Da Mesma Nascente
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Da Mesma Nascente - Maria Ledir Dall Asta
CAPÍTULO I
A convivência entre os seres humanos no decorrer dos séculos, como muito bem se sabe, costuma fugir aos padrões propriamente humanos, havendo casos, inclusive, em que vai além do que se entende por máxima selvageria. Assim, nesta linha de atitudes, por vezes, o desvio de conduta atinge proporções assustadoras e inesperadas, visto que pode ser provocado por uma única mão, bastando que seja movida por ganância, frieza e covardia. Atente-se que esta constatação pode ser feita através de um simples exame de qualquer dos fatos de extrema inclemência que mancharam a história da humanidade com massacres inomináveis, cujas consequências foram mutilações ou extermínio de milhares de semelhantes. E o viés de tudo isso foi o patrocínio de uma cultura primitiva e universal que, então, autorizava a escravização do homem pelo homem, com poderes absolutos. Nesta esteira, muitas atrocidades foram legalmente permitidas, tendo suas práticas não só justificadas, mas também defendidas como questão de honra pelas elites dominantes. Assim, o estigma tatuado em alguns povos de pertencentes a uma raça inferior ou, o que era pior, de não serem sequer humanos e portanto indignos até dos direitos mais básicos de humanidade, foi ardilosa e socialmente inserido pela ganância do homem branco. Com isso, sob a ótica absurda que reduzia determinados indivíduos a reles mercadoria, o mundo subjugou e explorou muitos povos, dentre os quais, sobretudo o povo africano, à época extremamente vulnerável.
Entretanto, por uma questão de justiça, é importante esclarecer que nem toda a sociedade da época consentia com esta prática, uma vez que uma parcela do senhorio, mesmo detendo a propriedade de seus semelhantes, deixava de exercer o direito de posse absoluta e tratava-os com humanidade e respeito, contrariando os severos ditames escravocratas em vigência. Infelizmente, estes representavam uma minoria tão inexpressiva que sequer um pequeno raio de esperança conseguia despertar, posto que não reunia o mínimo da força necessária para que se pudesse ao menos começar a pensar na possibilidade de uma mudança daquela medonha realidade.
Sabe-se, por este contexto, que foram muitas e por demais tristes as histórias do tempo da lei da máxima exploração do negro no mundo. O Brasil, por exemplo, foi palco deste tipo de atrocidade por quase quatrocentos anos, e as inúmeras histórias de crueldade que encardem o nosso passado, por certo, jamais cairão no esquecimento, pois além dos registros oficiais, muitos dramas continuarão sendo contados de geração para geração, sendo alguns, certamente, como este, que, pela sua dimensão, marcou não só os diretamente envolvidos no ocorrido como também vem tocando o coração de todos que ficam sabendo destes lamentáveis fatos. Assim, contam que tudo girou em torno de dois grandes fazendeiros que, embora sendo vizinhos, administravam de modo diverso as suas propriedades: um com uma pesada mão de ferro, muito impiedoso, pois seguia os rígidos padrões socioeconômicos da época; enquanto o outro, dono de um notável senso de justiça, destacava-se dos demais, sobretudo pelos resultados obtidos que eram surpreendentemente os melhores que se tinha notícia. Isto intrigava a todos, porque, sob a ótica geral, não entendiam como a falta de rigor com seus escravos pudesse render-lhe, invariavelmente, uma produtividade bem superior. E ficavam tão impressionados que, dentre os proprietários da região, chegou até a haver alguns que tentaram copiar a sua forma de administrar, mas logo desistiram, porque perderam o domínio de seu plantel, e os prejuízos tornaram-se consideráveis, no início pela quebra da produtividade e depois com algumas baixas de negros rebeldes que fugiram ou que tiveram que ser mortos para servir de exemplo aos revoltosos.
Contudo, apesar da enorme diferença administrativa, dizem que os dois vizinhos eram fazendeiros muito fortes, ambos bem estabelecidos naquela região. O fazendeiro cruel tinha as suas terras situadas ao sul, sendo sua a primeira propriedade abaixo do planalto, em uma planície verdejante que era cortada por um rio que contornava boa parte da sede, como que formando uma meia-lua com esta, pois, vindo do norte pela montanha, atravessava um largo trecho de mata, em direção à casa-grande, depois passava a correr para o poente, paralelo à estrada de acesso ao portão principal, e em seguida descia ao longo do lado oeste, fazendo, depois do canto da cerca de trás, uma curva rumo ao leste e seguindo por quase toda a extensão dos fundos da sede, para só então, finalmente, voltar a correr na direção sul. Este era certamente o fator que lhe garantia as condições ideais para prosperar e manter-se como um pecuarista bem-sucedido. Entretanto, da mesma forma, o fazendeiro com a fama de muito justo tinha também uma bela propriedade, a qual, porém, localizava-se no planalto logo acima do rude vizinho, e era nela que se encontrava a nascente do rio Pedra Alta, que descia desenhando um cortinado alvíssimo no paredão da encosta, para depois seguir banhando a grande fazenda do vale e várias outras, situadas planície abaixo.
Todavia, nem precisava de muita comparação para se concluir que as duas fazendas, apesar de terem a mesma atividade principal, a criação de gado, muito pouco tinham em comum. As diferenças entre elas eram mesmo gritantes, visto que na do sul havia sempre um clima carregado de tristeza pairando no ar, pois o medo movia a todos, sem descanso; enquanto que na do norte respirava-se alegria pura, com o trabalho sendo feito de cabeça erguida e sorriso no olhar, na maior satisfação. Indiscutivelmente, os sentimentos cultivados em ambas as propriedades eram, além de notórios, inversamente proporcionais. Daí que, por tudo quanto eram obrigados a passar, os sofridos escravos da planície desejavam ardentemente um dia trabalhar na fazenda lá do alto, porque, devido aos muitos relatos furtivamente ouvidos, tinham certeza de que, se lá estivessem, a vida seria outra, pois seriam tratados com muito respeito e dignidade, podendo viver sem medo de chibatas e correntes. Assim, sempre que podiam, ficavam observando a fazenda vizinha e suspiravam sonhando com aquela vida melhor que estava logo ali, mesmo entendendo que, para eles, fosse absolutamente inacessível. Enquanto isso, por sua vez, os servos do bom patrão não queriam sequer se imaginar na penosa situação em que viviam seus vizinhos e irmãos de cor, porque, mesmo que estivessem a uma considerável distância, lá de cima conseguiam ver a parte do sombrio terreiro onde ficava o temido tronco e, sendo testemunhas oculares, conheciam muito bem a dimensão das crueldades a que eles eram diariamente submetidos.
Inclusive, em razão do ritmo intenso em que eram aplicados os castigos, de vez em quando um negro não resistia aos maus-tratos. Porém, a morte de um escravo em nada alterava a pesada rotina, a menos que o infeliz fosse sadio e forte o suficiente para chegar a causar uma ponta de preocupação no patrão, exclusivamente pelo prejuízo que a falta daquela mão de obra viesse a representar. Daí, neste caso, por um curto período, enquanto o sentimento de prejuízo durasse, os castigos eram abrandados um pouco. E foi assim, desta forma e por muito tempo, que administrou a sua fazenda o sinhô Mardito
, como era conhecido entre seus escravos.
Porém, contra todas as probabilidades e por um fato que jamais fora visto naquelas redondezas, uma inesperada mudança ocorreu na maior fazenda da planície. Assim para surpresa geral, em uma das inexplicáveis guinadas do destino, os dias de torturas acabaram naquele lugar, sem aviso prévio e de uma vez por todas. Contudo, pela dimensão do pavor causado pelo impacto, por muito tempo, a primeira reação de quem ficava sabendo dos fatos ali ocorridos era achar que se tratasse de uma grande invenção, pois parecia mesmo algo impossível de suceder aquele aterrador sinistro.
O fato em questão levou dias sendo preparado, sem que alguém se desse por conta da ameaça do inusitado desfecho, visto que ocorreu por causa de uma estação chuvosa que se prolongou por mais de quinze dias, intensificando-se no final. Daí que, depois de três dias chovendo pesadamente, numa noite de céu bem carregado, sobreveio um terrível temporal, um aguaceiro sem igual, com muitos raios e trovões, que foi madrugada adentro. Com isso, o volume de água na cabeceira do rio aumentou tanto que se deslocaram algumas pedras menores que davam sustentação a uma pedra imensa, todas no alto da cachoeira que caía logo acima da sede da primeira fazenda do vale. Então, de repente, devido à intensa força das águas, a enorme pedra também foi deslocada e, num estrondo ensurdecedor, despencou do alto da cachoeira, causando uma vazão descomunal que terminou por inundar toda a planície e atingir por inteiro a primeira propriedade, mudando para sempre a história da maior fazenda do vale.
Dizem que a enchente foi mesmo sem precedentes e muitos dos imóveis na planície abaixo foram atingidos, mas nenhum como o primeiro, pois grande parte da várzea onde este se localizava foi alagada, e, em questão de minutos, uma avalanche de água, troncos e pedras foi abrindo passagem, arrastando tudo o que encontrava pelo caminho, inclusive terminou matando todos os animais pequenos e o gado que estava confinado próximo às margens do rio, assim como destruiu os galpões, as pastagens e boa parte da casa-grande. Mas o pior da tragédia foi o que ocorreu com os escravos de fora da casa-grande, pois, como eram obrigados a dormir acorrentados na senzala e estavam todos presos ao enorme e pesado esteio central do galpão, que de jeito nenhum conseguiram mover, nenhum deles conseguiu salvar-se. A par disso, por ironia do destino e devido à força violenta das águas que tudo destruíam, o infortúnio acabou atingindo também, além do temido feitor e seus auxiliares, o próprio patrão e seus dois filhos, uma vez que todos foram levados pela forte correnteza, enquanto tentavam chegar até os escravos a fim de soltá-los, já que representavam grande parte do patrimônio, e também porque naquele momento a ajuda deles seria fundamental no resgate dos demais bens da propriedade. Então, tudo o que se viu quando o dia clareou, depois daquela trágica madrugada de quarta-feira, foi que o destino, naquela noite, foi mesmo muito implacável com todos os envolvidos.
Sob todos os aspectos, aquela tragédia atingiu realmente proporções gigantescas e brutais. Da família do terrível fazendeiro sobreviveram apenas duas pessoas – a esposa, que era idosa, e uma neta, ainda menor. E isto porque elas haviam-se abrigado com os escravos domésticos no lado norte da casa, que resistiu à enchente, pois era a ponta que estava apoiada na parte mais alta do terreno e que ficava mais a leste. Dos bens, dizem que muito pouco restou. Inclusive, o número total de escravos salvos não passou de doze peças, das quase cinquenta que havia na ocasião. A maioria deles era de dentro da casa-grande e não tinha, portanto, a força de trabalho necessária para recuperar a propriedade, com exceção de dois que eram ajudantes do feitor e que só escaparam porque haviam recebido a ordem de manter a salvo a patroa e sua neta.
Assim, aquele foi um amanhecer de desesperos e lamentos, pois de muito longe se ouviam os gritos de dor a cada vez que um dos entes queridos de negros e brancos era localizado, e o som do desespero ecoava em todas as direções. Conta-se que, lá pela metade da manhã, de repente a fazenda mergulhou num silêncio profundo, cujo motivo podia ser melhor entendido apenas por quem estivesse na fazenda acima, pois de lá era possível ver muito bem o que estava acontecendo: eis que, para evitar possível contaminação do solo e da água, os escravos sobreviventes, com a ajuda de um grande número de outros escravos trazidos pela vizinhança, estavam abrindo duas grandes valas para que os restos mortais fossem queimados, sendo uma vala para o gado e a outra para os irmãos que pereceram. Naquele momento, somente o rangido das carroças fazendo o fúnebre recolhimento era ouvido, pois todos trabalhavam emudecidos pelo pesar, que tomava conta tanto dos atingidos quanto dos curiosos da redondeza, que, atônitos, acompanhavam tudo a uma discreta distância. Passadas algumas horas, novamente, de muito longe podia-se ouvir os sobreviventes, que entoavam uma triste melodia, fazendo o ritual de despedida para seus amados irmãos. Depois, lá pelo meio da tarde, de qualquer parte daquela região, mesmo para quem tentasse desviar o olhar, não havia como deixar de ver as duas negras colunas de fumaça que subiam da fazenda do vale tornarem-se uma só nas alturas e deixarem de um cinza ainda mais escuro as nuvens já carregadas, que teimavam em esconder o sol. Depois de terminada a cremação, com exceção de alguns vizinhos interessados no imóvel, somente os escravos sobreviventes ficaram naquele local, pois ainda pela manhã, os corpos do patrão e de seus dois filhos haviam sido levados ao povoado mais próximo, e os familiares dos empregados brancos também tinham vindo buscar os dos seus.
Antes do final do dia, a viúva enviou um parente como seu representante para negociar a propriedade, pois havia resolvido vendê-la e ficar vivendo definitivamente no povoado, porque, além do desgosto, ficara sem alternativas para recomeçar e não dispunha mais da necessária mão de obra braçal. Assim, conforme ela prometera mais cedo, foram oferecidos ao vizinho do planalto tanto o imóvel, com o que sobrou dos bens materiais, quanto os escravos sobreviventes, estes por um precinho de arremate, pois tinha muita pressa em se desfazer deles para conter os seus prejuízos. Recebida a proposta, o fazendeiro, entretanto, pelo seu já conhecido bom senso, não querendo aproveitar-se da situação, foi logo dizendo que pagaria o