Anotações no escuro: As perguntas que os filmes me fazem
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Anotações no escuro - Ticiano Osorio
TiciAnO OSóRio
AnOTaÇõES
NO EsCURO
as perguntas que os filmes me fazem
Logo Arquipélago. Círculo preto com duas folhas brancas simulando uma vela de barco. Texto em preto abaixo.© Ticiano Osório, 2024
Capa
Cintia Belloc
Foto da capa
Guilherme Lund
Preparação
Débora Sander
Revisão
Fernanda Lisbôa de Siqueira
Diagramação e conversão para ePUB
Camila Provenzi
CIP-Brasil. Catalogação na Publicação
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
O92a
Osório, Ticiano, 1973-
Anotações no escuro : as perguntas que os filmes me fazem / Ticiano Osório. - 1.
ed. - Porto Alegre [RS] : Arquipélago, 2024.
208 p. ; 21 cm.
ISBN 978-65-89741-46-6 (impresso)
ISBN 978-65-89741-47-3 (e-book)
1. Cinema. 2. Crítica cinematográfica. I. Título.
CDD: 791.43
24-92645 CDU: 791.32.072.3
Gabriela Faray Ferreira Lopes - Bibliotecária - CRB-7/6643
Todos os direitos desta edição reservados a
ARQUIPÉLAGO EDITORIAL LTDA.
Rua Marquês do Pombal, 783/408
CEP 90540-001
Porto Alegre — RS
Telefone 51 3012-6975
www.arquipelago.com.br
Para a Bia, a Helena e a Aurora, companheiras de cinema e de sofá, nos melhores e nos piores filmes.
"Daqui a cem anos, quando você e eu já tivermos partido, toda vez que alguém colocar uma imagem sua na tela, você estará vivo novamente. Sabe o que significa isso? Um dia, todas as pessoas de todos os filmes rodados este ano estarão mortas. E um dia, todos esses filmes serão retirados dos cofres, e todos os seus fantasmas vão jantar juntos, vão se aventurar juntos, vão para a selva, para a guerra juntos. Uma criança nascida daqui a 50 anos tropeçará em sua imagem piscando em uma tela e sentirá que conhece você, como... como um amigo, embora você tenha dado seu último suspiro antes que ele desse o primeiro. Você recebeu um presente. Seja grato. Seu
tempo de hoje acabou, mas você passará a eternidade com anjos e fantasmas."
Elinor St. John (personagem de Jean Smart), em Babilônia (2022)
SUMÁRIO
Capa
Folha de rosto
Créditos
Introdução | O caderninho do cinema
Questões Afetivas
Aftersun | Por que uma viagem feliz vira uma lembrança triste?
Atlantique | O mar tem rosto?
Na captura dos friedmans | Por que uma família filmou a própria desgraça?
Drive my car | Como conduzimos nossa bagagem emocional?
Edifício master | O que fica dessa vida?
It: capítulo dois | Como evitar que um trauma nos afogue?
Laço materno | Por que uma mãe faz isso com um filho? E por que o filho aguenta?
Meu pai | Como é se perder nos labirintos da memória?
A pior pessoa do mundo | O que fazer quando nos sentimos coadjuvantes da própria vida?
Rainha de copas | Por que uma nação tão próspera faz filmes tão perturbadores?
Retrato de uma jovem em chamas | Existe filme mais bonito?
Seguindo todos os protocolos | Como transar na pandemia?
O som do silêncio | Por que é tão difícil ouvir nossa voz interior?
Questões Sociais
Bacurau | Como resistir à barbárie?
Cão branco | Um racista pode ser reeducado?
Close | Por que matamos a amizade entre meninos?
Crimes do futuro | Quais são os limites do nosso corpo?
Druk: mais uma rodada | E se ficarmos embriagados o dia inteiro?
O homem invisível | Como escapar de um relacionamento tóxico?
Jojo Rabbit | Hitler pode ser engraçado?
Meet the censors | Censura pode ser positiva?
Mignonnes | O que nossas crianças veem longe dos nossos olhos?
Nada de novo no front | Por que permitimos o horror da guerra?
A noite do fogo | Como é crescer em uma comunidade violentada?
Nunca, raramente, às vezes, sempre | Por que submetemos garotas a tantas violências?
Parasita | Como escapar do apartheid social?
Pássaros de verão | O que fizemos dos povos nativos?
Pleasure | Vale a pena?
Quo vadis, Aida? | Para salvar os filhos, existe algum limite?
Rede de ódio | Se o amor pode ser comprado
, por que não o ódio?
Soft & quiet | Como respirar neste sufoco?
A tristeza | O que seria do mundo se a gente atendesse apenas aos impulsos?
Você não estava aqui | Como sobreviver no capitalismo?
Questões Estéticas
Babilônia | Por que este filmaço não fez sucesso?
No caminho da cura | Como cicatrizar um trauma tão grande?
Drive | O que transforma um filme em um objeto de culto?
Estou pensando em acabar com tudo | O que está acontecendo neste filme? (1)
O farol | O que está acontecendo neste filme? (2)
Fogo contra fogo | Existe filme policial melhor?
História de um casamento / Midsommar | O que fazer quando um relacionamento acaba ou tem de acabar?
O irlandês | Scorsese fez um filme da Marvel?
John Wick 4: Baba Yaga | Existe filme pornô sem cena de sexo?
Uma noite sem saber nada | O que está acontecendo neste filme? (3)
A origem | O que os sonhos nos dizem?
Raw / Titane | O que há embaixo da nossa pele?
Réquiem para um sonho | Por que descemos ao inferno?
Um tiro na noite | Por que o Oscar despreza Brian De Palma?
Violência gratuita | Por que somos ávidos pelo terror?
Introdução
O caderninho do cinema
Gosto de ver filmes no escuro. Não me refiro apenas ao ambiente da sala de cinema ou da sala de casa. Gosto de estar no escuro quanto à trama, gosto de ser obrigado a tatear o caminho, gosto de me perguntar quando estou vendo um filme: para onde estou indo? O que significa essa imagem? Como fizeram essa cena? Por que o diretor quis contar essa história? Por que estou sentindo isso? O que eu faria no lugar desse personagem?
Este é praticamente meu subgênero favorito, o dos filmes que nos colocam em uma posição desconfortável. Que nos tornam cúmplices do protagonista, emparedado por um dilema moral. A escolha nunca é simples, ainda que de vez em quando pareça. E a omissão pode ser tão danosa quanto a ação.
Seus personagens não são mocinhos nem vilões, mas pessoas que, diante das circunstâncias, do azar, da pressão ou das oportunidades, podem conquistar ou falhar. A cada cena, nós, como espectadores, somos instigados a nos posicionar em situações complexas nas quais os atos podem não ser justificados, mas quem sabe compreendidos, e nas quais todos os envolvidos têm um pouco de razão.
Calibre (2018): o que você faria se matasse acidentalmente alguém? Cascavel (2019): o que você faria se tivesse de assassinar uma pessoa para salvar seu filho? Match point (2005): o que você faria para proteger sua ascensão social e econômica? Passageiro acidental (2021): o que você faria se precisasse sacrificar alguém ou a si mesmo para garantir a sobrevivência coletiva? Segunda chance (2014): o que você faria se encontrasse um bebê maltratado pelos pais? A testemunha (2018): o que você faria se testemunhasse um crime, mas o bandido soubesse onde sua família mora?
Também gosto de escrever (quase sempre em um caderninho que me acompanha nas idas ao cinema ou que fica no encosto do sofá) sobre essas minhas indagações, minhas dúvidas, minhas perturbações — depois transformadas nos textos que compõem este livro.
É por isso que sou um crítico de cinema que não assiste a trailers.
A gota d’água foi o de Tempo (2021), filme dirigido por M. Night Shyamalan. A propaganda matou a alma do negócio. Como se espelhasse a situação vivida pelos personagens, fez a mistura de terror sci-fi e suspense algo existencialista estrear já um tanto envelhecida. Porque revelou demais do que ocorre em uma praia deserta e paradisíaca onde um grupo de veranistas começa a sofrer os efeitos do tempo de um modo terrivelmente rápido.
O conhecimento prévio e a memória visual inibiram o espanto pretendido pelo cineasta craque em pregar peças no público — vide O sexto sentido (1999) e A vila (2004), vide Corpo fechado (2000) e Fragmentado (2016). Parece que o marketing sabotou o nítido esforço de intrigar o espectador — vide as posições de câmera e os enquadramentos que escondem as transformações corporais, vide o uso da trilha sonora em cenas que só devem ter surpreendido quem ficou imune à exposição maciça.
Não consigo entender esses trailers que dão spoilers — e, sim, eu sei que nas minhas colunas certamente já contei demais de um filme, mas juro que procuro evitar, ou pelo menos alerto o leitor reiteradamente, um aviso indisponível em um trailer. Daí que, em um cinema, para não correr riscos, eu fecho os olhos, tapo os ouvidos, puxo conversa com a esposa ou com as filhas, tento me distrair enquanto na tela surgem imagens e diálogos que acabariam armazenados no meu cérebro para mais adiante tomarem de assalto a fruição da história. Várias vezes já me flagrei puto comigo mesmo por gravar detalhes e puto com os estúdios por, mesmo que fora de ordem cronológica, exibirem detalhes (não raro referentes ao clímax da trama).
Piores são os trailers que simplesmente resumem todo o filme, do início ao quase fim. Como o de Missão resgate (2021), com Liam Neeson. Assistam e depois me digam se deu fome de efetivamente ver essa aventura ambientada em uma estrada de gelo ou se vocês já se deram por satisfeitos com aqueles dois minutos e meio (praticamente um curta-metragem).
Digo que não entendo, mas, na verdade, é um discurso retórico. Sei direitinho o que os estúdios de cinema fazem. Não tem bobo em Hollywood. Esses trailers extremamente expositivos existem porque a maioria do público quer certeza e segurança, e não mistério ou desafio. Os números comprovam: são sucesso nas bilheterias os super-heróis, que têm zero risco emocional (via de regra, eles vão vencer e sobreviver), as franquias, as continuações, os reinícios, as refilmagens e os derivados. Basicamente, as mesmas histórias, só que com outras roupas.
Esse comportamento não é exclusivo do ambiente cinematográfico. De certa forma, reflete características dos relacionamentos amorosos contemporâneos, conforme descreveu a quadrinista sueca Liv Strömquist em A rosa mais vermelha desabrocha: o amor nos tempos do capitalismo tardio ou por que as pessoas se apaixonam tão raramente hoje em dia. Dosando leveza e profundidade, citando filósofos como o esloveno Slavoj Žižek e o sul-coreano Byung-Chul Han e astros como Beyoncé e Leonardo DiCaprio, Strömquist mostra como a sensação do fall in love (literalmente, cair no amor) vem sendo substituída por uma visão consumista. A racionalidade subjuga o romantismo. Escolhemos — no Tinder, por exemplo — uma pessoa como se fosse uma mercadoria: queremos que ela venha sem defeitos. Rejeitamos surpresas e incertezas.
Segundo Strömquist e os autores referenciados em A rosa mais vermelha desabrocha, o narcisismo extremo da sociedade capitalista e da era das redes sociais provocou o desaparecimento do outro. Não buscamos o outro propriamente dito, mas espelhos que confirmam o sujeito narcisista em seu ego
. Ou seja, evitamos o diferente e assistimos a mais do mesmo; nos aboletamos em uma zona de conforto em vez de nos permitirmos mergulhar no desconhecido para encontrar aquilo que o pensador francês Roland Barthes definiu como inclassificável, de uma originalidade sempre imprevista
— lembrem o que todos dizem quando estão apaixonados: Ele é único!
, Não há ninguém como ela!
.
No âmbito do cinema, uma parcela considerável do público age como se estivesse comprando um sofá, e não apreciando uma obra de arte. Portanto, os trailers precisam mostrar tudo o que vem junto do ingresso: as cenas de ação, as melhores piadas, os efeitos visuais, os momentos de choro. Do contrário, o espectador pode se sentir lesado, enganado — ou traído, para voltarmos ao terreno amoroso.
Pelos mesmos motivos, pululam sites e canais no YouTube dedicados a explicar o final dos filmes. Se há oferta, é porque há demanda: gente que não aceita supostas imperfeições — as imperfeições que, no seu somatório, conferem originalidade e características únicas. Gente que não tolera a multiplicidade de interpretações — o que, no campo dos relacionamentos, equivale à força estranha e misteriosa do amor, capaz de nos tirar o chão.
Quase todos os 50 filmes reunidos neste livro me tiraram do chão (a única exceção pelo menos me tirou do sério). Despertaram uma paixão fulminante ou me conquistaram aos pouquinhos — às vezes, a gente precisa de uma distância para enxergar melhor, de um tempo para sentir saudade. Provocaram a urgência do reencontro, motivaram o exercício da vaidade — sabem aquela vontade de mostrar ao mundo o novo amor, de contar a todos sobre sua felicidade?
É o que faço nas páginas a seguir, com uma seleção de textos publicados entre 2019 e 2023 na minha coluna no jornal Zero Hora e no site GZH. Te convido para um passeio que vai do Senegal ao México, da Dinamarca à Colômbia, do sertão de Pernambuco a uma ilha deserta na França, da antiga Hollywood à reconstruída Hiroshima. Convém avisar: teremos momentos românticos e cenários instagramáveis, mas também horas de terror e paisagens desoladoras.
QueStÕes AfEtivaS
aftersun
Por que uma viagem feliz vira uma lembrança triste?
Por Aftersun (2022), a escocesa Charlotte Wells ganhou o troféu do Sindicato dos Diretores dos EUA, o DGA, destinado a novos realizadores, e recebeu da Academia Britânica o prêmio Bafta de cineasta, roteirista ou produtor estreante. O filme também foi eleito o melhor de 2022 pelo jornal The Guardian e pela revista Sight and Sound, ambos do Reino Unido, e pelo site IndieWire, dos Estados Unidos, além de valer ao irlandês Paul Mescal uma indicação ao Oscar de melhor ator.
Em pouco mais de cem minutos, Wells conta uma história com toques autobiográficos sobre a viagem de férias que um pai divorciado e sua filha de 11 anos empreenderam pela Turquia