Magma
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Magma - Fernanda Mendonça
Animismo magmático
Talvez tudo tenha sido contado pelo magma denso da caverna. Entre todos os níveis de lava compactados naquele tubo de mais de mil anos, é ele que narra a história geológica do mundo. Aos que querem se embrenhar em suas entranhas, ele expõe as veias para que, como sangue, entrem nos mais íntimos recônditos de seu corpo e escutem seu dizer orgânico.
— Podem ser sanguinárias as histórias de um vulcão!
Ela estava preparada para hemostasias de urgência.
A excitação zumbe no ouvido. Dizia que, antes de saber da alma da terra, era preciso correr os riscos de sua superfície, subir a encosta e olhar o todo de sua obra.
— Excitação desconhece o medo! — Mas a seguiu.
— Hallasan é o nome do nosso vulcão-Mãe — contou o magma antes que ela partisse. Mas aqui é chamado de Mama.
Pele de vulcão tem densidade pedregosa, seus suores expelem sais minerais que a tornam tão fértil quanto uma deusa. Em sua derme crescem espécies vegetais raras que se apresentariam durante os 10 quilômetros até o ponto mais alto.
8 horas da manhã, frio, um pedaço de chocolate ao leite de camelo, barra de cereal, uma laranja, água e o limite de horário. Ninguém pisa o topo depois das 14h30, não há garantias quando chega a hora mágica.
Subir era difícil, e ser ultrapassada por todos os outros caminhantes foi o sinal de que seu corpo não estava tão conectado às vibrações da terra quanto imaginava. Ainda se encontrava no primeiro estágio e o encantamento a envolvia toda, ebulindo seu desejo.
A floresta, mesmo seca, encanta; o frescor inebria. Estava sendo seduzida pelo caminho.
Quilômetros se foram, o vulcão muda sua cena. Traz o verde mais vibrante para sustentar o apaixonamento; aumenta a umidade, permite florescerem pequenas amarelinhas. Escadas surgem para tentar alinhar as percepções, mas os sinais de alerta já estavam sendo ligados. A taquicardia leve ainda era superada nos curtos períodos de repouso.
Trazia questões ao magma: por que precisava subir 1.950 metros para se conectar com ele? Por que desistir não cabia em suas opções?
— Ainda não é momento de respostas. Siga!
Estava cada vez mais difícil enganar seu organismo. A musculatura já ocupava toda a medida das fáscias, o conhecimento da neurofisiologia já não bastava para suprimir a exaustão. Pisava um terreno congelado. O fogo perdeu para a altitude e, com isso, ela ganhou mais um problema: pedras escorregadias exigiam atenção redobrada de um corpo que pedia repouso.
E uma dor querendo se impor.
Achava que era neste momento que sua alma se elevaria e todas as histórias seriam permitidas. Uma sublimação!
— Ainda não! — ouviu de algum lugar.
Pelo mapa, estava na parte mais difícil da rota; diria na parte mais difícil da vida! Experimentava a borda do abismo, uma quase morte, o limite real. A conexão mente-corpo tentava ancorar a vida como podia, pensava em saídas possíveis.
— Racional?
— Não! Absolutamente emergencial.
Logo consegue delinear a ilha. O pico estava a 50 metros, eram 14 horas. Questionou se seria possível subir essa distância em 30 minutos, tamanho o cansaço. Ouviu de novo:
— Só vai!
A boca que já urrou palavras das profundezas agora é silêncio, calmaria. Suspeitava que ouviria algo naquele instante, e seu corpo fibrilava na espera. Admira a obra insular do vulcão.
— Desçam! Desçam! Chegou a hora de fecharmos.
— Não! Ainda não ouvi a história!
— Lamentamos, mas tem que descer!
Percepções tão embotadas que raiva, rugidos, gritos, implorar, nada era possível. Diante do silêncio do vulcão, calaram também as palavras. Eram somente ela e seu sentir originário.
Os joelhos gritavam suas dores, cambaleavam. O corpo era arrastado pela insólita descida. Mais uma morte, auge da desconexão.
Foi quando ouviu um barulho de bicho. Pensou ser voz magmática, mas não era. Ouvido em carne viva sente a presença. Paralisa. Quais animais correm as pedras daquele vulcão? Estava entregue ao encontro. Uma energia ancestral a impedia de se mover.
À direita um rio, lugar que convida a encontros. É à beira dele que o som vai aumentando e, como uma aparição, um ser sobrenatural, ele surge. Lentamente, um veado se presentifica, envolto em uma aura suave, calma, equilibrada. Olha para ela e lhe confere alguma força. Sorve da água sem pressa. Cruza o rio, mudando o cantar suave das águas. Segue em sua direção, o olhar fixo, brilhante e ágil. Ela o recebia em um misto de encanto e deslumbramento.
É incontável o tempo do sonho. Ela não sabia dizer quanto durou aquele olhar.
Quando chegou à sua frente, sustentaram um encarar amoroso, acolheram suas essências e seguiram juntos pelo leito do rio. Ele desvia e adentra as árvores. Aos poucos, foi se cobrindo de mata, até voltar a ser floresta.
Não pôde seguir. Sentou, chorou. O que passou ali foram vidas, não minutos. Algo grandioso se deslocava dentro dela. Decerto era sua alma rompendo e ampliando todos os limites.
Ensujeitou-se em uma nova forma.
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Assim falou Magma.
Assaltobiografia
Somos esses dois elementos, desejo e mente, movendo nossos peões e aguardando os desfechos. Às vezes, somos torres; às vezes, cavalos, bispos, reis; outras, peões fora do jogo. Mas enquanto estivermos na partida experimentaremos movimentos, mudanças de estratégia, xeques-mates.
Gostava dos alter-egos que criara para existir, lhes dava nomes, cabiam em perfis bastante elaborados. Foi com Fernando Pessoa que aprendeu detalhes importantes desse processo.
Havia um de seus eus que ganhava a cena em momentos importantes, aquele reprimido que quer se mostrar, mas, às vezes, é aterrorizante demais: o Duplo Apocalíptico. Despido de moralidades banais, é capaz de avançar casas no tabuleiro, roubar brilhos das noites, encontrar caminhos diferentes de ser. Queria pô-lo em cena naquele momento, mas estava descansando da última utopia em que se meteram. Pegou outro parceiro e saiu pelo mundo.
Jogou seus peões.
A potência do social foi absolutamente subestimada pela menina. O mundo sabe jogar, é um mestre, um Kasparov, e ela, uma peoa decaída. Tentava acordar personagens adormecidos em busca de algum tímido enxadrista escondido.
Foi então que o assalto se iniciou. Ele já estava sendo estrategicamente calculado pelos sociopatas mundanos, pensava ela. Quantos eus seriam necessários para que não roubassem o que entendia como si mesma
, esse lugar que supunha distante de todos os seus seres inventados?
Acordou com o som das crianças cantando na escola. Havia um tom de música chinesa, um farfalhar do arrozal ao vento e a alegria da infância. Era um vibrar suave, sutil, um equilíbrio que tinha via direta com os lábios, amplificava sorrisos.
Equilíbrio, era o que buscavam no primeiro assalto. Inúmeras personas não conheciam esse lugar. No ato inicial, muitos foram eliminados do jogo.
Encostada no pilar em frente ao quarto, era possível ver um pássaro de longo rabo. O voo é diferente com o peso da cauda, um dançar. Num instante, ele pousa ao seu lado, faz seu som, queria definitivamente lhe contar algo, e voa ao final de