉTICA DO EMBATE ENTRE FILOSOFIA E RETÓRICA

    Vicente Thiago Freire Brazil

    A FUNÇÃO DOS PROÊMIOS NAS LEIS DE PLATÃO

    Luciana Valesca Fabião

    AGIR EM CONFORMIDADE COM A VIRTUDE

    Mário Maximo

    O QUE SIGNIFICA AGIR COM VISTAS AO BELO? O CASO ESPECÍFICO DA μεγαλοψυχία (MAGNANIMIDADE) EM ARISTÓTELES

    Francisco Moraes

    LEVANDO O RISO A SÉRIO: ARISTÓTELES E A VIRTUDE DA ESPIRITUOSIDADE

    Felipe Ramos Gall

    APONTAMENTOS SOBRE OS EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS NA FILOSOFIA DE SÊNECA

    Aryane Raysa Araújo

    SÊNECA E A MORALIZAÇÃO DA MEDICINA: A DIETA PARA UMA VIDA CONFORME A NATUREZA

    Bruno Alonso

    EPICURO E OS DEUSES: A ARQUITETURA E A FINALIDADE DO PRIMEIRO TETRAPHÁRMAKON

    Rebeca Figueira Martins

    SOBRE AS/OS AUTORES

    INTRODUÇÃO

    A historiografia filosófica tradicional nos impôs uma narrativa de como a filosofia se desenvolveu e se imortalizou como pensamento legítimo buscando causas e fundamentos. Fomos levados a acreditar que a filosofia começa na Grécia, na cidade de Mileto, com Tales, e a partir daí teria se desdobrado por meio das questões que envolvem o imóvel, o ser, de Parmênides, em oposição ao móvel, ao fluir, de Heráclito; questões retomadas por Platão na tentativa de fundar o pensamento e o conhecimento em algo estável. Fomos acostumados, a partir de então, a pensar a alma em detrimento do corpo, o intelecto em detrimento das sensações, a verdade em detrimento da opinião, enfim, uma série de dicotomias atribuídas ao mestre da Academia. Aristóteles, por sua vez, retoma os antecessores para propor um tipo de investigação que se detém na questão das causas, e com isso nos fornece uma definição de filosofia, permitindo elencar quem seriam os filósofos e quem estaria fora dessa relação. Herdamos seu modo de pensar através da lógica da não contradição e do princípio de identidade, herdamos a sua definição de filosofia e aqueles que considerou filósofos. Desde então, a filosofia passou a ser entendida a partir de um olhar predominantemente platônico-aristotélico reduzido e simplificado.

    Mas será isso – que não é pouca coisa – o que os antigos pensadores gregos têm a nos ensinar ou há, ainda, algo de impensado, de encoberto e de confuso que merece nossa atenção atual?

    Olhando para além desse horizonte que nos foi imposto e estabelecido pela historiografia, é possível ver uma riqueza e uma diversidade de pensamentos sem igual.

    Veremos aquilo que não é fácil de vislumbrar através da perspectiva que nos foi imposta como filosófica por excelência, que é reduzida e, muitas vezes, preconceituosa em relação a vários pensamentos e pensadores. Veremos o mundo a partir da perspectiva feminina presente no pensamento das filósofas na antiguidade grega, veremos a importância dos sofistas nas discussões envolvendo o conhecimento, a linguagem e a ação, veremos todo o rico pensamento das filosofias helenísticas. Mesmo aqueles filósofos, como Platão e Aristóteles, que muitas vezes foram entendidos superficialmente ou descontextualizados, precisam ser olhados outra vez para que em um golpe de vista, em uma nova composição de luz e sombra, se percebam movimentos e entrelaçamentos que julgávamos improváveis.

    Assim perceberemos como as origens são múltiplas e variadas. A filosofia não se originou na Grécia, mas frutificou e se enraizou aí, com uma força e nitidez capazes de alcançar nosso tempo e nos permitir contemplar os vários elementos estrangeiros que compuseram esse grande mosaico que todos olham e que fala com todos.

    Permanecer na filosofia antiga é permanecer em um contínuo diálogo entre o passado e o presente, é nos identificarmos, é saber o quanto nos aproximamos e o quanto nos distanciamos desse passado. Porque lá estão colocadas as questões que ainda hoje nos movem: nossa relação com o cosmos, questões em torno de como estabelecer laços políticos que façam sentido, como pensar a alma, a felicidade, a justiça, as leis, o amor, a beleza, a violência, a religião, o medo...

    Pensar com os gregos é também pensar sem e contra os gregos. É pensar em questões que batem à nossa porta mesmo quando ela está fechada, ostentando a placa de não perturbe. Enfim, é pensar quantas continuidades e rupturas fomos capazes de produzir desde então. Dialogar com os antigos é pensar o amanhã.

    Os textos aqui reunidos foram apresentados e debatidos no encontro do GT de Filosofia Antiga da Anpof, que se realizou de forma remota nos dias 19, 20 e 21 de outubro de 2021. O encontro foi organizado pelo Zétesis e pelo PPGFIL-UFRRJ. Gostaríamos de agradecer ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFRRJ pelo apoio à publicação, e à Faperj, pelo financiamento.

    Admar Costa

    Cristiane A. de Azevedo

    Organizadores

    OS FRAGMENTOS METAFÍSICOS DE TEANO

    *

    Carolina Araújo

    Para Carmel Ramos

    Embora poucas, e raramente recordadas, temos notícias de algumas mulheres filósofas de destaque na Antiguidade. Embora a maior parte delas não tenha obras supérstites, há um conjunto de textos atribuídos a filósofas pitagóricas. Nesses textos há um traço predominante: a aplicação prática de princípios filosóficos à vida cotidiana doméstica. Este artigo trata da exceção deste grupo já tão singular: dois fragmentos da mais renomada filósofa pitagórica, Teano, que, ao invés da oikonomía filosófica, tratam de metafísica ou ciência das causas primeiras.

    1. As fontes

    O primeiro fragmento é apresentado como um excerto da obra Sobre a Reverência e foi transmitido por Estobeu, que, no século V EC compilou uma série de textos antigos em uma obra de nome Antologia (Florilegium), hoje dividida em quatro livros, dos quais os dois primeiros são chamados de Excertos físicos e éticos (Eclogarum Physicarum et Ethicarum) por diferirem dos outros dois, que são uma reunião de citações e apotegmas de cunho prático. Incluído no capítulo 10, de título Sobre os princípios e os elementos do universo (Περὶ ἄρχῶν καὶ στοιχέιων τοῦ παντός), o excerto de Teano é o primeiro de apenas dois fragmentos atribuídos a mulheres no livro I (I, 10, 13, 1-9) – ou seja, com temática precisamente metafísica –, o segundo sendo um excerto de Sobre a Natureza Humana de Aesara da Lucânia (Estobeu, Antologia, I. 49.27, cf. Araújo, 2023a). A edição do fragmento de Teano aqui utilizada é a de Wachsmuth (1884, p. 125), que coincide totalmente com a edição de Thesleff (1965, p. 195). Os dois manuscritos importantes para este texto são o códex Farnesinus Eclogarum (III.D.15, Biblioteca Nacional de Nápoles, datado do século XIV e identificado como F) e o códex Parisinus Eclogarum (Grec 2129, Biblioteca Nacional da França, datado do século XV). Como há problemas de vários tipos nos manuscritos, as edições de Estobeu de Meineke (1860, p. 80) e Heeren (1792, p. 302-305, que dá a esse capítulo o número XI), assim como a edição do fragmento feita por Mullach (1867, p. 115, que o numera como fragmento 1 de Teano) são importantes para variantes.

    O segundo fragmento é transmitido por Clemente de Alexandria no quarto livro de suas Miscelâneas (IV. 7, 44, 2), que é dedicado ao tema do martírio. Clemente procura argumentar por uma moralidade em que os cristãos não devem temer a morte, mas tampouco devem buscá-la, como se seguissem o exemplo dos mártires. A edição de Clemente utilizada é de Stählin (1906, p. 268), que contou com E. Schwartz e Willamowitz-Moellendorff na elaboração do aparato crítico e notas de Hiller e Wyttenbach. O manuscrito de base é o Laurentianus (Biblioteca Laurenziana, V3, datado do século X), identificado pela letra L. Com problemas textuais de ordem diferente dos do texto de Estobeu, aqui contribuem para a análise a edição de Clemente feita por Sylburg (1757, p. 583) e as do fragmento de Teano feitas por Mullach (1867, p. 115-116, que o numera como fragmento 5 de Teano) e Thesleff (1965, p. 201).

    É muito difícil saber qual foi a fonte de Estobeu e Clemente para esses fragmentos. Thesleff (1961, p. 122-123) entende que as citações de Clemente se refeririam a uma antologia de extratos breves com o nome do autor e o título da obra, mas conclui que o fragmento de Teano citado por ele é indeterminável (Thesleff, 1965, p. 201). Quanto a Estobeu, embora ele defenda a tese da existência de um volume em dórico que formaria um Corpus Pythagoricum em circulação no século I AEC (cf. também Centrone, 2014, p. 319-320), o fato de todos os textos supérstites em grego de Teano estarem em dialeto ático (algumas cartas em ático koiné) lhe parece suficiente para excluí-los deste manual. Assim, Thesleff inclui o primeiro fragmento em um grupo de textos que foram produzidos em Atenas, Alexandria ou outra cidade a leste da Itália e suspende seu juízo sobre datação, considerando-o indeterminável ou tardio. Por tardio devemos entender que vale para ele a tese sugerida por Zeller, e hoje consensual, de que se trata de textos do período helenístico ou imperial (cf. Zeller, 1868, p. 83-84; Bonazzi, 2013, p. 385; Centrone, 2014, p. 315). Talvez mais interessante para o caso de Teano seja a sugestão de Burkert de que o público-alvo de certos textos apócrifos seja um círculo intelectual romano (cf. Burkert, 1972, p. 41), uma vez que a filosofia pitagórica de autoria feminina poderia interessar bem o círculo de Júlia Domna (cf. ibidem, p. 54).

    A datação tardia sugere que o autor não é a Teano cujas informações biográficas atestam ter vivido no século V AEC, e o ático não condiz com o dialeto esperado de uma crotonense. Isso não é razão para se pensar que se trata de uma homônima posterior (cf. Waithe, 1987, p. 60; Pomeroy, 2013, p. xvii.¹ O conteúdo dos textos indica que o nome de Teano é usado como fonte de autoridade e, portanto, é o pseudônimo de um autor. A razão para tanto é provavelmente projetar nos pitagóricos do passado argumentos cogentes para a legitimação de um renascimento do pitagorismo, por isso hoje é consenso situar esses fragmentos no que se chama pseudoepígrafa pitagórica.² Ainda assim é estranho que seja Teano a figura de autoridade, e não Pitágoras ele mesmo ou um reputado filósofo. Há um bom argumento para o recurso a um pseudônimo feminino no caso dos tratados de oikonomía filosófica: uma vez que preconizam modos filosóficos de realizar as atividades femininas, a autoridade de uma mulher filósofa interessa. Mas por que um pseudônimo feminino sobre temas que não requerem autoridade feminina?

    O outro lado da questão é: por que Teano seria uma voz de autoridade? É de se supor que a tese da pseudonímia, uma vez que depende de uma certa reputação do pseudônimo, já não se sustenta independentemente de uma certa tradição anterior de textos (cf. Waithe, 1987, p. 61-62).³ Aqui é central que distingamos, dentre as fontes sobre Teano, a mais antiga que temos, a elegia de Hermesianax:

    οἵη μὲν Σάμιον μανίη κατέδησε Θεανοῦς

    Πυθαγόρην, ἑλίκων κομψὰ γεωμετρίης

    εὑρόμενον, καὶ κύκλον ὅσον περιβάλλεται αἰθὴρ

    βαιῇ ἐνὶ σφαίρῃ πάντ› ἀπομασσόμενον.

    Tamanha loucura por Teano aprisionou o sâmio

    Pitágoras, que ele descobriu as requintadas espirais

    geométricas e fez um modelo em uma única pequena esfera

    do ciclo de todas elas circundado pelo éter.

    (Hermesianax, fr.7, 85 = Ateneu, Banquete dos sábios, XIII, 71, 85-88, edição de Lightfoot 2009, p. 172)

    Hermesianax, que viveu no início do século III AEC, dedica essa elegia à sua amada Leôntios, e Ateneu a transcreve em seu Banquete dos sábios precisamente para celebrar os grandes amores do passado.⁴ A informação importante é que ela atesta a notoriedade de Teano, que não apenas se vincula a Pitágoras, mas exerce certa autoridade sobre ele e suas ideias concernentes à geometria e à cosmologia.⁵ Isso parece nos dar uma boa explicação para associar o pseudônimo Teano a uma certa autoridade no tema dos nossos fragmentos.⁶

    2. Teano

    A Antiguidade entendeu que o nome Teano se referia à filósofa pitagórica por antonomásia.⁷ Controversas porém são as demais informações sobre sua vida. Boa parte das fontes atestam que ela era de Crotona, Magna Grécia, atual Itália;⁸ porém há relatos de que ela era de Samos,⁹ de Creta.¹⁰ de Metaponto,¹¹ ou Turi.¹² Alguns relatos indicam que era filha de Pitonax de Creta,¹³ outros de Leófron ou Leóforos,¹⁴ alguns que era esposa de Brontino de Crotona,¹⁵ outros que era sua filha,¹⁶ outros ainda que era casada com Cratino de Crotona,¹⁷ alguns afirmam que era esposa de Pitágoras de Samos,¹⁸ outros que era sua filha,¹⁹ outros que era apenas sua discípula.²⁰ Algumas fontes atestam que ela teve filhos com Pitágoras, mas divergem sobre seus nomes: Telauges,²¹ Mnesarco,²² Arignote,²³

    Mia,²⁴ Sara,²⁵ Damo²⁶ (nome feminino) e Dâmon (nome masculino),²⁷ e talvez uma neta de nome Bilate.²⁸ Depois da morte de Pitágoras, ela teria se casado com Aristeu, que teria assumido a escola pitagórica,²⁹ mas outras fontes nos dizem que foi ela mesma que passou a liderar a escola ao lado de seus filhos Telauges e Mnesarco.³⁰ Parte da confusão pode se justificar por homonímia, pois Teano foi um nome comum de meninas e pelo menos três outras figuras célebres também se chamavam assim.³¹ Mas não há como supor que essas informações em particular se referem a pessoas diferentes, afinal os testemunhos atrelam suas ideias ao pitagorismo, e a Pitágoras em particular, fazendo com que essa figura inequivocamente tenha vivido em Crotona entre os séculos VI e V AEC.

    Ser um pitagórico não demandava um voto de sigilo sobre a doutrina, e não havia uma proibição de publicação de textos,³² prova disso é que é bem estabelecida a tradição que reportou Teano como autora de obras escritas.³³ Isso não quer dizer que não havia certa reverência no tratamento de questões filosóficas, como veremos adiante. Talvez o melhor tratamento da questão se encontre precisamente em uma das máximas atribuídas a Teano no Florilegium Monacensis: Teano diz: ‘Sobre o que é nobre a se dizer, é vergonhoso silenciar, e sobre o que é vergonhoso dizer, é nobre silenciar’.³⁴ (FM 269 apud Meineke, 1860, p. 298-299).

    A Suda, que tem dois verbetes intitulados Teano, diz em um deles: "ela escreveu Sobre Pitágoras, Sobre a Virtude (a Hipodamo de Turi), Conselhos às Mulheres e Apótegmas Pitagóricos".³⁵ O outro enumera mais obras: "Recordações Filosóficas, Apótegmas e um poema épico"³⁶. Essas duas listas ainda não parecem ser exaustivas, já que não se encontra nelas a obra de que Estobeu retira seu excerto, o Sobre a Reverência, nem o título Conselhos de Teano atribuído à coleção de 65 apotegmas no manuscrito B.M. Add. 14658, do British Museum, escrito em siríaco e datado do século VII AEC (cf. Sachau, 1870, p. 66-69; Possekel, 1998, p. 13-14).³⁷ Como atesta o rol, os apótegmas são a marca mais saliente dos textos de Teano, mas também nos chegaram excertos de sete cartas (além de notícia de uma oitava) assinadas por ela, algumas das quais se encaixariam bem, por seu conteúdo, sob o título Conselhos às Mulheres (cf. Araújo, 2023b). Sobre os poemas só temos uma notícia sobre eles.³⁸

    3. Sobre a Reverência, tradução e notas textuais

    Estobeu cita nove linhas em dialeto ático do tratado Sobre a Reverência de Teano:

    <Θεανοῦς ἐκ τοῦ Περὶ εὐσεβείας>

    Καὶ συχνοὺς μὲν Ἑλλήνων πέπυσμαι νομίσαι φάναι

    Πυθαγόραν ἐξ ἀριθμοῦ πάντα φύεσθαι. Οὗτος δὲ ὁ λόγος ἀπορησίας ἔχεται, πῶς ἃ μηδὲ ἔστιν ἐπινοεῖται καὶ γεννᾶν. ὃ δὲ οὐκ ἐξ ἀριθμοῦ, κατὰ δὲ ἀριθμὸν ἔλεγε πάντα γίγνεσθαι, ὅτι ἐν ἀριθμῷ τάξις πρώτη, ἧς μετουσίᾳ κἀν τοῖς ἀριθμητοῖς πρῶτόν τι καὶ δεύτερον καὶ τἄλλα ἑπομένως τέτακται.

    2 πέπεισμαι FP: corr. Meineke | νομίσαι om. P | 3 Πυθαγόρας P¹ | post ἀριθμοῦ add. P² | αὐτὸς FP: οὗτος Heeren | 4 ἀπορήσας ἔχεται FP¹, ἀπορίας ἔχεται P²: ἀπορησίας ἔχεται Meineke, ἀπορίαν παρέχει Mullach | ἐπινοῆσαι P | καὶ del. Heeren | 5 ἁ γεννᾶν δὲ FP: γεννᾶν.ὁ δὲ Heeren | 7 τι (corr.ι Ex ε) F | 8 τἄλλα ἃ FP: τἄλλα corr. Cod. Vatic.

    Teano, excerto de Sobre a Reverência

    Ouvi que muitos dos gregos consideram que Pitágoras dizia que todas as coisas se engendram a partir do número. Este enunciado, porém, causa perplexidade: como compreender que coisas que não existem geram? Ele, porém, disse que todas as coisas ocorrem não a partir do número, mas segundo o número, porque a ordem no número é primária, e é por sua presença nas coisas numeradas que algo é primeiro, e depois algo é segundo, e assim tudo o mais se ordena em sequência.

    (Estobeu, Excertos físicos e éticos, I, 10, 13, 1-9 = Teano, Fragmento 1, Mullach)

    Como sói acontecer a Estobeu, muitas foram as correções de editores aos manuscritos. Considero todas as mencionadas no aparato que compilei a partir de Wachsmuch corretas, pelas quais se vê que os próprios manuscritos oferecem um texto inaceitável. A correção mais intrusiva ocorre na linha 5. Ao ler ἁ γεννᾶν δὲ, os manuscritos sugerem uma oposição entre as coisas que não são e as que geram, o que acaba por invalidar o argumento.

    4. O argumento de Sobre a Reverência

    O termo reverência (εὐσεβεία) no título indica, de modo geral, o devido respeito esperado em relação aos deuses, aos pais, à família, aos mortos ou à pátria, e a usual tradução do título por Sobre a Piedade parece perder esse escopo mais amplo.³⁹ Podemos imaginar uma obra que trate da delicada relação entre o pitagorismo e os costumes gregos em geral, uma vez que as nossas mais antigas fontes sobre o pitagorismo atestam o seu compromisso com um novo modo de vida coletivo,⁴⁰ que causou resistência em Crotona.⁴¹ É bastante razoável que uma pitagórica visse a necessidade de prestar esclarecimentos a muitos dos gregos que estariam prontos para atacar as ideias de Pitágoras não porque elas seriam inconsistentes, mas porque se oporiam mesmo às normas sociais ou à moralidade. Uma outra ideia é que, sendo Teano esposa ou filha de Pitágoras, o título pode se justificar pelo seu próprio ato de escrita, ou seja, o tratado expressa por si mesmo a reverência da autora a um dos membros de sua família, explicando as suas ideias.⁴²

    O argumento consiste em uma correção a uma versão difundida entre os gregos sobre a concepção pitagórica de número como causa de todas as coisas.⁴³ Teano marca dois pontos na função causal que os gregos atribuem aos números segundo Pitágoras: (i) que a causa é aquilo a partir de que algo acontece e (ii) que o que a causa faz é ‘engendrar’. Nesse sentido, os gregos supõem que Pitágoras tem um sentido geracional de causa, cujo exemplar mais comum é a mãe e seus filhos. Em resposta, Teano indica que a função causal dos números segundo Pitágoras não se relaciona a nenhum desses dois pontos. Por um lado, não se trata especificamente de geração de entes naturais (φύεσθαι), mas da ocorrência dos fenômenos no tempo (γίγνεσθαι). Por outro, essa ocorrência não é a partir (ἐξ) dos números, mas segundo (κατὰ) a ordem numérica, ou seja, entende-se que há nas ocorrências algo que é primeiro, e algo que é segundo, e assim por diante, de modo que todas as ocorrências são ordenadas segundo uma sequência numérica.

    Portanto, o propósito do texto está em defender uma espécie singular de causa por oposição àquela geracional que parece ser o sentido mais comum do conceito.⁴⁴ Por ser esse o tema, em geral o fragmento de Teano é associado a Aristóteles em sua distinção das espécies de causa. Burkert, por exemplo, diz que se trata aqui inequivocamente de uma polêmica contra Aristóteles (1962, p. 54) sustentada pelos neoplatônicos. O que é curioso é que os argumentos aristotélicos contra os pitagóricos não atribuem a esses últimos a posição de que os números operam uma causalidade geracional, mas sim que eles funcionam ou como uma causalidade material que é capaz de atribuir disposições e afecções às coisas, ou como uma vaga causalidade paradigmática, segundo a qual as coisas imitam os números.⁴⁵ Uma exceção parece importante:

    οἱ μὲν οὖν Πυθαγόρειοι κατὰ μὲν τὸ τοιοῦτον οὐθενὶ ἔνοχοί εἰσιν,κατὰ μέντοι τὸ ποιεῖν ἐξ ἀριθμῶν τὰ φυσικὰ σώματα, ἐκ μὴ ἐχόντων βάρος μηδὲ κουφότητα ἔχοντα κουφότητα καὶ βάρος, ἐοίκασι περὶ ἄλλου οὐρανοῦ λέγειν καὶ σωμάτων ἀλλ› οὐ τῶν αἰσθητῶν· (1090a30-35)

    Sobre esse aspecto, nada há para se acusar os Pitagóricos, pois ao produzir os corpos naturais a partir do número – e portanto o que tem peso e profundidade do que não tem peso nem profundidade –, parecem falar de um outro universo e de corpos que não são os sensíveis.

    Aristóteles aqui atribui aos Pitagóricos uma tese semelhante à que os gregos imputam a Pitágoras: que corpos naturais são produzidos a partir do número. Mas é interessante ver que Aristóteles não reprova os pitagóricos por isso. Ele parece sugerir que, quando os pitagóricos dizem que os corpos físicos são gerados a partir do número, eles, na verdade, estão falando de um outro universo e de corpos que não são sensíveis – possivelmente volumes estereométricos. Se Aristóteles diz que não há que reprovar os pitagóricos por isso, é exatamente porque o que os números geram é algo geométrico e não há o que objetar nisso (cf. também Aristóteles, Metafísica, 1091a13-22). A dificuldade dos pitagóricos, por outro lado, seria a de unificar esses dois universos (cf. Aristóteles, Metafísica, 990a18-22; 1083b8-11), o que nos levaria aos problemas relacionados à mencionada vagueza da causa paradigmática. Não é este o local para discutir a posição de Aristóteles. O que me interessa enfatizar é que não é evidente que Teano esteja respondendo a Aristóteles, sinal disso é que o próprio Burkert sugere que o suposto argumento de Aristóteles estaria, não nas suas obras supérstites, mas na sua obra perdida sobre os pitagóricos.

    Que o alvo não seja Aristóteles não implica que o fragmento não seja tardio. Dois pontos são importantes na questão da datação. Em primeiro lugar, parece ser razoável supor que Aristóteles desconhecia uma tal interpretação da noção de causa pitagórica e portanto que ele nunca leu Teano. Em segundo lugar, nós temos razões para supor que o conceito de existência negado aos números pela expressão coisas que não existem (ἃ μηδὲ ἔστιν) é um conceito tardio. Kahn (1976, p. 323-324) mostrou que o conceito de existência como um atributo ou acidente contingente outorgado a certos entes é pós-aristotélico. Em particular, ele alega que tomar a existência como um problema filosófico – como Teano diz, algo que ‘causa perplexidade’ – não ocorre no contexto do período clássico da filosofia grega (cf. também Burkert, 1964, p. 54 e Macris, 2016, p. 834). O sentido de um só termo, todavia, não deve ser suficiente para supormos que não há relação bastante evidente entre o conteúdo do fragmento e as das mais antigas fontes sobre o pitagorismo (cf. Meunier, 1980, p. 20), notadamente as reportadas por Aristóteles referidas na última nota.

    5. A imortalidade da alma, tradução e notas textuais

    Questões de texto acerca de nosso segundo fragmento exigem que ele seja citado em seu contexto:

    Θεανὼ γὰρ ἡ Πυθαγορικὴ γράφει・ ≪ἦν γὰρ <ἂν> τῷ ὄντι τοῖς κακοῖς εὐωχία ὁ βίος πονηρευσαμένοις・ πειτα τελευτῶσιν, εἰ μὴ ἦν ἀθάνατος ἡ ψυχή, [ἕρμαιον ὁ θάνατος]≫ καὶ Πλάτων ἐν Φαίδωνι ≪εἰ μὲν γὰρ ἦν ὁ θάνατος τοῦ παντὸς ἀπαλλαγή, <ἕρμαιον ἂν ἦν>≫ καὶ τὰ ἑξῆς.

    1 <ἂν> Willamowitz Schwarz | κακοῖς Sylburg καλοῖς L | 3 ἑρμαῖον L ἕρμαιον ὁ θάνατος Wyttenbach om. Mullach ἕρμαιον ὁ θάνατος post βίος Hiller, Thesleff

    Teano, a Pitagórica, escreve: pois a vida seria realmente uma festa para os vis em suas iniquidades se, ao findarem, a alma não fosse imortal e a morte fosse um prêmio e Platão no Fédon [escreve]: pois se a morte fosse a destruição de tudo, isso seria um prêmio, e assim por diante

    (Clemente de Alexandria, Miscelâneas, IV. 7.,44, 2, 1-4)

    Como mostra o aparato que compilei a partir de Stählin, o texto é bem controverso. O subjuntivo hipotético não aparece no manuscrito e foi introduzido por Willamowitz e Schwarz. O manuscrito também traz os nobres em sua iniquidade, o que foi corrigido por Sylburg tendo em vista sobretudo o contexto da citação seguinte de Platão (Fédon, 107c5-8). Ali lemos, após ἀπαλλαγή, ἕρμαιον ἂν ἦν τοῖς κακοῖς. Nota-se que o manuscrito não contém ἕρμαιον ἂν ἦν, o que supõe que o leitor, bom conhecedor do texto platônico, saberá o que o Fédon diz sobre a vida post mortem, haja vista o e assim por diante (καὶ τὰ ἑξῆς). Tanto a presença quanto a posição do termo ἕρμαιον (prêmio) foram razão de especulação. Embora o termo esteja no manuscrito, a frase não faz sentido, por isso Wyttenbach acrescenta a ele um sujeito, a morte. A opção de Hiller, embora bem mais intrusiva, é elegante: ao adiantar o acréscimo de Wyttenbach para a sequência de βίος, ele consegue fazer uma oposição direta entre vida e morte: pois a vida seria realmente uma festa, e a morte um prêmio, para os vis em suas iniquidades se, ao findarem, a alma não fosse imortal.

    No entanto, está longe de ser claro que a palavra ἕρμαιον pertença ao texto de Teano. O fato de ela estar desconectada da sentença anterior torna bastante plausível que se trata de um erro do copista que a transpôs da citação do Fédon a que ela naturalmente pertencia. É assim que Mullach entende o texto. O que vemos na opção dos editores é um debate sobre o grau de contaminação do fragmento de Teano pelo Fédon. Comparado ao extremo representado por Hiller, Mullach ainda ocupa uma posição de compromisso ao manter o κακοῖς. Seria possível tomar uma posição ainda mais forte de distinção entre os dois textos evitando também essa correção. Nesse caso, o texto poderia ser traduzido por pois a vida seria realmente uma festa para os nobres em suas iniquidades se, ao findarem, a alma não fosse imortal.

    Por que isso é importante? Porque há um consenso, sobretudo a partir dos trabalhos de Burkert no século XX, de que o pitagorismo é indissociável do platonismo. Ainda que esse seja o caso dos textos neopitagóricos, o que vemos na edição de Teano é o quanto o próprio trabalho dos editores do Renascimento ao século XIX reforça essa indissociabilidade. As consequências de pequenas escolhas como essas podem ter grande escala. Por exemplo, ao enfatizar a coincidência dos termos κακοῖς, ἕρμαιον e θάνατος em Teano e no Fédon, intérpretes veem aqui evidência de que Clemente trata Teano como uma autoridade superior e anterior a Platão sobre a questão da imortalidade da alma (Dutsch, 2020, p. 107; Pellò, 2022, p. 26). Está projetado no pitagorismo o platonismo anterior a Platão (Dutsch, 2020, p. 70). O fato de que o Fédon é tanto um marco do que ficou cunhado como platonismo, quanto pleno de referências pitagóricas, sobretudo na presença de Símias e Cebes como interlocutores, torna de fato muito difícil a posterior distinção entre as duas escolas, e ainda menos provável que Clemente tivesse algum propósito de distingui-las. Mas daí não segue que devamos comprar a indistinção como algo dado, sobretudo ao fazer escolhas textuais.

    6. O argumento sobre a alma imortal

    Estudos consideram que o fragmento de Teano seria parte, não de um tratado sobre a alma, mas de uma chreia.⁴⁶ A forma do texto nos faz suspeitar dessa inferência. Primeiro porque Clemente usa o verbo escrever. Embora, como vimos, a Suda ateste a existência de um livro de nome Apótegmas atribuído a Teano, a chreia em geral reporta um contexto oral e descreve um ato de fala, trata-se, como indica Macris (2016, p. 825), de uma mis-en-scéne, ou seja, de uma fala em situação, o que está ausente do fragmento. Ademais, a forma do fragmento não corresponde à chamada de chreia pismática, típica dos apótegmas atribuídos a Teano, que consiste em uma resposta arguta a uma pergunta ou declaração anterior.⁴⁷ Finalmente, a forma tampouco é a de uma máxima gnômica, também típica de Teano.⁴⁸ Ao contrário, a forma é de uma inferência hipotética, e o padrão da justificação causal não configura o modelo nem das chreiai, nem das máximas gnômicas.

    A imortalidade da alma é um tema central do pitagorismo, e o que vemos aqui é uma redução ao absurdo em defesa da tese. Se a alma não for imortal quando se morre, a vida desses nobres (falsos nobres, ou simplesmente pessoas vis) que praticam iniquidades seria uma festa. Vejo dois modos de se ler esse argumento. O mais usual é supor que opera aqui a premissa implícita de que a vida post-mortem implica punição das iniquidades e que os prazeres indevidos vividos na vida em festa serão punidos quando essa vida findar. Nesse caso, o argumento (i) supõe que há um certo tipo de justiça sobre-humana ou divina que garante o fim da festa e (ii) supõe que a vida dos que praticam iniquidades é de fato uma festa, e que ela simplesmente tem um fim trágico. Se assim é, o argumento só provaria a imortalidade da alma àqueles que creem que a justiça divina se impõe a nós em todas as nossas ações. É por essa razão que von Friz (1934, p. 1381) entende que o texto da imortalidade da alma é também um excerto da obra Sobre a Reverência, que ele traduz como Sobre a Piedade, um ponto sobre o qual retornarei. O trecho diria que, uma vez que estamos convencidos da importância de reverenciar os deuses, devemos supor que a alma é imortal.

    Esse, no entanto, não é o único modo de se ler o argumento. A redução ao absurdo pode depender, não da premissa de uma justiça divina, mas do fato verificável de que a vida dos nobres em suas iniquidades simplesmente não é uma festa. Aqui a imortalidade da alma garantiria, não a subsistência de uma entidade depois da morte, mas a tese de que a alma imortal é uma instância moral constitutiva dos seres humanos que propriamente impede que o agente que comete iniquidades experimente sua própria vida como uma festa. Isso porque, quando findam essas iniquidades – e aqui eu enfatizaria a relação de τελευτῶσιν (findarem) com πονηρευσαμένοις (em suas iniquidades) ao invés de com βίος ou κακοῖς/καλοῖς –, é perceptível, tanto para eles quanto eventualmente para os outros, que a vida não é uma festa. Podemos supor que opera aqui a premissa de que há algo como o sentimento de dor ao fim da sensação do prazer gerado pelas iniquidades. Essa dor adviria, não de uma punição, mas de algum sentimento moral de desprazer – culpa, arrependimento, solidão – causado pela alma imortal que constitui esses agentes. Segundo essa leitura, o argumento (i) se compromete com uma moralidade intrínseca aos seres humanos, ao invés de uma justiça divina, e (ii) supõe que os que praticam iniquidades não experimentam a vida como uma festa, mas como a alternância de prazeres e dores. Nesse sentido, a imortalidade da alma contrastaria com a fugacidade do prazer dos vis, ou, mais precisamente, com o caráter findável de suas iniquidades. Não importa o quanto elas durem, ao final, a alma estará viva e garantirá a dor moral.

    Outras duas fontes sobre Teano se relacionam com o tema da morte. Gregório de Nazianzo, ao fazer um argumento sobre a coragem no enfrentamento da morte, menciona o menosprezo de Teano pela morte, que não hesita em enfrentar a morte para não renunciar à filosofia.⁴⁹ O manuscrito siríaco, Mingana Syriac 662 conta a seguinte história:

    A octogésima narrativa é sobre a morte da pitagórica Teano, ela diz o seguinte: Ela foi capturada pelo tirano para que revelasse o segredo sobre a localização de sua casa. Com isso, ela mordeu sua língua e cuspiu-a no rosto do tirano. Porque ela desejava não revelá-lo sob tortura, ela privou-se do órgão da fala. (Mingana apud Possekel, 1998, p. 15)⁵⁰

    É interessante que a narrativa que se anuncia sobre a morte de Teano acabe por não relatar esse fato. Parece estar subentendido que o tirano mandou matá-la. De todo modo, o que podemos verificar é a relação entre uma norma moral – manter o segredo diante de uma ameaça à comunidade ou à prática filosófica – e o risco de morte. Não é evidente que os dois fragmentos se refiram à mesma narrativa da morte de Teano, mas ambos reforçam o seu destemor, ao contrário da opção de simplesmente render-se à morte, precisamente o ponto que Clemente tencionava fazer sobre o martírio em seu livro. À medida que a atitude de Teano frente à morte não apela a uma justiça divina, que, por oposição ao caso dos vis, garantiria a sua felicidade após uma morte sob tortura, e à medida que ela prefere eliminar o órgão da delação para garantir a sua moralidade em vida, a anedota sobre a morte de Teano favorece a segunda linha interpretativa do fragmento.

    7. Uma proposta

    Eu gostaria de corroborar, por razões diferentes, a posição de von Fritz de que os dois fragmentos compõem uma única obra, o Sobre a Reverência. Nenhuma prova suficiente pode ser dada a essa proposta, o que ofereço é apenas a sugestão da sua unidade temática.

    Nessa linha, indico o seguinte: o que temos no fragmento 1 é um bom argumento de diferenciação entre dois tipos de causa ou, em um vocabulário talvez mais adequado, a distinção entre causa como geração de efeito e como premissa básica explanatória de fenômenos. Teano situa a matemática pitagórica como ciência distinta da física e a ela anterior na ordem explanatória. O segundo fragmento trata da presença da alma imortal em todos nós, garantindo a dor moral na sequência de uma iniquidade. Teano situa a moralidade como algo intrínseco a cada um de nós, de modo que a iniquidade se volta contra nós mesmos e a nossa felicidade só é possível quando a evitamos. Ambos os fragmentos tratam da relação entre fenômenos no tempo (coisas que ocorrem, iniquidades) e sua relação com o que, estando à parte deles, explica-os segundo a regra da sucessão (os números, a alma). Os números o fazem simplesmente por serem a forma dessa regra, a alma por ser a garantia da consequência moral das iniquidades. Por fim, o tema da reverência constituiria a própria atitude de Teano ao defender a doutrina pitagórica e a norma moral por escrito, tal como supostamente teria feito em ato no momento de sua morte.

    Faz pouco sentido aqui supor que Teano seria uma figura de autoridade sobre esses temas apenas por sua qualificação como esposa ou filha de Pitágoras. O convívio íntimo não justificaria educação em tais questões, ainda mais se tudo o que o pitagorismo ensinasse às mulheres se resumisse a como estabelecer a harmonia em seus lares, como atestado nos fragmentos sobre

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