A Relíquia
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Eça de Queirós
Eça de Queirós (18451900) - José Maria de Eça de Queiroz foi um escritor e diplomata português.Fernando Pessoa (18881935) - Fernando António Nogueira Pessoa foi um renomado poeta, filósofo, dramaturgo, ensaísta e tradutor português.Florbela Espanca (18941930) - Florbela d'Alma da Conceição Espanca foi uma escritora portuguesa.Fialho de Almeida (18571911) - José Valentim Fialho de Almeida foi um jornalista, escritor e tradutor pós-romântico português.Camilo Castelo Branco (18251890) - Camilo Ferreira Castelo Branco, foi um prolífico escritor português. Sua carreira literária abrangeu romances, teatro, poesia, ensaios biográficos, traduções e correspondência extensa.Alexandre Herculano (18101877) - Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo foi um escritor, historiador, jornalista e poeta português do período romântico.Mário de Sá-Carneiro (1890 1916) foi um escritor português, um dos grandes expoentes do modernismo em Portugal e um dos mais reconhecidos membros da Geração d'Orpheu.
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A Relíquia - Eça de Queirós
Título original: A Relíquia
Copyright da tradução © Editora Lafonte, 2018
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Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida sob quaisquer
meios existentes sem autorização por escrito dos editores.
Edição Brasileira
Direção Editorial Ethel Santaella
Coordenação Denise Gianoglio
Revisão Suely Furukawa
Projeto gráfico Eduardo Nojiri
Imagens Shutterstock
Editora Lafonte
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Eça de Queirós
A Relíquia
Prefácio do autor
Decidi compor, nos vagares deste verão, na minha quinta do Mosteiro (antigo solar dos condes de Lindoso), as memórias da minha vida – que neste século, tão consumindo pelas incertezas da inteligência e tão angustiado pelos tormentos do dinheiro, encerra, penso eu e pensa meu cunhado Crispim, uma lição lúcida e forte.
Em 1875, nas vésperas de Santo Antônio, uma desilusão de incomparável amargura abalou o meu ser; por esse tempo minha tia, D. Patrocínio das Neves, mandou-me do Campo de Santana onde morávamos, em romagem a Jerusalém; dentro dessas santas muralhas, num dia abrasado do mês de Nizam, sendo Pôncio Pilatos procurador da Judeia, Élio Lama, Legado Imperial da Síria, e J. Caifás, Sumo Pontífice, testemunhei, miraculosamente, escandalosos sucessos; depois voltei, e uma grande mudança se fez nos meus bens e na minha moral.
São estes casos, espaçados e altos numa existência de bacharel como, em campo de erva ceifada, fortes e ramalhosos sobreiros cheios de sol e murmúrio, que quero traçar, com sobriedade e com sinceridade, enquanto no meu telhado voam as andorinhas, e as moitas de cravos vermelhos perfumam o meu pomar.
Esta jornada à terra do Egito e à Palestina permanecerá sempre como a glória superior da minha carreira; e bem desejaria que dela ficasse nas letras, para a posteridade, um monumento airoso e maciço. Mas hoje, escrevendo por motivos peculiarmente espirituais, pretendi que as páginas íntimas, em que a relembro, se não assemelhassem a um Guia Pitoresco do Oriente. Por isso (apesar das solicitações da vaidade), suprimi neste manuscrito suculentas, resplandecentes narrativas de ruínas e de costumes...
De resto esse país do Evangelho, que tanto fascina a humanidade sensível, e bem menos interessante que o meu seco e paterno Alentejo; nem me parece que as terras, favorecidas por uma presença messiânica, ganhem jamais em graça ou esplendor. Nunca me foi dado percorrer os lugares santos da Índia em que o Buda viveu, arvoredos de Migadaia, outeiros de Veluvana, ou esse doce vale de Rajágria, por onde se alongavam os olhos adoráveis do Mestre perfeito, quando um fogo rebentou nos juncais, e Ele ensinou, em singela parábola, como a ignorância é uma fogueira que devora o homem, alimentada pelas enganosas sensações de vida, que os sentidos recebem das enganosas aparências do mundo. Também não visitei a caverna de Hira, nem os devotos areais entre Meca e Medina, que tantas vezes trilhou Maomé, o profeta excelente, lento e pensativo sobre o seu dromedário. Mas, desde as figueiras de Betânia até as águas caladas de Galileia, conheço bem os sítios onde habitou esse outro intermediário divino, cheio de enternecimento e de sonhos, a quem chamamos Jesus Nosso Senhor; e só neles achei bruteza, secura, sordidez, soledade e entulho.
Jerusalém é uma vila turca, com vielas andrajosas, acaçapada entre muralhas cor de lodo, e fedendo ao sol sob o badalar de sinos tristes.
O Jordão, fio de água barrento e peco que se arrasta entre areais, nem pode ser comparado a esse claro e suave Lima que lá baixo, ao fundo do Mosteiro, banha as raízes dos meus amieiros; e, todavia, vede! Estas meigas águas portuguesas não correram jamais entre os joelhos de um Messias, nem jamais as roçaram as asas dos anjos, armados e rutilantes, trazendo do céu à Terra as ameaças do Altíssimo!
Entretanto, como há espíritos insaciáveis que, lendo de uma jornada pelas terras da Escritura, anelam conhecer desde o tamanho das pedras até ao preço da cerveja, eu recomendo a obra copiosa e luminosa do meu companheiro de romagem, o alemão Topsius, doutor pela Universidade de Bonn e membro do Instituto Imperial de Escavações Históricas. São sete volumes in quarto, atochados, impressos em Leipzig, com este título fino e profundo – Jerusalém Passeada e Comentada.
Em cada página, desse sólido itinerário, o douto Topsius fala de mim, com admiração e com saudade. Denomina-me sempre o ilustre fidalgo lusitano; e a fidalguia do seu camarada, que ele faz remontar aos Barcas, enche manifestamente o erudito plebeu de delicioso orgulho. Além disso o esclarecido Topsius aproveita-me, através desses repletos volumes, para pendurar, ficticiamente, nos meus lábios e no meu crânio, dizeres e juízos ensopados de beata e babosa credulidade – que ele logo rebate e derroca com sagacidade e facúndia! Diz, por exemplo: – Diante de tal ruína, do tempo da Cruzada de Godofredo, o ilustre fidalgo lusitano pretendia que o Nosso Senhor, indo um dia com a Santa Ver...
– E logo alastra a tremenda, túrgida argumentação com que me deliu. Como, porém, as arengas que me atribui não são inferiores, em sábio chorume e arrogância teológica, as de Bossuet, eu não denunciei numa nota à Gazeta de Colônia – porque tortuoso artifício a afiada razão da Germânia se enfeita, assim, de triunfos, sobre a romba fé do Meio-Dia.
Há, porém, um ponto de Jerusalém Passeada que não posso deixar sem enérgica contestação. E quando o doutíssimo Topsius alude a dois embrulhos de papel, que me acompanharam e me ocuparam, na minha peregrinação, desde as vielas de Alexandria até as quebradas do Carmelo. Naquela forma rotunda que caracteriza a sua eloquência universitária, o Dr. Topsius diz: o ilustre fidalgo lusitano transportava ali restos dos seus antepassados, recolhidos por ele, antes de deixar o solo sacro da pátria, no seu velho solar torreado!...
Maneira de dizer singularmente falaz e censurável! Porque faz supor, a Alemanha erudita, que eu viajava pelas terras do Evangelho – trazendo embrulhados num papel pardo os ossos dos meus avós!
Nenhuma outra imputação me poderia tanto desaprazer e desconvir. Não por me denunciar à Igreja, como um profanador leviano de sepulturas domésticas; menos me pesam a mim, comendador e proprietário, as fulminações da Igreja, que as folhas secas que às vezes caem sobre o meu guarda-sol de cima de um ramo morto; nem realmente a Igreja, depois de ter embolsado os seus emolumentos por enterrar um molho de ossos, se importa que eles para sempre jazam resguardados sob a rígida paz de um mármore eterno, ou que andem chocalhados nas dobras moles de um papel pardo. Mas a afirmação de Topsius desacredita-me perante a burguesia liberal; e só da burguesia liberal, onipresente e onipotente, se alcançam, nestes tempos de semitismo e de capitalismo, as coisas boas da vida, desde os empregos nos bancos até as comendas da Conceição. Eu tenho filhos, tenho ambições. Ora, a burguesia liberal aprecia, recolhe, assimila com alacridade um cavalheiro ornado de avoengos e solares; é o vinho precioso e velho que vai apurar o vinho novo e cru; mas com razão detesta o bacharel, filho de algo, que passeie por diante dela, enfunado e teso, com as mãos carregadas de ossos de antepassados – como um sarcasmo mudo aos antepassados e aos ossos que a ela lhe faltam.
Por isso, intimo o meu douto Topsius (que, com os seus penetrantes óculos, viu formar os meus embrulhos, já na terra do Egito, já na terra de Canaã), a que na edição segunda de Jerusalém Passeada, sacudindo pudicos escrúpulos de acadêmico e estreitos desdéns de filósofo, divulgue à Alemanha científica e à Alemanha sentimental qual era o recheio que continham esses papéis pardos – tão francamente como eu o revelo aos meus concidadãos nestas páginas de repouso e de férias, onde a realidade sempre vive, ora embaraçada e tropeçando nas pesadas roupagens da História, ora mais livre e saltando sob a carapaça vistosa da farsa.
CAPÍTULO UM
O meu avô foi o Padre Rufino da Conceição, licenciado em teologia, autor de uma devota Vida de Santa Filomena, e prior da Amendoeirinha. O meu pai, afilhado da Nossa Senhora da Assunção, chamava-se Rufino da Assunção Raposo, e vivia em Évora com a minha avó, Filomena Raposo, por alcunha a Repolhuda
, doceira na Rua do Lagar dos Dízimos. O papá tinha um emprego no correio, e escrevia por gosto no Farol do Alentejo.
Em 1853, um eclesiástico ilustre, D. Gaspar de Lorena, bispo de Corazim (que é em Galileia), veio passar o São João a Évora, a casa do Cônego Pitta, onde o papá muitas vezes à noite costumava ir tocar violão. Por cortesia com os dois sacerdotes, o papá publicou no Farol uma crônica laboriosamente respigada no Pecúlio de Pregadores, felicitando Évora pela dita de abrigar nos seus muros o insigne prelado D. Gaspar, lume fulgente da Igreja, e preclaríssima torre de santidade
. O bispo de Corazim recortou este pedaço do Farol, para o meter entre as folhas do seu breviário; e tudo no papá lhe começou a agradar, até o asseio da sua roupa branca, até a graça chorosa com que ele cantava, acompanhando-se no violão, a xácara do conde Ordonho. Mas quando soube que este Rufino da Assunção, tão moreno e simpático, era o afilhado carnal do seu velho Rufino da Conceição, camarada de estudos no bom seminário de São José e nas veredas teológicas da Universidade, a sua afeição pelo papá tornou-se extremosa. Antes de partir de Évora, deu-lhe um relógio de prata; e, por influência dele, o papá, depois de arrastar alguns meses a sua madraçaria pela alfândega do Porto, como aspirante, foi nomeado, escandalosamente, diretor da alfândega de Viana.
As macieiras cobriam-se de flor, quando o papá chegou às veigas suaves de Entre-Minho-e-Lima; e logo nesse julho conheceu um cavalheiro de Lisboa, o comendador G. Godinho, que estava passando o verão com duas sobrinhas, junto ao rio, numa quinta chamada o Mosteiro, antigo solar dos condes de Lindoso. A mais velha destas senhoras, D. Maria do Patrocínio, usava óculos escuros, e vinha todas as manhãs da quinta à cidade, num burrinho, com o criado de farda, ouvir missa a Santana. A outra, D. Rosa, gordinha e trigueira, tocava harpa, sabia de cor os versos do Amor e Melancolia, e passava horas, à beira da água, entre a sombra dos amieiros, rojando o vestido branco pelas relvas, a fazer raminhos silvestres.
O papá começou a frequentar o Mosteiro. Um guarda da alfândega levava-lhe o violão; e enquanto o comendador e outro amigo da casa, o Margaride, doutor delegado, se embebiam numa partida de gamão, e D. Maria do Patrocínio rezava em cima o terço – o papá, na varanda, ao lado de D. Rosa, em frente da lua, redonda e branca sobre o rio, fazia gemer no silêncio os bordões e dizia as tristezas do conde Ordonho. Outras vezes jogava ele a partida de gamão: D. Rosa sentava-se então ao pé da Titi, com uma flor nos cabelos, um livro caído no regaço; e o papá, chocalhando os dados, sentia a carícia prometedora dos seus olhos pestanudos.
Casaram. Eu nasci numa tarde de sexta-feira de Paixão; e a mamã morreu, ao estalarem, na manhã alegre, os foguetes da Aleluia. Jaz, coberta de goivos, no cemitério de Viana, numa rua junto ao muro, úmida da sombra dos chorões, onde ela gostava de ir passear nas tardes de verão, vestida de branco, com a sua cadelinha felpuda que se chamava Traviata.
O comendador e D. Maria não voltaram ao Mosteiro. Eu cresci, tive o sarampo; o papá engordava; e o seu violão dormia, esquecido ao canto da sala, dentro de um saco de baeta verde. Num julho de grande calor, a minha criada Gervásia vestiu-me o fato pesado de veludilho preto; o papá pôs um fumo no chapéu de palha; era o luto do comendador G. Godinho, a quem o papá muitas vezes chamava, por entre dentes, malandro
.
Depois, numa noite de entrudo, o papá morreu de repente, com uma apoplexia, ao descer a escadaria de pedra da nossa casa, mascarado de urso, para ir ao baile das senhoras Macedos.
Eu fazia então sete anos; e lembro-me de ter visto, ao outro dia, no nosso pátio, uma senhora alta e gorda, com uma mantilha rica de renda negra, a soluçar diante das manchas de sangue do papá, que ninguém lavara, e já tinham secado nas lajes. À porta uma velha esperava, rezando, encolhida no seu mantéu de baetilha.
As janelas da frente da casa foram fechadas; no corredor escuro, sobre um banco, um candeeiro de latão ficou dando a sua luzinha de capela, fumarenta e mortal. Ventava e chovia. Pela vidraça da cozinha, enquanto a Mariana, choramingando, abanava o fogareiro, eu vi passar, no Largo da Senhora da Agonia, o homem que trazia às costas o caixão do papá. No alto frio do monte a capelinha da Senhora, com a sua cruz negra, parecia mais triste ainda, branca e nua entre os pinheiros, quase a sumir-se na névoa; e adiante, onde estão as rochas, gemia e rolava, sem descontinuar, um grande mar de inverno.
À noite, no quarto de engomar, a minha criada Gervásia sentou-me no chão, embrulhado num saiote. De quando em quando, rangiam no corredor as botas do João, guarda da alfândega, que andava a defumar com alfazema. A cozinheira trouxe-me uma fatia de pão de ló. Adormeci; e logo achei-me a caminhar à beira de um rio claro, onde os choupos, já muito velhos, pareciam ter uma alma e suspiravam; e ao meu lado ia andando um homem nu, com duas chagas nos pés, e duas chagas nas mãos, que era Jesus, Nosso Senhor.
Passados dias, acordaram-me, numa madrugada em que a janela do meu quarto, batida do sol, resplandecia prodigiosamente como um prenúncio de coisa santa. Ao lado da cama, um sujeito, risonho e gordo, fazia-me cócegas nos pés com ternura e chamava-me brejeirote. A Gervásia disse-me que era o Sr. Matias, que me ia levar para muito longe, para casa da tia Patrocínio; e o Sr. Matias, com a sua pitada suspensa, olhava espantado para as meias rotas que me calçara a Gervásia. Embrulharam-me no xale-manta cinzento do papá; o João, guarda da alfândega, trouxe-me ao colo até à porta da rua, onde estava uma liteira com cortinas de oleado.
Começamos então a caminhar por compridas estradas. Mesmo adormecido, eu sentia as lentas campainhas dos machos; e o Sr. Matias, em frente de mim, fazia-me de vez em quando uma festinha na cara, e dizia: Ora cá vamos
. Uma tarde, ao escurecer, paramos de repente num sítio ermo, onde havia um lamaçal; o liteireiro, furioso, praguejava, sacudindo o archote aceso. Em redor, dolente e negro, rumorejava um pinheiral. O Sr. Matias, enfiado, tirou o relógio da algibeira e escondeu-o no cano da bota.
Uma noite, atravessamos uma cidade, onde os candeeiros da rua tinham uma luz jovial, rara e brilhante como eu nunca vira, da forma de uma tulipa aberta. Na estalagem em que apeamos, o criado, chamado Gonçalves, conhecia o Sr. Matias; e depois de nos trazer os bifes, ficou familiarmente encostado à mesa, de guardanapo ao ombro, contando coisas do senhor barão, e da inglesa do senhor barão. Quando recolhíamos ao quarto, alumiados pelo Gonçalves, passou por nós, bruscamente, no corredor, uma senhora, grande e branca, com um rumor forte de sedas claras, espalhando um aroma de almíscar. Era a inglesa do senhor barão. No meu leito de ferro, desperto pelo barulho das seges, eu pensava nela, rezando Ave-Marias. Nunca roçara corpo tão belo, de um perfume tão penetrante; ela era cheia de graça, o Senhor estava com ela, e passava, bendita entre as mulheres, com um rumor de sedas claras...
Depois, partimos num grande coche, que tinha as armas do rei e rolava a direito por uma estrada lisa, ao trote forte e pesado de quatro cavalos gordos. O Sr. Matias, de chinelas nos pés e tomando a sua pitada, dizia-me, aqui e além, o nome de uma povoação aninhada em torno de uma velha igreja, na frescura de um vale. Ao entardecer, por vezes, numa encosta, as janelas de uma calma vivenda faiscavam com um fulgor de ouro novo. O coche passava; a casa ficava adormecendo entre as árvores; através dos vidros embaciados, eu via luzir a estrela de Vênus. Alta noite tocava uma corneta; e entrávamos, atroando as calçadas, numa vila adormecida, em frente do portão da estalagem, moviam-se silenciosamente lanternas mortiças. Em cima, numa sala aconchegada, com a mesa cheia de talheres, fumegavam as terrinas; os passageiros, arrepiados, bocejavam, tirando as luvas grossas de lã; e eu comia o meu caldo de galinha, estremunhado e sem vontade, ao lado do Sr. Matias, que conhecia sempre algum moço, perguntava pelo doutor delegado, ou queria saber como iam as obras da câmara.
Enfim, num domingo de manhã, estando a chuviscar, chegamos a um casarão, num largo cheio de lama. O Sr. Matias disse-me que era Lisboa; e, abafando-me no meu xale-manta, sentou-me num banco, ao fundo de uma sala úmida, onde havia bagagens e grandes balanças de ferro. Um sino lento tocava à missa; diante da porta passou uma companhia de soldados, com as armas sob as capas de oleado. Um homem carregou os nossos baús, entramos numa sege, eu adormeci sobre o ombro do Sr. Matias. Quando ele me pôs no chão, estávamos num pátio triste, lajeado de pedrinha miúda, com assentos pintados de preto; e na escada uma moça gorda cochichava com um homem de opa escarlate, que trazia ao colo o mealheiro das almas.
Era a Vicência, a criada da tia Patrocínio. O Sr. Matias subiu os degraus conversando com ela, e levando-me ternamente pela mão. Numa sala forrada de papel escuro, encontramos uma senhora muito alta, muito seca, vestida de preto, com um grilhão de ouro no peito; um lenço roxo, amarrado no queixo, caía-lhe num bioco lúgubre sobre a testa; e no fundo dessa sombra, negrejavam dois óculos defumados. Por trás dela, na parede, uma imagem de Nossa Senhora das Dores olhava para mim, com o peito trespassado de espadas.
– Esta é a Titi – disse-me o Sr. Matias. – E necessário gostar muito da Titi... É necessário dizer sempre que sim à Titi!
Lentamente, a custo, ela baixou o carão chupado e esverdinhado. Eu senti um beijo vago, de uma frialdade de pedra; e logo a Titi recuou, enojada.
– Credo, Vicência! Que horror! Acho que lhe puseram azeite no cabelo!
Assustado, com o beicinho já a tremer, ergui os olhos para ela, murmurei:
– Sim, Titi.
Então o Sr. Matias gabou o meu gênio, o meu propósito na liteira, a limpeza com que eu comia a minha sopa à mesa das estalagens.
– Está bem – rosnou a Titi secamente. – Era o que faltava, portar-se mal, sabendo o que eu faço por ele... Vá, Vicência, leve-o lá para dentro... lave-lhe essa ramela; veja se ele sabe fazer o sinal da cruz...
O Sr. Matias deu-me dois beijos repenicados. A Vicência levou-me para a cozinha.
À noite vestiram-me o meu fato de veludilho; e a Vicência, séria, de avental lavado, trouxe-me pela mão a uma sala em que pendiam cortinas de damasco escarlate, e os pés das mesas eram dourados como as colunas de um altar. A Titi estava sentada no meio do canapé, vestida de seda preta, toucada de rendas pretas, com os dedos resplandecentes de anéis. Ao lado, em cadeiras também douradas, conversavam dois eclesiásticos. Um, risonho e nédio, de cabelinho encaracolado e já branco, abriu os braços para mim, paternalmente. O outro, moreno e triste, rosnou só boas noites
. E da mesa, onde folheava um grande livro de estampas, um homenzinho, de cara rapada e colarinhos enormes, cumprimentou, atarantado, deixando escorregar a luneta do nariz.
Cada um deles vagarosamente me deu um beijo. O padre triste perguntou-me o meu nome, que eu pronunciava Tedrico. O outro, amorável, mostrando os dentes frescos, aconselhou-me que separasse as sílabas e dissesse Te-o-do-ri-co. Depois acharam-me parecido com a mamã, nos olhos. A Titi suspirou, deu louvores a Nosso Senhor de que eu não tinha nada do Raposo. E o sujeito de grandes colarinhos fechou o livro, fechou a luneta, e timidamente quis saber se eu trazia saudades de Viana. Eu murmurei, atordoado:
– Sim, Titi.
Então o padre mais idoso e nédio chegou-me para os joelhos, recomendou-me que fosse temente a Deus, quietinho em casa, sempre obediente à Titi...
– O Teodorico não tem ninguém senão a Titi... E necessário dizer sempre que sim à Titi...
Eu repeti, encolhido:
– Sim, Titi.
A Titi, severamente, mandou-me tirar o dedo da boca. Depois disse-me que voltasse para a cozinha, para a Vicência, sempre a seguir pelo corredor...
– E quando passar pelo oratório, onde está a luz e a cortina verde, ajoelhe, faça o seu sinalzinho da cruz...
Não fiz o sinal da cruz. Mas entreabri a cortina; e o oratório da Titi deslumbrou-me, prodigiosamente. Era todo revestido de seda roxa, com painéis enternecedores em caixilhos floridos, contando os trabalhos do Senhor; as rendas da toalha do altar roçavam o chão tapetado; os santos de marfim e de madeira, com auréolas lustrosas, viviam num bosque de violetas e de camélias vermelhas. A luz das velas de cera fazia brilhar duas salvas nobres de prata, encostadas à parede, em repouso, como broquéis de santidade; e erguido na sua cruz de pau-preto, sob um dossel, Nosso Senhor Jesus Cristo era todo de ouro, e reluzia.
Cheguei-me devagar até junto da almofada de veludo verde, pousada diante do altar, cavada pelos piedosos joelhos da Titi. Ergui para Jesus crucificado os meus lindos olhos negros. E fiquei pensando que no céu os anjos, os santos, Nossa Senhora e o Pai de todos, deviam ser assim, de ouro, cravejados talvez de pedras; o seu brilho formava a luz do dia; e as estrelas eram os pontos mais vivos do metal precioso, transparecendo através dos véus negros, em que os embrulhava à noite, para dormirem, o carinho beato dos homens.
Depois do chá, a Vicência foi-me deitar numa alcovinha pegada ao seu quarto. Fez-me ajoelhar em camisa, juntou-me as mãos, e ergueu-me a face para o céu. E ditou os Padre-Nossos que me cumpria rezar pela saúde da Titi, pelo repouso da mamã, e por alma de um comendador que fora muito bom, muito santo e muito rico o que se chamava Godinho.
Apenas completei nove anos, a Titi mandou-me fazer camisas, um fato de pano preto, e colocou-me, como interno, no colégio dos Isidoros, então em Santa Isabel.
Logo nas primeiras semanas liguei-me ternamente com um rapaz, Crispim, mais crescido que eu, filho da firma Teles, Crispim & Cia, donos da fábrica de fiação à Pampulha. O Crispim ajudava à missa aos domingos; e, de joelhos, com os seus cabelos compridos e louros, lembrava a suavidade de um anjo. Às vezes agarrava-me no corredor e marcava-me a face, que eu tinha feminina e macia, com beijos devoradores; à noite, na sala de estudo, à mesa onde folheávamos os sonolentos dicionários, passava-me bilhetinhos a lápis chamando-me seu idolatrado e prometendo-me caixinhas de penas de aço...
À quinta-feira era o desagradável dia de lavarmos os pés. E três vezes por semana o sebento Padre Soares vinha, de palito na boca, interrogar-nos em doutrina e contar-nos a vida do Senhor.
– Ora, depois pegaram, e levaram-no de rastos a casa de Caifás... Olá, o da pontinha do banco, quem era Caifás?... Emende! Emende adiante!... Também não! Irra, cabeçudos! Era um judeu e dos piores... Ora diz que, lá num sítio muito feio da Judeia, há uma árvore toda de espinhos, que é mesmo de arrepiar...
A sineta do recreio tocava; todos, a um tempo e de estalo, fechávamos a cartilha.
O tristonho pátio de recreio, areado com saibro, cheirava mal por causa da vizinhança das latrinas; e o regalo para os mais crescidos era tirar uma fumaça do cigarro, às escondidas, numa sala térrea onde aos domingos o mestre de dança, o velho Cavinetti, frisado e de sapatinhos decotados, nos ensinava mazurcas.
Cada mês a Vicência, de capote e lenço, me vinha buscar depois da missa para ir passar um domingo com a Titi. Isidoro Júnior, antes de eu sair, examinava-me sempre os ouvidos e as unhas; muitas vezes, mesmo na bacia dele, dava-me uma ensaboada furiosa, chamando-me baixo sebento. Depois trazia-me até a porta, fazia-me uma carícia, tratava-me do seu querido amiguinho, e mandava pela Vicência os seus respeitos à senhora D. Patrocínio das Neves.
Nós morávamos no Campo de Santana. Ao descer o Chiado, eu parava numa loja de estampas, diante do lânguido quadro de uma mulher loura, com peitos nus, recostada numa pele de tigre, e sustentando na ponta dos dedos, mais finos que os do Crispim, um pesado fio de pérolas. A claridade daquela nudez fazia-me pensar na inglesa do senhor barão; e esse aroma, que tanto me perturbara no corredor da estalagem, respirava-o outra vez, finamente espalhado, na rua