Brasil em jogo: O que fica da Copa e das Olimpíadas?
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Sobre este e-book
A polêmica abre espaço para um amplo debate sobre o que significa para o Brasil sediar os megaeventos esportivos mais simbólicos do mundo na atual conjuntura política, econômica e social. É nesse sentido que a Boitempo Editorial publica a coletânea Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?, editada no calor da hora, com contribuições de Andrew Jennings, Luis Fernandes, Raquel Rolnik, Ermínia Maricato, Carlos Vainer, Jorge Luiz Souto Maior, José Sergio Leite Lopes, Nelma Gusmão de Oliveira, entre outros. O livro de intervenção será lançado na primeira semana de junho e traz perspectivas variadas sobre o papel contraditório do esporte na sociedade brasileira entre a construção da identidade nacional, os impactos urbanísticos e as transformações dos megaeventos esportivos ao longo da história.
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Brasil em jogo - Andrew Jennings
Apresentação
Um teatro milionário
João Sette Whitaker Ferreira
Primeiro ato: uma boa ideia de marketing urbano
Meados dos anos 1980. Os países desenvolvidos vivem a crise da chamada reestruturação produtiva. Reduz-se a disposição dos Estados de bem-estar para manter políticas sociais universais e gratuitas, ainda mais face ao aumento significativo de imigrantes. Hegemoniza-se a mudança para um modelo neoliberal, liderada por Thatcher na Grã-Bretanha e Reagan nos Estados Unidos: os investimentos públicos tornam-se cada vez mais pontuais e exclusivistas, politicamente mais bem-recebidos pelos segmentos de alta renda, em detrimento dos programas sociais estruturais. A economia mundial se financeiriza e se endivida, consolidando um modelo que iria estourar décadas depois, na crise de 2008. A disputa por investimentos torna-se acirrada.
No âmbito urbanístico, parques industriais e equipamentos (como estações de trem) tornam-se obsoletos. Os centros urbanos popularizam-se e absorvem milhares de imigrantes; o desemprego bate forte e a crise nas cidades se instaura. A palavra renovação
urbana soa como música para enfrentar uma situação social que não agrada nem às elites nem aos governantes. O modelo de bem-estar social começa a se esfacelar, dando lugar ao combate
à chamada degradação urbana
.
Paradoxalmente, foi um governo socialista, do francês Mitterand, que inaugurou o que se tornaria uma solução
para essas áreas: transformá-las por meio da construção de grandes equipamentos culturais (museus, óperas e afins), símbolos arquitetônicos que aquecem o mercado imobiliário e da construção civil, dão um lustre moderno
à figura do governante, dinamizam o turismo e revigoram o chamado marketing da cidade
, ao preço de uma forte valorização e elitização[1]. A ideia difundida era a de que os gastos concentrados – muito menores do que políticas sociais em grande escala – gerariam uma imagem positiva
da cidade, capaz de atrair os fluxos do novo capital financeiro.
Segundo ato: uma receita de urbanismo
Nos anos 1990, a receita espalhou-se pelo mundo desenvolvido com tanto sucesso que importantes urbanistas – como Ermínia Maricato e Carlos Vainer, que escrevem neste livro – chegaram a apontar a hegemonização de um pensamento único nas cidades
[2]. Em suas pretensões globais
, as wannabe world cities[3] passam a disputar os fluxos de capitais financeiros. Multiplicam-se as obras simbólicas, assinadas por grandes arquitetos, emergentes de um novo jet set internacional da profissão.
A renovação das docas de Londres e o museu Guggenheim em Bilbao são alguns dos incontáveis exemplos de renovações urbanas realizadas segundo essa receita de urbanismo do espetáculo
, como Maricato aponta no artigo publicado neste volume. O aspecto central é que, em todas elas, foi fenomenal o comprometimento de recursos públicos, sempre com a justificativa de que as obras, minas de ouro para o mercado imobiliário e da construção civil, eram necessárias à nova competitividade global
. Porém, nem sempre as requalificações de bairros obsoletos
com dinheiro público tiveram a aceitação esperada, apesar do selo cultural
. Na crise econômica, a estratégia de comprometer recursos foi negativamente cotejada com a redução dos investimentos nas políticas sociais.
Era necessário legitimar esse modelo de alguma forma. Percebeu-se então que grandes eventos, sobretudo os esportivos, que movem paixões nacionais, tinham a grande qualidade
de serem popularmente aceitos. A ideia era associar esses eventos às obras de requalificação urbana desejadas. Assim, ao redor de um grande estádio, de um pavilhão de exposições, começaram a ser erguidos centros de negócios, bairros de alto padrão etc. Operações casadas em que governantes e investidores saíam ganhando, com a vantagem do apoio popular. A Copa do Mundo da Fifa e os Jogos Olímpicos do COI, os megaeventos mais importantes nesse cardápio, passaram a ser disputados ferozmente pelas cidades do mundo.
Como demonstra Nelma Gusmão de Oliveira, a Fifa e o COI perceberam o poder que tinham nas mãos. Governantes passaram a tratá-los como fontes milagrosas de capitais. Quem obtivesse o direito de sediar seus eventos teria uma justificativa de inquestionável popularidade para dispor de rios de dinheiro público em nome da modernização
da cidade, alavancando negócios milionários para o setor privado. Porém, necessidades legitimamente urbanísticas e, em geral, mais urgentes eram passadas para trás.
Em 1992, Barcelona, cidade que já dispunha de excepcional plano urbanístico desde o começo do século XX, inaugurou com certo sucesso essa fórmula, que seria então vendida ao planeta. Urbanistas catalães, como Jordi Borja, percorreram o mundo como verdadeiros gurus. Políticos da cidade alçaram voos mais altos. Joan Clos, responsável financeiro nos Jogos Olímpicos e por duas vezes prefeito da cidade, é hoje diretor executivo da UN-Habitat, da ONU.
Tanto a Fifa quanto o COI souberam transformar espetáculos esportivos em grandes negócios, como observa Nelma Gusmão de Oliveira, seguindo uma escola bem brasileira de trato com o poder – vide João Havelange dirigente da Fifa e do COI por décadas. Favores, comissões
e outras formas de negociação pouco transparentes passaram a ditar a escolha das cidades-sede, mas sobretudo os processos subsequentes de organização dos eventos. A Fifa, o COI e mesmo a FIA, da Fórmula 1, viram-se frequentemente envolvidas em escândalos de corrupção. E uma voz quase solitária passou a denunciar corajosamente tais descalabros: a do jornalista escocês Andrew Jennings, presente neste volume com o belo depoimento A máfia dos esportes e o capitalismo global
.
Entreatos: quem ganha com os eventos?
O lucro dos megaeventos redunda em ganhos fabulosos para as instituições organizadoras. O evento por si só já é uma máquina de dinheiro, com a venda de ingressos, direitos televisivos, de publicidade e imagem. Porém, se para a Fifa o negócio é lucrativo, com zero por cento de riscos, não é tão seguro assim para os patrocinadores. Por isso, aliás, eles ficaram apavorados com as manifestações de junho de 2013 no Brasil e exigiram medidas draconianas para proteger sua exclusividade. A regra é clara: todo lucro deve ser garantido às empresas que pagaram por isso.
Para os governos, porém, a conta não é tão certa, pelo menos em termos monetários. O suposto grande lucro
é político-eleitoral. Governantes veem sua imagem abrilhantada pela competência
em ter conseguido atrair um evento globalmente popular, que coloca a cidade ou o país-sede na vitrine do mundo. No entanto, do ponto de vista financeiro, até hoje não se mostrou, na ponta do lápis, o resultado final da equação entre os montantes de dinheiro público investidos, os custos da manutenção dos equipamentos após os eventos e os resultados comerciais efetivos no turismo e no comércio. Há casos de Jogos Olímpicos cujos lucros foram ínfimos, como em Atlanta (1996), ou que geraram significativo déficit, como em Montreal (1976) e Atenas (2004). Muitas vezes trata-se tão somente de transferências indiretas de recursos públicos para setores específicos (como o de hotelaria), e os custos sociais e ambientais são de difícil medição.
Mas o que ajuda a transformar megaeventos em minas de ouro são as obras que alavancam. Exigidas pelos órgãos organizadores em comum acordo com os governos hospedeiros, alimentam os mercados da construção civil, fundiário e imobiliário. A valorização fundiária é espetacular, gerando disputas locais ferozes. Como mostra Ermínia Maricato neste livro, nos países em desenvolvimento, o tsunami de capitais envolvidos aprofunda a dinâmica estrutural de desigualdade urbana e segregação socioeconômica. Junto a estádios, ginásios ou pavilhões, estruturam-se empreendimentos comerciais e bairros de negócios e são construídas importantes vias de acesso que interessam especialmente aos organizadores e raramente são prioritárias para a cidade.
O caso de São Paulo na Copa de 2014 é exemplar: mobilizaram-se recursos federais específicos para a construção de um monotrilho suspenso que serviria o estádio da abertura da Copa, na Zona Sudoeste da cidade. Porém, por disputas locais e pressão da Fifa, optou-se pela construção de um estádio novo, na Zona Leste, a custos e comissões muito mais altos. Mas o monotrilho da Copa
continuou a ser construído para levar torcedores ao estádio anterior. O novo estádio, por sua vez, foi implantado sem nenhum projeto de integração com a malha urbana local.
Além disso, as entidades esportivas indicam empresas amigas
para os projetos de engenharia, interferem nas escolhas das empreiteiras e pressionam os governos a abrirem pesadas linhas de financiamento. Sua força é tanta, e a submissão dos políticos locais tão gritante, que conseguem forçar a aprovação de leis específicas e excepcionais para garantir seus privilégios – como mostram neste livro Carlos Vainer e Jorge Luiz Souto Maior.
Nos países desenvolvidos, entretanto, tais procedimentos não passam despercebidos. A dificuldade em equacionar os investimentos públicos e os lucros eventuais, o déficit estrondoso de alguns eventos e as acusações de corrupção começam a mobilizar a sociedade civil, que protesta cada vez mais veementemente – vide a desistência de Estocolmo em concorrer para os Jogos Olímpicos de Inverno de 2022.
Terceiro ato: a caminhada para o Sul
Ao longo dos anos 1980 e 1990, com exceção do México em 1986, todas as Copas da Fifa foram realizadas em países desenvolvidos, alavancando grandes obras de reabilitação
urbana, como no caso do Stade de France, localizado na periferia norte da capital francesa.
A Copa de 2002 marcou uma transição ao ser coorganizada por um país desenvolvido, o Japão, com um tigre asiático
em ascensão, a Coreia do Sul. Era o começo de uma movimentação em direção aos países em desenvolvimento. África do Sul, Brasil, Rússia e Catar, com democracias ainda jovens (com exceção do totalitário Catar), foram escolhidos para sediar as Copas de 2010 a 2022.