Os contrabandistas da memória
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Sobre este e-book
Escondidas do olhar alheio, parecem ter mais relação com o olho que vê do que com o ouvido que escuta.
Mas o contrabandista é raramente consciente daquilo que porta. Ele é como um fraudador que, quando chega na alfândega, se dá conta com horror de que carregava, com toda boa intenção, mercadorias que de pronto, sob o olhar indignado ou inquisidor do outro, se revelam proibidas.
Contrabandista sem o saber, esse homem não usa jargões, mas em sua escritura aparecem, como com Albert Cohen, que escrevia em francês – e com que elegância –, elementos de uma língua que há muito não se usa mais. Assim, como filigranas, o natural de Corfu ou o crioulo, o parisiense de Belleville ou o italiano, o alsaciano, o espanhol ou o árabe, vêm marcar com seu selo um estilo, dotando-o de um perfume incomparável.
Desse modo, tal literatura, ou deveríamos dizer toda a literatura, irá carregar nas páginas mais sublimes ou nas mais banais, nas mais preciosas ou nas mais clássicas, paisagens e perfumes, barbarismos e os termos em desuso que testemunham e palpitam com vivacidade esta coisa atapetada no mais profundo da nossa subjetividade: a língua de contrabando."
Jaques Hassoun
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Os contrabandistas da memória - Jacques Hassoun
Sobre a Série Dor e Existência
A presente série se dedica a publicar livros que tratam das dores da existência no contexto dos fenômenos sociais e políticos contemporâneos, tendo como referencial a teoria e clínica psicanalítica em diálogo com outros discursos. Abordar esses fenômenos não para catalogá-los, mas essencialmente interrogar aquilo que os determina e, principalmente, cingir suas incidências subjetivas e os modos possíveis de respostas em face do Real, ou, de outra forma, os modos de resistir, para seguir vivendo
, como diz a música popular.¹
Nos idos de 1930, Freud² ressaltou que, apesar dos inúmeros benefícios que o processo civilizatório nos proporciona, ele também é fonte inesgotável de dissabores e mal-estar. Viver inserido na civilização implica em renúncias, privações e adiamentos, que ocasionam perda de satisfação e limitam sobremaneira a ânsia humana por felicidade. Estruturalmente restringida, a felicidade só é alcançada em momentos breves e esporádicos, enquanto o sofrimento é uma constante que nos ameaça a partir de três fontes principais: as forças prepotentes da natureza, a fragilidade de nosso próprio corpo e as relações com os outros seres humanos dada a insuficiência das normas que regulam os vínculos afetivos e sociais. Freud considerou esta última fonte o sofrimento que mais nos deixa estremecidos.
Dos tempos de Freud para os nossos, poder-se-ia esperar que o sofrimento humano tivesse sido abrandado graças às melhorias e às notáveis conquistas nos campos científico, tecnológico, econômico e até social. É um paradoxo, mas as pessoas não parecem mais felizes que outrora. Em uma época vetorizada pelas conquistas de mercado, ou seja, produção-consumo-descarte tanto quanto possível, as pessoas se sentem cada vez mais pressionadas a serem produtivas, competitivas, eficientes e bem-sucedidas, em paralelo ao desmantelamento dos laços sociais e do sentido de pertencimento a uma determinada comunidade ou grupo. Sem contar com o anteparo das redes e dos mecanismos de solidariedade e de apoio comunitário, as pessoas certamente se encontram mais vulneráveis. Promovem-se assim pensamentos e relações de teor mais individualista em que o consumo de objetos acena como a principal fonte de satisfação e realização. Em vez da prometida felicidade oriunda do progresso, redobram-se os alertas para o aumento significativo das taxas de depressão, suicídio e obesidade. Por toda parte, queixas de solidão e liquidez dos laços sociais.
Decantadas por filósofos e artistas, as dores da existência são inerentes à condição humana diante da constatação da vida como pura e insuportável contingência, sem sentido a priori. Para Lacan, a dor de existir irrompe no momento extremo, limiar em que se esgotam para o sujeito todas as vias do desejo, quando nada mais o habita senão esta existência mesma, e que tudo, no excesso do sofrimento, tende a abolir esse termo inextirpável que é o desejo de viver
.³ Na última fronteira da existência nua e crua, há o despertar para o Real. Porém, a dor de existir denota também uma face humana, que ocorre com a perda inaugural no momento de entrada no campo da linguagem, que imprime em nós as suas leis, os seus limites na falta do significante último da existência, mas que nos concede, em contrapartida, nessa falta mesma, o desejo para nos sustentar para além desse ponto intolerável da existência. Logo, a dor de existir é constituinte de nossa humanidade, em que estamos sempre no risco da perda.
Se Freud apontou que viver em sociedade cerceia nossas pretensões de satisfação, ou seja, nossas possibilidades de gozo, Lacan, por sua vez, considera que a perda de gozo não se deve à sociedade, mas ao fato de sermos seres falantes, maldição que o discurso, antes, modera
, ponderou Colette Soler,⁴ em livro que abre esta série. Logo, o discurso é tanto fonte de sofrimento quanto de tratamento possível para as dores da existência. Eis aí um dos grandes paradoxos humanos: Se a existência não tem sentido em si mesma e não há nenhum sentido a ser encontrado, sobra para cada um a invenção dos modos possíveis de se continuar vivendo.
Entretanto, há situações extremas, adventos do Real, que levam o sujeito ao esgotamento das vias de seu desejo. A dor irrompe nesse ponto limite arrasando os ideais e as ficções de si mesmo, restando simplesmente a crueza da existência quando todo o desejo nela se desvanece. Poderá o sujeito resistir? De que modo ou por quais vias?
Importa-nos justamente levar ao público títulos que tratam, em suas diferenças, das dores que acompanham as situações-limites – perdas radicais, violência, racismo e outras intolerâncias e abusos diversos –, considerando que a patologia do particular está intrinsecamente relacionada com as patologias do social. Sem a pretensão de esgotar essas situações e seus efeitos disruptivos, desejamos que cada livro possa contribuir para enlaçar e intercambiar saberes e experiências, na aposta de que algo sempre se transmite, ainda que com furos e, às vezes, de modo artificioso.
Cibele Barbará, Miriam Ximenes Pinho-Fuse e Sheila Skitnevsky Finger
Organizadoras da Série Dor e Existência
"Resistiré, para seguir viviendo, no original.
Resistiré", canção composta por Carlos Toro Montoro e Manuel de La Calva Diego.
Freud, S. (1930/2010). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Obras completas (Vol. 18; pp. 13-122; P. C. de Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Publicado originalmente em 1930)
Lacan, J. (1958-1959/2016). O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação (p. 133; C. Berliner, Trad.). Jorge Zahar.
Soler, C. (2021). De um trauma ao Outro (p. 25). Blucher.
Para Anne-Marie, Danielle-Martine, Judith e David.
Prefácio à edição brasileira
É com grande satisfação que trazemos ao público brasileiro a obra Os contrabandistas da memória do psicanalista Jacques Hassoun. Publicada originalmente em 1994, a obra é de uma atualidade assombrosa e apaixonante. Morto em 1999, cinco anos após o lançamento deste livro na França, Jacques Hassoun nos deixou tanto um testemunho da passagem dos ditos, dos mal-ditos
e dos não-ditos
entre gerações quanto um testamento da sua jornada pessoal e clínica a respeito da transmissão, tema-chave deste livro. Hassoun convida o leitor a acompanhá-lo em suas reflexões acerca da fecundidade da transmissão em íntima conexão com a conjutura histórica, social e política que a condiciona. Trata-se de um estudo instigante, relevante não apenas para a práxis dos analistas, mas para qualquer pessoa concernida, tocada, surpreendida por histórias impossíveis de transmitir, de escutar, de compreender...
Luto e transmissão
Miriam Ximenes Pinho-Fuse
… só sabe da casa
Quem precisa atravessar
Rapidamente uma fronteira
Quem fez sua casa
Num país que não o quer
Aqueles a quem a casa segue
Como um cão…
Ana Martins Marques, Como se fosse a casa, 2017.
Jacques Hassoun residia na França, onde se tornou psiquiatra e, mais tarde, psicanalista. Sua condição, no entanto, era a de alguém que conheceu o exílio, tendo sido obrigado a deixar sua amada terra natal, Alexandria, no Egito. Nascido em 1936, no seio de uma família judaica tradicional, Hassoun, assim como Freud, se considerava judeu por etnia e não por religião. Sua origem peculiar não apenas favoreceu a sua habilidade de poliglota como também seu tráfico por dois mundos etnolinguísticos: o mundo judaico herdado dos pais observantes e o mundo árabe-muçulmano herdado do país onde nasceu e cresceu o que lhe rendeu, no exílio, a possibilidade de acolher na sua clínica pessoas de culturas, línguas e crenças religiosas diversas, além de aguçar-lhe o gosto para a escuta da língua maternal, a lalíngua de cada um que contagia todo tipo de dizer… ou, nas palavras do autor, a língua do esquecimento
que nos é estrangeira como um dialeto esquecido, um dialeto destruído pela língua acadêmica dominante
,⁵ porém que ressurge, a modo de contrabando, para nossa maior surpresa, no meio de uma frase, num lapso, no decurso de uma forte emoção…
A vida de Jacques Hassoun foi marcada desde cedo pela militância política e engajamento nos movimentos de base marxista-sionista. Sob a acusação de comunista
, foi preso e expulso do Egito aos 18 anos, vindo a residir permanentemente na França a partir de 1954. Muito embora Hassoun não tenha sido exilado por ser judeu, o ano de 1954 se destacou pela consolidação do poder de Gamal Abdel Nasser, o recém-proclamado primeiro-ministro do Egito, abertamente antissemita.
O projeto político de Nasser tinha por base o pan-arabismo e visava unir o povo em torno de ideais nacionalistas, logo seu governo pressentiu a necessidade de definir quem eram os cidadãos que pertenciam à nação egípcia, deixando de fora os considerados estrangeiros
; na prática, os não-muçulmanos. Em meio ao agravamento do conflito árabe-israelense, os cerca de 80 mil judeus que ali residiam há gerações passaram a ser tratados primeiramente com desconfiança e, em seguida, como não-egípcios. Metade da população judaica acabou deixando o país por temer o agravamento da situação política e, após a Crise de Suez, nos anos 1956 e 1957, cerca de 25 mil judeus foram expatriados e tiveram seus bens confiscados pelo Estado.⁶
Não à toa, portanto, a preocupação de Hassoun, tão logo se viu estabelecido na França, de se juntar às organizações político-sociais dos imigrantes judeus egípcios e de lutar para preservar a memória do patrimônio cultural dos judeus do Egito coletando e arquivando documentos, entrevistas e imagens posteriormente difundidos por meio de livros, ensaios fotográficos, artigos e um jornal, Nahar Misraïm (O Rio Nilo).
Em entrevista concedida em 1995, Hassoun expressou o sofrimento de ter que lidar com a condição paradoxal de ser, ao mesmo tempo, egípcio-judeu-comunista-francês-exilado:
[…] depois de 1956-1957, percebi, mesmo que não quisesse necessariamente acreditar… que nunca mais voltaria ao Egito. A vontade de ser egípcio, judeu, comunista e francês ao mesmo tempo era demais para mim, foi um longo processo. Tive que praticamente reconstruir para mim a categoria de judeus egípcios, tive que criar associações com outras pessoas e tive que acabar com essa história do judeu egípcio para finalmente ver todos os diferentes aspectos de minha identidade reconciliados. Para um judeu egípcio não religioso como eu, resignar-se a viver permanentemente na França é extremamente difícil. Embora eu não fosse religioso, eu era judeu. Eu me chamava de "Juif d’Egypte" [Judeu do Egito] mesmo sabendo que nunca mais voltaria ao Egito. Esta foi realmente uma coleção significativa de contradições. Acho que a política, em outras palavras, a capacidade de permanecer comunista, e depois quase imediatamente trotskista, me permitiu resolver essas questões porque a ideologia internacionalista