Ética: Abordagens e Perspectivas
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Ética - Cesar Candiotto
© 2023, Cesar Candiotto
2023, PUCPRESS
Histórico de impressões:
2010 - 1ª edição: Editora Champagnat (PUCPR)
2011 - 2ª edição: Editora Champagnat (PUCPR)
Este livro, na totalidade ou em parte, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização expressa por escrito da Editora.
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR)
Reitor
Ir. Rogério Renato Mateucci
Vice-Reitor
Vidal Martins
Pró-Reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação
Paula Cristina Trevilatto
PUCPRESS
Gerência da Editora
Michele Marcos de Oliveira
Edição
Susan Cristine Trevisani dos Reis
Edição de arte
Rafael Matta Carnasciali
Preparação de texto
Clarisse Lye Longhi
Revisão
Clarisse Lye Longhi
Capa e projeto gráfico
Rafael da Matta Hasselmann
Diagramação
Rafael da Matta Hasselmann
Conselho Editorial
Alex Vicentim Villas Boas
Aléxei Volaco
Carlos Alberto Engelhorn
Cesar Candiotto
Cilene da Silva Gomes Ribeiro
Cloves Antonio de Amissis Amorim
Eduardo Damião da Silva
Evelyn de Almeida Orlando
Fabiano Borba Vianna
Katya Kozicki
Kung Darh Chi
Léo Peruzzo Jr.
Luis Salvador Petrucci Gnoato
Marcia Carla Pereira Ribeiro
Rafael Rodrigues Guimarães Wollmann
Rodrigo Moraes da Silveira
Ruy Inácio Neiva de Carvalho
Suyanne Tolentino de Souza
Vilmar Rodrigues Moreira
Produção de ebook
S2 Books
PUCPRESS / Editora Universitária Champagnat
Rua Imaculada Conceição, 1155 - Prédio da Administração - 6º andar
Câmpus Curitiba - CEP 80215-901 - Curitiba / PR
Tel. +55 (41) 3271-1701
Dados da Catalogação na Publicação
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR
Biblioteca Central
Sônia Maria Magalhães da Silva – CRB 9/1191
Ética : abordagens e perspectivas / Cesar Candiotto, organizador. – 3. ed.
E84
rev. e ampl. – Curitiba : PUCPRESS, 2023.
2023
264 p. : il. ; 21 cm
Vários autores
Inclui bibliografias
ISBN: 978-65-5385-080-4 (impresso)
978-65-5385-081-1 (e-book)
1. Ética. 2. Política. I. Candiotto, Cesar.
23-157
CDD 20. ed. – 170
DEDICATÓRIA
Aos estudantes de todos os cursos da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e aos professores do Eixo Humanístico dos Cursos de Filosofia e Teologia, que ao longo dos anos têm se esforçado em conjugar a excelência profissional ao compromisso com os valores e princípios éticos.
Ao Professor Doutor Irmão Clemente Ivo Juliatto (in memoriam), Ex-Reitor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, por sua constante preocupação com os valores éticos e a formação humana.
SUMÁRIO
Capa
Folha de rosto
Créditos
Dedicatória
Ética: definições, modelos e perspectivas
Parte 1. Abordagens clássicas da ética
Ética e política em aristóteles
A ética na idade média
Rousseau: autonomia moral e política
Ética e dever moral em kant
Parte 2. Os limites das éticas clássicas
Nietzsche e o Niilismo como diagnóstico da crise da ética
Agressividade e relacionamento social em Freud
Foucault e a ética dos atos de liberdade
Para além da ética racional: considerações sobre a ética animal
Naturalismo ético e evolucionismo
Parte 3. Ética e perspectivas atuais
Ética e responsabilidade: Hans Jonas e os desafios de uma nova ética
Ética, alteridade e infinito em emmanuel levinas
Bioética: uma reflexão ética provocada pelo avanço das biociências
Sobre os autores
ÉTICA: DEFINIÇÕES, MODELOS E PERSPECTIVAS
Cesar Candiotto
Introdução
Por que as pessoas geralmente procuram agir de acordo com os códigos de conduta de sua cultura? Se elas assim procedem em busca de aceitação social ou em virtude do medo de serem rejeitadas, as razões de sua ação devem ser buscadas na moralidade, quer dizer, nos costumes e tradições em que vivem. Por que as pessoas respeitam os limites de velocidade no trânsito? Se a motivação para tal respeito é recorrentemente o medo de serem multadas, a razão de sua ação remete às proibições oriundas das leis de trânsito de seu país. Sempre que nos deparamos com tais motivações e razões para agir, não estamos propriamente ou necessariamente no terreno da ética; simplesmente seguimos o que prescreve o código moral de nossa cultura ou os códigos jurídicos de nosso país.
Qualquer cultura tem seu código moral a partir do qual são estatuídos normas e regras, princípios e valores. Os valores culturalmente estabelecidos servem de parâmetros para diferenciar entre o correto e o incorreto, o bom e o ruim na imediatez da vida cotidiana. Contudo, justamente pela obviedade desses parâmetros e das condutas desejáveis deles decorrentes, raras vezes eles são objetos de reflexão. Dificilmente procura-se saber por que se deve segui-los, o que implicaria repensar a partir de dentro a formação da própria cultura. Em contrapartida, são privilegiados os padrões de normalidade como horizontes para as ações, decisões e condutas. Sentir-se normal ao seguir as mesmas regras e valores, costumes e hábitos propicia segurança, provoca sensação de pertença, de unidade cultural e afasta a possibilidade da transgressão. Os códigos morais das diversas culturas situam-se sempre nesses limites tênues entre o normal e o anormal, entre a conduta moral e a postura imoral, entre o correto e o incorreto.
As avaliações morais não levam em conta somente as ações pontuais das pessoas, mas também se concentram no que elas são: sua origem familiar, o lugar onde vivem, a classe social a que pertencem; incidem nas suas atitudes, no modo como se vestem, no estilo de vida que levam, na maneira como fazem suas refeições, sua eventual periculosidade em função do grupo que frequentam; também é objeto das avaliações morais saber se a doença que alguém contrai decorre de um comportamento de risco, se ela é contagiosa e assim por diante. A avaliação moral é sempre estatuída pelo código moral sobressalente, de onde a dificuldade de partir do interior da própria cultura como meio mais adequado para o questionamento de seu próprio olhar, muitas vezes discriminador e excludente.
As normas e regras surgem dos valores fundamentais prezados pela cultura. Alguns desses valores são tidos como imprescindíveis para a paz social e a harmonia das relações. Por isso, muitos deles são exteriorizados como normas jurídicas. Nesse caso, os indivíduos são julgados não tanto pelo que são, mas em função daqueles atos considerados proibidos. Além disso, a abrangência da atuação da lei positiva é muitas vezes delimitada em unidades geográficas específicas regidas por uma Constituição. Como a moral, a lei é prescritiva, só que atua a partir do exterior. Muitas vezes determinados costumes são seguidos em razão de motivações subjetivas, como a busca de aceitação social; já as leis geralmente se impõem em virtude do medo da punição estipulada pelo poder estatal, que exige um ressarcimento pela infração, delito ou crime causado. A diferença é que, cumprida a pena, os indivíduos voltam a desfrutar das garantias e liberdades individuais, enquanto a rejeição moral muitas vezes não tem prazo para acabar.
Com efeito, agir somente em função do legalmente permitido, cumprindo normas e obrigações, é insuficiente para designar sua provável relação com a ética. O critério para determinar a eticidade de uma lei não reside no próprio limite da legalidade. A ética também pode ser considerada uma reflexão sobre a ação humana enquanto objeto da lei; ela toma um distanciamento dos códigos jurídicos de modo a melhor avaliá-los, questionando-os ou fundamentando-os. Essa é a razão pela qual jamais o ético poderia ser avaliado pelo próprio código. Daí a temeridade da expressão código de ética
nesse domínio, como também em quaisquer outros, quando o mais adequado seria examinar permanentemente os argumentos racionais desenvolvidos pela ética a partir dos quais os códigos podem ser justificados ou questionados.
Dessa maneira, a ética preserva uma relativa autonomia em relação aos códigos morais e aos ordenamentos jurídicos. Do já exposto se deduz que nem sempre os padrões de normalidade de uma cultura também podem ser designados de éticos; de igual maneira, nem sempre as normas jurídicas vigentes constituem um desdobramento dos princípios éticos; pelo contrário, muitas vezes estão a serviço de interesses econômicos, políticos e religiosos de grupos específicos. Com essa dupla função de questionar ou fundamentar os diferentes códigos, a ética é uma reflexão imprescindível para qualquer sociedade.
Nessa trajetória introdutória, queremos apontar o fato da moral como objeto maior da reflexão ética. A palavra moral
se popularizou no Ocidente por causa da influência da língua latina e do pensamento cristão medieval. É adequado falar de moral católica quando nos referimos, por exemplo, à doutrina moral do cristianismo católico. Ela faz referência ao terreno dos costumes, dos hábitos, no sentido de mos (no singular) e mores (no plural), próprios dessa religião. Muitas vezes, será sinônimo dos bons costumes de uma cultura, o que implica extensivamente a delimitação de fronteiras entre condutas corretas e incorretas, atitudes esperadas e rejeitadas. Condutas e atitudes são julgadas como corretas somente se atendem aos costumes culturalmente considerados valiosos.
A palavra moral
dos latinos conjugou dois radicais gregos diferentes: ethos (com epsilon) e ethos (com eta). Enquanto o primeiro está relacionado aos códigos culturais referentes aos costumes e hábitos, o segundo está vinculado ao modo de ser, ao caráter, à atitude a partir da qual agimos. O primeiro radical está próximo daquilo que designamos de moral; o segundo, da reflexão comumente conhecida como ética.
Uma definição de Ética
Longe de nós a proposição de um conceito unívoco de ética que prescinda da riqueza da tradição filosófica. Ao sugerir uma definição, nos interessa somente argumentar a respeito de sua razoabilidade. Desse modo, a ética pode ser designada como uma reflexão propriamente filosófica a respeito dos princípios axiológicos que orientam e fundamentam as ações morais.
No item anterior sugerimos implicitamente a natureza filosófica da reflexão ética. De modo mais explícito, tal característica pode ser atribuível tanto à classificação da ética como modalidade de conhecimento que faz parte da filosofia, quanto à especificidade das questões sobre as quais ela se debruça.
Aristóteles foi quem por primeiro classificou a ética como uma disciplina filosófica. Para ele, os conhecimentos podem ser divididos em teóricos ou científicos, poiéticos e práticos.
Os saberes teóricos (de theorein: ver, contemplar) buscam investigar o que são as coisas e quais suas causas; preocupam-se com o que é o mundo, com o que acontece e, por isso, são saberes descritivos. É o caso das ciências da natureza (física, química, biologia etc.); elas versam sobre o que é necessário, quer dizer, aquilo que não é capaz de ser de outra forma
(ARISTÓTELES, 1973, p. 343); seu objeto é a disposição das coisas, fatos e acontecimentos do mundo que independem de nossa vontade.
Já os conhecimentos poiéticos e práticos dizem respeito tanto às coisas produzidas como às coisas praticadas; eles pertencem à classe do variável
(ARISTÓTELES, 1973, p. 343), quer dizer, àquilo que pode ser de outra forma e que depende do curso de nossa vontade.
Os conhecimentos poiéticos (de poiein: fazer, produzir) são aqueles que servem de referência para a criação de um produto, para a realização de alguma obra ou para a fabricação de algum artefato, objetivando tanto uma utilidade prática quanto uma satisfação estética para o ser humano, como no caso das técnicas e artes; são conhecimentos que estabelecem normas e orientações a respeito de como agir para alcançar um fim concreto; ainda que possam ser designados de normativos, posto que são considerados referências para alcançar resultados práticos que desejamos, eles não podem regulamentar o conjunto das ações de nossa vida.
Os conhecimentos práticos (de práxis: atividade, negócio), por sua vez, buscam investigar o que devemos fazer, como devemos agir, qual decisão é a mais conveniente, de modo a orientar a vida de uma maneira justa e boa. São classificados de normativos porque investigam por que deveríamos agir a partir da exigência da justiça, ainda que as pessoas prescindam muitas vezes de tal exigência; ou sobre como nossas ações precisam ser orientadas pela busca do bem, mas sempre a partir de uma concepção específica de bem. É o caso da ética, saber prático que busca orientar a respeito de como empreender ações moderadas de modo a alcançar o bem-viver; da Economia, saber incumbido da boa administração dos bens domésticos e da cidade; e da Política, saber prático encarregado do bom governo da cidade.
Para além da caracterização aristotélica, convém sublinhar que a ética é ainda uma reflexão propriamente filosófica
no sentido de que não prescreve imediatamente o que é correto ou incorreto, o que deve ou não deve ser feito aqui e agora. Pelo contrário, ela procura investigar por que devemos agir ou não desse ou daquele modo. Sua função é esclarecer a respeito da melhor ação; mas quem decide agir é o indivíduo. À ética cabe argumentar por que, do ponto de vista racional, determinados princípios são mais valiosos que outros. Ao investigar os fundamentos racionais do agir, a ética se define como filosofia da moral, quer dizer, a reflexão que versa sobre os códigos morais culturais, legitimando-os ou questionando sua validade.
A definição leva em consideração que o objeto da ética está relacionado aos princípios que orientam e fundamentam as ações morais. Esses princípios distanciam-se de regras absolutas que prescrevem condutas incondicionalmente e derivam de uma fonte heterônoma. Por exemplo, a ética conclui que não matar é um preceito moral legítimo e uma lei jurídica válida porque o ato de matar fere o princípio fundamental do respeito à vida humana, e não porque se trata de uma proibição divina. Convém ponderar, porém, que, na cultura ocidental, o respeito à vida humana nem sempre tem sido entendido univocamente, muitas vezes sendo referido à vida após a morte; merece ainda ser destacado que não poucas posturas atuais ligadas ao movimento ecológico consideram esse princípio uma clara manifestação de antropocentrismo ético, posto que nele não estão incluídas outras formas de vida com as quais o ser humano interage continuamente. Isso demonstra que os princípios éticos sofrem variações semânticas no tempo e no espaço; mas isso não significa sucumbir ao relativismo axiológico, para o qual podemos acolher quaisquer princípios que orientem nossas ações na cultura e na época em que vivemos.
Os princípios éticos são universalizáveis, no sentido de que tendem a valer para todos; mas, paradoxalmente, essa validade é historicamente determinada em função do próprio caráter histórico-social do ser humano. Se nos ativermos aos princípios que orientam nossas ações morais na atualidade, observaremos que eles estão diretamente relacionados à época moderna, quando começou a derrocada do poder político e religioso medieval. A Carta dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, corolário da Revolução Francesa, assim como a Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela Assembleia Geral da ONU, em meados do século XX, mostram exemplarmente os princípios fundamentais que orientam as ações morais e os ordenamentos jurídicos na atualidade. Pela observação de seus próprios títulos, tais princípios estão associados a direitos
fundamentais que, por sua vez, servem de parâmetros de justificação para condutas regradas e critérios de legitimidade para os ordenamentos jurídicos. Em razão disso, os princípios universalizáveis de nossa época estão associados à realidade política dos Estados democráticos, cujo horizonte maior é constituído pelos direitos humanos fundamentais. É o caso do Estado democrático de direito brasileiro, que na sua Constituição visa garantir o exercício da cidadania a partir de princípios éticos, tais como: a dignidade da pessoa humana, o pluralismo político, a igualdade em direitos e obrigações entre homens e mulheres, a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, assim como da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Alguém poderia argumentar que tais princípios são inerentes ao ser humano. A verdade é que no passado eles não foram objetos privilegiados da reflexão ética, não constituíram referências normativas em vistas da orientação e fundamentação da ação moral, como é o caso do princípio da liberdade de crença.
Podemos deduzir que sempre estamos diante de um núcleo de princípios éticos fundamentais que orientam, esclarecem, fundamentam e até mesmo questionam os códigos morais e os ordenamentos jurídicos.
Essa caracterização da ética é extremamente proveitosa para as atuais sociedades e seu caráter pluralista, nas quais regras e princípios culturais bem diferentes, de caráter religioso e social, habitam um mesmo espaço, muitas vezes em situações de nítido enfrentamento. Ainda que valores e princípios, regras e normas sempre sejam imaginados do ponto de vista da situação cultural em que nos encontremos, é preciso transcender esse horizonte quando se trata da ética. Se alguém é cristão, ele deve seguir os valores e princípios, regras e normas que essa religião prescreve; o mesmo ocorre se alguém for islâmico. No entanto, no caso de que eles partilhem a mesma coletividade, seguir sua própria religião não os deve impedir de avaliar racionalmente determinadas condutas como negativas se elas obstaculizam a igualdade dos direitos e obrigações fundamentais e corroboram qualquer tipo de exclusão. Esse exemplo do âmbito religioso também poderia ser estendido às relações de gênero, às relações étnicas e às opções políticas.
Modelos éticos, seus críticos e perspectivas atuais
Na história do pensamento ocidental, os diferentes sistemas éticos são classificados muitas vezes em virtude dos princípios que escolhem como parâmetros para a avaliação ética das ações morais.
Há modelos éticos que primeiro investigam qual é o fim maior que devemos buscar para, posteriormente, estabelecer os meios corretos de agir. Platão e Aristóteles identificaram esse fim maior com o Bem. Mas enquanto Platão defendia uma concepção unívoca de bem, Aristóteles assevera que cada ação tende a um fim, que é seu bem. A pluralidade das ações denota a diversidade de bens. A busca pela ação moral excelente implica a procura pelo bem maior, ao qual estão subordinados outros bens. Esse bem maior é o bem-viver, o que significa agir de maneira racional (ARISTÓTELES, 1973). A partir da finalidade do bem-viver é que os meios – as ações – serão avaliados como adequados ou inadequados. Aristóteles é o primeiro também a dar-se conta da dificuldade desse modelo. Isso porque, para alguns, o bem maior é o prazer; para outros a fama, para outros ainda a riqueza. Seria o bem-viver a vida prazerosa, a vida realizada pelo reconhecimento e pela fama, a vida dedicada ao acúmulo da riqueza? Por que a vida contemplativa que busca sempre agir de maneira racional é preferível às demais? Aristóteles argumenta que o prazer, a fama e a riqueza dependem das circunstâncias, como é o caso do país e da época em que alguém nasceu, da posição social ocupada, da fragilidade ou não do seu organismo; depende ainda dos outros, posto que o sucesso profissional está comumente relacionado ao reconhecimento alheio, e assim por diante. Já a vida contemplativa é aquela que depende totalmente de nós, porque ela realiza a função (ergon) específica do ser humano, que é agir de modo racional. Contudo, ainda que Aristóteles tenha dado uma resposta satisfatória ao problema da escolha de um bem maior a partir do qual nossas ações deveriam ser avaliadas diante de uma pluralidade de bens, o fato é que o problema permanece.
Outras variantes éticas inspiradas no eudaimonismo aristotélico têm considerado como princípio maior da ética aquilo que proporciona a felicidade. Mas, segundo outras perspectivas, o que subjetivamente julgamos ser a felicidade jamais poderia transmutar-se em exigência ética para todo e qualquer ser racional. As éticas da felicidade, quando propõem ideais de vida boa, buscam hierarquizar um conjunto de bens dos quais podemos usufruir em vistas da produção da maior felicidade possível. Elas aconselham a seguir um modelo e a deixar-se orientar por ele; no entanto, tal modelo não pode ser uma exigência universalizável, posto que a felicidade jamais é objeto de exigência, sendo, no máximo, princípio de orientação.
Resulta que a postulação de bem maior ou de maior felicidade como fim último para avaliar a correção das ações encontra frequentemente dificuldades em torno daquilo que é entendido como bem e felicidade, quase sempre confundidos com o que é bom para um indivíduo só ou para uma comunidade específica (CORTINA; MARTÍNEZ, 2005).
Em razão disso, outros modelos éticos têm priorizado a busca de um princípio universalizável, não porque ele orienta a respeito da escolha de determinados bens, mas no sentido de que aponta condutas exigíveis de qualquer ser racional em quaisquer circunstâncias. Destarte, parece que quando tratamos de princípios éticos universalizáveis permanecemos mais próximos da lei moral do que da felicidade. Os modelos éticos que se ativeram prioritariamente à lei moral são conhecidos como éticas do dever.
Nas éticas do dever ocidentais, a justificação do dever moral durante muito tempo foi transcendente, religiosa, em grande medida tributária do pensamento ético cristão. Na formulação mais conhecida, elaborada por Tomás de Aquino, o dever está associado à relação entre a lei eterna e a lei natural. A lei eterna diz respeito ao plano racional de Deus refletido na ordem do universo. Ainda que em grande medida desconhecida, a lei eterna foi revelada nas Escrituras, sobretudo nos Evangelhos, e sua especificidade está relacionada ao fim último do homem, que é seu estado final de bem-aventurança. Quanto à lei natural, ela impele o homem a realizar o bem e a evitar o mal; o homem é assim impelido porque sua razão participa da lei eterna, seja ele crente ou não. Para Tomás, tudo aquilo para o qual o ser humano tem uma inclinação natural, é entendido pela sua razão como bom e como fim da conduta. Aí Tomás segue Aristóteles, consoante o qual o bem é aquilo para o qual todas as coisas tendem. As leis da autopreservação, da reprodução e educação da prole e da sociabilidade seguem as inclinações naturais e a partir delas é que as leis humanas ou positivas devem ser