Sob A Pele Do Dinheiro
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Sob A Pele Do Dinheiro - Murilo De Sousa Rosa
CAPÍTULO I
COMO SE FOSSE UM SOPRO FRIO de cortar a pele e, ao mesmo tempo, um uivar persistente de um lobo, o Vento Sul desfilava pelas ruas e vielas pouco movimentadas daquela acanhada e modesta cidadela, erguida em algum ponto do litoral brasileiro, abaixo da linha do Trópico de Capricórnio. Esse vento, um velho conhecido na região por muitas gerações, havia ganhado esse nome não só por causa de sua origem geográfica, nem pelo sentido que percorria, mas por conta do desconforto que causava a quem o encontrasse. Ele abraçava e envolvia todos os que ousavam sair dos lares e abrigos, tentando empurrar com força e em sentido contrário qualquer um que o desafiasse, tornando pesados os passos de uma simples caminhada. Como se isso não bastasse, suspendia do chão a poeira acumulada, jogando-a nos olhos daqueles que persistiam, diante de sua presença, em não baixar a cabeça. Não se importando com as reclamações nessa pequena parte da costa do Atlântico, o Vento Sul era, sem dúvida alguma, o soberano.
Essa majestosa força da natureza se empenhava em bagunçar, nos mínimos detalhes, o aspecto tranquilo do lugar. Por sua causa, a cidade parecia apresentar um grandioso balé improvisado, formado exclusivamente por um bando de desajeitados: as ondas da lagoa encrespavam, os barcos no ancoradouro se chocavam, os galhos se inclinavam, os pássaros, assustados, se escondiam, os chapéus rolavam, as saias subiam e as placas das lojas balançavam. Nesse discreto palco urbano, tudo e todos dançavam, conforme seu peso, altura e formato. Como reféns do Vento Sul por meses, era assim que os moradores passavam boa parte dos dias de inverno em São João Batista da Ilha Grande, uma pequena cidade espremida entre os montes esverdeados e uma extensa lagoa, localizada próxima ao mar. Para os que viviam por lá, restava aguardar o vento ir embora, até esse período desagradável dar espaço a uma estação quente e confortável.
Apesar da teimosia do vento, ele também enfrentava ali alguns desafios, sendo barrado por obstáculos que havia no meio do caminho, pois essa terra era habitada por viventes que demonstravam ser, principalmente, resistentes. Para eles, apesar do desconforto, o Vento Sul era o menor dos problemas. Como qualquer diminuta comunidade existente entre os milhares de recantos espalhados pelo mundo, São João Batista da Ilha Grande, ou apenas Ilha Grande, como se referiam seus moradores, tinha suas peculiaridades, e para muitos dos que ali viviam, o sustento era garantido a partir do que oferecia a natureza do lugar.
Era do imponente espelho d’água que um amontoado de gente simples e valente, que aprendeu a pescar desde jovem, conseguia tirar das profundezas da lagoa o essencial para sua existência. Embarcados em estreitas canoas, distanciando-se das margens a cada remada, tinham como adversário não só o Vento Sul, que os visitava de tempos em tempos, procurando se firmar como um dos moradores do lugar, mas também as fagulhas do sol, que queimavam, ardiam e tatuavam a pele desses homens e mulheres que não encontravam outros meios para se manter senão por meio de uma relação próxima, íntima, arriscada e até mortal com a lagoa. Diferentemente do personagem Narciso, da mitologia dos antigos gregos, essas criaturas resistentes não se apaixonavam pela própria imagem refletida na água; inclusive, desconfiavam do fato de que nem Poseidon tinha piedade quando eles saíam para navegar.
Já outros, distantes das águas turvas da lagoa por falta de habilidade, interesse ou medo, ganhavam a vida tirando do solo duro algumas raízes, o que lhes dava um certo alívio contra a pobreza e a fome. Transformadas em mercadorias, essas raízes eram ensacadas, encaixotadas e vendidas para centros comerciais distantes e maiores, mas não sem antes eles guardarem para si uma quantia suficiente para o sustento do corpo e um mínimo agrado à alma. Para os que viviam do que a terra ofertava, a sorte não era maior, nem melhor em Ilha Grande, nem mesmo quando comparada àqueles que jogavam suas redes de pesca nas ondas da imensa lagoa.
Quando não estavam entrelaçados com seus ofícios, geralmente arrastando suas redes ou arando os campos irregulares, esses sobreviventes deixavam suas canoas e enxadas para se deslocarem, com pressa e vaidade, em direção ao centro da cidade. Eles iam em busca — a pé, montados ou motorizados — das bênçãos dos padres e pastores, da troca de favores, das novidades e de recursos menos escassos. Caso tivessem sorte, poderiam encontrar um amigo para conversar e se entreter, deixando-se envolver em um longo bom papo. Não era por acaso, pois essas horas de distração faziam essa parcela da população se esquecer, temporariamente, da rotina pesada e do cansaço.
Era nesse diminuto espaço urbano que todos em Ilha Grande, costumeiramente, se esbarravam, se misturavam, se divertiam, namoravam uns aos outros, assim como confraternizavam com os demais habitantes e negociavam com aqueles que ajudavam a formar esse aglomerado. Nesse meio nada homogêneo, também era possível ver um vai e vem de políticos, comerciantes, religiosos, funcionários públicos e privados. Alguns deles andavam para baixo e para cima com sorrisos sempre costurados no rosto; alguns, com seus pensamentos distantes; outros, com um fardo debaixo do braço.
Entretanto, se nos aproximássemos e conferíssemos atentamente todos eles, era no meio desse bloco carnavalesco improvisado, formado por andantes, pedintes, oportunistas e frustrados, que podíamos encontrar um sujeito que, embora considerado uma criatura comum, merecia destaque. Foi justamente para ele, talvez por obra do divino — quem sabe, até por conta do acaso — que foi reservado um desfecho inusitado. Com uma pausa dada pelo Vento Sul, atravessando o nevoeiro espesso que despontou pela manhã cedo, eis que apareceu nessa imensidão branca a silhueta de Arthur Dobrado, com seus passos vagarosos, ordenados, seguindo para mais um período de trabalho.
Arthur Dobrado, um sujeito simples, como todos que se encontram acorrentados à sua rotina, não conseguia vislumbrar para si um futuro no qual alguma coisa seria diferente do presente que vivia. Nascido e criado em Ilha Grande, cresceu, amou, sofreu e virou homem. Tratava-se de uma criatura magra, com seu um metro e setenta e cinco de altura, sustentava uma barba rala, geralmente malfeita. Não se preocupava com essa aparência, tampouco com a impressão que causava, já que morava em um lugar pequeno, onde quase todos se conheciam; por conta disso, tinha suas impressões formadas sobre os demais que ali moravam. Vestia-se de modo discreto, optando por cortes e cores neutras, roupas parecidas umas com as outras todos os dias. Contudo, isso não ofuscava a elegância de sua presença. Trabalhava como negociante, dono de uma velha e conhecida mercearia que herdou dos pais e avós, instalada há anos na avenida principal do lugar, na qual esteve presente desde a adolescência, aprendendo o ofício. Saiu poucas vezes de Ilha Grande, além de nunca ter morado em outro lugar. Com pouco mais de trinta anos, permanecia solteiro e, por mais que houvesse, em seu cotidiano, eventuais trocas de olhares com algumas moças da terra, Dobrado não acreditava que um forte romance estivesse à sua espera.
Havia, porém, uma pela qual ele se encantava, Alice. Ela, alguns anos mais jovem que Arthur, tinha longos cabelos escuros que tocavam suavemente a pele lisa dos ombros e os vestidos que usava. Fitava atentamente o mundo ao seu redor com bonitos olhos negros. Mantinha, na opinião de muitos que viviam por ali, um agradável sorriso, cativando, desse jeito, sem intenção, nem esforço, uma extensa fatia daquele povo que a reparava e a admirava. Era compreensível esse efeito que causava, visto que suas idas ao centro da cidade eram breves, dificultadas por serem raras. Quando passava, a impressão era de que seus pés nem tocavam o solo, atraindo todos os olhares; e para muitos desses rapazes, um aceno seu já servia de consolo. Independentemente do carisma e das paixões que provocava, Alice não demonstrava interesse por um que pudesse lhe fazer par, muito menos preencher seu coração, o qual parecia já estar ocupado.
Filha de destacados fazendeiros da região, Jonas e Doroteia do Conde, o que lhe dava satisfação era a vida de trabalho que levava no campo. Reservava horas dos dias percorrendo as propriedades da família, acompanhando de perto o trabalho dos funcionários nos plantios de café, laranja, soja, milho, o que se somava aos cuidados dedicados à criação. Orgulhosa por ser uma mulher da roça, aprendeu com as avós e a mãe a preparar na cozinha — um de seus lugares prediletos da casa — uma variedade de receitas de pratos doces e salgados, incluindo o cultivo de uma horta extensa e variada. A atenção devotada à terra fazia parte do dia a dia dessas mulheres, sendo esse um dos significativos laços que as unia. Era por causa desse gosto em comum, passado de geração em geração, que Alice costumava dizer que nada podia separá-las. Em razão disso, a família e os amigos conseguiam entender por que, até então, essa moça tão bonita não se interessou em ter um namorado.
Caminhando pelos pastos, cavalgando sozinha, conferindo os consertos das cercas, ela se tornou uma mulher forte, decidida, assumindo a responsabilidade por todos aqueles hectares, porém continuava sendo uma criatura atenciosa e meiga. Esse universo particular das fazendas lhe fascinava desde a infância; entretanto, o que lhe agradava ainda mais era viver na companhia dos animais da fazenda: cães, gatos, bois, vacas, cavalos, pôneis, galinhas, porcos, marrecos, gansos, perus e coelhos; eram todos bem cuidados, protegidos por essa moça que adorava percorrer os criadouros e estrebarias calçando suas galochas. Bastava que ela aparecesse na porta de casa para que a bicharada se alvoroçasse, considerando o fato de que já estavam acostumados com aquela que, com frequência, os acariciava e alimentava. Entre todos os bichos que a cercavam, havia, para Alice, uma criatura especial. Disposta a cavalgar, bastava chamar por seu nome: Violeta. Era com a égua de estimação que a fazendeira percorria as trilhas, verificava os currais, conferia os hectares e passeava sem preocupação, deixando que Violeta a levasse, longe de se preocupar com qual seria a direção. Para os pais de Alice, que desde jovens também foram criados de maneira idêntica, ter a filha por perto e cuidando das terras era a realização dos seus maiores desejos.
Sem que ela pudesse saber, a moça tinha o poder de encantar outras criaturas. Os jovens rapazes de Ilha Grande, apaixonados por Alice, sem intimidade com gado, arado ou plantação, não se conformavam com o distanciamento existente entre mundos tão diferentes. Faltava, para todos eles, afinidade. De qualquer jeito, essa parcela da população de Ilha Grande, desprovida de qualquer outra opção, mantinha acesa a esperança, sonhando em ganhar da moça da fazenda sua atenção.
Com Arthur Dobrado, a situação não era diferente. Sabia ele que eram raras as chances de conquistá-la se não tomasse alguma iniciativa, permanecendo calado e escondido atrás do balcão. Desprovido de coragem para se aproximar, Arthur lamentava, sabendo que nessas circunstâncias a bonita garota do interior não o reparava. Mergulhado em seus pensamentos e fantasias, Dobrado vivia duas expectativas distintas. Por um lado, relutava contra a ideia de um contato, já que não tinha