Flores E Fúrias
De Tiago M. B.
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Psicologia para você
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Flores E Fúrias - Tiago M. B.
Flores e
Fúrias
Tiago M. B.
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São José - SC, 2018
ISBN 978-85-455079-2-5
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Prólogo
Às sete horas da noite a chuva era impiedosa na pequena janela. Em seus ouvidos, o ar congelante soprava versículos
indecifráveis.
Renato
era
parcialmente
iluminado pela luz pálida dos relâmpagos, enquanto seu rosto ficava encoberto sob as garras da escuridão. Desde o início, sentiu que estava sendo sugado por uma espécie de buraco negro que o conduzia a outro universo.
Escorregando dolorosamente num ralo de pensamentos perturbadores, seus olhos permaneciam abertos como os de uma cabeça guilhotinada há poucos segundos, vendo as belezas do mundo dançarem diante de si pela última vez.
Uma série de tropeços, sinais e descobertas o haviam trazido até esse recinto inusitado, dentro do banheiro do museu de arte. Era um ponto obscuro de sua trajetória, onde permanecia estático, buscando apenas um sentido para tudo que havia ocorrido. Abandonado às entrelinhas da fatalidade e do acaso, como um herói vacilante, foi durante muito tempo um títere sob o controle de um deus sádico. Tentou resistir ao chamado incontornável do propósito, mas finalmente aceitou o destino. Lutar contra si mesmo era inútil. Precisava ter fé. Erguer-se. Contra tudo e todos. Agora era o momento.
Num labirinto de muitos níveis, pensou ter encontrado a saída: uma teoria definitiva de sua própria história. Um sentido que explicasse, de forma coerente, tudo que lhe acontecera até então, e de que maneira deveria proceder para voltar aos eixos da serenidade. Mas será que, em algum momento, Renato teve essa virtude
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que esperava reencontrar? Ou o passado não teria sido apenas um delírio? Tudo era um enorme quebra-cabeças, com milhares de peças e milhões de encaixes. Lúdico, mas complicado.
Já de madrugada, o silêncio foi quebrado apenas por suas
próprias
palavras,
pronunciadas
de
forma
melancólica, como uma oração. Um resto de chuva fina caía sobre a vidraça do banheiro. Clarões intermitentes acariciavam suas roupas úmidas. O vento continuava a tocar uma melodia sombria entre as frestas da janela, e sua lembrança voava para lugares que, mesmo em sonhos, jamais poderíamos imaginar…
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PARTE I
As flores nascem nos locais mais inóspitos
Na cama está deitada a deusa, a soberana dos sonhos. Mas como é que ela veio aqui? Quem a trouxe, que poder mágico a instalou neste trono de fantasia e de volúpia?
Baudelaire
Primeiro Capítulo:
No qual Renato e Virgínia se conhecem Sexta-Feira, 27 de junho de 1975.
Dezoito dias antes.
As primeiras luzes da manhã atravessaram o tecido da cortina junto à janela da sala. Pequenos grãos de poeira, que estavam suspensos no ar do antigo apartamento, tornaram-se mais nítidos a cada instante. O ambiente permanecia num silêncio acolhedor, enquanto alguns suaves ruídos, vindos da rua ou de outras moradias, tocavam sutilmente uma harmonia imprecisa. Lá fora, uma espessa camada de neblina acariciou os vidros, tornando a visão dos prédios vizinhos um pouco obscura.
Seduzido por essas delicadas impressões matutinas, Renato sentiu-se extremamente só. Teve medo de ser enterrado vivo e apodrecer sozinho no apartamento onde morava - um caixão onde o haviam enclausurado para sempre e onde ninguém jamais o procuraria. Não queria
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ser mais um morto no noticiário. Pensou ver diante de si um carro preto distanciando-se no horizonte de uma rua.
Acreditou estar em uma cidade muito fria, em que cristais brancos pousavam suavemente na terra e coisas mágicas eram possíveis.
Abriu os olhos lentamente e começou a despertar desses sonhos confusos. Ao mesmo tempo em que se certificava de que já estava acordado, tocando seu rosto com os próprios dedos, procurava também recordar do que havia supostamente sonhado, esticando os braços para cima, tentando tocar um rosto feminino que flutuava no ar.
Parecia certo que estava com uma garota desconhecida, muito linda, em frente a degraus de escadaria. Algo fantástico havia acabado de acontecer, qualquer coisa semelhante a um milagre. O céu parecia estar desabando diante deles, escorrendo em sua própria loucura.
Devaneios.
Riu de si mesmo. Percebeu estar sozinho e deitado.
O
teto
que
viu
parecia um pouco manchado,
provavelmente devido a umidade.
Mais um local para fazer arte, raciocinou.
Virou-se para o lado, ajeitando o cobertor que tinha sobre o corpo. Adormecer no estreito sofá já estava tornando-se corriqueiro. Costumava ter insônia nas horas mais escuras da madrugada. Ao raiar do dia tinha especial necessidade de dormir profundamente, sem vontade alguma de abrir os olhos. Porém estava reparando que, ultimamente, sua insônia prosseguia até mesmo durante o dia. Sentia-se um boneco preso a correntes invisíveis, suspensas nas mãos de um anjo mau, e parecia que nada poderia fazer para agir de acordo com sua própria
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natureza. Não compreendia ao certo quem escrevia sua história de vida, afinal: seu livre-arbítrio ou uma pena tirânica?
Após passar a madrugada fazendo desenhos com spray de tinta nas paredes do apartamento onde morava com o pai, Renato cochilou - talvez por uma hora, talvez mais - enquanto lia um de seus quadrinhos favoritos, o Ultra-Humano. Tratava-se de uma publicação clássica, sobre um justiceiro alienígena com poderes sobrenaturais, que andava por aí com uma identidade secreta durante o dia, mas utilizava seu codinome e agia uniformizado contra o mal, sempre que necessário. A ocasião da leitura fez-lhe lembrar, largando o gibi por uns momentos e olhando para cima, do vazio em que o apartamento se encontrava, sem família ou uma mobília decente, refletindo também o estado de sua alma naqueles tempos.
Um espírito que andava em busca de vida, fantasia, sentidos, razões, romances e, principalmente, soluções para mistérios insolúveis...
Por exemplo, por que seu pai estava sendo acusado de um crime que, obviamente, não havia cometido? Aliás, que crime seria este? Nem ele sabia. Há poucos meses, militares certamente ligados ao DOI-CODI haviam tocado a campainha e, sutilmente, convidado o Sr. Teodoro, pai de Renato e professor de física na Universidade Federal do Paraná, a comparecer no batalhão para prestar certos esclarecimentos. Depois disto, no mesmo dia, Teodoro voltou do interrogatório muito machucado, abalado psicologicamente; não era de se estranhar. Arrumou uma ou duas malas e partiu para a antiga casa da família, em Quatro Barras, sem dar nenhuma resposta consistente,
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deixando o filho completamente sozinho.
Renato não sabia nada. Não sabia fazer sua própria comida. Não sabia pagar contas. Não sabia que crime o pai havia cometido. Não sabia o que fazer de sua vida. Sentia um desejo profundo de arrebatamento e êxtase, de transformar cada momento em poesia, em arte. Mas não sabia como. Gostaria de encontrar alguém. Não sabia onde. Gostaria de adormecer. Onde quer que fosse -
mesmo sendo o sofá desconfortável da sala. Havia nele uma incapacidade natural de lidar com questões mundanas, cotidianas, concretas. Somente uma benção especial, ou um milagre, poderia lhe salvar de seu degredo maldito neste mundo, pensava. E infantilmente aguardava por isso, lá no fundo de sua alma.
Ao finalmente acordar por completo, depois de alguns minutos confusos entre a inconsciência e a vigilância, subitamente foi tomado, mais uma vez, pelos sentimentos opressivos nos quais mergulhava ao raiar de todos os dias, bem como pelas dores corporais crônicas.
Permaneceu assim por muito tempo, entre o desejo ardente de liberdade e o medo sufocante da solidão. No fundo, sabia que uma coisa era o complemento da outra: dois lados da mesma moeda, e isto era inapelável. Não suportava ter que acordar ali, naquele mundo ao qual sentia não pertencer. Necessitava de forças sobre-humanas para enfrentar sua própria vida.
Renato tentou de todas as maneiras, em vão, dormir novamente, sem sucesso. A insônia agigantou-se. Ele desistiu de lutar. Esticando seu braço, alcançou a televisão.
Sentiu um pouco de frio. Girou o botão. Tréc! Ligando o aparelho, observou desatento as notícias meteorológicas,
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destacadas numa tela preto e branca, quase ovalada. Mais uma massa de ar polar, comum nesta época do ano no sul do Brasil, avançava sobre a região, mantendo as temperaturas na casa dos seis graus celsius ao amanhecer.
Acho que este é o inverno mais frio dos últimos anos, pensou, encolhendo-se ainda mais em sua grossa coberta. Não lembro de a temperatura ter subido além dos quinze ultimamente.
Seu apartamento, assim como a imensa maioria das residências na capital paranaense, não possuía sistema de aquecimento, o que tornava o excesso de cobertores e roupas necessário mesmo em ambientes fechados. Renato abaixou volume do aparelho de tevê e observou o teto mais uma vez.
Por onde será que a umidade infiltra-se nas paredes?
Devo impermeabilizá-las com algum tipo de produto? Não sei... Por que deveria me preocupar com isso, afinal? Se nem meu pai se importa mais com quase nada aqui. Este assunto me aborrece profundamente.
Seus pensamentos pareciam ora impulsionados por uma força extenuante, ora reprimidos nas suas mais belas criações. Em determinados momentos, sentia uma vontade quase irresistível de se deixar levar pelas paixões, colocar uma mochila nas costas e pegar o primeiro ônibus que o levasse para algum lugar interessante e desconhecido. Mas logo recordava-se de questões racionais; lembrava que nada sabia fazer ao certo e que não se sustentaria em lugar algum. Além disso, sentiria-se, com certeza, culpado por deixar seu pai. Ainda mais numa situação tão delicada como Teodoro estava agora, perseguido injustamente pela polícia. Sentiria saudades dele, de seu irmão, dos poucos
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que escolheu amar, ou pelos quais o amor o escolheu como doce vítima.
Pouco a pouco, levantou-se, ainda meio tonto.
Embrulhou-se no cobertor, que carregava sobre seu corpo como se fosse um velho sobretudo, quente e escuro.
Bocejou com lentidão. Finalmente, quase se arrastando, chegou até a janela, cheia de pequenas gotículas de água, embaçada. Pelo lado de fora, lá embaixo na calçada, uma garota estranha observou sua testa encostada no vidro.
Renato, lá dentro do apartamento, observou o resto de neblina já praticamente imperceptível. Pareceu ouvir um ruidoso estrondo, que não sabia se era fora ou dentro de si.
Pensava com dificuldade, de maneira vaga e imprecisa.
Por tanto tempo eu quis... Não sei. Tanta gente...
Humanos. Sádicos. Mas isto é impossível. Impossível.
Não posso, jamais poderia, mesmo que conseguisse superar meus traumas. Será que... Meus pensamentos teriam... Tanta força? Sinto-me culpado. Por tudo, tudo que está acontecendo. Que rumo dou a minha vida, agora?
Que rumo seguir?
Uma fina e alta fumaça preta tentava alcançar os céus. Estava longe, no horizonte, surgindo por trás da cerração, como miragem, ao noroeste.
Olhos bem abertos...
***
...ma explosão num automóvel no bairro Santa Felicidade mata uma pessoa e assusta moradores de Curitiba nesta manhã. Belina de cor preta estava estacionada na rua quando aconteceu o estouro, que
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provocou um incêndio. Uma grande coluna de fumaça preta riscou o céu da capital, podendo ser vista a quilômetros de distância. Cidadão ainda não identificado estava carbonizado dentro do carro. A polícia está investigando as causas do ocorrido e tentando averiguar a propriedade do veículo. Hipótese de atentado não está descart...
Gregório Santos escutava notícias no rádio sem muita atenção, enquanto exclamava sozinho. Quase bati meu recorde! - disse. O porteiro e zelador do prédio tinha bastante tempo livre e, em suas longas horas no serviço, procurava ocupar-se lendo um livro ou, como agora, jogando paciência com um velho baralho sobre a mesa.
O edifício residencial na rua Fernando Amaro, número 25, possuía um estreito salão de entrada, com o teto alto e luminárias compridas que pendiam sobre as cabeças dos que passavam por ali diariamente. Um saguão simples, porém com amplas janelas, semelhantes a vitrais, enchiam o ambiente de luz da manhã. Os dois elevadores decoravam o ambiente com suas formas retilíneas. O
mármore negro do chão em contraste com as paredes brancas compunham de maneira singular a arquitetura fria do espaço - que lembrava mais a entrada de um pequeno hotel art déco, ou uma antiga catedral européia, do que um simples condomínio suburbano, tal como era de fato.
Aí Gregório ganhava sua vida, atendendo e cumprimentando moradores e visitantes, que chegavam e saíam quase todos os minutos.
-
O que é isso, meu filho? - perguntou uma senhora de cabelos grisalhos, coberta por uma grossa
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manta de lã, que o observava em frente ao balcão. - Mais um desses jogos de azar?
Ela tinha um olhar que expressava ternura e repreensão ao mesmo tempo.
-
Bom dia, Sra. Sílvia. Precisa de ajuda com as sacolas?
Gregório procurava ser educado com todos, sobretudo com os mais velhos. Deixou de lado, momentaneamente, seu jogo de cartas e prontamente saiu de sua cadeira atrás do balcão para prestar ajuda. Essa viúva, dona de uma floricultura perto dali, todos os dias levantava cedo e caminhava até a feira, de onde trazia algumas
frutas.
Era
uma
pessoa
solitária
mas
comunicativa, que nutria pelo porteiro uma admiração como a de uma avó para um neto.
Em seus vinte e oito anos de idade, Gregório nunca havia trabalhado em um lugar tão tranquilo como neste condomínio, onde recebia um salário razoável sem passar por
grandes aborrecimentos, como frequentemente acontecia em seu antigo emprego. Apesar de alguns olhares maldosos, devido à sua leve corcunda - uma
distração genética
, como gostava de ressaltar - tentava não se abater. Renato, por sua vez, gostava de imaginar que o funcionário do edifício era um primo distante do Foca, famoso vilão nos quadrinhos do Espião-Morcego.
-
Não está com frio, D. Silvia?
Enquanto estava agachado ajudando a senhora com suas compras, muito encasacado, Gregório observou descer do elevador esquerdo o vulto de Renato, que caminhou a passos rápidos em direção a saída do prédio.
-
Quanta polidez! - exclamou a senhora. - Não
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recebeu educação em casa? Nem para dizer um olá...
-
Bom dia, Renato. Vai pra aula mais cedo? -
perguntou Gregório, virando o rosto em direção ao jovem universitário, que já estava com um pé na rua.
Não obteve resposta. O porteiro tentou argumentar com a Sra. Sílvia, explicando que Renato passava por algum tipo de dificuldade familiar, ao passo em que a senhora se apiedou.
-
Que Deus o vigie e guarde, então. Preciso falar com o pai dele sobre o aluguel...
Renato imprimia em seu andar um ritmo frenético, como uma espécie de vilão louco, em busca de vingança.
Saindo do prédio, sem inclinação espiritual para falar com quem quer que fosse, olhava fixamente para o chão. Sobre a velha camiseta branca, vestia uma blusa de lã bege, com o zíper aberto até a cintura, e um capuz caído na nuca. As mãos vinham fortemente enterradas nos bolsos de uma calça jeans azul clara; um par de tênis vermelho de cadarços brancos completava sua composição de estilo inclassificável.
Desceu a rua sem saber ao certo para onde ir, por onde caminhar. Foi levado por pensamentos intrigantes durante várias quadras, errante. Estava tão absorto em si que não percebeu quase nada à sua volta - o belo sol entrecortado por uma tênue malha de nuvens cirrus; o ar puro que passava por seu rosto gelado, alisando seus cabelos ondulados até a nuca; o vapor que saía de sua boca; os pássaros alegres que celebravam mais um dia de liberdade e disputa pela sobrevivência na Terra. Não.
Renato, neste momento, não se deu conta de nada disso.
Estava à deriva num profundo mar de muitas ondas
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revoltas dentro de si.
Você vai acabar matando seu pai, filho. Esteja preparado, minha mãe dizia, depois de quatro ou cinco taças. Como pôde me passar esta ideia absurda?
Na
maré
inconstante
desses
particulares
pensamentos existenciais, acabou perdendo-se em sua própria cidade, que já habitava há muitos anos.
Onde estou?, indagou-se subitamente, parado numa esquina. Tão bem acreditava ter em mente aquelas ruas, afastadas da Praça Tiradentes por umas 10 quadras, que surpreendia a si mesmo num ponto aparentemente desconhecido, mais afastado. Era preciso raciocinar para então descobrir novamente alguma rota familiar. Logo notou que estava na verdade com fome, andando em círculos, como um rato de laboratório.
Tomar um café. É isto que vou fazer.
***
-
Pra você, senhor?
A atendente da padaria era uma linda garota de olhos orientais, muito simpática. Em seu semblante notava-se a imaginada alegria que trazia de sua casa, sua família, quem sabe um filho pequeno.
Acho que estava grávida, não estava?, pensou Renato. Ouvi comentários do rapaz do caixa.
-
Senhor? - ela insiste.
-
Oi, bom dia... Hummm... - Ele tinha o olhar fixamente indeciso sobre a estufa de salgados. Optaria por um um assado de legumes ou um pão com vina? Ou, ainda, quem sabe um bolo de laranja?
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-
Por favor, eu quero um bolo de laranja e...
E... Será que tomo café mesmo?
Acabou optando por um achocolatado, por favor.
-
Tudo bem - respondeu a delicada atendente.
-
Não, não... Melhor um café. - Mudou de ideia com a cabeça baixa, envergonhado.
-
Tudo bem, então! - ela disse sorrindo.
Não sabia o seu nome, mas gostava dela, do seu jeito. Poderia até se interessar em ter algum tipo de relacionamento com a garota, mas é claro que isto jamais aconteceria, a não ser por ironia divina. Renato buscava desesperadamente, de forma consciente ou não, um envolvimento amoroso. Porém, a introspecção tomava posse de sua personalidade como nenhum outro atributo.
Pensava que, mesmo vestindo uma roupa desinteressante de balconista, com cores desbotadas e o avental sujo, a atendente ainda era bonita. Considerou notável a invisibilidade de toda essa gente plenamente adulta, que já não dependia de pai ou mãe; que precisava lutar para viver, atrás de balcões, vassouras, mesas, papéis ou caixas registradoras. Enquanto ele próprio, concluiu, não teria forças para tanto.
Ainda cedo, a padaria costumava ser bastante movimentada.
Várias
pessoas entrando e saindo,
escolhendo seus cafés, doces e outras delícias. O cheiro de pão saindo do forno trazia vapores inebriantes ao recinto .
Sentados em cadeiras altas encostadas no balcão, ou em grandes poltronas retas sob as janelas, com mesas retangulares à frente, os clientes buscavam o primeiro alimento do dia - para o corpo e para a alma. Não seriam, afinal, a mesma matéria?, pensou. Matéria e energia. Uma
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só entidade, duas manifestações distintas.
-
Mais alguma coisa? - perguntou a garota.
-
Oi? Não, não... Obrigado - ele respondeu, com um sorriso levemente constrangido em seus lábios, enquanto tentava captar alguma mensagem secreta no olhar dela. A atendente também sorriu, olhou nos olhos dele por um segundo... Quem sabe dois... E voltou aos seus afazeres.
Pegando seu pedido do balcão, Renato procurou por uma mesa disponível. Ali estava. Bem em frente ao sujeito grisalho, de costeletas, que lia a Gazeta do Povo, como de costume. Renato se perguntava, dentro de si, sobre o que levava uma pessoa a fazer todo o dia as mesmas coisas, cultivar os mesmos hábitos, a mesma rotina, por anos a fio. Todos seriam assim? O calendário, as estações, os ciclos lhes confortavam de um mal estar no mundo. Nada fazia sentido. Existir um universo em vez de nada era loucura. O inverno chegava, o frio percebido no vidro das janelas fazia sua melancólica exibição anual...
Enquanto esses pensamentos desfilavam como carros alegóricos em sua mente, Renato tomou o primeiro gole do café. O sujeito de costeletas virou a segunda página de seu jornal. O padeiro trouxe lá de dentro a terceira fornada de pães. O gosto do bolo de laranja misturou-se ao da cafeína. Os passarinhos na rua acostumaram-se à chegada da luz diurna e pararam de cantar. Uma súbita vontade de chorar - ou dar um soco na mesa - foi controlada a muito custo. A atendente conversava com outro cliente e sorria.
Ela sorria para outro! Logo, Renato não era especial.
Mais uma vez, começou a afogar-se nas ondas revoltas de
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sua imaginação. Lembrou do momento em que seus dedos tocaram os dedos dela, quando pegou o bolo de suas mãos.
Seu perfume barato havia lhe marcado. Supôs como seriam os dois juntos, sozinhos, trocando confidências num
dia
frio.
Silenciosas
confidências...
Sentia
necessidade disso.
Ao mesmo tempo, o estudante olhou para o sujeito que lia seu jornal. Conferia o caderno policial. Boas notícias para o café da manhã, hein? Improvável. Não era possível, aos olhos de Renato, que essas pessoas frequentando a padaria, ou qualquer outro ambiente comercial da cidade, existissem de fato, da maneira superficial que eram. Não havia profundidade nelas. Ou, talvez, o pensamento que Renato fazia delas fosse raso demais, rancoroso e desamoroso demais, causando uma impressão generalizada de falta de conteúdo - em tudo e todos. Tudo se apresentava muito suave, impalpável, irreconhecível, causando-lhe uma angústia adormecida.
Olhar para a atendente lhe doía. Tinha vontade de quebrar o nariz do outro rapaz que ela atendia há pouco.
Por fim, colocou-se a raciocinar obliquamente, tentando adivinhar o que pensaria alguém que lesse seus pensamentos. Julgaria-lhe insano, com certeza. E se esse alguém surpreendesse Renato pensando sobre o que pensariam de seus pensamentos?, pensou. Melhor não pensar, sentenciou tristemente.
Ajustando o foco de sua visão embaralhada e perdida nas folhas do jornal cinzento que o sujeito lia, Renato tentou encontrar uma luz para fora da caverna escura de sua mente.
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Desaparecimento do Bispo Auxiliar da Catedral Basílica completa uma semana.
Uma grande foto do arcebispo de Curitiba na delegacia ilustrava a matéria do jornal.
O arcebispo Dom Paulo Fedaltti apela para que as autoridades façam mais buscas nos locais frequentados por seu pupilo, Dom Albino Carvalho, de 45 anos.
Delegado da 1a DP afirma que polícia ainda não tem pistas consistentes que indiquem onde está. Até o momento, nenhum contato foi feito. O inquérito deve investigar se o fato tem alguma relação com as misteriosas mortes que vêm acontecendo na capital.
Procurada por nossa reportagem, através de fontes confidenciais, uma vizinha de um condomínio de luxo no centro afirma tê-lo visto caminhando com uma jovem garota ruiva, numa rua próxima, há três dias.
O sujeito de costeletas foi embora e deitou seu jornal sobre a mesa. Renato não conseguiu mais visualizar a reportagem. Uma ideia sombria tomou conta de seu espírito como uma nuvem. A notícia estranhamente o fez lembrar de seu pai que, mesmo ausente, estava sempre guiando seus passos incertos, como uma velha bengala.
Terminou de fazer seu lanche e, aos poucos, sentiu-se caindo novamente num redemoinho. Perguntou-se sobre sua verdadeira essência. Se ele mesmo desaparecesse, por exemplo, alguém daria por sua falta? A atendente da qual nem mesmo sabia o nome, talvez, lembraria dele? Sou um idiota, ruminava sozinho.
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Questionou se o mundo inteiro, toda essa construção à sua volta, continuaria existindo, sem seus pensamentos para o sustentarem. Seria o mesmo mundo, afinal, ou iria transformar-se num universo de outra natureza, como numa metamorfose cósmica, uma forma de pura energia, indistinta entre sujeito e objeto? Ninguém se importava com essas questões. Seu pai estava refugiado, escondido dos milicos, e ele estava ali, saboreando um café quente, preocupado com o destino cósmico sem sua personalidade distinta. Teria sido melhor permanecer naquele hospício...
Renato recordou-se do período em que ficou sob tratamento médico, supostamente para desintoxicação.
Certa vez, por volta de dois anos antes, foi pego na saída de uma festa acadêmica dos calouros portando um tipo de opióide. Para livrar-se da cadeia, numa manobra jurídica inédita, auxiliado por um advogado honrado, alegou dependência química perante o tribunal. Todavia, ainda era incerto se realmente utilizava o produto como remédio ou se fazia comércio com a substância entorpecente.
In dubio, pro reo.
De qualquer forma, ganhou a causa. Mas, então, perdeu um semestre na faculdade. Seu melhor amigo, Virgílio, lhe encorajou afirmando que tudo não passava da hipocrisia de uma sociedade doente. Seus pais o apoiaram em tudo mas, mesmo assim, sentia-se culpado por causar tamanho desgosto. Foi uma surpresa positiva para todos quando saiu da clínica decidido a se reerguer. Retomou os estudos. Comprou roupas novas. Iniciou um namoro com Alice, que já estava adiantada nos estudos. No entanto, em pouco tempo, o habitual caráter soturno de Renato voltou a conspirar contra sua esperança de dias melhores. Tentava
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suportar a dor de uma existência sem sentido e sem remédios. Legado da abstinência: dores recorrentes pelo corpo e pela mente; às vezes suportáveis, outras não. E em muitos momentos sentia-se enjoado do mundo. Mas era impossível decifrar se este era um sintoma da abstinência ou de sua própria personalidade.
Tirou os olhos perdidos da parede de azulejos coloridos, apoiou seus braços sobre a mesa retangular e levou as palmas das mãos à cabeça, enterrando nelas o frio de sua face.
Qual será meu destino sem meu pai? - perguntou a si mesmo. - Estou sem forças, perdido…
Clientes aguardavam por um lugar à mesa.
***
Ao pagar sua conta na padaria e sair para a rua novamente, Renato lembrou de sua infância, em Quatro Barras. Eram suaves recordações de bosques de pinheiros, riachos, campos abertos, arbustos, gralhas-azuis e outros pássaros de muitos tipos. Algumas vezes acompanhava com alegria as primeiras geadas do ano, ao lado de seu irmão, Rafael. Mesmo necessitando de cadeira de rodas para se locomover, Rafael o acompanhava sempre, em quase todas as aventuras que as crianças imaginam para si.
A vida seguiu tranquila assim por vários anos. Todos os dias, Teodoro saía para trabalhar na capital, enquanto Cassandra, mãe dos irmãos Renato e Rafael, permanecia em casa, em seu escritório, produzindo críticas literárias para um jornal local e, nas horas vagas, escrevendo seus romances e histórias de terror. Elas alcançariam certo
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sucesso mais tarde entre a crítica especializada, que elogiava sua nova abordagem sobre antigos temas, como casas mal assombradas e vampiros. Renato costumava imaginar, às vezes, se os hábitos literários da mãe não teriam sido os verdadeiros culpados por ela própria ter se refugiado na bebida - e não a separação e desquite de seu pai, em si. Já Teodoro era professor de física na UFPR.
Nos finais de semana, aos sábados pela manhã, a família reunida ia passear no centro de Curitiba, a bordo do Fusca Azul que haviam acabado de comprar.
No retorno, à noite, o pai ensinava os filhos a observar o céu, a diferenciar os planetas das estrelas.
Depois vinha o jantar - mas a palavra jantar seria específica demais para definir esses encontros à mesa, regados à massas, pães, doces, frios, laticínios, salames, saladas e que, com frequência, duravam muito tempo. Às nove da noite, Teodoro costumava sentar em sua poltrona e lia um livro ou uma revista especializada; Cassandra preferia fazer um crochê ou bordado perto da lareira, às vezes acompanhada de uma taça de vinho. As crianças brincavam junto da mãe; Renato lia em voz alta verbetes da enciclopédia para seu irmão, que tentava adivinhar seus significados e definições. Por volta das onze e meia todos iam deitar.
Naquela transição conturbada entre a infância e a adolescência, Renato entrou, certa vez, sorrateiramente no quarto dos pais, iluminado apenas por um abajur:
-
Pai?
-
O que foi, Renato? - Teodoro perguntou, preocupado.
-
É que...
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Não conseguia concluir. Seus olhos começavam a ficar molhados, sua boca começava a tremer.
-
Está com medo da morte de novo, meu filho? -
perguntou Cassandra, de maneira terna e acolhedora, debaixo dos cobertores.
Sim. Novamente.
***
Meia-noite. Toda a família de Renato estava bem aconchegada em casa. A sala de estar vazia. Um cobertor descansava sobre o sofá e um grosso livro dormia no chão.
Envolvendo-se com os estalos da lareira, os barulhos do antigo relógio pendular de parede ecoavam pelo ambiente, iluminado apenas pelo clarão do fogo. Tudo estava em silêncio... Quase...
Tic… Tac… Crep…
***
Renato voltava a pé para seu apartamento em Curitiba. Mais uma vez o ar frio lhe tocou o rosto, tentando tornar seu passeio tão puro como o cheiro da terra no campo. Mas, agora, o ar da metrópole se fazia sentir em cada poro de sua pele, e o suave aroma de asfalto impregnava de sintomas amargos o seu olfato dilacerado.
Quando tudo terminou mesmo? - pensou.
O desquite dos pais. Cassandra havia entrado para o curso de mestrado em Letras na UFPR. Foi exatamente aí que...
Sim...
Tudo
começou
a
terminar.
Mas
provavelmente as coisas já vinham caminhando mal das pernas entre os dois há mais tempo. Teodoro também foi
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negligente e omisso.
Renato lembrava que a família havia mudado para a capital. Cassandra concluiu o mestrado pouco tempo depois. Mas ficou subitamente desempregada do jornal, sozinha, atirada apenas às suas histórias fantásticas e ao vinho. Suas histórias caíram no esquecimento. Já Teodoro permanecia enfiado na universidade o dia inteiro. Chegava em casa de madrugada, saía novamente às seis da manhã.
Procurava pelos braços e beijos de sua esposa... Em vão.
Tarde demais pra você, meu chapa. Uma crise conjugal sem precedentes se abateu sobre o lar.
Nada funcionou. Terapia, regressão, hipnose, psicanálise, apartamento novo, móveis novos, jogos sexuais, passeios na praia... Nada.
-
Não há mais nada que eu possa fazer? -
perguntou, desolado, Teodoro. Seus olhos escuros confundiram-se com o mar acinzentado de prédios que observou de pé, na Praça General Osório.
-
Dar minha vida de volta - respondeu Cassandra, com indiferença, ao brincar agachada com um cachorro de rua.
Quarenta segundos depois, os passos de Cassandra tomaram o caminho do ponto de ônibus. Teodoro permaneceu por mais alguns minutos em pé, paralisado, olhando as nuvens sem fim de um dia escuro. Anos depois, a acidez de suas memórias viria lhe comer vivo, por dentro, pouco a pouco.
Daí em diante, tudo que sei são névoas - concluiu um dos filhos do casal: Renato.
***
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Dobrando as esquinas, Renato veio pensando em trocar seu curso de graduação em Direito por Letras; tentar uma vocação para a escrita, para a arte, a sensibilidade, como sua mãe fazia. Mas tinha dúvidas, não sabia de que exatamente lhe serviria esse diploma. Gostaria de escrever um livro. Um romance. Um não. Vários. Incontáveis. Mas não sabia nem mesmo como começar nesta área. O que era um contra-senso: sua mãe era uma escritora de relativo talento e sucesso, mas a distância física e, sobretudo, emocional entre os dois nunca permitiu a intimidade necessária para ensinar ao jovem estudante os primeiros passos e o beabá da escrita criativa e da carreira literária.
No seu caso, ser filho de Cassandra Serafim não significava coisa alguma.
A cabeça baixa, a calçada suja. Alguns automóveis trafegavam
em
velocidade
pela
rua,
carregando
automaticamente, um após um, centenas de trabalhadores.
Em sua mente, sinais nervosos voavam como pássaros de ferro, semeando os germes do medo e da dúvida. Apesar de cursar Direito, um curso de formação jurídica e burocrática, não conseguia equilibrar e justificar sua própria vida. Pensou em como seria difícil ganhar dinheiro e alcançar o sucesso profissional daquela forma, sem a devida paixão pela área. Eram várias as possibilidades de estudo e trabalho, mas parecia não se encaixar em nada, nem em parte alguma. Enquanto isso, seguia fazendo grafites e desenhos nas ruas, acreditando que não possuía talento algum para a arte e a criatividade, mesmo sendo este o objeto de seus sonhos e desejos mais ocultos - até para ele próprio.
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Imaginava-se um pária inútil. Pensava em desistir do Direito, de qualquer forma. Condenar-se ao ostracismo.
Dedicar-se a única coisa que acreditava fazer bem: arruinar tudo.
Renato passou de cabeça baixa por um muro de terreno baldio, no qual ele mesmo havia grafitado, há poucas semanas, desenhos com temas românticos e oníricos, semelhantes aos traços de Miró ou Matisse, mas sem dar atenção à própria obra. Suas pinturas tinham pouca qualidade técnica, é verdade, mas tinham sentimento. Sendo quase um pioneiro dessa arte urbana no Brasil, seus desenhos acabavam chamando a atenção -
muitas vezes de forma perigosa, e procurou cravar os olhos de forma mais firme ao chão, enterrando o capuz sobre a cabeça, como que tentando ocultar sua identidade, enquanto caminhava por ali. Em seguida viu, ao longe, a banca de revistas do Leonardo, na rua Marechal Deodoro.
Aproximando-se, viu outras notícias estampadas nos cadernos policiais.
Duas pessoas são encontradas sem vida no meio da rua, no Bigorrilho, dando continuidade a série de mortes inexplicáveis que tem abalado os moradores da capital.
Nenhuma das vítimas foi identificada. Como nos outros casos, os cadáveres não apresentavam sinal de violência, muito embora os dois corpos tivessem em suas mãos um exemplar do livro russo Crime e Castigo
. A Polícia Civil não descarta a hipótese de suicídios. Em paralelo, a Secretaria de Saúde do Governo Estadual alerta para a possibilidade de uma nova classe de vírus, ainda não comprovada, ter escapado ao controle de algum
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laboratório de pesquisa independente ou clandestino, encontrando-se em estágio epidêmico inicial. Já o Prefeito Saul Raiz acusa um suposto grupo subversivo comunista de ser o responsável pelo que chamou de crimes políticos
, e que o livro do escritor soviético Dostoiévski, encontrado junto a alguns mortos, seria a marca registrada da atuação desta célula. O Comando Geral da Polícia Militar informa que também está auxiliando no caso, e um possível envolvimento de agentes terroristas será apurado.
Renato estava parado em frente ao jornal, passando a mão suavemente por sua barba rala. O caminho da rua havia lhe cansado sutilmente, e aproveitava para recuperar um pouco do fôlego. Vendo as fotos das capas de jornais, imaginava como seria se encontrasse um corpo na rua, ou se ele mesmo fosse a próxima vítima - entre outros raciocínios curiosos e perturbadores.
Quem está por trás dessas mortes? - refletiu. Não tinha dúvidas de que iria atrás desse assassino e o entregaria à polícia, se fosse necessário. Porém se visse, cara a cara. um cadáver, já não sabia mais se teria a coragem necessária.
Meu pai... Será que está por trás disso? Nem a polícia, nem ele esclareceram nada. Eu mesmo iria atrás disso tudo, desvendaria esse mistério, se não sentisse um desânimo tão avassalador, e um medo tão desestimulante de tudo que seja relacionado à vida… E à morte.
A banca de Leonardo Belon era frequentada por vários leitores nesse horário. Antes de se dirigirem aos seus empregos, as pessoas costumavam passar por ali. Às
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vezes para comprar uma revista específica. Em outras, para conferir os últimos quadrinhos do Ultra-Humano.
Frequentemente, apenas para olhar as capas de jornais com suas manchetes apocalípticas. Nos últimos meses esta era a tônica, alimentada sobretudo pelas fotos de corpos abatidos, encontrados de norte a sul da cidade.
Ajeitando seu cachecol branco e sua boina marrom, obviamente garimpados em algum brechó, como era seu costume, Leonardo tinha as mesmas discussões habituais com os clientes. Falava do tempo, do campeonato paranaense de futebol, da qualidade decrescente de sua saúde, das últimas novidades da mídia, dos seus áureos tempos na usina termelétrica...
-
Não... Não havia perigo algum. É que, por descuido... - olhava para os lados, com um pouco de vergonha - ...por descuido um funcionário esbarrou em mim e eu caí parcialmente, por alguns segundos, na caldeira de água fervente. Mas logo fui socorrido.
Enquanto falava, uma leve fumacinha branca evaporava de sua boca. Sempre procurava se justificar quando alguém reparava por tempo demais nas marcas de suas mãos ou pescoço. Quando confrontado com outra versão mais ácida, ou questionado se não havia acabado de ser demitido quando o incidente aconteceu, gentilmente solicitava que o cliente escolhesse logo o que queria levar, ou simplesmente virava o rosto e se metia numa leitura qualquer.
Nesse momento, percebeu a chegada de Renato na banca.
-
Olá, Renato... Tudo bem? - perguntou.
Renato parecia um pouco mais acessível depois de
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seu café da manhã, após uma leve caminhada por esta parte da cidade, conectada ao centro por um pequeno lago de edificações, singelamente ondulado e cinza. Suas mãos geladas folheavam, ao acaso, alguns livros de bolso em exposição na banca.
-
Oi, Leo... Tudo bem - respondeu, tirando o capuz da cabeça. Jamais dizia estar mal. Sempre estava bem. - E contigo, tudo certo? - complementou, folheando um livro em exposição.
-
Olha, tirando um safado aí que quase me enganou com uma nota falsa... Tá tudo bem sim -
respondeu, amigavelmente, Leonardo. - Um absurdo essas mortes aí, hein? Não duvido que seja coisa dos comunas-concluiu, contrariado.
-
Aham...
Renato sorriu de maneira vaga,