Sociedade civil e educação: fundamentos e tramas
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Sobre este e-book
""Terceiro setor", "cidadania", "solidariedade", "voluntariado"… Nas diversas reformas sociais e políticas, estes e outros termos são prontamente trazidos pelos lábios, carregados aos ouvidos. Quase sempre, mais confundindo que explicando, seduzindo antes de orientar. Entre essas palavras mágicas, tem se destacado a "sociedade civil". Esta obra procura questionar os usos e sentidos que a sociedade civil tem tomado no projeto socioeducacional esboçado pela atual fase de desenvolvimento do sistema capitalista. Para tanto, investiga os fundamentos teóricos deste tão valioso signo ao longo da história moderna e contemporânea. Procura, por fim, desvelar algumas tramas percorridas pelas reformas na educação – na escola e para além dela – no Brasil e no mundo. Reformas que, sob a égide do capital e de seus interesses, ao apregoar o fortalecimento da "cidadania" por meio do envolvimento da "sociedade civil", realizam efetivamente desmantelamentos e devastações de consequências deveras preocupantes às classes subalternas."
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Sociedade civil e educação - Marcos Francisco Martins
A presença recorrente do termo sociedade civil
no discurso dos sujeitos escolares e não escolares que têm desenvolvido ações socioeducativas atualmente se justifica pela positividade que o significado desse conceito adquiriu na dinâmica societária contemporânea. De sorte que qualquer sujeito social que se identifica como integrante da sociedade civil parte de um patamar de legitimidade maior do que aqueles que se identificam com o mercado e com o Estado. Este tem sofrido com o peso da experiência autoritária, burocrática e dramática desenvolvida no Leste europeu ao longo do século XX, e aquele com as críticas advindas da malfadada experiência neoliberal mundial, que produziu um mundo inegavelmente mais injusto, desigual e desumano, que desconhece inclusive os próprios limites ecológicos e ambientais.
De fato, as ações dos que se proclamam atores da sociedade civil tem ganhado corações e mentes, pois são apresentadas como mediadas não pelo lucro (mercado) ou pelo poder (Estado), mas pela solidariedade, pelo voluntarismo, pela gratuidade, pelo desprendimento e mesmo pela independência em relação às questões políticas e ideológicas. Daí o apoio inconteste que a grande mídia lhe tem oferecido, pois está comprometida com o bom
funcionamento da dinâmica societária burguesa – leia-se comprometida com ocultar suas contradições –, que se reproduz com tranquilidade no ambiente em que reina a indiferença política.
O que se percebe ao analisar esse fenômeno político e social contemporâneo é que a alegada neutralidade da sociedade civil tem sido admitida por muitos, primeiramente, como verdadeira – por incrível que pareça! –, e depois como tendo valor positivo, do que resulta grande parte de sua legitimidade. E, para sustentá-la, os atores da sociedade civil e seus apoiadores, parceiros – para utilizar uma palavra que lhe é muito cara –, têm recorrido a autores como Tocqueville, Habermas, Gramsci e Giddens – que serão discutidos na Parte II –, mas sem referência à origem desse conceito moderno.
De maneira que nesta parte o que se pretende é apresentar alguns dos precursores do conceito de sociedade civil. A título de síntese, resolvemos trabalhar com três referências: Locke, Hegel e Marx.
Em verdade, o que se almejou apresentar do conceito de sociedade civil nesta parte foi uma referência clássica do pensamento político e social liberal (Locke) e outra da tradição socialista (Marx). Mas dado que Hegel é uma fonte importantíssima para compreender a acepção que Marx conferiu ao termo, resolveu-se também discutir seu pensamento nas linhas que se seguem. Ao abordar o conceito de sociedade civil no pensamento sociopolítico de cada um desses autores, não se pôde deixar de comentar e relacionar com o conceito a concepção de educação presente na obra dos autores.
Uma questão seminal em filosofia política e em ciência política é a seguinte: por que os homens obedecem aos governantes e às leis? O contratualismo parece dar uma das respostas mais simples e diretas à questão: porque consentem em obedecer. E consentem ao firmar, explícita ou tacitamente, um contrato entre si, por meio do qual esperam preservar seus direitos naturais
(Ius naturale).
Essa concepção contratualista supõe, lógica e/ou historicamente – há várias noções contratualistas sobre a questão –, que as sociedades humanas originariamente viviam em um estágio de vida natural, cada qual cuidando de si, sem um poder (Estado) regulando as relações sociais. Contudo, o desenvolvimento dessa situação gerou conflitos, pondo em risco a vida dos indivíduos e dos grupos humanos. De modo que a alternativa para superar essa realidade foi estabelecer um poder para regular as relações sociais – o Estado e todos os seus mecanismos de poder jurídico-político, econômico e ideológico.
Desse modo, o Estado é entendido como o meio pelo qual se superou o originário estágio natural em que viviam os homens. Sua instituição dá origem a outro tipo de formação social, qual seja o estado social ou político
, característico da civilização ocidental.
Essa noção fundamenta-se na ideia de que todos os homens, ao nascer, tornam-se naturalmente donos da própria vida e da liberdade, podendo da mesma forma delas dispor para poder viver em paz na sociedade, orientados pela razão: […] lei de natureza […] que ensina a todos os homens que tão só a consultem, sendo todos iguais e independentes, que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses
(LOCKE, 1991, p. 218).
Esses direitos naturais
da humanidade em seu estágio de vida natural sustentam a construção do direito positivo, isto é, aquele que advém do contrato entre os homens. Essa doutrina, basilar ao contratualismo, é conhecida como jusnaturalismo ou teoria do direito natural
, ressaltada recorrentemente nas obras de muitos autores modernos.
Entre os séculos XVII e XVIII, o jusnaturalismo foi predominante no mundo ocidental
. O primeiro a fazer uso dessa teoria para explicar a natureza do poder político foi o jurista holandês Hugo Grócio (1583-1645), em sua obra De Jure Belli ac Pacis, de 1625. Deu sequência a ele uma série de outros pensadores do direito natural não menos importantes, tais como o filósofo e matemático inglês Thomas Hobbes (1588-1679), o filósofo judaico-holandês Baruc Spinoza (1632-1677), o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), entre outros (BOBBIO & BOVERO, 1996). Mas, entre eles, um dos autores de maior destaque no que se refere à influência do contratualismo na teoria política moderna foi o médico e filósofo inglês John Locke (1632-1704).
Para compreender a natureza do contratualismo em Locke e como ele será utilizado para dar origem ao liberalismo político clássico¹ e, enfim, à concepção de sociedade civil que daí emerge, é importante relembrar de modo muito breve o contexto histórico da Europa nos séculos XVII e XVIII. Em seguida, retomar os principais elementos do sistema jusnaturalista, bem como discutir brevemente outros dois contratualistas fundamentais, Hobbes e Rousseau, que deram à teoria do direito natural sentidos ideológicos muito distintos daqueles propostas por Locke.
Em muitos aspectos, os séculos XVII e XVIII na Europa ocidental são muito importantes para a constituição do mundo moderno e do contemporâneo. Nesse período observam-se a origem e o fortalecimento dos Estados modernos, como Portugal, Espanha, França, Inglaterra e Rússia. A emergência do Estado moderno, como regra, dava-se sob regimes políticos absolutistas, algo muito característico das monarquias francesa e espanhola.
O século XVII, dando continuidade, nesse aspecto, ao XVI, foi um período de intensas e fratricidas guerras religiosas, após relativo obscurecimento dos valores mais tolerantes do Renascimento e o surgimento da Reforma protestante e da Contrarreforma católica.
No caso da Inglaterra de Locke e Hobbes, viveu-se no século XVII a Revolução Inglesa, iniciada em 1640. Após a breve república autoritária comandada por Cromwell, deu-se a restauração da monarquia, que se pretendia absoluta, mas que seria refreada pela Revolução Gloriosa, de 1688, quando o Parlamento inglês entrou em acordo com Guilherme de Orange para que ele assumisse o trono britânico. Como resultado, teve origem o moderno sistema parlamentarista e o Estado liberal. Segundo Hobsbawm (1998), desde então – e diferentemente da maioria das outras monarquias absolutas europeias – o Estado inglês já estava totalmente voltado à promoção dos negócios
(comércio e indústria).
Dado o contexto histórico em que surge o contratualismo, passamos a apresentar seus marcos gerais fundamentais. Apesar de tornar-se predominante no século XVII, a ideia de contrato remonta ao menos a Epicuro, filósofo grego do período helenístico. A ideia de direito natural, por sua vez, parece ser de origem cristã-medieval, e ainda permanecia como questão central no momento de fundação da Modernidade.
Na verdade, os teóricos políticos medievais também distinguiam dois contratos: a) o de união social, que institui a sociedade; b) o de submissão política, que aliena os poderes da sociedade a um senhor ou soberano – no caso do monarca absolutista, com todos os poderes para fazer de sua vontade a lei a ser seguida por todos.
Mas a hegemonia dessas ideias pautadas em categorias-chave como contrato, direito natural, estado natural e estado civil ou político, se daria entre o início do século XVII e o fim do XVIII, no período compreendido entre o aparecimento da obra de Hugo Grócio, de 1625, e a de Hegel, que faz uma contundente crítica ao jusnaturalismo em O direito natural, de 1802. Segundo Renato Janine Ribeiro,
[…] contratualista, quer dizer, um daqueles filósofos que, entre os séculos XVI e o XVIII (basicamente), afirmaram que a origem do Estado e/ou da sociedade está no contrato: os homens viveriam, naturalmente, sem poder e sem organização – que somente surgiriam depois de um pacto firmado por eles, estabelecendo as regras de convívio social e de subordinação política [1991, p. 53, grifos do autor].
Contudo, os autores contratualistas ligam-se muito mais pelo método de explicação da origem da vida social do que pela compreensão que fazem do contrato social, já que, em matéria de interesses e alinhamento político, havia entre eles muita diversidade. Por exemplo, fizeram uso do contratualismo tanto teóricos do absolutismo, como Thomas Hobbes, quanto o criador do liberalismo político, John Locke, e o teórico radical da soberania popular, Jean-Jacques Rousseau.
Segundo Bobbio e Bovero (1996), a ideia-chave do contratualismo é a passagem do estado de natureza para o estado civil ou político por meio de um contrato social firmado entre os indivíduos, que buscam, assim, proteger melhor seus direitos naturais pela cessão de algumas – ou todas – de suas liberdades e propriedades que lhes foram naturalmente dadas. Outro ponto em comum era a busca de uma análise do direito e da moral que fosse científica, para, com isso, propor uma ética racional definitivamente separada da teologia e fundamentada em análise crítica dos fundamentos do direito e da moral. O autor que levou isso mais longe foi Thomas Hobbes, que, inspirado pela matemática de Galileu, tentou criar uma ciência da moral.
Compreendido como um sistema de moral e de direito racional, científico, natural e geométrico, deveria ter caráter universal, válido para qualquer tempo e lugar. Trata-se, desse modo, de uma teoria racional do estado político e, ao mesmo tempo, uma teoria do estado racional. Este é preconizado como a única condição pela qual o ser humano poderia realizar plenamente sua natureza de ser racional. Assim, o homem não é mais concebido como ser divino criado e orientado por Deus, ou por aquele que dele recebe as incumbências de administrar a vida social – monarcas absolutistas –, mas como ser natural e racional, que se guia pela razão, podendo ser o Estado seu instrumento de consolidação.
Nesse sentido, não é exagero dizer que alguns contratualistas foram pensadores que revolucionaram seu tempo, porque se preocupavam em destruir uma situação política herdada historicamente e fornecer outra base (racional) para uma nova sociedade e um novo Estado. Ao mesmo tempo, viveram o início e o auge da era das revoluções burguesas, que derrubaram o feudalismo e o poder divino
dos