Direito, Globalização e Governança: Uma Abordagem a partir da Perspectiva Sociojurídica de André-Jean Arnaud
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Direito, Globalização e Governança - Orlando Villas Bôas Filho
Direito, Globalização e Governança
uma abordagem a partir da perspectiva sociojurídica de André-Jean Arnaud
© Almedina, 2023
Autor: Orlando Villas Bôas Filho
Diretor Almedina Brasil: Rodrigo Mentz
Editora Jurídica: Manuella Santos de Castro
Editor de Desenvolvimento: Aurélio Cesar Nogueira
Assistentes Editoriais: Larissa Nogueira e Letícia Gabriella Batista
Estagiária de Produção: Laura Roberti
Diagramação: Almedina
Design de Capa: Roberta Bassanetto
Conversão para Ebook: Cumbuca Studio
ISBN: 9786556278643
Maio, 2023
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Bôas Filho, Orlando Villas
Direito, globalização e governança : uma abordagem
a partir da perspectiva sociojurídica de André-Jean
Arnaud / Orlando Villas Bôas Filho. – 1. ed. –
São Paulo : Almedina, 2023.
Bibliografia.
e-ISBN 978-65-5627-864-3
ISBN 978-65-5627-821-6
1. Arnaud, André-Jean, 1936-2015 2. Ciências
sociais 3. Direito –· Brasil 3. Globalização
4. Governança global 5. Sociologia jurídica
I. Título.
23-146320
CDD-303.482
Índices para catálogo sistemático:
1. Globalização : Aspectos sociais : Sociologia
303.482
Aline Graziele Benitez – Bibliotecária – CRB-1/3129
Este livro segue as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990).
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro, protegido por copyright, pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida de alguma forma ou por algum meio, seja eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópia, gravação ou qualquer sistema de armazenagem de informações, sem a permissão expressa e por escrito da editora.
Editora: Almedina Brasil
Rua José Maria Lisboa, 860, Conj.131 e 132, Jardim Paulista | 01423-001 São Paulo | Brasil
www.almedina.com.br
Para Lúcia, Luísa e Orlando
AGRADECIMENTOS
Este livro foi concebido e redigido durante o trágico período da pandemia da Covid-19. Sua escrita experimentou, portanto, todas as adversidades, incertezas e, por vezes, revezes acarretados pelo contexto em questão. Assim, em primeiro lugar, agradeço à minha esposa Lúcia cuja delicada presença, de um modo não apreensível pelo leitor, projeta-se nas entrelinhas deste trabalho.
Esta obra constitui a singela expressão de meu reconhecimento e admiração por André-Jean Arnaud. Além de sua extraordinária erudição, de seu rigor e de sua capacidade de análise, esse grande intelectual francês caracterizava-se pela sua generosidade e espírito livre. Daí a sua capacidade de agregar interlocutores para a construção dos estudos sociojurídicos, por ele concebidos como um campo de pesquisa interdisciplinar. Para todos aqueles que tiveram o privilégio de conhecê-lo, Arnaud est toujours vivant!
Inicialmente, agradeço aos Professores Ivan Capeller e Wanda Capeller que, conjuntamente, elaboraram o admirável prefácio desta obra. Sou também particularmente grato à Professora Wanda Capeller pela longa interlocução, pelos profícuos ensinamentos e pela supervisão do estágio pós-doutoral realizado na Université de Paris – X (Nanterre).
Aos Professores José Eduardo Faria e Celso Fernandes Campilongo, cujas pesquisas coincidem com a construção da Sociologia Jurídica no Brasil, e ao Professor José Reinaldo de Lima Lopes, cuja importância é análoga no campo da História do Direito, agradeço a oportunidade de interlocução e o incentivo que sempre deles recebi como aluno, como pesquisador e, atualmente, como integrante do corpo docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Ao Professor Márcio Alves da Fonseca, atual Pró-Reitor de
Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e meu principal interlocutor e amigo, agradeço o apoio e o constante incentivo às minhas pesquisas.
Ao Professor Jean-Paul Cabral Veiga da Rocha, com quem partilho as aulas da disciplina Sociologia Jurídica na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, agradeço a interlocução, mesmo que, infelizmente, esporádica. No âmbito da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, agradeço, especialmente, aos meus colegas e amigos Fernando Rister de Sousa Lima, Felipe Chiarello de Souza Pinto e Gianpaolo Poggio Smanio.
Aos pesquisadores Lucas Mastellaro Baruzzi, Douglas Elmauer, Gustavo Angelelli, Walter José Celeste, Gabriel Franco da Rosa Lopes, Raphael da Rocha Rodrigues Ferreira, Emanuel Fonseca Lima, Carlos Eduardo Vieira Ramos, Julia Martins Tiveron Felipe Gretschischkin, Paulo Palma, Luiz Fernando Schaefer Andrade, Caio Ferrari de Castro Melo, Luca Giannotti, Cássio Santos de Ávila Ribeiro Junior, Mariana Piazentin Martinelli, Ricardo Lebbos Favoreto e Wildney Shmathz e Silva Junior agradeço pelo desenvolvimento, em períodos distintos, das atividades de monitoria no curso de Sociologia Jurídica que ministro para as turmas de Graduação na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, de cujas aulas dedicadas ao pensamento de André-Jean Arnaud este livro, em parte, deriva.
À minha mãe, Marina, ao meu irmão, Noel, e aos meus filhos, Luísa e Orlando, agradeço por tudo o que me ocorre dizer (e pelo que não me ocorre). Por tais razões, também agradeço aos meus sogros Concepción Pintor Sánchez de Santiso e Jesus Santiso Ares, cujas trajetórias exprimem o que escreveu seu conterrâneo, Antonio Machado: todo pasa y todo queda. Pero lo nuestro es pasar. Pasar haciendo caminos. Caminos sobre el mar
.
Por fim, agradeço a atenção e a acolhida dada ao projeto deste livro pela Dra. Manuella Santos de Castro.
SUMÁRIO
Cover
Folha de Rosto
Página de Créditos
Dedicatória
Agradecimentos
SUMÁRIO
Prefácio
Introdução
CAPÍTULO 1 – PARADIGMAS
DA SOCIOLOGIA JURÍDICA NA TRADIÇÃO INTELECTUAL FRANCESA CONTEMPORÂNEA
1. Paradigmas
da sociologia jurídica francesa contemporânea
1.1. A sociologia legislativa
ou legística
1.2. O direito como quadro de ação
1.3. Abordagem neorracionalista do direito
1.4. Sociologia do campo jurídico
1.5. Análise sociopolítica do direito
1.6. Sociologia do poder e do controle
1.7. O direito como fonte e objeto de socialização
1.8. Sociologia do pluralismo jurídico
CAPÍTULO 2 – POR UM MERCADO COMUM
ENTRE AS CIÊNCIAS SOCIAIS: A INTERDISCIPLINARIDADE COMO PROJETO
2.1. Complexidade social e interdisciplinaridade
2.2. Os desafios da pesquisa interdisciplinar: a superação da cacofonia e da caricatura
2.3. Premissas ao desenvolvimento da pesquisa interdisciplinar consistente: a superação dos modelos ingênuos
mediante a assunção de uma perspectiva construtivista
2.4. A interdisciplinaridade como abertura dos juristas aos aportes das ciências sociais
2.5. Os estudos sociojurídicos
como campo interdisciplinar
2.6. A obra de André-Jean Arnaud, um exemplo de interdisciplinaridade
CAPÍTULO 3 – A CRÍTICA DA RAZÃO JURÍDICA
: BASES DO MODELO SOCIOLÓGICO DE ANDRÉ-JEAN ARNAUD
3.1. Reflexos da obra de André-Jean Arnaud no Brasil: uma recepção expressiva, porém parcial
3.2. Pressupostos epistemológicos da análise de André-Jean Arnaud: uma proposta de modelização sistêmica para a compreensão da regulação jurídica
3.2.1. André-Jean Arnaud e a assunção de uma abordagem sistêmica
como forma de compreensão da regulação jurídica
3.2.2. Incompreensão ou emulação? Fragmentos de uma algaravia: o contraste entre as propostas de modelização sistêmica de André-Jean Arnaud e de Niklas Luhmann
3.2.2.1. A atribuição de confusão conceitual entre sistema jurídico
e direito
3.2.2.2. A atribuição de uma solução teórica que, ao enfocar o fechamento operacional e a autonomia do direito, constituiria uma mera abstração, sem aderência à prática cotidiana
, que serviria à manutenção da ordem estabelecida
CAPÍTULO 4 – UMA TEORIA SOCIOLÓGICA DO PLURALISMO JURÍDICO: A TESE DA POLISSISTEMIA SIMULTÂNEA
4.1. A centralidade da questão do pluralismo jurídico na obra de André-Jean Arnaud
4.2. Aspectos gerais da teoria da polissistemia
de André-Jean Arnaud
4.3. A distinção entre direito
e sistemas jurídicos
no âmbito da teoria da polissistemia simultânea
4.4. A importância da teoria da polissistemia simultânea
na fundamentação de uma abordagem do pluralismo jurídico
4.5. O caráter heurístico da teoria da polissistemia simultânea
de André-Jean Arnaud
CAPÍTULO 5 – DIREITO E GLOBALIZAÇÃO: OS DESAFIOS DA REGULAÇÃO JURÍDICA EM UMA SOCIEDADE COMPLEXA
5.1. André-Jean Arnaud como diagnosticador
do presente
5.2. O que é a globalização? Notas sobre as investigações de André-Jean Arnaud acerca do valor paradigmático de um fenômeno complexo
5.3. Globalização e pós-modernidade
5.4. O impacto da globalização sobre a regulação jurídica
CAPÍTULO 6 – O FENÔMENO DA GOVERNANÇA EM SUAS MÚLTIPLAS FORMAS DE EXPRESSÃO E SEU IMPACTO SOBRE A REGULAÇÃO JURÍDICA
6.1. Governança: um conceito polissêmico
6.2. Do governo à governança
6.3. O fenômeno da governança em suas múltiplas formas de expressão: uma abordagem a partir de André-Jean Arnaud350
6.3.1. A governança empresarial/corporativa
6.3.2. A governança global
6.3.3. A governança dos blocos regionais
6.3.4. A governança nacional
6.3.5. A governança territorial/local
6.4. Governança, tomada de decisão e democracia
Conclusões
Posfácio
Anexo
Referências
Pontos de referência
Cover
Folha de Rosto
Página de Créditos
Dedicatória
Agradecimentos
Sumário
Prefácio
Introdução
Página Inicial
Conclusão
Posfácio
Bibliografia
PREFÁCIO
Ciência e Arte na obra de André-Jean Arnaud: Um jurista do desassossego
Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço.
Fernando Pessoa, Livro do Desassossego,
Trecho 152.
É preciso ciência e arte para revisitar a irrequieta obra de André-Jean Arnaud. Com este livro, escrito com coração e mente, Orlando Villas Bôas Filho oferece ao leitor de língua portuguesa um notável panorama da obra do jurista-sociólogo francês, cuja atitude epistemológica foi percebida, nos meios jurídicos de seu país, como uma desaforada provocação. De grande atualidade, o pensamento iconoclasta desse autor incomoda juristas e sociólogos: alguns por terem uma visão estreita e dogmática que só vê o direito em si; outros por tomarem o direito como mero objeto das ciências sociais, tornando-se indiferentes às suas complexidades internas e externas. Difícil tarefa enfrentou Villas Bôas Filho ao abraçar a obra desse jurista do desassossego, cuja originalidade se deve, justamente, ao seu afastamento do Stimmung jurídico de seu tempo, que definia a tonalidade¹ impressa pelos meios jurídicos à compreensão do universo do direito, considerado relativamente autônomo.²
² Desde o início de sua trajetória científica, Arnaud renova a teorização do direito e sobre o direito, nela incluindo paradigmas surpreendentes para a comunidade jurídica de então, tais como o estruturalismo, o marxismo, a linguística, a complexidade sistêmica etc. São essas transgressões epistemológicas que dão ao seu pensamento uma dimensão interdisciplinar, tão bem ressaltada neste livro por Orlando Villas Bôas Filho (Introdução e Capítulo 2). Assim, o autor francês rompe, sistematicamente, com as barreiras epistêmicas do direito, aventurando-se a apreender as transversalidades do fenômeno jurídico, no exame do qual integra a história (constituição do Código Civil francês), a filosofia (o direito traído pela filosofia),³ a antropologia (estruturalismo aplicado ao direito), a matemática (elaboração da noção de campo jurídico
, em 1981, que precede a análise de Bourdieu de 1986), a linguística (análise do discurso jurídico), a sociologia (crítica da razão jurídica), e as ciências econômicas e políticas (globalização e novas formas de governação). Villas Bôas Filho ressalta esse pioneirismo de Arnaud, que elaborou a figura do carrefour disciplinaire – espaço epistemológico imaginário onde transitam, e se cruzam, os múltiplos saberes que constituem o campo de estudos sociojurídicos. A princípio, Arnaud nomeia esse campo de droit et société, mas percebe, posteriormente, que o e
contido nessa designação estabelece uma linha divisória entre o direito e a sociedade, uma dualidade. Passa, então, a falar em termos de "direito na sociedade" (droit dans la société, law in society).
Não contente em virar o direito pelo avesso e subverter as bases epistêmicas bicéfalas da sociologia do direito, Arnaud, dotado de uma visão pragmática da pesquisa, investe na criação de estruturas, dispositivos e redes suscetíveis de desenvolver e visibilizar esse saber em âmbito internacional. Juntamente com seus companheiros de empreitada - Jacques Commaille, François Ost, Michel van de Kerchove, Jean-Guy Belley e Jean-François Perrin, entre outros – criou no espaço francófono a mouvence droit et société, que logo sobressaiu-se por suas importantes realizações: a criação da Revue Droit et Société, a elaboração coletiva de três Dicionários sobre temas da sociologia jurídica e da globalização, a instauração das Escolas Temáticas (Programa desenvolvido nos quadros da Maison des sciences de l’homme –MSH), e muitas outras atividades. As Écoles thématiques promovem núcleos de debate organizados no seio das faculdades de direito não somente em França, mas igualmente em vários países europeus e latino-americanos. O sucesso atual do International Institute for the Sociology of Law (IISL – Oñati) é um testemunho incontestável do sucesso de sua orientação conhecimento-ação
.
Saímos de Paris em dezembro de 1988 para viver em Oñati, um povoado incrustado nas belas montanhas do País Basco espanhol, onde, à época, havia apenas onze mil habitantes. Memória inesquecível a de entrar ao lado de André, que havia sido nomeado o primeiro diretor científico dessa entidade, no prédio da antiga Universidade de Oñati (século XVI), edifício histórico destinado, por acordo entre o governo basco e o Research Committee on Sociology of Law,⁴ à criação do IISL. Esse lugar, subutilizado, estava praticamente vazio, não havendo sequer uma cadeira ou linha telefônica, menos ainda uma equipe para assessorar o recém-chegado diretor. Com o apoio dos membros do Board do RCSL, André construiu esse Instituto literalmente do zero! A partir de seu caderno pessoal de contatos, em somente quatro meses organizou a inauguração do IISL, em cerimônia que contou com a presença de 400 convidados, juristas-sociólogos e sociólogos do direito de todos os continentes, Europa, África, América Latina, Ásia etc.⁵
Sua experiência científica permitiu-lhe criar as condições de inteligibilidade do direito na transição do liberalismo ao neoliberalismo. Havia já examinado a funcionalidade do direito na construção da ordem liberal, notadamente em sua análise estrutural do Código Civil francês que estabeleceu as regras do jogo na paz burguesa (1973). Nesse aspecto, coincide com as teses de Foucault sobre o direito como elemento constitutivo dos sistemas econômicos e políticos, retirando-o da superestrutura.⁶ Com o advento do neoliberalismo, Arnaud passa a observar o impacto da globalização nos processos de desregulação jurídica e reorganização institucional em escalas globais, regionais e locais, notadamente na União Europeia (1991) e no Mercosul (2005).
Várias dimensões da obra de André-Jean Arnaud foram aqui abordadas com atenção, acuidade, pertinência e didática. Este livro, destinado aos jovens aprendizes do direito e da sociologia do direito, cumpre seus objetivos ao apresentar uma rigorosa síntese de suas reflexões. Organizado em seis capítulos, o livro pode ser lido a partir de dois eixos de análise: o primeiro, de conteúdo epistêmico, revisita os paradigmas fundamentais da sociologia jurídica francesa (Capítulo 1), a questão da interdisciplinaridade (Capítulo 2), e a teoria crítica da razão jurídica (Capítulo 3); o segundo, centrado nas relações Direito-Estado, mostra como o autor francês teoriza o pluralismo jurídico (Capítulo 4), os efeitos jurídicos da globalização (Capítulo 5) e as mutações que esta provocou nas democracias contemporâneas a partir de novas formas de governabilidade (Capítulo 6).
É com imensa honra que escrevemos este Prefácio, nosso filho Ivan Capeller e eu, em um exercício afetivo e concreto de transmissão geracional do pensamento de André. Nele gostaríamos de sublinhar aspectos de sua obra que, porventura, possam apoiar a excelente exposição teórica já realizada neste livro. Sem maiores pretensões, nosso contributo centrar-se-á nas questões da ciência e da arte desenvolvidas pelo autor, conforme o seguinte recorte analítico: ciência, as condições de possibilidade de teorização crítica do direito e sobre o direito; arte, as condições de possibilidade de diálogos do direito com a linguagem cinematográfica.
Ciência, as condições de possibilidade de teorização crítica do direito e sobre o direito.
Desde o primeiro número da Revue Droit et Société (Préface
, 1985), Arnaud afirma que o conhecimento do direito, como fenômeno histórico, cultural e social, exige não somente sua desbalcanização
, mas, sobretudo, a compreensão de suas múltiplas racionalidades e impurezas. Para criar as condições de possibilidade de elaboração de uma crítica radical do direito, deve-se atacar suas raízes filosóficas e emancipá-lo da ciência do direito
, construção formal da razão jurídica positivista. Isso supõe liberar o direito de seu próprio juridismo mistificador
e lutar contra a ideologia jurídica e o senso comum teórico dos juristas
, como apontou Warat.⁷ A neutralidade axiológica do direito, baseada na permanência do modelo de racionalidade subjacente ao positivismo jurídico, dissocia a racionalidade jurídico-formal da racionalidade material; por isso o direito é muito útil como dispositivo de legitimação instrumental da ordem. A partir de sua reflexão crítica sobre a racionalidade formal do direito positivo – posto e imposto –, que caracteriza a pureza do direito
, o aventureiro francês parte em busca de suas impurezas
. Segundo ele, estas só podem ser pensadas a partir de paradigmas afastados do universo jurídico, a saber, o pluralismo, a pós-modernidade, a complexidade, lógicas portadoras de novas razões do jurídico
.
Sem cessar, Arnaud reafirma⁸ as condições necessárias à promoção de uma sociologia crítica do direito que obriga a superar as dicotomias entre conhecimento prático e teórico do direito, estabelecer o diálogo entre os juristas-sociólogos e os sociólogos do direito,⁹ não desdenhar as relações entre direito e poder, não esquecer que o direito está enraizado em diferentes culturas jurídicas e verificar se a produção em ciências sociais do direito e da justiça se traduz em políticas públicas.
Em arrière fond, encontram-se duas questões centrais: como apreender criticamente um objeto normativo? Como desvendar seus desvios e contaminações? Para tratar essas problemáticas, Arnaud introduz uma análise política do direito, que coincidirá com as teses de Jacques Commaille, amigo de sempre e compagnon de route, cuja sociologia política do direito situa o político no centro dos mecanismos da produção normativa (Capítulo 1). Contudo, a desconstrução teórica do direito exige, simultaneamente, a construção de estruturas alternativas à academia tradicional; dedica-se, então, a criar plataformas de discussão para promover avanços no campo sociojurídico. Logo, em 1985, organiza em Aix-en-Provence o Congresso Anual do RCSL/LSA, evento científico que abriu portas à sociologia do direito francesa, marcada por seu caráter hexagonal
.¹⁰
Cruza fronteiras porque é um curioso do mundo. Difunde, em França, a produção filosófica e sociológica de colegas de outros países. Na década de 1970, encontra-se com Jacques Commaille na União Soviética, onde debate com os cientistas sociais russos. Andarilho da sociologia do direito, percorre a Europa, os Estados Unidos, o Canadá, o Japão, a América Latina, para conhecer a produção sociojurídica e consolidar laços científicos e fraternais em todos os lugares. No continente sul-americano, apropria-se de imediato das línguas e das linguagens, com vontade de intercambiar ideias e realizar projetos. Não cansa de andar por todo o lado a construir pontes e diálogos com a ciência e a arte.
Arte, as condições de possibilidade de diálogo do direito com a linguagem cinematográfica.
André-Jean Arnaud surge, muito provavelmente, como o primeiro jurista e pensador do direito em França que se debruçou sobre o cinema como um possível objeto de reflexão e pesquisa. Sua obra Critique de la Raison Juridique (1981) contém algumas observações bastante intuitivas acerca das relações do discurso jurídico com o discurso cinematográfico. Em nossos dias, essas considerações seriam vistas, certamente, como naïves, mas recolocadas no contexto da época, elas testemunham a grande audácia intelectual e inventividade conceitual, ao dizer, por exemplo, que é tentador aproximar a linguagem do direito à do cinema, em função das relações que elas mantêm com a imagem. [...] Pode-se até imaginar um corpo de leis colocado na forma de uma sequência de imagens de um filme. Multiplicidade, movimento, nada faltaria. No entanto, a grande diferença está no fato de que o filme se dá pelo que é [...]. Não se dá o mesmo com o direito
.¹¹
Primeiro autor a incluir uma filmografia comentada em uma de suas principais obras teóricas, La Règle du Jeu dans la Paix Bourgeoise (1973), prestando assim uma homenagem explícita à obra-prima cinematográfica de Jean Renoir. Bem ciente não apenas dos inúmeros obstáculos conceituais, mas também das dificuldades que devem ser superadas quando tentamos aplicar, na prática, os postulados de um campo sobre o outro. Com efeito, a heterogeneidade fechada
de um filme não é realmente comparável à heterogeneidade aberta
, em todos os sentidos da palavra, do mundo jurídico. Estranha contradição aquela que demonstra o caráter relativamente fechado do mundo das artes e do entretenimento quando comparado ao mundo aparentemente rígido e monolítico do estudo e aplicação de leis abstratas a homens e mulheres de carne e osso!
Como considerar, por um lado, o problema mais geral da relação do cinema com a linguagem e as formas de discurso e, por outro lado, a questão de suas relações específicas com dada realidade social, com suas formas particulares de narrativa? Inversamente, como pensar o problema geral da relação do direito com a linguagem e as formas de discurso e, mais ainda, suas relações específicas com determinada realidade social e com suas formas de aplicação da Lei? Como medir, na aplicação concreta de uma ordem legal, os desvios entre as exigências éticas da justiça e a enunciação jurídica do direito? Como examinar os desvios entre a articulação de um – ou mesmo vários –- níveis discursivos em um filme e a articulação de todos esses níveis na estruturação de uma narrativa coerente, admitida como plausível e justa por seu público?
É com esses tipos de contradições que a pesquisa de Arnaud sobre a relação entre cinema e direito deparou-se ao longo de sua trajetória, buscando um modelo epistemológico adequado à leitura crítica de filmes. Dá-se conta de que a análise estrutural dos códigos jurídicos traça um caminho muito distante das pesquisas então correntes sobre a arte e a estética. Para superar essa distância, Arnaud lança as bases de uma sociologia do discurso jurídico suscetível de integrar os conceitos fundamentais da semiologia da comunicação, ciência recente à época. Assim, estabelece um vínculo entre os estudos sobre o caráter imaginário e ideológico do discurso jurídico e os da literatura e do cinema. Se, talvez, não tenha ultrapassado o quadro conceitual da metáfora das regras do jogo
no campo da análise fílmica, lançou, sem dúvida, as bases para uma nova abordagem epistemológica das relações do direito com a semiologia e a sociologia do discurso.
Como demonstra Arnaud, pensar a relação do direito com o cinema e do cinema com o direito é um grande desafio conceitual. Com efeito, se considerarmos o cinema como um dispositivo audiovisual de tradução intersemiótica de signos, refletir sobre sua relação com o direito exige o desenvolvimento de uma teoria capaz de dar conta das múltiplas relações – tanto do cinema quanto do direito – com as formas de discurso e as reconfigurações narrativas dos relatos históricos. O cinema seria apenas uma máquina ideológica de produção industrial de sonhos, como