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Decolonizando afetos:  o reconhecimento jurídico das famílias poliafetivas
Decolonizando afetos:  o reconhecimento jurídico das famílias poliafetivas
Decolonizando afetos:  o reconhecimento jurídico das famílias poliafetivas
E-book210 páginas2 horas

Decolonizando afetos: o reconhecimento jurídico das famílias poliafetivas

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Sobre este e-book

Muito além de analisar a viabilidade e necessidade do reconhecimento jurídico das famílias poliafetivas, esta obra debate o impacto da monogamia no Direito, sobretudo no Direito das Famílias. Quando falamos em família, quase que automaticamente nos vem à mente um homem casado com uma mulher e um par de filhos, leia-se, uma família monogâmica, heteroafetiva, branca, com filhos biológicos e bilarerais. Isso não é coincidência. Essa imagem de comercial de margarina foi introjetada, tanto no campo das mentalidades quanto no jurídico, como parte do projeto colonizador engendrado por Portugal no Brasil a partir de 1500.

Mas será que sempre fomos assim? Será que sempre fomos heteroafetivos? Sempre fomos monogâmicos? Será que a poliafetividade é mesmo fruto da contemporaneidade?

A análise da mononormatividade nesta obra é feita sob um viés decolonizador, partindo dos modelos de família dos povos originários, analisando a evolução legislativa sobre o tema, com ênfase na força normativa da principiologia constitucional. O texto leva o leitor a questionar os padrões comportamentais sedimentados na sociedade, propondo uma mudança de paradigma na forma como o direito é concebido e aplicado, promovendo uma abordagem mais plural e diversa, capaz de contemplar os diversos arranjos familiares.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de ago. de 2023
ISBN9786525291765
Decolonizando afetos:  o reconhecimento jurídico das famílias poliafetivas

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    Decolonizando afetos - Lívia Scopel Ribeiro Dini

    1. INTRODUÇÃO

    Não podemos encontrar soluções para questões

    invisíveis. Portanto, devemos visibilizá-las.

    Letícia Angelini

    A violência da colonização europeia do século XVI ainda pode ser vista nas estruturas de poder existentes nas sociedades coloniais americanas até hoje, onde ainda persiste a materialidade e subjetividade construída e imposta pelo eurocentrismo.

    No século XVI, Portugal não buscava apenas uma nova fonte de matéria prima, mas um novo local que pudesse fazer parte de seu mais novo empreendimento ultramarino. Isso envolvia bem mais do que o saqueamento do ouro pelo trabalho escravo, incluía sobretudo a busca por novos súditos, por um povo que reproduzisse suas estruturas de poder a fim de afirmar a soberania lusitana na nova formação mundial que se apontava naquela época.

    Nesse mesmo cenário, a Igreja Católica enfrentava na Europa o movimento da Contrarreforma, encabeçado por Martinho Lutero, que desafiou a autoridade da Igreja questionando e racionalizando seus dogmas, diminuindo-lhe o número de fiéis e consequentemente o alcance de sua influência (lê-se: poder).

    Não poderia haver cenário melhor àquela época para o Estado Português e para a Igreja do que o Brasil. Um território rico em todo tipo de mercadoria e cheio de gente disponível para ser convertida. O Padroado¹ não perdeu tempo.

    A exploração das riquezas do Brasil se deu simultaneamente à imposição do modo de vida português. A Igreja, para se reafirmar nos trópicos, precisava de novos fiéis que obedecessem a seus dogmas: que adorassem um único Deus, seguissem à risca a liturgia canônica romana, batizassem seus filhos em Cristo, fizessem sexo apenas após o casamento e que se casassem na Santa Igreja, num laço indissolúvel e monogâmico.

    Seria uma tarefa fácil se os povos originários que aqui existiam fossem uma folha em branco. Não foi o caso. O Brasil era uma terra de muitos povos. Cada um com seu próprio universo de costumes, com suas próprias regras políticas e sistemas de economia. A Igreja teve que lidar com o incesto, com a fluidez sexual dos indígenas, com guerras entre as tribos, com rituais antropofágicos e com a poligamia. Numa atitude tipicamente colonialista, a Igreja via e analisava os comportamentos dos povos originários sob sua ótica dominadora, sem entender as razões que culminavam naquelas práticas, tão assustadoras aos portugueses.

    Em razão da supremacia político-econômica e principalmente pela escravização violenta do processo, os indígenas – ainda que tenham oferecido resistência – foram aos poucos sendo dominados pelos valores europeus, que paulatinamente foram se tornando oficiais, relegando as práticas originárias para o campo na marginalidade.

    O colonialismo traz consigo a lógica da exclusão. Ao endossar o catolicismo, era imperioso negar qualquer outro tipo de religião. Ao exigir a castidade, condenava-se qualquer outra prática sexual. Ao impor a monogamia às pessoas, imputava qualquer outro modelo familiar como ilegítimo. Não há lugar para as diferenças na dinâmica homogênea capitalista.

    É urgente repensar as estruturas atuais sob novos conceitos e perspectivas que partam originariamente da sociedade brasileira. Repensar não apenas as estruturas sociais, políticas e econômicas, mas também as comportamentais e jurídicas, que reproduzem os preconceitos criados pela colonização, criando espaços de não direito que legitimam discriminações.

    Nesse sentido, repensar o Direito das Famílias sob uma perspectiva decolonial requer a revisão de institutos criados para a manutenção do poder colonial, como o casamento e a monogamia. Se não fosse parte do projeto político patriarcal de manter o patrimônio de um homem em uma única linhagem familiar, seria a monogamia considerada um princípio informador do Direito das Famílias? A quem interessa lançar as famílias não monogâmicas na marginalidade da proteção jurídica?

    A monogamia ainda atua como forte estrutura hierárquica de poder e é a base da cultura misógina que nasceu no Brasil com a colonização, e que faz vítimas (mulheres) até os dias hoje. Parte disso está positivado na legislação civil, notadamente na parte atinente às famílias. Ainda hoje encontramos dispositivos legais que impedem a doação de bens à concubina; que não permitem que a concubina seja indicada como beneficiária de seguro de vida; que impedem que bens sejam deixados em testamento para o filho exclusivo da concubina, entre tantas outras. A própria expressão concubina, cunhada pelo Código Civil, carrega em si o tom pejorativo com que as famílias informais são tratadas no Brasil, ainda que sejam o modelo originário de família brasileiro.

    O grande problema de se manter essa legislação colonialista é que ela não reflete a sociedade atual. Há uma lacuna entre o que deve ser regulado e o instrumento que regula. O grande número de processos judiciais em que se pleiteiam a divisão de benefícios previdenciários entre mais de uma companheira só confirma que a monogamia não pode ser considerada como modelo exclusivo de família, pois a reiteração da prática confirma o contrário. Tudo isso se torna mais grave quando a Suprema Corte do País, em sede de Recurso Repetitivo, estabelece a monogamia como valor estruturante do Direito de Família, relegando as inúmeras famílias em situação de simultaneidade na ilegalidade, premiando com a impunidade aquele que não arca com as responsabilidades inerentes à qualquer formação familiar.

    É nesse cenário de ilegalidade e não reconhecimento que estão as famílias poliafetivas. Cada vez mais presentes na sociedade, os núcleos poliafetivos têm tido suas demandas familiares – patrimoniais e existências – ignoradas em nome do princípio da monogamia, em detrimento de outros princípios de caráter universal, como o princípio da dignidade humana, da autonomia privada e da pluralidade familiar.

    Essa pesquisa tem por objetivo comprovar – através da análise doutrinária e jurisprudencial – que o princípio da monogamia não pode ser invocado como único legitimador das entidades familiares, sob pena de violar a Constituição Federal em sua principiologia.

    Reconhecer a monogamia como fator alóctone² de identificação familiar é o verdadeiro giro decolonial³ necessário para repensar a legislação civil e seus institutos, de forma a torná-la um estatuto de amparo e inclusão, em consonância com o que propõe a hermenêutica constitucional.


    1 O termo Padroado se refere à delegação de poderes ao Rei de Portugal, concedida pelos papas, em forma de diversas bulas papais, uma das quais uniu perpetuamente a Coroa Portuguesa à Ordem de Cristo. A partir de então, no Reino Português, o Rei passou a ser também o patrono e protetor da Igreja. Em termos generalistas, trata-se da união entre Estado e Igreja.

    2 Que não é originário do país ou região em que habita (DICIO, Dicionário Online de Português). Disponível em: www.dicio.com.br

    3 O giro decolonial é um conceito que se refere a uma corrente de pensamento crítico que busca decolonizar as formas de conhecimento e de poder que foram construídas a partir da colonização europeia de outros continentes, principalmente da América Latina, África e Ásia. Essa corrente teórica tem como premissa que os sistemas e formas de conhecimento europeus foram impostos a outras culturas, invadindo e dominando as práticas e formas de saber existentes nas sociedades colonizadas.

    O giro decolonial propõe, então, questionar e desafiar a centralidade do conhecimento e das práticas ocidentais, que veem no discurso da modernidade e do progresso como formas únicas de conceber e organizar o mundo. Isso implica construir um diálogo horizontal e plural de saberes e reconhecer a validade e importância das distintas tradições de pensamento e formas de conhecimento existentes em diferentes culturas e sociedades. A ideia é buscar a construção de alternativas epistêmicas que possam combater o racismo epistêmico, que se manifesta quando a hierarquia do conhecimento europeu se sobrepõe a outras formas de conhecimento, suprimindo e negando outras epistemes (Baseado no conceito de Giro Decolonial, criado por Nelson Maldonado Torres, em 2005).

    2. ORIGEM E FORMAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA NO BRASIL

    "Ai! Esta terra ainda vai cumprir seu ideal. Ainda

    vai tornar-se um imenso Portugal. Ai! Esta terra ainda vai

    cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um império colonial."

    Chico Buarque

    Analisar o surgimento e desenvolvimento do Direito de Família no Brasil requer o entendimento da influência que o Direito Canônico exerceu sobre essa legislação, desde a chegada dos Portugueses e da Igreja Católica – que naquele momento se confundiam – ao Brasil.

    O movimento da Contrarreforma leva a Igreja a reforçar seus dogmas para frear o crescimento protestante na Europa e disseminar a doutrina católica pelo mundo era um dos objetivos da Santa Sé.

    Ao chegarem ao Brasil, depararam-se com uma sociedade completamente oposta aos valores que aqui queriam impor: poligâmica, fluida e incestuosa. O choque era inevitável, e os indígenas não se posicionaram passivamente à investida lusitana. No início do Cristianismo, por volta dos séculos III e IV, os valores considerados como moralidade ideal pela Igreja eram os relacionados à virgindade e castidade e havia a recomendação constante de renúncia ao prazer carnal, incluindo aqui o ato sexual. Por muito tempo, o casamento foi hostilizado pela Igreja, por ser visto como uma instituição que permitia a manifestação do desejo e o pecado da carne. Entretanto, foi o espaço encontrado para que ocorresse o inevitável. Era melhor ter relações sexuais dentro do casamento do que fora dele, e foi com essa ideia de mal menor que a Igreja passou a aceitar o casamento como local de procriação (VAINFAS, 1986).

    Os adeptos do matrimônio acabaram prevalecendo e a Igreja sacramentalizou o casamento, ainda que com grande dificuldade. Um dos grandes impulsos pela sacramentalização do casamento foi a luta contra o concubinato, não só da maioria da população, mas sobretudo o casamento dos padres, tanto que o celibato foi instituído na mesma época, por volta do século XVIII (VAINFAS, 1986).

    A Reafirmação dos dogmas da Igreja Católica se deu no Concílio de Trento, instaurado em 1545 pelo Papa Paulo III, na cidade de Trento, na Itália. Também conhecido como Conselho da Contrarreforma (LEITE, 1991), o Concílio objetivava reestruturar a dogmática católica a fim de adaptar a Igreja aos novos tempos modernos que se aproximavam, aos ideais iluministas que surgiam, a centralização monárquica que acontecia na Europa neste momento e principalmente, revidar o movimento de Reforma, liderado por Martinho Lutero, por volta de 1517.

    2.1 AS DIRETRIZES DO CASAMENTO TRIDENTINO

    Para tanto, a Igreja Católica formulou doze cânones e um decreto, o Reformatione Matrimonii e o Decreto Tametsi (LEITE, 1991), em forma de dogmas, seguido das correspondentes sanções para quem os descumprisse, na clara tentativa de refutação às postulações iluministas protestantes. O autor Marcos Alves da Silva (2013), em sua tese de doutorado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), analisou os mais impactantes desses doze cânones, que pela relevância do tema, será abordado nesta pesquisa.

    A Reforma Protestante negou o caráter sacramental do casamento, entendendo ser um ato a ser regulado pelo Estado, e não pela religião. No Cânone I, a Igreja Católica chama para si a autoridade para conferir validade aos casamentos, elevando-o a condição de sacramento religioso católico e detalhando-o em pormenores. O casamento, para ser válido, não exige mais apenas a vontade dos noivos, precisando, para tanto, da intervenção do sacerdote e de testemunhas, precedido dos proclamas com os competentes registros. Perceba que essa estrutura formal e solene do casamento, elaborado pela Igreja, se mantém no ordenamento jurídico civil brasileiro até os dias de hoje, muito embora desde o século XIX a legitimação para celebração dos casamentos já tivesse sido passada das mãos da Igreja para o Estado.

    Um dos maiores entraves enfrentados pela Igreja na regulamentação do casamento foi o caráter doméstico e privado que essas cerimônias tinham entre os populares. Fustel de Coulanges (2009) nos mostra que o casamento era a cerimônia santa que ligava à noiva à religião do noivo, cortando todos os laços anteriores existentes com sua família de origem. A cerimônia era celebrada em casa, e quem a presidia era o deus doméstico. Todos os rituais eram celebrados em frente ao fogo doméstico.

    Poucas não foram as críticas ao dogma estampado pelo Cânone I. Martinho Lutero, atacando os vários impedimentos matrimoniais criados pela Igreja, em sua obra O Cativeiro Babilônico da Igreja (2011), diz:

    (...) que significa proibir o casamento a não ser inventar tantos impedimentos e preparar ciladas para que não se casem ou, caso se tenham casado, dissolver os matrimônios? Quem deu tal poder aos seres humanos? Admitamos que tenham sido santos e guiados por zelo piedoso. Mas por que a santidade alheia molesta a minha liberdade? Por que me aprisiona o zelo alheio? Seja santo e zeloso quem quiser e quanto desejar, contanto que não prejudique o outro e não me roube a liberdade⁴.

    Lutero era um divulgador de ideias pautadas por ideais de liberdade e autonomia, consideradas subversivas à época e contrárias a pretensão de regulação excessiva proposta pela Igreja. Chegou até mesmo a defender a possibilidade do casamento poligâmico em situações excepcionais, muito embora não fosse um defensor dessa prática e até mesmo cogitou a possibilidade de haver relacionamento sexual da mulher de um marido impotente com o irmão deste ou com outro homem (SILVA, 2013).

    O Cânone II consagrou a monogamia como princípio basilar do casamento, proibindo a poligamia simultânea e consequentemente, admitindo novas núpcias no caso de falecimento de um dos cônjuges.

    Os Cânones III e IV trataram dos impedimentos matrimoniais, que tiveram reflexos direto nos impedimentos trazidos pelas codificações civis oitocentistas.

    Os Cânones V e VI estabeleceram a indissolubilidade do vínculo matrimonial, considerada uma consequência lógica e natural da obrigatoriedade da monogamia. Assim, aquele que se divorciasse e se casasse novamente, estaria cometendo adultério.

    O Cânone XII versou sobre a competência exclusiva dos juízes eclesiásticos para

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