Introdução à Análise Argumentativa - teoria e prática. 2ª edição revista e ampliada
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Introdução à Análise Argumentativa - teoria e prática. 2ª edição revista e ampliada - Marcus Sacrini
Prefácio à segunda edição
Este livro foi gestado no início da década de 2010 e publicado, em sua primeira edição, em 2016. Desde então tem servido como um manual introdutório em vários cursos da área de Humanidades. Nele, apresento uma visão sistemática dos argumentos e das práticas argumentativas que possa servir tanto para estudos acadêmicos quanto para o entendimento e a participação em discussões argumentadas nos mais variados contextos sociais. O emprego do livro em sala de aula, as sugestões de colegas e o estudo continuado da bibliografia referente à análise argumentativa permitiram reconhecer a importância de desenvolvimentos mais pormenorizados de alguns temas, bem como de ajustes na exposição de outros. Esta segunda edição apresenta uma revisão cuidadosa de todos os capítulos, e não somente no que tange ao estilo expositivo. Detalhamentos conceituais significativos foram acrescentados no correr da obra, e, em alguns casos, reestruturações completas de capítulos foram propostas. Além disso, novos exercícios, e suas respectivas correções, foram adicionados. Leitores da primeira edição do livro encontrarão tópicos não recobertos naquela versão e abordagens renovadas de muitos temas ali presentes. Destaco, a seguir, somente as grandes modificações constitutivas da segunda edição:
• Exposição desenvolvida do papel das sentenças não assertivas nos argumentos (capítulo 1);
• Aprofundamento da análise dos tipos de sentença e de seus componentes (capítulo 1);
• Reformulação ampla da exposição sobre definições (capítulo 2);
• Nova apresentação das noções de dedutividade e indutividade, com impacto no modo de avaliar os argumentos (capítulo 3);
• Inclusão de uma nova seção com sugestões para diagramar argumentos complexos (capítulo 5);
• Unificação das avaliações inferencial e sentencial em um só capítulo; discussão detalhada dos critérios para a avaliação das premissas (capítulo 6);
• Apresentação introdutória do método da dedução natural (capítulo 7);
• Detalhamento tanto das noções de condições necessárias e suficientes quanto dos métodos de Mill (capítulo 8);
• Reformulação ampla do capítulo 9, que passa a incluir como tema as formas de argumentação incoerente e os vieses cognitivos;
• Caracterização pormenorizada das controvérsias argumentativas em contraste com disputas (capítulos 10 e 11);
• Detalhamento da noção de agir racional à luz da ideia de responsividade a razões (Epílogo).
Muitos leitores da primeira edição fizeram sugestões que colaboraram para esta nova versão, e sou grato a todos. Em particular, agradeço aos professores Antônio David, Denílson Cordeiro e Saulo de Freitas Araújo por observações críticas detalhadas ao texto. Espero que, com todas as modificações da segunda edição, este livro ofereça contribuições ainda mais abrangentes para a formação crítica dos leitores.
Introdução
Este livro tem por base vários cursos de graduação que ministrei no departamento de filosofia da Universidade de São Paulo. Buscava, nesses cursos, oferecer aos alunos ferramentas interpretativas por meio das quais a compreensão dos textos filosóficos avançasse para além daquilo que uma leitura ingênua ou mesmo um simples resumo forneceriam. Em geral, a formação acadêmica brasileira em filosofia enfatiza a leitura de autores clássicos, cujas doutrinas os estudantes devem reconhecer em seus traços gerais. Para que sedimentem um entendimento razoável das posições filosóficas desses autores, os estudantes, assim se supõe, já devem possuir habilidades refinadas de leitura e análise que os capacitam para tanto. Contudo, sem o exercício explícito de técnicas específicas de reconstrução e interpretação de textos, não se deve esperar que o alunado vá além da aplicação, por vezes irrefletida, de esquemas espontâneos de análise, os quais muitas vezes são insuficientes para capturar as finuras conceituais das posições filosóficas estudadas. Sem tematizar quais as habilidades efetivamente requeridas para a devida compreensão dessas posições, não se saberá se esses esquemas espontâneos de compreensão são mesmo suficientes, e os estudantes arriscam-se a passar pela formação acadêmica com grandes deficiências técnicas, porque nunca tiveram a chance de reconhecer e aperfeiçoar, metodicamente, seus esquemas de leitura e análise.
Decerto, essas dificuldades não se limitam ao estudo de obras filosóficas. Textos teóricos das mais diferentes áreas, quaisquer que sejam seus formatos (artigo, capítulo, manual etc.), exigem formas de análise que excedem em muito os modos ingênuos de leitura. Em outro livro, propus um método de fichamento por etapas que permite explicitar diferentes níveis de organização do texto estudado: inicialmente cabe dividir as grandes partes temáticas; em seguida, reconhecer as sucessivas tarefas lógicas pelas quais os temas são desenvolvidos no interior dessas partes; por fim, traçar considerações sintéticas sobre o movimento expositivo global por meio de três noções-chave: problema, tese ou posição e argumentação.¹ Ao ganhar habilidade na escrita de fichas desse tipo, normalmente já se consegue ler com um bom nível de compreensão textos teóricos de grande complexidade. Entretanto, particularmente quanto ao item final da ficha sintética, a argumentação, há uma série de aprofundamentos que exigem, por si sós, uma abordagem autônoma. É exatamente o que este livro vem oferecer. Dado algum treino de leitura segundo nosso método de fichas, os estudantes conseguem reconhecer os amplos movimentos expositivos de textos teóricos e os principais conceitos aí introduzidos, bem como localizar as teses centrais defendidas. Entretanto, nesse tipo de leitura, faltam técnicas para entender de que forma as teses são legitimadas e para avaliar se essa legitimação foi bem-sucedida. Desse modo, deixa-se de lado um aspecto essencial dos textos teóricos: os argumentos, momentos expositivos em que as teses apresentadas são efetivamente justificadas. Em particular, parece-me que um dos traços que permite reconhecer o discurso filosófico no correr dos tempos é o caráter argumentado da defesa das teses apresentadas. Um discurso filosófico elabora uma posição acerca de problemas conceitualmente muito amplos e que não aceitam uma solução empírica simples. O que marca a defesa filosófica de tal posição não é um apelo a preferências pessoais ou a autoridades instituídas, e sim a construção de uma justificativa racional, ou seja, a apresentação de razões que buscam garantir a correção da posição defendida. Sem pretender uma caracterização geral da filosofia, insisto apenas em que o entendimento dessa sustentação racional e sua avaliação exigem análises bastante específicas, que extrapolam o valioso trabalho de reconstrução da estrutura expositiva global do texto.
Não se trata de reduzir a filosofia ou os discursos teóricos em geral à argumentação stricto sensu, visto que há outros aspectos expressivos, não necessariamente argumentativos, que contribuem para constituir as posições defendidas. Além disso, importa reconhecer que se argumenta em muitos contextos que não o filosófico ou o científico. Dessa maneira, ao menos parte das técnicas argumentativas exigidas para a compreensão de textos filosóficos e científicos desenvolve habilidades críticas cuja aplicabilidade vai bem além de estudos altamente especializados. Neste livro, apresentarei a argumentação em seu caráter de atividade discursiva ampla, isto é, passível de ser exercida em muitos contextos, e não só naquele das discussões filosóficas acadêmicas. Nesse sentido geral, a argumentação é uma prática social de defesa de teses ou posições não evidentes por meio de justificativas racionais. Essa defesa normalmente envolve uma confrontação lógica entre posições rivais, o que ocorre em diversos tipos de debates. O principal instrumento para a progressão das argumentações, assim entendidas, são os argumentos, estruturas discursivas que buscam oferecer razões para teses não imediatamente óbvias. Neste livro, buscarei esclarecer o que são argumentos, quais são seus componentes, seus pressupostos, bem como algumas de suas formas mais comuns. Não me aprofundarei em uma discussão teórica desses temas. Mantenho o espírito dos cursos em que me baseei para escrever esta obra, nos quais ensinava procedimentos que qualificassem os alunos a compreender mais finamente o discurso filosófico. Assim, vou expor vários tópicos voltados ao reconhecimento, à reconstrução e à avaliação de argumentos, os quais serão fixados por meio de exercícios apresentados ao final dos capítulos. Espero, dessa maneira, que os leitores sedimentem as aptidões básicas de compreensão e produção de discursos argumentativos.
Na maior parte do livro, a análise vai centrar-se nos argumentos isolados, isto é, tomados como produtos de processos discursivos muito mais amplos, os debates, nos quais as argumentações ocorrem. Os dois capítulos finais versam justamente sobre aspectos centrais dessas discussões argumentativas entendidas como ocasiões para a sustentação de posições, amiúde em contraste com posições alheias. A argumentação será abordada, então, como um tipo de processo, do qual os argumentos são os produtos, passíveis (conforme já terá sido visto na primeira parte da obra) de análise autônoma. Do ponto de vista técnico, importa, quanto a esses capítulos finais, aprender a reconhecer quais são os tipos de controvérsias, quais as condições para o seu exercício de modo racionalmente produtivo, quais os movimentos argumentativos constituintes da sua dinâmica e como seus resultados devem ser avaliados.
Cabe ressaltar que esses temas gerais (a estrutura dos argumentos e os debates em que são usados) alcançam domínios muito mais extensos que aqueles do campo temático da filosofia, no interior do qual este livro foi gestado. Os tópicos abordados no correr dos capítulos não interessam só a estudantes de filosofia, uma vez que poderiam ser ensinados em vários cursos acadêmicos. Que os argumentos tenham tais estruturas, que os testes avaliativos de sua eficácia sejam esse e aquele, é algo que serve a especialistas de várias formações, tais como: juristas, jornalistas, administradores, políticos, cientistas etc. É verdade que a participação em discussões ligadas às áreas de atuação desses profissionais exige níveis consideráveis de conhecimento especializado. Em um júri, promotores e advogados devem conhecer bem os códigos legais vigentes para construir a defesa ou a acusação de um réu. Em um colóquio científico, os participantes devem conhecer os dados e as metodologias específicas da disciplina sobre a qual as discussões ocorrem. De qualquer modo, independentemente do conteúdo particular das discussões, conhecer e usar bem as estruturas argumentativas tornará mais convincente o posicionamento dos participantes nesses debates especializados.
Além disso, é inegável que a argumentação, principalmente em seu caráter de prática discursiva, é uma atividade facilmente reconhecível fora do domínio acadêmico. Longe de ser algum tipo de exercício especializado, a argumentação está presente em diversas situações do convívio social, de maneira que conhecer bem as técnicas de reconstrução e avaliação de argumentos capacita os interessados a nelas agir mais lúcida e eficientemente. Considerem os seguintes exemplos:
• diversos meios de comunicação promovem debates ou oferecem espaços para que o público expresse sua posição e discuta um tópico;
• em época de eleições governamentais, os candidatos discutem entre si, tentando exibir propostas que sirvam como razões para receber os votos. Por sua vez, os eleitores devem saber pesar os prós e contras das propostas apresentadas, se almejam votar de modo responsável;
• em assembleias ou reuniões de grupos variados, é comum tentar convencer os colegas acerca da importância de uma certa questão ou acerca de qual curso de ação seguir;
• negociações dos mais variados tipos exigem análises meticulosas dos dados disponíveis e seu emprego cuidadoso em tentativas de conciliar interesses diversos e, por vezes, opostos;
• fóruns de discussão on-line estão abertos a contribuições que auxiliem os posicionamentos ali sugeridos a avançar produtivamente.
Essas são só algumas situações em que pessoas com as mais diversas formações culturais e profissionais se engajam em discussões argumentativas. Sem dúvida, cada uma delas envolve particularidades procedimentais e de interações que exigem um aprendizado específico. Em todo caso, nelas há núcleos argumentativos similares, os quais podem ser estudados sob uma perspectiva teórica una. Neste livro, discutirei os componentes gerais dos argumentos e das discussões argumentativas, e espero capacitar os leitores a reconhecer e avaliar os argumentos com que se defrontem, bem como a participar produtivamente das discussões que lhes interessem, no sentido de saber propor argumentos convincentes, evitar falácias, responder a objeções, lançar críticas, entre outros procedimentos discursivos marcantes da argumentação. De um ponto de vista global, o objetivo do livro é oferecer recursos analíticos para a compreensão de argumentos e discussões racionais concretas, isto é, com as quais os leitores podem, de fato, se envolver conforme suas obrigações profissionais ou suas preocupações pessoais e civis. Não pretendo desenvolver, aqui, análises históricas sobre a argumentação, nem fixar-me em questões teóricas de lógica. A ênfase está na aquisição de técnicas que contribuam efetivamente para um ganho no desempenho voltado quer para a interpretação e avaliação, quer mesmo para a criação de discursos argumentados nas situações cabíveis.
Em relação a esse aspecto criativo
, vale salientar que a análise argumentativa não se limita a capturar e escrutinizar discursos alheios, mas pode ser sedimentada como habilidade privilegiada para interpretar as situações vividas, formar crenças sobre os mais variados estados de coisas mundanos e tomar decisões acerca de cursos de ação a seguir e mesmo acerca de valores a assumir. Os exercícios pacientes de reconstrução e avaliação de argumentos tendem a densificar o próprio modo de pensar, que passa, cada vez mais habitualmente, a clarificar as próprias crenças e a buscar razões para sustentá-las, em vez de obstinar-se com posições dogmáticas e repetir erros de raciocínio. O exercício da análise argumentativa consolida, destarte, uma autorregulação racional com um forte potencial transformador da vida prática.²
Cabe ainda expor uma última característica nuclear da análise argumentativa aqui proposta. Os recursos analíticos que a compõem são extraídos, em grande medida, do domínio conhecido como lógica informal, um campo de estudos constituído por combinações de diferentes abordagens que almejam distinguir e estudar, em seus aspectos nucleares e relações, os argumentos e as situações argumentativas reais, e não apenas seus esquemas abstratos formalizados.³ Nesse sentido, a análise argumentativa tem relativa autonomia quanto aos métodos desenvolvidos pela lógica formal ou simbólica. Com efeito, há um debate bastante complexo acerca das relações entre lógica formal e informal, e não é caso de retomá-lo em detalhes.⁴ Importa somente atestar a importância de um estudo não formalizado dos argumentos. Inicialmente, deve-se reconhecer que a lógica informal não vai se limitar a considerar os conteúdos particulares de cada inferência, deixando todos os aspectos referentes à forma dos argumentos para a lógica simbólica. Não é nada disso; a lógica informal almeja fixar normas e procedimentos gerais para o reconhecimento e a avaliação dos discursos argumentativos; ela se constitui como uma abordagem teórica sistemática, tal qual a lógica formal. E, nessa busca por sistematicidade e generalidade, esse tipo de análise aborda os aspectos relativos à forma dos argumentos. Não há, assim, mútua exclusão entre lógica formal e informal. Um exemplo notável disso é a noção de validade das inferências argumentativas, a qual, em grande medida, está ligada às formas dos argumentos e, mesmo assim, tem bastante pertinência para a análise informal dos discursos argumentativos. Não se deve, portanto, pensar que há uma divisão de tarefas entre lógica formal e informal que corresponderia, respectivamente, ao estudo da forma e do conteúdo das estruturas argumentativas. Na verdade, o cerne da distinção entre os dois tipos de lógica se encontra no emprego de linguagens simbólicas artificialmente construídas. Na lógica informal, tenta-se clarificar as estruturas argumentativas tais como formuladas em linguagem natural, isto é, nos idiomas em que as pessoas se comunicam habitualmente, sem que seja preciso traduzir essas estruturas para uma linguagem artificial altamente especializada, somente na qual seria, então, possível explicitar as relações inferenciais ali vigentes. A lógica informal considera os argumentos tais como empregados na linguagem comum, o que implica levar em conta seus contextos de uso, os critérios de aceitabilidade e relevância ali em vigor, a inserção dos argumentos em amplas controvérsias etc. Diferentemente disso, a lógica formal, tal como estabelecida no final do século XIX e início do século XX, abstrai todo conteúdo material das sentenças para desvelar a sua pura forma proposicional e investigar diferentes tipos de encadeamentos passíveis de se obter entre elas, sem precisar referir-se às circunstâncias concretas de seu uso. Enfatiza-se, nesse estudo, a microestrutura lógica das sentenças, isto é, a sua composição por conectivos, quantificadores e outros conceitos puramente formais. Por meio disso, é possível, por exemplo, antecipar com grande precisão as possibilidades de encadeamentos válidos para certos tipos de formas proposicionais. Por sua vez, a análise informal dos argumentos recorre a métodos não claramente mecanizáveis e que não portam tamanha força preditiva; ainda assim, tal análise revela aspectos da argumentação normalmente não explorados pelo estudo das formas proposicionais e suas conexões abstraídas de todo conteúdo situacional.
Não é o caso de apontar uma incomensurabilidade temática entre lógica formal e análise não formalizada dos argumentos, como se alguns dos tópicos mais explorados nessa última (tais como a noção de aceitabilidade das premissas e a de sentenças implícitas) jamais pudessem ser abordados de modo puramente formal. Com efeito, não é impossível alterar alguns parâmetros da lógica formal clássica, para que ela abarque os temas acentuados pela análise não formalizada.⁵ Em todo caso, permanece uma diferença metodológica geral, há pouco mencionada. Não é o caso, em uma análise argumentativa não formalizada, de traduzir as sentenças em linguagem natural para uma linguagem simbólica criada artificialmente. De fato, haverá, na análise argumentativa, esquematizações dos argumentos a partir da forma lógica de algumas sentenças, além de diagramações do movimento inferencial estudado. Mas trata-se aí somente de recursos para tornar intuitivos aspectos estruturais dos argumentos analisados, recursos que não excluem a consideração de outros aspectos concretos dos argumentos, o que é bem diferente de uma tradução para uma linguagem simbólica artificial. Desse modo, o que marca a especificidade da análise argumentativa, em contraste com a análise puramente formal dos argumentos, é a centralidade de aspectos por assim dizer materiais
da argumentação, os quais são tematizados conjuntamente com os aspectos ligados à forma lógica das estruturas argumentativas, e não simplesmente suspensos ou abstraídos para que só esses aspectos formais sejam explorados por meio de linguagens artificiais. Exemplos desses aspectos materiais ou contextuais são: os dados relevantes para determinar a aceitabilidade das premissas, o caráter apropriado ou inapropriado da linguagem em que o arguidor se comunica, tendo em vista o público ao qual se dirige, os pressupostos factuais ou conceituais que operam como premissas implícitas, as diretivas intelectuais para a exposição e avaliação de argumentos, a dinâmica das controvérsias em que os argumentos estão inseridos etc. Nenhum desses temas parece ser exaurível por um estudo das formas proposicionais e seus tipos de encadeamentos, conquanto, conforme afirmado acima, não sejam completamente estranhos a tal estudo. Isso quer dizer que a análise argumentativa não formalizada circunscreve um âmbito de atuação mais vasto do que aquele comumente explorado pela lógica formal (ao menos em sua versão clássica), e o explora por meios próprios, não redutíveis àqueles da análise simbólica. Em todo caso, eu insisto, não há oposição entre essas perspectivas teóricas, mas, antes, possibilidades de complementação. Saber técnicas de lógica formal certamente contribui para apreender com clareza as relações inferenciais entre as sentenças, além de permitir uma exploração aprofundada da sintaxe lógica interna às sentenças. Meu ponto é somente que essas técnicas não esgotam a complexidade nem da argumentação enquanto prática social por meio da qual se tenta justificar teses não óbvias, nem dos argumentos como instrumento discursivo central para que as discussões racionais avancem em contextos concretos. A análise argumentativa, por sua vez, familiariza os interessados com alguns aspectos constitutivos da complexidade da atividade argumentativa que normalmente não são abarcados pela lógica formal.
É imprescindível salientar que o campo de estudos da análise argumentativa é extenso e comporta divergências de interpretação, o que, sem dúvida, motivou-me a preparar esta obra. Afinal, se um só dos livros publicados sobre o tema se confirmasse como uma abordagem abrangente e definitiva, bastaria consultá-lo. Porém, há tal riqueza conceitual inerente aos temas e técnicas da análise argumentativa, que o seu estudo comporta vários caminhos exploratórios, nem todos plenamente compatíveis. Tendo me dedicado, por um longo período, a estudar livros e artigos dessa área, proponho uma abordagem que julgo pertinente ao menos para salientar alguns tópicos nucleares referentes à argumentação e para descrever procedimentos que auxiliem em seu entendimento. É claro que minha exposição se serve amplamente de resultados já estabelecidos em importantes textos sobre o assunto, os quais serão devidamente mencionados no transcorrer dos capítulos. Entretanto, em seu traçado geral, o conteúdo deste livro não é redutível a nenhum deles, e reflete escolhas teóricas e desenvolvimentos temáticos próprios. Não pretendo, com isso, esgotar os tópicos abordados, e sim apresentar uma concepção de análise argumentativa (entre outras possíveis) que seja capaz de fortalecer as capacidades de compreensão e mesmo de produção de argumentos, além de servir como guia para o engajamento produtivo em discussões racionais.
Capítulo 1
Estrutura básica e uso dos argumentos
Neste capítulo inicial, vamos estudar, em termos bem gerais, o que são argumentos, quais seus componentes e seus principais contextos de uso. Ao expor com detalhe a função de justificativa lógica marcante dos argumentos, esperamos, na seção final, deixar clara a distinção entre argumentar e explicar.
1) Estrutura e função dos argumentos A estrutura geral dos argumentos
A noção de argumento não é unívoca, mas utilizada, com sentidos bastante específicos, em áreas como linguística, matemática, ciência da computação (por exemplo, em certos contextos técnicos, entende-se por argumentos os termos ou as expressões sobre os quais opera uma função lógica). É importante, então, delimitar, de maneira precisa, como esse tópico central será compreendido no correr deste livro. Defino argumentos como estruturas discursivas por meio das quais se justifica uma tese que, por si só, não é evidente. Essas estruturas discursivas são normalmente empregadas em situações sociais, tais como investigações, para buscar compreender eventos dos mais variados tipos, negociações, tomadas de posição práticas etc. Conquanto sejam situações bastante diferentes quanto às suas finalidades e quanto às etapas de sua ordenação, nelas se podem reconhecer núcleos argumentativos típicos em que se busca estabelecer racionalmente um ponto controverso. Como se compõem tais núcleos? De início, consideremos que os argumentos são constituídos de, ao menos, três elementos:
• Uma conclusão, isto é, uma tese não evidente que exige suporte lógico para se mostrar aceitável;
• Uma ou mais premissas, que funcionam como justificativa ou razão para aceitar a conclusão;
• Uma inferência, quer dizer, um tipo de passagem lógica entre a(s) premissa(s) e a conclusão.
Essa descrição é tão ampla, que permite mesmo incluir sequências de imagens como exemplos de argumentos. De fato, os métodos da análise argumentativa já têm sido aplicados em estudos críticos acerca de propagandas que veiculam conteúdos de grande impacto sensorial a fim de convencer um determinado público para a compra ou usufruto dos produtos ou serviços anunciados.⁶ Neste livro, não explorarei esse tema. Vou me centrar em explorar os argumentos construídos em linguagem verbal e escrita, ou seja, tomados como conjunto de sentenças, das quais, conforme mencionado, pretende-se que uma delas (a conclusão) seja sustentada logicamente pelas demais (as premissas), que oferecem razões para a sua aceitação. E o laço inferencial que realiza a justificação pode ser ao menos de dois tipos, dedutivo ou indutivo, tema que será explorado no terceiro capítulo.
Vale notar que há uma diferença ontológica
, por assim dizer, entre os componentes dos argumentos. As premissas e a conclusão são sentenças, isto é, conjuntos ordenados de palavras reprodutíveis, grafáveis e, assim, capturáveis concretamente. Já a inferência não é algo concreto no mesmo sentido, que se acrescentaria ao lado das sentenças para a elaboração dos argumentos. A inferência é o próprio processo de conectar, pela leitura ou enunciação, as premissas e a conclusão. Ela não é, então, um dado material tal como as sentenças; ela não se exibe, ao menos não imediatamente, como algo percebido no mesmo nível delas. É preciso realizar a passagem entre as sentenças para produzi-la. É verdade que a inferência pode ser tematizada como um objeto, e então analisada em termos dos seus graus de força ou de suas falhas, mas isso exige outras habilidades que a mera atestação das sentenças constituintes de um argumento. Daí que uma capacidade inicial fomentada pela análise argumentativa seja reconhecer as inferências. Afinal, trata-se do elemento não imediatamente perceptível dos argumentos, cuja apreensão exige um tipo de compreensão lógica que muitas vezes não é nítida para quem nunca se dedicou a algum tipo de estudo sobre os argumentos. É possível se deixar convencer por um argumento sem entender exatamente qual é a força inferencial ali em ação e como ela opera, uma vez que o laço lógico nem sempre é visível ou audível do mesmo modo como ocorre com as sentenças.⁷
A inferência é passível de diferentes tipos de análise. É legítimo, por exemplo, tentar investigá-la como uma espécie de ato que ocorre no interior
dos sujeitos que a efetuam. Essa perspectiva psicológica não será desenvolvida neste livro. Pretendo abordar a inferência em seu aspecto lógico, como um tipo de conexão entre as sentenças de um trecho discursivo. Além disso, deve ficar claro que a relação inferencial em pauta é aquela por meio da qual se justifica uma sentença com base em outras sentenças. Essa limitação de escopo é importante, já que são vários os tipos de relação entre sentenças por meio de inferências, e não pretendo explorá-los de modo exaustivo. Aliás, como veremos no final do capítulo, nem sempre é fácil distinguir a relação inferencial argumentativa daquela explicativa.
Uma precisão terminológica importante acerca das inferências argumentativas deve ser mencionada. Alguns autores distinguem entre relações de consequência lógica (em vigor nos argumentos dedutivos) e relações de inferência (em vigor somente nos argumentos indutivos). Não seguirei essa distinção. A explicitação da relação entre sentenças em um argumento dedutivo como consequência lógica
supõe a análise formal desse último, isto é, a análise de relações derivadas da forma proposicional purificada de referências a contextos concretos de uso. Não é esse ponto de vista totalmente formal, assim como não era aquele de uma investigação psicológica
dos argumentos, que será desenvolvido no correr desta obra. Expor as relações de consequência lógica é uma tarefa que se concentra, por assim dizer, na contraparte abstrata da justificação e explicação
, conforme a expressão de David Sherry.⁸ Interessa, nesse tipo de análise, exibir relações válidas entre puras formas proposicionais, o que, muitas vezes, leva a resultados bem distantes das práticas argumentativas em situações cotidianas. Desse ponto de vista, a explicitação das relações de consequência lógica não é identificável à análise das estruturas argumentativas utilizadas em discussões para justificar conclusões duvidosas. Parece, então, preferível nomear o aspecto relacional das sentenças de inferência
, e não de consequência lógica
. Distinguimos, dessa maneira, um elemento do argumento concreto, o qual, por sua vez, cumpre analisar em todos os seus aspectos constituintes, sem que o exame se limite à sua forma abstrata. Em suma, englobarei, por meio da noção de inferência, tanto as relações de consequência dedutivas quanto as passagens lógicas indutivas.
Movimento inferencial e expressão discursiva
Notemos, agora, a relativa independência do movimento inferencial quanto à expressão dos discursos argumentativos em linguagem natural. Com efeito, uma característica marcante das inferências argumentativas é a sua unidirecionalidade: o movimento inferencial argumentativo sempre parte das premissas para chegar até a conclusão. Esta é a passagem lógica constituinte dos argumentos: as premissas são assumidas e, com base nelas, espera-se sustentar racionalmente a conclusão. É somente por meio dessa ordem que os argumentos operam; as inferências sempre são lançadas a partir das premissas para a conclusão em vista. Ocorre que nem sempre as formulações argumentativas em linguagem natural respeitam essa ordem lógica. Consideremos alguns exemplos para exibir essa disparidade:
• É claro que não vai chover hoje. Há poucas nuvens no céu. E nenhuma previsão meteorológica considerou essa possibilidade.
Nesse caso, a primeira sentença é defendida com base naquilo que se veicula nas outras duas. A conclusão é, dessa maneira, apresentada já de início, antes mesmo de que as razões para sustentá-la sejam formuladas, o que é bastante comum nos discursos argumentativos cotidianos. No entanto, é somente por meio dessas razões que a conclusão se estabelece de modo legítimo. Assim, o movimento inferencial desse argumento opera de forma invertida quanto à sua formulação discursiva.
Vejamos outro exemplo:
• Você tem poeira vermelha nos sapatos. Isso quer dizer, então, que você foi aos Correios agora pela manhã, pois eles estão reconstruindo a calçada em frente da agência, e a poeira resultante da reforma é bem avermelhada. Não há, obviamente, nenhum outro lugar em reforma próximo daqui ao qual você pudesse ter ido.
Nesse exemplo, a conclusão (você foi aos Correios agora pela manhã
) não está nem no início nem no fim do discurso. Ela se encontra entre outras sentenças que funcionam como premissas para sustentá-la.
Como se vê, nos discursos argumentativos em linguagem natural, nem sempre há uma sequência óbvia entre premissas e conclusão, o que, por vezes, torna bastante confusa a compreensão das relações lógicas ali vigentes. Esse é um dos motivos basilares para se dedicar ao estudo da análise argumentativa. É comum que a ordenação das sentenças em linguagem natural não exprima a sequência inferencial ali operante, e, para compreender e posteriormente avaliar com cuidado essa última, alguns recursos técnicos se fazem imprescindíveis.
Função geral dos argumentos
Nesta seção, proponho explorar minimamente o âmbito de uso dos argumentos, o que permitirá lançar nova luz aos seus elementos estruturais. O principal papel desempenhado pelos argumentos é oferecer sustentação racional para uma tese, isto é, uma sentença que carece de demonstração ou sustentação. As sentenças que figuram como conclusões não são autoevidentes; elas não se atestam, por si próprias, de modo imediato. Conforme o exemplo acima, se simplesmente se anuncia que não choverá hoje, sem nada acrescentar a essa afirmação, ela soa como uma previsão temerária. A meteorologia lida com circunstâncias incertas, e afirmações sobre o tempo exigem o apelo a algum tipo de dado ou evidência que ofereça suporte para o que se quer defender. O âmbito das previsões meteorológicas é, assim, exemplar para caracterizar um aspecto constituinte dos argumentos. A sua construção e veiculação se aplica a contextos em que há dúvida, incerteza, ou em que as opiniões e crenças sustentadas são passíveis de aperfeiçoamento mediante discussões ou considerações de novos dados. Em suma, é preciso argumentar quando uma sentença não se impõe de modo imediato e incontestável, seja porque não se sabe exatamente qual é a situação que se confronta, seja porque não se aceita de modo pacífico certo entendimento da situação em pauta. Assim, as teses que atuam como conclusões em argumentos exprimem opiniões, crenças, sugestões, hipóteses que não são, ao menos no contexto de discussão em vista, evidentes. Aquilo que é passível de figurar como conclusão de um argumento não se impõe pacificamente como certo ou seguro, mas requer algum tipo de sustentação que garanta a sua aceitabilidade. A argumentação não é senão um meio para oferecer sustentação a sentenças desse tipo.
Esse meio se opõe a vários outros comumente empregados para formar opiniões e tomar decisões. Uma pessoa pode simplesmente agir por impulso, conforme o sentimento que lhe domine a consciência em determinado momento, ou pode tomar teses por verdadeiras tão somente porque assim lhe agrada ou porque essas teses parecem concordar com outras crenças prévias, desobrigando-se de uma reflexão mais pormenorizada e regozijando-se em uma atmosfera acolhedora de familiaridade. Também pode seguir cegamente o que os tutores
espirituais e políticos ditam como certo, sem se preocupar em verificar por métodos confiáveis a correção de suas afirmações. Enfim, uma pessoa pode simplesmente aderir ao senso comum veiculado pelos grupos sociais com os quais se identifica, repetindo bordões e atitudes que simplesmente herdou por aprendizado implícito ou doutrinação. Todos esses meios estão sujeitos a diversos tipos de falhas de raciocínio e vieses cognitivos (alguns dos quais serão estudados no capítulo 9) e, de modo mais grave, não fomentam uma regulação reflexiva que permitisse o reconhecimento de tais erros e fornecesse recursos para evitá-los e corrigir os resultados por eles deturpados. Por sua vez, conquanto não seja infalível, a argumentação, quando bem praticada, permite avaliar o tema em pauta à luz de toda evidência relevante disponível, o que favorece formar crenças e tomar decisões que levam em conta, de modo muito mais satisfatório, os componentes dos estados de coisas visados.
Ainda que se confirme como um meio poderoso de conhecer e agir em contextos incertos, a argumentação tem claros limites intrínsecos. Devemos reconhecer, por exemplo, que muitos contextos cotidianos não estão abertos, senão excepcionalmente, a discussões racionais. Os relatos de percepção imediata, as normas básicas da linguagem, os fatos históricos amplamente reconhecidos, certas regras de convívio social tradicionalmente praticadas, nada disso aparece, na maior parte das vezes, como duvidoso ou não evidente. Pelo contrário, nossa vida comum se desenrola sobre um amplo horizonte de obviedades não questionadas, sobre as quais construímos nossos projetos pessoais e coletivos. Normalmente, esse horizonte de sentido não é problematizado, e sim pressuposto para interações sociais complexas, dentre as quais se destacam as discussões argumentadas, em que, por exemplo, se examinam acontecimentos inesperados, confrontam-se crenças incompatíveis, apresentam-se propostas de ações com riscos dos mais diferentes tipos etc.
As ocasiões para argumentar não precisam, contudo, ser esporádicas ou desconexas. Em muitas sociedades, instituem-se práticas comunicativas especializadas em argumentos, as quais requerem uma formação específica. Assim, por exemplo, os sistemas jurídicos preveem que defensores e acusadores tentem estabelecer racionalmente a aceitabilidade de suas teses acerca dos casos julgados; articulistas de jornais tentam exprimir opiniões fundamentadas acerca dos tópicos analisados, cientistas e acadêmicos em geral devem oferecer suporte lógico às hipóteses interpretativas desenvolvidas em seu trabalho etc. Vale notar que, em alguns contextos especializados de discussão argumentativa, tais como aqueles filosóficos e científicos, é cabível problematizar o próprio horizonte habitualmente tomado como óbvio na maior parte das situações vividas. Nesses contextos de discussão, aquilo que comumente não é tema para a argumentação cotidiana, e sim pressuposto para o seu funcionamento, pode ser questionado e tornar-se, então, passível de debates bem específicos.⁹ Mesmo nesses casos, para discutir a aceitabilidade de um componente do horizonte de sentido de nossa inserção no mundo, devem-se assumir outros componentes como não problemáticos. Parece improvável que se pudesse pôr em dúvida simultaneamente todos os elementos do horizonte de sentido do nosso viver (a percepção, a linguagem, as relações sociais, a história etc.). Afinal, se não há uma base minimamente aceitável da qual as considerações devem partir, então não haveria nem mesmo critérios para distinguir o certo do duvidoso, o aceitável do criticável.
Não cabe aqui enfrentar desafios céticos extremos, mas salientar que somente cabe argumentar sobre temas que não são imediatamente tomados como óbvios. Ademais, para que a argumentação opere corretamente, é preciso pressupor um campo de dados iniciais, tomados, ainda que apenas contextualmente, como certos ou ao menos aceitáveis. Esse tópico nos permite qualificar outro elemento estrutural dos argumentos, a saber, as premissas. Vimos que as conclusões são, normalmente, sentenças que exprimem um conteúdo não evidente ou, ao menos, não estabelecido de modo definitivo. Ora, no caso das premissas, o que se espera é praticamente o contrário. As premissas básicas são os pontos de partida dos argumentos e devem, para tanto, ser consideradas como verdadeiras ou, ao menos, como aceitáveis para aqueles envolvidos na situação argumentativa em questão. Em suma, as premissas devem exprimir dados seguros, que não estejam sujeitos à discussão naquele contexto particular. Comumente, esses dados referem-se àquilo que factualmente compõe o mundo conhecido, ou às crenças gerais consideradas razoáveis sobre o tema discutido, bem como àquelas que exprimem os critérios de avaliação para o domínio da discussão em curso. Por isso eu insisti em que argumentar é uma interação social complexa que supõe um horizonte de certezas
não problematizadas. É a partir desse horizonte composto por diferentes camadas temáticas que a argumentação progride. As premissas devem ser tomadas como minimamente seguras para que, a partir delas, seja possível sustentar racionalmente aquilo que figura como não evidente, a saber, a conclusão em vista.
É importante precisar que o horizonte de sentido apresentado acima é não só um catálogo de temas genéricos, mas também envolve capacidades subjetivas assumidas pelos participantes de uma discussão racional (o uso correto da linguagem, as normas lógicas de construção de argumentos etc.). No geral, esses componentes vigoram como pressuposto partilhado pelos participantes de uma discussão. Somente quando há dúvida sobre até onde se estende esse amplo horizonte ou sobre elementos específicos que o constituem, ele é, então, explicitamente discutido. Entretanto, vale notar que não é preciso que certo tema ou certa capacidade sejam assumidos tacitamente para ser incluídos no horizonte partilhado. Aliás, nem mesmo é preciso crer em uma sentença para tomá-la como parte desse campo de partida para a argumentação. Muitas vezes, em uma discussão, os arguidores convencionam que certos temas e procedimentos serão admitidos pelos participantes, não porque todos os tomem como certos e acima de qualquer dúvida, mas simplesmente porque essa convenção acerca do que deve vigorar como pressuposto facilitará o desenrolar do debate. Uma vez que não haja desacordo em relação ao que pode valer como dado inicial, as premissas básicas são, então, formuladas e, a partir delas, as teses serão discutidas.
Voltaremos a essa característica estrutural da argumentação (desenrolar-se sobre um horizonte composto por temas e capacidades tomados como óbvios) no décimo capítulo, ao discutir com detalhes algumas condições amplas para a condução produtiva de controvérsias. Por ora, quero acentuar que argumentar é uma atividade humana entre muitas outras, por meio das quais nos inserimos de maneira mais ou menos hábil nas situações vividas. Decorre daqui que, como qualquer outra atividade humana, argumentar se pratica de modo pertinente ou não. Assim como nem todas as dificuldades enfrentadas no dia a dia são solucionáveis por meio da dança ou de um discurso em língua estrangeira, da mesma forma é cabível argumentar somente em certos contextos específicos, a saber, aqueles em que se reconhece o caráter incerto das teses em questão e se partilha de pontos de partida temáticos e procedimentais para, então, discutir que tipo de aceitabilidade se consegue atribuir às conclusões em vista. Os contextos argumentativos são então aqueles em que algumas teses não se impõem e nos quais cabe usar estratégias de convencimento para que elas sejam aceitas ou recusadas.10 Desse modo, podemos refinar nossa definição inicial e reconhecer que os argumentos são estruturas linguísticas por meio das quais se tenta garantir a aceitabilidade racional de teses não evidentes por si sós a todos os interessados em uma questão debatida – e esses interessados devem partilhar de certos pressupostos que permitam o desenrolar da discussão de maneira satisfatória para todos.
O público da argumentação
As estratégias argumentativas são adotadas para tornar uma tese aceitável para quem não a toma imediatamente assim. O argumento é direcionado para um determinado público, que deve ser convencido da aceitabilidade da tese em questão.¹¹ A função de convencimento ou persuasão racional normalmente associada à argumentação se cumpre, em grande medida, pelo emprego satisfatório da estrutura justificacional dos argumentos. Ao apresentar boas razões em favor de uma tese, um arguidor espera que o público em vista reconheça tal tese como racionalmente aceitável. No entanto, nem sempre é fácil determinar quem é o público visado pela argumentação e mesmo, em sentido geral, qual seu papel nas situações argumentativas. Por vezes, trata-se de um conjunto delimitado de pessoas, confrontado diretamente pelos arguidores. Esse é o caso dos jurados em um tribunal do júri, os quais devem decidir se os argumentos da defesa ou da acusação foram os mais convincentes. Outras vezes, o público é composto de um enorme número de pessoas, com o qual os arguidores dificilmente terão algum contato direto, embora esperem que suas propostas e as razões apresentadas para sustentá-las sejam convincentes para a maior porção possível desse público. Esse é o caso de amplas campanhas eleitorais veiculadas nos mais distantes rincões de um país. No limite, há argumentos que têm por público a humanidade inteira, tal como ocorre em discussões filosóficas voltadas a temas que virtualmente interessam a todos, tais como o exercício da liberdade, o sentido da existência, as formas éticas de agir etc.
Em algumas situações, o público pouco interfere ativamente na construção da argumentação, conquanto decida acerca do grau de convencimento das posições apresentadas. É o que ocorre em uma campanha eleitoral, por exemplo. Porém, nem todas as discussões argumentativas ocorrem sob esse modelo segundo o qual os arguidores devem buscar a adesão de um público exterior à própria discussão. Considerem os casos em que ao menos parte do público almejado pelos argumentos são os próprios interlocutores. É assim, por exemplo, que novas posições filosóficas são propostas para se contrapor a concepções tradicionais. Essas novas posições comumente envolvem fortes objeções a posições anteriores, objeções que são lançadas para os partidários das concepções desafiadas. Espera-se, nesse caso, que os adversários a quem os argumentos foram endereçados tomem parte em uma discussão acerca dos tópicos em vista. O público aqui almejado não aguarda passivamente ser convencido, mas exerce o papel ativo de contrapor novos argumentos e objeções em uma controvérsia construída mutuamente.¹²
Apresentarei, no décimo capítulo, uma abordagem um pouco mais sistemática sobre o papel do público, e isso por meio da distinção entre debates aplicados e acadêmicos. Por ora, apenas gostaria de salientar que, em sentido geral, o público visado pelo arguidor (seja ele particular ou universal, seja atual ou virtual) deve contar como referência para a própria elaboração dos argumentos. Em outras palavras, o público não é um conjunto de pessoas quaisquer que casualmente se tornam receptores do argumento. O público é o destinatário do argumento, isto é, o conjunto de pessoas para as quais o argumento foi intencionalmente construído.¹³ Dessa maneira, ao analisar seriamente para quem seu argumento é dirigido, o arguidor tem a chance de ponderar sobre o tipo de evidência e o tipo de linguagem apropriados conforme as particularidades socioculturais do público. Trata-se, neste sentido, de servir-se dos recursos lógicos e expressivos para tornar os argumentos claros segundo as capacidades e os interesses daquelas pessoas para as quais eles são dirigidos. Além disso, por meio da análise do público almejado, o arguidor tem a chance de antecipar quais seriam as principais objeções à posição que tenta construir, derivadas, talvez, da filiação de parte da audiência a posições alternativas ou mesmo da possível dificuldade de entender tal e tal ponto de sua posição. Desse modo, conhecer e respeitar as particularidades do público é um excelente exercício crítico para o fortalecimento dos próprios argumentos.
Cabe esclarecer que o convencimento racional de um determinado público por argumentos não significa necessariamente gerar uma mudança radical de ponto de vista, como se o convencimento sempre implicasse fazer com que a audiência ou os oponentes em um debate aceitassem algo de que discordavam ou mesmo que desconheciam totalmente. Não se pode ignorar casos em que os argumentos são usados somente para reforçar posições já assentadas ou, em sentido mais geral, para aperfeiçoar as razões de aceitação de certa tese ou ponto de vista já admitidos como corretos pelo público. Ademais, em muitas situações, os argumentos servem não para defender uma posição, mas somente para questionar teses já aceitas, lançando dúvidas sobre sua correção. Não se argumenta aí para persuadir o público a aceitar uma nova tese, e sim para oferecer razões que legitimem duvidar de uma posição até então considerada como não problemática naquele contexto. Diante desses casos, seria excessivamente restritivo entender o convencimento racional obtido por argumentos como uma espécie de conversão ou alteração radical das crenças ou atitudes. Convencer nem sempre implica converter. De fato, isso ocorre em certas circunstâncias, mas trata-se somente de uma das possibilidades resultantes das interações argumentativas.¹⁴
Por fim, vale notar, em relação à função geral dos argumentos, que aquilo que marca o discurso argumentativo é a intenção ou a tentativa de oferecer justificativa racional para uma tese, e não o fato de que essa intenção tenha efetivamente sido cumprida. Afinal de contas, é inegável que há argumentos ruins, uma vez que obviamente não basta lançar razões quaisquer para que se justifique uma tese duvidosa. A justificação bem-cumprida depende das virtudes lógico-expressivas do argumento em questão: se os laços inferenciais são fortes, se as premissas são bem-formuladas, aceitáveis etc. No correr deste livro, aprenderemos a avaliar a correção global dos argumentos. Entretanto, é importante acentuar que o âmbito de aplicação dos argumentos é aquele em que cabe justificar racionalmente uma tese ou um ponto de vista. Os argumentos são produtos linguísticos que se propõem a cumprir essa tarefa, ainda que nem todos a realizem satisfatoriamente. Essa menção é importante para entender um procedimento expositivo recorrente neste livro: os leitores devem notar que, em muitos momentos, não há uma preocupação em oferecer exemplos de argumentos efetivamente convincentes. Uma vez que se trata, muitas vezes, somente de tornar visíveis os componentes estruturais e as técnicas de análise correspondentes, recorrer-se-á frequentemente a argumentos não tão bons globalmente, porém mais simples de serem apresentados e discutidos.
As sentenças argumentativas
Passemos a estudar em detalhes as unidades constitutivas dos argumentos, as sentenças. Inicialmente, cabe notar que as sentenças resultam de atos linguísticos, os quais, quando respeitam as convenções semânticas e as regras sintáticas, veiculam conteúdos significativos articulados proposicionalmente, tendo em vista finalidades muito díspares. Por meio de sentenças, é possível descrever estados de coisas, criar histórias, fazer previsões, perguntas, promessas, pedidos, exprimir sentimentos, xingar etc. Quais desses atos linguísticos são argumentativos? Não cabe propor uma inverossímil lista dos tipos de sentenças que seriam intrinsecamente argumentativas. Antes, importa destacar as sentenças enquanto cumprem as funções argumentativas: veicular uma tese não autoevidente e oferecer suporte para a aceitação racional dessa tese. É a aptidão de certos atos de linguagem para as funções de premissas e conclusão que qualifica as respectivas sentenças a tomar parte em argumentos. De fato, esse critério praticamente exclui alguns arranjos de sentenças na composição de argumentos. Por exemplo, normalmente empregamos perguntas quando temos dúvida e não sabemos aquilo que é questionado. Nesse uso, é improvável que perguntas possam funcionar como premissas em argumentos, já que é esperado que essas últimas apresentem dados seguros por meio dos quais se almeja justificar a conclusão em pauta. Considerem o seguinte caso:
• Já são quatro horas da manhã? É permitido ficar na rua até essa hora? Então, você deve ir para casa.
Não é óbvio, de imediato, se essas sentenças formam um argumento. É verdade que a terceira delas parece veicular uma conclusão, mas não se entende de que modo as perguntas ofereceriam sustentação racional para ela. Dúvidas acerca do horário e da regra para circulação de pessoas não são capazes de sustentar, por si sós, a recomendação final. No entanto, se reformulamos as sentenças iniciais de modo assertivo, é possível vislumbrar a intenção argumentativa no trecho:
• São quatro horas da manhã. Aqui não é permitido ficar na rua até essa hora. Então você deve ir para casa.
Nessa versão, descrições do horário e das regras civis em determinada localidade atuam como justificativa lógica; elas são evidências (pretensamente verdadeiras) que sustentam de modo racional a conclusão. Como se vê, por vezes as perguntas veiculam afirmações implícitas, formuladas de modo interrogativo por razões de estilo ou mesmo por ironia. Trata-se das questões retóricas. Nesse caso, não estamos diante de uma ignorância acerca do tema em vista, mas apenas de um uso estilístico da interrogação para afirmar determinado tópico. Em tais circunstâncias, perguntas podem atuar como premissas, conquanto, como veremos mais à frente, seja indicado, na análise de argumentos, convertê-las em sentenças afirmativas, tal como feito logo acima.
Acabamos de sugerir que vários tipos de sentença podem cumprir as funções argumentativas. Agora, quais sentenças entrarão efetivamente em argumentos depende do tipo de questão controversa a exigir o convencimento racional. De modo geral, as sentenças assertivas têm grande destaque em argumentações. Por sentenças assertivas, entendo aquelas às quais cabe atribuir um valor de verdade, ou seja, sentenças que são passíveis (se não factualmente, ao menos idealmente) de reconhecimento como verdadeiras ou falsas. Há diversos tipos de atos linguísticos em que nos servimos de asserções compreendidas neste sentido: descrições de entes ou de fatos naturais, históricos ou psicológicos, resoluções de problemas, propostas teóricas, avaliações, formulação de princípios, apresentação de informações etc. Sentenças desse tipo são principalmente usadas como premissas em argumentos. Afinal, por meio delas, formulam-se dados factuais (supostamente) bem-estabelecidos e que servirão como pontos de partida para sustentar a conclusão em vista. Além disso, também são muito comuns argumentos em que uma asserção exerce o papel de conclusão. Nesse caso, o valor de verdade da asserção não pode ser constatado imediatamente, e espera-se que ele possa ser inferido com base nas premissas.
Cabe insistir, entretanto, em que nem todo argumento é construído apenas com asserções.¹⁵ Outros atos linguísticos e as respectivas sentenças que os veiculam são centrais para tipos específicos de controvérsias e mesmo, amiúde, para complementar controvérsias sobre estados de coisas capturáveis por asserções. É o caso, por exemplo, das definições, sentenças muito importantes para delimitar o alcance da questão em pauta e mesmo para precisar ou estipular o sentido dos principais termos empregados nas demais sentenças do argumento. Nem sempre são atribuíveis valores de verdade às definições; por vezes, elas se deixam qualificar em termos de sua abrangência ou pertinência, mas não são nem verdadeiras nem falsas.¹⁶
Outras sentenças não assertivas e que ainda assim têm papel central em discussões éticas ou morais (não distinguimos esses termos aqui) e deliberativas são as que veiculam prescrições valorativas e as que exprimem sentimentos e desejos. Por exemplo, para algumas concepções éticas de matriz subjetivista, os juízos morais não caracterizam fatos mundanos, mas reportam atitudes ou sentimentos.¹⁷ Essas concepções parecem esvaziar quaisquer controvérsias acerca da correção moral de um ato, ao reduzir o posicionamento ético dos agentes a relatos de atitudes sempre compatíveis. O juízo X é moral
significaria apenas O agente A aprova X
; se outra pessoa afirma X é imoral
, simplesmente isso equivaleria a O agente B desaprova X
. As valorações éticas não passariam de preferências pessoais, e não haveria como mostrar racionalmente que alguém defende uma posição ética errada. A moralidade seria impenetrável ao convencimento racional, e as alterações de posicionamento nesse domínio remeteriam tão somente a manipulações dos sentimentos individuais (por exemplo, para uma pessoa julgar X como imoral, ela deve ser persuadida a associar sentimentos e atitudes negativas a X). Ora, essas consequências não são necessárias. Princípios que envolvem um caráter prescritivo e, desse modo, escapam à atribuição de valores de verdade podem tomar parte em argumentos voltados a questões éticas.¹⁸ Por exemplo:
1 – Dediquemo-nos a atividades que aumentem o bem-estar.
2 – O estudo aumenta o bem-estar.
\ 3 – Dediquemo-nos ao estudo.
Como se vê, escolhas éticas, em sentido amplo, não precisam ser baseadas em manipulações afetivas, e podem ser construídas de modo argumentativo, isto é, por meio do oferecimento de razões. No exemplo acima, tanto o princípio geral de partida (1) quanto a conclusão (3) não são asserções, mas recomendações, e, ainda assim, o sentido global da inferência é argumentativo. A mesma situação ocorre com sentenças que exprimem sentimentos e comumente estão ligadas ao que as pessoas querem, ou seja, a desejos. Por meio de sentenças desse tipo, é possível mesmo recuperar o caráter controverso dos posicionamentos morais, para além de meros relatos de atitudes individuais isoladas e indiferentes entre si, tal como parecia decorrer de algumas concepções subjetivistas. Por exemplo, duas pessoas podem concordar sobre todos os fatos empíricos acerca da questão do aborto e discordar acerca do que desejam em relação a tal tópico. A pessoa B defende sua legalização, enquanto C defende sua criminalização. Dessa maneira, há um desacordo efetivo acerca do que fazer, desacordo construído com base na expressão de desejos e sentimentos. Eis exemplos desse ponto:
1 – Tomara que aquilo que é contrário à vida humana seja proibido por lei.
2 – O aborto é contrário à vida humana.
\ 3 – Tomara que o aborto seja proibido por lei.
1 – Tomara que aquilo que favorece a autonomia das mulheres seja permitido por lei.
2 – O aborto favorece a autonomia das mulheres.
\ 3 – Tomara que o aborto seja permitido por lei.
Sem dúvida, esses argumentos são simplificadores e nem de longe refletem a complexidade das posições pró e contra a legalização do aborto. Todavia, interessa simplesmente mostrar que se trata de argumentos, isto é, que a questão do aborto enquanto posicionamento moral com consequências deliberativas se deixa tratar de modo argumentativo, mesmo que envolva sentenças que exprimem desejos.
Cabe salientar que essa variedade de atos linguísticos em função argumentativa é particularmente visível no papel de conclusão.¹⁹ Afinal, não é incomum que se busquem defender racionalmente ordens, recomendações, e mesmo atos performativos,²⁰ os quais não são, então, apresentados de modo gratuito ou autoritário, mas sustentados por razões. Eis alguns exemplos:
• Está nevando aqui e há pessoas doentes na sala. Além disso, há risco de que animais selvagens entrem na casa. Portanto, feche a porta.
• Você cumpriu o acordo corretamente: levou os pacotes para além da fronteira. Você também sabe respeitar hierarquia. É uma pessoa leal e confiável. Portanto, eu prometo que você será recompensado.
Nesses casos, as conclusões são, respectivamente, uma ordem e uma promessa. Não se trata de asserções e, em todo caso, pretende-se justificá-las por outras sentenças que oferecem suporte lógico para sua aceitação.
Como vimos logo acima, questões veiculadoras de uma dúvida efetiva dificilmente podem cumprir o papel de premissas. No entanto, não é absurdo que atos linguísticos que exprimam dúvidas acerca de um tema atuem como conclusão de um argumento. Até aqui, salientamos que as conclusões são sentenças não autoevidentes e que carecem de suporte lógico para se tornar aceitáveis. O oferecimento de razões supriria, então, a falta de evidência imediata da conclusão. Por vezes, porém, é possível argumentar não para atribuir inferencialmente a evidência que falta a uma sentença, mas para justificar essa ausência de evidência, de maneira a tornar aceitável que o tema em vista é mesmo problemático e parece ainda não haver uma tese satisfatória que o resolva, por assim dizer. Argumenta-se, nesses casos, para mostrar que há razões para duvidar, para justificar a suspensão do juízo sobre um estado de coisas em relação ao qual não haveria ainda uma tese propositiva razoável. Eis um exemplo, também bastante simplificado:
• Dizem que existe um Deus, criador do universo, que é onipotente e bondoso. Se o criador fosse mesmo bondoso, então não deixaria suas criaturas sofrerem. E há tanto sofrimento no mundo... Além disso, se o criador fosse mesmo onipotente, poderia facilmente encerrar esse sofrimento. E, no entanto, o sofrimento continua... Parece, assim, haver razões suficientes para duvidar: existe um Deus criador bondoso e onipotente?
Nesse argumento, a conclusão não é uma tese cuja ausência de evidência imediata é, por assim dizer, corrigida pela inferência lógica. Não se quer provar que um estado de coisas é ou não é assim. Simplesmente se argumenta em favor da dúvida acerca de determinado estado de coisas, em favor do reconhecimento de que a tese em vista é mesmo não evidente e que o melhor a fazer, ao menos no momento, é suspender o juízo acerca de sua verdade ou falsidade. Já se argumentou muito em prol da existência de Deus e também já houve vários argumentos ateístas contra a sua existência. O exemplo acima se filia a uma tradição diferente: busca-se tão somente defender que é legítimo ter dúvidas acerca da existência de um ser assim concebido (onipotente e bondoso), sem que isso signifique provar a sua não existência.
Em suma, muitos são os atos linguísticos que podem tomar parte em argumentos. É principalmente a natureza da questão controversa em vista o fator decisivo para que sentenças de um ou outro do tipo cumpram as funções argumentativas. Sem dúvida, as asserções têm grande destaque na construção de argumentos, mas seria errôneo postular que a argumentação se limita a tentar estabelecer a verdade ou falsidade de proposições. É mesmo cabível distinguir um subcampo particularmente rico de estudos, aquele da argumentação prática ou retórica (conforme o uso desse último termo por alguns autores²¹), do qual fazem parte argumentos que buscam justificar escolhas, deliberações ou mesmo ordens, como exemplificado há pouco. Não vamos avançar de modo detalhado nessa direção.²² No décimo capítulo, apresentarei uma classificação das controvérsias para organizar melhor o entendimento das espécies de sentenças empregadas nos argumentos. Além do tipo da questão controversa, vimos, logo acima, que a forma de abordagem argumentativa também importa para os tipos de sentenças empregadas. O argumento pode ter uma abordagem propositiva e veicular como conclusão uma tese cujo valor de verdade se pretende estabelecer inferencialmente; ou pode ter uma abordagem crítica, em que não se busca defender uma tese que descreva o estado de coisas em