Desafios Legais de uma Sociedade Global: considerações sobre as plataformas digitais, a atividade empresarial e o impacto em novas formas de trabalho sob a perspectiva europeia e da lei portuguesa
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Sobre este e-book
A internacionalização de negócios e os desafios de uma economia em escala global fazem com que a comparação e a integração de sistemas normativos sejam úteis e oportunas. Uma visão global direcionada aos ordenamentos jurídicos existentes, de forma a deixá-los mais harmonizados, é uma necessidade em virtude das transformações sociais.
Os impactos da economia colaborativa e a transformação cultural originada pelas plataformas digitais, com o advento de práticas de co-working, co-living, partilha de transportes e de outros bens, estão mudando a dinâmica econômica outrora assentada na tradicional venda de bens e serviços.
As mudanças na economia e nos meios de produção afetam o ambiente de trabalho, assim como a eficácia dos sistemas legais que foram designados para a sua regulação. A presente obra objetiva levantar questionamentos, tornando-se um ponto de partida para pesquisas futuras acerca do Direito em uma sociedade conectada através dos meios digitais.
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Desafios Legais de uma Sociedade Global - Rafaela Câmara Silva
Parte I
A ECONOMIA COLABORATIVA E OS DESAFIOS DE REGULAÇÃO: Análise dos impactos dos modelos de negócios intermediados por plataformas digitais
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A tecnologia não pede licença, ela pede desculpa. Essa frase, de autoria desconhecida, resume a aparente dicotomia existente entre inovação e regulação, refletindo o desafio enfrentado durante o curso da existência da humanidade, esta que está longe de ser estática e que evolui por meio da mudança.
Enquanto os juristas se conformam por estarem cientes da faceta tridimensional do Direito, o qual é Fato, Valor e Norma³, sendo esta última criada com base em uma análise ou carga axiológica para regular fatos e necessidades sociais, o ritmo de adequação na seara legal é frequentemente questionado por toda a sociedade.
Uma vez que uma tecnologia surge, ou quando se modifica a forma de se fazer negócios, o fator de novidade faz com que o quadro legal em voga seja questionado. Ronald Leenes chama esse questionamento de "Flawled Law Syndrome, ou
Síndrome da Lei Falha em tradução livre para o português, que corresponderia à necessidade de se rotular uma lei ou regulação de
desatualizada ou
falha" e ao desejo de se consertar os problemas e as lacunas através da lei, o que o mesmo autor entende por solucionismo legal⁴. Leenes aponta que as empresas têm a tendência de questionar o quadro legal posto, apontando, usualmente, que ele está indevidamente restringido do ponto de vista legal ou que a legislação não é clara dentro do campo de atuação, fato este agravado em situações que envolvem novas tecnologias.
A busca por uma nova regulação para acompanhar a novidade ou a dita evolução do mercado e das atividades empresariais pode ser vista como um comportamento padrão. Há, pois, o clamor por uma regulamentação dinâmica ou flexiva que acompanhe o ambiente vivo proporcionado pelo atual contexto de proliferação tecnológica e pelo surgimento de novos modelos de negócios.
Todavia, surgem aqui questionamentos: uma nova regulação é mesmo necessária? Seriam os instrumentos regulatórios clássicos suficientes para as novas realidades? Essa discussão permeou a sociedade contemporânea, em especial com o dilema da regulação das tecnologias de informação e comunicação e com o modelo econômico da internet, na década de 1990.
Naquela altura, o juiz estadunidense Frank Easterbrook veementemente repudiava a criação de uma regulação específica para o ciberespaço ou para qualquer ramo na seara tecnológica, entendendo que isso seria tão inútil quanto criar um direito reservado para os cavalos. Para Easterbrook, o ideal seria que os juristas, em vez de se preocuparem em criar ramos específicos, focassem em disciplinas e em princípios gerais do Direito, criando um quadro geral normativo seguro para a realização de negócios, sem, entretanto, interferir nas atividades, de modo que os que possuem conhecimento específico acerca da essência das novas tecnologias, isto é, os personagens envolvidos nas inovações, pudessem trazer as regras específicas para aquilo que têm conhecimento e profundidade, numa espécie de autorregulação do mercado.⁵
Desde a época em que Easterbrook apontou essa ideia, percebeu-se que não seria tão simples assim. Não em virtude das tecnologias em si, mas da complexidade das interações sociais e das mudanças trazidas a partir dessa, que ultrapassam a seara dos personagens principais envolvidos.
Neste caso, mais do que criar uma Lei dos Cavalos
⁶, ou Lei da Internet, em virtude da existência do ciberespaço, o que se verifica desde então é a necessidade de regulamentação das novas facetas de antigos direitos, ultrapassando o alcance dos princípios gerais para se esgotar os problemas: a exemplo da revolução do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) como um desdobramento do direito à privacidade a partir do mercado de dados pessoais gerado no âmbito cibernético⁷.
Os parágrafos iniciais do presente trabalho trazem a conjuntura geral da dificuldade de se regular a inovação, de modo a trazer um pano de fundo para a discussão abordada no contexto da Economia Colaborativa. Nas páginas seguintes, o que se irá demonstrar é que os modelos de negócio com intervenção de plataformas digitais que surgiram na primeira década dos anos 2000 devem ser regulados de forma própria, inerente à sua peculiaridade, mas não necessariamente através de uma lei análoga à Lei dos Cavalos.
Tudo começou com uma ideia simples: e se fosse possível pedir uma viagem a partir do telemóvel?
é assim que a empresa Uber apresenta o começo de sua história.⁸ Quando se depararam com o problema de não encontrar um táxi à noite na cidade de Paris, em 2008, e tiveram a ideia daquilo que, mais tarde, viria ser a Uber, os seus fundadores não imaginavam que o seu futuro negócio iria mudar a forma de realização de grande parte da atividade empresarial realizada no século XXI, isto é, que seu negócio iria se tornar o pioneiro de um novo modelo de negócios a ser seguido não somente no âmbito do transporte, mas também de alojamento, entrega ou prestação de basicamente qualquer tipo de serviço que se possa imaginar.
Entende-se o conceito de modelo de negócios como o processo através do qual uma organização cria e entrega valor aos seus clientes, fornecedores e parceiros específicos com base em sua proposta de valor e forma de rendimento. Analisa-se, então, como uma empresa cria valor e a forma como esse valor não somente é capturado, mas distribuído, dentro do ecossistema da empresa, para estabelecer um modelo específico⁹.
A utilização de plataformas eletrônicas acessíveis através de meios digitais, como computadores ou dispositivos móveis, com o objetivo de conectar pares (pessoas ou empresas) e de utilizar, de forma compartilhada, bens ou serviços foi o modelo de negócios que passou a existir.
O efeito disruptivo trazido por esse modelo foi a divisão dos custos de transação e a utilização de um bem, o que o torna mais acessível aos consumidores.¹⁰ Não obstante, o modelo de negócios de economia de partilha está longe de ser representado unicamente por uma faceta de negócios, a exemplo do Uber ou do Airbnb¹¹.
A busca pela definição do fenômeno advindo com esse novo modelo econômico ainda é objeto de discussão, e mais de 10 anos após o surgimento da ideia que deu origem ao modelo de negócios intermediado por uma plataforma digital, ainda não há uniformidade de regulação sobre as atividades.
Em verdade, não há também uniformidade na nomenclatura do fenômeno subjacente à criação da referida empresa. Economia de Plataforma, Economia Colaborativa, Economia Compartilhada, Economia de Partilha, Economia de Pares, Economia a Pedido, Mercados de Plataforma de Pares, Economia do Biscate, Consumo Colaborativo, Capitalismo Participativo, Sharing Economy e Gig Economy são alguns dos nomes frequentemente utilizados para se referir ao mesmo fenômeno. Para fins de padronização, adota-se, na presente pesquisa, o termo Economia Colaborativa para refletir o fenômeno, respeitando a nomenclatura adotada pela Resolução do Parlamento Europeu, de 15 de junho de 2017, sobre as plataformas em linha e o Mercado Único Digital (2016/2276(INI))¹².
A Economia Colaborativa é a atual fase de evolução da economia e da sociedade que é pautada/moldada por tecnologias digitais. As mudanças da forma de propriedade, a posse de coisas para uso pessoal, as moedas físicas e os trabalhos fixos e assalariados estão dando lugar para a posse compartilhada, o câmbio digital, as moedas virtuais e o trabalho flexível e sob demanda.
O conceito de coletividade ou de multidão (the crowd) e as transações de Consumidor para Consumidor (C2C ou P2P, do inglês peer-to-peer), isto é, entre indivíduos, estão crescendo vertiginosamente, substituindo grande parte das relações B2C (business to consumer, tradicionais, de empresas para o consumidor). Em uma primeira análise, isso parece significar a diminuição de uma economia protagonizada por corporações.¹³
O papel cada vez mais significativo das plataformas em que essas transações são realizadas, porém, faz com que essa primeira impressão seja revista. A ampla definição de Economia Colaborativa faz com que ela seja aplicável a um enorme leque de atividades, que precisam ser definidas e delimitadas.
Aurelién Acquier e Valentina Carbone fazem uma divisão objetiva dos quatro tipos de atividades da Economia Colaborativa, que se diversificam entre as que surgem de uma coletividade (crowd funded) e as que seguem o modelo peer-to-peer, bem como as que têm/produzem valor econômico ou as que atuam sem fins lucrativos. Seus nomes são: commoners, mission-driven platforms, shared infrastructure providers e matchmakers¹⁴.
Ainda sem tradução oficial para o português, é possível, através de uma livre tradução, adaptar essas classificações para: coletivas comuns, plataformas impulsionadas por uma causa, provedores de infraestrutura compartilhada e, por fim, plataformas intermediárias.
As atividades coletivas comuns (commoners), a exemplo da Wikipédia, têm uma lógica dominante de partilhar o acesso à informação, fomentando a aprendizagem coletiva, o acesso público e a cultura do faça você mesmo
, sem um fim lucrativo ou econômico. Nesse tipo de iniciativa, é possível enxergar a atuação do fator colaborativo do fenômeno da Economia de Partilha por se tratar de uma atividade que depende da atuação de uma coletividade para existir. O fator social está na essência de sua prática, e o seu valor é criado por e para uma comunidade, através de uma cultura de trocas e de compartilhamento.
Já as plataformas impulsionadas por uma causa (mission-driven platforms), como o Couchsurfing¹⁵, têm uma lógica dominante de troca, permuta e doação. Sua atuação se dá através da intermediação entre indivíduos, com o objetivo de promover uma causa social, estando o fator social na essência de sua prática, sem o envolvimento de transações econômicas e com a difusão de valores sociais, a exemplo do aumento do networking entre indivíduos, da solidariedade e da redução do desperdício a partir do compartilhamento de bens e da construção de uma comunidade.
Por outro lado, as atividades provedoras de infraestrutura compartilhada (shared infrastructure providers) são iniciativas que monetizam o acesso a recursos e a propriedades estratégicas. Com uma lógica dominante de aluguel por uso ou de filiação e associação para acesso, elas operam com uma lógica B2C, isto é, business-to-consumer, na qual os provedores podem lucrar com uma infraestrutura específica de sua propriedade, e os indivíduos e os outros profissionais podem usá-las para realizar determinado projeto, eliminando os custos de aquisição e de manutenção. Um exemplo desse tipo de plataforma é a TechShop¹⁶, que disponibilizou, entre 2006 e 2017, na Califórnia, um espaço com máquinas e ferramentas para a fabricação de objetos por indivíduos e por empreendedores que acionaram a plataforma.¹⁷
Comparando esse último com os dois modelos apresentados anteriormente, é possível notar a mudança para um objetivo económico mais visível, com os conceitos de compartilhamento e de colaboração, no sentido social das palavras, tornando-se periféricos seja para o provedor, que vai lucrar com o uso por outrem de sua iniciativa, seja pelos indivíduos contratantes, que diminuem o custo de transação na realização de uma atividade. Na mesma esteira, é possível destacar as bicicletas e os patinetes de aluguel disponíveis em basicamente todas as grandes capitais como alternativas de transporte.¹⁸
Por fim, o quarto e último modelo é o dos intermediários (matchmakers), a exemplo do Uber, do BlaBlaCar e do Airbnb. Em um momento inicial, é possível definir este tipo de iniciativa como plataformas com fins comerciais e lucrativos, que intermedeiam a relação entre indivíduos para possibilitar transações baseadas em conceitos do mercado.
A lógica dominante aqui é o aluguel entre indivíduos (P2P), em uma relação de troca consumidor-consumidor intermediada pela plataforma. A ideia é a redução de custos de transação para os indivíduos, seja para os consumidores que buscam a atividade de transporte ou de alojamento, nos casos citados, seja para os que disponibilizam seu tempo, habilidade e bens em busca de monetização e de rentabilidade para um recurso que, em outro contexto, estaria subutilizado. As plataformas ganham com a viabilização da troca e com a garantia de confiabilidade no serviço prestado e contratado, recebendo, em contrapartida, um percentual lucrativo pelo intermédio.
É essencial que se tenha uma divisão bem estabelecida dos modelos de negócio da Economia Colaborativa, de forma a se analisar as particularidades de cada atividade de forma objetiva, observando as externalidades e os custos sociais de cada uma delas. Apesar de estarem inseridas no contexto de um mesmo fenômeno, as diferenças de cada uma devem ser ressaltadas, de forma a medir o seu impacto na sociedade e a necessidade de regulação específica.
Ainda que façam parte, em volume significativo, da Economia Colaborativa, a pesquisa ora feita não se propõe a analisar os desafios regulatórios dos três primeiros tipos de iniciativa previamente relatados. O recorte metodológico feito aqui refere-se aos desafios regulatórios das atividades intermediadas por plataformas digitais, dentro do conceito de intermediários exposto anteriormente.
Na esteira do indicado por Vanessa Katz¹⁹, a literatura tem classificado a Economia Colaborativa como uma inovação disruptiva
, associando-a a produtos, serviços e modelos de negócios que recombinam velhas tecnologias para estabelecer novos mercados e que, portanto, rompem com os agentes econômicos incumbentes.
Todavia, a interação por compartilhamento não é novidade na interação humana. Atividades como trocas, caronas e empréstimo de carros, de dinheiro e de mão de obra sempre existiram. A mudança de cenário está na troca de experiências e de serviços mediada por dinheiro.
A Revolução Industrial, que fez com que emergissem a produção e a distribuição em larga escala, aconteceu há pouco mais de 200 anos; antes desse período, um grande percentual do intercâmbio econômico se dava através da troca peer-to-peer, entre indivíduos.
Na virada do século XX, quase metade da força de trabalho americana era autônoma, e somente na década de 60 esse número reduziu para menos de 15%, em contraposição à mão de obra empregada. Analisando esses dados, Arun Sundararajan afirma que, em algum ponto, as tecnologias digitais parecem estar levando a sociedade de volta a comportamentos de partilha, de autoempregabilidade e a outras formas de comunidade, assim como no passado.²⁰
A partir dessa análise, surge uma premissa reflexiva de que a Economia Compartilhada não é