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Fiódor Dostoiévski - Volume 4
Fiódor Dostoiévski - Volume 4
Fiódor Dostoiévski - Volume 4
E-book2.489 páginas32 horas

Fiódor Dostoiévski - Volume 4

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Sobre este e-book

Ao lado de Cervantes e Shakespeare, Dostoiévski é considerado um dos maiores escritores da literatura mundial. Nascido em Moscou em 1821, ficou órfão de mãe e, em seguida, de pai, ainda adolescente. Teve uma vida atribulada, que incluiu luta em engajamento político, prisão com trabalhos forçados na Sibéria, suas frequentes dívidas com jogos. Faleceu em São Petersburgo em 1881. Fiódor Dostoiévski – Obra Completa, em 4 volumes, é composta de 31 livros, entre os quais suas grandes obras-primas: Crime e castigo, O idiota e Irmãos Karamázovi. Todos os livros foram traduzidos por Natália Nunes e Oscar Mendes, que tiveram a supervisão de Vassili Glukhovski e Vera Neverova, com orientação do Instituto de Linguística da Academia de Ciências da então URSS. Os textos são acompanhados de inúmeras notas explicativas de rodapé e uma centena de desenhos do artista Luis de Ben.Os 4 volumes apresentam um grande painel da obra de Dostoiévski, que trabalhou sempre com temas, circunstâncias e personagens que vivem seus conflitos de toda natureza: pessoais, sentimentais, psicológicos, éticos, políticos, financeiros, sociais, religiosos e metafísicos. Por essa abrangente temática, ele permanece até hoje como uma das referências literárias.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de set. de 2019
ISBN9786589645269
Fiódor Dostoiévski - Volume 4
Autor

Fiódor Dostoiévski

Escritor y filósofo, Dostoievski estudió Ingeniería Militar, pero en cuanto quedó huérfano renunció a su carrera en el ejército para dedicarse a la literatura. Comenzó traduciendo a Honoré de Balzac o Friedrich Schiller, y con apenas veinte años dio a luz sus primeros títulos, entre ellos nuestro Noches blancas, muy influido por la corriente romántica. Poco después, en 1849, fue arrestado por participar en un círculo progresista y condenado a pasar cinco largos años de trabajos forzados en Siberia. Tanto este como otros tristes sucesos en su peripecia vital dejaron huella en sus títulos más destacados: Memorias del subsuelo, Crimen y castigo, El idiota... Murió a causa del enfisema pulmonar que padecía, poco después de publicar su última obra maestra: Los hermanos Karamazov.

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    Fiódor Dostoiévski - Volume 4 - Fiódor Dostoiévski

    Fiódor Dostoiévski

    Obra completa

    volume 4

    Romances da maturidade

    Outros escritos

    Versão anotada de

    Natália Nunes

    e

    Oscar Mendes

    Acompanhada de extenso documentário gráfico e ilustrada com uma centena de desenhos de

    Luis de Ben

    ***

    1a edição digital

    São Paulo

    2022

    Biblioteca

    Universal

    FIÓDOR DOSTOIÉVSKI

    Obra completa em quatro volumes

    volume 1

    Introdução geral

    Novelas da juventude

    Pobre gente / O duplo / O senhor Prokhártchin / A dona da casa / Um romance em nove cartas / Polzunkov / Coração frágil / O ladrão honrado / A mulher alheia e o homem debaixo da cama / Uma árvore de Natal e um casamento / Noites brancas / Niétotchka Niezvânova / O pequeno herói / O sonho do tio / A granja de Stiepântchikovo e os seus moradores

    volume 2

    Obras de transição

    Humilhados e ofendidos / Memórias da casa dos mortos / Uma história aborrecida / Notas de inverno sobre impressões de verão / Memórias do subterrâneo

    Romances da maturidade

    Crime e castigo

    volume 3

    O jogador / O idiota / O eterno marido / Os demônios

    volume 4

    O adolescente / Os irmãos Karamázovi

    Outros escritos

    Esquema para o grande pecador / O crocodilo / O Mujique Márei / Uma doce criatura / O sonho de um homem ridículo / Excertos do diário de um escritor

    Sumário

    Romances da maturidade (continuação)

    O adolescente

    Os irmãos Karamázovi

    Outros escritos

    Prólogo geral

    Esquema para o grande pecador

    O crocodilo

    O Mujique Márei

    Uma doce criatura

    O sonho de um homem ridículo

    Excertos do Diário de um escritor

    Apêndice

    Glossário de termos russos e de outras línguas, respeitados na tradução

    Escultura em madeira, de S. Konenkov (1956). Moscou, Museu Dostoiévski.

    O adolescente

    O adolescente

    (1876)

    Primeira parte

    Capítulo primeiro

    I

    Sem poder conter-me, começo a escrever esta história de meus pri­meiros passos na carreira da vida. E, no entanto, poderia muito bem não fazer isso. Só uma coisa é certa: nunca mais me porei a escrever minha autobiografia, ainda que tivesse de viver cem anos. É preciso estar por demais vilmente enamorado de si mesmo, para falar a respeito sem pudor. A única desculpa que encontro para mim é que não escrevo pelo mesmo motivo que toda gente, isto é, para obter louvores do leitor. Se, de repente, meti na cabeça anotar, palavra por palavra, tudo quanto me aconteceu desde o ano passado, foi por uma necessidade interior: tão impressionado fiquei pelos fatos ocorridos! Limito-me a registrar os acontecimentos, evitando com todas as minhas forças o que lhes é estranho e sobretudo os artifícios literários; um literato escreve durante trinta anos e finalmente ignora por que escreveu por tantos anos. Não sou e nem quero ser literato. Arrastar a intimidade de minha alma e uma bela descrição de meus sentimentos pelo seu mercado literário seria a meus olhos uma inconveniência e uma baixeza. Prevejo entretanto, não sem desgosto, que será provavelmente impossível evitar por completo as descrições de sentimentos e as reflexões (talvez mesmo vulgares), tanto desmoraliza o homem todo trabalho literário, mesmo empreendido unicamente para si! E essas reflexões podem ser mesmo muito vulgares, porque o que estimais pode muito bem não ter nenhum valor para um estranho. Mas tudo isto seja dito entre parênteses. Está feito o meu prefácio: não haverá mais nada desse gênero. À obra! se bem que nada haja de mais difícil que empreender uma obra, e talvez mesmo pôr-se à obra em geral.

    II

    Começo, isto é, quereria começar minhas memórias na data de 19 de setembro do ano passado, ou seja, precisamente no dia em que pela primeira vez encontrei…

    Mas explicar quem foi que encontrei, assim, de antemão, quando ninguém sabe de nada, será vulgar; este tom mesmo, creio, é vulgar. Depois de ter jurado a mim mesmo evitar os ornatos literários, eis que caio nisso desde a primeira linha. Além disso, para escrever de maneira discreta, não basta querer. Farei também notar que não há, creio bem, uma única língua europeia que seja tão difícil de escrever como a russa. Acabo de reler o que escrevi agora mesmo e vejo que sou muito mais inteligente do que o que está escrito aí. Como se dá, pois, que as coisas enunciadas por um homem inteligente sejam infinitamente mais tolas que o que fica em seu cérebro? Notei-o mais de uma vez em mim e nas minhas relações orais com os outros homens, durante todo aquele último ano fatal, e isso bastante me mortificou.

    Muito embora comece na data de dezenove de setembro, direi entretanto em duas palavras quem sou, onde estive antes dessa data e, por conseguinte, o que podia ter na cabeça, pelo menos parcialmente, naquela manhã de dezenove de setembro, para que seja mais inteligível ao leitor e a mim também talvez.

    III

    Sou um antigo ginasiano e eis-me agora com vinte e um anos de idade. Meu nome é Dolgorúki e meu pai perante a lei Makar Ivânov Dolgorúki, ex-servo doméstico dos senhores Viersílovi. De modo que sou filho legítimo, embora no mais alto grau ilegítimo e não haja a menor dúvida sobre minha origem. Eis como: há vinte e dois anos, o proprietário Viersílov (é ele o meu pai), aos vinte e cinco anos, visitou seu domínio na província de Tula. Suponho que naquela época era ainda uma criatura muito impessoal. É curioso como esse homem, que tanto me impressionou desde minha infância, que teve uma influência tão capital sobre a formação de minha alma e, por muito tempo talvez, contaminou todo o meu futuro, permanece para mim, ainda hoje e numa infinidade de pontos, um verdadeiro enigma. Mas voltaremos a isso mais tarde. Não é tão fácil de contar. Esse homem, de qualquer maneira, estará presente sempre neste meu caderno.

    Naquela época, aos vinte e cinco anos, acabava de perder sua mulher. Era uma senhora da alta sociedade, mas não muito rica, chamada Fanariótova, e dela lhe vieram um filho e uma filha. Minhas informações a respeito dessa esposa tão cedo desaparecida são bastante incompletas e perdem-se no conjunto de meus materiais; aliás, numerosas circunstâncias da vida de Viersílov escaparam-me, tanto se mostrou ele sempre comigo altivo, orgulhoso, reservado e negligente, a despeito duma espécie de humildade, por vezes assombrosa, diante de mim. Menciono, entretanto, a título de indicação, que esbanjou ao curso de sua existência três fortunas, até mesmo bastante copiosas, num total de mais de quatrocentos mil rublos e talvez mais. Agora, naturalmente, não tem mais um copeque…

    Foi então ao seu domínio Deus sabe por quê; pelo menos foi assim que se explicou mais tarde comigo. Seus filhos não estavam com ele, mas em casa de parentes, segundo seu hábito: foi assim que sempre agiu com sua progênie, legítima ou ilegítima, durante toda a sua vida. Havia naquela propriedade certa quantidade de criados: entre eles, o jardineiro Makar lvânov Dolgorúki. Acres­centarei aqui, para não ter de voltar mais a isso: poucas pessoas tiveram na vida de amaldiçoar tanto o seu nome quanto eu. Era sem dúvida estúpido, mas era assim. Cada vez que eu entrava numa escola, ou que encontrava pessoas às quais minha idade obrigava-me a prestar contas, em suma, cada professor, preceptor, censor, vigário, não importa quem, depois de ter perguntado meu nome e sabido que era Dolgorúki, experimentava a necessidade de perguntar:

    — Príncipe Dolgorúki?

    E cada vez era eu obrigado a explicar a todos esses desocupados:

    — Não, Dolgorúki, simplesmente.

    Esse simplesmente acabou por me pôr louco. Notarei como uma espécie de fenômeno que não me lembro de uma só exceção: todos me faziam a pergunta. Alguns, decerto, faziam-na sem o menor interesse; não sei, aliás, em que podia isso interessar a quem quer que fosse. Mas todos a faziam, até o último. Sabendo que eu era Dolgorúki, simplesmente, o interrogador olhava-me de alto a baixo, em geral com um olhar obtuso e tolamente indiferente, testemunhando que não sabia ele mesmo por que me havia interrogado, e ia-se embora. Mas os mais ferinos eram os colegas de escola. Como um novato é interrogado por um veterano! O novato, transtornado e confuso, no primeiro dia de sua entrada na escola (não importa em qual escola) é o arre-burrinho geral, dão-lhe ordens, irritam-no, tratam-no como criado. Um gorducho, cheio de saúde, planta-se de repente diante de sua vítima, bem em frente, e observa-a alguns instantes com um olho severo e insolente. O novato mantém-se diante dele em silêncio, olha-o de través se não é um covarde e aguarda os acontecimentos.

    — Como te chamas?

    — Dolgorúki.

    — Príncipe Dolgorúki?

    — Não, Dolgorúki, simplesmente.

    — Ah!… simplesmente! Idiota!

    E tem razão: nada de mais bobo que se chamar Dolgorúki, quando não se é príncipe. Essa bobice, arrasto-a comigo sem nenhuma culpa minha. Mais tarde, quando comecei a zangar-me seriamente, ao me perguntarem: Tu és príncipe?, respondia sempre:

    — Não, sou filho dum criado, antigo servo.

    Mais tarde ainda, quando passei a ficar furioso, ao me perguntarem: Você é príncipe?, respondi firmemente um dia:

    — Não; Dolgorúki simplesmente, filho natural de meu antigo amo, o Senhor Viersílov.

    Foi quando estava na classe de retórica que fiz este achado e, muito embora me convencesse dentro em pouco que era uma tolice, não renunciei a isso imediatamente. Lembro-me de que um dos professores — era aliás o único — descobriu que eu estava cheio de ideias de vingança e de civismo. Duma maneira geral, acolheram essa minha saída com uma seriedade um tanto ofensiva para mim. Afinal, um de meus camaradas, um pequeno muito mordaz e com o qual eu só conversava uma vez no ano, disse-me com ar profundo, mas olhando ligeiramente para o lado:

    — Esses sentimentos o honram, decerto, e, sem nenhuma dú­vida, você tem de que mostrar-se orgulhoso. No entanto, no seu lugar, não bancaria tanto de glorioso por ser filho natural… Podem achar, na verdade, que você está zombando!

    Desde então cessei de gabar-me de minha ilegitimidade.

    Repito, é muito difícil escrever em russo: já enegreci três folhas para explicar como praguejei toda minha vida contra meu nome, e o leitor já concluiu certamente que fico simplesmente com raiva por não ser príncipe, mas Dolgorúki simplesmente. Não me rebaixarei a explicar-me e a justificar-me uma vez mais.

    IV

    Assim, pois, entre a criadagem que formava legião, além de Makar Ivânov, encontrava-se uma moça, e que já andava pelos seus dezoito anos quando Makar Dolgorúki, aos cinquenta, manifestou de repente intenção de desposá-la. No regime da servidão, os casa­mentos entre servos domésticos concluíam-se, como se sabe, com a autorização dos amos, por vezes mesmo por sua ordem. No domínio morava então uma tia; para falar a verdade, não era minha tia, mas a dama do castelo; somente, não sei por que toda gente a chamava de tia, tia em geral, e era a mesma coisa em casa dos Viersílovi, com os quais, aliás, ela bem podia ser aparentada. Era Tatiana Pávlovna Prutkova. Possuía ainda naquela época, na mesma província e no mesmo distrito, trinta e cinco almas de sua proprie­dade. Administrava, ou antes, fiscalizava, a título de vizinha, a pro­priedade de Viersílov (quinhentas almas), e essa fiscalização, segundo o que ouvi dizer, valia a de não importa qual administrador especialmente instruído. Aliás, seus conhecimentos não me interessam absolutamente; quero somente acrescentar, rejeitando qualquer pensamento de louvor e de lisonja, que essa Tatiana Pávlovna é uma criatura nobre e até mesmo original.

    Foi, pois, ela quem, longe de contrariar os pendores matrimoniais do sombrio Makar Dolgorúki (parece que ele era muito sombrio), os encorajou ao mais alto ponto. Sófia Andriéievna (a tal serva de dezoito anos, minha mãe) era órfã havia já muitos anos; seu pai, que tinha por Makar Dolgorúki um respeito extraordinário e lhe era não sei por que muito grato, servo também ele, ao morrer seis anos antes, em seu leito de morte, e pretende-se mesmo que um quarto de hora antes de lançar o último suspiro, e era mesmo possível ver nisso, em caso de necessidade, um efeito do delírio, se já não estivesse incapaz como servo, mandara chamar Makar Dolgorúki e, diante de todo o pessoal e na presença do padre, exprimira-lhe em voz alta e insistente essa derradeira vontade, designando-lhe sua filha: Educa-a e toma-a por esposa!. Estas palavras foram ouvidas por todo mundo. No que concerne a Makar Ivânov, ignoro com quais sentimentos casou-se em seguida, se com grande prazer ou somente para cumprir um dever. O mais provável é que manifestasse exteriormente perfeita indiferença. Era um homem que, já então, sabia fazer-se valer. Sem ser versado nas escrituras ou culto (sabia de cor todos os ofícios e sobretudo algu­mas vidas de santos, mas apenas de ouvir contar), sem ser uma espé­cie de argumentador profissional, tinha muito simplesmente um caráter decidido, por vezes mesmo audacioso; falava com firmeza, tinha opiniões categóricas e, em uma palavra, vivia honradamente, segundo sua admirável expressão. Eis que homem era então. Gozava naturalmente do respeito de todos, mas, dizem, tornava-se insuportável para todos. Tudo mudou, quando deixou a casa: só se falou dele como de um santo e de um mártir. Tudo isso sei de boa fonte.

    Pelo que se refere ao caráter de minha mãe, Tatiana Pávlovna manteve-a até os dezoito anos a seu lado, a despeito do administrador, que queria mandá-la como aprendiz para Moscou, e deu-lhe alguma educação, isto é, ensinou-lhe corte e costura, boas ma­neiras e até mesmo ensinou-a um pouco a ler. A escrever, minha mãe nunca conseguiu direito. A seus olhos, aquele casamento com Makar Ivânov era desde muito tempo coisa resolvida e tudo quanto lhe adveio então pareceu-lhe excelente e perfeito; dei­xou-se conduzir ao altar com a fisionomia mais calma que se possa ter em semelhante caso, se bem que a própria Tatiana Pávlovna a tratasse então de peixe. Foi de parte dessa mesma Tatiana Pávlovna que vim a saber do que se refere ao caráter de minha mãe naquela época. Viersílov chegou às suas terras exatamente seis meses após esse casamento.

    V

    Quero simplesmente indicar que jamais pude saber ou adivinhar de maneira satisfatória como se iniciaram as coisas entre ele e minha mãe. Estou completamente disposto a crer, como ele me assegurou o ano passado, ruborizado, muito embora me tivesse feito todo esse relato com o ar mais desprendido e mais espiritual, que não houve naquilo nada de novelesco e que tudo se passou assim. Creio que é verdade e esse assim é encantador. Apesar de tudo, sempre tive vontade de saber como pôde aquilo começar. Sempre tive e tenho ainda horror a essas sujeiras. Não, decerto, não é curiosidade malsã de minha parte. Farei notar que até o ano passado não conheci, por assim dizer, minha mãe; desde a infância, fui confiado a estranhos, para maior conforto de Viersílov (vou tratar disto mais tarde), e por conseguinte sou incapaz de imaginar como era sua fisionomia então. Se não era bela, que havia nela que pudesse seduzir um homem como Viersílov? Esta pergunta é importante para mim porque esse homem desenha-se aqui sob um aspecto extremamente curioso. Eis por que a faço a mim mesmo e não por perversão. Ele mesmo, aquele homem sombrio e reservado, me dizia — com aquela amável ingenuidade que o diabo tirava sabe donde (como se tira um lenço do bolso) quando tinha disso necessidade — que era então um cachorrinho estúpido e, sem ser sentimental, acabara de ler à toa, Antônio, o sofredor e Pólinhka Saks,¹ duas produções literárias que exerceram influência civiliza­dora inapreciável sobre a jovem geração da época. Acrescentava que fora talvez por causa de Antônio, o sofredor que voltara ao campo e dizia isto com toda a seriedade. Sob que forma pôde aquele cachorrinho estúpido entrar em relações com minha mãe? Acabo de imaginar que, se tivesse eu apenas um leitor, não deixaria ele de rir desbragadamente de mim, ridículo adolescente que, conservando sua tola inocência, pretende raciocinar a respeito de coisas de que não entende um xis! Não, decerto, nada entendo disso ainda, e confesso-o sem o menor orgulho, porque sei quanto essa inexperiência é ridícula em um grande pateta de vinte anos; somente direi a esse senhor que ele tampouco entende nada disso e lhe provarei isso. É verdade que, no que se refere a mulheres, nada conheço, e nada quero conhecer, porque jurei bem a mim mesmo zombar delas toda a minha vida. Mas sei, no entanto, que uma mulher pode encantar a gente com sua beleza, ou sabe o diabo com que mais ainda, num piscar de olhos; outra, é preciso remoê-la seis meses antes que se compreenda o que lhe vai pelo íntimo; algumas, para vê-las inteiramente e amá-las, não basta contemplá-las, não basta estar pronto para tudo, é preciso, além disso, possuir algum dom. Disto estou convencido, se bem que de nada saiba; se não, seria necessário rebaixar duma vez todas as mulheres à categoria de simples animais domésticos e só conservá-las ao lado da gente como tais. É o que quereriam talvez muitas pessoas.

    Sei positivamente de várias fontes que minha mãe não era uma beleza, muito embora nunca tivesse visto retrato seu daquela época, se é que existe algum. Apaixonar-se por ela, à primeira vista, era, pois, impossível. Para uma simples distração, Viersílov podia escolher outra, havia uma com efeito, e ainda virgem, Anfissa Kons­tantínovna Sapojkova, jovem criada de quarto. Além disso, para um homem que chegava ali com Antônio, o sofredor atentar, em virtude do direito senhorial, contra a felicidade conjugal de seu servo, teria sido bastante vergonhoso a seus próprios olhos, porque, repito, não há mais de alguns meses, isto é, após decorridos vinte anos, falava ele ainda daquele Antônio, o sofredor com uma serie­dade extraordinária. Ora a Antônio só lhe haviam tomado o cava­lo e não a mulher! Passou-se, pois, algo de particular, em detrimento da Senhorita Sapojkova (na minha opinião, para vantagem dela). Uma ou duas vezes, no ano passado, nos momentos em que se podia conversar com ele (não era todos os dias que se podia con­versar com ele), fiz-lhe todas estas perguntas e notei que, malgrado toda a sua polidez e a vinte anos de distância, fazia-se rogar por muito tempo. Mas consegui os meus objetivos. Pelo menos, com aquela desenvoltura mundana que ele se permitia muitas vezes comigo, gaguejou um dia coisas estranhas: minha mãe era uma dessas criaturas sem defesa a quem não se pode amar — decerto que não! — mas que, de repente, não se sabe por que, despertam a compaixão, por causa de sua doçura, por causa de quê, afinal? Nunca se sabe nada. Mas a compaixão dura; à força de compaixão, a gente se sente preso… Em uma palavra, meu menino, acontece mesmo que não se possa a gente mais libertar. Eis o que ele me disse. E se as coisas se passaram realmente dessa maneira, sou obri­gado a ver nele bem outra coisa que não um cachorrinho estúpido, como se qualifica a si mesmo naquela época. É tudo o que queria eu fazer notar.

    Aliás, pôs-se logo a assegurar-me que minha mãe o havia amado por humildade; um pouco mais, ia inventar que por obediência servil! Mentia por bom-tom, mentia contra sua consciência, con­tra a honra e a generosidade!

    Tudo isto, é bem certo, escrevi, poderia dizer, em louvor de minha mãe, e, no entanto, como já declarei, ignoro absolutamente o que era ela então. Mais ainda, conheço bastante bem a impermea­bilidade do meio e das miseráveis noções entre as quais criou ranço desde sua infância e entre as quais passou em seguida toda a sua existência. Apesar de tudo, a desgraça consumou-se. A propósito, uma retificação: perdi-me nas nuvens e esqueci-me de um fato que seria, pelo contrário, necessário pôr em destaque: foi pela desgraça que tudo começou entre eles. (Espero que o leitor não fingirá não compreender imediatamente de que é que quero falar.) Em uma palavra, esses começos foram senhoriais, se bem que a Se­nhorita Sapojkova tivesse sido deixada de parte. Mas aqui inter­venho e declaro de antemão que não me contradigo absolutamente. De que, grande Deus, de que podia então falar um homem como Viersílov a uma pessoa como minha mãe, mesmo no caso de amor irresistível? Ouvi dizer de boca de debochados que muitas vezes o homem, ao abordar a mulher, começa sem pronunciar uma palavra, o que é evidentemente o cúmulo da monstruosidade e do nojo; Viersílov, mesmo que quisesse, não poderia, creio, co­meçar de maneira diferente com minha mãe. Poderia começar por explicar-lhe Pólinhka Saks? Sem contar que não se preocupavam nada com a literatura russa; segundo suas próprias palavras (num dia em que se abriu comigo), ocultavam-se nos cantos, tocaiavam um ao outro nas escadas, saltavam bem longe, como bolas, com as faces vermelhas, se alguém passava e o proprietário tirano tre­mia diante da derradeira das varredoras, a despeito de todos os seus direitos feudais. Se as coisas começaram à moda senhorial, conti­nuaram assim, mas não completamente, e no fundo não há expli­cações a procurar. Só poderiam tornar mais espessas as trevas. As que que tomou o amor entre eles já são um enigma, pois a primeira condição de indivíduos como Viersílov é largar tudo ali, assim que o objetivo é atingido. Deu-se entretanto o con­trário. Pecar com uma bonita serva desmiolada (minha mãe não era, aliás, desmiolada), para um cachorrinho devasso (eram todos devassos, todos até o último, progressistas e retrógrados), é coisa não somente possível, mas até mesmo inevitável, sobretudo se se pensa em sua situação romanesca de jovem viúvo e na sua ocio­sidade. Mas amar para toda a vida, é demais. Não garanto que ele a haja amado; mas que a tenha arrastado atrás de si toda a sua vida, é um fato.

    Fiz bastantes perguntas, mas há uma, a mais importante, que não ousei formular francamente à minha mãe, se bem que me tenha aproximado muito dela o ano passado, e, na qualidade de filho grosseiro e ingrato que julga os outros culpados, não me tenha mostrado absolutamente constrangido com ela. Eis a tal pergunta: como pôde ela, casada havia seis meses e sob o peso de todas as ideias sobre a santidade do matrimônio, esmagada como uma mosca sem defesa, ela que respeitava seu Makar Ivânovitch como a uma espécie de Deus, como pôde ela, em uns quinze dias apenas, cair em semelhante pecado? Não era, no entanto, uma mulher trans­viada. Pelo contrário, digo isso já antecipadamente, seria difícil imaginar alma mais pura, durante toda sua vida. A única explicação é que ela agiu sem ter consciência, não no sentido em que os advogados de hoje o dizem a respeito de seus assassinos ou de seus ladrões, mas sob uma dessas impressões fortes que, numa vítima um tanto simples, a arrebatam fatal e tragicamente. Quem sabe? Talvez ela amou perdidamente… o corte de suas roupas, a risca à parisiense de seus cabelos, sua pronúncia francesa, sim fran­cesa, da qual não compreendia nada, a romança que ele cantara ao piano. Amou alguma coisa que jamais havia visto ou ouvido (era ele um homem muito bonito) e de repente amou-o totalmente, a ponto de desmaiar, com suas roupas e suas romanças. Ouvi dizer que isto acontecia por vezes às jovens servas na época da servidão, e até mesmo às mais honestas. Até compreendo. E vil será quem o ex­plique unicamente pela servidão e pela humildade. Assim, pois, pôde aquele jovem ter bastante força e sedução para atrair uma criatura até ali tão pura e sobretudo uma criatura tão perfeitamente estranha à sua natureza, vinda dum mundo bem diverso e duma outra terra, para um abismo tão manifesto. Que tenha sido um abis­mo, minha mãe, espero, sempre compreendeu; somente, enquan­to para ele caminhava, não pensava nele; essas criaturas indefesas são sempre as mesmas: sabem que o abismo está ali, mas correm para ele.

    Praticado o pecado, logo se arrependeram. Contou-me ele, com gracejo, como soluçou no ombro de Makar Ivânovitch, convocado expressamente para isto ao seu gabinete, enquanto ela, durante esse tempo… estava deitada em alguma parte, inconsciente, no seu quartinho de serva…

    VI

    Mas basta de falar dessas perguntas e desses detalhes escanda­losos. Viersílov comprou a alforria de minha mãe a Makar Ivânov, partiu precipitadamente e desde então, como escrevi acima, arras­tou-a atrás de si quase por toda parte, salvo quando se ausentava por muito tempo. Deixava-a então, na maior parte das vezes, aos bons cuidados da tia, isto é, de Tatiana Pávlovna Prutkova, que naquelas ocasiões acontecia sempre estar presente. Passavam tem­poradas em Moscou, em todas as outras espécies de domínios ou cidades, e até mesmo no estrangeiro, e por fim em Petersburgo. Fa­larei disso, mais tarde ou então de modo algum. Direi somente que um ano depois Arkádi Ivânovitch veio ao mundo; um ano ainda depois, minha irmã; depois, dez ou onze anos mais tarde, meu irmão caçula, um menino doentio que morreu ao fim de alguns meses. Esses partos dolorosos acabaram com a beleza de minha mãe. Foi pelo menos o que me disseram. Começou a envelhecer e a enfraquecer-se rapidamente.

    Mas com Makar Ivânovitch as relações não cessaram nunca. Onde quer que estivessem residindo os Viersílovi, quer vivessem vários anos em seguida no mesmo local, quer viajassem, não dei­xava Makar Ivânovitch de enviar notícias suas à família. Cons­tituíram-se assim relações singulares, um pouco solenes e quase sérias. Entre senhores, era fatal que se tivesse misturado a isso algo de cômico, muito bem; mas ali, nada de semelhante. As cartas chegavam duas vezes por ano, nem mais nem menos, es­pantosamente semelhantes umas às outras. Vi-as; quase nada con­tém de pessoal; pelo contrário, tanto quanto possível, unicamente informações cerimoniosas a respeito dos acontecimentos mais ge­rais e dos sentimentos mais gerais, se assim podemos exprimir-nos a propósito de sentimentos: notícias de sua saúde, depois per­guntas a respeito da saúde do destinatário, depois votos, sauda­ções e bênçãos cerimoniosas e é tudo. Essa generalidade e essa im­pessoalidade são, creio, o bom-tom e a civilidade desse meio. À nossa amada e respeitada esposa Sófia Andriéievna dirijo nossa mais humilde saudação… A nossos queridos filhos envio nossa bênção paternal para sempre inalterável. Seguiam-se todos os nomes dos meninos, na ordem de sua saudação, eu inclusive. Nota­rei aqui que Makar Ivânovitch era senhor de bastante espírito para nunca chamar Sua nobreza o respeitadíssimo Senhor An­driéi Pietróvitch, de benfeitor, mas em cada carta dirigia-lhe, invariavelmente, suas mais humildes saudações, pedindo-lhe a bên­ção e para ele a graça de Deus. As respostas a Makar Ivânovitch eram prontamente enviadas por minha mãe e sempre redigidas no mesmo estilo. Viersílov não participava da correspondência. Makar Ivânovitch escrevia de todos os cantos da Rússia, das ci­dades e dos mosteiros onde permanecia, por vezes longamente. Tornou-se um errante. Jamais pedia coisa alguma; em contra­posição, três vezes por ano vinha sem falta à casa e parava em casa de minha mãe, acontecendo então ter ela sempre um aparta­mento seu próprio, distinto do de Viersílov. Terei de voltar a isto mais tarde, mas anotarei somente aqui que Makar Ivânovitch não se refestelava nos divãs do salão, mas instalava-se modestamente em alguma parte, por trás de um biombo. Não demorava por muito tempo: cinco dias, uma semana.

    Esqueci-me de dizer que ele amava e respeitava muito seu nome de Dolgorúki. Naturalmente, é uma tolice ridícula. O mais bobo é que esse nome lhe agradava justamente porque há príncipes Dolgorúki. Estranha concepção, o inverso do bom senso!

    Disse que a família estava sempre reunida evidentemente sem mim. Fora como que lançado por cima da amurada e quase logo depois de meu nascimento colocado em casa de estranhos. Não havia nisso a menor intenção; ocorria muito simplesmente. Quan­do me pôs no mundo, era minha mãe ainda jovem e bela; era portanto boa para ele em alguma coisa e um menino chorão era bem aborrecido, sobretudo em viagem. Eis como se deu que, até os meus vinte anos, não vi, por assim dizer, minha mãe, exceto em duas ou três ocasiões passageiras. A culpa não cabia aos sen­timentos de minha mãe, mas à atitude orgulhosa de Viersílov para com as pessoas.

    VII

    Agora, uma coisa bem diferente.

    Há um mês, isto é, um mês antes de dezenove de setembro, em Moscou, resolvi renunciar a todos eles e realizar decididamente mi­nha ideia. Emprego esta frase realizar minha ideia porque esta ex­pressão pode significar quase todo o meu pensamento essencial… aquilo mesmo pelo qual vim ao mundo. Que é a minha ideia? Dela terei de falar muito longamente mais adiante. Na solidão sonhadora de meus longos anos de Moscou, formou-se em mim desde a classe de retórica e desde então não me abandonou um instante sequer. Devorou toda a minha existência. Antes dela tam­bém, vivia eu no sonho, vivi desde minha infância num reino encantado dum certo matiz, mas com o aparecimento dessa ideia essencial e devoradora meus sonhos consolidaram-se e revestiram-se de vez de uma forma determinada: de absurdos, tornaram-se sensatos. O ginásio não impedia os sonhos; não impediu tampouco minha ideia. Acrescentarei, entretanto, que meu derradeiro ano foi ruim, ao passo que em todas as minhas classes até então acha­va-me nos primeiros lugares. Foi isto devido a essa mesma ideia, a consequência talvez falsa que dela tirei. De modo que o ginásio não estorvava a ideia, a ideia estorvou o ginásio. Estorvou também a Uni­versidade. Ao sair do ginásio, tive logo a intenção de romper radicalmente não só com todos os meus, mas, se fosse preciso, com o mundo inteiro, se bem que me encontrasse ainda nos meus vinte anos. Escrevi a quem de direito, e por quem de direito, em Petersburgo, que me deixassem definitivamente tranquilo, que não remetessem mais dinheiro para minha manutenção, e, se possível, que me esquecessem totalmente (no caso, é evidente, de se lem­brarem um pouco de mim), e afinal que, por coisa alguma do mundo, entraria para a Universidade. O dilema que se punha diante de mim era inelutável: ou bem a Universidade e a continuação de meus estudos, ou bem adiar quatro anos ainda a reali­zação de minha ideia. Tomei sem hesitar o partido de minha ideia, porque estava matematicamente convencido. Viersílov, meu pai, que vira uma vez somente em minha vida, no espaço dum instante, quando tinha dez anos (e que naquele instante tivera tempo de me causar estupefação), Viersílov, em resposta à minha carta, que, aliás, não lhe era dirigida, chamou-me a Petersburgo por um bilhete de seu próprio punho, prometendo-me um lugar em casa de um particular. Esse convite de um homem seco e orgulhoso, cheio de altivez e de negligência para comigo e que até então, depois de me ter gerado e abandonado a estranhos, não somente não mais me conhecera, mas nem mesmo disso jamais se arrependera (quem sabe? talvez não tivesse de minha existên­cia mesma senão uma noção vaga e imprecisa, porque, como se soube mais tarde, não era ele quem fornecia o dinheiro de minha manutenção em Moscou, mas outras pessoas) — o convite desse homem, digo, lembrando-se de repente de mim e honrando-me com uma carta de seu próprio punho, esse convite, lison­jeando-me, decidiu minha sorte. Coisa singular, o que me agra­dou entre coisas em seu bilhete (uma pequena página de pequeno formato) foi que não dizia uma palavra a respeito da Universi­dade, não me pedia que mudasse de opinião, não me censurava por não querer prosseguir meus estudos, em uma palavra: não usava de nenhum desses sermões paternais habituais em tais casos. E, no entanto, foi isto precisamente o pior da parte dele, teste­munhando ainda mais a sua indiferença a meu respeito. Resolvi partir por uma outra razão ainda: é que isto não entravava em nada meu sonho principal. Veremos bem o que acontecerá. Em todo o caso, ligo-me a eles por algum tempo somente, e talvez muito breve. Assim que perceber que esse passo, embora condi­cional e insignificante, me afasta entretanto do ‘essencial’, rom­perei imediatamente, abandonarei tudo e voltarei para dentro de minha concha. De minha concha, é bem isto! Escondo-me nela, como a tartaruga. A comparação agradava-me enormemente. Não estarei mais sozinho — continuava eu meus cálculos, correndo de­satinadamente dum extremo a outro de Moscou, naqueles derra­deiros dias —, não estarei sozinho mais nunca, como tenho estado até aqui, durante tantos anos terríveis. Terei comigo minha ideia, que não trairei jamais, mesmo se todos eles me agradassem lá, mesmo se me proporcionassem a felicidade e se vivesse com eles dez anos! Eis a impressão, digo-o antecipadamente, eis a duali­dade de planos e de alvos que, já esboçada em Moscou, não me deixou mais um só instante, em Petersburgo (não sei se houve em Petersburgo um só dia em que não me tenha fixado de antemão como o do fim definitivo de minha ruptura com eles e de minha partida) — essa dualidade, digo, foi, creio, uma das principais causas de muitas de minhas imprudências no curso daquele ano, de muitas de minhas infâmias, de minhas baixezas mesmo, sem falar naturalmente de minhas tolices.

    De repente, irrompia em minha vida um pai que antes não existia. Esta ideia embriagava-me durante meus preparativos em Moscou e no trem. Um pai, não era ainda nada, não gostava eu de ternuras, mas aquele homem não quisera conhecer-me e havia-me humilhado, enquanto que, todos aqueles anos, não pensava eu senão nele até a saciedade (se o termo pode aplicar-se a um so­nho). Cada um de meus sonhos, desde minha infância, relacio­nava-se com ele, flutuava em torno dele, voltava finalmente a ele. Não sei se o odiava ou se o amava, mas enchia ele todo o meu futuro, todas as minhas previsões sobre a vida — e isto viera por si mesmo, à medida que eu crescia.

    O que influiu para minha partida de Moscou foi também uma circunstância poderosa, uma tentação que, três meses ainda antes de minha partida (num momento em que, por consequência, não se cogitava de Petersburgo), já fazia fremir e bater meu coração! O que me atraía naquele oceano desconhecido era que eu podia entrar nele como senhor e dono da sorte alheia, e de quem! Mas sentimentos magnânimos, e não despóticos, ferviam em mim. Pre­vino de antemão, para que minhas palavras não induzam a erro. Viersílov podia pensar (caso se dignasse em geral a de pensar em mim) receber um menino, saído de pouco do ginásio, um adolescente, escancarando seus olhos à luz. Ora, eu sabia tudo quanto lhe ia pelo íntimo e tinha comigo um documento de primeira importân­cia, em troca do qual (hoje sei com toda a certeza) teria ele dado vários anos de sua vida, se eu lhe tivesse então descoberto o segredo. Mas dou-me conta de que estou falando por enigmas. É impossível descrever sentimentos sem fatos. Aliás, vou falar suficientemente de tudo isso a seu tempo e foi por isso que tomei da pena. Escrever desta maneira é quase o mesmo que estar delirando ou nas nuvens.

    VIII

    Afinal, para chegar definitivamente à data de dezenove, direi com brevidade, e, por assim dizer, de passagem, que encontrei a todos, Viersílov, minha mãe e minha irmã (via esta pela primeira vez em minha vida), num estado digno de pena, quase na miséria ou à véspera da miséria. Soubera-o já em Moscou, mas estava longe de supor a que ponto. Desde minha infância, tomara o hábito de imaginar aquele homem, meu futuro pai, numa espécie de au­réola; não podia imaginá-lo de outra forma senão ocupando em toda parte o primeiro lugar. Viersílov jamais morara com minha mãe, alugava-lhe sempre um apartamento particular. Agia assim, bem decerto, por causa de suas ignóbeis conveniências. Agora, pelo contrário, viviam todos juntos, num pavilhão de madeira dum beco do Siemiônovski Polk. Todo o mobiliário já se achava no montepio, de sorte que tive de entregar mesmo à minha mãe, às ocultas de Viersílov, meus misteriosos sessenta rublos. Misterio­sos porque se tinham acumulado com o dinheiro miúdo que me davam à razão de cinco rublos por mês, durante dois anos. A acumulação começara desde o primeiro dia de minha ideia e por isso era que Viersílov nada devia saber desse dinheiro. Tremia com receio disso.

    Esse auxílio não foi senão uma gota dágua no oceano. Minha mãe trabalhava, minha irmã também arranjava trabalhos de cos­tura; Viersílov vivia na ociosidade, permitia-se caprichos e conser­vava uma multidão de velhos hábitos bastante dispendiosos. Era extremamente irritadiço, sobretudo à mesa, e todos os seus modos eram os de um verdadeiro déspota. Mas minha mãe, minha irmã, Tatiana Pávlovna e toda a família do falecido Andrónikov (um chefe de repartição, morto três meses antes, e que tratava também dos negócios de Viersílov), compreendendo uma infinidade de mu­lheres, viviam de joelhos diante dele como diante de um ídolo. Não podia imaginar semelhante espetáculo. Devo dizer que, nove anos antes, era ele infinitamente mais sedutor. Já disse que aparecia nos meus sonhos numa espécie de auréola, e por conse­quência tinha dificuldade em crer que ele pudesse envelhecer e gastar-se àquele ponto em uns poucos nove anos. Sentia também pesar, compaixão e vergonha. Vê-lo assim foi, entre minhas pri­meiras impressões de chegada, uma das mais penosas. Estava longe de ser um velho, não tinha senão quarenta e cinco anos. Examinando-o de mais perto, descobri em sua beleza alguma coisa de mais impressionante mesmo do que o que dela se havia con­servado em minha memória. Menos brilho, menos aparência, me­nos rebuscamento, mas a vida marcara aquele rosto com não sei que de muito mais curioso do que outrora.

    Entretanto a miséria não era senão a décima ou a vigésima parte de suas desgraças, eu sabia muito bem. Fora da miséria, havia alguma coisa de infinitamente mais sério, sem falar da esperança que ele ainda mantinha de ganhar um processo que vinha susten­tando havia um ano contra os príncipes Sokólhski, a propósito de uma herança e que lhe podia valer dentro em breve uma proprie­dade de setenta mil rublos e talvez mais. Já disse acima que esse Viersílov devorara em sua vida três heranças. Ia ser salvo mais uma vez por uma herança! O caso devia decidir-se muito proxi­mamente. Eu chegara em meio dessa esperança. Somente ninguém emprestava dinheiro por conta de uma esperança, não havia nin­guém a quem pedir emprestado e, enquanto se esperava, sofria-se.

    Viersílov, aliás, não se dirigia a ninguém, muito embora por vezes estivesse o dia inteiro fora. Havia mais de um ano que fora expulso da boa sociedade. Essa história, apesar de todos os meus esforços, permanecia inexplicada para mim, apesar de um mês inteiro já passado em Petersburgo. Era Viersílov culpado ou não? Eis o que me importava e o motivo de minha presença! Todo mun­do lhe voltara as costas — e no número delas todos os persona­gens influentes com os quais ele soubera sempre manter relações — por causa de certos rumores referentes à conduta extremamente baixa e, o que é pior aos olhos do mundo, extremamente escan­dalosa de que se tornara ele culpado um pouco mais de um ano antes na Alemanha, e mesmo uma bofetada que teria então rece­bido muito publicamente, justamente dum Príncipe Sokólhski, e à qual não respondera com o desafio a duelo. Mesmo seus filhos (legítimos), seu filho e sua filha, lhe haviam voltado as costas e viviam separadamente. É verdade que esse filho e essa filha frequentavam as rodas mais elevadas, graças aos Fanariótovi e ao velho Príncipe Sokólhski (ex-amigo de Viersílov). Na realidade, observando-o no decorrer daquele mês, vi um homem altivo que a sociedade não havia excluído de seu seio, mas que, em vez disso, havia ele próprio expulso a sociedade de sua casa — tão independente era o ar que exibia! Mas tinha ele o direito de exibir esse ar? Eis o que me perturbava! Era indispensável saber toda a verdade no mais curto prazo, porque eu tinha vindo julgar aquele homem. Dissimulava-lhe ainda minhas forças, mas era-me preciso ou adotá-lo ou então repeli-lo inteiramente. A segunda solução para mim teria sido demasiado penosa e eu me afligia. Farei enfim uma confissão: eu queria bem àquele homem!

    Na ocasião, morava com eles, no mesmo apartamento, traba­lhava e tinha dificuldade em abster-me de grosserias. Não me abstinha delas inteiramente. Decorrido um mês, convencia-me cada dia mais de que a explicação definitiva não seria a ele que eu pediria. Aquele homem orgulhoso erguia-se diante de mim como um enigma, profundamente chocante. Comigo mostrava-se até mes­mo amável e agradável, mas eu antes preferia disputas que essas brincadeiras. Todas as minhas conversas com ele com­portavam sempre não sei que ambiguidade, ou bem simplesmente não sei que ironia singular de sua parte. Desde o começo, desde minha chegada de Moscou, ele não me levava a sério. Eu não chegava a compreender por que ele agia assim. Sem dú­vida obtivera esse resultado de permanecer impenetrável para mim; mas de minha parte, jamais me teria rebaixado a pedir-lhe que me tratasse com mais seriedade. Além disso, tinha processos pas­mosos e imperiosos diante dos quais eu não sabia o que fazer. Em uma palavra, tratava-me como o derradeiro dos fedelhos, o que eu dificilmente suportava, embora sabendo que assim deveria ser. Em consequência, cessei mesmo quase inteiramente de falar. Esperava uma pessoa cuja chegada de Petersburgo podia revelar-me definitivamente a verdade. Nisto se cifrava minha derradeira esperança. Em todo caso, preparei-me para romper definitiva­mente e tomei todas as minhas medidas para isso. Minha mãe causava-me compaixão, mas… ou sim, ou não: eis o que eu queria propor-lhes, a ela e à minha irmã. O próprio dia estava marcado; enquanto esperava, ia para meu emprego.

    Capítulo II

    I

    Naquele dia dezenove devia também receber meu primeiro mês de ordenado em casa do particular em questão. Não haviam pedido minha opinião a respeito desse emprego, muito simplesmente me entregaram ao patrão, creio, no primeiro dia de minha chegada. Era uma grosseria e sentia-me quase obrigado a protestar. O emprego era em casa do velho Príncipe Sokólhski. Mas protestar imediatamente significaria romper logo com eles, o que de modo algum me atemorizava, mas era contrário aos meus objetivos essenciais. Assim, aceitei o lugar, aguardando, calado, defendendo minha dignidade pelo meu silêncio. Direi desde logo que esse Príncipe Sokólhski, rico e conselheiro privado, não era absolutamente parente dos príncipes Sokólhski de Moscou (na miséria desde muitas gerações) contra os quais estava Viersílov em litígio. Só havia de semelhança o nome. No entanto, o velho príncipe interessava-se muito por eles e gostava bem particularmente de um deles, o chefe por assim dizer da família, um jovem oficial. Viersílov, outrora ainda, exercera imensa influência nos negócios daquele velho e era seu amigo, amigo singular, porque aquele pobre príncipe, pude disso dar-me conta, tinha um medo terrível dele, não somente na época em que entrei para seu ser­viço, mas também, creio, todo o tempo, durante toda sua amizade. Aliás, desde muito tempo, não mais se viam; o ato desonesto de que se acusava Viersílov relacionava-se justamente com a fa­mília do príncipe; mas Tatiana Pávlovna encontrou-se lá bastante a propósito e graças a seu intermédio é que fui colocado em casa do velho, que desejava ter um rapaz junto de si no seu escri­tório. Verificou-se também que ele tinha grande vontade de ser agradável a Viersílov, de dar, em suma, um primeiro passo para ele, e que Viersílov queria-o bem. O velho príncipe assim decidira na ausência de sua filha, viúva dum general, a qual certamente não lhe teria permitido dar aquele passo. Tratarei disto mais tarde, mas anotarei imediatamente que essas estranhas relações com Viersílov me impressionaram em seu favor. Pensei que, se o chefe duma família ofendida continuava assim a ter respeito a Viersílov, os rumores espalhados a propósito de sua imoralidade deviam ser falsos ou pelo menos sujeitos a interpretação. Foi em parte o que me impediu de protestar: esperava, entrando para o serviço do príncipe, verificar tudo isso.

    Essa Tatiana Pávlovna desempenhava um papel singular na época em que a encontrei em Petersburgo. Tinha-me quase esquecido de sua existência e não esperava absolutamente encontrá-la tão importante. Havia-a encontrado até então três ou quatro vezes em Moscou; surgia, não se sabia donde, nem por ordem de quem, cada vez que era preciso instalar-me em alguma parte, fazer-me entrar para o triste pensionato Touchard ou então, dois anos e meio mais tarde, transferir-me para o ginásio, ou ainda alojar-me em casa do inesquecível Nikolai Siemiônovitch. Uma vez surgida, ficava comigo o dia inteiro, passava em revista toda minha roupa branca, meus ternos, ia comigo ao Kuzniétski Most² e à cidade, comprava para mim todos os objetos necessários, reconstituía, numa palavra, todo meu enxoval, até a derradeira maleta e o derradeiro canivete; e ao fazê-lo, não cessava de resmungar, de censurar-me, de crivar-me de ralhos, de submeter-me a exames, de me apontar como exemplo não sei quais outros rapazinhos imaginá­rios, dentre os seus conhecidos ou seus parentes, todos melhores do que eu, segundo ela, e até mesmo, não estou mentindo, belis­cava-me, dava-me verdadeiras pancadas, dolorosas e frequentes. Depois de haver-me instalado e colocado, desaparecia por vários anos sem deixar traços. Pois bem, foi ela quem, logo depois de minha chegada, se apresentou para me colocar. Era uma mulherzinha seca, com um narizinho pontudo de passarinho e olhinhos penetrantes, também de passarinho. Para Viersílov, era uma ver­dadeira escrava: vivia em adoração diante dele como diante de um papa, mas por convicção. Entretanto, observei em breve, com espanto, que todo mundo, sem exceção, e por toda parte, — a res­peitava e sobretudo que todo mundo, sem exceção, e por toda parte, a conhecia. O velho Príncipe Sokólhski tinha por ela extraordi­nária veneração; na sua família, era a mesma coisa; os orgulhosos filhos de Viersílov também; em casa dos Fanariótovi também. E, no entanto, ela vivia de costura, de lavagem de não sei que rendas, e trabalhava para uma loja. Discutimos, desde a primeira palavra, porque ela pretendeu me dar broncas como seis anos antes; em seguida, continuamos a descompor-nos todos os dias; mas isto não nos impedia de conversar por vezes e confesso que, ao fim do mês, ela começava a agradar-me; era, penso, por causa da independência de seu caráter. Aliás, tinha todo o cuidado em nada lhe falar sobre isso.

    Compreendi logo que me haviam colocado junto daquele velho doente unicamente para distraí-lo e que nisto consistia todo o meu trabalho. Naturalmente, isto me humilhou e tomei logo providên­cias; mas em breve o velho original causou em mim uma im­pressão inesperada, como uma espécie de compaixão, e para o fim do mês sentia por ele um estranho apego. Em todo caso, abandonei minha intenção de tratá-lo com maus modos. Aliás, ele não tinha mais de sessenta anos. Houvera com ele uma com­plicação. Dezoito meses antes, sofrera um ataque. Tendo partido não sei mais para onde, perdeu o juízo no caminho, o que deu lugar a uma espécie de escândalo, muito falado em Petersburgo. Como convém em semelhante caso, levaram-no sem demora para o estrangeiro, mas cinco meses depois reapareceu, com perfeita saú­de, mas aposentado. Viersílov afirmava com seriedade (e com visível ardor) que o que lhe acontecera não fora absolutamente loucura, mas simples ataque de nervos. Esse ardor de Viersílov, notei-o logo. Direi, aliás, que quase partilhava de sua opinião. O velho parecia apenas por vezes duma extrema leviandade, não con­dizente com sua idade, o que, dizem, antes nunca lhe acontecia. Dizia-se que outrora fora assessor em não sei mais que par­te, e cumprira com muita distinção um encargo que lhe fora confiado. Conhecendo-o havia apenas um mês, não lhe teria jamais suposto capacidades particulares para ser conselheiro. Tinha-se no­tado (se bem que eu mesmo não o tivesse feito) que depois de seu ataque fora tomado duma singular vontade de se casar o mais depressa possível e que, mais de uma vez no curso daqueles de­zoito meses, pensara em realizar tal ideia. Sabia-se disso, ao que parece, na sociedade e havia interesse em torno do caso. Mas como essa inclinação não correspondia aos interesses de certas pessoas de seu círculo, de todos os lados montava-se guarda ao velho. Sua família não era numerosa; havia vinte anos que era viúvo e tinha uma filha única, essa viúva de general que era esperada agora de Moscou dum dia para outro, uma mulher jovem de cujo caráter se tinha visivelmente receio. Mas ele possuía uma multidão de parentes afastados, sobretudo do lado de sua defunta mulher e que se achavam todos, por assim dizer, na miséria; além disso, havia a multidão de seus pupilos, machos e fêmeas, objetos de seus benefícios, esperando todos uma pequena parte no seu testamento e, por conseguinte, ajudando a generala a vigiar o ve­lho. Tinha ele, além do mais, desde sua mocidade, uma singula­ridade da qual não se saberia dizer se era ridícula ou não: a de casar as moças pobres. Casava-as desde os vinte e cinco anos: parentas distantes, enteadas de primos germanos de sua mulher, afilhadas, e até a filha de seu porteiro. Recolhia-as em primeiro lugar em sua casa, ainda bem meninas, mandava-as educar por governantas e criadas francesas, depois mandava-as para os me­lhores estabelecimentos de instrução e por fim dava-lhes um dote. Todo esse mundo girava perpetuamente em torno dele. E era natural, as pupilas, uma vez casadas, tinham ainda filhas, todas essas filhas eram também pretendentes à sua proteção, era ele padrinho por toda parte, todo mundo vinha felicitá-lo no seu ani­versário, tudo isso era para ele extremamente agradável.

    Uma vez em sua casa, notei logo que no cérebro do velho aninhava-se uma convicção penosa — era impossível não notar — a saber, que as pessoas o examinavam agora com um ar esqui­sito, que não o tratavam mais como outrora, quando estava em plena saúde; esta impressão não o abandonava nunca, mesmo nas reuniões mundanas mais alegres. O velho tornou-se suscetível; notava alguma coisa em todos os olhares. A ideia de que suspei­tavam ainda de sua loucura atormentava-o visivelmente; a mim mesmo, olhava-me por vezes com desconfiança. E se alguma vez viesse a saber que alguém espalhava ou confirmava esse boato a seu respeito, creio que aquele homem absolutamente sem rancor viraria seu inimigo mortal. É isto que vos peço que anoteis. Acrescentarei que foi também o que me decidiu desde o primeiro dia a não tratá-lo com maus modos; sentia-me mesmo feliz, quan­do tinha por acaso ocasião de alegrá-lo ou distraí-lo; não creio que esta confissão possa lançar alguma sombra sobre minha dig­nidade.

    Grande parte de sua fortuna estava empregada em negócios.

    Passara, após sua doença, a fazer parte duma grande sociedade anônima, aliás bastante sólida. E se bem que a empresa fosse diri­gida por outros, interessava-se por ela também, frequentava as reuniões de acionistas, fez-se eleger membro-fundador, participava das reuniões do Conselho, pronunciava longos discursos, refutava, fazia barulho, com um contentamento manifesto. Adorava pronunciar discursos: pelo menos assim toda gente podia tomar co­nhecimento de seu espírito. E duma maneira geral, mesmo na sua vida privada mais íntima, gostava enormemente de incluir na con­versa algumas frases profundas ou espirituosas; e compreendo-o. Havia no edifício em que morava, no andar inferior, uma espécie de escritório doméstico em que um empregado cuidava dos ne­gócios, fazia a contabilidade e escriturava os livros, dirigindo a casa. Esse empregado, que tinha, além disso, um cargo oficial, dava conta de tudo, mas, a desejo do príncipe, fiquei a ele adido, isto é, para ajudá-lo. Somente, fui logo transferido para o gabinete do príncipe e bem muitas vezes não tinha diante de mim, mesmo pró-forma, nem trabalho, nem papéis, nem livros.

    Escrevo hoje como homem desde muito desembriagado e desi­ludido de muitas coisas; mas como representarei o pesar (do qual me recordo ainda tão vivamente) que invadiu então meu coração e sobretudo minha angústia do momento, que me conduziu a tal estado de inquietude e de agitação que não dormia mais à noite, por efeito da impaciência e dos enigmas que a mim mesmo pro­punha?

    II

    Pedir dinheiro é uma história muito suja; mesmo um salário, se a gente sente, em alguma parte, nos refolhos de sua consciência, que ele não foi devidamente ganho. Ora, na véspera, minha mãe, cochichando com minha irmã, às ocultas de Viersílov (para não causar pesar a Andriéi Pietróvitch), manifestara a intenção de levar à loja de penhores um ícone a que tinha grande estimação. Meu salário era de cinquenta rublos por mês, mas eu não tinha ideia de como o receberia; ao me colocarem, nada ficara estabelecido. Três dias antes, encontrando embaixo o empregado, informara-me com ele: onde seria eu pago? O outro olhou-me com um sorriso de homem pasmado (não gostava de mim):

    — O senhor tem de receber alguma coisa?

    Esperava que ele acrescentasse imediatamente após minha res­posta:

    — E por que afinal?

    Mas limitou-se a responder secamente: Não sei, e mergu­lhou no seu livro quadriculado, onde copiava contas escritas em pedaços de papel.

    Não ignorava, aliás, que eu fazia, no entanto, alguma coisa. Quinze dias antes, passara exatamente quatro dias num trabalho que ele mesmo me havia entregue: recopiar um borrão. Ele teve quase de redigir tudo de novo. Era um amontoado de ideias do príncipe, que este se preparava para submeter à comissão dos acio­nistas. De tudo aquilo era preciso compor um todo e arranjar o estilo. Passamos em seguida, o príncipe e eu, um dia inteiro tra­balhando naquele papel e ele discutiu muito acaloradamente co­migo; entretanto ficou satisfeito. Ignoro somente se o papel foi entregue ou não. Não mencionarei duas ou três cartas de negó­cios que escrevi também a seu pedido.

    Se me sentia acanhado em pedir meu salário é que tinha resol­vido deixar o lugar, pressentindo que seria também obrigado a sair dali, por causa de certas circunstâncias inevitáveis. Naquela manhã, assim que despertei e me vestia lá em cima em meu quar­tinho, senti o coração bater e por mais que procurasse manter-me indiferente senti, ao entrar nos aposentos do príncipe, ainda a mesma perturbação. Naquela manhã, devia chegar a pessoa, a mulher, da qual eu esperava a explicação para tudo quanto me atormentava! Era a filha do príncipe, a Generala Akhmákova, aque­la jovem viúva de quem já falei e que estava em guerra aberta contra Viersílov. Por fim escrevi este nome! Nunca a havia, na­turalmente, visto e não podia imaginar como lhe falaria, nem se lhe falaria; mas parecia-me (talvez com razões suficientes) que com sua vinda se dissipariam as trevas que, a meus olhos, cer­cavam Viersílov. Não podia ficar firme: era um terrível despeito encontrar-se a gente desde os primeiros passos tão covarde e tão desajeitado; era terrivelmente curioso e sobretudo odioso: três im­pressões ao mesmo tempo. Lembro-me de cor de tudo quanto se passou naquele dia!

    Da chegada provável de sua filha, não sabia o meu príncipe nada ainda. Não a esperava antes de uma semana. Eu tinha ficado sabendo na véspera e totalmente por acaso: Tatiana Pávlovna, que havia recebido uma carta da generala, deixara escapar o segredo em minha presença, ao conversar com minha mãe. Por mais que falassem baixo e em termos vagos, adivinhara tudo. Não estava à escuta, é evidente, mas não pude deixar de prestar ouvidos, quando vi de repente, à notícia da chegada daquela mulher, minha mãe ficar completamente perturbada. Viersílov não estava em casa.

    Não quis prevenir o velho, porque pudera notar, durante todo aquele tempo, quanto ele temia a chegada dela. E até mesmo, três dias antes, chegara a ponto de dizer, tímida e vagamente, que, com sua chegada, temia por mim, ou antes, que, por minha causa, iria haver barulho. Devo, entretanto, acrescentar que, a respeito de sua família, ele conservava sua independência e sua superioridade, sobretudo em matéria de dinheiro. Minha pri­meira conclusão a seu respeito foi que ele não passava de uma mulher; mas tive em seguida de modificá-la no sentido de que, se era uma mulher, restava-lhe entretanto por vezes certa teimosia, em falta de verdadeira virilidade. Havia instantes em que, com seu caráter aparentemente covarde e maleável, era quase intratá­vel. Viersílov explicou-me a coisa mais tarde com maiores detalhes. Noto agora, com curiosidade, que não falávamos quase nunca juntos da generala, evitávamos por assim dizer falar dela. Era eu sobretudo quem o evitava e ele, por sua vez, evitava falar de Vier­sílov e adivinhei que não me responderia se eu lhe fizesse uma daquelas perguntas delicadas que tanto me intrigavam.

    Se se quiser saber a respeito de que falamos durante todo aquele mês, responderei: de tudo, em suma, mas sempre de coisas estra­nhas. O que me agradava muito era a extrema bonomia com que me tratava. Por vezes considerava aquele homem com um espanto extremo e perguntava a mim mesmo: Onde terá estado antes? No ginásio, na quarta série, por exemplo, teria sido um camarada encantador. Muitas vezes causava-me também impressão o seu rosto: parecia extraordinariamente sério (e quase belo), seco, cabelos frisados, brancos, espessos, olhos abertos; era seco em toda a sua pessoa e de boa estatura; mas seu rosto tinha a particula­ridade um tanto desagradável, quase inconveniente, de passar de súbito duma seriedade extrema a uma alegria excessiva, que aquele que o via pela primeira vez jamais teria podido prever. Disse isto a Viersílov, que me ouviu com curiosidade; ele, sem dúvida, não me achava capaz de fazer semelhantes observações; mas deu a perceber, como que de passagem, que isso sobreviera ao príncipe desde sua doença e bem nos últimos tempos.

    Falávamos por vezes de dois assuntos abstratos: Deus e sua existência — existe Ele ou não? — e das mulheres. O príncipe era muito religioso e sensível. Tinha em seu gabinete um imenso armário de ícones com uma lâmpada. Mas em certos momentos dava-lhe uma mania, punha-se de repente a duvidar da existência de Deus e dizia coisas espantosas, para provocar minha réplica. Eu era bastante indiferente a essa ideia, duma maneira geral, mas isto não impedia que nos entusiasmássemos ambos e sempre sin­ceramente. Aliás, todas aquelas conversações deixaram-me, até hoje, uma agradável recordação. Entretanto o mais agradável para ele era tagarelar a respeito das mulheres, mas como, não sendo eu muito amante desse gênero de conversa, não podia ser um bom interlocutor, ele se sentia por vezes mortificado.

    Foi justamente esse tema que ele abordou assim que cheguei a seus aposentos naquela manhã. Encontrei-o de alegre humor, ape­sar de havê-lo deixado na véspera extremamente triste. Ora, era-me absolutamente preciso regularizar naquele mesmo dia a questão de meu salário, antes da chegada de certas pessoas. Previa que seríamos naquele dia certamente interrompidos (não era por coisa nenhuma que o coração me palpitava); e então não teria talvez a coragem de falar de dinheiro. Mas como a conversa não recaía sobre o dinheiro, enchia-me naturalmente de raiva contra minha tolice e, lembro-me muito bem, por despeito de alguma pergunta dele na verdade demasiado alegre, expus-lhe dum jacto minhas ideias a respeito das mulheres e com uma vivacidade extraordi­nária. Resultou disso que ele se entusiasmou ainda mais às minhas custas.

    III

    — …Não gosto das mulheres, porque são grosseiras, porque são desastradas, porque não têm iniciativa e porque usam um traje inconveniente!

    Tal foi a conclusão desordenada de minha longa tirada.

    — Piedade para elas, meu caro! — exclamou ele, tremenda­mente divertido, o que me encheu ainda mais de raiva.

    Sou conciliante e minucioso somente no que se refere às peque­nas coisas; a respeito das grandes nunca cedo. Nas pequenas coi­sas, em vagas atitudes mundanas, pode-se fazer de mim tudo quan­to se quiser, e sempre maldigo esse traço de meu caráter. Graças a não sei que nojenta bonomia, tenho estado por vezes pronto a aprovar até mesmo um presunçoso mundano, unicamente porque estava fascinado pela sua polidez, ou começar uma discussão com um imbecil, o que é bem mais imperdoável. Tudo isso por defeito de saber conter-me e porque cresci no meu canto. A gente se retira, furioso, e jura não recomeçar, mas já no dia seguinte é a mesma história. Eis por que tenho sido algumas vezes tratado como garoto de dezesseis anos. Mas em lugar de adquirir domínio

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