As raparigas estão bem: Cinco ginastas de elite. Um segredo
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Sobre este e-book
Durante uma semana de competição intensa, Martina e as suas colegas de equipa chegam ao limite das suas forças. Qualquer sintoma de fraqueza pode significar o fim. E, em apenas sete dias, uma obsessão doentia acabará em assassinato.
Todas estão dispostas a fazer tudo para ganhar… mas a que preço?
«Absorvente, dilacerante e extremamente duro; decididamente, inesquecível.» ALEX MICHAELIDES, autor de A paciente silenciosa
«Brutal e brilhante; li-o de uma assentada.» HARRIET TYCE, autora de Laranja de sangue
Cativante… uma riqueza de detalhes psicológicos e sensoriais que a não-ficção jamais conseguiria igualar.» The Sunday Times
«Entra-se num mundo perturbador e maravilhosamente perigoso. Não conseguia parar de ler.» CESCA MAJOR, autora de The Other Girl
«Um retrato brilhante, tão surpreendente como fascinante.» Stylist
«Direto e claustrofóbico… [uma] sensação de inquietação e tragédia iminente.» Shotsmag
«Para os fãs do documentário apaixonante da Netflix Athlete A… chega o relato de Ilaria Bernardini sobre o que sucede quando a competição chega demasiado longe.» Harper's Bazaar
«Durante um campeonato internacional, somos testemunhas da dor física, do peso emocional, dos abusos e da cumplicidade que pode alimentar a competição. Uma mistura entre Cisne Negro e Heathers.» Grazia
«Uma história perturbadora e sólida de amizade, rivalidade e obsessão.» Abigail Dean, autora best seller do Sunday Times
«Que livro incrível! Uma imagem surpreendente e reveladora do mundo da ginástica de elite. Uma estreia inesquecível.» Jo Jakeman, autora de Sticks and Stones
«Que romance tão inquietante. Cruel, doloroso, angustiante e comovente. Abriu-me os olhos com grande destreza para uma indústria e para a intensidade de um grupo de jovens.» Liv Matthews, autora de The Prank
«Adorei este livro. É uma leitura tão original e inquietante que me acompanhou muito depois de a ter lido.» Amanda Reynolds, autora de Close to Me
Ilaria Bernardini
Ilaria Bernardini é escritora e guionista, autora de nove romances, uma novela gráfica e duas coleções de contos. O seu livro Faremo Foresta foi pré-selecionado para o prestigiado prémio italiano Strega. Criou programas de televisão, incluindo Ginnaste e Ballerini (MTV) e colaborou com as revistas Rolling Stone, Vogue, Vanity Fair e GQ. As raparigas estão bem baseia-se na sua obra Corpo Libero, que depois se transformou num reality show de culto. A história inspira-se na exposição da própria Bernardini ao mundo da ginástica artística ao longo da última década. A Indigo Film adaptou o livro para uma série televisiva de seis partes, com o apoio da All 3Media International e do programa Creative Europe Media da União Europeia.
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As raparigas estão bem - Ilaria Bernardini
Editado pela HarperCollins Ibérica, S.A.
Avenida de Burgos, 8B
28036 Madrid
As raparigas estão bem
Título original: The Girls Are Good
© Ilaria Bernardini 2022
© 2024, para esta edição da HarperCollins Ibérica, S.A.
Publicado originalmente pela HarperCollins Publishers Limited, UK.
© Tradutor: Fátima Tomás da Silva
Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.
Esta edição foi publicada com a autorização da HarperCollins Publishers Limited, UK.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.
Desenho da capa: Pedro Viejo Diseño
Imagem da capa: Dreamstime.com
1.ª edição: Maio 2024
I.S.B.N.: 9788410640221
Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.
Sumário
Créditos
Cita
Segunda-feira
Terça-feira
Quarta-feira
Quinta-feira
Sexta-feira
Sábado
Domingo
Agradecimentos
Até que ponto pode a música anular a dor?
Ela abre a lista de reprodução.
DIANE DI PRIMA
Segunda-feira
Dentro de sete dias haverá uma ginasta morta e, no entanto, ao abrir os olhos, parece-me que continua tudo igual. Ainda que, claro, a minha vida seja um loop e tudo me pareça sempre igual. O meu primeiro alarme acorda-me às seis e cinco; o segundo, às seis e dez. Gosto do primeiro porque existe o segundo, esses cinco minutos são apenas meus. Não penso em nada, não sou nada. São os cinco minutos mais longos do meu dia. Às seis e dez, acordo por completo, estalo o pescoço, estico os braços, as mãos, cada um dos dedos. Levanto-me e sinto a alcatifa por baixo dos pés. Faz-me cócegas, como de costume. Não é uma dessas alcatifas suaves, como a que têm em casa de Anna. A nossa é barata e bege, a cor mais barata que existe, se excetuarmos o cinzento escolar. O meu pai diz que não faz mal sermos pobres, porque nos amamos e, desde que contemos com o nosso amor mútuo, o resto não importa. Certifico-me sempre de lhe dizer que sim com a cabeça, pois, caso contrário, a minha mãe e ele ficariam ainda mais tristes e eu, além de pobre, sentir-me-ia mesquinha.
Lavo o cabelo vermelhíssimo, vejo as minhas muitíssimas sardas no espelho, visto-me e fecho o saco de viagem. Dou a volta à cadeira duas vezes, puxo o fecho do fato de treino do meu equipamento e volto a olhar para as minhas muitíssimas sardas. Abro a porta, bato duas vezes na maçaneta e desço para a sala. Que também é a sala de jantar, a sala de estar, a cozinha e o quarto dos meus pais. Como os cereais, bebo o sumo.
— Teremos saudades tuas — diz a minha mãe, depois de me dar um beijo. — Não te esqueças do passaporte.
— Vemo-nos dentro de uma semana — diz o meu pai, do sofá-cama. — Parte uma perna, ratinha!
Sim, é verdade que nos amamos. Embora a minha mãe tenha o olhar triste e o meu pai pareça mais deprimido do que nunca. Não sentirei a falta deles. Nunca sinto a falta deles, nunca o fiz e nunca o farei. Mas quero ganhar por eles ou, pelo menos, classificar-me para a final individual neste torneio para que, talvez — graças a mim e ao meu caminho para as Olimpíadas —, algum dia possam ter o seu próprio quarto. Ou, pelo menos, uma cozinha. Assim, poderia deixar de me sentir culpada por fingir, às vezes, que não os conheço quando vêm ver-me a competir.
Agora, tenho quinze anos, mas tinha apenas quatro quando comecei a praticar ginástica. Nessa altura, ninguém sabia se teria jeito ou se acabaria por ser alta ou baixa. Também não fazia ideia de que, a partir dos dez anos, me veria obrigada a treinar às sete da manhã, antes de ir para a escola. E depois outra vez das três até às sete da tarde, nem que teria de fazer os trabalhos de casa durante o jantar, dormir e voltar a levantar-me na manhã seguinte, seis dias por semana, para treinar de novo às sete e assim sucessivamente. Não sabia que os domingos ficariam destinados para sempre às competições, nem que os meus dias seriam tão repetitivos. Não sabia que acabaria por gostar que as coisas se repitam. Pelo menos, a maioria delas. Embora as sessões de treino e os exercícios nunca se repitam realmente, dado que, mesmo nessa repetição, há sempre mudanças. E na vida de uma ginasta há sempre mudanças. Como hoje, por exemplo, que viajamos para a Roménia para competir. Isso é novo.
E a novidade assusta-me e, ao mesmo tempo, entusiasma-me.
Abro a porta de casa e vejo que, pela estrada, chega o minibus da nossa equipa. Atravesso o jardim, sinto o frio gélido nas faces e o vento faz com que os olhos chorem. O céu está mais nublado do que o normal. Tal como o meu cabelo, que hoje me parece mais vermelho do que o normal. Um vermelho-fogo. Ou talvez um vermelho-morango. Embrulho-me com o cachecol, depois, faço-o mais duas vezes, antes de continuar com a minha vida e todos os movimentos que esta exige. Andar, certamente. Estar com outras pessoas. Respirar, sorrir.
Rezar para não morrer.
Dentro do autocarro, reina o silêncio. Nenhuma das minhas colegas de equipa olha para mim. Anna e Benedetta estão a dormir, Nadia e Carla nem se incomodam. Rachele, a nossa treinadora, sorri para mim, embora se esforce sempre demasiado. Quando sorri. Quando fala. Quando faz alguma coisa. Cumprimento-a discretamente com a mão e depois faço um gesto com a cabeça a Alex, o fisioterapeuta. Até daqui sinto o cheiro da última bebida que bebeu. E, como todos os dias durante os últimos cinco anos, sinto o cheiro dos seus cigarros e depois o cheiro dos seus cigarros na minha pele. O cheiro do seu corpo na minha pele. E essa foi outra das coisas que aprendi quando tinha dez anos.
— Dormiste bem esta noite? — pergunta-me.
— Sim — respondo.
Imagino-o com a sua mulher, a dormir bem apesar dos horrores de que é capaz. Talvez ela também deteste o seu cheiro. Talvez também tente livrar-se dele com água, álcool ou arranhando a pele com as unhas. Será verdade que Alex só nos tocará enquanto parecermos crianças, como diz a Carla? Ou isso também será mentira? Talvez isso signifique que, quando fizer dezasseis anos, no máximo dezassete, deixará de o fazer e essa será a única vantagem de me tornar mais velha.
Essa e, também, poder comer mais.
O único lugar vazio é junto de Nadia e Carla, portanto, sento-me lá e as três dizemos «olá». Há uma hora de caminho até ao aeroporto, depois uma viagem de três horas de Itália para a Roménia, e já começo a sentir claustrofobia. Bato na janela duas vezes, puxo o fecho para cima e para baixo, conto até cem. As outras estão a ouvir música nos seus telemóveis, mas eu ainda uso um iPod velho que herdei da cabeleireira para quem a minha mãe faz limpezas. Tenho de o ligar e desligar algumas vezes antes que funcione. Nadia e Carla observam o meu artefacto antediluviano e ambas fecham os olhos, exatamente ao mesmo tempo. É como se as visse em câmara lenta, uma coreografia que ensaiaram. Também há o som do movimento que as suas pestanas compridíssimas fazem e esse som também tem eco.
Tudo o que Nadia e Carla fazem, até respirar, parecem fazê-lo sempre juntas. Talvez até os seus batimentos cardíacos estejam sincronizados. Talvez os seus nomes, ambos de cinco letras, façam parte de uma unidade superior. Carla usa mais maquilhagem e saias; Nadia veste sempre calças de fato de treino. Uma delas é loira e a outra de cabelo escuro. Mas é provável que tais diferenças se tenham decidido na fase de planeamento para que fizessem um par melhor.
Quando as conheci, tinham oito anos. Antes disso, só as tinha visto no campo de treino, mas nunca se davam com mais ninguém. Iam visitar o clube de Rachele, onde eu treinava. Carla já era um prodígio. Além de ser famosa por ter protagonizado um anúncio de televisão em que dizia a um rapaz da sua idade «Olha o que sei fazer!» e, então, precipitava-se a fazer três rondadas e um duplo salto mortal à retaguarda. Rececionava, sorria, e sentava-se à mesa para devorar uma barrinha de cereais que, supostamente, lhe dava a energia necessária para fazer essas acrobacias. O miúdo afastava-se, abatido, mas Carla corria atrás dele para lhe dar também uma barrinha e, então, ambos ficavam contentes.
Sei que deve ter cuspido essa barrinha de cereais assim que gritaram «Corta!».
Lembro-me de pensar que queria ser como ela e de me questionar como seria possível que pudesse sorrir à frente da câmara com tanta naturalidade depois de fazer um duplo salto mortal à retaguarda com pirueta. Então, percebi que eu estava sempre a tentar sorrir para os juízes e para os treinadores. Também para a minha mãe e para o meu pai.
Todas dávamos uma boa impressão de fora. Ainda damos. Embora algumas de nós tenham mais jeito para fingir.
Seleciono a lista de reprodução dos meus exercícios de solo e ponho-a baixa, porque não suporto que a música me magoe os ouvidos. Sigo as notas e visualizo um movimento para cada uma delas — o salto de carpa frontal e roda sem mãos —, depois imagino a melodia sem a letra. Visualizo-me com grande elegância a fazer um duplo salto mortal à retaguarda e para a frente, um flic-flac dobrando as costas para formar um «V» invertido, antes de fazer o salto com espargata no ar. Se a minha mente me ajudar, se o meu corpo me ajudar, esta semana, acrescentarei um triplo salto, que faço bastante bem há já uns meses. Imagino-me a derramar uma única lágrima de satisfação depois de o fazer e a sorrir para os juízes.
Depois, para o mundo.
Enrosco-me no banco, de costas para a Carla, e durmo. Consigo dormir em qualquer lado; a minha mãe ensinou-me. Mesmo quando era pequena, conseguia adormecer sem problemas por baixo de uma mesa enquanto ela limpava escritórios ou enquanto limpava o cabeleireiro ou no autocarro noturno quando regressávamos de algum dos seus trabalhos mais afastados. Adormeço imediatamente e muito profundamente. Não sonho com nada. Não sou nada.
Quando acordo, estamos no aeroporto e Nadia e Carla estão a rir-se do rabo de Rachele, que dizem que parece cada vez maior, mais gordo e mais flácido.
— Vê-se a celulite daqui — diz Carla.
— Vê-se através do fato de treino — confirma Nadia.
— Veem-se os pratos de massa com molho que comeu. Também se vê na cara, tem a pele tão brilhante como o queijo. Cheira-te a mozzarella?
Nadia ri-se. Ri-se sempre quando Carla está a ser má. Ou quando Carla está a ser qualquer coisa, na verdade. Ri-se e adora-a.
Sigo-as, fazendo com que pareça que não estou a segui-las; odeiam-me quando me aproximo demasiado e eu odeio-me a mim mesma quando me aproximo demasiado. De modo que ando junto delas, mas um passo e meio atrás. Carla faz oscilar as suas ancas e a sua mala de marca, que tem umas letras enormes estampadas. Agora, está a falar de, na semana passada na escola, ter seduzido o seu professor durante um exame de História. Perguntou-lhe se era realmente importante saber que doenças existiam na Idade Média. «Não devíamos preocupar-nos com outras coisas?», perguntou, supostamente. Então, diz a Nadia que pestanejou de um modo muito explícito.
Há anos que oiço a Carla e a Nadia. Ouvi-as a analisar o crescimento — ou o não crescimento — das suas mamas, das minhas mamas e a examinar com atenção cada rapaz, cada rapariga. Ouvi-as a confessar as suas obsessões, histórias e segredos familiares, um a um. Também já há anos que vejo a Nadia a olhar embevecida para a Carla no duche, a admirar o seu salto mortal à retaguarda no ginásio. A elogiá-la. A amá-la.
Sei que a ama. Todas sabemos.
Também sei que, em casa de Carla, rezam muito. Leem a Bíblia durante o jantar e na cama, antes de ir dormir, e depois leem-na um pouco mais durante o café do pequeno-almoço. Se almoçarem juntos ao meio-dia, pois, claro, então acompanharão a comida com mais Bíblia. O facto de lerem a Bíblia juntos durante o café do pequeno-almoço ou quando comem frango ao meio-dia é o motivo por que os pais de Carla decidiram que ia parar de fazer anúncios. Não importava que fosse famosa antes de Deus entrar nas suas vidas. Era algo que era permitido. No entanto, agora, já não é a forma apropriada de agradecer ao Senhor pelo talento prezado e o dom que concedeu a Carla.
— És o anjo ginasta de Deus — dizem-lhe.
E, embora Carla goze com eles, questiono-me se parte dessa afirmação terá ficado interiorizada nela. Sim, parece acreditar que é um anjo. Essa fé, juntamente com a sua capacidade de voar, deve ajudá-la a não cair da mesa de saltos. Nem dos banzos das paralelas. Nem nunca.
A mãe de Nadia é muito diferente de todas as outras mães. Teve-a com a nossa idade e, certamente, não queria tê-la. Agora, só tem vinte e nove anos e não se importaria que Nadia levasse um rapaz para casa para dormir com ela. Nadia não está interessada em levar um rapaz para dormir, mas conta-nos isso para que saibamos como é a sua mãe, que Nadia e ela falam de coisas divertidas, como o amor, os amantes e o sexo, e como acabar com os namorados sem os magoar ou magoar-se a si mesma. Conta-nos tudo isto para que vejamos que falam. Que ela existe.
— Não cometam os meus erros, raparigas — disse-nos a sua mãe, numa das poucas vezes que passámos tempo com ela. — Nada de gravidezes antes dos vinte. Ou até dos trinta. Ter filhos é uma ideia terrível.
Eu olhei para Nadia e questionei-me o que sentiria ao ouvir o seu nome com frequência num aviso sobre erros e más ideias.
No aeroporto, somos as passageiras mais baixas dos que estão na fila para embarcar no voo low cost, e Anna e Benedetta são as mais baixas das mais baixas, aqui e talvez no universo inteiro. Esse é apenas parte do motivo por que quase nunca reparamos nelas. O outro motivo é que têm tanto medo de tudo que escolheram o silêncio como forma de fingir que não estão aqui. Ou que não estão vivas. Ou em perigo. Carla deu a alcunha «Inúteis» a Anna e a Benedetta. Antes, só as víamos quando treinávamos para entrar na equipa nacional porque elas vinham de clubes distantes e Carla recordava-nos sempre que os seus clubes eram de pessoas pobres. Para as ginastas das pessoas pobres. Mas, então, Rachele convidou-as para se inscreverem no nosso clube, portanto, estão aqui. Estão aqui inutilmente. Carla também repete que tanto as Inúteis como a equipa de rapazes do nosso clube são uma vergonha. Os rapazes nunca chegam sequer aos campeonatos e ela diz que deviam ser empregados de mesa, carpinteiros ou desaparecer, desintegrar-se. Talvez até morrer.
Rachele defende sempre os rapazes e as Inúteis.
— São os teus valiosos colegas de equipa — diz a Carla. — Sabes muito bem que, quando eles ganham, tu também ganhas.
Mas, por muito que Rachele nos recorde, Carla nunca o deixa passar. E temos de reconhecer que nunca ganham, as coisas são como são.
— Não abusemos, treinadora — disse Carla a Rachele, da última vez. — A Benedetta, apesar da sua anorexia espetacular, é como um elefante na trave olímpica. A Anna tem medo da mesa de saltos e, quando faz exercícios de solo, olha para os pés. São patéticas! Porque permite que compitam connosco?
Na fila para embarcar no avião, tal como em qualquer outro lugar do mundo exterior, as pessoas ficam a olhar para nós. Suponho que tenhamos um ar estranho, somos raparigas pequenas com pernas musculadas e o cabelo muito arranjado, todas vestidas com uma sweatshirt idêntica. No ginásio, gosto dos nossos corpos, valorizo-os, mas aqui sinto-me disforme. Gostaria de ter escrito na testa: SOMOS GINASTAS. Neste desporto, é uma grande vantagem ter o corpo pequeno como o nosso e umas pernas musculadíssimas! Não queremos seios! Não queremos ter o período! Não faz mal se tivermos osteoporose com treze anos, não faz mal que não sejamos altas! O importante é ganhar e que este corpo seja forte e não que seja bonito quando estamos na fila!
Mas essas palavras todas não me caberiam na testa.
Rachele diz sempre que graças a Deus que temos esta compleição, graças a Deus que somos baixas e que não temos mamas, e graças a Deus que quase nenhuma tem o período e que devemos agradecer a Deus pelos nossos corpos, tão pequenos e ao mesmo tempo tão fortes. Caso contrário, não poderíamos brilhar neste desporto, nem ser campeãs, nem fazer da ginástica a representação orgulhosa do poder e da força da nação. Por isso, aquela que engorda está acabada. Ou aquela que cresce está acabada. Ou aquela cujas as mamas crescem está acabada, a não ser que consiga suportar que as embrulhem com ligaduras. O nosso corpo é o nosso bem mais apreciado. Também é por isso que vivemos e viajamos com um fisioterapeuta. E é por isso que temos sessões diárias com ele. Teoricamente, as sessões servem para proteger o nosso bem mais apreciado.
Na prática, é lá dentro que tudo se quebra por completo.
— As raparigas estão bem — dirá Rachele a qualquer pessoa que pergunte se queremos comer um pouco mais, ou treinar um pouco menos, ou se estamos satisfeitas com esta vida em que nos chamam despropósitos, elefantes ou perdedoras, enquanto trabalhamos, suamos e suportamos a dor nos nossos exercícios.
— Estamos bem — confirmamos. E dizemos que sim com a cabeça. E sorrimos.
No nosso país, há quase quatro mil ginastas ao nível da competição. Apenas uma dúzia é tão forte como nós. Física e mentalmente tão fortes como a Carla? Acho que não há ninguém. Talvez seja por isso que é capaz de nunca falar de Alex. Talvez seja por isso que é tão combativa. A nossa disciplina consiste em exercícios de solo com acompanhamento musical, a trave olímpica, saltos na mesa de saltos e as paralelas assimétricas. Fazemos todos os exercícios individualmente, mas pontuam-nos como indivíduos e como equipa. É um desporto olímpico e aspiramos à equipa nacional e às Olimpíadas. Por essa razão, Carla e Nadia mudaram-se para o norte com as suas famílias e começaram a treinar no meu ginásio. É por isso que Anna e Benedetta também se esforçam para encaixar. Rachele é conhecida por ser a melhor. Sim, também é